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ARTIGO ARTICLE 2339

Sociedade de risco e risco epidemiológico

Risk society and epidemiological risk

Olinda do Carmo Luiz 1,2

Amélia Cohn 3

Abstract Sociedade de risco

1 Faculdade de Medicina The concept of risk entails a broad discussion, Risco é um termo bastante recente e essencial-
do ABC, Santo André, Brasil.
2 Instituto de Saúde,
ranging from a more general approach, seeking mente moderno. Ele é reflexo da reorientação
Secretaria de Estado to contextualize it in the dynamic of societal das relações das pessoas com eventos futuros,
da Saúde de São Paulo, change, to a more specific approach in the field numa espécie de “domesticação dos eventos vin-
São Paulo, Brasil.
3 Faculdade de Medicina,
of health, particularly in epidemiological stud- douros” 1. Se antes da época moderna o perigo
Universidade de São Paulo, ies on associations. The term “risk” has appeared implicava fatalidade, agora ele é ressignificado
São Paulo, Brasil. with increasing frequency in medical journals em controle possível.
in the last three decades, but the phenomenon is A palavra risco data do século XIV, ganhando
Correspondência
O. C. Luiz not exclusive to health and is permeated by the conotação de perigo apenas no século XVI. Den-
Faculdade de diversity of a notion that hides a conceptual tre a polissemia do risco, Spink 1 destaca duas
Medicina do ABC.
Rua Loefgreem 1241,
gap. Given this diversity, the current paper be- dimensões. A primeira refere-se àquilo que é
casa 4, São Paulo, SP gins with a literature review to systematize the possível ou provável, numa tentativa de apre-
04040-031, Brasil. discussion of risk. The result is organized in ender a regularidade dos fenômenos. A segun-
olindaca@uol.com.br
three sections: 1) an overview of the discussion da encontra-se na esfera dos valores e pressu-
on risk within the debate on societal change in põe a possibilidade de perda de algo precioso.
the transition from modernity to a new phase of A incorporação da noção de risco foi fruto
social organization; 2) a summary of various de transformações sociais e tecnológicas. Está
uses of the risk notion in health knowledge; and articulada à laicização da sociedade e às trans-
3) the establishment of the epidemiological con- formações nas relações econômicas do capita-
cept of risk and its link to clinical medicine. lismo comercial, à abertura do comércio e ao
concomitante desenvolvimento de estruturas
Dangerous Behavior; Epidemiological Studies; políticas inéditas, como a soberania sobre ter-
Risk ritórios nacionais. É nesse contexto que emer-
ge também a teoria da probabilidade, outro fe-
nômeno associado à noção de risco. “O pensa-
mento probabilístico favoreceu o terreno neces-
sário para pensar os riscos como passíveis de ge-
renciamento” 1. O cálculo de risco está intima-
mente relacionado à conformação e valoriza-
ção da segurança.

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No campo da saúde, o risco individualiza- defeitos e problemas secundários. Se o questio-


