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Resumo: Este artigo se propõe a realizar uma reflexão sobre a dança, entendendo-a
como um sistema dinâmico complexo e instável, para então promover o entendimento
de que composição e configuração são ações simultâneas, que se formalizam no
instante da ocorrência da dança. O pensamento aqui pretendido sobre composição em
tempo real na dança, sugere que há um tipo de organização que se apresenta como
resultante de acordos, soluções temporais formalizadas por meio de auto-organizações
efetuadas em tempo real, ou seja, a dança que se tece no enquanto, como um
ambiente de ocorrências. Para construir os argumentos de tal proposição será proposto
que a articulação entre as imagens do corpo e as imagens digitais, se conectam e se
constituem como semânticas da dança, de modo que a sua gramaticalidade seja
construída no momento de sua feitura, através de interações que ocorrem entre
informações previstas e não previstas, promovendo novas estruturas e formalizações.
Figura 1. Anamorfose Interativa – Mostra de processos UFBA 2017. Foto: Caio Araújo.
A dança pensada nesse artigo é a que lida com as circunstancias que ocorrem
pela interação de informações no contexto e as informações não previstas. Essa
dança, dita em tempo real, compartilha de uma feitura que se faz no risco, ou seja, na
possibilidade de construção de novas estruturas, porque há dissipação, pela auto-
organização, onde o corpo não estabelece uma hierarquia, não é o que rege a
construção da configuração, mas há conexões possíveis que ocorrem entre
informações e que se formalizam, já que é na probabilidade que a auto-organização
acontece, tendo em vista que a dança formalizada em tempo real é fruto de processos
instáveis e dinâmicos.
1
Para um maior aprofundamento no conceito de Permanência ver a dissertação de mestrado de Adriana
Bittencourt Machado – A natureza da Permanência: Processos comunicativos complexos e a dança
(PUC-SP, 2001).
Sendo assim, neste trabalho, o que interessa é pesquisar o potencial que as
situações de instabilidade e imprevisibilidade na configuração da dança em tempo real,
podem promover para que a auto-organização, numa proposta de configuração e
composição como ações simultâneas, de dança. Ou ainda, para que a gramaticalidade
de uma dança seja construída no momento de sua feitura, através de interações que
ocorrem entre informações e que através da auto-organização apresentam novos
modos de estruturas e formalizações.
A Teoria geral de sistemas é na verdade uma prototeoria em desenvolvimento, inicialmente proposta pelo
biólogo belga Ludwig von Bertanlanffy. A T.G.S (como é comumente chamada) surge no decorrer de todo
século XX, constituindo-se, segundo VIEIRA (2015), de um conjunto de teorias tais como: a Teoria da
informação, a Cibernética, Teorias do Unwelten, Teorias dos Autômatos, Teoria das Estruturas
Dissipativas, Teoria das Catástrofes, Teoria dos Fractais e Teoria do Caos Determinista.
correlacionar com o modo de se pensar a dança, onde a ocorrência não é uma divisão
temporal, mas uma organização no processo.
Observa-se então que, o parâmetro composição, pode estar intimamente
vinculado à entropia8, ainda que a última não se restrinja à primeira, já que é condição
das relações no processo, para qualquer existente, mas pode ser pensado como uma
dimensão de um tipo de complexidade. Vale ressaltar que, o parâmetro composição
expõe as informações presentes no sistema, aquilo de que ele é feito.
Já o ambiente imediato9 é aqui entendido como o conjunto de todas as coisas
que se relacionam com os componentes do sistema. Diferenciando-se do ambiente
total, pois esse último engloba coisas que não fazem parte do sistema.
A estrutura consiste no número de relações e conexões que o sistema
estabelece em um dado instante no tempo. É importante também poder diferenciar os
dois tipos de estrutura observáveis em sistemas, sendo elas a interna e a externa.
“Todo sistema tem tanto uma estrutura do sistema (ou regime) e uma estrutura espacial
(configuração)” (BUNGUE, 1979, p.11), que embora sejam distintas, são
interdependentes.
