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II​ ​JORNADA​ ​DE​ ​CIÊNCIA​ ​POLÍTICA

ELEIÇÕES​ ​PRESIDENCIAIS​ ​E​ ​A​ ​ESTRUTURAÇÃO​ ​DA​ ​COMPETIÇÃO​ ​POLÍTICA


UNIVERSIDADE​ ​FEDERAL​ ​DE​ ​SANTA​ ​MARIA
25​ ​E​ ​26​ ​DE​ ​OUTUBRO​ ​DE​ ​2017

QUEM​ ​DESCE​ ​OS​ ​TRÓPICOS?


Os​ ​liberalismos​ ​de​ ​Joaquim​ ​Nabuco​ ​e​ ​Rui​ ​Barbosa

BRUNO​ ​VEÇOZZI​ ​REGASSON


Graduando​ ​de​ ​Ciências​ ​Sociais​ ​-​ ​Bacharelado
Universidade​ ​Federal​ ​de​ ​Santa​ ​Maria
QUEM DESCE OS TRÓPICOS? Os liberalismos de Joaquim Nabuco e Rui
Barbosa1

RESUMO
Em contexto de contestação política e do advento inequívoco daquilo que comumente
passou a se denominar ​modernização ​em terras brasileiras, duas surgem como figuras
representativas de ideologias de transformação social normalmente classificadas sobre
a terminologia de liberalismo. Em uma análise mais próxima, percebe-se que, apesar
das aproximações, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa representam, no espaço delimitado
do II Reinado e da discussão pré-89, pólos diferentes de propostas de futuro. Este
trabalho trata de compreender, através de fontes secundárias e de síntese, quais são
as principais diferenças entre estes pensadores manifestas em suas discussões sobre
o Estado durante tal período, apontando para a existência de liberalismos no plural,
influenciados, com maior intensidade e respectivamente, pelo ideário europeu
teoricamente francês e institucionalmente britânico e pelo modelo ideológico
anglo-saxão​ ​e​ ​organizacional​ ​estadunidense.
Palavras-chave: ​liberalismo; pensamento político brasileiro; segundo reinado;
proclamação​ ​da​ ​república;​ ​Joaquim​ ​Nabuco;​ ​Rui​ ​Barbosa;​ ​modernização

INTRODUÇÃO
Este projeto de pesquisa tem por objetivo a construção de uma análise comparativa
entre as ideias de dois dos grandes intelectuais brasileiros do II Reinado responsáveis
por um dos principais debates referentes ao processo constituinte de 1891 e à
Proclamação da República de 1989: Joaquim Nabuco e Rui Barbosa. Mais
especificamente, se propõe a entender como os autores articularam em seu

1
​ ​Bruno​ ​Veçozzi​ ​Regasson,​ ​graduando​ ​de​ ​Ciências​ ​Sociais​ ​-​ ​Bacharelado​ ​pela​ ​Universidade​ ​Federal​ ​de
Santa​ ​Maria,​ ​sob​ ​orientação​ ​do​ ​Doutor​ ​Reginaldo​ ​Perez.
pensamento a ideia de Estado, seus signos, suas leituras, bem como resgatar daí o
diagnóstico descritivo, empírico e crítico proposto por ambos para o Estado enquanto
realidade​ ​institucional​ ​no​ ​Brasil​ ​recém​ ​declarado​ ​independente.
Inseridos em um turbulento contexto histórico, Nabuco e Barbosa têm o
potencial de serem figuras chave para a compreensão da dinâmica da modernização
brasileira. Suas posições históricas enquanto liberais ativos e proponentes no debate
público os tornam figuras de análise para um quadro maior de reformulação ou até
mesmo desintegração do luso-brasileirismo, desafios da construção de um mito
nacional, integração territorial e centralização política, independências
latino-americanas e ainda de importação dos principais paradigmas então
contemporâneos da política ocidental. Este último elemento em especial, esta hipótese
propõe, revelará nos escritos de Nabuco e Barbosa sobre o Estado significativas
diferenças de propostas, visões e ideias: um monarquista constitucional que bebe da
Europa​ ​suas​ ​principais​ ​influências​ ​e​ ​um​ ​republicano​ ​tipicamente​ ​americanista.
Através de uma revisão bibliográfica do principal que se têm produzido sobre os
autores, propõe-se, portanto, encontrar as diferenças e semelhanças entre os
liberalismos​ ​de​ ​Joaquim​ ​Nabuco​ ​e​ ​Rui​ ​Barbosa.