se no que a autora denomina “autogerencia- namento se inicia no próprio campo da ciên-
mento”: supõe-se que as pessoas, valendo-se de cia, em determinado momento ele ganha o mo-
informações suficientes, adaptem seus com- vimento social reivindicando uma reflexão ética.
portamentos, eliminando todos os riscos e as- Em outro texto, Spink 4 aponta o surgimen-
sim alcancem a saúde plena. to, a partir da década de 50, de um campo inter-
Apoiada em revisão bibliográfica, Spink 1 disciplinar, denominado de análise de risco, que
periodiza três estágios de desenvolvimento da engloba três áreas de especialidade: o cálculo
modernidade: a pré-modernidade, a moderni- dos riscos (risk assessment), a percepção dos
dade clássica e a modernidade reflexiva. riscos pelo público e a gestão dos riscos. Uma
A característica da modernidade clássica – quarta área mais recentemente foi incorporada,
ou sociedade industrial – é a ruptura com a tra- a da comunicação ao público sobre riscos.
dição da pré-modernidade, dissolvendo estru- A gestão dos riscos é um fenômeno novo,
turas feudais, tais como os privilégios de hie- uma forma de governar populações, caracteri-
rarquia baseados em herança ou em afiliações zando o fim da sociedade disciplinar, ou da mo-
religiosas. dernidade clássica, e o princípio da moderni-
Por seu turno, a modernidade reflexiva, ou dade reflexiva, a sociedade de risco. Para cada
modernidade tardia, ou ainda sociedade de ris- risco identificado, criam-se agências governa-
co, como tem sido denominada por outros au- mentais reguladoras com a contratação de es-
tores, rompe com as estruturas da sociedade pecialistas e a formação de comissões técnicas
industrial, principalmente em relação à ciên- responsáveis pela avaliação dos riscos. Como
cia e à tecnologia, às formas de trabalho, ao la- decorrência, uma nova área de conhecimento é
zer, à família e à sexualidade. Apesar desses estabelecida com centros de pesquisa, associa-
rompimentos, certas estruturas próprias da ções científicas e periódicos especializados.
modernidade clássica se mantêm, rearticula- Nessa transição, muda a natureza dos ris-
das com a nova dinâmica social. Trata-se, por cos, que passam a ser mais complexos, produ-
exemplo, das desigualdades sociais que se apro- tos do desenvolvimento da ciência e da tecno-
fundam na modernidade reflexiva. logia, numa tendência à desterritorialização e
Os perigos introduzidos, induzidos e fabri- à globalização. Conseqüentemente, o caráter
cados pelo processo de modernização – um aci- sistêmico dos riscos e a consciência da sua im-
dente nuclear, a contaminação do mar, os po- ponderabilidade acabam por definir a necessi-
luentes que acabam com a camada de ozônio e dade de mecanismos complexos de gestão.
muitos outros – estão na base da definição da As formas de controle passam a necessitar
modernidade reflexiva como sociedade de ris- de redes interligadas de informação e surgem
co 2,3. Como característica dessa sociedade, sistemas de controle transdisciplinares, trans-
tem-se um processo de substituição das bio- departamentais e transnacionais. A ética deixa
grafias marcadas pela inserção em classe por de ser prescritiva e passa a ser dialogada, novas
biografias reflexivas, inscritas a partir de deci- modalidades de resistência emergem e, utili-
sões individuais, implicando uma diversidade zando os avanços da comunicação, ganham di-
de estilos de vida. Contudo, as desigualdades mensões globalizadas.
sociais se aprofundam; a estrutura da família Outra característica da sociedade de risco é
se altera, configurando “famílias negociadas”; o fato de que a informação prescinde, em gran-
as relações de gênero se modificam; a sexuali- de parte, da educação institucionalizada e pas-
dade se redefine, e assim por diante. Aparecem sa a ser um processo contínuo, capilar, que se
novos movimentos sociais como contraponto difunde através das várias tecnologias de infor-
às situações de risco, mas também como resul- mação. Essa capilaridade também implica no-
tado de uma busca por identidades sociais e vas formas de vigilância, traduzidas no auto-
pessoais, já que os referenciais de classe e fa- controle do estilo de vida e no monitoramento
mília se romperam. constante do indivíduo. Tal característica é de-
Outra característica importante da socieda- nominada gestão no nível da pessoa. Spink et
de de risco consiste na reflexividade: a revisão al. 5 destacam o papel fundamental da mídia
contínua com base em novas informações ou no processo de ressignificação da noção de ris-
conhecimentos de uma grande parte dos as- co, em decorrência da sua onipresença e da
pectos da vida social 1,2. Spink 1 mostra como grande visibilidade que confere aos aconteci-
exemplo o questionamento da ciência. O mé- mentos, difundindo a informação.
todo científico aplicado à natureza, às pessoas Há, no entanto, uma outra dimensão do ris-
e à sociedade vem progressivamente sendo con- co, expressa na conexão entre risco e aventura
frontado. Esse confronto tem evidenciado seus dos jogos de vertigem, como, por exemplo, as

