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Pedagogia,

Controle Simbólico e Identidade. Teoria,


Pesquisa, Crítica - Basil Bernstein

Capítulo 2 - O Dispositivo Pedagógico •

Introdução

A minha pergunta é: existem princípios gerais subjacentes à transformação do


conhecimento em comunicação pedagógica, quer o conhecimento seja intelectual,
prático, expressivo, conhecimento oficial ou conhecimento local?
A questão pode, à primeira vista parecer desnecessária. Temos estudos sobre
sistemas de ensino em muitas sociedades diferentes sob diferentes condições
econômicas, históricas e ideológicas. Temos uma crescente compreensão das inter-
relações complexas dos sistemas educacionais com outros sistemas, econômicos e
culturais, nacionais e internacionais. Temos uma infinidade de estudos que mostram a
função da educação na reprodução das desigualdades de classe, gênero, raça, região,
religião. As salas de aula têm sido objeto de inúmeras descrições, incluindo o seu papel
na legitimação de algumas identidades e na deslegitimação de outras.
Sob todas essas perspectivas a comunicação pedagógica é muitas vezes vista
como um veículo, uma retransmissora de mensagens ideológicas e de relações de poder
externas, ou, ao contrário, como um veículo aparentemente neutro ou retransmissor de
habilidades de vários tipos.
Nos termos de minhas perguntas, se existem princípios gerais subjacentes à
pedagogização do conhecimento e sobre aquilo que torna a comunicação pedagógica
possível, a maioria dos estudos têm estudado apenas o que é veiculado ou retransmitido,
eles não estudam a constituição da própria transmissão (relay). Temos estudos das
mensagens pedagógicas e de sua base institucional e ideológica, mas não temos muitos
estudos sobre a gramática social sem a qual nenhuma mensagem é possível. Portanto,
eu gostaria de explorar as possibilidades de elaboração da natureza sociológica do
conhecimento pedagógico, oficial ou local.
Inicialmente quero deixar clara a distinção entre o transmissor (relay) e o
transmitido (relayed). Para fazer isso eu vou primeiro comparar o dispositivo linguístico
e o que chamarei de dispositivo pedagógico. Em segundo lugar, vou descrever as regras
do dispositivo pedagógico. Em terceiro lugar, vou oferecer uma elucidação de cada uma
das três regras e de suas inter-relações e implicações.

O dispositivo linguístico e o dispositivo pedagógico




Esta tradução de capítulos de Pedagogy, Symbolic Control and Identity. Theory, Research, Critique. (Revised
Edition. Rowman & Littlefield Publishers. London, 2000), foi feita com apoio do programa CAPES-PIBID e
destina-se apenas a usos não-comerciais, em grupos de estudo e aulas. (Ronai Rocha)

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Se olhamos para o dispositivo linguístico, vemos que se trata de um sistema de
regras formais que regem as várias combinações que fazemos quando falamos ou
escrevemos. O dispositivo funciona em uma série de diferentes níveis. Há controvérsias
sobre as origens desse dispositivo. Alguns argumentam, a partir de uma perspectiva
chomskiana, que o dispositivo tem a sua base em duas condições: uma sensibilidade
inata para a aquisição das regras do dispositivo e uma condição interativa. Sem esta
última a aquisição não é possível.
Observe que a partir dessa controversa perspectiva de Chomsky, as regras deste
dispositivo, a aquisição deste dispositivo e as suas possibilidades criativas são
independentes da cultura. Em outras palavras, ele existe no nível do social, mas não ao
nível do cultural. De um ponto de vista evolutivo isto é assim porque não podíamos
deixar um dispositivo tão crítico como este à imprecisão e vicissitudes da cultura.
Podemos dizer a partir deste ponto de vista que a aquisição deste dispositivo, que é
fundamental, é ideologicamente livre, mas não as suas regras, como veremos.
O modelo apresentado na Figura 2.1 mostra, muito simplesmente, que existe um
significado potencial fora do dispositivo linguístico e este significado potencial ativa o
dispositivo, e o resultado é a comunicação. Além disso, a comunicação gera uma
realimentação sobre o significado potencial, quer de uma forma limitada ou melhorada.
As regras que nós indicamos como proporcionadoras de um entendimento na
comunicação em seu contexto são necessariamente regras contextuais. Por exemplo, as
regras distintas de comunicação que teríamos se estivéssemos tomando uma bebida ou
se estivéssemos falando com um professor, variariam de acordo com o contexto. Assim,
são necessárias regras contextuais para compreender a comunicação local que o
dispositivo torna possível.
As regras que constituem o dispositivo são relativamente estáveis, mas elas não
são inteiramente estáveis ao longo do tempo. Não se trata aqui de mudanças
fundamentais, mas de uma série de pequenas alterações. As regras do dispositivo são
relativamente estáveis, e as regras que regulam a comunicação feita a partir dele são
contextualmente reguladas.


