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A cidade dos anjos do improrrogável

The city of the angels of unextendable


La ciudad de los ángeles del improrrogable

Luis Antonio Baptista


Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.
Rodrigo Lages e Silva
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

Resumo
A cidade tem sido objeto de inúmeras escritas. Escrevem maldizendo-a os desertores
que rumam às suas casas no campo ou às suas comunidades autossustentáveis.
Escrevem clamando por ela os ocupados nas escolas, nos prédios abandonados, nas
praças, nas universidades. Escrevem preocupados os economistas com suas sacras
probabilidades. O que torna improrrogável que escrevamos a cidade? Perseguindo esta
interrogação, colocamos em cena um personagem interpelado por uma voz que o exorta
a caminhar pelas ruas de um Rio de Janeiro que lhe desorienta os sentidos intoxicados
de confortáveis certezas. Em seguida pensamos tal processo à luz do materialismo
filosófico de Epicuro e Lucrécio, com vistas à proposição de uma escrita urbana que não
apenas interpreta fenômenos urbanos, mas que, transgredindo o sensível, inventa
cidades e subjetividades.
Palavras-chave: Cidade; Escrita; Materialismo Filosófico.

Abstract
The city has been object of countless writings. Cursing it write the deserters while
depart to its country houses or self-sustainable communities. Claiming for it write the
occupiers at schools, abandoned buildings, parks, universities. Concerned write the
economists with its sacred probabilities. What makes unextendable that we write the
city? On this quest we screened a character haunted by a voice which urges him to walk
on the Rio de Janeiro’s streets that disorientates his senses intoxicated by comfortable
certainties. On the following we analyze this process by the light of the Epicurus and
Lucretius’ philosophical materialism, aiming to propose an urban writing that doesn’t
interpret urban phenomena but transgressing the senses creates cities and subjectivities.
Keywords: City; Writing; Philosophical Materialism.

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Baptista, L.; Silva, R.
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Resumen
La ciudad está siendo objeto de innumerables escritas. La escriben los desertores
mientras rumban hacia sus casas de campo o comunidades auto-sostenibles. La escriben
los ocupas en las escuelas, los edificios abandonados, las universidades. Escriben
pesarosos los economistas con sus sacras probabilidades. ¿Qué hace improrrogable que
escribamos la ciudad? En esta búsqueda hemos puesto en cena un personaje azumbrado
por una voz que le insta a caminar por las calles de un Rio de Janeiro que le desorienta
los sentidos intoxicados de confortables certezas. A continuación hemos pensado este
proceso bajo la luz del materialismo filosófico de Epicuro y Lucrecio, objetivando la
proposición de una escrita urbana que no solamente interpreta los fenómenos urbanos,
aunque transgrediendo el sensible inventa ciudades y subjetividades.
Palabras clave: Ciudad; Escrita; Materialismo Filosófico.

O encontro da sua arrogante solidão está encerrado.


Anos e mais anos da sua vida foram
Entrei pela janela. Você não me gastos nesta poltrona grudada ao seu
conhece. Poderia ter entrado pela fresta traseiro. Até mesmo na rua ela era
da porta, mas a janela entreaberta me levada mantendo o conforto das suas
seduziu. A casa constantemente fechada agonias. O mundo visto, interpretado e
me provoca. A ausência de luz solar, sentido na poltrona de veludo também
ruídos do bairro, sopros de ar nas me enfurece. Inquietações, angústias
cortinas me enfurece. A inexistência de imóveis não me comovem. Você está
cheiros de coisas vivas parece afirmar perdido. O desconforto de um tempo
que a cidade é desprezada por tudo aqui. alheio ao seu desespero nunca existiu, é
Desprezo insuportável. As paredes sem indiferente para as suas crises
poros justificam também a minha ira. existenciais. O passado esgotado, o
Não trema. A minha visita poderá ser futuro promissor, ou inútil, misturam-se
um perigo para esta fortaleza mofada. ao presente da sua tristeza inerte. Nesta
Levante. A imobilidade acabou. Não casa expurga-se qualquer coisa que
pergunte quem eu sou. Não responderei possa perturbar o pessimismo cansado,
de onde vim. Abra as outras janelas. ou as ideias revolucionárias conspiradas
Tristeza, dúvidas, a agonia infinita deste solitariamente. Você agora está em
mausoléu serão destruídas. O conforto apuros. O tempo das paredes sem poros

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será aniquilado. O tempo dos relógios, Pare de ler, controle o tremor
dos calendários, das agendas será das mãos, pule este pedaço, não é
destruído implacavelmente. Pegue o necessário, leia estas linhas:
livro no canto da última prateleira da
biblioteca. O livro azul. Senta na Nenhuma daquelas fisionomias
extenuadas e graves denotava o
poltrona deformada pelo seu traseiro.
mínimo desespero; sob a tediosa cúpula
Leia sentado com este corpo trêmulo,
do céu, os pés mergulhados na poeira
mas não gagueje. Você não consegue de um solo tão desolado como o do
me ver, porém tenho o poder de tocá-lo. céu, eles marchavam com a aparência
Aqui sou apenas uma voz. Pegarei a sua resignada dos que são condenados a
esperar eternamente2.
mão e abrirei uma página. Minha voz
tem corpo. É cedo para saber meu
A sua fisionomia extenuada tem
nome. Não tenha medo. Fale alto o que
as horas contadas. O tédio da sua
você está lendo. Leia sem murmurar.
confortável depressão acabou.
Não estou ouvindo, diga as palavras
Basta, agora levante desta
com força:
poltrona e fique em pé. Erga esse

Sob um grande céu de cinza, numa


ombro. Abra a porta da sala. Tire os
grande planície poeirenta, sem sapatos e prepare-se para sair. Olhe para
caminhos, sem relva, sem um cardo, frente, preste atenção ao que está fora
sem urtiga, encontrei vários homens
desta casa. O desprezo das suas
que marchavam curvados. Trazia cada
quimeras ao mundo terá surpresas
um deles às costas uma enorme
Quimera, tão pesada como um saco de inimagináveis. É improrrogável o que
farinha ou de carvão, ou como o deve ser feito, aguarde e lhe direi o que
equipamento de um legionário romano. é. Vamos caminhar. Você está próximo
Interroguei um daqueles viajantes,
do abismo. Guiarei seus passos por
perguntei-lhes aonde iam assim.
lugares nunca tocados pelos seus pés. O
Respondeu-me que não sabia de nada,
nem ele, nem os outros; mas que,
solo empoeirado, detritos, buracos,
evidentemente, iam a alguma parte, vermes, roçarão a pele imaculada do
pois eram impelidos por uma corpo que você pensa ser proprietário. É
1
necessidade invencível de caminhar .
improrrogável a travessia por vir, algo
deve ser feito. Tire os óculos, abra os
olhos, respire profundamente. A
caminhada precisará dos músculos