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disputas de veículos off-the-road, como o Rali ciais pulverizadas e internalizadas, tendo co-
Paris-Dakar, ou as práticas de canoagem, esca- mo elemento fundamental as diversas concep-
lada, rapel e tantas outras que exaltam a velo- ções de risco. No entanto, o autor questiona que
cidade, a adrenalina e a obliteração da razão tenha havido o abandono de uma normativi-
pela concentração total na ação. Incluem-se dade disciplinar fixadora de regras por outra
nesta categoria as formas institucionais de ris- normatividade apenas reguladora, pautada pe-
co, sobretudo nas profissões que envolvem pe- la disseminação de subsídios para a tomada de
rigo, como bombeiros e guias de montanhas, decisões. Aponta que houve um aprofundamen-
mas também a gerência de risco de investi- to da disciplina com a pulverização e internaliza-
mentos financeiros 6. ção das formas de coerção e, como conseqüên-
Risco surge como conceito quando o futuro cia, tornou-se mais difícil a rebeldia, já que a
passa a ser entendido como passível de contro- disciplina menos visível é, ao mesmo tempo,
le. Na pré-modernidade e na modernidade clás- menos acessível ao pensamento. Uma discipli-
sica, a prevenção e a aposta são as duas moda- na cuja finalidade se conhece cada vez menos.
lidades da gestão de risco. Embora ambas se- Castiel 9 questiona o grau de sustentabilida-
jam resultados da crença na racionalidade, as de e validade das proposições dos autores que
formas de controle são distintas. Na prevenção, embasaram o texto de Spink perguntando se
a norma é o principal meio de controle do ris- seriam aplicáveis a contextos sociais diferentes
co; já na aposta, este consiste na tomada de de- daqueles em que foram formulados. Quando
cisão informada pelos cálculos de risco. tratam da natureza sistêmica dos riscos, os as-
Na transição para a sociedade de risco ou pectos das experiências da vida cotidiana e os
modernidade tardia, emerge o questionamen- aspectos simbólicos são pouco problematiza-
to quanto à possibilidade de controle do futu- dos. Já a idéia de reflexividade não dá conta das
ro, e a norma passa a ser substituída pela pro- dimensões sócio-culturais, como o sentimento
babilidade como forma de gestão. No espaço de pertencimento a grupos e rede sociais, o aces-
privado, a gestão dos riscos se desprende dos so a recursos materiais e a inclusão/exclusão
mecanismos tradicionais de vigilância das ins- nas relações de poder. Para Castiel 9, a moderni-
tituições disciplinares e centra-se no gerencia- dade tardia é marcada por cambiantes dimen-
mento de informações, gerando novos meca- sões e formas, ou seja, pela: “produção inces-
nismos de exclusão social. sante e engenhosa de novas tecnologias e corres-
A gestão na modernidade clássica é referida pondentes repercussões na ampliação e na velo-
a Foucault, ou seja, é o conjunto de regras e me- cidade de circulação das trocas econômicas, na
canismos de vigilância que implicam a consti- proliferação de estratégias de mediação comuni-
tuição de subjetividades que possibilitam o au- cacional, na multiplicação e diluição das matri-
tocontrole. Costa 7, em estudo sobre a consti- zes identitárias, no clima generalizado de ambi-
tuição da família e a higiene no Brasil do sécu- güidade quanto a perspectiva de orientação em
lo XIX com base nas formulações de Foucault, curto prazo e na crise de sentido” 9 (p. 1295).
sintetiza seu pensamento apontando a identi- A ambivalência e a estranheza são caracte-
ficação de dois tipos de controle no padrão de rísticas do tempo presente. Sua abordagem dá
comportamentos sociais: a lei e a norma. A lei margem a polêmicas e permite distintos enfo-
impõe comportamentos através do poder coer- ques, eventualmente antagônicos. Os temas são
citivo e punitivo, já a norma o faz através da ar- fugidios, e o vocabulário disponível consegue
ticulação dos saberes em práticas discursivas – apreender apenas parcialmente o que acontece
ciência, filosofia, literatura, religião etc. – se- ao nosso redor. As explicações não podem ser
gundo as finalidades de preservação do poder consideradas como verdadeiras ou falsas, pois
instituído. A norma também estimula, incenti- são aspectos da complexa realidade, não poden-
va e exalta determinados comportamentos, de do, portanto, ser tomadas como explicação da
forma a adaptar os indivíduos à ordem do po- totalidade. É preciso ter em mente que cada vez
der, produzindo características corporais, senti- mais as idéias e os conceitos são provisórios e
mentais e sociais. Essa conformação se dá atra- passíveis de controvérsias e imprecisões 10.
vés de regulamentos administrativos de con-
trole do tempo, de técnicas de organização ar-
quitetônica dos espaços e também através da Risco e saúde
forma como as instituições, como escola ou
hospital, organizam-se. Ao discutir o conceito de risco, largamente uti-
Ayres 8 reconhece que, na sociedade atual, lizado na área da saúde nos últimos trinta anos,
a contratualidade disciplinar explícita modifi- Hayes 11 identifica três vertentes da literatura.
cou-se em formas de pactuação e coerção so- A primeira é aquela denominada “Risco Indivi-