Figura 2.1.

Isto levanta uma questão muito interessante: o dispositivo de linguagem é em si
mesmo neutro, o sistema de regras que constituem este dispositivo é neutro em relação
ao significado potencial e, portanto, neutro em relação ao que vem de fora? A questão é a
seguinte: as regras e os sistemas de classificação incorporados no dispositivo de alguma

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forma regulam o que vem de fora? E se esse é o caso, então o veículo da comunicação, de
alguma forma fundamental, está regulando o que é veiculado.
Halliday (1978, 1993) argumenta fortemente, e eu concordo, que as regras do
dispositivo linguístico não são ideologicamente livres, mas que elas refletem ênfases
sobre o potencial significado criado por grupos dominantes. Assim, a partir deste ponto
de vista, a relativa estabilidade das regras pode muito bem ter a sua origem nos
interesses dos grupos dominantes. A linguagem e a fala devem ser considerados como
um sistema de sistemas dialeticamente interligados.
Eu não vou entrar nos meandros deste problema porque ele é muito complexo e
há pontos de vista contraditórios sobre o assunto. No entanto, isso levanta a questão de
que o dispositivo não é neutro, e que o dispositivo propriamente dito pode ter alguma
função reguladora intrínseca.
No nível mais mundano isso é claro, porque o dispositivo inclui em seu sistema
algumas classificações muito fundamentais, em particular as classificações de gênero.
Por exemplo, a oposição à discriminação de gênero é dificultada pelo sistema de
classificação da própria linguagem. Pode ser muito difícil suspender ou substituir as
distribuições de classificação feitas na língua. Não é fácil substituir a palavra “domínio”
(mastery) por uma outra menos enviesada em gênero.
Fizemos uma distinção entre “o veiculador” (the carrier) (ou transmissor –relay)
e “o veiculado” (o que é retransmitido). “O veiculador” tem regras relativamente
estáveis e “o veiculado” tem regras contextuais. Nenhum dos conjuntos de regras é
ideologicamente livre.
De uma maneira similar, eu quero apresentar o dispositivo pedagógico. Esse
dispositivo tem normas internas que regulam a comunicação pedagógica que o
dispositivo torna possível. Tal comunicação pedagógica atua seletivamente sobre o
significado potencial. Significado potencial significa simplesmente o discurso potencial
que está disponível para ser pedagogizado. O dispositivo pedagógico regula
fundamentalmente a comunicação que ele torna possível, e, desta forma, atua
seletivamente sobre o significado potencial. O dispositivo regula continuamente o
universo ideal de significados pedagógicos potenciais, de maneira a restringir ou
aumentar as suas realizações.
Embora existam diferenças, o dispositivo pedagógico assemelha-se ao
dispositivo da linguagem em vários modos. Sua estrutura formal (veja a Figura 2.1) é
semelhante. O aparelho pedagógico torna possível um grande âmbito potencial de
resultados de comunicação semelhantes ao dispositivo de linguagem. As formas de
realização do dispositivo pedagógico, como as formas de realização do dispositivo
linguístico, estão sujeitas a regras que variam de acordo com o contexto.
As diversas formas de realização do dispositivo pedagógico podem restringir ou
aumentar o discurso potencial disponível para ser pedagogizado. Vou sustentar que as
regras intrínsecas do dispositivo pedagógico, da mesma forma que as regras intrínsecas
do dispositivo linguístico são relativamente estáveis. Estas regras, como as regras do
dispositivo linguístico, não são ideologicamente livres. Com efeito, as regras do dispositivo
pedagógico estão essencialmente implicadas na distribuição na restrições das várias
formas de consciência.
Tanto o dispositivo linguístico e o dispositivo pedagógico tornam-se locais de
apropriação, conflito e controle. Ao mesmo tempo, existe uma diferença fundamental
entre os dois dispositivos. No caso do dispositivo pedagógico, mas não no caso do
dispositivo linguístico, é possível ter um resultado, uma forma de comunicação que pode
subverter as regras fundamentais do dispositivo.

