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RESUMO – O medicamento tem sido o principal recurso terapêutico da medicina ocidental, que evoluiu
materialmente no último século. O objetivo deste artigo é compreender o uso de medicamentos, como um
fenômeno cultural, que se articula com os campos da economia e da política. Assim, pretendo problema-
tizar a realidade, e situar tais práticas sociais em uma dimensão histórica, atentando para as contradições
que se apresentam, e procurando desvelar as irracionalidades em uma área tão vital para o homem, que
é a saúde, o direito à saúde e o acesso a medicamentos. Considero relevante apresentar sucintamente o
cenário das políticas públicas de saúde e medicamentos no Brasil, avançando em contextos necessários
para estabelecer as conexões dialéticas sempre que possível, pois o uso de medicamentos é prática social,
inserido na dinâmica da história, cujo fenômeno não se encontra acabado, mas em permanente transfor-
mação. O papel da indústria farmacêutica e da farmácia também foi discutido, considerando a relevância
de ambas em relação ao consumo de medicamentos e ás desigualdades que se configuram no acesso a
estes recursos terapêuticos.
PALAVRAS-CHAVE – Uso de medicamentos, saúde, indústria far macêutica, farmácia.
SUMMARY – The medicine has been the major therapeutic resource of the occidental medical science that
has progr essed materially in the latest century. The aim of this article is understand the use of medicines,
as a cultural phenomenon that joins yourself with the field of economy and politics. So, I will try to make
problematic the reality, intend to insert this social practices in a historical dimension, paying attention to
the contradictions that appears and discuss the irrationalities in such vital area to the human being as
the health, health right and the access to the use of medicines. It is important to show briefly the scenery
of the health and medicines policy in Brazil, forwarding to necessary contexts to fix dialectic connections
when possible, because the use of medicines constitutes itself in social facts, insert in the history dynamic,
witch phenomenon is not finished but in permanent transformation. The role of the drug industry and
pharmacy was also studied, considering their relevancy in relation to the consumption of medicines and
to the disparities that were formed in the access to these therapeutic resources.
KEYWORDS – Medicines use, health, drug industry, phar macy.
Recebido em 22/8/2007
1
Farmacêutico, Doutorando em Educação pela UNICAMP, Pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Práticas de Educação e Saúde (PRAESA)/UNICAMP,
Professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).
64 Rev. Bras.
Rev.Farm.,
Bras. 89(1):
Farm., 64-69,
89(1), 2008
2008
O medicamento pode apresentar o aspecto dupla- O Sistema Único de Saúde (SUS), fruto dos movi-
mente simbólico das mercadorias ocidentais contem- mentos populares e sanitaristas, ocorreu apenas no
porâneas, ou seja, não apenas proporciona saúde atra- governo Fernando Collor de Melo, sob fortes embates,
vés da promoção da cura das doenças, mas também que tentaram obstruir inclusive o sistema de financia-
pode ser utilizado e renegociado para enfatizar dife- mento do SUS.
renças de estilos de vida, demarcando as relações so- Em 1990, o Estado brasileiro experimentou um am-
ciais, como acontecem com os medicamentos estilos de plo processo de redefinição e de reformas, que teve
vida – sildenafil e orlistat (Featherstone, 1995; Azize, implicações no âmbito econômico, político e ideológi-
2002). Neste caso, o medicamento-mercadoria tornou- co. Na área da saúde, o Estado afirmou em documen-
se a expressão estética da mais valia que sucumbe à tos oficiais que pretendia deixar de ser o executor dire-
lógica do mercado. to dos serviços de saúde, para apenas restringir-se à
Assim, a proposta deste artigo é compreender o uso formulação das grandes estratégias de saúde, o que
de medicamentos, como um fenômeno cultural, que se deixa claro a política de redução do papel do Estado
articula com os campos da economia e da política. O na oferta direta desses serviços e a intenção de priori-
medicamento não é apenas um recurso terapêutico, zar as suas ações na avaliação dos resultados (Rizzotto
pautado no modelo tecno-biomédico, mas também um & Conterno, 2002).