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dual” (health risk appraisal – HRA), que trata considera as políticas mais amplas de inclusão
do cálculo de risco pessoal projetado a partir social, como educação, acesso à água potável,
de estudos epidemiológicos e de estatísticas vi- condições de vida etc. Assim a RA como propos-
tais. São referentes a características pessoais, ta é inerentemente conservadora, por manter
tais como história familiar, hábitos, estilo de vi- o status quo nos países menos desenvolvidos.
da e outros. O objetivo da intervenção, neste De acordo com Skolbekken 12, a palavra ris-
caso, é a redução da mortalidade precoce atra- co tem ganhado freqüência nos jornais médi-
vés do estímulo à mudança de comportamen- cos nas últimas três décadas. Este autor tam-
tos tidos como de risco. bém aponta o fenômeno como heterogêneo,
Uma outra vertente da literatura nos estu- pois sua diversidade de fato esconde uma lacu-
dos de risco é a chamada “Abordagem de Risco” na conceitual. O que se vê é o resultado de um
(risk approach – RA), ou “Estratégia de Risco”. processo de construção em que o risco tem si-
Trata-se de uma proposta para alocação de re- do reificado, ou seja, estabelecido como um fe-
cursos, defendida pela Organização Mundial nômeno natural, identificado cientificamente,
da Saúde (OMS) no contexto do Programa Ma- e não como um produto da conduta humana.
terno-Infantil, de forma a maximizar a eficiên- O autor sugere que o aumento da freqüên-
cia de alocação dos recursos públicos nos paí- cia do termo risco verificado nos jornais médi-
ses menos desenvolvidos. Seu objetivo é a ga- cos pode estar relacionado a vários fatores, que
rantia de atenção especial na área da saúde aos incluem o desenvolvimento de disciplinas vol-
grupos menos favorecidos, ou seja, sob maior tadas para o cálculo de risco, expresso como
risco. A definição de risco na RA é mais difusa probabilidades estatísticas; o recente desenvol-
que na HRA, uma vez que envolve aspectos de vimento em tecnologia computacional; o ge-
atributos individuais e sócio-ecológicos. renciamento de risco; a segurança e a promo-
A terceira vertente da literatura, a “Análise de ção à saúde. Mas o mais importante nesse pro-
Risco” (risk analysis/assessment/management – cesso é que o controle do perigo, antes relacio-
RA/M), é muito mais genérica e indefinida que nado a fatores imprevisíveis, fatalistas, agora
as duas anteriores. Trata-se de pesquisas que aparece como passível de controle humano.
abordam o perigo do uso de tecnologias, a se-
gurança de produtos, a percepção do público
sobre risco etc. Risco epidemiológico
Uma conseqüência dessa multiplicidade de
abordagens é atribuída à lacuna conceitual re- Ainda no âmbito da saúde, alguns estudos so-
ferente ao risco. De fato, a noção de risco apre- bre risco concentram o enfoque na área da epi-
senta uma grande variação, assim como as con- demiologia. Sinteticamente, risco epidemioló-
cepções de saúde, sociedade e ciência a ela re- gico pode ser definido como a probabilidade
lacionadas. A diversidade também é uma ca- de ocorrência de um determinado evento rela-
racterística das técnicas e metodologias de me- cionado à saúde, estimado a partir do que ocor-
dida do risco nas pesquisas científicas. Termos reu no passado recente. Assim, calcula-se o ris-
como precursor, pré-condição, fator de risco, co quantificando o número de vezes que o even-
indicador de risco, probabilidade e outros são to ocorreu dividido pelo número potencial de
usados sem uma definição formal precisa. eventos que poderiam ter acontecido. Desta for-
De fato, risco muitas vezes refere-se a uma ma, por exemplo, o risco de morte numa deter-
possibilidade de ocorrência de um particular minada população – ou grupo de pessoas – é o
evento adverso. Em outras acepções, o termo é número de óbitos ocorridos no período ante-
incorporado como medida de impacto, poden- rior dividido pelo número de pessoas existen-
do ainda estar relacionado a diferenciais de tes nesta população naquele período, já que
morbidade ou mortalidade entre grupos com e qualquer um ou todos poderiam potencialmen-
sem um determinado atributo – tabagismo e te ter morrido. Para Castiel 9, risco pode ser ob-
risco à saúde, por exemplo. jetivado e delimitado em termos de possíveis
Subjacentes a essa indefinição conceitual, causas, além de ser quantificado através de ope-
existem interesses ideológicos 11. No HRA, a in- rações estatísticas, estabelecendo assim nexos,
tervenção sugerida pela concepção de risco se- associações e correlações. Considera-se fator
ria a mudança de estilo de vida individual e não de risco toda característica ou circunstância
medidas de âmbito estrutural que proporcio- que está relacionada com o aumento da proba-
nem o bem-estar das pessoas. Na concepção bilidade de ocorrência de um evento.
de RA, a redução das desigualdades seria o fo- Almeida Filho 13 aponta os múltiplos signi-
co principal, pretensamente alcançado pela es- ficados do conceito de risco. Na epidemiologia,
tratégia da atenção primária; no entanto, des- ele agrega significados do discurso social co-

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mum, a dimensão da probabilidade de ocor- to auxiliar. Na epidemiologia do risco, os estu-