As regras do dispositivo pedagógico


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Para começar vou sugerir que o dispositivo pedagógico proporciona a gramática
intrínseca do discurso pedagógico (ou seja, a gramática em um sentido metafórico). Vou
então considerar a gramática intrínseca do discurso pedagógico que o dispositivo
fornece, essencialmente através de três regras inter-relacionadas: regras de distribuição,
regras de recontextualização e regras de avaliação.
Estas regras estão em uma relação particular entre elas mesmas. Ou seja, essas
regras são hierarquicamente relacionadas, no sentido de que as regras de
recontextualização são derivadas das regras de distribuição, e as regras de avaliação são
derivadas das regras de recontextualização. Há uma inter-relação necessária entre essas
regras e há também relações de poder entre elas. Direi muito brevemente o que são
essas três regras.
Em primeiro lugar, a função das regras de distribuição é a de regular as relações
entre poder, grupos sociais, formas de consciência e prática. As regras de distribuição
especializam as formas de conhecimento, as formas de consciência e as formas de
prática para grupos sociais. As regras de distribuição distribuem formas de consciência
através da distribuição de diferentes formas de conhecimento.
Em segundo lugar, as regras de recontextualização regulam a formação do
discurso pedagógico específico.
Em terceiro lugar, as regras de avaliação constituem qualquer prática
pedagógica. Qualquer prática pedagógica específica está lá para um propósito: para
transmitir critérios. A prática pedagógica é, de fato, o nível que produz uma régua para a
consciência. Vou examinar estas três regras passo a passo.

Regras de distribuição

As regras de distribuição distinguem entre duas classes diferentes de


conhecimento que vou argumentar que estão necessariamente disponíveis em todas as
sociedades. Eu acredito que essas duas classes de conhecimento são intrínsecas à
própria linguagem; é a própria natureza da linguagem que faz com que essas duas
classes de conhecimento sejam possíveis. Vou chama-las de classe pensável e classe
impensável.
Assim, em todas as sociedades existem pelo menos duas classes básicas de
conhecimento; uma classe de conhecimento que é esotérico e outra que é mundano.
Temos o conhecimento do outro e temos a alteridade do conhecimento. Temos o
conhecimento de “isto é assim” (o conhecimento do possível), diante da possibilidade do
impossível.
A linha de separação entre essas duas classes de conhecimento é relativa a um
dado período de tempo. O que é esotérico em um período pode tornar-se mundano em
outro. Em outras palavras, o conteúdo dessas classes varia historicamente e
culturalmente.
Uma breve comparação entre pequenas sociedades não-alfabetizadas, com
divisões simples de trabalho e as sociedades letradas que têm divisões complexas de
trabalho ilustrará este ponto. Se olhamos para estas sociedades de pequena escala com
divisões simples de trabalho, há uma divisão entre o pensável e o impensável. O
impensável nas sociedades de pequena escala não-alfabetizadas é gerido e controlado
por seus sistemas, organizações, agentes, práticas religiosas e pelas cosmologias a que
elas dão origem.
Na sociedade moderna de hoje (esta é realmente uma simplificação muito brutal
que vou desenvolver mais tarde), o controle do impensável reside essencialmente, mas
não totalmente, nos níveis superiores do sistema educacional. Isso não significa que o
controle do impensável não pode ocorrer fora do sistema educacional, mas sim que a
maior parte do controle e gerenciamento do impensável é realizado pelos órgãos
superiores de educação. Por outro lado, o pensável nas sociedades complexas modernas

