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- h o p
Hip O  
hip-­hop,  movimento  cul-­
tural  que  teve  início  nos  
Estados  Unidos  por  vol-­
ta  de  1968,  tem  hoje  re-­
conhecida   sua   importância   por   unir  
arte,   cidadania   e   compromisso   so-­
cial.  O  movimento  emergiu  no  início  
da   década   de   1970,   nos   subúrbios  
negros  e  latinos  da  cidade  de  Nova  
York.   Em   sua   origem,   hip VLJQL¿FD
algo   que   é   atual,   que   está   aconte-­
cendo  no  momento,  e  hop  refere-­se  
ao  movimento  de  uma  dança  popu-­
lar   na   época,   que   envolvia   saltos.  
Hip  WDPEpPVLJQL¿FDTXDGULO$VVLP
DRXQLUPRVHVVDVGH¿QLo}HVWHPRV
“movimento   atual   que   se   manifesta  
por  meio  de  uma  dança  marcada  por  
saltos  e  jogo  dos  quadris”.
Os   subúrbios   novaiorquinos  
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞZƵĂϮϰĚĞDĂŝŽ

(marcadamente   Bronx,   Brooklyn   e  


Harlem)   –   verdadeiros   guetos   na-­
quela   época   –   passavam   por   um  
grande   número   de   problemas   rela-­
cionados   a   infra-­estrutura,   pobre-­
]D YLROrQFLD UDFLVPR WUi¿FR GH
drogas,   entre   outros,   e   a   rua   era   o  
único  espaço  encontrado  para  o  la-­
zer  de  seus  moradores.  Entre  seus  
habitantes  –  imigrantes  negros  e  la-­
tinos  –  havia  um  grande  número  de  
jamaicanos,   que   levavam   em   sua  
bagagem   a   cultura   das   festas   de  
2      CULTURA  CRÍTICA  14

rua,  geralmente  animadas  pelos   VRXQGV\VWHPVí  


grandes   carros   de   som,   semelhantes   aos   nossos  
trios  elétricos,  responsáveis  pela  disseminação  do  
raggae  naquele  país  –  em  que  se  mesclavam  dife-­
UHQWHVPDQLIHVWDo}HVDUWtVWLFDVTXHLQFOXtDPDP~-­
sica  e  a  dança,  a  poesia  e  também  a  pintura.  Sobre  
esses  pilares  se  lançam  as  bases  do  movimento:  o  
rap  (rhythm  and  poetry,  ou  ritmo  e  poesia),  o  DJing  
(discotecagem,  rica  em  samplings  ou  “colagens”  de  
outras  bases  melódicas  em  uma  base  rítmica  forte  
e  cadenciada),  a  breakdanceHRJUD¿WH
Nesse  contexto  surgiu  o  hip-­hop,  a  forma  ar-­
tística   de   os   moradores   dos   guetos   manifestarem  

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞƐƚĂĕĆŽĚĞdƌĞŵ>ĂƉĂ
VHXV SUREOHPDV VXDV GL¿FXOGDGHV VXDV QHFHVVL-­
dades  enquanto  classes  discriminadas  e  oprimidas.
É  importante  destacar  como  o  Movimento  Hip-­
hop  pode  desenvolver  o  processo  de  uma  cidadania  
plena  em  meio  à  juventude  pobre  e  como  pode  ser  a  
relação  do  hip-­hop  com  os  outros  movimentos  popu-­
lares,  que  também  trabalham  para  construir  a  cida-­
GDQLDQDVVXDViUHDVHVSHFt¿FDVGHDWXDomR
Neste  número  da  revista  Cultura  Crítica  abri-­
mos  espaço  a  esse  movimento  que,  como  nós,  está  
vinculado  à  formação  crítica  do  cidadão,  ciente  de  
seus  direitos  e  de  seus  deveres,  para  que  seja  um  
indivíduo  participativo  na  construção  política  de  sua  
comunidade,  de  sua  cidade  e  do  nosso  país.
Fazem   parte   desta   edição   os   seguintes   ar-­
tigos   e   temáticas:   O   hip-­hop   estadunidense   e   a   cia  do  olharíRrap  como  narrativa  pós-­moderna,  
tradução   cultural   brasileira í D RULJHP GR KLSKRS destacando  seu  caráter  de  denúncia  do  cotidiano;;  
e   sua   manifestação   brasileira,   que   teve   início   na   Hip-­hop:  uma  fala  histórica  contra-­hegemônicaíR
década  de  1980;;  A  história  do  hip-­hop:  resistência   rap  e  o  hip-­hop  apontados  como  instrumentos  que  
da  juventude  negra  no  contexto  neoliberalíRKLS VHFRQWUDS}HPDRGLVFXUVRKHJHP{QLFRGDVHOLWHV
KRSFRPRKHUGHLURGHOXWDVHUHLYLQGLFDo}HVVRFLDLV que   detém   o   poder;;   É   a   cultura   da   rua,   a   voz   da  
e   como   forma   de   resistência   e   organização   social   periferiaíDVGL¿FXOGDGHVGRSURFHVVRGHWUDGXomR
da  juventude  negra  e  pobre;;  As  vozes  da  África:  o   das   letras   do   rap;;   Diálogos   em   campo:   práticas   e  
gueto   forja   sua   cultura   í R KLSKRS FRPSUHHQGLGR UHÀH[}HVPXVLFDLVGRVUDSSHUVQR%UDVLOHHP3RU-­
FRPR XP PRYLPHQWR TXH GHX YR] DPSOL¿FDGD jV tugalíDVUHODo}HVGHGLiORJRHQWUHDSURGXomRH
queixas  e  às  cobranças  dos  jovens  pobres  do  Bra-­ circulação   local   (nacional)   e   transnacional   do   rap;;  
sil,  assim  como  colaborou  e  ainda  colabora  para  a   O  movimento  hip-­hop  e  a  formação  da  consciência  
D¿UPDomRGHVXDVLGHLDVHGHVHXVYDORUHVO  rap   críticaíRYDORUGRKLSKRSFRPRXPDPDQLIHVWDomR
como  narrativa:  da  crônica  do  cotidiano  à  experiên-­ artístico-­política  que  reelabora  a  identidade  étnico-­
CULTURA  CRÍTICA  14        3

racial  e  desenvolve  uma  consciência  crítica  contra   do  hip-­hop  a  partir  da  experiência  desse  movimento  
a   discriminação   de   raça   e   a   exploração   social;;   O   no  bairro  de  Monjolos,  no  município  de  São  Gonça-­
hip-­hop   e   as   novas   perspectivas   de   mobilização   lo;;  (VSDoRSROtWLFDHFXOWXUDEUHYHVFRQVLGHUDo}HV
socialíRKLSKRSHQWHQGLGRFRPRXPDPDQLIHVWD-­ acerca  do  movimento  hip-­hopíUHÀH[}HVVREUHDV
omRDXW{QRPDGRVQDVFLGRVQDVSHULIHULDVHIDYHODV UHODo}HVHQWUHRHVSDoRJHRJUi¿FRHDGLQkPLFDGR
que  buscam  produzir  o  seu  próprio  discurso  sobre   hip-­hop;;   O   hip-­hop   e   para   além   da   cultura   de   rua:  
sua  miséria  e  exclusão;;    Hip-­hop,  multiculturalismo   FRQWULEXLo}HVGDPRQWDJHPFLQHPDWRJUi¿FDSDUDR
e  ideal  do  branqueamento:  um  estudo  do  tipo  etno-­ rapíDERUGDJHPGHDVSHFWRVWpFQLFRVGHVVDPDQL-­
JUi¿FRíUHJLVWURGHUHÀH[}HVVREUHXPDSHVTXLVDa   festação  artística,  visando  elucidar  a  relação  entre  o  
respeito  de  um  projeto  cultural  escolar  que  a  partir  do   sujeito  contemporâneo  e  o  fazer  artístico.
hip-­hop  discute  o  ideal  de  branqueamento  e  o  multi-­ Desejo  a  todos  uma  ótima  leitura.
culturalismo;;  Cultura  política  urbana:  uma  análise  da  
inscrição  territorial  do  hip-­hop  no  bairro  de  Monjolos,   -RmR%DWLVWD7HL[HLUDGD6LOYD
São  Gonçalo  (RJ)íDGLPHQVmRSROtWLFRJHRJUi¿FD Editor  Geral
7 O hip-hop estadunidense e a tradução cultural brasileira
7+Ë)$1,3267$/,

16
A história do hip-hop
Resistência da juventude negra no contexto neoliberal
526(19(5&.(675(/$6$1726

25 As vozes da África: o gueto forja sua cultura


5$)$(//23(6'(6286$

38
O rap como narrativa
Da crônica do cotidiano à experiência do olhar
$0$5,122/,9(,5$'(48(,52=

47 Hip-hop: uma fala histórica contra-hegemônica


('8$5'2*5$1-$&287,1+2‡0$5,$11$$5$Ò-2
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞĞůĂsŝƐƚĂ

56 É a cultura da rua, a voz da periferia


7+$Ë60$57Ë1(=$5&$5,

62 Diálogos em campo: práticas e reflexões musicais


dos rappers no Brasil e em Portugal
$1*(/$0$5,$'(628=$
74 O movimento hip-hop e a formação da consciência crítica
&/$8',0$5$/9(6'85$16

80
O hip-hop e as novas perspectivas de mobilização social
7$7,$1$*$/9­2

86 Hip-hop, multiculturalismo e ideal do branqueamento:


um estudo do tipo etnográfico
:,//,$0'(*2(65,%(,52

95 Cultura Política Urbana


Uma análise da inscrição territorial do hip-hop
no bairro de Monjolos, São Gonçalo (RJ)
'(1,/6212/,9(,5$

103 Espaço, política e cultura


Breves considerações acerca do movimento hip-hop
*/$8&2%58&(52'5,*8(6

112
O hip-hop e para além da cultura de rua
Contribuições da montagem cinematográfica para o rap
52'5,*2/$*(6(6,/9$‡/8,6$1721,2%$37,67$'266$1726
DIRETORIA  DA  ASSOCIAÇÃO  DOS  
PROFESSORES  DA  PUC-­SP

PRESIDENTE  
Maria  Beatriz  Costa  Abramides

 VICE-­PRESIDENTE
Victoria  Claire  Weischtordt

1A  SECRETÁRIA
Priscilla  Cornalbas

2O  SECRETÁRIO
Leonardo  Massud

1O  TESOUREIRO
João  Batista  Teixeira  da  Silva
revista  cultural  da  apropuc-sp  
2A  TESOUREIRA
Conselho  Editorial Sandra  Gagliardi  Sanchez
João  Batista  Teixeira  da  Silva
Maria  Beatriz  Costa  Abramides  
Priscilla  Cornalbas SUPLENTES
Victoria  Claire  Weischtordt
1o  -­  Wagner  Wuo  
Editoria-­Geral
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Editor  Executivo
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3URMHWR*Ui¿FR
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Impressão  -­  5HWWHF$UWHV*Ui¿FDV
Tiragem:  1.000  exemplares
CULTURA  CRÍTICA  14        7

O hip-hop estadunidense e
a tradução cultural brasileira
THÍFANI  POSTALI

E m meados de 1970, as cidades localizadas no norte dos Estados


Unidos receberam inúmeros grupos de imigrantes - em sua
maioria, jamaicanos e porto-riquenhos - fugidos dos proble-
mas econômicos e políticos que enfrentavam as ilhas caribenhas. Esses
indivíduos buscaram asilo, especialmente, nos guetos de NovaYork, que
já abrigavam muitas famílias afro-estadunidenses cuja história de vida
se baseava na luta contra a segregação social que havia existido no país.
Nesse encontro, a população jamaicana ofereceu aos grupos
afro-estadunidenses uma nova forma de contestar o sistema social que
também descontentava a população local. O jamaicano Kool Herc e
seu parceiro Grand Master Flash, originário de Barbados, foram os
primeiros responsáveis pela prática da música jamaicana1 nos Estados
Unidos. No bairro do Bronx, em Nova York, os disc-jockeys (DJs) or-
ganizaram inúmeras festas onde trabalhavam com técnicas como os
sounds systems, mixadores - aparelhos que unem os toca-discos e sin-
cronizam os vinis e o scratch, movimento de discos no sentido anti-
horário, o que produz um som arranhado.
A música de Kool Herc e Grand Master Flash contagiou o pú-
blico, que desenvolveu maneiras diferenciadas de dançar. Durante as
apresentações, os DJs falavam de acordo com o ritmo da música e
ofereciam o microfone para os dançarinos participarem dos discur-
sos. Os dançarinos, por sua vez, procuravam organizar frases rimadas
relatando o cotidiano do Bronx. O modo de criar rimas improvisa-
das acompanhadas de um som combinado foi denominado freestyle e
passou a ser uma das principais características da cultura musical que
surgia no território norte-americano.
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲZƵĂϮϰĚĞDĂŝŽ

Juntando-se e desenvolvendo-se em meio aos elementos cul-


turais norte-americanos, a música jamaicana foi se transformando no
que hoje é conhecido como rap - rhythm and poetry, ou seja, ritmo e
poesia. Essa prática musical é caracterizada pela improvisação poética
sobre uma batida musical rápida, acompanhada ou não pelo som digi-
tal, o que faz da expressão oral o elemento mais importante da música.
Dessas manifestações, surgiu o hip-hop, que é definido como
um movimento cultural que envolve diversos elementos, como mos-
traremos a seguir.
Apresentaremos aqui o objeto de estudo, revelando a sua histó-
ria e essência; a história do hip-hop brasileiro, apresentando os proces-
sos de tradução cultural e algumas conclusões, cujo resultado pretende
8      CULTURA  CRÍTICA  14

provocar a reflexão sobre os processos hip-hop. Dessa forma, o aparecimento De acordo com os textos dispo-
de tradução cultural como mecanismos do hip-hop está intrinsecamente liga- nibilizados pela Universal Zulu Nation,
realizados pelos líderes-comunicadores do à organização, o que explica ser ele a principal preocupação dos criadores
referidos por Luiz Beltrão (1980). um movimento cultural formado por do hip-hop é que o público não tenha
diferentes elementos artísticos e não domínio sobre o verdadeiro propósi-
O hip-hop por apenas um gênero musical, como é to do movimento pelo fato de alguns
O hip-hop nasceu das festas frequente e erroneamente confundido. rappers utilizarem-se da musicalidade
organizadas por Kool-Herc e Grand Os principais elementos que compõem para divulgar o que Bambaataa chama
Master Flash, mas não foram os DJs os o hip-hop são: o DJ, o grafite, o rap e de “negatividade”. Para tanto, o ideali-
responsáveis pelo seu surgimento e sim o break. No entanto, a Universal Zulu zador do movimento incluiu o quinto
o afro-estadunidense Kevin Donovan. Nation esclarece que a dança não se elemento do hip-hop, ao qual se refere
Frequentador das festas organizadas restringe ao break, incluindo também como “conhecimento”. Segundo a Uni-
pelos DJs, Donovan trocou sua gangue outras modalidades. versal Zulu Nation, o quinto elemento
pela arte de rua e seu nome por Afrika
Bambaataa.
Richard (2005) ressalta que o
termo hip-hop tem definições diver-
gentes, no entanto, a acepção mais
usual é que significa “saltar movimen-
tando os quadris” “to hip”. Rocha, Do-
menich e Casseano (2001) esclarecem
que o termo foi criado em 1968 por
Afrika Bambaataa na ocasião de nome-
ar os encontros promovidos em par-
ceria com Kool Herc e Grand Master
Flash. Nesses encontros, primeiramen-
te reuniam-se DJs, dançarinos de break
e MCs.
Segundo Leal (2007), em 1973,
Bambaataa fundou a Universal Zulu
Nation, uma organização não-gover-
namental que teve como lema a frase
“Paz, Amor, União e Diversão”. Nessa
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞZƵĂϮϰĚĞDĂŝŽ

organização - ainda existente -, Bam-


baataa reuniu DJs, dançarinos, MCs e
grafiteiros, além de promover palestras
sobre diversos temas como matemáti-
ca, economia, prevenção de doenças
entre outros.
Não existe uma data específica
para o surgimento do hip-hop, todavia
o site oficial da Universal Zulu Nation
esclarece que o aparecimento do mo-
vimento está ligado à organização de
Bambaataa que, por sua vez, elegeu o
GLD  GH QRYHPEUR GH   ð XP
ano após a fundação da Universal Zulu
1DWLRQñ como o aniversário oficial do
CULTURA  CRÍTICA  14        9

consiste em esclarecer as pessoas sobre um tipo de percussão vocal que con- Todos os elementos do movimento
a história e os elementos fundamentais siste na simulação de sons de bateria, envolvem, de uma forma ou de outra,
da verdadeira cultura hip-hop. Bamba- efeitos eletrônicos, instrumentos de uma resistência ao sistema social.
ataa (2010) esclarece que o movimento sopro e outros, utilizando apenas téc- Kellner relaciona a dissemina-
foi criado para difundir temas como a nicas com a voz, a boca e a cavidade ção do rap à década de 1980. O autor
paz, o amor, a união e a diversão, a fim nasal. Posto assim, o hip-hop vale-se de esclarece que, apesar de já haver rappers
de afastar as pessoas dos problemas que diversos elementos que se combinam pelo menos uma década antes dessa, as
assolavam as ruas, como a violência e a fim de disseminar ideias. A eficiência condições sociais em que as populações
as drogas. que a utilização de diferentes mecanis- marginais norte-americanas se encon-
O hip-hop possui, pelo menos, mos de comunicação possui, é apoiada travam a partir de 1980 fizeram com
cinco elementos básicos, podendo in- por Beltrão (1977), que defende essa que o movimento se tornasse essencial
cluir outros, que dialogam com o seu combinação como uma forma de tor- para os grupos marginais, ao mesmo
contexto, como é o caso do Beat Box, nar a mensagem mais clara e efetiva. tempo que popular. Segundo Kellner,
“a década de 1980 foi um período de
declínio das condições de vida e das ex-
pectativas dos negros, durante os go-
vernos conservadores que transferiram
a riqueza dos pobres para os ricos, fize-
ram cortes nos programas sociais e ne-
gligenciaram negros e pobres” (1995,
p. 231).
Grenn ressalta que “um tema
principal nas letras de rap é o de que
o único meio de sobreviver é usar a
cabeça, estar consciente e saber o que
está acontecendo ao seu redor” (2006,
p. 44). Leal (2007) reforça que o mem-
bro do movimento deve ter como de-
ver a propagação de seus conhecimen-
tos para as demais pessoas.
Como apresentado, o hip-hop
surgiu da proposta de Afrika Bambaa-
taa em esclarecer a população marginal
estadunidense por meio do entreteni-
mento cultural, não denotando apoio à
criminalidade exercida nos territórios
marginais. De acordo com os discur-
sos de Bambaataa e com o conteúdo
disponibilizado pela Universal Zulu Na-
tion, o hip-hop deve ser usado como
um veículo de conhecimento, sabedo-
ria, entendimento, liberdade, justiça,
igualdade, paz, união, amor, respeito e
responsabilidade através da recreação.
A proposta de Bambaataa foi a
de substituir a violência física, exercida
pelas gangues do Bronx, por disputas
intelectuais, ou seja, as gangues passa-
10      CULTURA  CRÍTICA  14

ram a se enfrentar por meio de eventos que a violência vende; mas isso, é cla- importadas. Herschmann (2000) apre-
organizados - ou não -, nos quais seus ro, não é apenas uma ‘coisa do rap’; é senta o início do contato dos brasilei-
representantes - MCs, DJs, dançarinos só lembrar dos filmes de ação e do co- ros com o hip-hop:
e grafiteiros - se enfrentam através de mércio de armas”. Como exemplo das
manifestações culturais. Shusterman vendas, o autor apresenta inúmeros epi- Boa parte do que os discotecários
(2006, p. 73) sustenta que o idealis- sódios em que os rappers envolvidos com ganhavam era reinvestida numa
mo do hip-hop é que a violência pode a criminalidade venderam muito mais rede de couriers que viajavam pe-
“ser canalizada em formas simbólicas e discos quando apareceram na mídia, em riodicamente para Nova York e
artísticas, que são mais produtivas do matérias jornalísticas. Miami a fim de comprar essa pro-
dução musical, aqui ainda inédita.
que destrutivas em seu grande poder”.
O hip-hop brasileiro Esses couriers podiam ser empre-
Assim, a violência transfere-se para um gados de agências de turismo e de
meio estético que ocorre através da ri- Por se tratar de uma manifes- companhias aéreas, ou mesmo os
validade artística. Para o autor, a chave tação que prioriza o discurso resistente próprios DJs que chegavam a Nova
para se compreender o hip-hop é que frente à sociedade segregada, o hip-hop York pela manhã, faziam os conta-
a violência se exprime em expressões tornou-se exclusivo em cada lugar que tos e retornavam no mesmo dia,
poéticas, “combates simbólicos, líricos e o adotou como meio de comunicação. em voos noturnos. (p. 24 e 25)
rítmicos que não destruirão corpos, mas Na perspectiva de Richard (2005, p.
aguçarão a mente, animarão o espírito 24), “apesar de ter sua estrutura ori- Para o autor, essa compra per-
e criarão uma gloriosa tradição artística ginal formada nos EUA, a cultura do durou até a década de 1990, quando
que pode ajudar no crescimento do or- hip-hop é característica de cada nação o acesso às produções internacionais
gulho cultural, perfil social e potencial e o movimento sempre tende a retratar fonográficas tornou-se global. Como
econômico dos afro-americanos” (2006, a realidade local”. Leal partilha da mes- antes dessa década não havia muitas
p. 73). ma ideia do autor ao afirmar que em informações sobre o que realmente
Kellner argumenta que “a me- cada país o movimento adquiriu uma significava o movimento hip-hop nor-
lhor maneira de considerar o rap em si é linguagem própria, de acordo com a te-americano, a música era a principal
vê-lo como um fórum cultural em que realidade ali existente. ponte dos brasileiros para o acesso à
os negros urbanos podem expressar ex- O hip-hop chegou ao Brasil no cultura afro-estadunidense. Isso por-
periências, preocupações e visão políti- início da década de 1980, por meio de que o interesse brasileiro se limitava ao
ca” (1995, p. 230). Para o autor, o rap equipes responsáveis pela organização ritmo e à dança. Com relação a isso,
transformou-se “num poderoso veículo de bailes e de poucas revistas e dis- Herschmann (2000, p. 24) ressalta que
de expressão política, traduzindo a raiva cos comercializados na cidade de São “as letras da música negra norte-ameri-
dos negros diante da crescente opressão Paulo. O movimento começou com o cana, que fazem referência às políticas
e da diminuição das oportunidades de encontro de jovens, em sua maioria raciais e culturais, não eram por eles
progresso, quando a simples sobrevi- afro-brasileiros, na Rua 24 de Maio. compreendidas”, o que justifica o inte-
vência passou a ser um grave problema” Esses jovens se reuniam para praticar resse exclusivo pelo ritmo e o fato de
(p. 231). o break, fazendo da dança o primeiro os dançarinos terem apelidado o dis-
Fato curioso é que muito pouco elemento do movimento a ser pratica- curso do hip-hop como “tagarela”.
do que a verdadeira ideologia do hip- do no Brasil. Por esse motivo, até quase o
-hop procura difundir é apresentado Na medida em que o break ia se final da década de 1980 as músicas
pela mídia. Nos Estados Unidos, grupos popularizando, a busca por novidades de hip-hop produzidas no Brasil não
como o Public Enemy e o KRS-One, tornava-se acirrada entre os DJs, que apresentavam discursos de resistência.
que procuram distribuir mensagens a competiam para tocar sons cada vez Com o desenrolar da globalização, tan-
partir da proposta de Bambaataa, não mais diferenciados. Porém, na década to o aumento das produções midiáticas
possuem destaque como Snoop Doggy de 1980, quase não havia produtos e acerca do hip-hop como a possibilidade
Dogg e outros grupos e cantores de informações referentes ao movimento de os grupos marginalizados expressa-
Gangsta Rap. Tal fenômeno decorre do hip-hop. Assim, o acesso ao conteúdo rem resistência marcaram o início do
fato que, segundo Shusterman (2006, estadunidense só era possível através processo de tradução do hip-hop no
p. 70), “as corporações há muito sabem de viagens e poucos discos e revistas Brasil. Grupos e DJs como Thaíde, Dj
CULTURA  CRÍTICA  14        11