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tesos, do olfato apurado. No percurso a Você conhecerá a cidade embaçada,
morte será encontrada em cada esquina. desfocada, desprotegida do zelo dos
Sim, você terá várias mortes. Os órgãos instrumentos que a fazem mais bela, ou
do corpo terão as funções alteradas. Não mais terrível. Ela escapará do conforto
trema. O chão, o céu por onde passam dos adjetivos. Digo bem alto nos seus
as quimeras nesta casa mofada ouvidos, a cidade dará uma resposta às
desconhecem a desolação do lado de suas análises, responderá às verdades
fora. Estou aqui para interromper o das quimeras presas ao seu corpo. Você
vagar sem rumo neste deserto está perdido. A paisagem será
doméstico. Vim como o profanador do desenhada por meio do embrulho do seu
templo onde utopias e fracassos ganham estômago, da parada e das batidas do
a aura do sagrado. Acabou a agonia coração, dos poros da sua pele
protegida por este espaço sufocante; transformada em olho. O Rio de janeiro
chega de brincar de Deus, de se que vou lhe guiar será um inferno.
desesperar por não conseguir esta meta. Esqueça o da infância, o dos jornais, o
Existem desesperos mais intensos, das missas, o da consciência. O inferno
afetos inomináveis, tristezas a ser apresentado você desconhece.
desconhecidas, alegrias perturbadoras, Colocarei no seu caminho anjos que
ignoradas pelo seu universo familiar. você jamais pressentiu que existam.
Você respirará com as pernas, devorará Não, são diferentes dos anjos gordos
o que for visto com os músculos do das igrejas abominadas pelo seu
corpo todo, falará, silenciará e vomitará ateísmo. São laicos, seres sem Deus.
pelos olhos, chorará lágrimas que Não são metáforas, símbolos de nada.
atravessarão a pele, verá com os pés. O Cuidado com eles. Arruinarão as
corpo que você pensa ser só seu perderá certezas e as incertezas desta casa
as funções dos órgãos. O peso das suas fechada como um cárcere. Os seres sem
quimeras pouco a pouco diminuirá. Os Deus desconhecem a missão de cuidar
olhos cansados de tanta leitura serão almas desgovernadas, ou indicar o rumo
provocados. Retese este corpo curvado. para a salvação. Trema, mas me escute.
Destrua o relógio. O tempo do lado de Os anjos estranhos ao paraíso
fora despreza as horas desta máquina atormentarão as suas agonias, farão
grudada ao pulso. Os óculos também esquecê-lo das certezas e incertezas,
serão inúteis. Nada será nítido no arrancarão você de si mesmo. A cidade
trajeto. Abra a porta e olhe para a rua. desfocada é enrugada, fede, possui

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perfumes que lhe será impossível que o mantém vivo. O umbral da porta
nomear. Você está sem saída. Abra a não designará o limite de uma fronteira.
porta, abandone a poltrona, os sapatos, a Você passará sem nenhum horizonte
memória do seu corpo curvado, o medo. para protegê-lo. Olhe pela última vez o
Anjos urbanos lhe incitarão à urgência que está lá fora desprezado por tantos
do ato improrrogável. anos. Meu nome será revelado quando o
Não, não saia agora, espere o pássaro sobre o solo cruzar o seu
nascer do sol. Fique parado com a porta caminho e uma pedra sangrar. Aguarde
aberta. Olhe pela última vez as estrelas. o momento certo. Após a revelação
Quando você retornar elas não serão as ordenarei o que deve ser feito. Na
mesmas, assim como o seu corpo caminhada olhe com os pés. As
flácido e as paredes mofadas. A passagens destruirão o conforto do que
poltrona não conseguirá acomodar a o asfixia.
imobilidade de tantos anos. Seu corpo Amanhece. Atravesse a
mudará. Acabou o sossego. Quebre os fronteira da sua casa. Esqueça a calça
óculos. Fique atento aos pés a olhar a mijada, não tema. Você está perdido. A
cidade embaçada. O invisível da cidade passagem será inesquecível. Antes a
nascerá do seu corpo. Repita esta frase porta era o marco de separações amenas
lida no livro azul, repita alto: “eles para a sua consciência. O lá e o aqui
marchavam com a aparência resignada foram demolidos. O tremor do susto que
dos que são condenados a esperar faz tremer sua carne transforma-se
eternamente”3. Saiba que lá fora agora na tremura do corpo sem suporte,
ninguém é condenado a esperar sem chão, sem segurança. Atravessar a
eternamente. A cidade lateja como um porta neste momento é perigoso. Veja,
tumor que poderá expurgar o que a repare, após a passagem as quimeras
infecta a qualquer momento. Olhe pela perderam um pouco do peso. Você
última vez as constelações das estrelas morreu. Os rastros de quem você é, suas
que lhe dão segurança, o horizonte, a esperanças e desesperos a desdenhar a
saída principal da sua fortaleza. cidade serão pouco a pouco aniquilados.
Atenção. A passagem pelo umbral da Durante a caminhada o deserto da casa
porta será a primeira morte4. O entrar e mofada será invadido. Esqueça o que
sair do dia a dia acompanhado das ficou para trás. Olhe com atenção, o
certezas cotidianas fenecerá. Interior e deserto na rua é povoado, sujo, fedido,
exterior apodrecerão como os alimentos áspero e cheio de surpresas. Observe

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com os pés e descobrirá que os usos e tremura não o impede de caminhar. O
desusos da cidade impedem a medo está passando, ande. A cidade
monotonia da paisagem através de desfocada, embaçada, lhe espera. O
cheiros, texturas e formas nunca Cristo Redentor está de costas para o
concluídas. Do alto a Avenida Brasil, Rio de Janeiro da sua viagem. A
apesar da circulação acelerada dos paisagem embaçada roga outra
carros, seria um deserto untado por memória. O seu passado e o seu futuro
asfalto onde nada acontece. Veja sem a correm o risco de perderem o rumo. Os
arrogância dos óculos, e constatará que anjos estão próximos. Observe, fique
a perenidade das coisas é usurpada; um atento, as quimeras estão se
embate entre matérias é incessante; nele dissolvendo. Você está perdido.
a esperança não é bem-vinda, seria Pare. É este o lugar. Ignore o
inútil. O tempo é outro. Siga, mais cemitério ao seu lado direito, olhe para
adiante algo acontecerá. Ande sem frente em direção à zona oeste. Certa
curvar o corpo. Após a primeira morte o vida, desconhecida por você, estará ao
peso das quimeras tornou-se menor. seu lado na caminhada. Os mortos que o
Sinta a brisa, o orvalho, o frescor nos acompanharão não habitam esta velha
pés descalços. O desconforto o espera. morada da eternidade. São mortos de
Quem sou eu, não torne a perguntar, já tempos diversos, ainda não devorados
lhe falei que você saberá quando avistar pela avidez dos vermes; a avidez
o pássaro no chão e a pedra que sangra. indutora de silenciamento. Os que o
Siga em frente e não olhe para o que acompanharão fazem parte de um
passou. Ande rápido até o início da passado não concluído, e têm muito a
Avenida Brasil. Pare ao lado do dizer sobre esta cidade. Nada será
cemitério do Caju. Caminhe até este eterno no seu percurso. Uma vida
lugar em silêncio. Na primeira parada incômoda o espera. Sinta os pés no
voltarei a lhe guiar. Não direi meu asfalto, o cheiro desta avenida
nome. Serei apenas uma voz. Ande um enrugada, veja com a sola dos pés o que
pouco mais. Não tente lembrar o que os seus olhos nunca viram. O horizonte,
ficou atrás da sua porta. Esqueça a o nascer e o por do sol fracassarão caso
poltrona deformada, a origem das deseje a proteção do tempo contínuo da
quimeras, a esperança, as desesperanças velha poltrona. A memória da
testemunhadas pelo quarto sem poros. caminhada o surpreenderá. A partir do
Você está conseguindo, ótimo, a momento que você atravessou a