TRÊS​ ​NASCIMENTOS​ ​NO​ ​SÉCULO​ ​XIX


Em linha temporal, o primeiro dos três nascidos pertinentes à esta discussão é o
próprio Brasil enquanto realidade institucional, geográfica, social e política
independente de Portugal. Feitio de D. Pedro I em 1822, as origens do movimento
separatista remontam de tempos anteriores, da agitação intelectual da metrópole que
viaja o mar e inevitavelmente chega na colônia. Esta viagem foi metafórica e também
literal: o Antigo Regime e a Corte portuguesa, escoltada pelos ingleses, chegam aqui
em 1808 e passam então a repensar um projeto que já excitava a mente de intelectuais
ibéricos como Rodrigo de Sousa Coutinho: o projeto do Império Luso-brasileiro. O
contexto, absolutamente diferenciado, tornava o Brasil sede da monarquia,
reduzindo-se Portugal a uma simples colônia (DAS NEVES, 1999, p. 29). O território do
Novo Continente passou então a transcender o formato quase que exclusivamente
mercantil, recebendo universidades, centros urbanos, hábitos aristocráticos, empregos,
imprensa e abertura comercial (forçada ou não). A preeminência inglesa no Brasil fruto
dos tratados de escolta de 1808 e a Corte estabelecida em terra tupiniquim
mobilizaram, aos poucos, tanto os militares do Porto e a revolução vintista lá quanto
uma elite descontente com os avanços da autoridade das Cortes de Lisboa aqui, que
fizeram do “clima de crescente animosidade” um instrumento para a conversão do
“ideário liberal em uma proposta de separatismo” (DAS NEVES, 2001, p. 89). Esta
“guerra civil entre portugueses desencadeada aqui pela Revolução do Porto” (DIAS,
1972,​ ​p.​ ​11)​ ​geraria​ ​nosso​ ​processo​ ​de​ ​Independência.
Da Declaração em 22 até o nascimento do grande segundo personagem deste
trabalho, um vasto lapso de mais de duas décadas transcorre com intensas
ressignificações deste novo Império. Ao menos duas grandes reformas de modelo
político (1834 e 1837) marcam fortes mudanças de rumo institucional; a abdicação de
Pedro I em 31 dá início ao grande avanço liberal do intervalo regencial caracterizado
pela onda de revoltas do sul ao norte do país e interrompido violentamente pelo
regresso conservador do tempo saquarema fruto da conciliação de liberais moderados
e caramurus; a ascensão do jovem D. Pedro II ao trono, o Rei nascido e criado no
Brasil, marca o auge do poder monárquico no Brasil, com a garantia da unidade
territorial,​ ​a​ ​vitória​ ​da​ ​“pacificação”​ ​e​ ​a​ ​imposição​ ​da​ ​“ordem​ ​social”.
É neste contexto que nascem, no mesmo ano, 1849, Joaquim Nabuco (Recife,
19 de agosto) e Rui Barbosa (Salvador, 5 de novembro). O primeiro, filho do
Conselheiro Nabuco de Araújo, cresceu envolto de políticos e teve em seu pai o
primeiro liberal de sua vida, herdando daí seu interesse pelos temas universais do seu
século e de sua infância no engenho de sua madrinha, em Pernambuco, seu fervor
pela pauta do abolicionismo. Em Minha Formação, publicado em 1900, Nabuco chega
a narrar que em casa “via muito a Tavares Bastos”, descia e subia “a rua do Ouvidor de
braço com Teófilo Otoni” e conversava e ouvia Quintino Bocaiúva, “que me parecia o
jovem Hércules da Imprensa.” Rui Barbosa também teve origens próximas de elites
políticas do período, sendo sobrinho do barão de Mucurie de Luís Antônio Barbosa de
Almeida, que foi presidente da província da Bahia de 64 a 65. Os dois viriam a se
encontrar não muito depois, em 1866, quando foram colegas na faculdade de Direito de
São​ ​Paulo.
Nos anos seguintes, graças, majoritariamente, à segunda reforma eleitoral
inglesa e à consolidação da república francesa que colocaram em cheque definitivo a
prática política da “Monarquia de Julho” típica do II Reinado (LYNCH, 2008, p. 114), os
grandes primeiros sinais de esgotamento do modelo político incendiaram o cenário do
debate público brasileiro. A partir daí, ambos os intelectuais e em breve políticos
passariam a traçar caminhos cada vez mais distintos, culminando em graves
discordâncias nos anos 80, desentendimentos radicais pós-golpe militar de 89, onde
nosso estudo se limita a chegar, e numa curiosa reaproximação ideológica e política na
segunda​ ​década​ ​do​ ​século​ ​XX,​ ​tema​ ​frutífero​ ​de​ ​futuras​ ​reflexões.