Hum e Racionais MC’s foram os pre-


cursores dessa tradução. De acordo
com o artigo “História do hip-hop no
Brasil. Como tudo deu início”, disponi-
bilizado na página Black Sound (2010),
Thaíde e Dj Hum apresentaram uma
das primeiras letras com conteúdo crí-
tico-social. A música “Homens da Lei”
chamou a atenção sobre a violência po-
licial em São Paulo, Osasco e no ABC
Paulista:

Cuidado povo de São Paulo, de


Osasco e ABC
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞZƵĂϮϰĚĞDĂŝŽ

A polícia paulistana chegou para


proteger
Policial é marginal e essa é a lei do
cão
A polícia mata o povo e não vai
para a prisão
São homens da Lei; reis da zona sul
Vestidos bonitinhos com o seu tra-
je azul
Somem pessoas; onde enfiam eu
não sei
E não podemos dizer nada, pois
não somos da Lei
Oh! Meu Deus quando vão notar
Que dar segurança não é apavorar
Agora não posso mais sair na boa
Porque ela me para e me prende
à toa
Não adianta dizer que ela está er- apresenta questionamentos referentes ao mas também de cultura para cultu-
rada contexto dos territórios marginalizados ra. (apud Mattelart, 2005, p. 99)
Pois a Lei é surda, cega e mal inter- brasileiros. Isso porque, segundo Ricoeur
pretada [...]. (2004, p. 19), “cada sociedade retrans- A pressuposição que Ricoeur
creve os signos transnacionais, adapta-os, apresenta acerca da tradução é que “as
Segundo Richard (2005), o os reconstrói, reinterpreta-os, reter- línguas não são estranhas umas às outras
primeiro álbum de hip-hop, chamado ritorializa-os, ‘ressemantiza-os’” (apud a ponto de serem intraduzíveis” (p. 99).
Hip-hop Cultura de Rua, foi uma cole- Mattelart, 2005, p. 98). Para Ricoeur, a Dessa forma, entendemos que tanto o
tânea de músicas de rappers, DJs e gru- tradução é o pressuposto fundamental da hip-hop brasileiro, como outros movi-
pos como Thaíde & Dj Hum, MC/Dj troca entre culturas. mentos do gênero adotados por diferen-
Jack, Código 13, entre outros, lançado tes países, são processos de tradução que
em 1988, pela gravadora Eldorado. A A tradução não se reduz a uma téc- envolvem, além das características bási-
nica praticada espontaneamente cas oferecidas pelo gênero, como modo
música “Homens da Lei” fez parte dessa
por viajantes, comerciantes, embai-
coletânea. de se vestir, gesticular, cantar, falar e se
xadores, passantes, trânsfugas e, em
Pode-se dizer que o registro des- termos profissionais, pelos traduto- posicionar perante a vida social, outras
se disco marcou o início da utilização do res e pelos intérpretes: ela constitui próprias do contexto social local. Refe-
hip-hop como resistência ao sistema so- um paradigma para todas as trocas, rindo à ideia de tradução, Ortiz (1994)
cial brasileiro. A letra de “Homens da lei” não apenas de língua para língua, a entende como um procedimento de-
12      CULTURA  CRÍTICA  14

corrente da mundialização. Para o autor, de um ou de outro grupo” (p. 74). Sobre tanto de uma apropriação como de
“o processo de mundialização é um fenô- o novo produto, Pinheiro (1995) esclare- desapropriação, desierarquização e
meno social total que permeia o conjunto ce que “inserido no fluxo de importação/ desconstrução. (1983, p. 108 apud
das manifestações culturais. Para existir, exportação de materiais linguísticos e his- Silva, 2007, p. 56-57)
ele deve se localizar, enraizar-se nas prá- tóricos, libera-se da imitação embevecida
ticas cotidianas dos homens [...]” (p. 30). e turística do que vem de fora” (p. 42). Dessa forma, não ocorre uma imi-
Segundo Ortiz, as trocas interna- As colocações apresentadas reme- tação, mas uma experimentação daquilo
cionais possibilitam diversidades que de- tem a uma antropofagia cultural, aos mol- que é exterior. Diniz (2007) esclarece
terminam estilos e registros particulares. des da proposta de Oswald de Andrade que no processo antropofágico acontece
Assim, a cultura mundializada “envolve (1928). Andrade apresenta a antropofagia a devoração, deglutição e degustação do
certamente outras manifestações, mas, como uma prática de reinvenção: devora- que vem de fora, sem subordinação às di-
o que é mais importante, ela possui uma ção cultural das técnicas importadas para cotomias nacional/estrangeiro, modelo/
especificidade, fundando uma nova ma- reelaboração com autonomia, assim, con- cópia. Posto assim, é possível entender
neira de “estar no mundo”, estabelecendo vertendo-as em um novo produto. Escla- o rapper brasileiro como um “canibal”, o
novos valores e legitimação” (p. 33). O recendo o conceito, Haroldo de Campos “bárbaro tecnizado”. Segundo Diniz, “o
autor acrescenta que cada cultura possui ressalta que a antropofagia oswaldiana bárbaro tecnizado, expressão de Keyserling
seu próprio centro, podendo integrar ele- incorporada por Oswald em seu projeto
mentos de culturas internacionais, desde [...] não envolve uma submissão (uma cultural, devora seus inimigos externos
que adaptados à sua rotação, ou seja, “su- catequese), mas uma transculturação, para adquirir, com nobreza e força, seu
põe-se o contato de grupos provenientes melhor ainda, uma transvalorização: poder, conhecimento e técnica” (p. 2). As-
de dois universos diferentes, e como re- uma visão crítica da história como VLPRSURFHVVRGHWUDGXomRFXOWXUDOðFD-
sultado, mudanças nos padrões culturais função negativa (Nietzsche) capaz QLEDOLVPRGREiUEDURWHFQL]DGRðpYLVWR
CULTURA  CRÍTICA  14        13

como riqueza cultural, pois, como assegu- nicos, como ocorre nos Estados Unidos. rappers apresentam um estilo semelhante
ra Silva (2007, p. 55) é o intercâmbio que No Brasil, o custo elevado dos aparatos ao norte-americano, porém com roupas
“mantém a cultura aquecida e viva”. Como técnicos e a impossibilidade de trabalhar de valor acessível e joias de prata ou aço
coloca a autora, no “Manifesto Antropo- como a matriz norte-americana provoca- FLU~UJLFRðPDWHULDLVTXHFXVWDPPHQRV
fágico”, Oswald de Andrade nos alerta ram, de início, a utilização de aparelhos que os cordões de ouro utilizados pelos
sobre “a necessidade de conviver com comuns de reprodução de fitas magnéti- rappers norte-americanos. Em entrevista
outras culturas, aprendendo com elas e, cas, conhecidas popularmente como fitas para Whiteman (2010), no jornal Folha
por meio dessa assimilação, transforman- cassete. O microsystem não só permitiu a de S.Paulo, o rapper Munhoz ressalta que
do a nossa própria cultura” (p. 90). Desse reprodução das músicas como a gravação se vestir no contexto do hip-hop norte--
modo, o rapper brasileiro, “líder-comuni- delas. Em muitos casos, eram comuns as -americano custaria para o brasileiro, em
cador”, “bárbaro tecnizado”, ocupa o papel gravações de rap envolvendo apenas o dis- média, R$ 1.000,00 por conjunto, o que
de “tradutor de tradições incessantemente curso acompanhado do beat box. se torna inviável.
traídas pela dinâmica de uma nova relação Outro aspecto que também se Tratando-se da música, diferente-
entre sociedade, história e cultura” (Diniz, diferencia do contexto norte-americano mente do que ocorre nos Estados Unidos,
2007, p. 2). são as marcas de roupas e as joias. Gran- no Brasil o estilo Gangsta Rap não obteve
No Brasil, as maneiras de cons- de parte dos membros mais reconhecidos tanto sucesso. Os rappers mais famosos
truir o hip-hop se diferenciam de acordo do movimento hip-hop brasileiro não do país geralmente abordam as situações
com as possibilidades do local. O beat box ostentam o poder gerado por esse consu- sociais e o cotidiano dos indivíduos mar-
ðSHUFXVVmRYRFDOðFRPRH[HPSORIRL mo. Isso porque as roupas de marca que ginais de forma crítica, a fim de alertar
mais bem explorado, já que a população oferecem o estilo sportswear como Adidas, a população e questionar o sistema. De
marginal brasileira não é beneficiada pelo Nike, Reebok, entre outras, têm custo acordo com Rocha, Domenich e Casse-
acesso facilitado aos equipamentos eletrô- alto no nosso país. Desta forma, muitos ano (2001, p. 38), o ponto de vista do

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞZƵĂϮϰĚĞDĂŝŽ
14      CULTURA  CRÍTICA  14

rapper Gog é o mais respeitado pelo movi- Assim, o hip-hop brasileiro tem Não vai ser a solução para acabar com
mento brasileiro: apresentado, nos últimos anos, preocupa- o seu problema
ção especial com relação às questões que Brigar com seu irmão agradando ao
Temos um compromisso não somen- envolvem a reeducação dos jovens margi- sistema [...]
te com a música, mas também com nalizados. A música “Atitude Errada”, de Se liga parceiro na ideia que MV BILL
a questão social, inclusive a de não MV Bill, apresenta de forma transparente vai te dar
incentivar em público o uso de qual- Já tem a polícia na rua que é para ba-
a intenção de educar:
quer droga, seja ela a pinga ou a ma- ter, para matar
conha. Uma vez em cima do palco, [...] MV BILL está de volta tentando Enquanto eu falo a verdade você só
você é um líder e pode influenciar conscientizar vocês pensa em beber
muita gente. (Gog, 2010) Parando pra pensar botando a cabeça Só pensa em mulher sem camisinha,
no lugar assim tu vai morrer
Sobre as adaptações apresentadas, Pedindo a Deus para nos ajudar É preciso união, é preciso informa-
as entendemos como um resultado do Sem armas, unidos, sem violência en- ção, para acabar, para acabar
tre nós parar de brigar, parar de beber demais
processo de mundialização sugerido por
Vamos ter a certeza que na luta não porque desse jeito vai ser difícil en-
Ortiz (1994). O autor esclarece que “a contrar a paz
especificidade da matriz cultural perma- estamos sós
Discussão, pancadaria não te leva a A solução do problema não é puxar
nece enquanto diferença, atuando como o gatilho
nada
filtro seletor do que é trocado. As cultu- Ignorância não para, não para, não Pode começar dando educação para o
ras seriam assim definidas internamente, para, não para seu filho
tendo a capacidade de reinterpretar os Tapa na cara, soco no olho, tiro no Não se acabe nas drogas espere che-
elementos estranhos, oriundos de ‘fora’” peito, sangue no chão gar sua hora
(p. 76). Tem que ser trocado por um simples MV BILL adverte quem com a droga
Referindo-se aos aspectos sociais, aperto de mão se mete
é acreditável refletir que o hip-hop bra- Entre irmãos informação necessidade Acaba na vala boiando, otário, furado,
sileiro foi empregado para, além de de- Apesar de ser uma letra pode se tor- crivado de bala
nar verdade Com um tiro no peito e na cara
nunciar a situação dos grupos afro-brasi-
Depende dela, depende dele, depen- 3 2 1, 1 2 3 MV BILL querendo ver a
leiros e daqueles que se identificam com união na cabeça de vocês [...].
o conteúdo sugerido pelo movimento, de de mim, depende de você
A vida é curta, procure alguma coisa
trabalhar a reeducação dos jovens habi- Outra influência norte-america-
boa pra fazer
tantes dos territórios marginalizados. E Parar de se matar, nosso inimigo é na acerca do hip-hop é que, no Brasil,
essa questão, apesar de sugerida por Afri- outro existem inúmeras organizações não-
ka Bambaataa, tampouco se difundiu no Prejudicado nessa guerra apenas nos- governamentais que, assim como a Uni-
contexto norte-americano. so povo [...] versal Zulu Nation, oferecem conteúdos
Em passagem pelo Brasil, no ano O problema da comunidade é a falta diversos para os jovens que habitam os
de 1999, para participar do Festival Du- de informação territórios marginalizados brasileiros.
Lôco: Cultura Hip-hop em Festa, ocor- Sem referência larga a escola, cabeça
Organizações como a Central Única de
rido nas unidades Belenzinho e Itaquera virada vira ladrão
Droga confunde a cabeça, você não Favelas (Cufa) e o Movimento Enraiza-
do Sesc, ambas localizadas na cidade de dos trabalham com palestras sobre te-
São Paulo, Afrika Bambaataa revelou gos- tem dinheiro então
Rouba, deu mole malandro foi preso mas diversos, mostras, oficinas e cursos
tar muito mais do hip-hop do Brasil e de gratuitos, tanto sobre o desenvolvimen-
sai desse jogo agora
países como França, Alemanha, África do to dos elementos que compreendem o
Tá fora, chega de guerra, chega de
Sul, entre outros, do que do hip-hop dos morte, chega de sangue hip-hop, como capacitações profissio-
Estados Unidos. O idealizador do movi- chega de tiro, se continuarmos o nos- nais diversas, de acordo com as neces-
mento justificou que o hip-hop desses so povo está perdido sidades locais.
países possui expressões verdadeiras, A união não pode ser feita com a gar- Assim, as organizações apresen-
diferentemente do movimento norte-- rafa tam a ideia de que grupos de diversos
-americano, que se distanciou das ori- pro bar, pro bar, pro bar se acabar na locais se apropriam dos modos de vida
gens reivindicativas e libertárias. cachaça
CULTURA  CRÍTICA  14        15

de outros, a fim de transformar algo,


Nota
neste caso, a transformação cultural e
social dos grupos marginalizados das so- ϭ͘ĞĂĐŽƌĚŽĐŽŵĂƐƌĞĨĞƌġŶĐŝĂƐ͕ĂƌĂŝnjĚŽŚŝƉͲŚŽƉƉƌŽǀĠŵĚĂ:ĂŵĂŝĐĂ͘ZŝĐŚĂƌĚ
ciedades. No caso do hip-hop, ele será ;ϮϬϬϱͿƌĞƐƐĂůƚĂƋƵĞŶĂĚĠĐĂĚĂĚĞϭϵϲϬ͕ĂƉŽƉƵůĂĕĆŽĐĂƌĞŶƚĞũĂŵĂŝĐĂŶĂƉĂƐƐŽƵĂ
único, na medida em que oferece supor- ƵƟůŝnjĂƌĂŵƷƐŝĐĂĐŽŵŽŵĞŝŽĚĞĞdžƉƌĞƐƐĆŽĐŽŶƚƌĂŽƐŝƐƚĞŵĂůŽĐĂů͘ƐƐĂŵƷƐŝĐĂĠ
ĐŽŵƉŽƐƚĂƉĞůŽƐtoastes͕  ƌĞƐƉŽŶƐĄǀĞŝƐƉĞůŽƐĚŝƐĐƵƌƐŽƐоĞƉĞůŽĂĐŽŵƉĂŶŚĂŵĞŶƚŽ
te para a resistência, de acordo com a si- dos  sound  systems,  ĂƉĂƌĞůŚŽƐĚĞƌĞƉƌŽĚƵĕĆŽĚĞĄƵĚŝŽ͕ĐĂƌĂĐƚĞƌŝnjĂĚŽƐƉĞůĂƉŽƚġŶ-­‐
tuação e as possibilidades de cada local, ĐŝĂĚĂƐĐĂŝdžĂƐĚĞƐŽŵ͘
como ocorre no Brasil.
Diante das questões apresenta-
Referências
das, é possível pensar a importância dos
meios de comunicação na propagação de EZ͕KƐǁĂůĚĚĞ͘Manifesto  antropofágico.  ϭϵϮϴ͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬ
informações diversas. Assim como Mar- ǁǁǁ͘ĂƌƋ͘ƵĨƐĐ͘ďƌͬĂƌƋϱϲϮϱͬŵŽĚƵůŽϮŵŽĚĞƌŶŝĚĂĚĞͬŵĂŶŝĨĞƐƚŽƐͬŵĂŶŝĨĞƐƚŽĂŶƚƌŽƉ-­‐
ŽĨĂŐŝĐŽ͘Śƚŵх͘ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϭϵũƵů͘ϮϬϭϬ͘
tín-Barbero (2003), consideramos os
Dd͕ĨƌŝŬĂ͘/ŶUNIVERSAL  ZULU  NATION͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬǁǁǁ͘
meios como mediadores vitais na cons- njƵůƵŶĂƟŽŶ͘ĐŽŵͬх͘ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϬϲĂďƌ͘ϮϬϭϬ͘
tituição da experiência popular urbana, >dZK͕>Ƶŝnj͘Folkcomunicação:ĂĐŽŵƵŶŝĐĂĕĆŽĚŽƐŵĂƌŐŝŶĂůŝnjĂĚŽƐ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗
de modo que cada grupo absorve e tra- ŽƌƚĞnjĚŝƚŽƌĂ͕ϭϵϴϬ͘
duz aquilo que deseja ou acredita ser ne- >dZK͕>Ƶŝnj͘Teoria  geral  da  comunicação͘ƌĂƐşůŝĂ͗dŚĞƐĂƵƌƵƐ͕ϭϵϳϳ͘
cessário para si. Beltrão esclarece que o ><^KhE͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬǁǁǁ͘ďůĂĐŬƐŽƵŶĚ͘ĐŽŵ͘ďƌх͘ĐĞƐƐŽĞŵ͗Ϯϵ
que caracteriza os processos folkcomu- ũĂŶ͘ϮϬϭϬ͘
nicacionais é que “as mensagens são ela- E>/E/͕EĠƐƚŽƌ'ĂƌĐşĂ͘Culturas  híbridas.^ĆŽWĂƵůŽ͗ĚŝƚŽƌĂĚĂhŶŝǀĞƌƐŝĚĂĚĞĚĞ
^ĆŽWĂƵůŽ͕ϮϬϬϴ͘
boradas, codificadas e transmitidas em
/E/͕:ƷůŝŽ͘Antropofagia  e  tropicália:  ĚĞǀŽƌĂĕĆŽͬĚĞǀŽĕĆŽ.  EƷĐůĞŽĚĞƐƚƵĚŽƐ
linguagens e canais familiares à audiên- Ğŵ>ŝƚĞƌĂƚƵƌĂĞDƷƐŝĐĂ͕ϮϬϬϳ͘ŝƐƉŽŶşǀĞů  Ğŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬǁǁǁ͘ŵĂdžǁĞůů͘ůĂŵďĚĂ͘ĞůĞ͘
cia, por sua vez, conhecida psicológica e ƉƵĐͲƌŝŽ͘ďƌͬ  E>/DͬĞŶƐĂŝŽƐͺĂƌƟŐŽƐͬũƵůŝŽͺĂŶƚƌŽƉŽŐĂĮĂĞƚƌŽƉŝĐĂůŝĂ͘  ƉĚĨх͘ĐĞƐƐŽ
vivencialmente pelo comunicador, ainda Ğŵ͗ϭϵũƵů͘ϮϬϭϬ͘
que dispersa” (Beltrão, 1980, p. 28). 'K'ZWE/KE>͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬŐŽŐƌĂƉŶĂĐŝŽŶĂů͘ĐŽŵ͘ďƌͬх͘ĐĞƐƐŽ
Com relação aos comunica- Ğŵ͗ϮϬĂďƌ͘ϮϬϭϬ͘
dores, Beltrão denomina-os líderes- 'ZEE͕DŝƚĐŚĞůů^͘sŽĐġƉĞƌĐĞďĞĐŽŵƐƵĂŵĞŶƚĞ͗ĐŽŶŚĞĐŝŵĞŶƚŽĞƉĞƌĐĞƉĕĆŽ͘/Ŷ͗
Zz͕ĞƌƌŝĐŬĞ^,>z͕dŽŵŵŝĞ͘,ŝƉͲŚŽƉĞĂ&ŝůŽƐŽĮĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗DĂĚƌĂƐ͕ϮϬϬϲ͘
comunicadores, caracterizados como
Ɖ͘ϰϰͲϱϯ͘
agentes formadores de opinião que, HERSCHMANN,DŝĐĂĞů͘O  funk  e  o  hip-­‐hop  invadem  a  cena͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗h&Z:͕
decodificam as mensagens geradas pelos ϮϬϬϬ͘
meios de comunicação de massa, trans- <>EEZ͕ŽƵŐůĂƐ.  A  cultura  de  mídia.  ĂƵƌƵ͗ĚƵƐĐ͕ϭϵϵϱ͘
formando-as em outros códigos capazes >>͕^ĠƌŐŝŽ:ŽƐĠĚĞDĂĐŚĂĚŽ͘Acorda  hip-­‐hop͗ĚĞƐƉĞƌƚĂŶĚŽƵŵŵŽǀŝŵĞŶƚŽĞŵ
de serem compreendidos pelo público ƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂĕĆŽ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ĞƌŽƉůĂŶŽ͕ϮϬϬϳ͘
ao qual pretendem comunicar. Desta DZd1EͲZZK͕:ĞƐƷƐ͘Dos  meios  às  mediações͗ĐŽŵƵŶŝĐĂĕĆŽĐƵůƚƵƌĂĞŚĞŐĞ-­‐
forma, através da folkcomunicação, os ŵŽŶŝĂ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗h&Z:͕ϮϬϬϯ͘  
KZd/͕ZĞŶĂƚŽ͘Mundialização  e  cultura.^ĆŽWĂƵůŽ͗ƌĂƐŝůŝĞŶƐĞ͕ϭϵϵϰ͘
líderes-comunicadores realizam a tra-
W/E,/ZK͕ŵĄůŝŽ͘ƋƵĠŵĚĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞĞĚĂŽƉŽƐŝĕĆŽ͗ĨŽƌŵĂƐŶĂĐƵůƚƵƌĂŵĞƐ-­‐
dução cultural de diversos elementos ƟĕĂ͘  WŝƌĂĐŝĐĂďĂ͗ĚŝƚŽƌĂhŶŝŵĞƉ͕ϭϵϵϱ͘
estrangeiros, unindo-os às suas manifes- Z/,Z͕ŝŐ͘Hip-­‐hop͗ŽŶƐĐŝġŶĐŝĂĞƟƚƵĚĞ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗>ŝǀƌŽWƌŽŶƚŽ͕ϮϬϬϱ͘
tações, criando “culturas híbridas” (Can- ZK,͕:ĂŶĂŝŶĂ͖KDE/,͕DŝƌĞůůĂĞ^^EK͕WĂƚƌşĐŝĂ͘Hip-­‐hop͗ƉĞƌŝĨĞƌŝĂ
clini, 2008) e, em muitos casos, com a ŐƌŝƚĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗WĞƌƐĞƵďƌĂŵŽ͕ϮϬϬϭ͘
finalidade de comunicar, como é o caso ^,h^dZDE͕ZŝĐŚĂƌĚ͘ƐƚĠƟĐĂƌĂƉ͗ǀŝŽůġŶĐŝĂĞĂĂƌƚĞĚĞĮĐĂƌŶĂƌĞĂů͘/Ŷ͗Zz͕
do hip-hop brasileiro. cc ĞƌƌŝĐŬĞ^,>z͕dŽŵŵŝĞ͘,ŝƉͲŚŽƉĞĂ&ŝůŽƐŽĮĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗DĂĚƌĂƐ͕ϮϬϬϲ͘Ɖ͘ϲϲͲ
ϳϱ͘
^/>s͕DşƌŝĂŵƌŝƐƟŶĂĂƌůŽƐ͘Comunicação  e  cultura  antropofágicas͗ŵşĚŝĂ͕
Thifani  Postale  é  Mestre  em  Comu-
nicação  e  Cultura.  Autora  de  “Blues   ĐŽƌƉŽĞƉĂŝƐĂŐĞŵŶĂĞƌſƟĐŽͲƉŽĠƟĐĂŽƐǁĂůĚŝĂŶĂ͘WŽƌƚŽůĞŐƌĞ͗^ƵůŝŶĂͬ^ŽƌŽĐĂďĂ͗
e  Hip-hop”:  uma  perspectiva  folkco- ĚƵŶŝƐŽ͕  ϮϬϬϳ͘
municacional;   professora   da   Univer- hE/sZ^>h>hEd/KE͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬǁǁǁ͘njƵůƵŶĂƟŽŶ͘ĐŽŵͬх͘ĐĞƐƐŽ
sidade  de  Sorocaba  (Uniso),  SP.   Ğŵ͗ϬϲũƵŶ͘ϮϬϭϭ͘
e-mail:  thifanipostali@hotmail.com t,/dDE͕sŝǀŝĂŶ͘jůƟŵĂŵŽĚĂ͘Folha  de  S.  Paulo͕^ĆŽWĂƵůŽ͕Ɖ͘ϲ͕ϵĂďƌ͘ϮϬϭϬ͘
16      CULTURA  CRÍTICA  14
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ

A história do hip-hop
Resistência da juventude negra no contexto neoliberal
ROSENVERCK  ESTRELA  SANTOS

O hip-hop teve sua gênese em


início dos anos 1970, mo-
mento em que o capitalismo
mundial enfrentava uma forte crise eco-
nômica. As taxas de lucros garantidas
após a Segunda Guerra Mundial dimi-
nuíam substancialmente, ocasionando
um reordenamento na organização do
modelo produtivo.
Tendo como princípio ideológi-
co o neoliberalismo, a reestruturação
produtiva visava recuperar os ganhos
do capital para solucionar a crise por
que passava. Nesse sentido, o Estado
de Bem-Estar Social erigido logo após
CULTURA  CRÍTICA  14        17

período foi marcado ainda pelo reordena- tural, por meio de videoclipes, CDs e
mento urbano, em que vários bairros po- filmes que transmitiam sons e imagens
bres americanos foram postos abaixo a fim referentes à dança e à música hip-hop,
de serem substituídos por grandes aveni- além dos cenários grafitados. Em nosso
das e espaços privativos como clubes, sho- país, veio com sua herança sociopolítica.
pping centers, condomínios fechados, etc. Exposições sobre a vida de líderes ne-
Os mais atingidos foram as populações ne- gros, imagens das passeatas pelos direi-
gra e hispânica moradoras dos subúrbios tos civis durante a década de 1960 nos
americanos. No campo social, o resultado Estados Unidos, denúncias e incentivo à
foi o aumento do desemprego, a precari- informação fizeram parte dos primeiros
zação do trabalho e o aprofundamento da contatos dos brasileiros com essa mani-
miséria e da violência. festação.
Foi em meio a esse contex- Definido por seus integrantes
to de crise econômica, aumento dos como “cultura de rua” ou “movimento
problemas sociais e desestruturação hip-hop”, tornou-se uma manifestação
urbana que surgiu o hip-hop. Criado amplamente difundida nas periferias
por jovens negros e pobres dos Esta- brasileiras, especialmente a partir da
dos Unidos, inicialmente na cidade de década de 1990, quando há uma maior
Nova York, o hip-hop é a união de rap organicidade política dos movimentos e
(música), break (dança) e grafite. Em alguns grupos de rap, como os Racionais
sentido literal, quer dizer “movimentar MC’s de São Paulo, passam a vender mi-
os quadris” (to hip) e “saltar” (to hop). lhares de CDs país afora.
Todavia, para além da literalidade do O hip-hop tem como caracterís-
conceito, essa manifestação foi utilizada tica a pluralidade, o que o torna rico em
como instrumento de resistência, alter- suas manifestações artísticas e proposi-
nativa de lazer e transformou-se num ções políticas, observando-se diferenças
movimento político-cultural de uma marcantes entre os Estados brasileiros e
parte considerável da juventude negra entre os vários estilos e grupos. Há, por
e pobre americana e, a partir dos anos exemplo, grupos mais religiosos que
1980, em muitos outros países. O hip- outros; uns defendem a descriminaliza-
hop consubstanciou-se como forma de ção e legalização das drogas, algumas or-
resistência e organização contra as ma- ganizações defendem a luta armada, ou-
zelas sociais, ampliadas pelo advento da tras acreditam na chamada “revolução a
a grande guerra foi apontado como um reestruturação produtiva e urbana, vivi- partir das ideias”, etc. Porém, para além
dos vilões da recessão capitalista. Era das pelas grandes cidades. das diferenças, via de regra, podemos
necessário, segundo a lógica do capital, Ressaltamos que o hip-hop é, perceber que os grupos de hip-hop são
liberar o mercado de qualquer influ- também, fruto de uma herança de lutas bastante críticos diante dos problemas
ência regulatória e, ao mesmo tempo, e reivindicações que perpassa o movi- sociais e raciais existentes, o que, em
diminuir os gastos sociais do Estado, mento de direitos civis liderados por nossa análise, serve de base para a cons-
inclusive, mercadorizando setores antes Martin Luther King, a retórica agressiva tituição de uma consciência crítica e de
considerados conquistas sociais como do líder negro Malcolm X, da organi- uma prática educativa transformadora.
educação, saúde, lazer, etc. zação e ações ousadas do Partido dos O hip-hop brasileiro tem atingi-
Os Estados Unidos, como prin- Panteras Negras (Black Panthers), além do os quatro cantos do país e, pouco a
cipal potência econômica do mundo, fo- da influência de ritmos musicais negros pouco, tem caminhado na luta por sua
ram um dos primeiros países atingidos como o blues, o jazz e o funk, durante a afirmação e reconhecimento. Mesmo
pela crise e, também, um dos pionei- década de 1960. tendo em vista suas diferenças regionais,
ros a utilizar-se de medidas neoliberais No Brasil o hip-hop apareceu contradições e conflitos, os integrantes do
visando reestruturar a produção. Esse na década de 1980, via indústria cul- hip-hop fazem parte de um conjunto de
18      CULTURA  CRÍTICA  14

manifestações da cultura popular que, possuem um conteúdo crítico-social duzidos por diversas instituições sociais
como diz Hobsbawm (2004), tem como predominante sobre temas como amor, como igrejas, escolas, meios de comu-
características mito e sonho, mas tam- paixão, lazer, festas encaradas sob o nicação, etc., procurando, a partir des-
bém protesto, pois pessoas oprimidas e ponto de vista individual. sa reflexão, tomar posicionamento, na
exploradas sempre têm algo a protestar. Com efeito, ao contrário de ou- maioria das vezes crítico, mas também
tros movimentos compostos pela classe propondo uma nova forma de pensar as
O hip-hop enquanto movimento média, “(...) a legitimidade dos escri- relações étnico-raciais e sociais, rom-
político-cultural tores dessas letras contestatórias está pendo com a suposta “cordialidade”
Hip-Hop militante tá na veia, tá no intimamente ligada às suas experiências existente nessas relações na sociedade
sangue [...] diárias, à sua condição de classe, à raça e brasileira.
Muito mais do que artista, militante é à inserção no meio urbano” (Silva, 2006, São muitas as definições e ca-
que sou, p. 208). O hip-hop, em razão disso, se racterizações encontradas nas diversas
Muito mais do que artista, ativista é que inscreve na dinâmica local. No Brasil, produções acadêmicas e bibliográficas
sou, como os próprios jovens hip-hoppianos existentes sobre o hip-hop. Apesar de
Muito mais que ódio aos boys, costumam falar, representa “a voz da fa- uma semelhança quanto aos elementos
Eu tenho amor pelo meu povo [...] vela que faz parte dela”. Segundo Silva, que o compõem (rap, break e grafite), o
Se quiser saber de nós, vem com nós, di- o hip-hop hip-hop é constituído de diferentes for-
gam Hoo!
mas políticas e organizativas que versam
Militantes da favela, pelo Quilombo eu
(...) possibilitou a reelaboração da sobre assuntos variados e muitas vezes
sou!
identidade de forma positiva em antagônicos politicamente. Podemos
(Gíria Vermelha – som de rua)
meio à desagregação das antigas ins- encontrar o hip-hop de forma dispersa,
tituições de apoio e conflitos pos- a partir de seus elementos, ou forman-
Visto que uma das característi- tos pelas transformações urbanas.
cas principais do hip-hop é a crítica e a do núcleos, como é o caso das “posses” e
(...) De fato, esta tem permanecido
desconstrução dos padrões e valores he- dos movimentos organizados, que pro-
como referência para busca de solu-
gemônicos que estigmatizam as classes ções, interpretações e ações coleti- porcionam o surgimento de movimen-
subalternas, ao mesmo tempo que um vas. (1998, p. 11) tos sociais.
outro referencial étnico-racial e social Existem no interior do hip-hop,
para os envolvidos com ele é constru- Esse movimento tem refletido inclusive, disputas e conflitos entre os
ído, compreendemos o hip-hop como acerca de estereótipos e estigmas pro- que o encaram como uma manifestação
um movimento político-cultural que cultural e outros que o consideram um
pode possibilitar a edificação de uma movimento social. Ressaltamos, então,
LGHQWLGDGH VRFLDO FROHWLYD ð QR FDVR a existência de dois grupos no interior
específico a identidade étnico-racial e do hip-hop brasileiro: um que privilegia
XPDFRQVFLrQFLDFUtWLFDðQRVHQWLGRGH o aspecto artístico e outro que se cen-
refletir e intervir na realidade, a fim de tra no caráter organizativo e político.
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞDŝŶŚŽĐĆŽ

transformá-la. É bem verdade que nenhum dos lados


O hip-hop não pode ser conside- desconsidera a importância dos aspectos
rado apenas um fenômeno cultural, uma político e artístico, mas o que se observa
vez que, em essência, existe a caracte- é a inclinação de determinados grupos
rística político-social marcadamente predominantemente para uma ou outra
presente nos elementos constituidores vertente.
desse fenômeno. Esse movimento está Em face do exposto, compreen-
permeado pelas dimensões de resis- demos melhor a pluralidade no hip-hop
tência, de protesto e de denúncia das e, por consequência, reforçamos nossa
condições socioeconômicas e culturais visão segundo a qual ele não pode ser
dos grupos subalternizados. Mesmo, visto de forma estereotipada ou mes-
por exemplo, nos grupos de rap mais mo romantizada. O hip-hop se inscre-
comerciais, as letras, de maneira geral, ve num contexto histórico específico e,
CULTURA  CRÍTICA  14        19
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞZƵĂϮϰĚĞDĂŝŽ

por isso, relaciona-se com todos os con- Entendê-lo nessa perspectiva comove.
dicionantes sociais e relações de poder nos leva a uma análise que percebe a in- Então mova-se! Pra ver se a coisa
que permeiam sua existência. A relação teração recíproca e dinâmica da políti- muda.
com os partidos políticos, movimentos ca e da arte em sua conformação. Pode- A arte pela arte, para nós é surda e
negros, ONGs, etc., muitas vezes de- mos observar, assim, que os elementos muda (...).
termina as características organizacio- artísticos do hip-hop (break, rap e grafi- (grifo nosso)
nais e políticas dos grupos de hip-hop. te) contêm certa dose de criticidade da
Conhecer a história, o contex- realidade, o que leva a uma politização, Caracterizamos movimento
to no qual surgiu, a composição social e no sentido da denúncia e reflexão so- político-cultural porque os elementos
étnica de seus integrantes é fundamental bre os problemas sociais, por parte de que o formam (rap, break e grafite) não
para apreender uma definição de hip-hop, seus membros. A arte passa a ser vista se enquadram no que poderíamos cha-
além de compreender as características como um instrumento a ser utilizado mar de “arte pela arte”. Ao contrário,
políticas e artísticas de cada um dos ele- na luta pela melhoria das condições de sua produção artística, de modo geral,
mentos que o compõem, quais sejam: o vida dos oprimidos e discriminados. está pautada num referencial que pro-
rap (música), o break (dança) e o grafite Tal assertiva pode ser observada num põe mudanças e reconstruções de va-
(arte visual). trecho da música “Lutar é preciso”, do lores, denunciando as mazelas sociais e
Enquanto força social o hip-hop grupo de rap Gíria Vermelha,de São exclusões étnico-raciais que permeiam
não se exclui das relações com as outras Luís do Maranhão, que diz: a sociedade capitalista. Em decorrên-
esferas da sociedade civil; sendo assim, cia dessa postura, surgem movimentos
afirmamos nossa posição de compre- Vai à luta, pois o teu povo é pobre sociais de hip-hop por todo o Brasil,
endê-lo como um movimento político- e sofre. organizando-se e lutando por mudanças
cultural. Se comover é fácil, qualquer um se socioeconômicas.
20      CULTURA  CRÍTICA  14

Nesse sentido, partimos da ideia pectiva da relação entre arte e política. p. 22) nos alerta para a necessidade
de que política e cultura não são ma- Conforme esse autor, convencionou-se fundamental “(...) de colocarmos al-
nifestações estanques e antagônicas. separar arte e realidade como se fossem guns pressupostos básicos que situ-
Para tanto, pressupõe considerar o ser esferas estanques e opostas. A verdade, o am o homem concreto como sujeito
humano um agente histórico, ou seja, conhecimento da realidade, a ação práti- de cultura ou, em outros termos, um
considerá-lo capaz de modificar e trans- ca e política só poderiam ser apreendi- ser capaz de assumir conscientemen-
formar a si mesmo e ao meio físico-so- das via discurso científico ou filosófico. te o seu mundo e atuar no sentido da
cial mediante suas ações e relações com À arte caberia apenas o espaço da estéti- transformação do mesmo”.
os outros seres humanos e com a natu- ca. O hip-hop, em certo sentido, rompe Vale ressaltar, ainda, que o hip-
reza. Consideramos as manifestações com essa dicotomia sendo que “(...) Um -hop tem origem entre os despossuídos
político-culturais como resultantes da dos mais maravilhosos e profundamente e oprimidos, ou seja, entre aqueles gru-
ação de seres humanos concretos situ- revolucionário aspecto do hip-hop é o pos que
ados historicamente num determinado desafio de seu dualismo” (Shusterman,
contexto socioeconômico e cultural, 2006, p. 67). (...) são menos dados à organização
que visam transformar o meio e as con- Então, não há uma separação coletiva e à organização política,
dições materiais de existência e, assim, natural e diametralmente oposta entre (...). Em um certo sentido, a força
acabam transformando a si mesmos. arte e política. Apenas os que querem das favelas (...) vem do fato de que
Nessa direção, o ser humano, manter seus privilégios culturais e eco- aqueles que vivem e frequentam
esses lugares não têm comumente
como diz Gramsci (1966, p. 38) “(...) é nômicos reforçam tal ideia. Para nós,
outra válvula de escape para a sua
um processo, precisamente o processo com efeito, arte e política se integram tristeza se não o fazer e viver im-
de seus atos (...), ‘somos criadores de no hip-hop, formando um todo orgâni- pressões estéticas, (...) [“viver de
nós mesmos’, da nossa vida, do nosso co, mesmo que nem sempre harmônico. curtições”] como diz a expressão.
destino”. Sendo assim, “A cultura huma- Recorrendo a Taylor (2006), se (Hobsbawm, 2004, p. 282)
na não é residual, não é ‘inocente’ e não considerarmos Cultura como o estilo
ocupa apenas o ‘andar de cima’ da vida de viver de uma comunidade onde se O hip-hop, nesse sentido, trans-
social. Ao contrário: toda a experiência inscrevem atitudes, instituições e práti- cende e redireciona a “força das favelas”.
humana significa realizar-se como cultu- cas que definem um modo de vida e são A simples “curtição” converte-se numa
ra e dentro de uma cultura” (Brandão, formados, também, por seus membros, concepção crítica e consciente da so-
2001, p. 15, grifo do autor). então, podemos dizer: o hip-hop é cul- ciedade na qual vivem e da necessidade
A cultura, portanto, é resulta- tura. Mas, alerta Taylor (2006, p. 93): da mudança e melhoria imediata, bem
do da experiência humana. Ou seja, “(...) as culturas são ocasiões para lutas como da organização coletiva das comu-
da existência cotidiana e das formas de políticas e política social”. nidades pobres.
produzi-la pelos seres humanos, em suas Por isso, conforme Silva (2006, O hip-hop, com efeito, no nos-
relações recíprocas e com a natureza. Se p. 208), o hip-hop pode ser caracteriza- so entendimento, desenvolve o que
o ser humano é um processo, a cultura do, grosso modo, por “(...) quatro ele- Petras (1995, p. 123) qualifica de “luta
também o será no sentido da transfor- mentos: difusão de uma visão de mundo cultural”, isto é, um combate contra
mação da realidade e da humanidade ‘engajada’ politicamente, canto, dança, as formas de opressão e exploração da
reciprocamente. Cultura, em decor- pintura”. Como se observa, o primeiro sociedade capitalista e desestruturação
rência disso, não se separa da dimensão elemento destacado trata do engajamen- urbana, assentado “(...) nos valores de
política, pois “(...) é possível dizer que to político. Portanto, podemos dizer: o autonomia, comunidade e solidariedade
o homem é essencialmente ‘político’, já hip-hop é político, no sentido, também, necessários para criar uma consciência
que a atividade para transformar e diri- de formar um movimento social. capaz de realizar transformações sociais
gir conscientemente os seres humanos Em virtude do exposto, refor- (...)” numa luta contra-hegemônica.
realiza a sua ‘humanidade’, a sua ‘natu- çamos a necessidade de não separar- Aqui cabe retomar Gramsci
reza humana’” (Gramsci, 1966, p. 48). mos arte e política, cultura e realidade (1966), segundo o qual toda a relação
Com efeito, concordamos com o como se fossem estruturas isoladas e, de hegemonia, entendida no sentido da
filósofo americano Shusterman (2006) apenas, mecanicamente interligadas. disputa pelo poder político e ideológico
em sua análise do hip-hop, na pers- É por tal razão que Damasceno (2005, entre as classes sociais, possui uma di-
CULTURA  CRÍTICA  14        21

mensão pedagógica. Portanto, as práti- Unidos no final dos anos 60 e década


cas político-culturais desenvolvidas pelo de 70 do século 20.
hip-hop constituem-se simultaneamen- Visto que o capitalismo mun-
te das esferas política, educativa e cultu- dial enfrentava forte crise em suas
ral em constante interação. Tal afirma- taxas de lucro, o fordismo e o keyne-
ção poderá ser mais bem compreendida sianismo empreendidos pelos países
a partir de um breve histórico da gênese capitalistas não mais satisfaziam às ne-
do hip-hop. cessidades do capital. Segundo Har-
vey, entre 1965 e 1973 o fordismo e
Hip-hop e Neoliberalismo: a o intervencionismo estatal keynesiano
resistência da juventude negra tornaram-se incapazes de barrar as
aos processos de reestruturação contradições inscritas ao capitalismo.
econômica e urbana “Havia problemas com rigidez dos
Surgido no início dos anos 1970 investimentos de capital fixo de lar-
a partir da união de três manifestações ga escala e longo prazo em sistemas
artísticas, o rap, o break e o grafite, o de produção em massa que impe-
hip-hop transformou-se em um dos diam a flexibilidade de planejamento
principais fenômenos político-culturais e presumiam crescimento estável em
de uma parcela da população negra e mercados de consumo invariantes”
pobre moradora dos bairros marginali- (Harvey, 2003, p. 135). Os proble-
zados e excluídos das grandes cidades. mas de rigidez dos investimentos, nos
Segundo Rose (1997) e Martins mercados, nas relações trabalhistas, os
(2005), o hip-hop surgiu como alter- impactos da alta do petróleo (1973 e
nativa aos problemas socioeconômicos 1979) trouxeram recessões e crises à
e culturais advindos da emergência das maior parte dos países capitalistas.
sociedades pós-industriais. Nessa con- O Estado do Bem-Estar Social
juntura, ocorreram reestruturações constituído como solução para os pro-
econômicas e urbanas, centrais nos Esta- blemas da crise do capitalismo liberal no
dos Unidos da América, que resultaram final da década de 1920, a partir do in-
em consequências danosas aos morado- tervencionismo e planejamento estatal,
res mais pobres das cidades americanas: passou a ser apontado como principal
os negros e os hispânicos. responsável pela crise recente.
Lembramos, no entanto, que O novo modelo produtivo e de
a difusão de um “pensamento único”, acumulação capitalista, no contexto
visando reformas no Estado, rees- da globalização econômica sob a égi-
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞDŝŶŚŽĐĆŽ

truturação nas formas e organização de do neoliberalismo, chamado por


de produção e nas relações capital/ Harvey de “Acumulação flexível de
trabalho, configura-se sob inúmeras Capital”, nascia marcado por profun-
denominações, a saber: “(...) globali- das transformações tecnológicas, novas
zação, Estado mínimo, reengenharia, estruturas industriais, novas institucio-
reestruturação produtiva, sociedade nalidades, mudanças nas relações de
pós-industrial, sociedade pós-classista, trabalho, novos conceitos de produção,
sociedade do conhecimento, qualidade substituição da produção em massa
total, empregabilidade, etc.” (Frigotto pela produção variável, focalização da
e Ciavatta, 2003, p. 95). Não obstan- produção [terceirização], substituição
te, concordamos que o hip-hop nasceu da eletromecânica pela microeletrô-
em meio ao processo de reestruturação nica, transnacionalização das decisões,
produtiva empreendida nos Estados expansão da multimídia, etc.
22      CULTURA  CRÍTICA  14

Não obstante, tendo como expo- transformações estruturais no modelo


entes iniciais os intelectuais Milton Frie- produtivo. Além disso, desde os anos
dmam e Friedrich August Von Hayek, 1960, a cidade vinha sofrendo inter-
bem como os governos de Margaret venções em sua paisagem urbana que
Thatcher na Inglaterra (1979-1990) potencializavam os problemas enfrenta-