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fronteira da sua casa o passado, o história. Paredes, telhados, escombros,
porvir, ficaram pouco a pouco esquinas com outras cores e texturas
irreconhecíveis. Não tente recuperá-los. fazem-no estranhar a cidade que você
A vida que estará a seu lado será um pensava ser só sua. A memória agora
tormento. Os mortos não lhe darão pertence ao inferno quando fratura
sossego. O cemitério ficou para trás implacavelmente a continuidade do
com seus vermes, esqueça-o. Ande. Não tempo. Paredes cinzentas das
tema. A cidade enrugada o espera com construções, os vazios da Avenida, a
epifanias desconhecidas para o seu paisagem desfocada e irreconhecível
universo enclausurado. Este passeio é indagarão o que você quer, deseja,
inadiável. Abra os olhos, as narinas, propõe, sente no intestino, em todas as
retese o corpo. Não olhe para a estátua vísceras e você responderá, e
do Cristo Redentor. Ela não lhe novamente outras perguntas serão feitas
protegerá. Não seja tolo, a estátua do jogando o seu corpo trêmulo no abismo.
Cristo olha para o mar. Ela está de A memória, quando fratura a sequencia
costas para a zona norte. Os anjos que dos anos, interrompe a continuidade do
virão não olharão fixamente para lugar tempo, exige tônus ao corpo porque
algum. O inadiável insuflará a direção algo deve ser feito. Você está perdido.
das visadas destes entes alheios ao céu. Não olhe com os olhos. Esteja atento
Eles não possuem nome, pátria ou uma aos apelos das paredes descascadas, às
mensagem a ofertar. Desconhecem a frestas, à corrosão da paisagem. As
salvação para o paraíso. Os anjos não quimeras estão se dissipando como as
escutarão o seu pedido de socorro. São nuvens sobre a cidade. O Rio de Janeiro
perigosos. Você agora está abandonado. invisível a atravessar o seu corpo recusa
Não pergunte de onde venho e qual o ser a cópia do seu mundo inerte. Veja
meu nome. Sinta a leveza do seu corpo sem os olhos. O pássaro morto indicará
trêmulo sem o peso das quimeras. quem sou. A pedra que sangra também.
Esqueça a casa mofada, o relógio, os Ande.
óculos a impedir o invisível da cidade. Siga a caminhada pelo
Você conhecerá a memória do inferno. acostamento. Não preste a atenção ao
Na Avenida Brasil embaçada trânsito. Ainda é cedo, o asfalto ainda
fracassa o seu desejo de encontrar sinais está frio. Não olhe para o chão com os
da infância, reconhecer lugares, olhos, esqueça-os, a paisagem
reencontrar imagens comoventes da sua atravessará o seu corpo

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implacavelmente desenhando-o em Saudade, tristeza, esperança são tão
outras formas. Sinta o lixo nas unhas inúteis quanto as suas quimeras para
do pé. O vento desta manhã derrama estes habitantes que desejam a palavra.
sobre o solo os detritos das fábricas Escute com os olhos, esqueça as
abandonadas do outro lado da Avenida orelhas. Continue a olhar a cidade com
Brasil. Pare e olhe para a calçada. São a sola dos pés. A urina na calça está
prédios abandonados, quase escombros. secando. O medo agora dá lugar ao
O lixo destas ruínas cobre os seus dedos incômodo no corpo. Não se preocupe
grudados ao asfalto. Terra, teias de com o inchaço. Ele será deformado
aranha, lascas de madeira, baratas, pouco a pouco. A segunda morte está
papéis, saem das antigas fábricas. próxima. Não tente entender o porquê
Esfregue os pés no asfalto, veja através da minha repentina visita. Outras
deles as camadas de tempo desta fábricas abandonadas o espreitarão. O
Avenida. Aproveite, continue a esfregar anjo sem Deus aproxima-se. Nada será
a sola dos pés, o sol ainda não como antes. Quem sou eu lhe direi
despontou com violência. Debaixo da quando encontrar o pássaro morto e a
camada negra da superfície vários pedra que sangra. Ande.
tempos ainda respiram. Olhe para as Algo novo sucede nesta
fábricas fechadas, tente ouvir as vozes caminhada. Veja como sou generoso,
que ainda habitam o vazio destes além de aliviar o peso que ainda resta
lugares. Na casa mofada as quimeras das quimeras lhe ensino a caminhar e a
eram repletas de nostalgia, de esperança morrer. Esfregue com força estes pés
e desesperança. O seu corpo era uma pálidos no chão. Mais força, grude a
ideia. A carne flácida sentia saudades pele dos seus dedos ao chão imundo
de um Rio de Janeiro rumo ao desta cidade. Misture o sangue aos
desenvolvimento, da bonança, do dejetos. Você está perdido. Aprenda a
futuro. Entristecia quando constatava o explorar os lugares como os ratos.
fracasso das utopias da urbe moderna. Andorinhas e ratos exploram cidades de
Apesar da tristeza você esperava modos diversos. Ratos são atentos aos
resignadamente pela cidade dos seus restos, às migalhas, aos dejetos
sonhos. Olhe para a antiga fábrica de esquecidos da cidade. Esticam,
sabão. Agora veja esta construção encolhem, mudam o corpo para explorar
abandonada, ela abriga mortos que as superfícies. Hesitam quando avistam
desejam falar, você os escutará. o caminho mais fácil, sentem as

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rugosidades do chão como indícios de sucede no solo. Na superfície a cidade
outro percurso. São seres atentos às apresenta vida e morte no constante
matérias, ao frescor e ao apodrecimento transtorno da paisagem. Ratos e urubus
dos resíduos que os alimentam. são criadores de mapas urbanos ideais
Continue a andar. O improrrogável para os errantes das cidades atentos ao
desta caminhada exige o caminhar à improrrogável. Mapa instável, feito,
semelhança dos bichos do esgoto. Do refeito, desfeito por tempestades,
alto o Rio de Janeiro não lateja, o tempo epifanias de felicidades, genocídios,
iguala-se a um cadáver que permanece revoltas, ações do sol, dos vermes, dos
imóvel na sua identidade. Você está afetos dos homens e do inumano. Após
entendendo o que estou lhe dizendo? a caminhada o improrrogável será
Repito no seu ouvido divagações desvelado e você saberá o que deve
ouvidas de homens do exílio, de fazer. O seu corpo ainda não está
errantes que se perderam nas estradas e totalmente cansado. Atravesse a
ganharam vigor nesta errância. Ouvi Avenida Brasil. Entre na primeira
muitas histórias destes andarilhos construção vazia, ouça as vozes lá
habitantes das estradas. Ouvi também dentro. Caminhe, os mortos do passado
dos animais. Explorar as cidades como inacabado tem algo a lhe dizer. Caso
as andorinhas seria inútil para os seja impossível ouvi-las alguém lhe
errantes que aprendem com a superfície. ajudará. Será um auxílio inesquecível.
Do alto desconheceriam os fiapos, os Não esqueça o que lhe disse, os urubus
restos, os pedaços de histórias que os e os ratos são atentos aos
alimentam e os ensinam a conhecer acontecimentos da superfície. Abra as
lugares pelos desvios, buracos, declives, narinas, escute com os olhos. A fábrica
pelo errar. Do alto a cidade não fede. de sabão o espera.
Do alto a paisagem não interpela a Abra a porta da velha fábrica.
superfície de um corpo, ou o olhar de Algo toca a sua pele, não se assuste, é a
quem a observa. Aprenda também com ponta da asa de um anjo. Ele não
os urubus; deles a rota do vôo é aparecerá aos seus olhos. O rumor das
interrompida pelos cheiros. São asas é ouvido, mas o rosto lhe é vetado
devoradores de carniças que abrem conhecer. Ele não possui nome; será
caminhos, facilitam passagens efêmera a sua presença, mas o arrancará
produzidas por acontecimentos. Ave de si, o desvencilhará das certezas que
exímia operadora da atenção ao que ainda lhe restam. O anjo está ao seu