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é gerido pelos sistemas de ensino primário e secundário. Esta é, contudo, uma
simplificação muito grosseira e muito crua.
Quero sugerir que há uma profunda semelhança entre as sociedades simples e as
sociedades complexas. Isto não implica as mesmas comparações paternalistas que
algumas pessoas sugerem ao dizer que as sociedades “simples” têm sistemas de
conhecimento complexos e procedimentos de navegação, apesar do fato de serem
simples e não-alfabetizados. Mas quero sugerir que há uma semelhança fundamental na
estruturação do significado tanto nas sociedades “simples” como nas sociedades muito
complexas.
Esta semelhança refere-se a uma ordem particular de significados. No entanto,
esta ordem particular de significados não deve ser considerada apenas como abstrata. É
certo que ela é abstrata, mas é inadequado aqui falar em abstrato como oposto a
concreto. Todos os significados são abstratos; não é o fato da abstração, mas a forma
que a abstração assume.
Vou sugerir que a forma que abstração assume e que une as sociedades simples
e complexas, é uma forma de abstração que postula e relaciona dois mundos. Ela
relaciona o mundo material e o mundo imaterial, ela relaciona um mundo cotidiano
mundano a um mundo transcendente. Esta é uma especialização muito interessante do
significado, que cria dois mundos e os relaciona, por exemplo, a religião.
Quando olhamos mais de perto para esta ordem de significado, a forma que
esses significados tomam deve ser uma forma com uma relação indireta entre os
significados e uma base material específica. E a razão para isso é muito clara: se os
significados têm uma relação direta com uma base material, esses significados são
totalmente consumidos pelo contexto. Esses significados são tão incorporados no
contexto que eles não têm referência fora desse contexto. Esses significados não são
apenas dependentes do contexto, eles são necessariamente limitados ao contexto; e os
significados que são limitados ao contexto não podem se unir a qualquer coisa diferente
de si mesmos. Eles não têm o poder de relação fora de um contexto, porque eles são
totalmente consumidos por esse contexto.
Neste sentido, os significados que criam e unem dois mundos devem ser sempre
significados onde há uma relação indireta entre esses significados e uma base material
específica: há uma divisão social específica de trabalho e um conjunto específico de
relações sociais dentro dessa divisão da trabalho.
Se estes significados têm uma relação indireta a uma base material específica, os
significados-se criam uma brecha (gap) ou um espaço. Se os significados são
consumidos pelo contexto e totalmente incorporados no contexto, não há espaço. Mas se
esses significados têm uma relação indireta a uma base material específica, porque eles
são indiretos, deve haver uma brecha. Intrínseco a estes significados é o potencial de
uma brecha, (um espaço), que eu vou chamar uma brecha discursiva potencial (potential
discursive gap) Não se trata de um deslocamento do significado, trata-se de uma brecha.
O que está em potencia aqui? Quero sugerir que esta lacuna ou espaço pode
tornar-se (nem sempre) um lugar para possibilidades alternativas, para realizações
alternativas da relação entre o material e o imaterial. A própria brecha pode mudar a
relação entre o material e o imaterial. Esta lacuna potencial ou espaço, vou sugerir, é o
local para o impensável, o lugar do impossível, e este lugar pode ser claramente benéfico
e perigoso ao mesmo tempo. Esta lacuna é o ponto de encontro da ordem e da
desordem, da coerência e da incoerência. É o lugar crucial do ainda não pensado.
Qualquer distribuição do poder tentará regular a realização desse potencial. Vou
sugerir que parte da razão pela qual as regras deste dispositivo são estáveis é que esta
brecha será sempre regulada. Os modos de regulação serão diferentes, mas a brecha
será sempre regulada. Qualquer distribuição de poder irá regular o potencial dessa
lacuna no seu próprio interesse, porque a própria lacuna tem a possibilidade de uma
ordem alternativa, uma sociedade alternativa e uma relação de poder alternativa.

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Para as sociedades “simples”, é claro, esta regulação é afetada pelo sistema
religioso e cosmologias aos quais ela dá acesso e controle. Historicamente, no período
medieval, esta lacuna foi regulamentada por sistemas religiosos na primeira
institucionalização do conhecimento.
Uma vez que há um sistema de significados, que tem esse potencial de criar
relações entre dois mundos, a brecha pode produzir diferentes relações entre esses
mundos. Isto é um paradoxo. As regras de distribuição tentam regular aqueles que têm
acesso a este lugar e desta forma controlam possibilidades alternativas, mas,
paradoxalmente, o dispositivo não pode fazer isso de forma eficaz.
O controle sobre o acesso ao lugar é feito por uma seleção dos agentes que foram
anteriormente legitimamente pedagogizados. Mas em tal processo as contradições e os
dilemas raramente são totalmente suprimidos. Além disso, o próprio processo
pedagógico revela a possibilidade da brecha e molda a forma da sua realização. Assim, o
controle ou a tentativa de controlar as realizações do fosso, deve necessariamente
revelar os modos que fazem as ligações entre os dois mundos. As relações de poder, que
são transmitidas pelas regras de distribuição, ficam então necessariamente sujeitas a
alterações.
As relações de poder distribuem o impensável e o pensável, e diferenciam e
estratificam grupos gerados pelas regras de distribuição (ver Figura 2.2). Pode ver-se
que as regras distributivas se traduzem sociologicamente no campo da produção do
discurso. Sociologicamente falando, as regras distributivas criam um campo
especializado de produção do discurso com regras de acesso especializadas e controles
de acesso especializado. Este campo é controlado mais e mais hoje pelo próprio estado.
Podemos agora ir adiante, das regras para as estruturas ou campos.