rência de eventos ou fenômenos ligados à saú- dos passam a ter definição associativa, relacio-
de, sendo a idéia de dano subsidiária, presente nando eventos e imprimindo caráter especula-
apenas na sua origem. Assim, o autor aponta tivo às investigações; em adição, a matemática
três pressupostos básicos na proposição de ris- é utilizada para validar desenhos e categorias
co no campo científico da epidemiologia. O pri- de estudo, de forma a garantir uma objetivida-
meiro é a identidade entre o provável e o possí- de definida em termos matemáticos.
vel, traduzido pela quantificação de eventos da O contexto na área da saúde após a II Guer-
saúde e da doença. O segundo pressuposto é a ra Mundial é aquele em que emerge o preventi-
homogeneidade na natureza da morbidade, vismo, traduzido em práticas essencialmente
que acaba por ocultar a singularidade dos pro- derivadas de uma releitura da concepção am-
cessos concretos de saúde e doença. E por últi- pliada de determinação do processo saúde-
mo a expectativa de estabilidade dos padrões doença e apoiadas nos cuidados individuais.
de ocorrência dos fatos epidemiológicos, pres- As ações são aquelas de caráter assistencial, as
supondo uma recorrência dos eventos em sé- práticas educativas simplificadas, com pouca
rie. Dessa forma, a inferência permite a previ- incorporação de tecnologia especializada e pou-
são de ocorrência não só em tempos diferen- cos equipamentos materiais.
tes, como também em locais distintos daque- Outro pólo que se conforma no contexto da
les em que os riscos foram originariamente cal- saúde, principalmente nos Estados Unidos, é o
culados. A essa característica Almeida Filho 13 securitarismo, que basicamente consiste na
chama de ambigüidade. Ocorre ainda uma fu- responsabilização privada pela conquista e ma-
são entre os sentidos de determinante (fator de nutenção da saúde e do bem-estar. Apóia-se
risco) e de seu efeito (risco), oriunda do discur- nas dimensões individuais e naturalizadas do
so social comum, constituindo uma inconsis- processo saúde-doença e num sistema assis-
tência – figura de análise em que os significa- tencial altamente especializado com sofistica-
dos são instáveis e variáveis – e uma incoerên- da incorporação tecnológica. O acesso, nesta
cia – transgressão da lógica fundamental do doutrina, deve ser organizado segundo siste-
discurso ao qual se incorpora o conceito. mas meritocráticos de base atuarial.
No entanto, o risco na epidemiologia tam- “Ambas ‘doutrinas’ são indicadores de que os
bém se articula às contínuas mudanças na so- litígios decorrentes de rearranjos de poder ini-
ciedade. Buscando compreender as condições ciados antes da guerra e que, como não poderia
de emergência histórica e as implicações práti- deixar de ser, sofreram os impactos que sempre
cas do conceito de risco na epidemiologia, Ay- acompanham os momentos de crise, levaram a
res 14 identifica um primeiro momento, no fi- um predomínio do individual sobre o coletivo,
nal do século XIX e início do seguinte, em que do técnico sobre o político, do natural sobre o so-
o conceito de risco assumiu um caráter descri- cial, do médico-assistencial sobre o médico-sa-
tivo e indiretamente quantificado, apreendido nitário, do privado sobre o público” 14 (p. 236).
como “condição objetiva de sujeição de grupos Esse esvaziamento do caráter coletivo da
populacionais a epidemias ou a experiências saúde pública ocorre simultaneamente a mu-
desfavoráveis à saúde em geral” 14 (p. 292). Esse danças no perfil epidemiológico da população,
conceito ainda sobrevive hoje e se assemelha quando passam a predominar as doenças crô-
ao que Hayes 11 denominou como “Abordagem nicas, com a redução das doenças infecciosas.
de Risco” (risk approach) descrito anteriormen- A emergência do discurso do risco, e sua prin-
te. Num segundo momento, vinculado às ciên- cipal organização em torno das doenças crôni-
cias biomédicas, o conceito é assumido como cas, articula-se aos princípios individualistas e
condição de suscetibilidade individual, indi- tecnopragmáticos vinculados àquele momento
cando uma relação entre fenômenos indivi- da modernidade. Embora tenha havido diver-
duais e coletivos, e não mais uma condição po- sos movimentos de resistência na saúde, tanto
pulacional. Após a II Guerra Mundial, inicia-se nos Estados Unidos como na Inglaterra, eles não
a fase da epidemiologia do risco, quando o ca- lograram significado prático mais relevante,
ráter individual se acentua sobremaneira. O apesar da importante contribuição produzida.
risco passa então a designar probabilidades Nesse processo de mudanças, novas exigên-
quantificadas de suscetibilidade individual a cias e condições de validade normativa dos dis-
agravos, em virtude da exposição a agentes cursos médicos e sanitários são necessárias. A
agressores ou protetores. visão mais ampla da saúde torna-se incapaz de
Os estudos da primeira fase tinham defini- estabelecer consensos intersubjetivos sólidos,
ção populacional, caráter descritivo e utiliza- pouco potentes para estimular intervenções
vam os métodos matemáticos como instrumen- coletivas de natureza pública.

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A epidemiologia subordina-se às ciências temente, a quantificação e os recursos mate-