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lado, mas por pouco tempo. Não tema inutilidade daquele lugar povoado por
este lugar abandonado, pare e escute. O fragmentos de vozes a cintilar como
ente sem Deus dirá nos seus olhos o que fogo. Sinto que o anjo não lhe diz mais
os mortos desejam lhe dizer. Para a nada. As vozes o deixaram atônito. Veja
cidade vista do alto teríamos aqui o com atenção; no espaço vazio o passado
fracasso do outrora, a decadência, da cidade recusa ser interrompido.
escombros onde o vazio sentenciaria o Olhe para a chaminé da velha
abandono. Pise com força, olhe com os fábrica de sabão, olhe com os pés e
pés, escute com os olhos o que o anjo constate como se parece a uma catedral.
lhe faz escutar. São vozes diversas; Em tempos distantes, fábricas eram
umas murmuram queixas no corpo na sagradas. Os homens que cultuavam o
confecção do sabão; várias desejam mercado da época legavam às chaminés
dizer algo sobre os projetos deixados no o sentido dos campanários das igrejas.
meio do caminho; outras contam o dia a Lá dentro as vozes que você ouviu
dia tedioso da fábrica, o prazer das profanavam o templo fabril com suas
alegrias, das amizades, das descobertas histórias contrastantes. Das chaminés
inusitadas naquele lugar; quase todas saiam a fumaça da produção, assim
dizem que lutaram muito para continuar como sonhos, fracassos, tristezas,
vivendo; algumas falam do fracasso da alegrias das tramas das histórias. No
promessa do Rio de Janeiro rumo ao percurso do seu carro, antes das suas
progresso; muitas sentem saudades da mortes, ali residiriam exclusivamente
cidade de onde vieram; poucas ficam vidas operárias, um coletivo homogêneo
em silêncio. No vazio da velha fábrica subjugado, ou combativo, às leis do
escutam-se também gritos insurgentes, capital. Dos seus óculos era impossível
conversas sobre conspirações, perceber a passagem e a saída
exclamações de desejos, gemidos de ininterrupta do Rio de Janeiro composto
dores do trabalho. Uma diferencia-se de por lutas minúsculas incansáveis, por
todas, é vigorosa e afirma que o mortes invisíveis, por apelos
mercado não pode perder tempo, a improrrogáveis saindo e entrando pelas
cidade se moderniza, a produção de chaminés. O corpo curvado por suas
riqueza não possui um solo fixo, o quimeras ignorava a catedral da cidade
sonho globalizado precisa desbravar moderna ladeando os sonhos da
outros espaços. Esta voz vigorosa Avenida Brasil. Não imaginava o modo
enaltece o futuro tentando afirmar a de produzir sabão como uma religião. O

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anjo sem rosto ao fazer você ouvir as alto. Leia alto no centro da
vozes profanou o lugar sagrado das encruzilhada:
ovelhas operárias, assim como a aura da
urbe rumo ao futuro. A sua lente Existe um quadro de Klee intitulado
Angelus Novus. Nele está representado
desprezava apelos da cidade viva
um anjo, que parece estar a ponto de
composta por forças díspares; ignorava
afastar-se de algo em que crava o seu
dores e alegrias estranhas às suas olhar. Seus olhos estão arregalados, sua
quimeras. A nitidez da vida operária boca está aberta e suas asas estão
das suas análises foi maculada pelo anjo estiradas. O anjo da história tem de
parecer assim. Ele tem seu rosto
sem rosto. As vozes desdobraram a
voltado para o passado. Onde uma
imagem sem corpo das suas verdades. O
cadeia de eventos aparece diante de
alarido dos mortos com sonhos e nós, ele enxerga uma única catástrofe,
projetos ainda vivos desdobrou ao que sem cessar amontoa escombros
infinito os seus decretos elaborados na sobre escombros e os arremessa a seus
pés. Ele bem que gostaria de demorar-
casa sem poros. Você está perdido. É
se, de despertar os mortos e juntar os
improrrogável o que deve ser feito. O
destroços. Mas do paraíso sopra uma
anjo sumiu e não retornará jamais. Os tempestade que se emaranhou em suas
templos do mercado agora são outros. A asas e é tão forte que o anjo não pode
revelação da tarefa improrrogável está mais fechá-las. Essa tempestade o
impele irresistivelmente para o futuro,
próxima. Após alguns minutos de
para o qual dá as costas, enquanto o
caminhada a fuligem invisível da
amontoado de escombros diante dele
chaminé o levará ao encontro de um cresce até o céu. O que nós chamamos
objeto. Fique atento. Siga até o bairro de progresso é essa tempestade5.
de Bonsucesso. O sol queima o asfalto.
Ande. Repita este pedaço do que você
Pare quando encontrar a leu no centro da encruzilhada, diga com
caçamba de lixo. Agora pegue um livro força, repita como um grito, e faça
sem capa misturado aos detritos. Meta a tremer a Avenida Brasil: “Ele bem que
mão no lixo, procure o livro. Pegue- o, gostaria de demorar-se, de despertar os
entre à direita na primeira rua que faz mortos e juntar os destroços. Mas do
esquina com a Avenida Brasil. Pare na paraíso sopra uma tempestade que se
primeira encruzilhada. Mais tarde você emaranhou em suas asas e é tão forte
saberá o porquê deste lugar. Pegarei que o anjo não pode mais fechá-las”6.
mais vez a sua mão. Leia esta página Você conheceu mais um anjo. Agora