Figura 2.2.

Regras de recontextualização: o discurso pedagógico



Dissemos que as regras de recontextualização constituem discursos pedagógicos
específicos. As regras distributivas marcam e distribuem aqueles que podem transmitir
o quê para quem e sob quais condições, e elas tentam colocar os limites exteriores do
discurso legítimo. O próprio discurso pedagógico está baseado em regras que criam
comunicações especializadas mediante as quais os sujeitos pedagógicos são
selecionados e criados. Em outras palavras, o discurso pedagógico seleciona e cria
sujeitos pedagógicos através de seus contextos e conteúdos.
O que é o discurso pedagógico? Vou primeiro descrevê-lo para depois tentar
explicar como ele surge. Inicialmente vou definir o discurso pedagógico como uma regra
que engloba e combina dois discursos: um discurso técnico sobre habilidades de vários
tipos e de suas relações umas com as outras, e um discurso de ordem social. O discurso
pedagógico inclui regras que criam habilidades de um tipo ou de outro e regras que
regulam a relação de umas com as outras, e regras que criam uma ordem social.

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Chamaremos o discurso que cria habilidades especializadas e suas relações de
discurso instrucional, e o discurso moral que cria ordem, relações e identidade de
discurso regulador. Podemos escrever isso da seguinte forma:

Discurso Instrucional DI
_________________________ ____
Discurso Regulador DR

Isso mostra que o discurso instrucional é incorporado no discurso regulador, e
que o discurso regulador é o discurso dominante. O discurso pedagógico é a regra que
leva à incorporação de um discurso em outro, para criar um texto, para criar um
discurso.
Muitas vezes as pessoas nas escolas e nas salas de aula fazem uma distinção
entre o que elas chamam de “transmissão de competências” e “transmissão de valores”.
Elas são sempre mantidas separadas, como se houvesse uma conspiração para disfarçar
o fato de que há apenas um discurso. Na minha opinião, há apenas um discurso, não
dois, porque a voz secreta deste dispositivo tem que disfarçar o fato de que há apenas
um. A maioria dos pesquisadores estão continuamente estudando os dois, ou pensando
como se houvesse dois: como se a educação fosse sobre valores, por um lado, e sobre
competência, por outro. Na minha opinião não há dois discursos, há apenas um.
De um certo ponto de vista, o discurso pedagógico parece ser um discurso sem
discurso. Parece que não ele não tem um discurso próprio. O discurso pedagógico não é
física, química ou psicologia. Seja o que for, ele não pode ser identificado com os
discursos que ele transmite.
Então, qual é a natureza e o princípio desse discurso? Para começar, vou sugerir
que o discurso pedagógico é um princípio, não um discurso. É o princípio pelo qual os
outros discursos são apropriados e levados a um relacionamento especial uns com os
outros, com a finalidade de sua transmissão seletiva e aquisição. O discurso pedagógico
é um princípio para a circulação e o reordenamento dos discursos. Neste sentido, não é
tanto um discurso quanto um princípio. Veremos mais tarde que este princípio não dá
origem a um discurso especializado. Nesta fase, no entanto, ele é visto apenas como um
princípio para deslocar um discurso, para realocá-lo, para refocalizá-lo, de acordo com
seu próprio princípio.
Agora, neste processo de deslocamento de um discurso (manual, mental,
expressivo), isto é, de tomar um discurso de seu local original de eficácia e movê-lo para
um lugar pedagógico, cria-se uma lacuna ou melhor, um espaço.
Na medida em que o discurso se move de seu local original para o seu novo
posicionamento como discurso pedagógico, ocorre uma transformação. A transformação
ocorre porque cada vez que um discurso se move de uma posição para outra, há um
espaço que a ideologia pode ocupar. Nenhum discurso se move sem que a ideologia em
jogo. Na medida em que esse discurso se move, ele é ideologicamente transformado; não
é mais o mesmo discurso. Vou sugerir que, na medida em que esse discurso se move, ele
é transformado, de um discurso real, de um discurso sem mediação, em um discurso
imaginário. Na medida em que o discurso pedagógico se apropria de vários discursos,
discursos não mediados são transformados em discursos mediados, discursos virtuais
ou imaginários. Deste ponto de vista, o discurso pedagógico cria seletivamente sujeitos
imaginários.
Antes de definir o discurso pedagógico mais especificamente, vou dar um
exemplo. Quando eu estava na escola, passei três anos em uma sala grande, com bancos
de madeira e com bancos laterais com serras, martelos e cinzéis. Depois de três anos, eu
tinha uma pilha de lascas de madeira tão alta quanto o próprio banco. Mas o que eu
estava fazendo? Bem, o que eu estava fazendo era isto: do lado de fora da pedagogia
havia carpintaria, mas dentro da pedagogia havia trabalho em madeira. Em outras
palavras, aqui havia uma transformação de um discurso verdadeiro chamado de