DOIS​ ​NABUCOS?
Para propor uma compreensão das sínteses mais canônicas dos pensamentos de
Nabuco e, por consequência, situar este trabalho em um eixo interpretativo que guiará
a ênfase bibliográfica, será tomado como referência de revisão literária aquela
realizada​ ​por​ ​Christian​ ​Lynch​ ​em​ ​seu​ ​artigo​ ​O​ ​Império​ ​é​ ​que​ ​era​ ​a​ ​República.
É bem verdade que Joaquim Nabuco pode facilmente ser compreendido como
um escritor que se preocupou em três momentos diferentes com três grandes temas
que passaram a protagonizar suas reflexões e seus textos: o abolicionismo (na década
de 1880), o monarquismo (na década de 1890) e o panamericanismo (na década de
1900). O que se tornou recorrente na análise de seu pensamento político, porém, foi
uma visão mais radical sobre alguma espécie de ruptura drástica entre aquele Nabuco
que lutou pelo fim da escravidão no Brasil e aquele que se tornou um dos intelectuais
mais abertamente defensores da monarquia. Esta análise compreende que “depois de
1889 Nabuco teria chafurdado num lamentável conservadorismo [...] afogando as
mágoas da queda da monarquia nos braços do catolicismo militante” (LYNCH, 2012, p.
278). Essa leitura pode ser encontrada em muitos lugares: no seu biógrafo Luís Viana
Filho, que o acusa de um “romantismo incurável”, um “excesso de imaginação
idealista”; no crítico literário Antonio Candido, que denuncia um “aristocratismo
crônico”, no típico jargão marxista do reducionismo às consciências de classe; em
Angela Alonso, que retoma Candido e contém o progressismo oitentista do autor à sua
“vaidade”; em Marco Aurélio Nogueira, que lamenta o momento de cegueira de Nabuco
ao​ ​“processo​ ​global”.
Este trabalho se alinha, porém, na crítica de Lynch a estas interpretações “de
corte evolucionista e positivista”, que Wanderley Guilherme dos Santos entenderia
como uma perspectiva de matriz sociológica, em contraposição com matrizes
institucionais e - as aqui adotadas - ideológicas. Estes enfoques poderiam ser
deduzidos​ ​de​ ​equívocos​ ​como
a falta de familiaridade com a cultura liberal Oitocentista;
um intencionalismo mal-entendido, descontextualizado
ou anacrônico; a persistência de métodos evolucionistas
que aprisionam seu pensamentos nas malhas do
psicologismo ou dos supostos vínculos de classe.
(LYNCH,​ ​2012,​ ​p.​ ​281)

Como Maria Emilia Prado bem coloca “interessa-nos dar voz ao autor para que
ele mesmo nos fale das suas crenças, hesitações, dúvidas e idéias, enfim, o modo
como via o Brasil, as mudanças que preconizava e sua ação política.” (PRADO, 1999,
p. 241) Deste modo, a bibliografia que nos servirá de base para uma primeira
aproximação do debate, ainda que secundária, será aquela que valoriza a formulação
dos pensamentos dos autores a partir de seus próprios termos, em uma perspectiva
mais generosa com a autonomia intelectual e de virtudes dos objetos de estudo. Ainda
que, por hora, este enfrentamento não se dê diretamente com as fontes mais
adequadas - ou seja, as obras originais dos autores -, crê-se aqui possível a
aproximação​ ​com​ ​esta​ ​vocalização​ ​através​ ​de​ ​vias​ ​secundárias.
Sob esta ótica, “o segundo Nabuco se acha movido pela mesma preocupação
do primeiro, diante, todavia, de uma conjuntura diferente” (LYNCH, 2012, p. 284). Esta
chave de interpretação, assim como unifica Nabuco em suas complexidades sem
nunca propôr um desenvolvimento completamente linear e unívoco, nos servirá para
compreender um Rui Barbosa enfrentando os dilemas do legalismo e do
institucionalismo​ ​na​ ​alvorada​ ​da​ ​República​ ​brasileira.