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞDŝŶŚŽĐĆŽ
e Ronald Reagan nos Estados Unidos dos pela parcela da população negra e
(1980-1988), erigiu-se o neoliberalis- hispânica.
mo, vertente ideológica e prática do Segundo Berman (p. 357), nos
processo de globalização ou mundializa- Estados Unidos iniciava-se o domínio do
ção do capital, difundido como inevitá- “mundo da via expressa”. “O dinheiro e
vel a todas as nações. a energia foram canalizados para as no-
Nesse contexto, a vida cotidiana vas autoestradas e para o vasto sistema
dos moradores das cidades americanas de parques industriais, shopping centers
foi sendo radicalmente modificada. Nos e cidades-dormitório que as rodovias
anos 1970, nos Estados Unidos, as ci- estavam inaugurando”. Por outro lado,
dades foram perdendo verbas federais continua Berman, milhões de pessoas
para os serviços sociais. Tendo por base negras e hispânicas que convergiam para
a reestruturação produtiva, ocorreram as cidades norte-americanas sofreram as
transformações urbanas, comerciais e consequências dessas mudanças. De-
no mercado de trabalho que afetaram sempregadas e extremamente pobres,
sobremaneira os mais pobres e aumen- essas pessoas viviam sem perspectivas e Lawson argumenta que é possí-
taram a distância entre classes e raças no esperança. vel, por meio de algumas canções de hip-
país. O lugar considerado “o berço do hop, perceber um desafio à política libe-
Hobsbawm (1999a, p. 333 e hip-hop”, o South Bronx, em NovaYork, ral nos Estados Unidos em relação a duas
334) nos fornece uma descrição da po- sofreu intensivamente os efeitos dessas questões centrais. Em primeiro lugar, o
pulação negra norte-americana no perí- transformações. Mais de 60 mil residên- Estado americano nunca cumpriu com
odo supracitado: cias foram destruídas e 170 mil pesso- relação aos negros o pleno direito de
as tiveram que se deslocar, devastando, cidadania; segundo, em consequência, a
Os setores pobres da população dessa forma, “(...) uma rede familiar e luta pelos direitos civis deveria continuar.
negra urbana nativa dos EUA, ou os serviços comerciais oferecidos por O respeito às liberdades huma-
seja, a maioria dos negros america- um bairro aos seus moradores” (Rose, nas tão propaladas pelo neoliberalismo
nos, tornaram-se o exemplo típico 1997, p. 200). O South Bronx tornou-- não parecia se aplicar aos negros, em
dessa ‘sub-classe’, um corpo de ci- -se o “símbolo do desgosto americano” meio às práticas coercitivas do racismo.
dadãos praticamente fora da socie-
com seus prédios destruídos e abando- O “(...) tratamento dado aos negros nos
dade oficial, não fazendo parte real
dela – no caso de muitos de seus nados, com o aumento da violência e Estados Unidos levou alguns membros
jovens – do mercado de trabalho. com a população submetida às ordens conscientes da comunidade hip-hop a
Na verdade, muitos de seus jovens, dos traficantes e gangues armadas. questionarem o significado da cidadania
sobretudo os homens, praticamen- Por outro lado, como observa (...)” (Lawson, 2006, p. 164).
te se consideravam uma sociedade Berman, em contraposição ao “mundo Lawson descreve qual seria o
proscrita, ou anti-sociedade. da via expressa” surgia uma forte cultu- sentimento dos que fazem hip-hop nos
ra pautada no resgate da rua. O “grito Estados Unidos: “O inimigo está à nossa
Naturalmente essa situação afe- de rua” ressurgia como alternativa à de- volta. Estamos em guerra. É uma guerra
tou importantes cidades dos Estados sestruturação urbana, à ausência de lu- para as mentes, corações e as almas das
Unidos, entre elas Nova York e sua po- gares públicos de lazer e comunicação. pessoas negras. Essa é a mensagem do
pulação mais pobre, constituída de ne- Contestava-se a privatização dos espaços rap revolucionário e consciente da co-
gros e latinos. Como principal centro consubstanciados nos shopping centers, munidade hip-hop” (p. 169).
financeiro internacional, Nova York so- nos condomínios luxuosos, nos clubes O hip-hop, enquanto “cultura de
freu imediatamente os impactos dessas privativos, etc. rua” , portanto, ressignifica, redefine e
1
CULTURA  CRÍTICA  14        23

surge como mais uma das alternativas a Ressaltamos ainda que o hip-hop na história negra e na longa tradição
esse cenário de desestruturação urbana e surge na esteira dos movimentos pelos norte-americana de racismo e opres-
dos laços tradicionais como a família e a direitos civis dos negros que eclodiram são social, no entanto, incorpora novos
comunidade. “O hip-hop duplicou, rein- nos Estados Unidos e da luta de líderes elementos: a polícia e o sistema penal
terpretou a experiência da vida urbana e como Malcolm X, Martin Luther King e como instituições centrais, a economia
apropriou-se, simbolicamente, do espaço organizações como os Panteras Negras, do crime como o chão de fábrica, as es-
colas como área de conflito, as igrejas
urbano” (Rose, 1997, p. 193). que tinham como lema: “Poder para o
como redutos de conciliação, famílias
O hip-hop reinventou os espaços povo preto” e possuíam uma filosofia po- madrecêntricas, ambientes depaupe-
urbanos, pois lítica pautada no maoísmo. rados, organização social baseada em
Destacamos que foi no governo gangues, uso de violência como meio
A fala sobre metrôs, grupos e turbas, do presidente Ronald Reagan (1980- de vida. São esses os novos temas da
economia estagnada, sinais estáticos 1988), início do projeto neoliberal, que nova arte e literatura negra nascidos da
e cruzados surge nas canções, nos boa parte das ações afirmativas conquis- nova experiência do gueto. (Castells,
temas e no som do hip-hop. Os ar- tadas e empreendidas durante a década 2006, p. 76)
tistas grafitavam murais e logos nos de 1960 foram eliminadas e/ou sofreram
trens, nos caminhões e nos parques, Articulando elementos de matriz
fortes ataques. A população negra se viu africana, história dos afrodescendentes e o
reivindicando seus territórios e ins-
crevendo sua outra e contida iden- afetada drasticamente por essa política cotidiano das ruas, da vida urbana (Cunha
tidade na propriedade pública. Os de retirada de direitos, o que a dividiu, Jr., 2003), o hip-hop difundiu-se em fes-
primeiros dançarinos de break (...) também, em dois grupos: os que haviam tas, criadas pelo DJ americano Afrika
elaboraram suas danças nas esquinas se beneficiado das ações afirmativas e Bambaataa, que tinham o propósito de
das ruas junto aos blocos de con- mantinham um padrão de vida médio e diminuir as brigas de gangues que asso-
creto e placas e fizeram com que as os que não conseguiam mais auxílios so- lavam os bairro pobres de Nova York e,
ruas se tornassem teatros e centros ciais e viviam no caldeirão de mudanças ao mesmo tempo, reivindicar ações pú-
provisórios para a juventude. (Rose, da economia e da reestruturação do es- blicas estatais que garantissem a melhoria
1997, p. 193) paço urbano. de vida dos negros e latinos, bem como
Os iniciadores do hip-hop faziam denunciar a violência policial e as discri-
Além disso, não resta dúvida de parte desse segundo grupo, ou seja, vi- minações sofridas por essas pessoas.
que dos anos 1960 até meados dos 1970 veram num momento de agudização do
houve uma grande reviravolta nos valo- abismo “racial” e social pós década de Conclusão
res até então cultivados. Contestação e 1960. Esse contexto influenciará na pro-
rebelião são duas palavras com as quais dução artística. Enquanto o jazz e o blues Entendemos o hip-hop nessa
se procura captar o espírito da época representavam o gosto musical da classe perspectiva, ou seja, como parte inte-
(Paes, 1992, p. 20). Segundo Hobsbawm média e rica afro-americana, o hip-hop se grante de todo um processo de con-
(1999a), uma verdadeira “Revolução constituía enquanto expressão da popula- testações e busca de soluções para os
Cultural” ocorreu nesse período, por ção negra e hispânica mais radicalmente problemas de racismo e exclusão social
meio de mudanças de valores, principal- oprimida e marginalizada. enfrentados pelas comunidades latinas e
mente nas “relações entre os sexos e as Hobsbawm (1999b, p. 399), por negras norte-americanas.
gerações” com a desestruturação familiar exemplo, afirma que atualmente os “jo-
(em que as famílias passaram a ser cada As transformações sociais vivencia-
vens negros não sonham em tocar trom-
vez mais dependentes apenas das mães) das pelos jovens tornaram-se objeto
pete (...) mas sonham em participar de de ação e reflexão para os segmen-
e a liberação sexual. Outro ponto desta- grupos de rap (...)”. Castells, analisando tos juvenis mais diretamente amea-
cado por Hobsbawm (1999a, p. 317) foi os aspectos culturais do que ele chama çados pela reestruturação da cidade
o aumento de uma certa cultura juvenil, de “sociedade informacional”, diz o se- [NovaYork], especialmente os jovens
pois a “(...) juventude, um grupo com guinte: afro-americanos e de origem hispâ-
consciência própria que se estende da nica. Por esse motivo tornaram-se
puberdade, (...), até a metade da casa dos O rap, e não o jazz, é o produto des- os principais sujeitos do processo de
vinte agora se tornava um agente social sa nova cultura, que também expressa constituição do movimento hip-hop.
independente”. uma identidade, também está fundada (Silva, 1998, p. 34)
24      CULTURA  CRÍTICA  14

Percebemos que desde o início


Nota
do hip-hop houve uma forte preocupa- ϭ͘ĚĞƐƐĂĨŽƌŵĂƋƵĞƐĞƵƐŝŶƚĞŐƌĂŶƚĞƐŽĚĞŶŽŵŝŶĂŵ͘
ção com a comunidade e os jovens que
nela habitam. A intenção era impedir que
Referências
eles se matassem mutuamente em brigas
incessantes pelo controle de territórios e ZDE͕DĂƌƐŚĂůů͘  Tudo  que  é  sólido  desmancha  no  ar:  ĂĂǀĞŶƚƵƌĂĚĂŵŽĚĞƌŶŝ-­‐
bairros. Com tal propósito, Afrika Bam- ĚĂĚĞ͘dƌĂĚ͘ĂƌůŽƐ&ĞůŝƉĞDŽŝƐĠƐ͕ŶĂDĂƌŝĂ>͘/ŽƌŝĂƫ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ŽŵƉĂŶŚŝĂĚĂƐ
baataa uniu-se a dois outros pioneiros do >ĞƚƌĂƐ͕ϮϬϬϯ͘
hip-hop, Kool Herc, considerado o cria- ZEK͕ĂƌůŽƐZŽĚƌŝŐƵĞƐ͘,ŽũĞ͕ƚĂŶƚŽƐĂŶŽƐĚĞƉŽŝƐ͘͘͘;ƉƌĞĨĄĐŝŽͿ͘/Ŷ͗^Kh͕ŶĂ
dor do rap e o DJ Grand Master Flash, /ŶġƐĞ^d>>^͕DĂŶƵĞů͘KƉŽĚĞƌĚĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞ͘  ϱ͘ĞĚ͘  dƌĂĚ͘<ůĂƵƐƐƌĂŶĚŝŶŝ'ĞƌŚ-­‐
inventor de inúmeras técnicas utilizadas ũĂƌĚƚ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ĚŝƚŽƌĂWĂnjĞdĞƌƌĂ͕ϮϬϬϲ͘
pelos DJs de hip-hop, e, a partir de en- hE,:Z͕͘,ĞŶƌŝƋƵĞ͘sĞƌǀĞŶĚŽ͕ǀĞƌƐĂŶĚŽƐĞŵǀĞƌƐŽ͕ĞƐĐƌĞǀĞŶĚŽĞƐĞŝŶƐĐƌĞǀĞŶĚŽ
tão, por meio dos vários eventos públicos ŶŽŚŝƉͲŚŽƉ͘  ZĞǀŝƐƚĂEspaço  Acadêmico͕Ŷ͘ϯϭ͕ĚĞnj͘ϮϬϬϯ͘  ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬ
no bairro do Bronx, lançaram a ideia de ǁǁǁ͘ĞƐƉĂĐŽĂĐĂĚĞŵŝĐŽ͘ĐŽŵ͘ďƌͬϬϯϭͬϯϭĐĐƵŶŚĂ͘Śƚŵх͘ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϮϴŵĂŝϮϬϬϱ͘
que as gangues poderiam resolver os seus D^EK͕DĂƌŝĂEŽďƌĞ͘Artesania  do  saber:  ƚĞĐĞŶĚŽŽƐĮŽƐĚĂĞĚƵĐĂĕĆŽƉŽƉƵ-­‐
problemas por meio da arte. ůĂƌ͘&ŽƌƚĂůĞnjĂ͗ĚŝƚŽƌĂh&͕ϮϬϬϱ͘
&>/y͕:ŽĆŽĂƟƐƚĂĚĞ:ĞƐƵƐ͘Hip-­‐hop:ƵůƚƵƌĂĞƉŽůşƟĐĂŶŽĐŽŶƚĞdžƚŽƉĂƵůŝƐƚĂŶŽ͘;dĞƐĞ
Criaram, assim, a batalha de break,
ĚĞŽƵƚŽƌĂĚŽĞŵŶƚƌŽƉŽůŽŐŝĂ^ŽĐŝĂůͿ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗h^W͕ϮϬϬϱ͘
que eram disputas simbólicas no plano da &Z/'KddK͕'ĂƵĚġŶĐŝŽ͕Ğ/sdd͕DĂƌŝĂ͘ĚƵĐĂĕĆŽďĄƐŝĐĂŶŽƌĂƐŝůŶĂĚĠĐĂĚĂĚĞ
arte, da dança break, com o objetivo de ϭϵϵϬ͗ƐƵďŽƌĚŝŶĂĕĆŽĂƟǀĂĞĐŽŶƐĞŶƟĚĂăůſŐŝĐĂĚŽŵĞƌĐĂĚŽ͘/Ŷ͗Educação  &  Socie-­‐
deslocar os conflitos violentos das ruas. dade,ĂŵƉŝŶĂƐ͗^͕ǀ͘Ϯϰ͕Ŷ͘ϴϮ͕ϮϬϬϯ͘
Como resultado dessas ações, muitos dos 'ZD^/͕ŶƚƀŶŝŽ͘ŽŶĐĞƉĕĆŽĚŝĂůĠƟĐĂĚĂ,ŝƐƚſƌŝĂ͘  dƌĂĚ͘ĂƌůŽƐEĞůƐŽŶŽƵƟŶŚŽ͘
antigos domínios territoriais das gangues ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ŝǀŝůŝnjĂĕĆŽƌĂƐŝůĞŝƌĂ͕ϭϵϲϲ͘
passaram a ser delimitados apenas por ,Zsz͕ĂǀŝĚ͘Condição  Pós-­‐Moderna.  dƌĂĚ͘ĚĂŝůhďŝƌĂũĂƌĂ^ŽďƌĂůĞDĂƌŝĂ^ƚĞůĂ
grafites com mensagens de paz e anún- 'ŽŶĕĂůǀĞƐ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ĚŝĕƁĞƐ>ŽLJŽůĂ͕ϮϬϬϯ͘
cios de festas. Nestas o DJ (disc jockey) e ,K^tD͕ƌŝĐ͘História  social  do  jazz.dƌĂĚ͘ŶŐĞůĂEŽƌŽŶŚĂ͘ϰ͘ĞĚ͘ZŝŽĚĞ:Ă-­‐
o MC (mestre de cerimônia) faziam seus ŶĞŝƌŽ͗WĂnjĞdĞƌƌĂ͕ϮϬϬϰ͘
shows, por meio de improvisos, entoando ͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺ͘A  era  dos  extremos:  ŽďƌĞǀĞƐĠĐƵůŽyy͕ϭϵϭϰͲϭϵϵϭ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ŝĂ͘
palavras de protesto e reivindicações. To- ĚĂƐ>ĞƚƌĂƐ͕ϭϵϵϵĂ͘
ͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺ͘Pessoas  extraordinárias.  Ϯ͘ĞĚ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗WĂnjĞdĞƌƌĂ͕ϭϵϵϵď͘
dos aqueles que assim o quisessem fazer
>t^KE͕ŝůů͘ŽŵĂŶĚŽƐĚŽŵŝĐƌŽĨŽŶĞ͗ƌĂƉĞĮůŽƐŽĮĂƉŽůşƟĐĂ͘/Ŷ͗Zz͕ĞƌƌŝŬ͕
eram convidados a subir no palco e expor Ğ^,>z͕dŽŵŵŝĞ͘dƌĂĚ͘DĂƌƚŚĂDĂůǀĞnjnjŝ>ĞĂů͘,ŝƉͲŚŽƉĞĮůŽƐŽĮĂ͗ĚĂƌŝŵĂăƌĂnjĆŽ͘
suas mensagens. ^ĆŽWĂƵůŽ͗DĂĚƌĂƐ͕ϮϬϬϲ͘
O hip-hop, nesse sentido, tem um DZd/E^͕ZŽƐĂŶĂ͘Hip-­‐hop͗ŽĞƐƟůŽƋƵĞŶŝŶŐƵĠŵƐĞŐƵƌĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗WƌŝŵĂ>ŝŶĞĂ͕
forte apelo à localidade, ao grupo, a uma ϮϬϬϱ͘
espécie de família alternativa proporcio- W^͕DĂƌŝĂ,ĞůĞŶĂ^ŝŵƁĞƐ͘A  década  de  60:  ƌĞďĞůĚŝĂ͕ĐŽŶƚĞƐƚĂĕĆŽĞƌĞƉƌĞƐƐĆŽ
nadora de segurança, lazer, solidariedade ƉŽůşƟĐĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ƟĐĂ͕ϭϵϵϮ͘
e, por outro lado, tem sua formação a WdZ^͕:ĂŵĞƐ͘Ensaios  contra  a  ordem.  ^ĆŽWĂƵůŽ͗^ĐƌŝƩĂ͕ϭϵϵϱ͘
partir de inúmeros elementos da cultu- ZK^͕dƌŝĐŝĂ͘hŵĞƐƟůŽƋƵĞŶŝŶŐƵĠŵƐĞŐƵƌĂ͗ƉŽůşƟĐĂ͕ĞƐƟůŽĞĐŝĚĂĚĞƉſƐͲŝŶĚƵƐƚƌŝĂů
ra negra e hispânica reelaboradas num ŶŽŚŝƉͲŚŽƉ͘/Ŷ͗,Z^,DEE͕DŝĐĂĞů;ŽƌŐ͘Ϳ͘Abalando  os  anos  90:  funkĞhip-­‐hop͕
contexto histórico de transformações ŐůŽďĂůŝnjĂĕĆŽ͕ǀŝŽůġŶĐŝĂĞĞƐƟůŽĐƵůƚƵƌĂů͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ZŽĐĐŽ͕ϭϵϵϳ͘
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observamos nas características dos ele-
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mentos que o compõem: o rap, o break ^/>s͕:ŽƐĠĂƌůŽƐ'ŽŵĞƐĚĂ͘RapŶĂĐŝĚĂĚĞĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ͗ŵƷƐŝĐĂ͕ĞƚŶŝĐŝĚĂĚĞĞĞdž-­‐
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Rosenverck  Estrela  Santos  é  Mestre   dz>KZ͕WĂƵů͘KŚŝƉͲŚŽƉƉĞƌƚĞŶĐĞĂŵŝŵ͍ĮůŽƐŽĮĂĚĂƌĂĕĂĞĐƵůƚƵƌĂ͘/Ŷ͗Zz͕
em  Educação  e  Professor  da  Univer- ĞƌƌŝŬ͕Ğ^,>z͕dŽŵŵŝĞ͘dƌĂĚ͘DĂƌƚŚĂDĂůǀĞnjnjŝ>ĞĂů͘,ŝƉͲŚŽƉĞĮůŽƐŽĮĂ͗  ĚĂƌŝŵĂă
sidade  Federal  do  Maranhão. ƌĂnjĆŽ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗DĂĚƌĂƐ͕ϮϬϬϲ͘
CULTURA  CRÍTICA  14        25

As vozes da África: o gueto


forja sua cultura
RAFAEL  LOPES  DE  SOUSA

D esde o advento do rock1, pas-


sando pelo fenômeno punk2,
até o encontro com o anti-
-cordial movimento rap3, a música tem
sido a ferramenta mais intensamente
ðFRPRWHPDV´DX[LOLDUHVµGHFRPXQL-
cação, ampliando, assim, o território
de atuação para os seus membros. O
intercâmbio estabelecido entre essas
representações culturais fortalece as
Essa nova modalidade de comuni-
cação desnudou as contradições e revelou
as incertezas do Brasil contemporâneo. Ao
criar as condições materiais para uma nova
leitura da sociedade, esses jovens, banidos
utilizada entre os jovens de todas as intervenções dos jovens periféricos no da vivência cívica, ocupam simbolicamen-
classes sociais para expressar os seus cenário urbano. Motivados, agora, por te o espaço urbano por meio da música, da
sentimentos de vida. O movimento essa nova situação, eles abandonam as dança e da arte gráfica e forjam no coração
hip-hop inova, contudo, ao incorporar áreas de confinamento, a fim de ques- da cidade novas redes de relacionamento e
em suas manifestações outras modali- tionar de maneira mais ampla e aberta sociabilidade em torno das quais emerge a
GDGHV DUWtVWLFDV ð D GDQoD H R JUDILWH as condições materiais de suas vidas. cultura hip-hop4.
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞDŝŶŚŽĐĆŽ
Rap: a voz amplificada os jovens da periferia de São Paulo? Em que têm da sociedade talvez expliquem
da periferia que instâncias e com quais ferramentas os enfrentamentos e as rixas amiúde
são elaboradas? Que influência exercem verificadas entre os diversos grupos de
Entre os três elementos que no cotidiano desses jovens? São essas estilo na defesa dos seus territórios e
constituem a cultura hip-hop, o mo- questões que abordaremos neste artigo. de suas causas. É importante salientar,
vimento rap tem se destacado como o Dialogando com a cultura pas- contudo, que, apesar das diferenças in-
principal representante. É, pois, na con- sada e presente, com representações terpostas, o consumo e a produção mu-
dição privilegiada de abordar in loco os locais e globais, os jovens da periferia de sical persistem como traços comuns no
problemas da periferia, que esse movi- São Paulo, envolvidos com o movimen- universo das coletividades juvenis.
mento tem se firmado como uma voz to hip-hop, abandonam a condição pas- O entendimento e a relação que
amplificada das queixas e cobranças siva de consumidores para assumir uma os jovens estabelecem com a sociedade
que os jovens pobres do Brasil fazem condição ativa de produtores de cultura. estão, portanto, atravessados pelos atos
em suas cidades. Ao trazer à tona temas A determinação de colocarem-se como de consumir ou de produzir música.
controversos da vida urbana, os jovens, artífices de seu próprio tempo aproxi- De tal sorte que a escolha que fazem,
envolvidos com esse grupo de estilo5, mou as experiências e unificou as forças de qualquer uma dessas duas modalida-
deixam em xeque a legitimidade do dispersas dos jovens periféricos num fa- des de cultura, orienta e fundamenta o
estatuto-padrão que regulamenta suas zer cultural autogerido. comportamento do indivíduo no meio
vidas e forjam, na esteira desses aconte- Esse novo saber é composto por social. Assim, quando se deixa envolver
cimentos, novas representações em tor- práticas e hábitos que fundamentam o e influenciar pela indústria da moda e
no das quais constroem o estilo rap. Um universo de ação de cada grupo. Assim, do consumo, o indivíduo perde sua au-
estilo que oferece, aliás, as bases mate- as causas defendidas por determinado tonomia para tornar-se a face maquiada
riais e simbólicas para reorientar a con- grupo não são, necessariamente, as ban- da vontade coletiva. Se, por outro lado,
dição de existência na periferia. Qual o deiras de defesa do outro. A diversidade ele opta pelos horizontes indefinidos
significado dessas representações para de pensamento e a visão particularizada da produção autogerida, a liberdade de
CULTURA  CRÍTICA  14        27