fenômeno vinculado e subordinado às necessidades de A ideologia neoliberal atingiu o setor saúde, ou pelo
produção e reprodução da força de trabalho, assumin- menos parte dele, neste caso a assistência hospitalar, a
do a forma de mercadoria. Este estudo pode ser consi- que mais custos apresentava. Na prática verificou-se a
derado como uma revisão crítica, que através de um racionalização do acesso hospitalar ou a moderação da
trajeto sistematizado de idéias, adota a abordagem in- demanda. Algumas estratégias foram feitas, como a
terdisciplinar tecendo articulações com outros campos redução de leitos disponíveis na rede conveniada ao
disciplinares, como a história e a sociologia. SUS, a privatização de leitos na rede pública e as filas,
Para atingir os objetivos a que me proponho, consi- nos casos de cirurgias eletivas (Rizzotto & Conterno,
dero relevante apresentar mesmo que sucintamente o 2002).
cenário das políticas públicas de saúde e de medica- Em 1990, também se verificou a ampliação dos ser-
mentos no Brasil, tendo como marco inicial a década viços de cuidados básicos à saúde, como o Programa
de 80, porém entendendo que tais políticas estão dire- de Saúde da Família, o Programa de Agentes Comuni-
tamente articuladas às políticas econômicas adotadas tários da Saúde, a Farmácia Básica, que propunham
pelos governos brasileiros, e as suas interfaces com as rupturas com o modelo hospitalocêntrico, centrado na
organizações mundiais, neste caso, o Fundo Monetá- doença, e na figura do médico. Todavia, para alguns
rio Internacional e os países capitalistas dominantes, críticos, traziam consigo elementos neoliberais cujo pa-
como os Estados Unidos e os do continente europeu. pel do Estado seria garantir um mínimo para aliviar a
Em outro momento pretendo aprofundar o papel da pobreza e produzir serviços que os privados não po-
indústria farmacêutica e da farmácia, como elementos dem ou não querem produzir, além daqueles que eram,
indispensáveis ao uso de medicamentos e das desi- a rigor de apropriação coletiva (Laurell, 2002).
gualdades que se configuram em relação ao acesso. E O neoliberalismo também foi incorporado pelos or-
ao final desse percurso, espero que a realidade apre- ganismos internacionais de saúde, como a Organiza-
sentada possa ser transformada em propostas e contri- ção Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Pan-
buições, entendendo que o uso de medicamentos en- americana de Saúde (PAHO). Estas organizações têm
volve práticas culturais e sociais inseridas na dinâmica enunciado como proposta de solução para os proble-
da história, cujo fenômeno não se encontra acabado, mas financeiros na área de saúde, os processos de ges-
porém, em permanente transformação tão adotados pelos mercados e a participação de insti-
tuições privadas, como fontes de financiamento e tro-
1. Políticas de Saúde no Brasil
cas de experiências (Waitzkin et al, 2005).
O acesso à assistência à saúde desde 1930 esteve
vinculado à previdência social. O seguro social, de ca- 2. Políticas de Medicamentos no Brasil
ráter compulsório, tinha seu financiamento atrelado à No início do século XX, os medicamentos consumi-
massa salarial, ou seja, à contribuição do empregado e dos no Brasil eram originários da atividade de um grande
do empregador calculadas como um percentil do salá- número de pequenos e médios laboratórios nacionais,
rio recebido e pago (Cohn, 2002). poucos estrangeiros e também de importações. Com a
A partir de meados de 1970, iniciou-se no país o descoberta de novos fármacos, o avanço das pesquisas
processo de transição democrática, que incluiu também científicas, o processo de desnacionalização se avolu-
militância política pela conquista da saúde como direi- mou acentuadamente, sendo que já em 1970, a produ-
to e dever do Estado. A reforma sanitária proposta con- ção de medicamentos se concentrou em laboratórios
sistiu na construção de um sistema de saúde único fun- farmacêuticos estrangeiros.
damentalmente estatal; sendo o setor privado suple- Esses laboratórios avançaram no mercado brasilei-
mentar àquele, mas sob poder público, e de caráter ro adquirindo as pequenas e médias empresas nacio-
descentralizador. nais, mediante o conjunto de medidas da política eco-
Essa proposta foi aprovada na 8ª. Conferência Nacio- nômica com ênfase na industrialização, não se preo-
nal de Saúde, em 1986, e concretizada na Constituição cupando em desenvolver políticas que fortalecessem
de 1988. Porém, nessa época duas cor rentes sobre o Esta- o parque fabril brasileiro, e muito menos, programar
do se debruçavam: a concepção neoliberal, que estabele- políticas nacionais de medicamentos, facilitando o
ceu o Estado Mínimo e o mercado como principal agente acesso da população a esse recurso terapêutico (Gio-
regulador da ordem econômica; e a concepção da neces- vanni, 1980).
sidade da presença de um Estado democrático forte. A Central de Medicamentos (CEME) criada em