EMBATES​ ​POLÍTICOS​ ​E​ ​ORIGENS​ ​TEÓRICAS:​ ​DOIS​ ​LIBERALISMOS


Conforme anteriormente apontado, as grandes rupturas entre Nabuco e Barbosa
tomaram forma durante os anos 1870 e culminaram em grandes desavenças, até
mesmo​ ​em​ ​um​ ​afastamento​ ​pessoal,​ ​no​ ​final​ ​dos​ ​anos​ ​1880​ ​e​ ​começo​ ​dos​ ​1890.
Formados na linguagem do liberalismo radical da campanha de reformas “que
incluía a eleição direta, a descentralização, a autonomia do Judiciário, a extinção do
contencioso administrativo, a temporalidade do Senado [...] e, de forma mais vaga, a
abolição da escravatura” (LYNCH, 2008, p. 114), dos ambientes urbanos de aspirações
cosmopolitas, de preocupação legalista e atuação doutrinária na imprensa e em
associações, ambos foram eleitos deputados gerais no mesmo ano (1878) e, portanto,
com a mesma idade (29 anos) por Pernambuco e pela Bahia, respectivamente. Já
durante as campanhas e as suas atividades intelectuais anteriores, entretanto, os
companheiros do recém fundado Partido Liberal (de 1831) encontraram suas
discordâncias.
No fundamental artigo A primeira encruzilhada da democracia brasileira, ainda
Christian Lynch historiciza e narra quatro grandes campanhas que, com o tempo,
sedimentaram as diferenças de Nabuco e Barbosa: a reforma eleitoral, o abolicionismo,
a campanha federalista e o embate entre os projetos monarquistas e republicanos.
Todos eles servem de grande utilidade para destacarmos a compreensão dos dois
sobre o fenômeno do Estado, seja como novidade universal ou realidade institucional
brasileira.
O primeiro confronto se forma quando a luta dos liberais pela introdução da
eleição direta, reivindicatória do fim de fraudes eleitorais e de maior dependência do
governo em relação à Câmara dos Deputados, ganha corpo de apoio e, num elemento
essencial, convence a lavoura em sua campanha. Esta esperava que a eliminação de
autonomia do Estado seria capaz de travar o clamor abolicionista, junto do dispositivo
que reduziria o eleitorado privando analfabetos do voto e excluindo os pobres restantes
via elevação do censo pecuniário. Nabuco prontamente passou a denunciar a reforma
“no sentido reacionário”, alcunhando a proposta de “Congresso agrícola” e “Parlamento
aristocrático”. Barbosa, enquanto isso, se pôs favorável à mudança, alegando que “a
redução do eleitorado seria compensada pela melhoria da qualidade do voto”, visto que
qualquer democracia precisa se tornar racional, superar sua selvageria. De um lado, o
Estado aparece como um projeto muito mais popular, no caminho clássico da
agremiação dos mais diversos interesses. Do outro, a formação institucional se torna
um​ ​papel​ ​mais​ ​apropriado​ ​para​ ​algum​ ​tipo​ ​de​ ​elite​ ​letrada​ ​e​ ​esclarecida.
Poucos anos depois, Nabuco mergulha definitivamente na grande obra de sua
vida: a destruição da escravidão brasileira. Quando lançado O Abolicionismo, até hoje
maior obra nacional sobre a questão, esta concepção de nação e Estado muito mais
ampla do que a da elite brasileira é reafirmada: o fim da escravidão não se trata apenas
de um importante passo histórico, mas de “um imperativo da construção nacional que,
para constituir-se como tal, precisava incorporar os pobres e os escravos.” O faro
sociológico da análise nabuqueana o levava a se aproximar cada vez mais da doutrina
do novo liberalismo britânico de Thomas Hill Freen e William Gladstone, “vendo na
intervenção do Estado no mundo da economia - a fim de reduzir as desigualdades e
desconcentrar a propriedade - um requisito essencial para desenfeudar o povo do
domínio oligárquico.” (LYNCH, 2008, p. 117) Tratava-se, portanto, não só de proibir a
escravidão, “a grande questão da democracia brasileira”, mas de “acabar com sua
obra” através de uma reforma agrária, um sistema de previdência e um educacional,
uma legislação trabalhista (PRADO, 1999, p. 259). Rui Barbosa, que também se
manifestava contrário a sociedade escravagista em Emancipação dos escravos, o fazia
essencialmente apontando o anacronismo da situação do ponto de vista do progresso
histórico humano e da nação e amarrando cuidadosamente argumentos jurídicos,
políticos e econômicos favoráveis ao trabalho livre - uma agenda de reformas políticas,
não sociais. O antes de mais nada espírito jurídico do bahiano “nunca aceitou a ideia
de que a autonomia do Estado imperial fosse antes efeito do que causa das
dificuldades do sistema representativo no Brasil”, muito menos “a tese de que as
intervenções do poder Moderador eram necessárias para evitar o domínio oligárquico
de um partido único.” (LYNCH, 2008, p. 119) Aqui, a tese é radicalmente legalista e
formalista: “como ‘o caráter geral das grandes nações senhoras de si mesmas’ era
fornecido por seu ‘espírito jurídico’, o relativismo cultural e a intuição sociológica
desempenhavam​ ​um​ ​papel​ ​de​ ​pouca​ ​ou​ ​nenhuma​ ​relevância.”​ ​(​idem​,​ ​p.​ ​120)
A campanha federalista dos reformistas liberais passaria por um processo muito
parecido com a das eleições diretas, recebendo a adesão maciça da aristocracia rural
cada vez mais insatisfeita com o 13 de maio sem indenizações. Barbosa, é claro,
apoiou intensamente aquela que era tida como uma pauta tipicamente liberal desde
sempre, radicalizando seu posicionamento na medida em que virava minoria em seu
próprio partido. Já o ideário nabuqueano mantinha simpatia pelo projeto por razões
completamente diferentes: via na autonomização das províncias um modo de acalmar
os ânimos dos republicanos, agora, pós Lei Áurea, completamente convencido do
papel da Coroa “num sistema representativo bloqueado pelo exclusivismo da grande
propriedade​ ​rural.”​ ​(​idem​,​ ​p.​ ​119)
Estes posicionamentos listados até agora não existem, evidentemente, num
vácuo e apontam para diferentes caminhos muito por nascerem de diferentes
perspectivas​ ​e​ ​paradigmas.
No já visitado artigo O Império é que era República, Christian Lynch se dedica à
análise deste arcabouço intelectual de Joaquim Nabuco que o leva a entender a
monarquia como melhor solução para o Brasil em um sentido progressista das
intenções. Os conceitos-chave do autor pra essas considerações são dois: o de
idealismo prático e o de República. A exemplo dos franceses Madame de Stäel e
Benjamin Constant, Nabuco propõe a leitura do movimento liberal como um orientado
por padrões ideais, estéticos e valorativos, mas chamando-os ao chão através de uma
necessária​ ​agudez​ ​sociológica​ ​de​ ​análise​ ​da​ ​realidade​ ​empírica.​ ​Deste​ ​modo
[o idealismo prático] se distanciava tanto do
idealismo puro, que levava ao radicalismo teórico e
afastava o ator do objetivo, quanto do
pragmatismo, em que o ator agia em função de
puros interesses práticos na busca pelo poder. A
fundamental qualidade do político era ‘adaptar os
meios aos fins e não deixar periclitar o interesse
social maior por causa de uma doutrina ou de uma
aspiração.’​ ​(LYNCH,​ ​2012,​ ​p.​ ​287)