criar e de experimentar define novos ção, da alienação, enfim, que a cultura do álbum Sobrevivendo no Inferno,
modos de ser e de viver do indivíduo consensual sempre quis lhes imputar, o de 1997)
em sociedade. relacionamento que estabelecem com
Por ser o elemento mais expres- os conflitos da vida urbana deixa entre- É possível entrever nesse discur-
sivo da cultura hip-hop, o rap procla- ver uma postura militante com os pro- so a busca de novos patamares e modos
ma-se um espaço de autoconhecimento blemas e riscos que o meio social lhes de cidadania, que, nos dizeres de Dayrell
pronto para instruir e alertar os mo- impõe. Isso permite que as demandas (2001, p. 131), oferecem subsídios con-
radores do gueto contra as armadilhas impostas por essa conjuntura adversa sistentes para os jovens periféricos cria-
do sistema. Não há uma fórmula fixa sejam recolhidas e cuidadosamente in- rem uma narrativa da autoidentidade.
ou preestabelecida para esse sinal de ventariadas em suas crônicas musicais. Entre as principais consequên-
alerta; as necessidades cotidianas e a cias produzidas por essas narrativas
urgência das ruas é que vão tramando e 60% dos jovens de periferia sem da autoidentidade queremos destacar
antecedentes criminais já sofreram aquela que mais perplexidade causou
construindo maneiras variadas de res-
violência policial. A cada quatro
postas para uma realidade que se apre- à sociedade: trata-se do distanciamen-
pessoas mortas pela polícia três
senta pouco amistosa para os jovens são negras. Nas universidades bra- to, vale dizer, do abandono contínuo e
pobres. sileiras apenas 2% dos alunos são sistemático que os jovens suburbanos
Assim, quando a situação pede, negros. “A cada quatro horas um estabeleceram com as instâncias media-
eles apelam à fé e à sensibilidade re- jovem negro morre violentamente doras do “Brasil Cordial”, para adotar,
ligiosa do indivíduo: “que Deus me em São Paulo”. (Racionais MC’s, num mesmo movimento, um conflito
guarde pois eu sei que ele não é neu-
tro/ vigia os ricos mas ama os que vêm
do gueto” (Racionais MC’s, do álbum
Nada como um dia após o outro dia, de
2002). Caso essa estratégia mostre-se
insuficiente para conquistar a confiança
da comunidade, eles recorrem a outro
expediente de igual importância, com
uma força mobilizadora ainda maior, e
denunciam o preconceito racial do qual
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ

são vítimas: “negro drama / cabelo


crespo e a pele escura / a ferida a cha-
ga, a procura da cura” (idem). Se ainda
assim não conseguem despertar a cons-
ciência da comunidade, com nenhuma
dessas estratégias, eles põem em pauta
a truculência com que a polícia costu-
ma tratar os seus semelhantes: “...não
confio na polícia, raça do caralho / Se
eles me acham baleado na calçada /
Chutam minha cara e batem em mim /
Eu sangraria até a morte / Já era, um
abraço / Por isso minha segurança /
Eu mesmo faço” (Racionais MC’s, do
álbum Raio X Brasil, de 1993).
Os fragmentos acima exempli-
ficam bem como os rappers lidam com
as dificuldades cotidianas da periferia.
Para além do conformismo, da resigna-
28      CULTURA  CRÍTICA  14

aberto, generalizado e sem tréguas no sentir impedido de participar da vida cí-


espaço urbano. Assim, em que pesem as vica, desloca suas expectativas para um
críticas e injúrias que a cultura consen- circuito fechado, pouco compreensível
sual faz às opções e caminhos escolhidos aos olhos e ao entendimento da socie-
pelos “militantes” do movimento rap, é dade.
importante ressaltar que as cobranças e
enfrentamentos que suas intervenções O eixo oblíquo que guia o enfoque
trazem para a arena pública revelam um entre o asfalto e a favela tem sido
desgaste dos princípios que sustentam a violência urbana, que se apresen-
o discurso do Brasil cordial, principal- ta com origem definida nas fave-
mente por apresentar a violência e o las, nos morros onde habitam os
pobres, nas ruas contaminadas e
conflito – em lugar do acordo e do en-
ameaçadas pela sua presença, onde
tendimento – como métodos privilegia- assaltam, realizam o comércio in-
dos de comunicação e protesto. formal ou dormem sob as mar-
Três fatores contribuíram decisi- quises dos prédios, obstinados em
vamente para o desenvolvimento dessa demonstrar a insolvência teórica
insubordinação na periferia da cidade de daqueles que realizam construções
São Paulo. O primeiro está relacionado binárias entre os espaços públicos e
com a pouca oportunidade que os jo- privados. (Arce, 1997, p. 150)
vens, principalmente os jovens suburba-
nos, encontraram a partir da década de Essa nova modalidade de recla-
1980, para se integrarem no mercado mar, isto é, essa intervenção violenta
de trabalho. O segundo fator está direta- que agora trazem para o espaço urbano
mente associado ao primeiro, ou seja, à está presente, segundo Rocha (2004),
medida que são distanciados do mundo na maioria das representações culturais
do trabalho e das oportunidades que ele do Brasil contemporâneo. Ganha im-
reserva, os jovens reagem e respondem, portância, todavia, em expressões artís-
por exemplo, com um crescente desin- ticas que retratam de maneira incomum
teresse pelos estudos e pela instituição e contundente o cotidiano da periferia.
escolar. Estabelecem, com esse posicio- Para esse autor, as músicas dos Racionais
namento, uma relação pragmática com MC’s e os romances de Ferréz, como
os estudos e com outras instâncias do Manual Prático do Ódio e Capão Pecado,
conhecimento formal. Em outras pala- merecem destaque pela elaboração e
vras, a escola perde o status privilegiado pelas proposições apresentadas. Apesar
de ser a principal fonte de conhecimen- de serem expressões artísticas manifes-
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞDŝŶŚŽĐĆŽ

to e oportunidades de emancipação para tadamente voltadas para as causas e pro-


a vida dos jovens da periferia. Num ter- blemas das regiões periféricas, é impor-
ceiro plano, encontra-se o aumento da tante lembrar que outros conflitos da
desconfiança dos pobres na imparciali- cultura brasileira da contemporaneida-
dade e infalibilidade da Justiça. de são também evidenciados nessas re-
Não se trata de fazer uma carica- presentações sempre de maneira aber-
tura, mas de propor uma hipótese, a de ta, franca e sem maquiagem. São essas
que quando alguns dos principais pila- características, aliás, que distinguem, no
res de inserção e sustentação dos jovens limite, a marginalidade de hoje da ma-
na vida social enfraquecem, a sociedade landragem de outrora.6
torna-se também frágil, pois deixa de Pode-se dizer, então, que, ao
usufruir adequadamente da energia e da trazer à tona os problemas permanente-
criatividade desse segmento, que, ao se mente negligenciados e as reivindicações
CULTURA  CRÍTICA  14        29

reiteradamente desprezadas pela cultura dos mecanismos de exclusão social, pela consensual, por um lado, enquanto, de
consensual, o movimento rap cria uma primeira vez realizado pelos próprios outro, põe sob suspeição as alternativas
“poética da sobrevivência” na periferia e excluídos” (Rocha, 2004). oferecidas pelos “modelos salvacionis-
forja, com essa atitude, outras represen- Esse despertar de consciência tas”7 dos movimentos e partidos de es-
tações culturais para o Brasil contempo- em torno da sofrível condição na qual querda das décadas anteriores. O novo
râneo. Esse movimento supera, assim, encontram-se imersos empresta a esses era o que se esperava, o novo era o que
os limites estabelecidos pela “Dialética jovens, banidos da vivência cidadã, uma se buscava. Era como se tivesse iniciado o
da Malandragem” e, num mesmo mo- conotação radical para suas manifesta- segundo tempo de um jogo, só que com
vimento, cria as condições favoráveis ções. Dificulta a aceitação e, consequen- novos jogadores, os quais não aceitam as
para o desenvolvimento da “Dialética da temente, a participação em um jogo que regras estabelecidas e, por isso, resolvem
Marginalidade”. tem regras e norma preestabelecidas, impor suas condições para participar do
Pontuando as diferenças entre mas que eles não ajudaram a elaborar. teatro social.
essas duas culturas, Rocha (2004) sus- Por isso, poderíamos dizer, conforme É neste cenário em transforma-
tenta que os mecanismos de atuação da Marcuse (1982), que as práticas de re- ção que os elementos constitutivos da
primeira oscilam sempre entre os polos sistência mais utilizadas pelos jovens cultura hip-hop estão sendo delineados.
da ordem e da desordem, na busca de atualmente guardam muitas semelhan- O desafio de experimentar as possibili-
acordos e entendimentos com a vã ilu- ças com a rebeldia propugnada pelos dades que as tecnologias eletroeletrôni-
são de ser “absorvido pelo polo conven- jovens da década de 1960, pois agora, cas oferecem já havia sido devidamente
cionalmente positivo” da sociedade. Já como outrora, o fato de eles começa- investigado pelas gerações anteriores. A
os preceitos que norteiam o campo de rem a recusar jogar o jogo pode ser o meta agora, portanto, é ampliar os ho-
atuação da segunda vertente, isto é, que fato que marca o começo do fim de um rizontes oferecidos por esses recursos e
guiam as ações da “Dialética da Margi- período. é isso, precisamente isso, que o movi-
nalidade”, não trabalham pela busca da O início dos anos 1980 marca, mento rap faz ao introduzir e trabalhar
conciliação ou da harmonização social e de fato, o começo de um novo período novos conceitos na música urbana con-
é por isso que seus representantes rejei- para a sociedade brasileira. Com a aber- temporânea.
tam enfaticamente qualquer tentativa de tura política, tudo se torna alvo de ques-
acordo ou entendimento como moeda tionamentos e críticas. Uma nova lógica Fazendo da sucata uma nova
de troca para a ascensão social. de participação cívica emerge desse ce- possibilidade de arte
Apresentar as contradições da nário e, de imediato, rejeita os dois la-
nação, numa “crítica certeira da desi- dos da moeda, isto é, rejeita os valores, O século 20 descortinou novos
gualdade social” parece ser o principal princípios e determinações da cultura meios de sociabilidade e integração
compromisso do movimento rap. Por
isso, os traços característicos e comuns &ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ
que permeiam a vida dos jovens perifé-
ricos – preconceito, desemprego, ex-
ploração, perseguição e analfabetismo,
violência, crime, drogas e prostituição
– ganham destaque em suas crônicas
musicais; divulgando o submundo de
suas vidas, seus integrantes insistem,
ademais, em dizer que vivem em meio
a uma guerra que não foi inventada por
eles e da qual são as maiores vítimas:
“me tiraram a paz/ quebraram a trégua
/ transformaram nossa vila num campo
de guerra” (Detentos do Rap, do álbum
Campo de Guerra, de 2002). Fazem com
isso “um esforço sério de interpretação
30      CULTURA  CRÍTICA  14

social – o rádio, o cinema, a indústria rânea, Sevcenko (2001) observa que a contra um mundo cada vez menos se-
fonográfica, a televisão –, tornando de- rápida evolução da tecnologia, na pri- melhante ao deles.
cisivas suas influências sobre a vida dos meira metade do século 20, foi acompa- Os guardiões da ordem tomam
jovens. Essas novas tecnologias foram nhada também por uma popularização essas manifestações como uma provo-
rapidamente incorporadas por esse seg- do uso de suas técnicas. O surgimento cação, um acinte, um desrespeito que
mento social como forma mais cotidia- dos toca-discos movidos a eletricidade precisava ser punido exemplarmente.
na de interferência e participação em permitiu, segundo suas análises, que os A sociedade mostrava-se cada vez mais
um mundo social que se ampliou para segmentos menos favorecidos da socie- dividida diante dos contraditórios inte-
os jovens, a partir de então. dade norte-americana, as comunidades resses apresentados por essa realidade.
Os Estados Unidos foram o ter- negras notoriamente, estreitassem os
ritório que mais incentivo e apoio pres- vínculos com esses novos meios de co- Para os jovens, era a insurreição
taram para a difusão dessa aventura tec- municação e entretenimento, fazendo contra a hipocrisia, a desigualdade
nológica e, por isso, não tardou muito de seus recursos um meio apropriado e a estupidez. Para os guardiões
para que o interesse e o empenho que para a divulgação da sua “sofisticada va- da ordem, era o paganismo, a de-
dedicavam a essa causa tivessem resulta- riedade rítmica” em outras comunida- linquência e as trevas. (...) negros,
latinos e imigrantes foram atacados,
dos práticos no cotidiano da sociedade. des.
ameaçados e intimidados por asso-
O efeito mais visível foi, provavelmente, Anos mais tarde, após a Segunda ciações racistas e intolerantes.
a criação de um ambiente favorável para Guerra, o ritmo e a dança alucinada dos (Sevcenko, 2001, p. 113)
o pleno desenvolvimento das reuniões e negros já haviam conquistado o coração
encontros dos jovens nos espaços públi- e o gosto dos jovens marginalizados e O combate não dava, pois, sinais
cos. Esses encontros foram, com efeito, excluídos daquela sociedade que, res- de tréguas. Apesar dos contratempos e
os principais responsáveis pelos primei- pondendo aos apelos rítmicos de músi- do desgaste, a indústria cultural norte-
ros contornos do que mais tarde ficaria cos negros como Chuck Berry e Little americana, percebendo, com senso de
conhecido como cultura juvenil. Richard, dançavam alucinadamente nos oportunidade, o promissor mercado
Tratando dos efeitos e consequên- teatros, nos cinemas, nas escolas e nas que se abria com essas novas possibi-
cias que esses novos meios tecnológicos lanchonetes provocando, com essa dan- lidades tecnológicas, principalmente
legaram para a sociedade contempo- ça, uma insurreição comportamental com aquelas advindas do setor musical,
CULTURA  CRÍTICA  14        31

incentiva e facilita o consumo de seus ficou internacionalmente conhecido para os anos 1980, nos Estados Unidos.
produtos. Nesse contexto, a emergen- como Kool Herc, levou da Jamaica para Nesse período, uma febre de consumo
te cultura juvenil é redimensionada, os Estados Unidos a técnica do sound sys- tecnológico domina o sentimento dos
ganha novo status e uma importância tem. Os fundamentos dessa técnica con- segmentos mais abastados da socieda-
estratégica para os interesses da socie- sistem na utilização de um par de pick de, que, no afã de demonstrar sintonia
dade de consumo. A música e a dança, ups, isto é, dois toca-discos interligados, e desprendimento no uso das novida-
entre outras particularidades dos jovens dois amplificadores e um microfone, des eletroeletrônicas, disponibiliza seus
norte-americanos, são transformadas, tudo isso para gerar maior potência e toca-discos e seus LPs para a indústria da
convenientemente, em produtos de alcançar uma melhor qualidade do som. reciclagem.
exportação, sendo, doravante, imita- Esse sistema foi amplamente utilizado
das e copiadas em praticamente todo até meados dos anos 1970, quando as O rap nasceu da tecnologia comer-
o mundo ocidental. Os contornos da festas e reuniões nos bairros eram um cial da mídia: discos e toca-discos,
cultura juvenil que começaram a ser importante elemento aglutinador para amplificadores e aparelhos de mi-
delineados lá nos primórdios do século os jovens de baixa renda. xagem. Seu caráter tecnológico
20, ganhavam finalmente seus retoques Por essa época, o DJ Kool Herc permite que seus artistas criem
uma música que não poderiam pro-
definitivos com a consolidação da figura já havia feito escola e contava com uma
duzir de outra forma, seja porque
bastante peculiar do American way of life. legião de seguidores. Atribui-se a um não poderiam arcar com os custos
Em meados dos anos 1950, o fei- desses seguidores, Grandmaster Flash, dos instrumentos necessários, seja
tiço já estava feito; mais do que isso, sua algumas importantes descobertas para porque não teriam formação mu-
fórmula já havia sido experimentada em a cultura hip-hop. Sua primeira ino- sical para tocá-los. A tecnologia faz
outros territórios. Foi precisamente com vação foi o scratching mixing: uma téc- dos DJs verdadeiros artistas, e não
as contribuições provenientes de outras nica de sobreposição e mixagem de consumidores ou simples técnicos.
localidades que a música e a dança dos sons de um disco aos de outro que já (Shusterman, 1998, p. 154-155).
negros norte-americanos ganharam novas esteja tocando. Essa técnica permite
dimensões no contexto dos anos 1960. que o DJ (disc jockey) utilize um fone As descobertas produzidas por
Nessa época, um jamaicano de de ouvidos para pré-selecionar uma essa experiência musical caíram imedia-
nome Clive Campbell, que mais tarde faixa enquanto o equipamento toca tamente no gosto dos jovens suburbanos
outro disco. A quebra de ritmo e as que viviam no circuito Detroit–Chica-
abruptas interrupções amiúde verifi- go–Nova York. Estes lhe imprimiram
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ

cadas nas festas são minimizadas com uma nova estruturação rítmica para além
a introdução dessa técnica, já que, no da celebração tecnológica das elites.
exato momento em que uma música As transformações operadas no
está acabando, outra já está saindo nos campo tecnológico aceleraram o ritmo
alto-falantes. Outra importante con- das mudanças comportamentais que
tribuição também atribuída a Flash foi se vinham processando no mundo dos
a introdução do scratch no universo da jovens. Foi aí, mais precisamente entre
música contemporânea. Essas inova- os jovens suburbanos, que essas trans-
ções repercutiram positivamente entre formações ocorreram de maneira mais
os participantes dos eventos que, mais surpreendente e reveladora. Surpre-
do que espectadores, apresentavam- endente porque, ao serem influencia-
se, agora, como interlocutores desses dos por essas novas tecnologias, esses
acontecimentos. jovens encontraram saídas, formula-
Um dos mais importantes e de- ram estratégias e propuseram modos
cisivos impulsos para o desenvolvimen- para, igualmente, influenciar os seus
to do movimento rap está, portanto, caminhos, redefinindo, por exemplo,
associado à transição da tecnologia de as possibilidades de uso desses novos
recursos analógicos para digitais que recursos para além dos limites inicial-
ocorreu na passagem dos anos 1970 mente imaginados por seus criadores.
32      CULTURA  CRÍTICA  14

DJ recortar, copiar, alterar e editar os


fundamentos originais de uma música,
para, a partir dessa intervenção, pro-
duzir uma “nova” música, foi forjado
nesse contexto ou, dizendo de outro
modo, foi inventado a partir dos expe-

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ
rimentos que esses jovens faziam com a
sucata tecnológica da elite.
Break: dança, protesto e resistência
As festas e reuniões que aconte-
ciam nas ruas do Bronx, em NovaYork,
desde os anos 1960, propiciaram im-
portantes trocas de experiências musi-
cais e de vida entre os jovens migrantes
latinos, caribenhos e afro-americanos.
Conforme ampliavam o conhecimento
e o entendimento do que estavam fa-
zendo no espaço urbano, mais campo
de interlocução eles estabeleciam com
a sociedade.
No início dos anos 1970, as ruas
do Bronx já haviam se transformado num
imenso e rico laboratório a céu aberto.
Para lá os jovens costumavam levar as
suas contribuições culturais e a disposi-
ção de exercitar a criatividade que lhes é
Reveladora porque o universo simbó- que essa tecnologia oferecia estavam, peculiar. Nesse contexto, o break e o gra-
lico criado a partir dessas experiências portanto, restritos aos segmentos mais fite, modalidades artísticas que já faziam
migrou da periferia para o centro, en- abastados da sociedade que, entusias- parte do cotidiano desses jovens, ganham
sejando, desde então, rupturas significa- mados com esses novos mimos, dis- novas dimensões e são incorporados
tivas na paisagem e na estrutura urbana pensam prontamente os seus “velhos” como braços auxiliares da música rap for-
das metrópoles. e “ultrapassados” aparelhos analógicos mando, assim, uma importante simbiose
Uma importante e decisiva con- juntamente com os seus “antiquados” e responsável pela constituição e definitiva
tribuição que o movimento rap trouxe “inadequados” LPs, na expectativa de vi- consolidação da cultura hip-hop.
para a música contemporânea foi a sua ver em conformidade com o conforto O termo hip-hop é uma gíria
admirável capacidade de ofertar aos jo- e o status que a era digital estava, então, que foi cunhada inicialmente por Afrika
vens suburbanos as condições necessá- proporcionando. Bambaataa para designar os movimentos
rias para que eles pudessem finalmente É importante ressaltar que, ape- acrobáticos que os jovens dançarinos de
retirar de um cenário adverso os exem- sar de impedidos financeiramente de break estavam praticando nos encontros
plos positivos para a missão de suas vi- usufruir dos benefícios que essa nova musicais que ele promovia. Hip signifi-
das. Foi isso, precisamente isso, que seus tecnologia oferecia, os jovens subur- ca “quadril” e hop significa “movimento,
militantes fizeram no início da década banos, surpreendentemente, não se salto”. Da junção desses dois termos
de 1980. Nessa época – como vimos resignaram com a situação; contraria- nasceu a ideia de que ser hip-hop é ser
anteriormente – os avanços e os benefí- mente a isso, trataram de fazer do lixo mais dançante; por isso, quando o indi-
cios que a tecnologia digital oferecia não tecnológico uma possibilidade de en- víduo é mais vibrante na dança, ele al-
eram extensivos a toda a população. O tretenimento diário em suas reuniões. cança o status e a condição de ser hip-hop
acesso aos recursos e às oportunidades O sampling, técnica que permite ao em todos os momentos de sua vida.
CULTURA  CRÍTICA  14        33