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retorne para a Avenida Brasil, outros personagens, de cenas não exclusivas ao
destroços o esperam. A tempestade corpo da moradora do Complexo da
estará no seu caminho, porém darei ao Maré. A ruga maior indica as noites de
seu corpo o poder dos ratos e dos insônia quando tiros invadem a favela
urubus com as asas fechadas. A voz do Timbau. Olhe na altura dos lábios,
vigorosa da fábrica de sabão tentará lhe esta outra ruga afirma a alegria dela de
desviar como uma devastadora estar junto às amigas no domingo rindo
ventania, o fará esquecer as suas mortes, e bebendo cervejas. A do lado direito
os seus órgãos e vísceras deformados, revela a tristeza da mãe, da avó, dos
mas estarei ao seu lado atento à leveza vizinhos, quando a fábrica de sabão
do seu corpo sem as sufocantes fechou. Chegue mais perto, veja com a
quimeras. Você está perdido. boca. Repare na enorme ruga perto do
Ande um pouco mais por queixo expondo a saudade dos homens
Bonsucesso. Ainda é cedo, o asfalto está e mulheres mortos pela polícia e pelo
frio. Pare em frente ao complexo da tráfico. A do canto dos olhos sinaliza os
Maré. Olhe agora com a boca as pessoas dias que os arregalou quando o espanto
7
no ponto de ônibus da Avenida Brasil . do dia a dia a aturdia com afetos de
Esqueça os seus olhos. São homens e várias intensidades. Observe com
mulheres que saíram das ruas estreitas atenção a da testa, nela é exibido o
da favela. Esperam o ônibus para o esforço para a emissão de palavras
trabalho. Aproxime-se deles. Olhe para carregadas de desespero, de revolta,
a mulher negra de amarelo. Chegue quando a impedem de usar a cidade.
perto. Eles não o perceberão porque Pare de olhar. Agora cheire. Fique
você agora é uma nuvem. As mortes próximo do mulato de bermuda
ocorridas o mantém vivo, mas sem estampada. Cheire com os olhos este
forma definitiva, vulnerável ao que homem. Repare o odor de sabão da
passa e o atravessa. Tenha confiança em fábrica abandonada. Sinta o odor deste
mim. Olhe para a mulher de amarelo. velho homem; esteja atento ao cheiro de
Veja as rugas na parte esquerda do saliva, sim, presta atenção às salivas das
rosto. Chegue mais perto e repare a palavras emitidas, dos gritos do pai dele
marca da pele a revelar os anos de quando a fábrica ainda funcionava.
trabalho da mãe, da avó, do padrasto na Salivas dos gritos de fúria contra a
fábrica de sabão. Sim, os sinais na pele culpa que o impingiam quando a
mostram passagens de diversos produção desejada não era alcançada8.

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A fábrica não é, e não era, uma catedral, tristeza vista através das lentes é
dizem as palavras molhadas. Cheire o violenta, porque finaliza, encerra
pescoço, constate o perfume de histórias destes homens e mulheres
refogado do feijão, o aroma do mingau tornando-os sem poros como o quarto
que ele faz para os netos após perder a habitado por você. Não se esqueça do
filha e o genro no tiroteio. Inspire o mapa dos errantes inspirado nos ratos e
perfume da colônia nos punhos; é o urubus para prosseguir a caminhada.
perfume usado na partida do sertão Mapas feitos, refeitos, desfeitos quando
nordestino para a capital quando a a cidade não é a cópia de uma ideia.
fábrica foi inaugurada. Cheire com os Nos corpos do ponto de ônibus o tempo
olhos as mãos deste homem, sinta o é descontínuo, não segue em frente; é
aroma do suor quando o medo ocorre. pleno de atenção aos perigos do agora,
Abra os olhos e respire o cheiro às urgências, apelos para que o passado
desconhecido no corpo dele que você possa ser outro. Do seu carro eram
não consegue nomear; aromas do vistos réplicas do modelo da cidade
passado do Rio de Janeiro, dos becos, feliz, ou infeliz. Dos óculos avistava-se
das valas, das flores, dos cadáveres, das a arrogância da sua solidão. Em breve o
praças e de lugares que ainda não meu nome, onde habito, a tarefa
existem nesta cidade. Você está improrrogável serão ditos. Saia deste
perdido. Antes das suas mortes todos lugar. O pássaro morto, a pedra que
eles eram percebidos como excluídos. sangra estão próximos.
Do seu carro, quando atravessava a
Avenida Brasil, seu coração batia forte A escrita
desejando incluir, empoderar, integrar
os personagens da, segundo você, triste Uma das armadilhas do
paisagem. Agora a nitidez do que era contemporâneo é conjugar o movimento
visto através dos óculos se esvai. Rugas com a espera. Diferentemente da peça
e cheiros do complexo da Maré afirmam de Beckett (1952/2005), na qual se
um emaranhado de palavras, de sons e espera Godot à sombra de uma árvore, à
silêncios nos corpos desconhecido por beira de uma estrada deserta, nossas
suas pesadas quimeras. Na pele dos esperas cotidianas são realizadas em
habitantes dos bairros a beira da meio ao movimento,
Avenida Brasil o Rio de Janeiro lateja. deambulatoriamente, no frenesi das
Neste latejar tudo poderá acontecer. A cidades que trafegam vidas

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desencantadas. No movimento não nos confundem com as distâncias
desorientamos (Roncayolo, 1981), no impossíveis, e os corpos com as formas
repouso não devaneamos (Bloch, disfuncionais; esvaziando, portanto, a
1959/2005). Temos uma circulação que potência inspiradora dos sonhos e
não faz o corpo despertar e um repouso experimental dos corpos.
que não conforta suficientemente para No domínio da quimera como
que o espírito vague em busca do objeto, nossas ideias, nossas aspirações,
extraordinário. Em estado de alerta, nossos encantamentos, não nos inspiram
nunca estamos verdadeiramente a perscrutar além do horizonte; são
despertos. Em estado narcótico, nossos abstrações desencantadas, estáticas, que
sonhos não nos fascinam. As nos informam sempre daquilo que
tecnologias de produção da vida média, jamais seremos. E nossos corpos, nossa
“ponto mais alto de uma vida baixa”9 vitalidade, - tal como as galinhas que
(Defoe, 1719/1994, p.9) aparam os não voam apesar das asas – servem
epígonos da experiência subjetiva. apenas para sustentar o próprio peso.
O que caracteriza, portanto, o Para o poeta, os corpos curvados e os
modo de vida contemporâneo que olhos foscos de homens que
exaure corpo e alma numa eterna espera experimentam a eternidade sem
resignada? De que são feitas as desesperar são fruto dos objetos-
quimeras que nos entorpecem? quimera que eles carregam nos ombros
A alegoria de Baudelaire e no olhar.
(1869/1937) lança mão dessa figura Mas há outra forma de
dúbia que designa ao mesmo tempo pensarmos a quimera. Não como objeto.
uma imaterialidade inalcançável (as Não como objetividade material (seres
utopias, os sonhos, as ilusões), e uma híbridos), nem como objetividade
materialidade impossível (quimera imaterial (ideais ou utopias). Existe a
como bestas híbridas; mesclas de peixe quimera como processo que é
com ave, ou ave com mamíferos, etc.). justamente o ponto de encontro entre
O poeta nos recorda que somos essa dimensão material e imaterial.
capturados por um horizonte - “local Trata-se do corpo das nuvens. Observar
onde a superfície arredondada do as formas mutantes das nuvens, ou
planeta se furta à curiosidade do olhar melhor, observar as nuvens não como
humano” (p.11) – que nos circunscreve formas, mas como formações, como
numa armadilha na qual os sonhos se matéria em movimento que performa