O papel do liberal aqui aparece como o papel do que posteriormente poderia se


encaixar em uma linhagem de conservadores no sentido clássico: o de “encaminhar a
democratização” e outros processos históricos irrefreáveis (desaristocratização das
sociedades e sufrágio universal) “sem prejuízo da qualidade da vida pública, ou seja,
dos​ ​valores​ ​cívicos​ ​e​ ​liberais​ ​da​ ​aristocracia​ ​declinante.”​ ​(​idem​,​ ​p.​ ​288)
O outro ponto sensível é a complexa articulação nabuqueana de quatro
conceitos possíveis para a ideia de República: a república como substância, como uma
virtude cívica de costumes voltados para o bem comum e para o culto da lei; a
república como forma de governo, que poderia ou não conter a substância; a república
de feições francesas e tocquevillianas enquanto sociedade democrática e igualitária; e
a república como um ideal moderno, de conteúdo valorativo positivo, que teria em seu
conjunto a substância, a democracia igualitária e o governo constitucional e
representativa​ ​-​ ​o​ ​Estado​ ​de​ ​direito​ ​liberal.
O Rui Barbosa destas décadas que analisamos representa uma via
consideravelmente diferente de análise e bastante mais próxima da ortodoxia liberal,
legalista,​ ​das​ ​formas,​ ​e​ ​de​ ​tendências​ ​claramente​ ​mais​ ​anglo-saxônicas.
Para compreender sua forma de análise e suas críticas a situação brasileira,
Barbosa recorria, muito mais que Nabuco, ao “repertório doutrinário do liberalismo
clássico”, na tradição de denunciar as “tendências despóticas consideradas intrínsecas
ao poder político” de pensadores como James Madison e Alexander Hamilton em
contraposição a Jean Bodin e Jean-Jacques Rousseau. “Em tal abordagem, a própria
distinção entre bons e maus regimes, entre liberdade e despotismo, resultava menos
da origem do poder em si (se monárquica ou popular) que do modo pelo qual ele era
exercido.”​ ​(CINTRA,​ ​2016,​ ​p.​ ​204)
Da compreensão deste arcabouço teórico, dá se luz e torna-se mais
compreensível o reiteradamente acusado caráter elitista de muitas das ações de
Barbosa em sua atuação política, principalmente anteriores ao rompimento definitivo
com​ ​o​ ​senador​ ​Pinheiro​ ​Machado​ ​já​ ​no​ ​século​ ​XX.