Por essa época, ou seja, no iní- Além dos três elementos cita- sonoridades e possibilidades de dança.
cio dos anos 1970, a discórdia e a ri- dos, ou seja, do rap (canto), do break Além de ter representado um
validade grassavam entre os jovens do (dança) e do grafite (artes plásticas), contraponto à moda disco, a dança break
subúrbio nova-iorquino. Eles estavam a cultura hip-hop conta com outros foi também, para os jovens banidos da
divididos em gangues que digladiavam componentes na sua base de formação. vivência cívica, uma fonte de resistência
na defesa e pela expansão de seus ter- Nos anos 1970, a importância dos DJs contra as injustiças e opressões sociais.
ritórios de atuação. O break era, en- e MCs na cena juvenil era praticamente No princípio, quando estavam domina-
trementes, o interesse comum que incontestável. A positiva influência que dos pelas rivalidades e pelas pretensões
permeava e estabelecia a relação en- estes exerciam sobre os jovens, prin- de conseguir uma rápida ascensão social
tre as gangues. Bambaataa, que já era cipalmente entre os jovens banidos da – prometida pelas atividades escusas
a essa altura um destacado divulgador vivência cívica, desdobrou-se na busca das gangues –, os jovens negros não se
da cultura negra, percebeu isso e in- e consequente criação de um estilo pe- davam conta da importância e do alcan-
vestiu toda sua experiência para fazer culiar de convivência em grupo que foi ce de suas intervenções culturais. Foi a
da dança break um elemento pacifica- traduzido na maneira de vestir, cantar, partir das contribuições de Bambaataa
dor das brigas que aconteciam entre falar, e de se comunicar, enfim, com o que eles travaram contato com outras
as “gangues de break”. Assim, usando mundo e com os seus pares. Essas carac- experiências e com outros planos de di-
de toda sua habilidade e conhecimen- terísticas ajudaram a difundir os valores ficuldades vivenciadas por seus amigos
to das causas motivadoras dessas bri- e a estabelecer os parâmetros da cultura hispânicos e caribenhos na sociedade
gas, propôs uma trégua entre as gan- hip-hop. norte-americana.
gues que frequentavam as festas que Nessa época, o break assume uma A partir dessa abertura, eles esta-
promovia. Para tanto, convenceu os postura mais combativa e encarna a rea- belecem contato com as ideias de Martin
participantes desses encontros de que ção da música negra à era disco, sobretu- Luther King, Malcolm X e com o radica-
a disputa e a habitual rivalidade exis- do contra a sua vertente mais difundida, lismo político dos Black Panthers (Pan-
tente entre eles deveriam acontecer, a discoteca. Essa reação começou em teras Negras). Essa aproximação contri-
mutatis mutandis, no plano da arte e do meados da década de 1970, quando os buiu para pôr termo à cizânia existente
entretenimento. DJs comprometidos com o universo pop entre as “gangues de break” e, num mes-
Diante dessa nova realidade, as das discotecas desenvolveram a técnica mo movimento, emprestou aos mem-
rixas que sempre desaguavam em vio- de cortar e mixar um disco no outro bros dessas coletividades os elementos
lência corporal foram interrompidas na tentativa de alcançar uma transição necessários para transformar as suas
ou, dizendo de outro modo, se transfe- sonora suave, sem interrupção violenta manifestações artísticas em interven-
riram para o universo simbólico da mú- da fluência e do ritmo da dança que se ções cada vez mais político-culturais.
sica e da dança. Nessas disputas, quanto praticava nos salões. A juventude negra começava a
mais acrobático e performático fosse o Os jovens negros começaram postular ideias e a defender princípios
grupo, mais respeito e visibilidade ele a duvidar e, com ousadia, passaram incômodos para a sociedade norte-ame-
alcançaria entre seus pares. Esse é, aliás, a questionar a qualidade das músi- ricana. Os protestos contra a guerra
o interesse e a meta final almejada por cas executadas nas discotecas. Como do Vietnã e a luta pela igualdade dos
toda gangue, isto é, alcançar reconhe- não podiam participar nem opinar em direitos civis ganhavam então novos in-
cimento, status e vantagens nos valores condição de igualdade nesses espaços, gredientes com o engajamento desses
da ideologia oficial com suas atividades criaram uma rede de DJs paralela e re- novos atores. O assassinato de Martin
clandestinas. Por isso gangues devem aplicaram as técnicas de montagem que Luther King, em abril de 1968, eviden-
ser entendidas como organizações for- aconteciam nas discotecas, só que agora ciou ainda mais as contradições da so-
madas “por pessoas que têm os valores para concentrar e aumentar ao máximo ciedade norte-americana. Essa situação
da ideologia oficial (...) em cujos obje- os trechos mais dançantes da música. levou os Panteras Negras a promoverem
tivos acreditam, e que, do ponto de vista O break, então, diferentemente a defesa intransigente da luta armada
organizacional, surge como uma respos- do som pop “monótono” e previsível das em favor da igualdade racial, fazendo
ta específica a uma condição socioeco- discotecas, aposta nas rupturas, na im- crescer, entre os jovens negros e hispâ-
nômica peculiar” (Sánchez-Jankowski, provisação e na quebra de ritmo durante nicos, a resistência ao serviço militar e à
1976, p. 34). a execução da música para alcançar novas Guerra do Vietnã.
34      CULTURA  CRÍTICA  14

A dança break foi forjada em meio de dois mecanismos aparentemen-


meio a esses dramáticos acontecimentos te simples: o primeiro está associado à
e traduziu, de imediato, os sentimentos

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂů
criação de um apelido que empresta ao
de rejeição dos jovens latinos, caribe- indivíduo uma máscara8 para suas futu-
nhos e afro-descendentes contra a guer- ras intervenções no espaço público. Esse
ra, uma vez que eram suas principais apelido funciona como um pseudônimo
vítimas. Os movimentos contorcidos ou e referencia geralmente alguma caracte-
“quebrados” da dança break fazem, por rística física do indivíduo ou indica a re-
exemplo, referências diretas aos solda- gião de origem do grafite. Por exemplo,
dos que voltavam mutilados do Vietnã, “Piolho” faz menção à pequena estatura
como nos esclarece Andrade: do grafiteiro, “Cobra” remete para a agi-
lidade do indivíduo portador desse ape-
Eles protestavam contra a Guerra lido; “Vaz/Sul”, indica que é do Jardim
do Vietnã e lamentavam a situação Vaz de Lima, Zona Sul. O segundo me-
dos jovens adultos que retornavam canismo está diretamente associado ao
da guerra debilitados. Cada movi- primeiro e consiste numa rigorosa de-
mento do break possui como base limitação territorial, ou seja, sinaliza as
o reflexo do corpo debilitado dos
áreas de atuação de cada grafite. Assim,
soldados norte-americanos, ou,
então, a lembrança de um obje- de comunicação. Ele surgiu no contexto quando um muro, um monumento, ou
to utilizado no confronto com os nova-iorquino, no início dos anos 1970. qualquer outro espaço é explorado, isto
vietnamitas. Por exemplo, alguns Nessa época, a troca de experiências e é, assinado por um determinado grafi-
movimentos do break são chamados informações entre os jovens migrantes te, ele deixa, automaticamente, de per-
de “giro de cabeça”, “rabo de saia”, e afro-descendentes era muito inten- tencer ao domínio público para se tor-
“saltos mortais”, etc. O “giro de ca- sa. Por isso, se buscarmos as principais nar posse exclusiva daquele grafiteiro.
beça” em que o indivíduo fica com fontes de informação a respeito dessa Quando ocorre a invasão de um espaço
a cabeça no chão e com os pés para manifestação artística, ficará evidencia- assinado, dá-se o nome a essa situação
cima procura circular todo o corpo, da uma forte influência latina; afinal, os de “atropelo”. Atropelar a “arte” alheia
simboliza os helicópteros agindo maiores artistas do gênero são de países pode implicar sérias consequências para
durante a guerra (Andrade, 1996, como Porto Rico, Colômbia, Bolívia e quem “atropelou” ou para o grupo que
p. 115).
Costa Rica. oferece guarida ao “sabotador” da pai-
Grafite: pintando a cidade, Essa nova modalidade artística sagem alheia. Por isso os territórios são
colorindo a vida compõe, então, juntamente com o rap e rigorosamente respeitados.
o break, um amplo mosaico de demons- Pode-se dizer, então, que o efei-
A intensa mobilização dos jo- trações públicas, vale dizer, de respostas to mais imediato dessa territorialização
vens segregados, como vimos no item elaboradas política e artisticamente pe- foi a mudança operada na atuação desses
anterior, não foi capaz de modificar a los jovens do gueto a um contexto que jovens no cenário urbano, ou seja, quan-
lógica do entendimento que a socieda- se apresentava e se apresenta extrema- do perceberam que suas divergências
de branca exclusivista tinha sobre suas mente adverso para suas vidas. O fato é estavam comprometendo o teor de suas
vidas. Assim, qualquer manifestação que, quando iniciaram as intervenções, intervenções públicas, os jovens do gra-
artística oriunda do seio das camadas não tinham a real dimensão do alcance fite elaboraram um discurso de unidade,
populares era imediatamente despre- e da repercussão que esse ato teria para respeito e solidariedade entre seus asso-
zada pelos guardiões da ordem e das a sociedade. ciados e, num mesmo movimento, in-
tradições. Esse recrudescimento cultu- O grafite aparece inicialmente tensificaram a participação nos eventos
ral tensionou ainda mais as relações so- como uma tag, isto é, assinatura que os de break e rap que ocorriam na cidade.
ciais, obrigando os jovens a buscar, nas jovens colocavam em espaços de gran- Esse discurso, isto é, o esforço pela cons-
franjas da sociedade, novas formas de se de circulação, muros, paradas de trens trução de uma plataforma comum de
comunicar e de interagir com o mundo. e estações do metrô de Nova York. Em atuação não conseguiu, todavia, eliminar
O grafite foi uma dessas novas formas seus primórdios, a tag funcionava por todas as divergências que existiam entre
CULTURA  CRÍTICA  14        35

eles, mas foi um importante passo para ordem constituída, a cultura hegemô- mais elementares da sociedade capitalis-
construção de novos princípios de con- nica, pronta e decididamente, age para ta – o do livre comércio, notadamente
vívio e solidariedade entre esses jovens. neutralizar o seu insidioso crescimento, – promulga leis para orientar e proibir
A aproximação do grafite com utilizando-se de dois expedientes aparen- os comerciantes de vender os materiais
o rap e o break contribuiu, aliás, para temente contraditórios, porém comple- utilizados pelos grafiteiros (sprays, tintas
o desenvolvimento e fortalecimento mentares: de um lado, adotou-se a es- e pincéis).
dos vínculos associativos entre seus in- tratégia da repressão preventiva, isto é, Essa situação, no mínimo
tegrantes e a arte que cada um desses perseguir e sufocar as manifestações po- curiosa, foi vivenciada mais intensa-
segmentos vem praticando no espaço pulares em todas as suas instâncias desde mente pelos jovens no centro do capi-
urbano. Assim, a ideia inicialmente sim- o seu nascedouro. De outro, criaram-se talismo e ganhou, na periferia de sua
plificada desse estilo, preso às formas espaços específicos para a divulgação economia, outros encaminhamentos.
geométricas das letras garrafais e uni- das representações artísticas e culturais No caso de São Paulo, por exemplo,
colores, assumiu outra complexidade, da periferia, numa clara tentativa de os comerciantes queixosos da ausên-
no contexto do hip-hop, incorporando neutralizar as suas influências na socie- cia de leis específicas para punir os
letras e desenhos mais elaborados e com dade. Assim, mediante o argumento do “pichadores” resolveram adotar ini-
formas multicoloridas. espaço concedido, quem infringisse as ciativas para coibir a prática do grafite
normas era fichado na polícia. nos muros e fachada de seus estabe-
Da violência institucional para O tratamento discriminatório lecimentos. Para tanto, acionaram um
a violência marginal: o modus e ardilosamente planejado para estig- aparato repressor: seguranças priva-
operandi da “comunidade rap” matizar e classificar as manifestações dos, que agiam orientados por infor-
As privações sofridas por um periféricas, ora como cultura inferior, mações distorcidas sobre os propósi-
número considerável de indivíduos, ora como caso de polícia, não alcançou, tos do grafite. O desconhecimento,
somadas ao racismo e à xenofobia que contudo, o resultado esperado, sobre- aliado ao desinteresse em compreen-
a sociedade branca exclusivista extem- tudo porque os jovens teimam em es- der mais detalhadamente a “filosofia
poraneamente exercia e exerce sobre os colher – eles mesmos – os lugares para de vida” veiculada na “arte do grafi-
pobres, não foram, com efeito, capazes compartilhar as suas experiências de te” sustentou, por muito tempo, uma
de impedir o crescimento e o conse- vida, acionando, com isso, uma fuga atuação tendenciosa dos defensores da
quente desenvolvimento das práticas permanente do confinamento, da mas- ordem privada, que insistem, ainda
artísticas e culturais nas regiões peri- morra, enfim, dos limites geográficos hoje, em colocar num mesmo ecossis-
féricas dos Estados Unidos e do Brasil. e espaciais que o mundo adulto sem- tema grafiteiros e pichadores.
A costumeira intolerância e a busca do pre quis lhes impor. Assim, ao perceber Shusterman (1998) sustenta, a
exclusivismo sociocultural produziram, TXH QHQKXPD GHVVDV HVWUDWpJLDV ð LVWR esse respeito, que a lógica desse pen-
contrariamente, efeitos inesperados é, nem a prática repressora, nem o ato samento reducionista está associada à
para as expectativas e pretensões da cul- EHQHSOiFLWRGHFRQFHGHU´YDQWDJHQVµð ideia bastante difundida de que a clas-
tura hegemônica, uma vez que serviram era capaz de conter a verve criativa dos se baixa não produz cultura nem arte.
de estímulo e motivação para que os re- jovens periféricos, a cultura hegemôni- Logo, por ser uma manifestação genui-
presentantes mais inquietos da periferia ca, contrariando alguns dos preceitos namente periférica, a cultura hip-hop
– os jovens – saíssem das áreas de confi-
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ
namento, a fim de apresentar, nas regi-
ões iluminadas da cidade, as suas queixas
e cobranças, fortalecidas agora com as
contribuições trazidas pelos elementos
constitutivos da cultura hip-hop.
Ao constatar a intensa mobili-
zação e os perigos contagiosos que essa
insubordinação representava aos costu-
mes, à tradição, às normas, enfim, para
os preceitos morais mais arraigados da
36      CULTURA  CRÍTICA  14

sofreu e sofre a rejeição generalizada da


Notas
cultura hegemônica.
ϭWĂƌĂƵŵĂĚŝƐĐƵƐƐĆŽĚŽƚĞŵĂĐŽŵŽƉĂƌƚĞĚĞƵŵƉƌŽĐĞƐƐŽŚŝƐƚſƌŝĐŽŵĂŝƐĂŵƉůŽǀĞƌ͗
As raízes culturais do rap e seus pri- ,ŽďƐďĂǁŵ;ϭϵϵϱͿ͘EĞƐƐĂŽďƌĂŽĂƵƚŽƌƌĞŇĞƚĞƐŽďƌĞŽƉĂƚƌŝŵƀŶŝŽƐŝŵďſůŝĐŽŝŶƚĞƌŶĂ-­‐
meiros adeptos pertencem à classe ĐŝŽŶĂůŝnjĂĚŽƉƌŽĚƵnjŝĚŽƉĞůĂŝŶĚƷƐƚƌŝĂĚŽrock.  
baixa da sociedade negra norte-ame- ϮWĂƌĂƵŵĂĐŽŵƉƌĞĞŶƐĆŽŵĂŝƐĚĞƚĂůŚĂĚĂĚĂƐĐŽŶƚƌŝďƵŝĕƁĞƐĞŝŶŇƵġŶĐŝĂƐƋƵĞŽ
ricana; seu orgulho negro militante ŵŽǀŝŵĞŶƚŽpunkĞdžĞƌĐĞƵƐŽďƌĞŽƐũŽǀĞŶƐŶĂƐŽĐŝĞĚĂĚĞĐŽŶƚĞŵƉŽƌąŶĞĂďƌĂƐŝůĞŝƌĂ͕
e sua temática da experiência do ǀĞƌ͗ŝǀĂƌ;ϭϵϵϮͿ͕ĂŝĂĨĂ;ϭϵϴϱͿ͕ŽƐƚĂ;ϭϵϵϯͿ͕<ĞŶƉ;ϭϵϵϯͿ͕ďƌĂŵŽ;ϭϵϵϰͿ͕^ŽƵƐĂ
gueto representam uma ameaça ;ϮϬϬϮͿ͘
para o status quo complacente da ϯŵƉƌĞŐŽŽƚĞƌŵŽĂŶƟĐŽƌĚŝĂůĂƉĂƌƟƌĚĂƐƐƵŐĞƐƚƁĞƐĚĞ,ĞƌƐĐŚŵĂŶŶ;ϭϵϵϳ͕Ɖ͘
sociedade. Dado esse incentivo po- ϱϰͿ͕ƉĂƌĂƋƵĞŵŽŵŝƚŽĚĞŽƌŝŐĞŵĚĂƐŽĐŝĞĚĂĚĞďƌĂƐŝůĞŝƌĂ͕ŝƐƚŽĠ͕͞ŽŵŝƚŽĚĂƐƚƌġƐ
lítico, é fácil encontrar as razões ƌĂĕĂƐ͟ĞĚŽĞŶƚĞŶĚŝŵĞŶƚŽƐŽĐŝĂůĐĂŵŝŶŚĂůĂĚŽĂůĂĚŽĐŽŵĂĐƵůƚƵƌĂĐŽŶĐŝůŝĂƚſƌŝĂ
estéticas para desacreditar o rap ĚŽ͞ƌĂƐŝůĐŽƌĚŝĂů͘͟ŽŶĨŽƌŵĞƐƵĂƐĂŶĄůŝƐĞƐ͕ĞƐƐĂƐƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕƁĞƐŽƌŝĞŶƚĂƌĂŵ͕ƉŽƌ
enquanto forma legítima de arte. ŵƵŝƚŽƚĞŵƉŽ͕ŽĐŽŵƉŽƌƚĂŵĞŶƚŽĚŽŝŶĚŝǀşĚƵŽĞŵƐŽĐŝĞĚĂĚĞ͕ŵĂƐĨŽƌĂŵƐƵƉůĂŶƚĂĚĂƐ
(Shusterman, 1998, p. 143) ŶŽƌĂƐŝůĐŽŶƚĞŵƉŽƌąŶĞŽƉĞůĂ͞ĐƵůƚƵƌĂĚŽŵĞĚŽĞĚĂǀŝŽůġŶĐŝĂ͘͟WĂƌĂŽďƚĞƌŵĂŝƐ
ĚĞƚĂůŚĞƐƐŽďƌĞĂƐĐŽŶƐĞƋƵġŶĐŝĂƐƉƌŽǀŽĐĂĚĂƐŶĂƐďĂƐĞƐĚĞƐƐĂƐƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕƁĞƐƉĞůŽƐ
Discriminados, perseguidos e ũŽǀĞŶƐƐƵďƵƌďĂŶŽƐ͕ǀĞƌƚĂŵďĠŵ͗zƷĚŝĐĞ;ϭϵϵϳͿĞZŽĐŚĂ;ϮϬϬϰͿ͘
rejeitados pelas representações da cul- ϰ,ŝƉͲŚŽƉĠĂƵŶŝĆŽĚŽƐƚƌġƐĞůĞŵĞŶƚŽƐĚŽrap͗ĂŵƷƐŝĐĂ͕Žbreak;ĚĂŶĕĂͿĞŽŐƌĂĮƚĞ
tura hegemônica, os jovens envolvidos ;ƉŝŶƚƵƌĂĐŽŵsprayĞŵŵƵƌŽƐ͕ŽƵƐĞũĂ͕ŝŶƚĞƌǀĞŶĕƁĞƐŐƌĄĮĐĂƐŶŽĞƐƉĂĕŽƵƌďĂŶŽͿ͘
com a cultura hip-hop voltam-se com ϱhƟůŝnjŽŽƚĞƌŵŽĞƐƟůŽƐĞŐƵŝŶĚŽĂƐŝŶĚŝĐĂĕƁĞƐĚĞ<ĞŵƉ;ϭϵϵϯͿ͕ƉĂƌĂƋƵĞŵŐƌƵƉŽƐ
maior determinação para as causas e ĚĞĞƐƟůŽƚġŵĂƐƐĞŐƵŝŶƚĞƐĐĂƌĂĐƚĞƌşƐƟĐĂƐ͗͞^ĆŽĐŽůĞƟǀŝĚĂĚĞƐʹŵĂƌĐĂĚĂŵĞŶƚĞũƵǀĞ-­‐
problemas que esgarçam as relações ŶŝƐʹƋƵĞƚŽŵĂŵĐŽŵŽƌĞĨĞƌġŶĐŝĂƉĂƌĂĐŽŶĚŝĕĆŽĚĞƉĞƌƚĞŶĐŝŵĞŶƚŽĂŽŐƌƵƉŽ͕Ƶŵes-­‐
sociais na periferia. Com essa atitude, ƟůŽƋƵĞĞůĂďŽƌĞĂůĠŵĚĞƵŵĂƉƌŽƉŽƐƚĂĞƐƚĠƟĐĂ͕ƵŵŵŽĚĞůŽĚĞĐŽŵƉŽƌƚĂŵĞŶƚŽ͘K
ĞƐƟůŽĠƌĞƐƵůƚĂĚŽĚĞĞůĂďŽƌĂĕƁĞƐĐŽůĞƟǀĂƐĞĂĐĞŝƚŽĐŽŶƐĞŶƐƵĂůŵĞŶƚĞĐŽŵŽŵŽĚĞůŽ
afastam-se, de maneira resoluta, da
ƐƵďƐƚĂŶƟǀŽ͘ƐƐŝŵ͕ĐƌŝĂŵͲƐĞĚĞŶŽŵŝŶĂĕƁĞƐĐŽŵŽ͗ƌŽĐŬĞƌ͕ƚĞĚĚLJďŽLJ͕ŚŝƉƉŝĞ͕ŐſƟĐŽ͕
expectativa envolvente de que um dia
punk,  hip-­‐hop,  clubber,  skinhead,  grunge,  mod,  etc.͟;<ĞŵƉ͕ϭϵϵϯ͕Ɖ͘ϭϯͿ͘
serão convenientemente “absorvidos ϲŽƌĞŇĞƟƌƐŽďƌĞĂĐƵůƚƵƌĂĚŽƌĂƐŝůĐŽŶƚĞŵƉŽƌąŶĞŽ͕ZŽĐŚĂ;ϮϬϬϰͿĂƌŐƵŵĞŶƚĂƋƵĞ
pelo polo positivo da sociedade”. Essa ŽƐƉƌĞƐƐƵƉŽƐƚŽƐĚĂŝĂůĠƟĐĂĚĂDĂůĂŶĚƌĂŐĞŵ͕ŝƐƚŽĠ͕ŽĂĐŽƌĚŽĞŽĞŶƚĞŶĚŝŵĞŶƚŽ͕
disposição de lidar de maneira mais ĂůĠŵĚĂĐĂƉĂĐŝĚĂĚĞĚĞŽƐĐŝůĂƌĞŶƚƌĞŽƐƉŽůŽƐĚĂŽƌĚĞŵĞĚĂĚĞƐŽƌĚĞŵŶĂďƵƐĐĂĚĞ
realista com o cotidiano de suas vidas ĐŽŶĐŝůŝĂĕĆŽ͕ĨŽƌĂŵƐƵƉĞƌĂĚŽƐƉŽƌŶŽǀĂƐƉƌĄƟĐĂƐĚĞŝŶƚĞƌǀĞŶĕĆŽƐŽĐŝĂůƋƵĞƉƌŝŽƌŝnjĂŵ
foi fortalecida pelos elementos cons- ŽĐŽŶĨƌŽŶƚŽĞĂǀŝŽůġŶĐŝĂĐŽŵŽŵĞĐĂŶŝƐŵŽƐŵĂŝƐĞĮĐĂnjĞƐĚĞĂƚƵĂĕĆŽƐŽĐŝĂůƋƵĞ
titutivos da cultura hip-hop, pois, na ƉŽĚĞŵ͕ƐĞŐƵŶĚŽƐƵĂƐĂŶĄůŝƐĞƐ͕ƐĞƌĚĞĮŶŝĚĂƐƉŽƌŝĂůĠƟĐĂĚĂDĂƌŐŝŶĂůŝĚĂĚĞ͘
medida em que divulgam os valores e ϳŽƉŝŶŝĆŽĚĞĚŝǀĞƌƐŽƐƉĞƐƋƵŝƐĂĚŽƌĞƐĐŽŵŽďƌĂŵŽ;ϭϵϵϰͿ͕,ŽďƐďĂǁŵ;ϭϵϵϱͿ͕
sentimentos da periferia, esses jovens ƌĐĞ;ϭϵϵϳͿ͕^ŽƵƐĂ;ϮϬϬϮͿ͕ŝſŐĞŶĞƐ;ϭϵϵϳͿ͕ĞŶƚƌĞŽƵƚƌŽƐ͕ĐŽŶǀĞƌŐĞƉĂƌĂŽĞŶƚĞŶĚŝ-­‐
estabelecem, num mesmo movimen- ŵĞŶƚŽĚĞƋƵĞŽƐĂŶŽƐϭϵϴϬŵĂƌĐĂŵĂĞŶƚƌĂĚĂĞŵĐĞŶĂĚĂƚĞƌĐĞŝƌĂŐĞƌĂĕĆŽũƵǀĞŶŝů
to, uma relação de confiança com seus ĚŽƐĠĐƵůŽϮϬ͘ƉƌŝŵĞŝƌĂĞƐƚĄĐŝƌĐƵŶƐĐƌŝƚĂĞŶƚƌĞŽƐĂŶŽƐϭϵϰϬĞŽƐĂŶŽƐϭϵϲϬĞĠ
ĐĂƌĂĐƚĞƌŝnjĂĚĂ͕ŐĞƌĂůŵĞŶƚĞ͕ĐŽŵŽĂŐĞƌĂĕĆŽĚŽƐ͞ƌĞďĞůĚĞƐƐĞŵĐĂƵƐĂ͕͟ƉŽƌƉƌŽŵŽǀĞƌ
semelhantes e de altivez com o mun-
ƵŵĂƌĞďĞůŝĆŽĐŽŶƚƌĂŽƐĐŽƐƚƵŵĞƐĞĂƐĨŽƌŵĂƐĚĞǀŝĚĂďƵƌŐƵĞƐĂ͘ƐĞŐƵŶĚĂĞŶŐůŽďĂ
do mais distante ou, como eles costu-
ŽƐĂŶŽƐϭϵϲϬĞǀĂŝĂƚĠŽƐĂŶŽƐϭϵϴϬ͘ƐƐĂŐĞƌĂĕĆŽĂƵŵĞŶƚŽƵĂƐƵĂƉƌĞƐĞŶĕĂŶŽĞƐ-­‐
mam dizer, com o mundo “depois da ƉĂĕŽƵƌďĂŶŽĞƐƟŵƵůĂĚĂ͕ƉŽƐƐŝǀĞůŵĞŶƚĞ͕ƉĞůĂƐŶŽǀĂƐƚĞĐŶŽůŽŐŝĂƐĚĞƌŝǀĂĚĂƐĚŽboom  
ponte”. ĞĐŽŶƀŵŝĐŽĚŽƉſƐͲŐƵĞƌƌĂ͘ůĠŵĚŝƐƐŽ͕ƚĞǀĞƚĂŵďĠŵĨŽƌƚĞĞŶŐĂũĂŵĞŶƚŽƉŽůşƟĐŽ
O que fica, com efeito, patente ĐŽŶƚƌĂĂƐŝŶũƵƐƟĕĂƐƐŽĐŝĂŝƐĚĂĠƉŽĐĂ͘ƚĞƌĐĞŝƌĂŐĞƌĂĕĆŽŝŶŝĐŝĂͲƐĞŶŽƐĂŶŽƐϭϵϴϬĞ
é que o advento do hip-hop encorajou ĞƐƚĞŶĚĞͲƐĞĂƚĠŶŽƐƐŽƐĚŝĂƐ͕ĞĠĐŽŶŚĞĐŝĚĂƉŽƌƉƌŽƉŽƌƵŵĂŝŶǀĞƌƐĆŽĚŽƐƐŝŐŶŽƐĚĂƐ
os jovens da periferia a trabalharem, ŐĞƌĂĕƁĞƐĂŶƚĞƌŝŽƌĞƐ͕ĂůĠŵĚĞŐƵĂƌĚĂƌƌĞƐĞƌǀĂĚŽĚŝƐƚĂŶĐŝĂŵĞŶƚŽĚĂƉŽůşƟĐĂŝŶƐƟƚƵ-­‐
com suas ideias e em diversas frentes, ĐŝŽŶĂůƉĂƌƟĚĂƌŝnjĂĚĂ͕ĐŽŶĚŝĕĆŽƋƵĞůŚĞĐŽŶĨĞƌĞŽơƚƵůŽĚĞ͞ŐĞƌĂĕĆŽĚŝƐƚſƉŝĐĂ͘͟
na elaboração de um projeto afirma- ϴhƐŽĂĞdžƉƌĞƐƐĆŽmáscaraŶŽƐĞŶƟĚŽĂƚƌŝďƵşĚŽƉŽƌDŝĐŚĞůDĂīĞƐŽůŝ;ϮϬϬϬͿ͘WĂƌĂ
tivo e propositivo para suas vidas. Na ĞƐƐĞĂƵƚŽƌĂŵĄƐĐĂƌĂĠ͕ŶĂƐƐŽĐŝĞĚĂĚĞƐĐŽŶƚĞŵƉŽƌąŶĞĂƐ͕ƵŵŵĞĐĂŶŝƐŵŽƵƟůŝnjĂĚŽ
consecução desse projeto, o resgate da ƉĞůŽƐũŽǀĞŶƐƉĂƌĂƌĞƉĂƌƟƌƌĞƐƉŽŶƐĂďŝůŝĚĂĚĞƐ͕ƉŽŝƐƐƵďŽƌĚŝŶĂĂpersonaĂŽƐƉƌŝŶĐşƉŝŽƐ
cultura negra e a retomada do orgulho ĚĂƐŽĐŝĞĚĂĚĞƐĞĐƌĞƚĂ͘^ĞŐƵŶĚŽŽĂƵƚŽƌ͕͞şĞdžŝƐƚĞĂ͚ĚĞƐͲŝŶĚŝǀŝĚƵĂůŝnjĂĕĆŽ͕͛ĂƉĂƌƟĐŝƉĂ-­‐
ĕĆŽ͕ŶŽƐĞŶƟĚŽŵşƐƟĐŽĚŽƚĞƌŵŽ͕ĂƵŵĐŽŶũƵŶƚŽŵĂŝƐǀĂƐƚŽ͟ĚĞƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĕƁĞƐ;Ɖ͘
de ser da periferia são permanente-
ϭϮϴͿ͘
mente lembrados e valorizados como
CULTURA  CRÍTICA  14        37