Desta forma, através da análise da estrutura chega-se ao parâmetro
conectividade, que colabora na observação de aspectos de coesão, a síntese, que
podem ser pensados como uma construção da lógica de um sistema. Já o parâmetro
organização, sendo uma forma de complexidade, já indica a semântica do sistema, seu
sentido, o que se da a ver como organização. Coerência se encontra atrelada a síntese
que ocorre pela coesão das informações. Tal relação, que é imprescindível, presta-se a
identificar a gramaticalidade10 de um sistema. “Coesão e estrutura aproximam-se, em
Linguística, da ideia de Sintaxe. Coerência e Organização aproximam-se da
Semântica. É a coerência sistêmica que dá sentido às partes, constituindo o
substratum de toda significação” (VIEIRA, 2000, p.18).
Seja a definição de UYEMOV para sistemas: (m)S= df [R(m)] P, que é lida: seja
um agregado ou conjunto de coisa (m). Tal agregado ou conjunto será um sistema
7
A T.G.S. apresenta dois tipos diferentes de parâmetros: os básicos e/ou fundamentais, e os evolutivos.
Os básicos são: Permanência, ambiente e autonomia; e os evolutivos são: composição, conectividade,
estrutura, integralidade, funcionalidade e organização. Estes últimos obedecem uma hierarquia que
acompanha sua evolução permeados pelo parâmetro complexidade.
8
“A entropia é a grandeza que mede o grau de diversidade e sua tendência em crescer ou cair, de
acordo com a segunda lei da termodinâmica” (VIEIRA, 2015, p.26).
9
“Our definition of the environment of a system as the set of all things coupled with components of the
system makes it clear that it is the immediate environment, not the total one – i.e. the set of all the things
that are not parts of the system” ( BUNGUE, 1979, p.9).
10
A gramaticalidade corresponde às regras de um sistema de signos. Um sistema que tem
gramaticalidade inflexível e invariável apresenta baixa entropia, e o inverso também ocorre.
quando, por definição, existir um conjunto R de relações envolvendo os elementos do
agregado de modo que possam partilhar alguma propriedade P” (VIEIRA, 2000, p.14).
11
Corpo aqui é tratado numa perspectiva evolutiva, biológica e sociocultural.
12
Na concepção ontológica sistêmica de Mario Bungue (1979), todo sistema é subsistema de um outro
sistema, a não ser o universo. E mesmo aquilo que não é considerado um sistema, como as partículas
elementares da física, por exemplo, é componente de algum outro sistema.
sistema se encontra, por meio de séries temporais. Tal perspectiva, “exprime
quantitativamente a dependência entre os estados, ao longo do tempo, logo representa
um aspecto do que podemos chamar a função memória do sistema estudado” (BUNGE
apud VIEIRA, 1999, p.154). Assim, o tempo tem papel fundamental na evolução do
sistema, e é através da diferenciação entre seus estados que podemos identificar seus
aspectos.
Esta questão tem uma implicação que requer o entendimento de que numa
configuração em tempo real na dança, as informações que emergem como agregados
do sistema se relacionam e se organizam na simultaneidade dos seus acordos e
promovem conexões mais ou menos coesas, de modo que a organização possa
apresentar estruturas com diferentes níveis de integralidade 13 e funcionalidade14.
Assim, a configuração que vai se compondo no enquanto se formaliza no risco porque
não é o corpo/sujeito quem controla o que ocorrerá, mas as possíveis interações entre
as informações que emergem compondo o contexto.
“Não é nem o corpo e nem o ambiente que garantem a informação, mas no
acordo entre eles que se mantém em movimento de atualização. Sendo assim corpo e
ambiente se compõem em coautoria” (BITTENCOURT, 2012, p. 64).
Então, a diversidade de tipos de elementos do agregado, acarreta a ocorrência
da diferença, que é informação. Em configurações de dança a informação inexorável é
o movimento. Mas numa composição em tempo real, todos os agregados que
compõem o contexto fazem parte da construção da configuração. O que é diferente de
apresentar algo pronto em um lugar. Desse modo, a ideia de lugar se ausenta, para se
pensar em um ambiente compositivo de sínteses ou organizações provisórias em um
determinado espaço-tempo.
13
“A integralidade exprime a capacidade do sistema gerar ‘ilhas de alta conectividade’ entre seus
elementos, criando sistemas dentro do sistema (subsistemas), como um artifício para tornar-se mais
adaptativo, diminuindo o número de suas conexões. [...] a integralidade aumenta quando o número de
conexões entre os elementos do agregado diminui, tornando o sistema menos coeso e, portanto, mais
flexível” (BRITTO, 2009, p.74).