QUEM​ ​DESCE​ ​OS​ ​TRÓPICOS?


Neste ponto da explanação, acredita-se possível a abordagem da grande divergência
entre os dois liberalismos de nossos autores, que marcou inclusive o seu rompimento
de mais de dez anos. No declínio do Antigo Regime no Brasil, Nabuco posicionou-se
na defesa pública da Coroa, do Poder Moderador e, em boa medida, do status quo
imperial, enquanto Rui Barbosa foi partidário radical dos republicanos, servindo
inclusive de mãos para a construção da primeira Constituição republicana de nosso
país​ ​em​ ​1891.
A característica indubitavelmente interessante dessa antítese é a ênfase
progressista do conservadorismo saquarema nabuqueano. Como já atestamos, o
pernambucano não deixou suas preocupações centrais de lado após a abolição - muito
pelo contrário, entendeu o fenômeno de avanço liberal provindo da Princesa Isabel
como uma manifestação clara do potencial democrático da aristocracia brasileira. Em
contraposição àquilo que se formava como força aglutinadora da república, a soma do
latifúndio escravista e dos militares positivistas na tentativa de transformar o Estado em
um instrumento de classe, o Império aparecia como verdadeira força para lutar contra
este grupo antirepublicano, antiliberal e antidemocrático (LYNCH, 2012, p. 305).
Antevendo a análise dos elitistas como Pareto, Mosca e Schumpeter, Nabuco entendia
que “todos os tipos de governo eram oligárquicos, no sentido de que era sempre uma
minoria que governava” (​idem​, p. 292) e, portanto, seu inimigo não era o
republicanismo, mas uma forma de oligarquia muito pior que o Império: “a tirania
demagógica”, ou o “caudilhismo autoritário”, em um território sem bases sociais para a
democracia, sem povo livre, sem “tempo, hábitos e práticas” sedimentadas. De sua
análise contextual, sociológica, provinha sua conclusão de que, especificamente em
território brasileiro, assombrado pelas independências e repúblicas ora anárquicas ora
ditatoriais da América Latina, e não como uma lei universal, “a monarquia é que era a
república”, onde a Coroa ilustrada “limitaria voluntariamente o poder governamental nos
limites de um governo constitucional e representativo”, sedimentando aos poucos a
“sociedade de pequenos proprietários” (LYNCH, 2008, p. 115) e o corpo social para a
democracia​ ​e​ ​o​ ​liberalismo.
Conforme também vimos, essa delegação de altruísmo para o poder imperial em
nada confere com a posição teórica de Rui Barbosa. O formalista de tradição luzia
jamais admitiria um grande poder centralizador que guiasse iluminadamente a
sociedade, pois admitir tal guia “faria dele um conservador ‘da escola reacionária’”,
visto que “o exercício do poder Moderador conforme a vontade do Imperador não
passava de exercício ilegítimo do poder pessoal.” (​idem​, p. 120) O autor de Cartas da
Inglaterra e admirador da fôrma inglesa via como única forma de governo legítimo, para
além da monarquia parlamentarista inglesa que reivindicou em seus primeiros anos, a
“outra face da mesma tradição”, de “instituições liberais [...] mas adiantadas em
liberdade”​ ​(​idem​):​ ​a​ ​República​ ​dos​ ​Estados​ ​Unidos.
Nabuco também era profundamente inspirado pelo modo inglês de
ordenamento, que aparecia no cenário do liberalismo oitocentista como dono de “um
império que cobria a quarta parte do mundo, terra da liberdade civil, governada por
uma aristocracia ilustrada e patriótica” e como inquestionável “vanguarda do processo
civilizatório” alcançada de modo “ordeiro e pacífico” (LYNCH, 2012, p. 288). De fato,
Maria Emilia Prado, em seu artigo O cavaleiro andante dos princípios e das reformas,
ressalta esse respeito pelo parlamentarismo inglês e um grande temor pelo processo
histórico francês, citando o relato de sua estadia na Europa descrito em Minha
Formação:
O que deixa tão funda impressão na Inglaterra é, antes
de tudo, o governo da Câmara dos Comuns; a
suscetibilidade daquele aparelho, ainda perante as mais
ligeiras oscilações do sentimento público, a rapidez de
seus movimentos [...] Mais ainda, porém, do que a
Câmara dos Comuns, é a autoridade dos juízes.
Somente na Inglaterra, pode-se dizer, há juízes. [...] O
juiz sobreleva à família real, à aristocracia, ao dinheiro,
e, o que é mais do que tudo aos partidos, à imprensa, à
opinião [...] Esta é, a meu ver, a maior impressão de
liberdade que fica da Inglaterra. O sentimento de
igualdade de direitos, ou de pessoa, na mais extrema
desigualdade de fortuna e condição, é o fundo da
dignidade​ ​anglo-saxônica.​ ​(NABUCO,​ ​p.​ ​37)