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“carpintaria” em um discurso imaginário chamado “trabalho com madeira”. Este é
apenas um exemplo deste movimento, da mesma forma que a física na escola é uma
física imaginária, que discutirei mais adiante.
Quero afinar o conceito do princípio que constitui o discurso pedagógico,
sugerindo, formalmente, que o discurso pedagógico é um princípio de recontextualização.
O discurso pedagógico é elaborado por meio de um principio de recontextualização que
seletivamente apropria-se, relocaliza, refocaliza e relaciona outros discursos para
constituir a sua própria ordem. Neste sentido, o discurso pedagógico não pode ser
identificado com qualquer um dos discursos que ele recontextualiza.
Podemos agora dizer que o discurso pedagógico é gerado por um discurso de
recontextualização, da mesma forma que dissemos que as regras distributivas traduzem,
em termos sociológicos, campos de produção de conhecimento com as suas próprias
regras de acesso. O princípio de recontextualização cria campos de recontextualização,
cria agentes com funções de recontextualização. As funções de recontextualização, em
seguida, tornam-se o meio pelo qual um discurso pedagógico específico é criado.
Formalmente, passamos de um princípio de recontextualização a um campo de
recontextualização com agentes com ideologias em prática.
O campo da recontextualização tem uma função crucial na criação da autonomia
fundamental da educação. Podemos distinguir entre um campo de recontextualização
oficial (CRO) criado e dominado pelo Estado e seus agentes e ministérios selecionados, e
um campo pedagógico de recontextualização (CPR). Este último é composto por
pedagogos nas escolas e faculdades e departamentos de educação, revistas
especializadas, fundações de pesquisa privadas. Se a CPR pode ter um efeito sobre o
discurso pedagógico independentemente do CRO, então há tanto uma certa autonomia e
luta sobre o discurso pedagógico e suas práticas. Mas se há apenas o CRO, então não há
nenhuma autonomia. Hoje, o estado está tentando enfraquecer o CPR através do seu
CRO, e assim, tenta reduzir a autonomia relativa sobre a construção do discurso
pedagógico e sobre os seus contextos sociais (ver capítulo posterior).

O domínio do Discurso Regulador



É fundamental no meu argumento que o discurso regulador é o discurso
dominante. Em certo sentido, isso é óbvio, porque é o discurso moral que cria os
critérios que dão origem ao caráter, forma, conduta, postura, etc. Na escola, é ele que diz
às crianças o que fazer, onde elas podem ir, e assim por diante. É bastante claro que o
discurso regulador cria as regras de ordem social.
No entanto, eu também quero argumentar que o discurso regulador produz a
ordem no discurso instrucional. Não há discurso instrucional que não seja regulado pelo
discurso regulador. Se isto é assim, toda a ordem no interior do discurso pedagógico é
constituída pelo discurso regulador.
Se tomamos a física como um exemplo, vamos distinguir entre a física como
atividades no campo da produção de um discurso e a física como um discurso
pedagógico. É bastante possível ver as atividades dos físicos no campo no qual a física é
produzida, e às vezes é difícil de acreditar que o que todo mundo faz é física.
Este não é o caso com a física como um discurso pedagógico. Um livro didático
diz o que a física é, e é óbvio que ele tem um autor. O ponto interessante, no entanto, é
que os autores de livros didáticos de física raramente são físicos que estão praticando
no campo da produção da física; eles estão trabalhando no campo da recontextualização.
(Nota 2)
Na medida em que a física é apropriada pelos agentes de recontextualização, os
resultados não podem ser formalmente derivados da lógica daquele discurso.
Independentemente da lógica intrínseca que constitui o discurso especializado e as
atividades chamadas de física, os agentes da recontextualização vão selecionar a partir

