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RESUMO
Em contexto de contestação política e do advento inequívoco daquilo que comumente
passou a se denominar modernização em terras brasileiras, duas surgem como figuras
representativas de ideologias de transformação social normalmente classificadas sobre
a terminologia de liberalismo. Em uma análise mais próxima, percebe-se que, apesar
das aproximações, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa representam, no espaço delimitado
do II Reinado e da discussão pré-89, pólos diferentes de propostas de futuro. Este
trabalho trata de compreender, através de fontes secundárias e de síntese, quais são
as principais diferenças entre estes pensadores manifestas em suas discussões sobre
o Estado durante tal período, apontando para a existência de liberalismos no plural,
influenciados, com maior intensidade e respectivamente, pelo ideário europeu
teoricamente francês e institucionalmente britânico e pelo modelo ideológico
anglo-saxão e organizacional estadunidense.
Palavras-chave: liberalismo; pensamento político brasileiro; segundo reinado;
proclamação da república; Joaquim Nabuco; Rui Barbosa; modernização
INTRODUÇÃO
Este projeto de pesquisa tem por objetivo a construção de uma análise comparativa
entre as ideias de dois dos grandes intelectuais brasileiros do II Reinado responsáveis
por um dos principais debates referentes ao processo constituinte de 1891 e à
Proclamação da República de 1989: Joaquim Nabuco e Rui Barbosa. Mais
especificamente, se propõe a entender como os autores articularam em seu
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Bruno Veçozzi Regasson, graduando de Ciências Sociais - Bacharelado pela Universidade Federal de
Santa Maria, sob orientação do Doutor Reginaldo Perez.
pensamento a ideia de Estado, seus signos, suas leituras, bem como resgatar daí o
diagnóstico descritivo, empírico e crítico proposto por ambos para o Estado enquanto
realidade institucional no Brasil recém declarado independente.
Inseridos em um turbulento contexto histórico, Nabuco e Barbosa têm o
potencial de serem figuras chave para a compreensão da dinâmica da modernização
brasileira. Suas posições históricas enquanto liberais ativos e proponentes no debate
público os tornam figuras de análise para um quadro maior de reformulação ou até
mesmo desintegração do luso-brasileirismo, desafios da construção de um mito
nacional, integração territorial e centralização política, independências
latino-americanas e ainda de importação dos principais paradigmas então
contemporâneos da política ocidental. Este último elemento em especial, esta hipótese
propõe, revelará nos escritos de Nabuco e Barbosa sobre o Estado significativas
diferenças de propostas, visões e ideias: um monarquista constitucional que bebe da
Europa suas principais influências e um republicano tipicamente americanista.
Através de uma revisão bibliográfica do principal que se têm produzido sobre os
autores, propõe-se, portanto, encontrar as diferenças e semelhanças entre os
liberalismos de Joaquim Nabuco e Rui Barbosa.
DOIS NABUCOS?
Para propor uma compreensão das sínteses mais canônicas dos pensamentos de
Nabuco e, por consequência, situar este trabalho em um eixo interpretativo que guiará
a ênfase bibliográfica, será tomado como referência de revisão literária aquela
realizada por Christian Lynch em seu artigo O Império é que era a República.
É bem verdade que Joaquim Nabuco pode facilmente ser compreendido como
um escritor que se preocupou em três momentos diferentes com três grandes temas
que passaram a protagonizar suas reflexões e seus textos: o abolicionismo (na década
de 1880), o monarquismo (na década de 1890) e o panamericanismo (na década de
1900). O que se tornou recorrente na análise de seu pensamento político, porém, foi
uma visão mais radical sobre alguma espécie de ruptura drástica entre aquele Nabuco
que lutou pelo fim da escravidão no Brasil e aquele que se tornou um dos intelectuais
mais abertamente defensores da monarquia. Esta análise compreende que “depois de
1889 Nabuco teria chafurdado num lamentável conservadorismo [...] afogando as
mágoas da queda da monarquia nos braços do catolicismo militante” (LYNCH, 2012, p.