14
De acordo com Britto (2008) a Funcionalidade é a capacidade que um agregado possui em criar novas
funções ou propriedades a partir formação de subsistemas por meio da sua capacidade de Integralidade.
A configuração de dança tomada como referência neste estudo é o solo
Anamorfose Interativa15 (2016), de Ryan Lebrão em parceria com Enrique Franco 16.
Nesta configuração são utilizados projetores que exibem imagens captadas ao vivo e
processadas em tempo real por softwares que através de processos randômicos
selecionam e aplicam efeitos visuais e sonoros pré-programados ás imagens e sons
captados. Enquanto que o computador escolhe aleatoriamente os tipos de efeito
audiovisuais , sua ordem e tempo de exibição, o dançarino pode interagir com essas
imagens e sons, alterando suas características iniciais por meio do movimento de seu
corpo, pois também é utilizado um sensor infravermelho 17 responsável pelo
rastreamento de movimento, por meio do qual os movimentos do corpo do dançarino
são captados e transformados em informações digitais, que controlam as
características das imagens e sons exibidas em tempo real .
Figura 2. Anamorfose Interativa. Tela com programação, captura de movimento e visualização de efeitos durante
ensaio. Printscreen: Enrique Franco
15
Link para acessar o registro em vídeo de uma das apresentações da configuração de dança
referenciada: https://youtu.be/VlSYBSjA5eE
16
Enrique Franco Lizarazo é artista multimídia responsável pela programação visual, sonora e de
interação na obra referida.
17
O sensor utilizado é o Kinect do vídeo game Xbox360.
Há um tipo de jogo de interação, onde ao mesmo tempo em que o corpo é
referência para a criação das imagens digitais as imagens digitais oferecem estímulos
para o movimento no corpo. Assim a dança vai se formalizando como resultado da
relações entre as imagens e o corpo.
Ocorre uma espécie regime de retroalimentação onde corpo e imagens digitais
estão imbricados num processo de correlação. De modo que a captura e a projeção
das imagens e os sons do corpo ocorrem de forma simultânea e em tempo real,
enquanto que os movimentos do corpo do dançarino controlam parâmetros da exibição
das imagens e sons captados no instante.
Se o corpo opera num fluxo de informações, ele enuncia transformações de seus
estados, a cada momento. Portanto, não há certezas absolutas no modo como vão
ocorrer as relações do corpo com o ambiente já que não se pode ter controle total sobre
suas conexões: existem (também) instabilidades nos processos. Sendo assim, pode-se
supor que imprevisibilidades são possíveis de ocorrer no processo contínuo de
interações e há inúmeras possibilidades de respostas do corpo frente às situações não
planejadas que podem emergir (SIEDLER, 2012, p.43).
Não é para o corpo meramente um espaço físico disponível para ser ocupado,
mas um campo de processos em que, instaurado pela própria ação interativa dos seus
integrantes, produz configurações de corporalidade18 e ambiência19 (BRITTO, 2010, p.
14).
18
A corporalidade é entendida como a “resultante dos processos relacionais do corpo com outros corpos,
ambientes e situações, ao mesmo tempo em que, reciprocamente, é o que circunscreve as condições
disponíveis no corpo para formulação de uma dança” (BRITTO; JACQUES, 2003, p. 81).
19
“Ambiência, de modo geral, é o espaço físico, social, interpessoal que rodeia uma pessoa e que
influenciam o seu comportamento.
As possibilidades conectivas do conjunto de informações das danças que lidam
com a incerteza como ação criativa de composição não enunciam uma liberdade total
(vale tudo) nas maneiras como as relações podem ser efetivadas ao longo do tempo. As
conexões devem ocorrer de modo que garanta a permanência da lógica organizacional
da configuração (SIEDLER, 2012, p.62)
Para Mario Bunge (1979, p.6) uma conexão só ocorre entre dois elementos do
sistema, quando pelo menos um age sobre o outro, modificando o comportamento ou a
história deste outro. Nesse tipo de feitura de dança, é possível perceber as mudanças
de comportamento, pois as informações agem umas sobre as outras distribuindo as
possibilidades de soluções.
Em sistemas dinâmicos não lineares tais com a configuração de dança posta em
estudo, essas conexões passam por crises que geram as flutuações, perturbações que
tem a tendência de serem percebidas e ampliadas, ao em vez de serem suprimidas.