biomédicas de base clínico-laboratorial, numa máticos não passaram apenas a conferir con-
forte pressão em direção à especialização e à sistência interna aos estudos; na epidemiolo-
sofisticação tecnomaterial na apreensão e in- gia do risco, eles são a própria fonte de identi-
tervenção sobre patologias específicas. Se an- dade das construções utilizadas nos estudos.
teriormente a disciplina se ocupava igualmen- Um outro movimento em torno dos estudos
te da etiologia das doenças e das condições de epidemiológicos de risco inicia-se a partir da
sua manifestação coletiva, a partir da década década de 80. Uma importante corrente de pen-
de 50 cada vez mais passará a se ocupar de in- samento dentro da epidemiologia ganha des-
vestigar centralmente as relações causais, fa- taque no campo científico. Denominada epide-
zendo parte, assim, do conjunto das discipli- miologia clínica, seus teóricos salientam as in-
nas biomédicas e tendo como objeto principal ter-relações da clínica com a epidemiologia, bus-
as doenças crônicas. cando uma nova forma de prática médica 15,16.
A guerra e suas conseqüências fizeram Com o aprofundamento das dificuldades
emergir o questionamento do poder construti- para controlar os custos da assistência médica,
vo e racionalizador da ciência e da tecnologia. valorizou-se a importância da efetividade da
Radicalizou-se a tendência que procurava a va- abordagem individual: “a tensão entre a deman-
lidade das ciências na sua processualidade e da por atendimento e os recursos para provê-lo
não mais a validação nas fontes de conheci- ampliaram a necessidade de informações mais
mento ou nas suas finalidades últimas. E a epi- qualificadas sobre a efetividade clínica no esta-
demiologia acompanha esse processo, aban- belecimento de prioridades de saúde. (...) Varia-
donando sua identidade centrada na busca das ções no atendimento observadas entre os clíni-
regularidades dos fenômenos de massa e pas- cos e entre várias regiões, não explicadas por ne-
sando a adotar uma identidade metodologica- cessidades dos pacientes e não acompanhadas
mente construída. O discurso se formaliza em por diferenças paralelas nos desfechos, levan-
torno da especialização técnica, por um lado, e tam a questão de quais são as práticas clínicas
provoca uma progressiva indeterminação teó- de maior utilidade” 16 (p. 9).
rica, por outro. Os pressupostos da epidemiologia clínica
Um intenso debate em torno das associações podem ser assim resumidos: (i) as decisões clí-
(um fator associado a um efeito) acaba por con- nicas são permeadas por incertezas, e medidas
ferir aos estudos epidemiológicos um estatuto são adotadas sem o conhecimento real de seu
logicamente equivalente às ciências experimen- impacto; (ii) a experiência clínica e os conheci-
tais e seus resultados controlados. O relaciona- mentos sobre os mecanismos das doenças e
mento de eventos e as condições técnicas de das intervenções são importantes, mas insufi-
controle da incerteza em estudos observacio- cientes para o raciocínio clínico; (iii) é neces-
nais possibilitaram à epidemiologia adquirir o sário encontrar evidências em pesquisas plane-
estatuto de validade necessário em face das jadas para reduzir as incertezas nas decisões,
mudanças científicas da época. O cálculo do cujos resultados devem ser integrados aos co-
risco consolida-se então como elemento con- nhecimentos acumulados sobre os mecanis-
ceitual nuclear nos estudos de associações. mos de doenças e as experiências clínicas pes-
Em decorrência, a unidade lógica passa a soais; (iv) os valores atribuídos aos riscos, be-
ser o indivíduo. Não se busca mais a suscetibi- nefícios e custos das intervenções devem ser
lidade geral das comunidades a processos es- ponderados.
pecíficos, mas a influência de processos gerais Desta forma, métodos e técnicas da epide-
em indivíduos específicos. O risco, elemento miologia, dentre eles o cálculo de risco, são apli-
central da argumentação, permite organizar em cados a questões tais como: acurácia dos mé-
torno de si as constatações da epidemiologia. todos diagnósticos, fatores associados ao risco
No entanto, já não é mais o risco qualificador de doença, prognósticos, tratamentos, medi-
do caráter coletivo de uma determinada reali- das de prevenção, etiologia e custos.
dade; ele é a “expressão formal e probabilística Colocando-se como interface da epidemio-
do comportamento de freqüências de determi- logia e da clínica, a epidemiologia clínica vem
nados eventos de saúde quando inquiridos a recebendo críticas de ambas as partes. É fre-
respeito de associações particulares” 14 (p. 282). qüente a sua rejeição por parte dos clínicos,
Acompanhando essa mudança conceitual principalmente por supostamente desvalorizar
do risco epidemiológico, a disciplina foi gra- sua experiência – e por conseqüência sua com-
dualmente prescindindo do conceito de meio, petência – pessoal e por desacreditar certezas
que se tornou cada vez mais um elemento resi- cultivadas durante anos de prática. Além disso,
dual no discurso epidemiológico. Concomitan- ao problematizar os custos da assistência, é

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acusada de articular-se ao movimento das gran- ta intervenção coletiva. O estilo de vida é trans-
des empresas médicas buscando reduzir gas- formado em variáveis isoladas e quantificado
tos com prejuízo da qualidade no atendimento. de forma a facilitar a intervenção através da
As objeções mais elaboradas à vertente da promoção de programas de controle que visam
epidemiologia clínica, no entanto, são encon- somente à mudança do comportamento indi-
tradas no próprio campo da epidemiologia. vidual com relação à exposição aos fatores de
Almeida Filho 13 e Barata 17 apontam que a risco.
epidemiologia clínica aparece como uma relei- Goldbaum 19, no entanto, reconhece a im-
tura da epidemiologia, como uma proposta de portante contribuição que esses estudos têm
superação dos impasses da clínica e da epide- trazido para o controle das doenças; sua ressal-
miologia, tentando adequá-la, assim, aos im- va refere-se ao processo de transposição dos
perativos da abordagem clínica individual, obs- resultados para a formulação de propostas de
curecendo o caráter social, próprio da discipli- intervenção, que não deve ser restrito ao com-
na. Admite-se, portanto, na epidemiologia clí- portamento individual, mas articulado a ou-
nica que os indivíduos manifestariam a média tros elementos explicativos, antes de ser tradu-
dos atributos de uma população, ou seja, seus zido em ações. Aponta que os estudos, quando
riscos e fatores de risco. restritos a esse enfoque, limitam a abrangência
“Ao reduzir a investigação epidemiológica da disciplina.
aos estudos de eficácia de procedimentos diag- Contrapondo-se à tendência da epidemio-
nósticos e terapêuticos aplicados a grupos de logia em restringir sua atuação aos estudos etio-
pacientes, constituídos com base apenas no fato lógicos e aos cálculos de risco, Castellanos 20
de serem portadores de doença, a epidemiologia busca enfatizar outras áreas de atuação da dis-
clínica opera sua redução mais significativa na ciplina. Ao sistematizar seu âmbito, identifica
realidade, excluindo do campo médico os estu- os estudos causais ou explicativos, com sua ên-
dos em que o caráter social do processo saúde- fase no cálculo de risco, como uma dentre qua-
doença possa ser evidenciado” 17 (p. 559). tro aplicações da disciplina. As demais áreas
Diversos autores, ao reconhecerem a confi- são: estudos da situação de saúde; vigilância
guração do conceito de risco e os estudos etio- epidemiológica e avaliação de serviços, progra-
lógicos como elemento central na estruturação mas e tecnologias de saúde.
da epidemiologia, buscam também ressaltar Os autores supracitados criticam os aspec-
outras dimensões da disciplina. tos considerados hegemônicos no âmbito da
A epidemiologia, mais que o estudo da saú- disciplina. Ayres 21 lembra o caráter histórico
de e da doença em populações, deve ocupar-se do processo de constituição da ciência epide-
do estudo dos fenômenos de saúde-doença de miológica, em que é “instituinte e instituída no
populações 18. Castellanos 18, ao se referir aos processo de emancipação e hegemonia da di-
estudos ecológicos, identifica dois tipos de abor- mensão tecnológica da razão” 21 (p. 70), eviden-
dagem: a que toma a população como unidade ciada no contexto da consolidação das ciências
de análise e como universo de estudo, e aquela da saúde a partir do século XIX.
em que os riscos individuais são definidos a Apesar das amplas críticas, a epidemiolo-
partir dos valores médios de um grupo. Este úl- gia, articulada ao processo histórico mais ge-
timo tipo de abordagem apresenta pouca po- ral, ganhou o estatuto de ciência através da con-
tência para validar hipóteses de risco ou predi- solidação do conceito de risco, fundamental-
toras. A epidemiologia contorna esse problema mente na estruturação de sua dimensão meto-
procurando reduzir ao máximo possível a va- dológica, uma identidade metodologicamente
riação individual entre os grupos em estudo, construída. Essa vertente passou a ser conside-
permitindo o estabelecimento de correlações, rada como ortodoxa, na acepção apresentada
controlando as variáveis e processos coletivos, por Bourdieu 22: o pólo dominante da discipli-
restringindo o seu alcance na compreensão do na, onde ocorrem as práticas de conservação
processo saúde/doença do ponto de vista so- do capital social e de definição do que é consi-
cial e coletivo. derado como ciência legítima, através das ins-
Ainda nessa linha, Goldbaum 19 constata a tituições de ensino, publicações científicas e da
tendência de os estudos epidemiológicos pro- definição de critérios para escolha de proble-
curarem estabelecer relações entre a ocorrên- mas a serem investigados, da metodologia e da
cia de doenças e o estilo de vida de indivíduos, interpretação dos resultados.
identificando hábitos nocivos à saúde, como Por enfatizar as associações entre fatores e
fumo, álcool, obesidade, entre outros. Esse tipo efeitos, as funções de ocorrência nos estudos
de abordagem acaba por promover práticas ex- etiológicos, o método epidemiológico passa a
clusivamente individuais, recobertas de supos- ser incorporado pelos estudos nas demais áreas