278). Essa leitura pode ser encontrada em muitos lugares: no seu biógrafo Luís Viana
Filho, que o acusa de um “romantismo incurável”, um “excesso de imaginação
idealista”; no crítico literário Antonio Candido, que denuncia um “aristocratismo
crônico”, no típico jargão marxista do reducionismo às consciências de classe; em
Angela Alonso, que retoma Candido e contém o progressismo oitentista do autor à sua
“vaidade”; em Marco Aurélio Nogueira, que lamenta o momento de cegueira de Nabuco
ao “processo global”.
Este trabalho se alinha, porém, na crítica de Lynch a estas interpretações “de
corte evolucionista e positivista”, que Wanderley Guilherme dos Santos entenderia
como uma perspectiva de matriz sociológica, em contraposição com matrizes
institucionais e - as aqui adotadas - ideológicas. Estes enfoques poderiam ser
deduzidos de equívocos como
a falta de familiaridade com a cultura liberal Oitocentista;
um intencionalismo mal-entendido, descontextualizado
ou anacrônico; a persistência de métodos evolucionistas
que aprisionam seu pensamentos nas malhas do
psicologismo ou dos supostos vínculos de classe.
(LYNCH, 2012, p. 281)
Como Maria Emilia Prado bem coloca “interessa-nos dar voz ao autor para que
ele mesmo nos fale das suas crenças, hesitações, dúvidas e idéias, enfim, o modo
como via o Brasil, as mudanças que preconizava e sua ação política.” (PRADO, 1999,
p. 241) Deste modo, a bibliografia que nos servirá de base para uma primeira
aproximação do debate, ainda que secundária, será aquela que valoriza a formulação
dos pensamentos dos autores a partir de seus próprios termos, em uma perspectiva
mais generosa com a autonomia intelectual e de virtudes dos objetos de estudo. Ainda
que, por hora, este enfrentamento não se dê diretamente com as fontes mais
adequadas - ou seja, as obras originais dos autores -, crê-se aqui possível a
aproximação com esta vocalização através de vias secundárias.
Sob esta ótica, “o segundo Nabuco se acha movido pela mesma preocupação
do primeiro, diante, todavia, de uma conjuntura diferente” (LYNCH, 2012, p. 284). Esta
chave de interpretação, assim como unifica Nabuco em suas complexidades sem
nunca propôr um desenvolvimento completamente linear e unívoco, nos servirá para
compreender um Rui Barbosa enfrentando os dilemas do legalismo e do
institucionalismo na alvorada da República brasileira.
Já foram tecidas aqui breves reflexões no terceiro subcapítulo deste texto (ver
Embates políticos e origens teóricas) que apontam nesta direção, mas no jogo de
acusações do debate público dos autores que este trabalho propõe salientar, mais uma
vez e apesar das aproximações, as mais profundas distinções de influências
inter-oceânicas entre Nabuco e Barbosa.
Sob a perspectiva sociológica, Nabuco não preocupava-se em afirmar e acusar
que “o maior erro que se pode cometer em política” é “o de copiar, de sociedades
diferentes, instituições que cresceram.” (NABUCO, 1949, p. 130) Este erro, uma breve
análise pode constatar, seria exatamente o que Barbosa cometeria em suas aspirações
republicanas no Brasil. Suas intenções de realocar aqui as formas norte-americanas
nunca foram veladas, na tradição tipicamente americanista de, por exemplo, Tavares
Bastos - de fato, o bahiano “fez de tudo para assegurar que a nova ordem
expremisse-se conforme as instituições liberais dos Estados Unidos” (LYNCH, 2008, p.
120) Como seu próprio tratado abolicionista já indicava, a preocupação jurídica do
Direito Internacional Comparado era uma constante em reflexões barboseanas, o que o
tornava mais propenso a buscar implementar aqui o sucesso estadunidense. Nabuco
chegou mesmo a falar em direção a este fenômeno em tom preocupado, entendendo
que tal adaptação cegara os constituintes ao “estado real do povo como um todo”,
tornando a Constituição de 1891 um idealismo jurídico que buscava “forçar a nação”
em seus moldes. Nas palavras de Christian Lynch:
A crítica contra a tabula rasa efetuada pela Constituinte
visava seu antigo colega e agora adversário, Rui
Barbosa, que, segundo Nabuco, ‘não era um
organizador, um criador de instituições, mas um copista
de gênio [...] cujo fundo indestrutível, fixo, era
parlamentar, anglo-saxônico, monárquico, prestou-se a
dar à República Federativa uma constituição Americana,
que lhe teria dado qualquer outra que ela quisesse. Era
uma questão de estante, nada mais”; e condenava o
procedimento adotado por rui Barbosa: ‘organizar a
forma republicana entre nós é adaptar instituições ao
gênio do país, o que importa desfazer tudo o que está
feito, refazer tudo o que está desfeito’. (LYNCH, 2008, p.