Já foram tecidas aqui breves reflexões no terceiro subcapítulo deste texto (ver
Embates políticos e origens teóricas) que apontam nesta direção, mas no jogo de
acusações do debate público dos autores que este trabalho propõe salientar, mais uma
vez e apesar das aproximações, as mais profundas distinções de influências
inter-oceânicas​ ​entre​ ​Nabuco​ ​e​ ​Barbosa.
Sob a perspectiva sociológica, Nabuco não preocupava-se em afirmar e acusar
que “o maior erro que se pode cometer em política” é “o de copiar, de sociedades
diferentes, instituições que cresceram.” (NABUCO, 1949, p. 130) Este erro, uma breve
análise pode constatar, seria exatamente o que Barbosa cometeria em suas aspirações
republicanas no Brasil. Suas intenções de realocar aqui as formas norte-americanas
nunca foram veladas, na tradição tipicamente americanista de, por exemplo, Tavares
Bastos - de fato, o bahiano “fez de tudo para assegurar que a nova ordem
expremisse-se conforme as instituições liberais dos Estados Unidos” (LYNCH, 2008, p.
120) Como seu próprio tratado abolicionista já indicava, a preocupação jurídica do
Direito Internacional Comparado era uma constante em reflexões barboseanas, o que o
tornava mais propenso a buscar implementar aqui o sucesso estadunidense. Nabuco
chegou mesmo a falar em direção a este fenômeno em tom preocupado, entendendo
que tal adaptação cegara os constituintes ao “estado real do povo como um todo”,
tornando a Constituição de 1891 um idealismo jurídico que buscava “forçar a nação”
em​ ​seus​ ​moldes.​ ​Nas​ ​palavras​ ​de​ ​Christian​ ​Lynch:
A crítica contra a tabula rasa efetuada pela Constituinte
visava seu antigo colega e agora adversário, Rui
Barbosa, que, segundo Nabuco, ‘não era um
organizador, um criador de instituições, mas um copista
de gênio [...] cujo fundo indestrutível, fixo, era
parlamentar, anglo-saxônico, monárquico, prestou-se a
dar à República Federativa uma constituição Americana,
que lhe teria dado qualquer outra que ela quisesse. Era
uma questão de estante, nada mais”; e condenava o
procedimento adotado por rui Barbosa: ‘organizar a
forma republicana entre nós é adaptar instituições ao
gênio do país, o que importa desfazer tudo o que está
feito, refazer tudo o que está desfeito’. (LYNCH, 2008, p.
122)

Concomitantemente, Rui Barbosa lamentava que seu passado parceiro, então


dedicado ao mantenimento de tantas tradições aristocráticas e à reorganização do
regime republicano à luz da experiência monárquica, houvesse se afastado de suas
origens comuns anglo-saxônicas, desprezando a real função do parlamento britânico
enquanto controle do governo através de justificativas ligadas ao relativismo cultural e à
intuição​ ​sociológica,​ ​consideravelmente​ ​desprezados​ ​pelo​ ​bahiano.
Em outras palavras, Barbosa se acreditava em uma luta ao lado do progresso
histórico da liberdade e na busca de “romper com a moldura intelectual francesa do
pensamento brasileiro, substituindo a centralização pelo federalismo, o
parlamentarismo pelo presidencialismo, a justiça administrativa pelo poder Judiciário
autônomo, o Conselho de Estado e o Tribunal de Cassação por um Supremo Tribunal
Federal e o poder Moderador, pelo controle normativo da constitucionalidade.” (​idem​, p.
120) Nesta sua grandiosa cruzada, o antigo correligionário aparecia agora como
inimigo.