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da medicina, sendo freqüentes as análises de a revisão contínua a partir de novas informa-


associações nos mais diversos tipos de estudos ções ou conhecimentos de uma grande parte
médicos. Assim, a etiologia de uma determina- dos aspectos da vida social. Estas idéias, de cer-
da doença que se insere em seu campo especí- ta forma, também estão presentes nas formu-
fico da medicina – por exemplo, as doenças car- lações de Bauman 24. Ele defende o ponto de
díacas, objeto de pesquisa na área da cardiolo- vista de que há a passagem de uma moderni-
gia – tem suas relações causais abordadas va- dade denominada “sólida” para uma moderni-
lendo-se de instrumentos da epidemiologia, dade “líquida”. Os padrões, códigos e regras ga-
com especial ênfase nos estudos de risco. Nes- nharam mobilidade e inconstância, ou seja, tor-
te exemplo, o tabagismo, o estresse, os altos ní- naram-se maleáveis e, à semelhança dos flui-
veis de colesterol sérico, o sedentarismo, cons- dos, não mantém a forma durante muito tem-
tituem fatores de risco para as doenças cardía- po. Os processos de desregulamentação, de li-
cas identificados por meio da metodologia epi- beralização, de flexibilização das normas, exa-
demiológica. cerbam – e paradoxalmente também limitam –
“...O sentido de risco se transfere para o seu de forma inédita as opções dos indivíduos e so-
determinante, que enquanto fator de risco passa ciedades. Esse efeito não foi alcançado via di-
a ser reconhecido como sinal/sintoma, que por tadura, subordinação ou opressão, mas ocorre,
sua vez torna-se uma entidade clínica, incorpo- ao contrário, em virtude do “derretimento radi-
rada a um perfil patológico específico. No final cal dos grilhões” 24 (p. 11) que limitavam as li-
do percurso, talvez pela inércia do processo de berdades individuais.
construção dos discursos em sua essência lingüís- A liquefação dos padrões – que antes garan-
tica, aparentemente cumpre-se o ciclo com risco tiam a regularidade e os limites éticos – amplia
terminando por denotar doença” 13 (p. 142). infinitamente as possibilidades. Esse movimen-
A disciplina, assim, amplia sua atuação jun- to transfere ao indivíduo a responsabilidade
to às demais especialidades médicas, mas o exclusiva pelo seu destino. O que deve ser feito
preço dessa inserção é a cristalização do enfo- já não está mais definido a priori. Cabe a cada
que exclusivamente fisiopatológico do proces- um escolher o que fazer de sua vida. Os proble-
so saúde-doença, alijando de suas preocupa- mas socialmente produzidos agora requerem
ções as dimensões políticas, econômicas e so- soluções individuais.
ciais do adoecimento, ou seja, ignorando a ma- A articulação da epidemiologia nesta nova
nifestação social das doenças como objeto de forma de controle, de fluidez, de maleabilidade
sua preocupação. As práticas em saúde basea- e de perda dos pontos de referência pode ser
das nessa concepção, que é também política, observada na formulação de Bauman, quando
expressam-se como medidas que buscam a este discorre sobre a morte na nossa socieda-
mudança de hábitos e comportamentos, já que de: “A morte já não parece, aos homens e mu-
a ênfase recai sobre a dimensão individual do lheres modernos, um esqueleto de veste preta
adoecimento. Essa concepção se opõe à idéia brandindo a foice (...) acha-se, agora, dissolvida
de saúde como direito 23 e abstrai, dessa forma, em minúsculas, mas inumeráveis, armadilhas
a necessidade de mudanças estruturais que da vida diária. Tende-se a ouvi-la batendo, ago-
implicariam em alterações mais profundas, ra, de quando em quando, diariamente, em co-
podendo mesmo requerer nova dinâmica na mida rápida e gordurosa, em ovos contamina-
distribuição de recursos sociais e de poder. dos de Listeria, em tentações ricas em colesterol,
em sexo sem preservativo, em fumaça de cigar-
ro, em ácaros de tapete que causam asma, ‘na
Risco epidemiológico sujeira que se vê e em germes que não se vêem’,
e sociedade de risco na gasolina carregada de chumbo e nos gases
desprendidos de chumbo e assim imundos, na
A constituição do conceito de risco epidemioló- água da bica tratada com fluoreto e na água
gico e o método incorporado pela pesquisa mé- não tratada com fluoreto, no exercício de mais e
dica acabam por definir estilos de vida, produ- de menos, em comer em demasia e fazer regime
zindo significados que orientam o comporta- em demasia, em ozônio demais e no buraco na
mento; articula-se, assim, a uma forma de vigi- camada de ozônio. Mas sabe-se, agora, obstruir
lância do indivíduo – pulverizada, internalizada a porta quando ela bate, podendo-se sempre
e menos visível – traduzida no autocontrole. substituir as velhas e enferrujadas fechaduras,
A idéia de risco consolidou-se com a mo- ferrolhos e alarmes por outros ‘novos e aper-
dernidade, associada ao pensamento probabi- feiçoados’. (...) Com o progresso da medicina
lístico e à idéia de cálculo. Uma das caracterís- moderna, que forneceu virtualmente a toda si-
ticas da transição para a modernidade tardia é tuação de morte sua causa específica, ‘lógica’ e