fundamentos inalienáveis na nova etapa Referências  


de suas vidas.
Nossa hipótese é que, precisa- ZDK͕,ĞůĞŶĂt͘Cenas  Juvenis,  Punks  e  Darks  no  Espetáculo  Urbano͘^ĆŽWĂƵůŽ͗
mente nesse momento de afirmação ^ĐƌŝƚĂͬŶƉŽĐƐ͕ϭϵϵϰ͘
de suas ideias, eles vão alinhavando os EZ͕ůĂŝŶĞEƵŶĞƐĚĞ͘Movimento  negro  juvenil:  ƵŵĞƐƚƵĚŽĚĞĐĂƐŽƐŽďƌĞ
recursos necessários para a consolida- ũŽǀĞŶƐrappersĚĞ^ĆŽĞƌŶĂƌĚŽĚŽĂŵƉŽ.^ĆŽWĂƵůŽ͗&ĂĐƵůĚĂĚĞĚĞĚƵĐĂĕĆŽͬh^W͕
ϭϵϵϲ͘΀ŝƐƐĞƌƚĂĕĆŽĚĞŵĞƐƚƌĂĚŽ΁
ção dos valores culturais de suas “que-
Z͕:ŽƐĠD͘s͘KĨƵŶŬĐĂƌŝŽĐĂ͘/Ŷ͗,Z^,DEE͕D͘;ŽƌŐ͘Ϳ͘Abalando  os  anos  90:  
bradas”; para tanto, elegem um inimi- funkĞhip-­‐hop͖ŐůŽďĂůŝnjĂĕĆŽ͕ǀŝŽůġŶĐŝĂĞĞƐƟůŽĐƵůƚƵƌĂů͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ZŽĐĐŽ͕ϭϵϵϳ͘
go externo: “os boys”; criam normas hDE͕ŝŐŵƵŶƚ͘O  mal-­‐estar  da  pós-­‐modernidade͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗:ŽƌŐĞĂŚĂƌ͕
e leis de convivência; elaboram uma ϭϵϴϴ͘
linguagem tão complexa e cifrada que /sZ͕ŶƚŽŶŝŽ͘O  que  é  punk͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ƌĂƐŝůŝĞŶƐĞ͕ϭϵϴϮ͘
o mundo “depois da ponte” encontra /&͕:ĂŶŝĐĞ͘Movimento  punk  na  cidade.  ŝŶǀĂƐĆŽĚŽƐďĂŶĚŽƐƐƵď͘ZŝŽĚĞ:Ă-­‐
dificuldades para compreendê-la; alar- ŶĞŝƌŽ͗:ŽƌŐĞĂŚĂƌ͕ϭϵϴϲ͘
deiam que estão formando “um exér- K^d͕DĄƌĐŝĂZĞŐŝŶĂ͘Os  carecas  do  subúrbio.WĞƚƌſƉŽůŝƐ͗sŽnjĞƐ͕ϭϵϵϯ͘
cito com mais de 50 mil manos” e com zZ>>͕:ƵĂƌĞnj͘A  música  entra  em  cena:  o  rapĞŽfunkŶĂƐŽĐŝĂůŝnjĂĕĆŽĚĂũƵǀĞŶƚƵĚĞĞŵ
ele preparam-se para a revolução. ĞůŽ,ŽƌŝnjŽŶƚĞ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗&ĂĐƵůĚĂĚĞĚĞĚƵĐĂĕĆŽͬh^W͕ϮϬϬϭ͘΀dĞƐĞĚĞŽƵƚŽƌĂĚŽ΁
Amparados por esses princí- /M'E^͕'ůſƌŝĂ͘ZĞďĞůĚŝĂhƌďĂŶĂ͘dƌĂŵĂƐĚĞdžĐůƵƐĆŽĞǀŝŽůġŶĐŝĂ:ƵǀĞŶŝů͘/Ŷ͗
pios e altivos por pertencerem a uma ,Z^,DEE͕DŝĐŚĞů;ŽƌŐ͘Ϳ͘Abalando  os  anos  90:  funkĞhip-­‐hop͖ŐůŽďĂůŝnjĂĕĆŽ͕
ǀŝŽůġŶĐŝĂĞĞƐƟůŽĐƵůƚƵƌĂů͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ZŽĐĐŽ͕ϭϵϵϳ͘
coletividade artística, eles rompem as
&ZZ͘Capão  Pecado͘^ĆŽWĂƵůŽ͗>ĂďŽƌƚĞdžƚŽĚŝƚŽƌŝĂů͕ϮϬϬϬ͘
fronteiras territoriais do gueto e gra- ͺͺͺͺͺͺ͘DĂŶƵĂůƉƌĄƟĐŽĚŽſĚŝŽ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗KďũĞƟǀĂ͕ϮϬϬϯ͘
fitam nos muros da cidade alguns dos ,Z^,DEE͕DŝĐŚĞů;ŽƌŐ͘Ϳ͘Abalando  os  anos  90:  funkĞhip-­‐hop͖ŐůŽďĂůŝnjĂĕĆŽ͕
símbolos mais expressivos dessa repú- ǀŝŽůġŶĐŝĂĞĞƐƟůŽĐƵůƚƵƌĂů͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ZŽĐĐŽ͕ϭϵϵϳ͘
blica: “100% negro”, “100% periferia”, ,K^tD͕ƌŝĐ:͘Era  dos  extremos:  o  breve  século  XX  (1914-­‐1991)͘Ϯ͘ĞĚ͘^ĆŽ
“100% COHAB”. Essas mensagens WĂƵůŽ͗ŽŵƉĂŶŚŝĂĚĂƐ>ĞƚƌĂƐ͕ϭϵϵϱ͘
são rapidamente transportadas para as <EW͕<ġŶŝĂ͘'ƌƵƉŽƐĚĞĞƐƟůŽƐũŽǀĞŶƐ͗  o  rockƵŶĚĞƌŐƌŽƵŶĚĞĂƐƉƌĄƟĐĂƐ;ĐŽŶƚƌĂͿĐƵůƚ-­‐
roupas de uso diário, a exemplo das ƵƌĂŝƐĚŽƐŐƌƵƉŽƐPunksĞTrashĞŵ^ĆŽWĂƵůŽ.ĂŵƉŝŶĂƐ͗/&,ͬhE/DW͕ϭϵϵϯ͘
camisetas dos jovens, e tornam-se, en- D&&^K>>/͕DŝĐŚĞů͘O  tempo  das  tribos͗ŽĚĞĐůşŶŝŽĚŽŝŶĚŝǀŝĚƵĂůŝƐŵŽŶĂƐƐŽĐŝĞ-­‐
tão, conhecidas para além dos becos e ĚĂĚĞƐĚĞŵĂƐƐĂ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗&ŽƌĞŶƐĞ͕ϮϬϬϬ͘
das vielas da periferia. Alcançam seu DZh^͕,ĞƌďĞƌƚ͘A  ideologia  da  sociedade  industrial.ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ĂŚĂƌ͕ϭϵϴϮ͘
apogeu com o gesto audacioso e ines- ZK,͕:ŽĆŽĞnjĂƌĚĞĂƐƚƌŽ͘ŝĂůĠƟĐĂĚĂŵĂƌŐŝŶĂůŝĚĂĚĞ͕ĐĂƌĂĐƚĞƌŝnjĂĕĆŽĚĂĐƵůƚƵƌĂ
ďƌĂƐŝůĞŝƌĂĐŽŶƚĞŵƉŽƌąŶĞĂ͘Folha  de  S.Paulo  –  ĂĚĞƌŶŽDĂŝƐ͕ϮϵĨĞǀ͘ϮϬϬϰ͘
perado de Cafu, conhecido jogador de
^E,Ͳ:E<Kt^</͕DĂƌơŶ͘ƐŐĂŶŐƵĞƐĞĂĞƐƚƌƵƚƵƌĂĚĂƐŽĐŝĞĚĂĚĞŶŽƌƚĞͲĂŵĞƌŝ-­‐
futebol e capitão da Seleção Brasileira ĐĂŶĂ͘Revista  Brasileira  de  Ciências  Sociais.^ĆŽWĂƵůŽ͗EWK^͕ǀ͘ϭϮ͕Ŷ͘ϯϰ͕ũƵů͘ϭϵϵϳ͘
na Copa de 2002, que, ao ser convo- ^sE<K͕EŝĐŽůĂƵ͘A  corrida  para  o  século  XXI:  no  loopĚĂŵŽŶƚĂŶŚĂͲƌƵƐƐĂ.  ^ĆŽ
cado para levantar a taça de campeão, WĂƵůŽ͗ŽŵƉĂŶŚŝĂĚĂƐ>ĞƚƌĂƐ͕ϮϬϬϭ͘
apresentou-se com uma camiseta grafi- ^,h^dZDE͕ZŝĐŚĂƌĚ͘Vivendo  a  arte͗ŽƉĞŶƐĂŵĞŶƚŽƉƌĂŐŵĂƟƐƚĂĞĂĞƐƚĠƟĐĂ
tada com “100% Jardim Irene”. cc ƉŽƉƵůĂƌ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ĚŝƚŽƌĂϯϰ͕ϭϵϵϴ͘
^/>s͕:ŽƐĠĂƌůŽƐ'ŽŵĞƐ͘Rap  na  cidade  de  São  Paulo:  ŵƷƐŝĐĂ͕ĞƚŶŝĐŝĚĂĚĞĞ
ĞdžƉĞƌŝġŶĐŝĂƵƌďĂŶĂ.ĂŵƉŝŶĂƐ͗ĞƉĂƌƚĂŵĞŶƚŽĚĞŝġŶĐŝĂƐ^ŽĐŝĂŝƐĚŽ/ŶƐƟƚƵƚŽĚĞ
Rafael   Lopes   de   Sousa   é   Dou- &ŝůŽƐŽĮĂĞŝġŶĐŝĂƐ,ƵŵĂŶĂƐĚĂhŶŝĐĂŵƉ͕ϭϵϵϴ͘΀dĞƐĞĚĞŽƵƚŽƌĂĚŽ΁
tor   em   História   (Unicamp),   Profes- ^Kh^͕ZĂĨĂĞů>ŽƉĞƐĚĞ͘Punk:  ĐƵůƚƵƌĂĞƉƌŽƚĞƐƚŽ͕ĂƐŵƵƚĂĕƁĞƐŝĚĞŽůſŐŝĐĂƐĚĞƵŵĂ
sor   de   História   Contemporânea   e   ĐŽŵƵŶŝĚĂĚĞũƵǀĞŶŝůƐƵďǀĞƌƐŝǀĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ĚŝĕƁĞƐWƵůƐĂƌ͕ϮϬϬϮ͘
Introdução   aos   Estudos   Históricos   ͺͺͺͺͺͺ͘DŽǀŝŵĞŶƚŽWƵŶŬ͗^ŽĐŝĂďŝůŝĚĂĚĞ͕ĐŽŶŇŝƚŽĞǀŝǀġŶĐŝĂũƵǀĞŶŝůŶŽĞƐƉĂĕŽ
da   Unisa   (Universidade   de   Santo   ƉƷďůŝĐŽ͘Cenários  da  Comunicação.  ^ĆŽWĂƵůŽ͘ĞŶƚƌŽhŶŝǀĞƌƐŝƚĄƌŝŽEŽǀĞĚĞ:ƵůŚŽ͘
Amaro)  nas  modalidades  presencial   ĞƉĂƌƚĂŵĞŶƚŽĚĞŝġŶĐŝĂƐ^ŽĐŝĂŝƐ͘ǀ͘Ϯ͕Ŷ͘ϭ͕ŵĂŝŽϮϬϬϯ͕Ɖ͘ϯϭͲϰϬ͘
e  EAD.  Autor  do  livro  Punk:  cultura   ͺͺͺͺͺͺ͘KŵŽǀŝŵĞŶƚŽŚŝƉͲŚŽƉĞĂĂŶƟͲĐŽƌĚŝĂůŝĚĂĚĞĚĂZĞƉƷďůŝĐĂĚŽƐDĂŶŽƐ͘Re-­‐
e  protesto,  as  mutações  ideológicas   vista  Imaginário͘^ĆŽWĂƵůŽ͗/ŶƐƟƚƵƚŽĚĞWƐŝĐŽůŽŐŝĂ͕hŶŝǀĞƌƐŝĚĂĚĞĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ͕Ŷ͘ϭϮ͕
de   uma   comunidade   juvenil   sub- ϭǑƐĞŵ͘ϮϬϬϲ͕Ɖ͘ϮϱϭͲϮϲϵ͘
versiva.   Endereço   eletrônico:   ca- zj/'ĞŽƌŐĞ͘ĨƵŶŬŝĮĐĂĕĆŽĚŽZŝŽ͘/Ŷ͗,Z^,DEE͕D͘;ŽƌŐ͘Ϳ͘Abalando  os  anos  
noeiros2008@gmail.com
90:  funkĞhip-­‐hop͖ŐůŽďĂůŝnjĂĕĆŽ͕ǀŝŽůġŶĐŝĂĞĞƐƟůŽĐƵůƚƵƌĂů͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ZŽĐĐŽ͕ϭϵϵϳ͘
38      CULTURA  CRÍTICA  14

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ
O rap como narrativa
Da crônica do cotidiano à experiência do olhar
AMARINO  OLIVEIRA  DE  QUEIROZ  

Narrador. Adj.: que narra, que refere. humana estão em baixa. O pensamen- cialmente a ideia de pós-modernidade?
Aquele que diz histórias ou contos. to de Benjamin, atendo-se à dimensão Essa parece ser uma definição bastante
Aquele que expõe as particularidades utilitária da narrativa clássica, na qual o problemática.
de um acontecimento. narrador tem senso prático e pretende Para Homi Bhabha, qualquer
Lat.: narrator. ensinar algo, seria reavaliado, anos mais discussão sobre a teoria cultural no
(Figueiredo, 1991) tarde, em conhecido ensaio produzido contexto da globalização não poderá
por Silviano Santiago (1978). Ao discu- prescindir da leitura do estudo de-

M uito se tem discutido acerca


da figura do narrador e do
seu papel ao longo da histó-
ria da humanidade. Na primeira meta-
de do século passado, problematizando
tir a condução da narrativa no contexto
da chamada pós-modernidade, Santiago
acabaria por reabilitar a importância do
narrador, defendendo que, no panora-
ma atual, a ação estaria convertida em
senvolvido por Fedric Jameson em
Pós-Modernismo ou A Lógica Cultural do
Capitalismo Tardio. Já em seu primeiro
capítulo, Jameson busca situar o pós-
moderno na condição de um termo
a questão, Walter Benjamin afirmava representação e experiência do olhar. duplamente inscrito, como nomea-
que a arte de narrar é uma atividade Retomaremos este tema adiante. An- ção de um acontecimento histórico,
em vias de extinção, justamente por tes, porém, cabe levantar a seguinte oferecendo a narrativa periodizante
entender que as ações da experiência questão: o que caracterizaria substan- das transformações globais do capital.
CULTURA  CRÍTICA  14        39

Apoiando-se na linha de raciocínio pro- a literatura em direção à ocupação (...) processo de “rechaço” e “distanciamento”
posta por Jameson, Bhabha argumenta do entre-lugar proposto por Silviano, ou sugerido por Benjamin; 2) “o narrador
que a temporalidade não-sincrônica das do espaço intersticial ou terceiro espaço pós-moderno é um ficcionista”: transmite
culturas nacional e global abre um ter- sugerido por Bhabha?”. Com base nesse uma “sabedoria” proveniente da observa-
ceiro espaço cultural em que a negociação arcabouço teórico e tencionando contri- ção da experiência alheia, não respaldada
das diferenças cria uma tensão peculiar às buir com a discussão acerca do papel do pela vivência, mas cuja autenticidade é
existências fronteiriças: o novo mundo fenômeno literário, oral ou escrito, nos produto da lógica interna do relato, em
transnacional promove renomeações dos debates da contemporaneidade é que ten- que o “real” e o “autêntico” se colocam
sujeitos da diferença cultural, não ca- taremos flagrar através do rap, manifesta- como construções da linguagem.
racterizados como o Um nem o Outro, ção poética urbana emergida no espaço A comprovação dessas hipóteses
mas como algo além, “intervalar”. Ele intervalar margens/centros, factualida- se apoia no esforço de entender o que é
encontraria suas agências na forma de um de/ficcionalidade, um agenciamento da problemático na atualidade: através da
futuro intersticial, emergente “no entre- chamada narrativa pós-moderna. análise de um conto de Edilberto Cou-
meio entre as exigências do passado e as tinho, Sangue na praça, que trata do en-
necessidades do presente”, entendendo Tipologia do narrador contro de um jornalista brasileiro com
por entre-lugares os momentos ou pro- Comentando a proposta de Wal- sua companheira e o escritor Ernest He-
cessos que são produzidos na articulação ter Benjamin na tentativa de caracteriza- mingway numa plaza de toros espanhola,
das diferenças culturais, e por interstícios ção do processo evolutivo da história do Santiago destaca o papel do narrador pela
a sobreposição e o deslocamento de do- narrador, Silviano Santiago aponta para reaproximação entre reportagem e narra-
mínios dessas diferenças (Bhabha,1998, três momentos: a) o “narrador clássico”, tiva, ou seja, entre produção jornalística
p. 301). Tratando da análise de Suzanne aquele que intercambia a experiência e produção literária, reavaliando aquela
Crosta para essa noção de novo espaço com o seu ouvinte e que se configura função que, segundo ele, não teria sido
proposto por Homi Bhabha, Zilá Bernd, como o único estágio valorizado pelo devidamente apreciada por Benjamin em
por sua vez, argumenta que ensaio; b) o “narrador do romance”, cuja sua caracterização do narrador. O conto
função passou a ser a de não mais poder se escreve como se fosse uma reporta-
o conceito de terceiro espaço ou es- falar de maneira exemplar a seu leitor; e gem, permeada de incidentes que refe-
paço intersticial em Bhabha parte de c) o “narrador jornalista”, que se repor- renciam a atividade jornalística. Tanto no
uma noção linguística conforme a ta à experiência vivenciada por terceiros, universo literário de Hemingway, escritor
qual qualquer mensagem entre su- mas cuja importância não teria sido devi- entrevistado pelo personagem jornalista,
jeito e objeto cria um lugar, aberto a
damente valorizada por Benjamin. Surge,
uma gama de possibilidades, as quais
não seriam vislumbradas nem pelo por conseguinte, a questão: quem seria
emissor nem pelo receptor. No cam- o “narrador pós-moderno”? Aquele que
po cultural, essa base teórica permite narra a ação por tê-la vivenciado ou aque-
a Bhabha sair do binário, pois o ter- le que conta a história numa perspectiva
ceiro espaço não pretende ser um de observador? No entender de Silviano
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞD/ŶŚŽĐĆŽ

terceiro termo, mas um entre-lugar Santiago, a opção entre uma ou outra pos-
que os engloba e ultrapassa. (Bernd, sibilidade resulta insuficiente porque uma
1998, p. 268) ação pode ser narrada tanto de dentro
(pela ótica do protagonista ou coadjuvan-
Voltando o nosso olhar para a te) como de fora (a história relatada por
América Latina e reabilitando a propos- quem a assiste). O que se desenha, por-
ta de entre-lugar realizada, anos antes de tanto, é a noção de “autenticidade” do ob-
Bhabha, por Silviano Santiago1, Bernd jeto narrado. Santiago formula então duas
trata de questionar: “ao tecer oralidade e hipóteses: 1) “o narrador pós-moderno
escritura, palavra e imagem, formas arcai- quer extrair de si a ação, mas não a nar-
cas e modernas, racionalidade e magia”, ra na condição de atuante”: sua atitude é
os discursos literários da pós-modernida- semelhante à de um repórter ou espec-
de não estariam justamente “projetando tador. Nesse sentido, caminha além do
40      CULTURA  CRÍTICA  14