122)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho se propôs a, através de análises de fontes secundárias e sínteses que o
antecedem, discorrer sobre aproximações e afastamentos entre dois grandes liberais
de nosso II Reinado.
As limitações deste formato metodológico pretendem-se corrigidas em outro
momento, quando os autores em si tomarem o protagonismo de nossas fontes e,
através de uma aproximação cuidadosa da interpretação intencionada por eles, suas
ideias ganhem voz e sejam articuladas de modo a esclarecer este grande debate de
nosso pensamento político brasileiro - nas palavras de Lynch, “a primeira encruzilhada
da democracia brasileira”.
Também são limitações compreendidas e declaradas aquelas que concernem a
confirmação parcial de nossa hipótese: para uma afirmação de maior peso,
necessitaríamos de definições bem mais baseadas e discutidas com a literatura
corrente sobre ideias como “liberalismo francês”, “liberalismo europeu” e “liberalismo
anglo-saxão”. Para este trabalho, bastou-se apontar que estes links estão manifestos
em linhagens de pensamento, influências intelectuais e teóricas de pensadores e
textos, modos de uso do instrumental liberal e, principalmente para o tema aqui
discutido, propostas institucionais.
Nestes termos, o liberalismo de Joaquim Nabuco, preocupado com o
ordenamento social, com as tradições aristocráticas e a reorganização do regime
republicano à luz da experiência monárquica, de teor altamente sociológico e
contextual, fundado em seu princípio de “idealismo prático” é um liberalismo que se
atrai profundamente pela experiência monarquica parlamentar britânica, mas ao
mesmo tempo se rende à tentação francesa dos princípios intermediários e se torna
defensor de uma centralização aristocrática. Concomitantemente, o liberalismo de Rui
Barbosa, também admirado pelos britânicos, mas muito mais embebido na forma
anglo-saxônica do liberalismo, vê nos Estados Unidos uma face mais avançada do
progresso histórico da liberdade e, guiado pelo seu espírito jurídico, formalista e
legalista, fruto de sua tradição doutrinária e ortodoxa liberal, dedica boa parte de sua
vida política ao partido da república e da transição fiel das instituições
norte-americanas para o Brasil.
Nesta disputa, o golpe de 1889, que ganhou o título elogioso de Proclamação da
República, marcou a grande vitória de Rui Barbosa e a grande viagem ao sul do ideário
estadunidense. Estas reflexões teóricas, porém, estariam longe de seu fim, e tomariam
novas formas em Barbosa quando este se torna um grande crítico da experiência
republicana, se aproximando deste Nabuco que aqui analisamos; já o Nabuco do
século XX, quando dedicado ao seu panamericanismo, traça reflexões cada vez mais
simpáticas ao modelo yankee.
Depois de dez anos de desentendimento, os trópicos haveriam de unir mais uma
vez os espíritos do progresso brasileiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DAS NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira. Liberalismo político no Brasil: ideias,
representações e práticas (1820 - 1823). In: GUIMARÃES; PRADO (Org.) O liberalismo
no Brasil Imperial. Origens, conceitos e práticas. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2ª
edição: 2013. p. 73-101
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole. In: A interiorização da
metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda Casa Editorial: 2005. p. 7-37
LYNCH, Christian Edward Cyril. A primeira encruzilhada da democracia brasileira: os
casos de Rui Barbosa e de Joaquim Nabuco. In: Rev. Sociol. Polít. Curitiba, v. 16,
número suplementar: agosto 2008, p. 113-125
LYNCH, Christian Edward Cyril. O Império é que era a República: a monarquia
republicana de Joaquim Nabuco. In: Lua Nova, São Paulo, 85: 2012. p. 277-311
PRADO, Maria Emilia. O cavaleiro andante dos princípios e das reformas: Joaquim
Nabuco e a política. In: ___. (Org.) O Estado como vocação. Idéias e práticas políticas
no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Acess, 1999. p. 239-66