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animais, artefatos, continentes, não pode ser desfeita. O tempo de
presságios, etc., é ir ao encontro da kairós é o de um materialismo radical,
quimera como um processo e não como posto que ele afirma que a ideia está
uma objetividade impossível e distante subsumida pela experiência e não
que nos desvitaliza. organizando-a desde fora. Nenhuma
No corpo das nuvens não imagem, nenhum ideal, nenhum Deus
encontramos linha reta. Toda a silhueta está acima, aquém ou além daquilo que
é bailada. Toda carne é uma festa. Toda é vivido. Em kairós os deuses não estão
imagem é cinema. O corpo das nuvens, no Olimpo ou no céu, mas frequentam a
processo-quimera, desorienta os criação. Mesmo os deuses (ou ídolos ou
sentidos. Confunde leitura com ideias) do cientificismo, em sua liturgia
adivinhação, visto com vivido, de fórmulas e leis naturais, não são
imaginado com observado, lembrado exteriores à experiência, mas
com inventado. Nada é eterno nas implicados nela, sofrendo seus efeitos,
nuvens a não ser a sua efemeridade. sendo por ela produzidos. A gravidade,
Pode o corpo de concreto da cidade ser a gravitação, a termodinâmica ou a
tão movediço como o corpo das encenação dos quantas, tudo está em
nuvens? produção, em processo, tal como as
Encontrar na urbe a alegria nuvens. No materialismo mais radical a
mestiça das nuvens é improrrogável. matéria não representa os papéis
inventados pelas leis da natureza, mas
***** as leis da natureza são consequência dos
papéis que a matéria inventa para si, tal
Tempo da decisão, da como as nuvens inventam-se
irreversibilidade, das mudanças sem quimericamente: “... o campo do
retorno – a água que se deságua em materialismo, onde predicar o ser é
cachoeira, a flecha que se desprende do inová-lo” (Negri, 2000/2003, p.75).
arco, o leite que se derrama - kairós O cientificismo que começou a
(Negri, 2000/2003) é também o tempo ser gestado na modernidade e que passa
da ética. Na qualidade do tempo kairós a ser o principal critério de verdade da
não há espaço para a neutralidade, para contemporaneidade não faz jus ao
esperar pelo destino. Em kairós nada materialismo enquanto tal, posto que
fazer é também agir, pois a aparta da seta devastadora do tempo as
transformação que ele põe em marcha ditas “leis naturais”, alçando-as a

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transcendentais eternos e estáticos, ética, isso significa afastar-se da
indevassáveis pelos acontecimentos do premissa a partir da qual a ação correta
mundo. Esse materialismo canônico é é aquela que interpreta adequadamente
apenas a versão domesticada da as circunstâncias, que é capaz de
consequência radical do materialismo nomeá-las, de sabê-las inequivocamente
filosófico que encontramos em Epicuro para bem conduzir-se ao largo do erro e
e Lucrécio: o inexorável fato de que o da maldade. O materialismo tal qual o
mundo constrói a si próprio a partir de filosófico, só poderá pensar uma ética
uma qualidade clinâmica que faz surgir que seja também performativa,
o movimento desviante “em altura inventora de mundos, num certo
incerta e em incerto lugar” (Lucrécio, sentido, mais gestual do que intelectual.
1988, p.60). A percepção das potências Essa ética não espera o deslindar dos
selvagens de um mundo que cria acontecimentos para conhecê-los, mas,
incessantemente, em uma lúdica ao sabê-los irreversíveis ao modo de
eternidade que não começa e não kairós, toma parte na sua produção. É
termina num ponto único e que não uma ética-feiticeira porque conjura, faz
cessa de inventar e de destruir, traz transe, bota o corpo na roda, chama pela
consequências radicalmente libertárias natureza ao invés de descrevê-la. Num
para as subjetividades. O materialismo certo sentido, o materialismo radical é
cientificista que sobeja nas nossas também uma arte dos encantos, dos
práticas, mesmo em ciência humanas, quebrantos, uma certeza de que o
não deixa de ser uma resposta mundo desconhece nossa justiça e que a
conservadora em relação a esse ela não se submeterá. É uma forma de
radicalidade do primeiro materialismo se relacionar com o misterioso sem
que surgiu com Demócrito e seu comprá-lo ao modo da idolatria (outra
conceito de átomo, mas que foi forma de vitória da transcendência),
aperfeiçoado em Epicuro com a noção mas que com o extraordinário, com o
de desvio, batizada por Lucrécio de misterioso, com o virtual, estabelece um
“clinâmen”. flerte, um jogo, uma sedução.
Recuperar a contundência do Agambem (2005/2007),
materialismo no campo das práticas retomando Benjamin, diz que o que
científicas passa, portanto, pela busca difere os adultos das crianças não é a
de uma prática que afirma o caráter força, mas que os primeiros são
incerto do mundo. Do ponto de vista da “incapazes de magia” (p.23). E a razão

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dessa incapacidade seria a sua crença na *****
função representativa da língua. Não se
trata de uma crença nos nomes em si, Por que escrevemos sobre a
mas da aposta que os adultos fazem cidade? Escrevem maldizendo-a os
numa eventual ordem dos sentidos que desertores que rumam às suas casas no
estaria encoberta pela confusão campo ou às suas comunidades
babélica. Ser adulto é achar-se capaz de autossustentáveis. Escrevem clamando
interpretar corretamente o mundo, ou, por ela os ocupados nas escolas, nos
ao menos, considerar que a felicidade é prédios abandonados, nas praças, nas
fruto da correta nomeação das coisas universidades. Escrevem preocupados
que existem no mundo. A sagacidade os economistas com suas sacras
materialista das crianças, para probabilidades. E escrevem amiúde os
Agambem (2007/2005), é que a acadêmicos, os mestrandos, os
felicidade não é fruto da interpretação, doutorandos, os pesquisadores. Estes
mas da invenção de uma língua secreta, escrevem(emos) muito. Talvez até
a qual “só fala por gestos” (p.25); escrevamos mais do que andamos sobre
felicidade não conquistada, mas a cidade.
conclamada, espreitada, conjurada, por A cidade é um enigma a ser
aqueles que se entregam inteiramente à decifrado? Uma musa inspiradora? Um
materialidade do mundo, sem ancorar problema a ser gerenciado? Uma forma
ponto de retorno nas certezas a ser contemplada? Uma surpresa a ser
transcendentes. Viver no mundo como desvelada? O que seria uma escrita
quem enfrenta o mar aberto a nado. materialista da cidade?
Passar do ponto em que não se é capaz A escrita no materialismo segue
de retornar à terra firme, criar corpo o mesmo princípio da matéria, ou seja, é
para sustentar a travessia. Um uma ação poética de afinidades e de
materialismo feiticeiro, portanto, que desvios, em que os afins se aproximam,
inventa o mundo e não apenas o mas que ao se aproximarem se
descreve, cria corpo e não apenas o entrechocam e se desviam, se repelem e
desenvolve, é o que nos solicita o tempo se compõem ao modo dos turbilhões. O
kairós. É com essa arte de escrita que clinâmen é o movimento imprevisível e
podemos escrever as cidades, ou seja, indeterminado que rompe a chuva
escrever a cidade com a sagacidade de canônica dos átomos em linha reta na
poupá-la da nossa hermenêutica. direção do infinito universo. Na chuva

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de retidão canônica não há forma, não iguais, a grande maioria é muito
semelhante; mas o significado difere
há matéria, apenas repetição e
devido à posição. De igual modo, se se
homogeneidade. Mas o átomo
trocam nos corpos as combinações, os
clinâmico, que se desvia, interrompe a movimentos, a ordem, as posições, as
placidez do movimento paralelo formas, também se muda o próprio
instaurando uma nuvem de átomos em corpo. (Lucrécio, 1988, p.59).