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SOCIEDADE DE RISCO E RISCO EPIDEMIOLÓGICO 2347

‘racional’, a morte já não é um capricho do des- É a epidemiologia que informa sobre quais
tino cego, nem tão completamente casual quan- são os fatores de risco: a comida gordurosa, as
to costumava ser. (...) Por outro lado, é a vida tentações ricas em colesterol, a fumaça de ci-
antes da morte que oferece percepções cercadas garro. Portanto, é ela que diz quais são as por-
de incerteza. (...) Os homens e mulheres pós- tas que devem ser obstruídas à entrada da mor-
modernos realmente precisam do alquimista te. A medicina, apoiada pelo método epidemio-
que possa, ou sustente que possa, transformar a lógico, é o alquimista que possui a pedra filo-
incerteza de base em preciosa auto-segurança, e sofal. Ela sustenta possuir o poder de transfor-
a autoridade da aprovação (em nome do conhe- mar a incerteza em auto-segurança, é a autori-
cimento superior ou do acesso à sabedoria fe- dade que aprova (ou desaprova) a forma como
chado aos outros) é a pedra filosofal que os al- cada indivíduo deve viver, uma forma que cons-
quimistas se gabam de possuir” 25 (p. 217-21). tantemente derrete e se transforma em novas
formas igualmente líquidas, transitórias.

Resumo Colaboradores

A discussão sobre a concepção de risco é ampla e per- O. C. Luiz realizou pesquisa bibliográfica, análise e
meia desde uma perspectiva mais geral, que busca redação do artigo. A. Cohn coordenou e orientou a
contextualizá-lo na dinâmica da mudança da socie- elaboração do artigo, definindo seu escopo e partici-
dade, até a abordagem mais específica na área da saú- pando de sua análise e redação.
de, particularmente nos estudos associativos da epide-
miologia. A palavra risco tem sido cada vez mais fre-
qüente nas revistas médicas nas últimas três décadas.
Esse fenômeno, no entanto, não é exclusivo da área da
saúde e é permeado pela diversidade de uma noção
que esconde uma lacuna conceitual. Diante dessa di-
versidade, o presente texto, a partir de revisão biblio-
gráfica, procura sistematizar a discussão sobre risco. O
resultado está organizado em três seções. Na primeira,
é apresentada uma perspectiva mais geral da discus-
são sobre risco no âmbito do debate sobre a mudança
da sociedade, na transição da modernidade para uma
nova fase de organização social; na segunda parte, es-
tão sintetizados os usos da noção de risco na área de
conhecimento da saúde; na última, a constituição do
conceito epidemiológico de risco e sua articulação
com a clínica.

Comportamento Perigoso; Estudos Epidemiológicos;


Risco

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Aprovado em 10/Mar/2006

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