CONSIDERAÇÕES​ ​FINAIS
Este trabalho se propôs a, através de análises de fontes secundárias e sínteses que o
antecedem, discorrer sobre aproximações e afastamentos entre dois grandes liberais
de​ ​nosso​ ​II​ ​Reinado.
As limitações deste formato metodológico pretendem-se corrigidas em outro
momento, quando os autores em si tomarem o protagonismo de nossas fontes e,
através de uma aproximação cuidadosa da interpretação intencionada por eles, suas
ideias ganhem voz e sejam articuladas de modo a esclarecer este grande debate de
nosso pensamento político brasileiro - nas palavras de Lynch, “a primeira encruzilhada
da​ ​democracia​ ​brasileira”.
Também são limitações compreendidas e declaradas aquelas que concernem a
confirmação parcial de nossa hipótese: para uma afirmação de maior peso,
necessitaríamos de definições bem mais baseadas e discutidas com a literatura
corrente sobre ideias como “liberalismo francês”, “liberalismo europeu” e “liberalismo
anglo-saxão”. Para este trabalho, bastou-se apontar que estes ​links ​estão manifestos
em linhagens de pensamento, influências intelectuais e teóricas de pensadores e
textos, modos de uso do instrumental liberal e, principalmente para o tema aqui
discutido,​ ​propostas​ ​institucionais.
Nestes termos, o liberalismo de Joaquim Nabuco, preocupado com o
ordenamento social, com as tradições aristocráticas e a reorganização do regime
republicano à luz da experiência monárquica, de teor altamente sociológico e
contextual, fundado em seu princípio de “idealismo prático” é um liberalismo que se
atrai profundamente pela experiência monarquica parlamentar britânica, mas ao
mesmo tempo se rende à tentação francesa dos princípios intermediários e se torna
defensor de uma centralização aristocrática. Concomitantemente, o liberalismo de Rui
Barbosa, também admirado pelos britânicos, mas muito mais embebido na forma
anglo-saxônica do liberalismo, vê nos Estados Unidos uma face mais avançada do
progresso histórico da liberdade e, guiado pelo seu espírito jurídico, formalista e
legalista, fruto de sua tradição doutrinária e ortodoxa liberal, dedica boa parte de sua
vida política ao partido da república e da transição fiel das instituições
norte-americanas​ ​para​ ​o​ ​Brasil.
Nesta disputa, o golpe de 1889, que ganhou o título elogioso de Proclamação da
República, marcou a grande vitória de Rui Barbosa e a grande viagem ao sul do ideário
estadunidense. Estas reflexões teóricas, porém, estariam longe de seu fim, e tomariam
novas formas em Barbosa quando este se torna um grande crítico da experiência
republicana, se aproximando deste Nabuco que aqui analisamos; já o Nabuco do
século XX, quando dedicado ao seu panamericanismo, traça reflexões cada vez mais
simpáticas​ ​ao​ ​modelo​ ​yankee​.
Depois de dez anos de desentendimento, os trópicos haveriam de unir mais uma
vez​ ​os​ ​espíritos​ ​do​ ​progresso​ ​brasileiro.

REFERÊNCIAS​ ​BIBLIOGRÁFICAS
DAS NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira. Liberalismo político no Brasil: ideias,
representações e práticas (1820 - 1823). In: GUIMARÃES; PRADO (Org.) ​O liberalismo
no Brasil Imperial. ​Origens, conceitos e práticas. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2ª
edição:​ ​ ​2013.​ ​p.​ ​73-101
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole. In: A interiorização da
metrópole​ ​e​ ​outros​ ​estudos.​ ​São​ ​Paulo:​ ​Alameda​ ​Casa​ ​Editorial:​ ​2005.​ ​p.​ ​7-37
LYNCH, Christian Edward Cyril. A primeira encruzilhada da democracia brasileira: os
casos de Rui Barbosa e de Joaquim Nabuco. In: Rev. Sociol. Polít. Curitiba, v. 16,
número​ ​suplementar:​ ​agosto​ ​2008,​ ​p.​ ​113-125
LYNCH, Christian Edward Cyril. O Império é que era a República: a monarquia
republicana​ ​de​ ​Joaquim​ ​Nabuco.​ ​In:​ ​Lua​ ​Nova,​ ​São​ ​Paulo,​ ​85:​ ​2012.​ ​p.​ ​277-311

PRADO, Maria Emilia. O cavaleiro andante dos princípios e das reformas: Joaquim
Nabuco e a política. In: ___. (Org.) O Estado como vocação​. Idéias e práticas políticas
no​ ​Brasil​ ​oitocentista.​ ​Rio​ ​de​ ​Janeiro:​ ​Acess,​ ​1999.​ ​p.​ ​239-66

CINTRA, Wendel Atunes. Liberalismo, justiça e democracia: Rui Barbosa e a crítica à


primeira​ ​república​ ​brasileira.​ ​In:​ ​Lua​ ​Nova,​ ​São​ ​Paulo,​ ​99:​ ​2016,​ ​p.​ ​201-231
(NABUCO,​ ​p.​ ​37)
(NABUCO,​ ​1949,​ ​p.​ ​130)

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