que os choques e entrechoques


produzem matéria a partir das A escrita não é, pois,

afinidades, das conveniências, dos interpretação de um mundo já dado,

entrelaçamentos elípticos, dos encontros mas construção de mundos e das

sensíveis entre átomos e entre o produto cidades que habitamos através da

das suas conjugações. produção de sentido. O escrever do

Qualquer finalidade, qualquer poeta atua no campo do sensível que

sentido, qualquer função é apenas não é outro senão o da própria criação

posterior ao acontecimento contingente, da matéria. No materialismo epicurista a

arbitrário e autoengendrado do matéria só existe porque os átomos em

clinâmen. “Não há nada no nosso corpo suas diferentes formas são sensíveis aos

que tenha aparecido para que possamos encontros que realizam entre si. É, pois,

usá-lo, mas é o ter nascido que traz de encontros e de diferenças que o

consigo a utilização” (Lucrécio, 1988, materialismo nos fala.

p. 89). Assim é também a natureza da Ao manejar signos linguísticos,

escrita no materialismo. Os sentidos o poeta constrói novos possíveis para o

construídos pela língua são, via de mundo, inventando corpos semânticos a

regra, canônicos e previsíveis. É pela novas sensibilidades. Por isso,

ação poética do escritor que engendra poderíamos dizer que Baudelaire não

novas dizibilidades, novo sentidos, interpretou a “atitude de modernidade”

novos agregados semânticos, que a (Foucault, 1984/2000) da Paris do final

língua se torna viva. do século XIX, mas inventou uma


cidade que estava por emergir ao
... é importante nestes meus versos a produzir um novo sentido para a
ligação de cada parte e a ordem por que experiência urbana. É dessa imbricação
vem colocada. Efetivamente, caracteres
- exemplificada pelas análises
idênticos designam o mar, as terras, o
benjaminianas e foucaultianas do poeta
céu, os rios e o sol e ainda as searas, as
plantas, e os animais; se nem todos são parisense - entre experiência, biografia,

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poesia e ontologia, que o materialismo daninha da cidade numa funcionalidade
filosófico nos fala. Viver, subjetivar, moderna (a Cidade Jardim de Le
escrever e inventar constituem um Corbusier). Nem a placidez orbital dos
processo único e que só pode ser astros nem as delícias do éden pequeno-
dissociado arbitrariamente, tal como burguês, o materialismo conjura por
destacamos as formas performatizadas uma cidade em que a construção e a
pelas nuvens em carneiros, camelos, ruína, o novo e o velho, o cânone e o
mapas ou mandalas. clinâmen, sejam coetâneos. Não é
Escrevemos a cidade no porque os deuses não são responsáveis
materialismo porque nos constituímos pelo mundo que o materialismo é uma
mutuamente neste processo: nós e o filosofia iconoclasta, mas porque ele
mundo. afirma o caráter aberto e em construção
Tal como a matéria, as cidades dos valores, não sendo possível
se repetem e se desviam em altura e estabelecer linguagem comum com os
hora incerta. Nenhuma cidade é deuses para comprá-los ao modo da
planejada, estrito senso, posto que idolatria e nem linguagem comum com
planejados são apenas os planos aéreos a ciência para convertê-los a uma razão
da urbe. No nível do chão viceja ao universal tal como na utopia
extraordinário e o imprevisível, cuja cientificista. O que é radicalmente
existência clinâmica pode associar-se ou profano no materialismo não é que não
repelir-se com a nossa experimentação existam deuses, mas que, se existirem,
urbana e com as nossas produções de eles também não têm respostas; não é
sentidos sobre a cidade. que não existam leis naturais, mas que
Uma prática materialista de as leis naturais desconhecem as
viver na cidade, para fazer jus ao hierarquias e se reinventam durante a
primeiro materialismo, precisa performance.
conservar esse caráter profano dos anjos As práticas idólatras foram
urbanos, os quais não se recolhem às originalmente o modo de comunicação
distâncias olímpicas, mas subvertem a agrário do homem com a natureza.
liturgia tanto das práticas religiosas que Idólatras foram Caim e Abel que
buscam religar a cidade a sua forma compravam a bonança divina com o
divinamente utópica (a Cidade do Sol fruto do seu esforço. O idólatra paga
de Campanella), como da racionalidade tributos, efetivamente, porque toda a
laica que busca redimir a mestiçagem criação agrícola ou pecuária é fruto do

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excedente de energia divino que faz o improrrogável interpelar a lógica
trabalho do homem prosperar. O indexável de relação com os deuses que
homem semeia ou alimenta o rebanho, imperava na Roma de I a.C . Era
mas na lógica idólatra é Deus quem impensável continuar supondo que a
multiplica, sendo ele o artesão da vontade divina poderia ser comprada
vantagem energética que recompensa o com oferendas.
trabalho com excedentes. A rigor toda
a oferenda idólatra é um pagamento de Na maior parte das vezes foi a religião
que produziu feitos criminosos e
tributos, o qual apenas devolve uma
ímpios. Foi assim que em Áulida os
parte do que já era do Criador. A
melhores chefes gregos, escol de
idolatria agrária é indexável, isto é, cabe varões, macularam vergonhosamente
numa calculatória de vantagens e com o sangue de Ifianassa o altar da
desvantagens, daí a fonte da discórdia virginal Trívia (...). Foi levantada pelas
mãos dos homens e arrastada para os
dos filhos de Adão: que o cordeiro de
altares, toda a tremer, não para que
Abel superava em valor os cereais de
pudesse, cumpridos os ritos sagrados,
Caim. ser acompanhada por claro himeneu,
Sem constituir-se mas para, criminosamente virgem, no
necessariamente como uma filosofia tempo em que deverias casar-se,
sucumbir, triste vítima imolada pelo
ateia, posto que os deuses, para Epicuro,
pai, a fim de garantir à frota uma
existiam, porém numa região
largada feliz e fausta. (...) E é por tudo
incomunicável com o universo dos isto que devemos não só tratar dos
homens, o materialismo filosófico, de fenômenos celestes, saber por que
inspiração libertária para os parâmetros motivo se dão os movimentos do Sol e
da Lua, e que força produz os
da época, é fruto de um distanciamento
fenômenos da Terra... (Lucrécio, 1988.
crítico em relação ao mundo natural que
p.32-33).
é um gesto tipicamente urbano. O
poema de Lucrécio foi forjado no calor
O que se nega no materialismo
da indignação com os hábitos etruscos e
filosófico não é, pois, que haja a
agrários de sacrifícios virginais em
dimensão do desconhecido ou do
contraposição aos valores urbanos e
misterioso. Ao contrário, estando o
republicanos que vinham sendo
universo em uma deriva infinita, a partir
perdidos na Roma do último século
dos desvios clinâmicos e dos
antes de Cristo com a ascensão do
entrelaçamentos sensíveis, o misterioso
Triunvirato. Para Lucrécio era