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da totalidade de práticas daquilo que é chamado de física no campo da produção da
física. Há uma seleção.
Há uma seleção na forma como a física deve ser relacionada a outros assuntos, e
em seu sequenciamento e ritmo (ritmo é a taxa de aquisição esperada). Mas essas seções
não podem ser derivadas a partir da lógica do discurso da física ou das suas diversas
atividades no campo da produção do discurso.
Independentemente de saber se existe uma lógica intrínseca à física, as regras
para a sua transmissão são fatos sociais. E se elas são fatos sociais, existem princípios de
seleção. Estes serão ativados por um componente do discurso regulador. Ou seja, as
regras de ordem da física na escola (seleção, relação, sequência e ritmo) são uma função
do discurso regulador. Portanto, eu sustento que o discurso regulador oferece as regras
da ordem interna do próprio discurso instrucional. Se este argumento é bom, mais pode
ser derivado da noção que temos um discurso e que o discurso regulador é dominante.
Finalmente, o principio recontextualizador não apenas recontextualiza o o quê
do discurso pedagógico, qual discurso vai se tornar objeto e conteúdo da prática
pedagógica. Ele também recontextualiza o como; isto é a teoria da instrução. Isto é
crucial, porque a seleção da teoria da instrução não é inteiramente instrumental. A
teoria da instrução também pertence ao discurso regulador e contém em si um modelo
do aprendiz e do professor e da relação. O modelo do aprendiz nunca é inteiramente
utilitário; ele contém elementos ideológicos. O principio recontextualizador não apenas
seleciona o quê mas também o como da teoria da instrução. Ambos são elementos do
discurso regulador.

Regras de avaliação

Descrevemos o discurso pedagógico como discurso instrucional inserido no


discurso regulativo. Nosso próximo problema consiste em transformar esse discurso em
uma prática pedagógica. Farei isso por meio de uma série de transformações,
começando no nível mais abstrato e depois indo, passo a passo, até o nível da própria
sala de aula.
No nível mais abstrato, o discurso pedagógico especializa o tempo, um texto e
um espaço, colocando-os em uma relação especial um com o outro (veja a Figura 2.3).
Portanto, o discurso pedagógico especializa significados no tempo e no espaço. Esse
discurso pode elaborar relações categoriais muito fundamentais com implicações para
os mais profundos níveis culturais. Tudo a partir deste nível terá uma consequência
cognitiva e cultural. Este nível de especialização de tempo, texto e espaço nos marca
cognitivamente, social e culturalmente.




Qualquer discurso pedagógico pontuará o tempo, ele vai deslocar o tempo. Às
vezes ele irá deslocá-lo em apenas dois períodos. Às vezes ele vai produzir uma
pontuação muito precisa, desde a pré-cópula até a pós-ressurreição. O tempo

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transforma-se em idade. Cada discurso pedagógico irá produzir uma pontuação no
tempo de modo que teremos fases etárias que são inteiramente imaginárias e
arbitrárias.
O texto é transformado em um conteúdo específico, e o espaço será
transformado em um contexto específico. É importante, deste ponto de vista, entender
que por trás desse verdadeiro nível mais evidente fica o primeiro nível abstrato.



Finalmente podemos transformar a idade, o conteúdo, o contexto, ao nível das
relações sociais da prática pedagógica e as características cruciais da comunicação. A
idade é transformado em aquisição. O conteúdo é transformado em avaliação. O
contexto é transformado em transmissão. Assim:



Podemos ver que a chave para a prática pedagógica é a avaliação contínua. Se
colocamos as relações horizontais e verticais em conjunto, obtemos a prática pedagógica
(veja a Figura 2.3).
É disso que trata o dispositivo. A avaliação condensa o significado de todo o
dispositivo. Estamos agora numa posição onde podemos derivar toda a finalidade do
dispositivo. A finalidade do dispositivo consiste em proporcionar uma régua simbólica
para consciência. Daí podemos ver as origens religiosas do dispositivo: a religião foi o
sistema fundamental tanto para criar e para controlar o impensável, o princípio
fundamental para relacionar dois mundos diferentes, o mundano e o transcendente. Eu
acho que podemos ver as origens do aparelho pedagógico nesta última fase da análise.

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Figura 2.3.

De um ponto de vista estrutural podemos extrair a homologia entre o campo
religioso e o campo educacional. Inspirados em Max Weber, podemos ver um paralelo
entre as posições no campo religioso e no campo pedagógico.