Esse fato lança o sistema em uma evolução em busca de um novo estado de
metaestabilidade, gerando, assim, novas estruturas por meio da auto-organização.
Quando tais perturbações são amplificadas, elas têm uma tendência a envolver
todo o sistema, provocando processos que se desenvolvem em larga escala, e não
mais apenas localizadamente. Isso corresponde ao que Prigogine nomeou como
“correlações de longo alcance”.
Assim a instabilidade visada pelo modo operativo proposto neste modo de
configuração em tempo real na dança, aposta em seu potencial para gerar e ampliar
tais perturbações (flutuações) durante o tempo da sua duração. Favorecendo-se dessa
capacidade de gerar tais relações de longo alcance, o sistema encontra meios para
gerenciar seus níveis de integralidade e organização.
20
O termo estrutura dissipativa foi introduzido pela primeira vez em 1967, por Ilya Prigogine em uma
comunicação intitulada Structure, dissipation and Life. “Nessa altura, deu-se finalmente conta de que,
juntamente com as estruturas clássicas de equilíbrio aparecem também, a uma distância suficiente do
equilíbrio, estruturas dissipadoras coerentes” (PRIGONINE, 1988, p.12).
irreversibilidade é uma propriedade comum a todo o universo: todos envelhecemos na
mesma direção” (PRIGOGINE, 1988, p. 36). Isso deixa evidente a existência da flecha
do tempo e da distinção intrínseca ente passado e futuro.
As estruturas dissipativas na composição em tempo real na dança, em razão das
condições instáveis sob as quais o sistema está operando, surgem, em meio a áreas
determinísticas, zonas de comportamento probabilístico, não lineares que são os
pontos de bifurcação. Neles muitas possibilidades de solução se apresentam aos
problemas que emergem no sistema.
“A não-linearidade implica a existência de soluções múltiplas. Nos pontos de
bifurcação, o sistema escolhe entre várias possibilidades. Aqui reside o significado da
auto-organização, um conceito básico na física do não-equilíbrio” (PRIGOGINE, 2009,
p. 26).
Ao tomar como referência esses conceitos oriundos da termodinâmica do não-
equilíbrio para se perceber um sistema dinâmico como a dança, e em particular ao
modo de configuração aqui pesquisado, acredita-se que estes conceitos funcionam
como um instrumental propício a promover estratégias criativas que atuam como um
mecanismos ampliadores de flutuações, instabilidades e incertezas na configuração em
tempo real na dança.
A auto-organização deste modo é a condição necessária para a construção
dessa dança em tempo real, onde as interações entre as imagens digitais e as imagens
do corpo são constituintes da configuração, já que a temporalidade indicia a todo
instante a necessidade de novos comportamentos que imprimem a construção de
novas estruturas.
Considerações finais
Referências
Ryan Lebrão. Dançarino, coreógrafo e diretor de produção. Graduado em Dança (2014) pela UNESPAR e
mestrando em Dança PPGdança na UFBA (2016-2018) onde é membro do grupo de pesquisa Laboratório
Coadaptativo LabZat. Tem como foco de investigação as relações entre corpo e tecnologias digitais na dança, a
dança contemporânea com estruturas improvisadas e o ensino e prática do contato improvisação. E-mail:
ryanlebrao@hotmail.com
Ryan Lebrão. Dancer, choreographer and production director. Graduated in Dance (2014) by UNESPAR and Master
in Dance PPGdança at UFBA (2016-2018) where he is a member of the research group Laboratory Coadaptativo
LabZat. Its research focuses on the relationships between body and digital technologies in dance, contemporary
dance with improvised structures and the teaching and practice of contact improvisation. E-mail:
ryanlebrao@hotmail.com
Adriana Bittencourt. Licenciada em dança e especialista em Dança pela Universidade Federal da Bahia UFBA.
Mestrado e Doutorado em Comunicação e Semiótica PUC/SP. Membro Permanente do Programa de Pós-
Graduação e Dança e membro do grupo de pesquisa Laboratório Coadaptativo LabZat. E-mail:
bittencourt.a@uol.com.br
Adriana Bittencourt. Graduated in dance and specialist in Dance by Federal University of Bahia UFBA. Master's and
Doctorate in Communication and Semiotics PUC / SP. Permanent Member of the Postgraduate and Dance Program
and member of the research group LabZat Coadaptative Laboratory. E-mail: bittencourt.a@uol.com.br