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e o que escapa à razão está em toda a Adquire-se tranquilidade sobre todos os
problemas resolvidos com o método da
parte, posto que não há forma ou função
multiplicidade de acordo com os
que preceda o acontecimento. A
fenômenos quando se cumpre com a
natureza é sempre improvisadora. O exigência de deixar subsistir as
que se nega é que exista uma relação explicações igualmente convincentes.
indexada, ou seja, decomponível em um Pelo contrário, quando se admite uma e
se exclui a outra, que se harmoniza
código comum, entre os acontecimentos
igualmente com o fenômeno, é
do mundo e um plano metafísico ou
evidente que se abandona a
sobrenatural. O que Lucrécio luta para investigação naturalista para se cair no
desacreditar é que se possa equivaler a mito. (p. 15)
morte de uma virgem à segurança
climática de uma viagem naval. No Diferentemente da razão
materialismo filosófico epicurista, os cientificista inspirada em Ockham e sua
deuses não precisam dos homens e na navalha econômica - que propõe que
vida dos homens não interferem. Os explicação mais simples deve prosperar
deuses no materialismo são os nomes sobre as demais igualmente coerentes -,
das coisas: “se alguém resolve chamar se duas explicações se harmonizam com
de Netuno ao mar, e às searas, Ceres, e o fenômeno, não se há de descartar
preferir abusar do nome de Baco a nenhuma. Na natureza clinâmica de
empregar o vocábulo vinho, Epicuro a razão econômica não é
condedamos-lhe (...) contanto que, na universal. A natureza não conhece
realidade, não manche o próprio espírito apenas a entropia da conservação do
com torpes superstições” (p. 55). movimento, mas, energeticamente
No materialismo epicurista o perdulária, está sempre inventando,
conhecimento das orbes celestes precisa ensaiando, tateando mundos.
ser conhecido não para fundar a Uma escrita materialista da
hegemonia de uma racionalidade cidade, a rigor, é um jogo, uma dança,
explicativa a qual ocuparia o lugar dos um repente, um ponto que incita,
deuses, mas para esconjurar o sequestro provoca, seduz, invoca um porvir para a
da verdade pela razão universal. Do urbe. E para inventar essa linguagem
pouco que nos chegou diretamente de secreta de criança precisamos de uma
Epicuro (1988) consta: laicidade que seja capaz de profanar ao
mesmo tempo a razão cientificista e o
fervor religioso; e de um materialismo

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que ao invés de marcial e econômico Notas
seja venéreo e feiticeiro.
1
Os anjos frequentam a cidade ao Texto retirado do prosa poética de
modo das nuvens. Baudelaire (1995, p. 283) chamado
Cada um com sua quimera.
2
Redemoinho Texto retirado do prosa poética de
Baudelaire (1995, p. 283) chamado
O sol queima o asfalto da Cada um com sua quimera.
3
Avenida Brasil. Volte para a casa. Não Texto retirado do prosa poética de
se esqueça das lutas entranhadas nos Baudelaire (1995, p. 283) chamado
cheiros e nas rugas da cidade. Os anjos Cada um com sua quimera.
4
conhecidos na caminhada não A imagem do atravessar a porta
retornarão jamais. Sem as quimeras fundamenta-se na diferenciação
você ganha a leveza perturbadora das realizada por Walter Benjamin entre a
nuvens. Pare, olhe para o chão categoria de fronteira e limiar. Segundo
escaldante do Rio de Janeiro. Olhe com Jeanne Marie Gagnebin (2010, p. 13-
os olhos, agora outros. Eu matei este 14),
pássaro ontem com uma pedra jogada A fronteira contém e mantém algo,
evitando seu transbordar, isto é, define
hoje. Meu nome é Exu10. Sou o deus
seus limites não só como os contornos
mensageiro que habita ruas e
de um território, mas também como as
encruzilhadas. Na minha fúria esta limitações do seu domínio. [...] o limiar
pedra sobre o asfalto atirada no pássaro não faz só separar dois territórios
hoje sangrou ontem. A cidade é matéria (como a fronteira), mas permite a
transição, de duração variável, entre
à semelhança de uma nuvem. Outros
esses dois territórios. [...] o limiar é
anjos sem Deus poderão voltar. Não
uma zona (com ou sem as conotações
espere por eles. Você conheceu o meu da palavra em português do Brasil), às
tempo, então professor, escreva. Abra a vezes não estritamente definida – como
janela. A escrita sobre a cidade é deve ser definida a fronteira –; ele
lembra fluxos e contrafluxos, viagens e
improrrogável.
desejos.
5
Texto retirado da tese IX sobre o
Conceito de História de Walter
Benjamin (2005, p. 87). No ensaio O
Hino, a Brisa e a Tempestade: dos

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10
Anjos em Walter Benjamin, Jeanne Pierre Verger (1987, p. 11) no
Marie Gagnebin (1997, p.123-130) estudo das lendas da mitologia Ioruba
afirma que, afirma que “Exu pode ter matado um
[...] se os anjos povoam, portanto, o pássaro ontem, com uma pedra que
pensamento de Benjamin, esse
jogou hoje. [...] Se zanga-se, ele sapatea
povoamento subverte, como tantas
uma pedra, na floresta, e esta pedra põe-
vezes em Benjamin, a ideia mesma de
uma posição estável, de uma pátria
se a sangrar”. Reginaldo Prandi (2001,
definitivamente conquistada, de um p. 63) na análise do sincretismo afro-
enraizamento substancial, seja ele de brasileiro que associa Exu ao diabo da
ordem teórica ou existencial. [...] a
religiosidade cristã alerta para o
intervenção do anjo não se manifesta
processo de dessincretização da
mais na sua eficácia soberana, mas,
sim, neste apelo, ao mesmo tempo atualidade:
imperceptível e lancinante, a Nesse processo de dessincretização,

interromper o escoamento moroso da que é um dos aspectos do processo de

infelicidade cotidiana e a instaurar o africanização por que passa certo

perigoso transtorno da felicidade. segmento do candomblé , Exu tem


6 alguma chance de voltar a ser
Idem
7 simplesmente o orixá mensageiro que
Sobre a história da Avenida Brasil e as
detém o poder da transformação e do
relações com a industrialização no Rio movimento, que vive na estrada,
de Janeiro sugerimos as análises de freqüenta as encruzilhadas e guarda a
Mauricio de Abreu (2006, p.93-114). porta das casas, orixá controvertido e
8 não domesticável, porém nem santo
Segundo Walter Benjamin (2013, p.
nem demônio.
21-23),
[...] o capitalismo é uma religião
puramente cultual, talvez até a mais
Referências
extremada que já existiu. [...] esse culto
é culpabilizador. O capitalismo
presumivelmente é o primeiro caso de Abreu, M. (2006). A. Evolução Urbana
culto não expiatório, mas do Rio de janeiro. Rio de
culpabilizador. Nesse aspecto, tal Janeiro: Instituto Municipal de
sistema religioso é decorrente de um
Urbanismo Pereira Passos.
movimento monstruoso [...] O
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capitalismo é uma religião puramente
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Paulo: Boitempo.
9
Tradução dos autores.

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Baptista, L.; Silva, R.
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Sapienza, Itália. É professor Titular do
Instituto de Psicologia e do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal Fluminense.
Pesquisador do CNPQ.
E-mail: baptista509@gmail.com

Rodrigo Lages e Silva: Doutor em


Psicologia: estudos da subjetividade,
pela Universidade Federal Fluminense
(UFF) e mestre em Psicologia Social e
Institucional pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS),
atualmente é professor adjunto no
Departamento de Estudos Básicos
(DEBAS) da Faculdade de Educação -
UFRGS.
E-mail: lagesesilva@gmail.com

Enviado em: 07/10/16 – Aceito em: 30/11/16

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