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HUYSSEN, Andreas. Passados presentes: mídia, política, amnésia. In: Seduzidos pela memória:
arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000, p.9-40.
Costuma-se lamentar que tenhamos de algum modo "perdido" uma sensação de que o
passado um dia já nos foi claro e seguro, em que a estabilidade primava sobre a instabilidade, em
algum momento pré-moderno. Para Huyssen, no entanto, a questão é outra: "Trata-se mais da
tentativa, na medida em que encaramos o próprio processo real de compressão do espaço-tempo,
para propiciar alguma extensão do espaço vivido dentro do qual possamos respirar e nos mover"
(p.30).
A memória de guerras, genocídios e atrocidades do século XX contribui para que, no final
do século, seja inviável qualquer tentativa de glorificar o passado. Isso levou a que, na virada do
século, houvesse um "aumento significativo de entropia na nossa percepção das possibilidades
futuras" (p.31). Outro processo que contribui para a entropia temporal é a questão do mal-estar, que
se dá em termos diferentes daqueles propostos por Freud no início do século. "Nosso mal-estar
parece fluir de uma sobrecarga informacional e percepcional combinada com uma aceleração
cultural, com as quais nem a nossa psique nem os nossos sentidos estão bem equipados para lidar"
(p.32). Quanto mais rápido somos empurrados para o futuro global que não nos inspira confiança,
mais forte é o nosso desejo de ir mais devagar e mais nos voltamos para a memoria em busca de
conforto" (p.32). (Aqui o autor não está replicando a ideia de compensação para situar a memória
nesse quadro?).
De todo modo, o paradoxo é que as memórias do século XX não oferecem esse conforto.
Isso coloca então a questão de saber quais as condições que temos para satisfazer "aquilo que
considero como a necessidade fundamental das sociedades modernas de viver em formas estendidas
de temporalidade e para garantir um espaço, conquanto permeável, a partir do qual possamos falar e
agir". Para Huyssen, a resposta é muito complexa, mas, "a memória - individual, geracional,
pública, cultural e, ainda inevitavelmente, nacional - certamente faz parte dela" (p.32).
Se a memória ocupa necessariamente um lugar, como garanti-la no contexto das novas
tecnologias de mídia – tanto em termos de arquivamento, quanto de transmissão? O autor traz como
exemplo a fala de um gerente de TI dos arquivos canadense: "É uma das maiores ironias da idade da
informação. Se não encontrarmos métodos de preservação duradoura das gravações eletrônicas, esta
poderá ser a era sem memória" (p.33). E continua Huyssen: "De fato, a ameaça do esquecimento
emerge da própria tecnologia à qual confiamos o vasto corpo de registros eletrônicos e dados, esta
parte mais significativa da memória cultural do nosso tempo" (p.33).
Se pensar a cultura da memória é pensar sobre a imaginação temporal, o impacto das mídias
deve ser visto com esse duplo olhar. Para Huyssen, tais impactos ocorrem na esteira de uma “crise
fundamental de uma estrutura de temporalidade anterior” (p.34), que marcou a “alta modernidade”
com sua fé no progresso. Segundo o autor, "muitas práticas atuais de memória atuam contra o
triunfalismo da teoria da modernização, nesta sua última versão chamada 'globalização'" (p.34).
Essa dimensão política reverbera também na historiografia. "Assim como a historiografia perdeu a
sua antiga confiança em narrativas teleológicas magistrais e tornou-se mais cética quanto ao uso de
marcos de referência nacionais par ao desenvolvimento do seu conteúdo, as atuais críticas de
memória, com sua ênfase nos direitos humanos, em questões de minorias e gêneros e na reavaliação
dos vários passados nacionais e internacionais, percorrem um longo caminho para proporcionar um
impulso favorável que ajude a escrever a história de um modo novo e, portanto, para garantir um
futuro de memória" (p.34).
"Mas, é claro, o passado não pode nos dar o que o futuro não conseguiu" (p.35). Surge então
o risco de uma "epidemia de memória", que leva o autor a voltar a Nietzsche. Mas com a ressalva
de que o atual boom memorial não é da mesma natureza que a febre do final do século XIX, que
poderia ser curada com esquecimento produtivo. Hoje, trata-se mais de "uma febre mnemônica
provocada pelo cibervírus da amnésia que, de tempos em tempos, ameaça consumir a própria
memória. Portanto, agora nós precisamos mais de rememoração produtiva do que de esquecimento
produtivo" (p.35). A isso o autor se refere à imagem de que a febre histórica do século XIX
funcionou para inventar tradições nacionais com vistas à legitimação dos estados-nação imperiais,
ao passo que "as convulsões mnemônicas da cultura do norte do Atlântico de hoje parecem em
grande parte caóticas e fragmentárias, à deriva através das nossas telas” (p.35). Isso suscita
problemas fundamentais, pois as práticas de memória cultural “expressam o fato de que a sociedade
precisa de ancoragem temporal, numa época em que, no despertar da revolução da informação e
numa sempre crescente compressão do espaço-tempo, a relação entre passado, presente e futuro está
sendo transformada para além do reconhecimento" (p.36).
Ao final do ensaio, Huyssen projeta algumas perspectivas de futuro a partir das reflexões
apresentadas. Para o autor, as práticas de memórias locais e nacionais contestam os mitos do
cibercapitalismo global com sua negação de tempo e espaço. "Sem dúvida, desta negociação
emergirá finalmente alguma nova configuração de tempo e espaço" (p.36). Mas isso também traz
um outro lado, sem o qual não é possível traçar uma imagem consistente do futuro global. A
memória continua tendo o seu aspecto próprio, que o autor chama de "memória vivida". “A
memória vivida é ativa, viva, incorporada no social - isto é, em indivíduos, famílias, grupos, nações
e regiões" (p.36). "Não há nenhuma dúvida de que a longo prazo todas estas memórias serão
modeladas em grande medida pelas tecnologias digitais e pelos seus efeitos, mas elas não serão
redutíveis a eles" (p.37). "Insistir numa separação radical entre memória 'real' e virtual choca-me
tanto quanto um quixotismo, quando menos porque qualquer coisa recordada - pela memória vivida
ou imaginada - é virtual por sua própria natureza" (p.37). O lado vivido da memória está em ela ser
"sempre transitória, notoriamente não confiável e passível de esquecimento; em suma, ela é humana
e social" (p.37). Dado que ela está sujeita a mudanças, ela não pode ser armazenada para sempre,
nem protegida seja em monumentos, seja em sistemas digitais de arquivamento.
"O tempo não é apenas o passado, sua preservação e sua transmissão" (p.37). Isso é
colocado para retomar a ideia de distinguir passados usáveis dos passados dispensáveis, para
afirmar que "precisamos de discriminação e rememoração produtiva" (p.37), acrescentando que a
mídia virtual não é essencialmente incompatível com esse propósito. Essa aposta é lançada para
lembrar que o medo e o esquecimento não pode nos dominar, e isso seria a condição para
lembrarmos do futuro, "em vez de apenas nos preocuparmos com o futuro da memória" (p.37).
Memória e verdade
Além dessa “musealização” (veremos que o termo é de Lübbe), a questão da verdade da
memória já se apresenta logo de início: "Mas ao mesmo tempo, é claro, nem sempre é fácil traçar
uma linha de separação entre passado mítico e passado real, um dos nós de qualquer política de
memória em qualquer lugar. O real pode ser mitologizado tanto quanto mítico pode engendrar fortes
efeitos de realidade" (p.16).