CAMPO RELIGIOSO CAMPO PEDAGÓGICO
Profeta Produtor
Padre Reprodutor
Laico Adquirente


O campo religioso é constituído por três posições que estão em várias relações
de complementaridade e oposição. No campo religioso, temos os profetas, os sacerdotes,
e os leigos. A regra é que só se pode ocupar uma categoria de cada vez. Os sacerdotes
não podem ser profetas, e os profetas não podem ser sacerdotes e os leigos não podem
ser nenhum dos anteriores. Existe uma afinidade natural entre os profetas e os leigos, e
há uma oposição natural entre profetas e sacerdotes. Estas são as linhas de oposição que
estruturam o campo religioso.
Se olhamos para a estrutura do campo pedagógico, também temos basicamente
três posições que proporcionam análogos aos profetas, sacerdotes e leigos. Os “profetas”
são os produtores do conhecimento, (Nota 3) os “sacerdotes” são os
recontextualizadores ou reprodutores, e os “leigos” são os adquirentes. Assim, temos a
estrutura do campo pedagógico.

CONCLUSÃO

No modelo mostrado na Figura 2.4 tentei esquematizar a relação entre as regras


formais do dispositivo e a estrutura sociológica, práticas e processos a que elas dão
origem.
O dispositivo pedagógico funciona como um regulador simbólico da consciência;
a questão é, regulador de quem, de qual consciência e para quem? É uma condição para
a produção, reprodução e transformação da cultura. No entanto, o dispositivo não é
determinante nas suas consequências. A eficácia do dispositivo é limitada por duas
características diferentes.


FIGURA 2.4. O Dispositivo e suas estruturas

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1. Interna: Não é determinística por uma razão que é intrínseca ao dispositivo: eu
já mencionei isso antes. Embora o dispositivo esteja lá para controlar o
impensável, no processo de controlar o impensável ele torna disponível a
possibilidade do impensável. Portanto, é interno no dispositivo o seu próprio
paradoxo: ele não pode controlar o que foi configurado para controlar.
2. Externa: A razão externa pela qual o dispositivo não é determinista é porque a
distribuição de poder que fala através do dispositivo cria lugares potenciais de
desafio e oposição. O dispositivo cria em suas realizações uma arena de luta entre
diferentes grupos para a apropriação do dispositivo, porque quem se apropria do
dispositivo tem o poder de regular a consciência. Quem se apropria do dispositivo,
se apropria de um lugar crucial para o controle simbólico. O próprio dispositivo
cria uma arena de luta para aqueles que querem se apropriar dele.
Tentei expor a gramática intrínseca do dispositivo e expor o que poderia ser
chamado de a voz oculta do discurso pedagógico. Sugeri que a gramática do dispositivo
regula o que ele processa; uma gramática cuja realização codifica ordem e posição e
ainda contem o potencial de sua própria transformação.

NOTAS

1. A distinção entre o “real” e o “imaginário” é uma distinção feita para chamar a atenção
para uma atividade não mediada por qualquer coisa diferente de si mesmo na sua
prática e uma atividade onde a mediação é intrínseca à prática. A carpintaria-discurso,
na prática da carpintaria, só é mediada por si mesma, mas o discurso pedagógico é
mediado por um processo de recontextualização. Quando o discurso se move, através da
recontextualização, a partir de seu local original para um lugar pedagógico, o discurso
original é abstraído de sua base social, posição e relações de poder.
2. São feitas tentativas para quebrar a forte classificação entre o campo da produção do
discurso e do campo da recontextualização, mas raramente há uma circulação
institucionalizada entre os campos. Uma exceção notável foi a circulação de pessoal
entre a universidade e o liceu na França no caso da aula de filosofia. Os
recontextualizadores raramente são os produtores do conhecimento, embora existam
anomalias importantes aqui. Um caso notável onde os produtores de conhecimento são
recontextualizadores está geralmente nos níveis mais altos da universidade, onde o
recontextualizador também pode ser o produtor do conhecimento. No entanto, com os
recentes desenvolvimentos no ensino superior, o ensino e a pesquisa pode muito bem
estar em diferentes instituições.
3. É importante mostrar que os textos produzidos no campo da produção de
conhecimento, como os textos construídos no campo de recontextualização, são
imaginários em um aspecto crucial. No caso de textos no domínio da produção do
discurso, a intertextualidade do discurso é transformada em intratextualidade. Espera-
se que um texto neste campo seja original para ter o maior renome. Idealmente, deve ser
o primeiro texto de seu tipo e ser o produto de uma única mente ou uma única mente
dominante ou um grupo de mentes (como na ciência). Este texto esforça-se para
proclamar a sua singularidade e pode conter estratégias que mascaram, borram ou de
posicionam de forma diferente seus antecedentes. Desta forma a intertextualidade é
transformada em intratextualidade no processo de construção da autoria única.

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