ética oral difundida pelos antigos griots


africanos, misto de poetas, animadores
públicos e historiadores populares envia-

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞ:ĂďĂƋƵĂƌĂ
dos ao continente americano em meio à
mão de obra escravizada durante o pe-
ríodo colonial. O rap foi se formatando
tecnicamente a partir do toast, espécie de
recitativo rítmico criado pelos DJs da pe-
riferia de Kingston, ao som de ritmos do
Caribe. De forma sincopada e realizando
mixagens sonoras artesanais sobre fundo
musical, esses animadores culturais de-
senvolviam um discurso bem-humorado
e dançante que tratava de denunciar, entre
outros temas, questões relacionadas com
os desmandos administrativos, a intole-
rância às diferenças, a violência urbana
e as mazelas comuns aos habitantes dos
quanto no de Edilberto Coutinho se im- O narrador se subtrai da ação narrada e guetos. No processo de migração para a
põem, assevera Santiago, um desprestígio cria um espaço para a ficção dramatizar a cidade industrial, sobretudo para os gue-
das formas romanescas e um favoreci- experiência de alguém que é observado e tos negros e hispânicos de Nova York, ao
mento das formas jornalísticas de narrar, que, muitas vezes, é desprovido de pala- entrar em contato com o break, modali-
isto é, uma reviravolta estética na qual a vra. Nesses moldes, se identifica com um dade de dança de rua e mímica corporal
figura do narrador passa a ser basicamen- segundo observador, o leitor, por se de- criada pelos jovens porto-riquenhos de
te a de quem se interessa pelo outro, não finirem como espectadores de uma ação Nova York como forma de protesto con-
por um olhar introspectivo. Agindo dessa alheia. tra a guerra do Vietnã, para a qual eram
forma, o narrador, ao dar fala ao outro, “A literatura pós-moderna”, ar- recrutados principalmente os negros,
acaba dando fala a si próprio, ainda que de gumenta Santiago, “existe para falar da os hispânicos e os brancos pobres, bem
maneira indireta. pobreza da experiência, mas também da como com o JUDIÀWWL, fusão de escrita
A questão resultante dessa oscila- pobreza da palavra escrita enquanto pro- pictórica com pintura mural realizada
ção do narrador entre repórter e roman- cesso de comunicação”, tratando, assim, clandestinamente nas ruas por integran-
cista seria a seguinte: por que o narrador “de um diálogo de surdos e mudos, já que tes dos guetos hispânicos e negros, o rap
não narra as coisas diretamente, a partir o que realmente vale na relação a dois, es- se constituiu em elemento integrante de
de sua própria experiência? Buscando tabelecida pelo olhar, é uma corrente de uma nova cultura urbana: o hip-hop. Mi-
elucidá-la, Silviano Santiago propõe a energia, vital (grifemos: vital), silenciosa, guel Rojas Mix (1988) ressalta que essa
leitura de outro conto do mesmo autor, prazerosa e secreta” (Santiago, 1978, p. solidariedade dos marginalizados condu-
Azeitona e vinho. Embora não tenha como 48 e 49). Suas hipóteses para a caracteri- ziria, sobretudo nas grandes cidades e em
profissão o jornalismo, o narrador do zação de um narrador pós-moderno pare- particular na periferia nova-iorquina, a
conto, representado por um velho e ex- cem fazer-se comprovar também através um encontro de hispânicos e negros reu-
periente homem de povoado, bebe vinho da experiência narrativa rapper, conforme nidos em torno de uma cultura popular
enquanto observa um jovem toureiro, tentaremos demonstrar adiante. comum, formatada pelas condições em
curiosamente apelidado de El Mudo, ro- que viviam tanto os habitantes do Black
deado de amigos, admiradores e turistas. O rap e a cultura hip-hop como os do Spanish Harlem (Rojas Mix,
À medida que se embriaga, o velho vai Produto da diáspora caribenha 1988, p. 116, tradução nossa).
desenvolvendo uma série de conjectu- nos Estados Unidos, na década de 1970, Em termos estruturais, pode-
ras a respeito da vida desse jovem, nele o rapðrhythm and poetryðVXUJLXXPD ríamos descrever o hip-hop como uma
projetando as esperanças de todo o povo- década antes, através da experiência to- cultura performática de rua, desenvolvi-
ado em vê-lo triunfar profissionalmente. aster jamaicana, herdeira cultural da po- da através de três grandes modalidades
CULTURA  CRÍTICA  14        41

expressivas: 1) a plástica, constituída pela


pintura mural e pela escrita pictórica dos
grafiteiros; 2) a cênica, caracterizada pela
dança de rua e pela mímica dos dançari-
nos de break, ou b.boys e b.girls; e 3) a foné-
tica, subdividida em vertente poética, na
poesia oral dos “mestres de cerimônia”,
ou MCs, e a vertente musical, capitanea-
da pelos disc jockeys ou DJs. Grafite, break,
MC e DJ, quatro dos componentes bá-
sicos do hip-hop, logo se reuniriam para
constituir um quinto elemento, o social,
reunido em torno das “posses”, ou seja,
das organizações juvenis que existem nas
comunidades periféricas para contribuir
com o processo de cidadania pela cons-
cientização política e pela ação social or-
ganizada. Assim, a poesia rapper, intera-
gindo performaticamente com a cultura
hip-hop, rapidamente se difundiria como
estratégia discursiva através do mundo
inteiro, consistindo num fenômeno tra-
dutório em contínuo processo de deslo-
camento, desterritorialização e reterrito-
rialização.
O rap como narrativa
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞDŝŶŚŽĐĆŽ

O discurso rapper abriga diversos


estilos, embora esta classificação esteja
mais orientada para o tema tratado do
que para a estrutura poética propriamen-
te dita. Assim, fala-se do rap “estilo de
rua”, que referencia geralmente de forma
laudatória os elementos constitutivos da
cultura hip-hop; do “romântico”, que se
ocupa das paixões e casos amorosos reais
ou fictícios dos hip-hoppers; do “radical”
ou gangsta, cujos textos revelam histórias
do gueto, explorando questões sexistas
ou relativas à violência policial, às drogas
etc.; do “gospel”, que enfoca assuntos re-
lacionados à vida espiritual, à convivên- do rap como construção ficcional que en- que não está no discurso oficial”, fazendo
cia pacífica entre os povos ou à pregação volve elementos conativos, expressivos e com que este narrador rapper se movi-
religiosa; e também do “cronista”, que se poéticos além de apresentar personagens, mente na perspectiva de uma reportagem
caracteriza pelo estabelecimento de uma tempo e espaço de ação, as jornalistas Da- social em versos. E complementam:
crônica performatizada do cotidiano, niela Souza e Tatiane Silva (2000) identifi- É necessário ressaltar que o papel do
transitando intencionalmente entre o fac- cam, na figura dos rappers nacionais, “o pa- Jornalismo nas sociedades moder-
tual e o poético. Na tentativa de descrição pel de agentes de uma narrativa do Brasil nas é, antes de tudo, documentar,
42      CULTURA  CRÍTICA  14

relatar, informar às pessoas de fatos carreira, detalhando toda a trajetória neo, um lugar de intensa ressonância na
notavelmente relevantes para as suas de Assis Chateaubriand, e, dessa for- produção literária rapper. No caso bra-
vidas e sociedades. A associação do ma, fazendo um verdadeiro histórico sileiro, desde a publicação em 1991 de
rap com o Jornalismo, que – em boa da imprensa brasileira. É um livro ABC RAPðSULPHLUDFROHWkQHDGHSRHVLD
medida – é também uma narrativa, essencial para qualquer estudante de do gênero editada no Brasil e organiza-
embora, a priori, não-ficcional, não Jornalismo que se preze, e é a pro- da pelo DJ pernambucano Nino Brown
parece forçoso no sentido de tornar dução brasileira mais significativa em
ð HVVD H[SHULrQFLD YHP VH DPSOLDQGR
públicos acontecimentos da reali- termos de jornalismo literário. (Ar-
dade de uma parcela da população coverde, 2003) também em direção à prosa. Diversos
(...). Existem diversas histórias que títulos, entre contos e romances, vêm
são simplesmente ocultadas, por um Em termos de prosa mais formal- sendo lançados por selos e editoras como
ou outro motivo, da História oficial. mente comprometida com o fazer literá- a Casa Amarela ou a Literatura Marginal,
Parece bastante plausível dizer que o rio, outra expressão bem próxima dessa escoando produções de escritores como
rap, enquanto uma narrativa dos ex- experiência seria a crônica. Vista de uma Ferréz (Capão Pecado), Jocenir (Diário de
cluídos, dos subalternos, repleto de um Detento) ou Paulo Lins (Cidade de Deus,
perspectiva mais conceitual, a crônica
signos e linguagem própria (gírias, transposto com sucesso para o cinema),
expressões típicas da periferia urba- aparece como gênero de temática livre,
notadamente voltado para os pequenos muitos deles ligados à cultura hip-hop, ou
na), potencialmente é um relato his- de outros autores que fazem uso do rap
tórico, construído por seus próprios acontecimentos do cotidiano. Publicada
basicamente em jornal, não se restringe, como linguagem, a exemplo de Gabriel
atores, na ótica de quem (sobre)vive
contudo, ao comentário do trivial, bus- O Pensador.
neste espaço (Souza e Silva, 2000).
cando realçá-lo através da transfiguração Tecendo comentários sobre Capão
artística. É nesse sentido que tanto ela Pecado, de Ferréz, o crítico Alcir Pécora
Vários profissionais da Comunica- como o Jornalismo Literário, ou, ainda, assinala que o livro procura dizer na for-
ção defendem, na contemporaneidade, a a poesia rap, encontrariam similitudes de ma de romance o mesmo que o rap dos
vertente conhecida como Novo Jornalis- estilo. Racionais MC’s, um dos mais respeitados
mo ou Jornalismo Literário, surgida em grupos do hip-hop brasileiro. Contudo,
meados dos anos 50 do século passado e A crônica do cotidiano e a diferentemente dos rappers, que já en-
caracterizada pelo desenvolvimento de experiência do olhar contram, em algum grau, uma estrutura
um trabalho de base mais autoral, inserida rítmica organizada, o autor não encontra
Esse é o palco da história quase nada que lhe possa servir imedia-
num meio-caminho entre o Jornalismo e que por mim será contada:
a Literatura, o que requer certa habilida- tamente de referência fora do cânone
um homem na estrada.
de artística do repórter. Segundo o pro- (Mano Brown, 1993) letrado. Por conta disto, os próprios raps
fessor Wilson Arcoverde, fornecem a primeira referência de cons-
O caráter de crônica do cotidiano trução do relato. A melhor medida da
Novo Jornalismo ou Jornalismo Li- encontra, em seu exercício contemporâ- tarefa empreendida por Ferréz consiste
terário, ou ainda Romance de Não-- em saltar, segundo Pécora, “além do rap e
-Ficção, podem parecer coisas distin- adotar um gênero que não apenas não se
tas, mas consistem numa modalidade espera dele, como, a rigor, está vedado a
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞĞůĂsŝƐƚĂ

de narrativa que funde elementos de ele, com a exclusão social que se cristaliza
ficção com a objetividade jornalística pela exclusão da escola e o acesso à leitura
(e) extrapola os limites do jornal im- e à escrita” (Pécora, 2000). O vocábulo
presso. É quando surge o livro-repor- Ferréz se constitui pela mistura deVirguli-
tagem, que se tornará o veículo mais
no Ferreira (Ferre) e Zumbi dos Palmares
comum para esse novo gênero (...).
No Brasil, o grande nome do Jorna- (Z), um híbrido de dois heróis guerreiros
lismo Literário é Fernando Morais. brasileiros, em palavras do próprio escri-
Olga já era um relato impressionante tor. Seu livro Capão Pecado foi adotado por
sobre a ditadura de Vargas e a Segun- professores de diversas instituições como
da Guerra Mundial, mas é em Chatô a Unicamp, a Universidade Bandeirantes
que o escritor atinge o ápice de sua e a Sorbonne, na França, perfazendo um
CULTURA  CRÍTICA  14        43

expressivo número de exemplares vendi-


dos. Sobre a acolhida do público e da crí-
tica a esse seu primeiro romance, o rapper
e escritor Ferréz declararia que

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞĞůĂsŝƐƚĂ
o rap precisa de várias vozes. O Hip-
hop precisa ser ouvido e a leitura é
a nossa principal arma, porque com
a leitura você está mexendo direta-
mente com a elite. Quando você faz
um livro (...) o cara pode até falar:
“Eu odeio rap, não escuto rap, não
gosto de nada de Hip-hop”. Só que
ele lê, paga R$ 50,00 num livro. Isso
é importante pra gente ocupar os
espaços, para o cara começar a ver
e falar: “Pô, os maloqueiros também
escrevem, né, mano? Pô, maloqueiro
também lê Gorki”. Aí a coisa começa
a complicar e eles vão falar: “Pô, os
caras não são tão burros assim, eles
estão na favela, mas estão aprenden- to d’Rua, também do Recife, realizou uma mão-dupla entre universos culturais
do”. (Ferréz, 2001, p. 46) criativa síntese estética envolvendo o aparentemente antagônicos.
break com o frevo, a capoeira e o coco- Maria Ignez Novaes Ayala lembra
Para Affonso Romano de de-roda, além de referências explícitas ao que a chamada poesia popular nordestina,
Sant’Anna, a passagem de um texto da cordel pelo grafite, baseada numa maior escrita ou oral, tem como característica
série musical para a série literária é ar- interação entre imagem e texto. Também marcante esse aspecto narrativo, argu-
riscadamente complexa. Comentando o em meados da década passada o Sistema mentando que tanto a poesia escrita (fo-
livro Diário noturno, de Gabriel O Pensa- X, outro grupo de rap recifense, lançou lhetos, poemas para declamar ou cantar e
dor, lançado em paralelo com um disco disco intitulado De Rapente, proclamando canções) como a poesia oral improvisada
de carreira, Sant’Anna argumenta que no visual do encarte a literatura de cordel (emboladas e repentes) são construídas
o rap pode ser recebido, pelo menos, de e a xilogravura. através de poemas narrativos. Se para ser
duas maneiras: pelo ouvinte espontâneo, Assim como ocorre no rap, desde lida, prossegue Ayala, a poesia popular es-
associado ao protesto social, ou pelo ou- suas primeiras manifestações a poesia nor- crita vai versando histórias, a poesia po-
vinte culto, na pauta de nossa produção destina de cordel assumiu, entre outras pular oral, na forma específica do repen-
cultural, fazendo correlações, por exem- funções, o caráter de crônica versejada do te, vai sendo construída a partir de gestos
plo, entre o rap e os repentistas nordesti- cotidiano. Realizando uma movimenta- e situações ocasionais, além de desenvol-
nos e sugerindo, como termo de conflu- ção constante entre o poético e o factual, ver temas diversos como acontecimentos
ência, o vocábulo rapentista. (Sant’Anna, bem como experimentando constantes históricos ou aspectos da natureza (Ayala,
2001). Esta é, aliás, uma referência pes- deslocamentos e relocações através do 1988, p. 19). Alinhando-se, pois, às prá-
soal utilizada já há bastante tempo por processo migratório interno, não chega a ticas poéticas tradicionais no Nordeste
alguns rappers pernambucanos na busca causar estranhamento que essa literatura brasileiro, o rap desenvolvido na região se
de uma definição formal para o seu exer- também assimilasse o rap e, consequen- enquadraria, de forma viva e atual, dentro
cício poético-musical. Zé Brown e Tiger, temente, a cultura hip-hop como repre- daquele caráter de crônica anteriormente
mestres de cerimônia do grupo Faces do sentação. A crítica social em versos, tradi- referido: mesmo as notícias “ganham nova
Subúrbio, desenvolvem desde o início dos cionalmente conduzida através do cordel dimensão quando transformadas em fato
anos 1990 interessante trabalho de fusão e agora tendo o rap como mote, seria, literário”, uma vez que “com a transferên-
estilística entre o rap e a embolada, pro- ainda, reiterada pela xilogravura e igual- cia do código, deixam de ser fato extra-
movendo um diálogo até então inédito mente incorporada pela cantoria. Estava literário, enriquecendo-se com as cor-
entre as duas linguagens. O coletivo Êxi- estabelecida, portanto, a possibilidade de relações e interpretações estabelecidas
44      CULTURA  CRÍTICA  14

pelo repentista” (Ayala, 1988, p. 151) e da entre as diversas margens e os diversos política / A inflação é consequência
fazendo com que a realidade, ao ser veicu- centros em diálogo, o rap estaria tratando dessa cólera
lada através de forma poética, passe muita de elaborar uma resposta consciente no E todo mal que nos assola é uma alí-
vezes a ser percebida com maior intensi- sentido tanto da inserção social e artísti- quota / Cujo montante principal é a
dade por parte do público. Cantoria de ca como na direção de outras dizibilida- política
viola, cordel, embolada, rap e hip-hop, des e visibilidades possíveis, como talvez Essa política sem lógica, sem nexo /
Essa política do próprio paradoxo
entre tantas outras manifestações poéticas possam sugerir os versos do MC paulista
Essa política, larica mais que tóxico
e culturais, manteriam em comum, além Athalyba neste fragmento de Política: / Essa política do fight bem no plexo
das características de estilo, esse caráter Essa política que não respeita sexo /
narrativo em versos, imagens, palavras e Nossa vida mais e mais ficando crítica Essa política perdida em circunflexo
gestos, promovendo, no espaço intervalar / Basta olhar que você vê que a vida Essa política, mentiras em anexo /
da cultura, aquele encontro da oralidade cívica Essa política do choque heterodoxo.
com a escritura, da palavra com a ima- Deteriora tanto quanto a coisa pú- (Athalyba, 2002, p. 129-131)
gem, das formas arcaicas com as moder- blica / Quanto choro, quanta fome,
quanta súplica
nas de que nos falava Zilá Bernd. Mas, finalmente, como é que a
Quanto nojo de saber que a gente es-
Bhabha propõe o lugar da cultura túpida / De mamatas vai vivendo na narrativa desenvolvida a partir do rap
como o entre-lugar deslizante, marginal república poderia nos conduzir satisfatoriamente
e estranho que, por resultar do confron- Chegou lá sem declarar riqueza súbi- à comprovação daquelas hipóteses for-
to de dois ou mais sistemas culturais que ta / Joga o jogo de enganar, postura muladas por Silviano Santiago e relacio-
dialogam de modo agonístico, é capaz de física nadas ao papel do narrador na chamada
desestabilizar essencialismos e de estabe- De enganar figura lá, postura cênica pós-modernidade? Por ter raízes fincadas
lecer uma mediação entre teoria crítica e / Vem política estúpida e anêmica na tradição oral dos griots africanos trans-
prática política. A estrutura performática Vem política, raquítica e cínica / portados para as Américas e o Caribe, a
do texto inaugura, segundo o autor, uma Choque vai, inflação vem, de forma poesia rapper sinalizaria também com a
estratégia narrativa para a emergência e cíclica presença do narrador tradicional, identi-
negociação daquelas agências do margi- Nem precisa consultar a estatística / ficado pelo seu papel de aconselhamento.
Pois de fato a gente sente a vida rús-
nal, da minoria, do subalterno e do dias- Um dado, porém, marcaria significati-
tica
pórico, que nos incitam a pensar através Que não há como mudar o tom da vamente a diferença: o advento do toast,
e para além da teoria. Assim, tornar-se-ia música / Pois vai mudar, vai melho- repente eletrônico resultante do desdo-
possível afirmar que, na condição de re- rar, vai ficar nítida bramento natural do canto falado da Áfri-
gistro poético oral urbano e contemporâ- Sua alegria de viver será explícita / ca em contato com a informação tecno-
neo, emergido na complexidade verifica- Nos palanques bem montados, boa lógica moderna da realidade urbana na
acústica Jamaica pós-independência. Espécie de
São patéticas promessas de política etapa intermediária ou elo entre o griot
/ De política em política, de política do passado e o rapper contemporâneo, a
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞ/ďŝƌĂƉƵĞƌĂ

em política elaboração discursiva toaster não se ateve


exclusivamente àquela postura exemplar
Parlamentarismo, monarquia ou re- inicial. Tratou de incrementar, mais mar-
pública / Muda o nome e terão todos
cadamente, uma atitude diferenciada que
forma única
Se não mudar a mentalidade lúdica / se fundaria exatamente na experiência do
O modo de se encarar a coisa pública olhar: a de observador social, animador
Enquanto isso a esperança mais um- cultural e repórter. Essa atitude dos toas-
brícola / Secando a roupa no varal ters jamaicanos, em ampla medida assimi-
ainda úmida lada pelos mestres de cerimônia do rap,
O sol batendo numa gota d’água fúl- interferiria diretamente na dicção hip-ho-
gida / Que será de nós e de nosso pper, fazendo com que esta fosse perme-
hábitat? ada, mas não exatamente delimitada pela
Sujando as mãos nós limparemos a forma tradicional de narrar.
CULTURA  CRÍTICA  14        45

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞĞůĂsŝƐƚĂ
Desde esse momento inaugural pretendida e a concretização dos desejos:
até os nossos dias, o texto do rap vem se “...o resto da madrugada sem dormir, ele
caracterizado, fundamentalmente, como pensa o que fazer para sair dessa situação.
um relato que é escrito previamente para Desempregado, então. Com má reputa-
ser verbalizado depois. A exceção ficaria ção. Viveu na detenção. Ninguém confia,
por conta do freestyle ou rap de improvi- não... Um homem na estrada”.
so, que é veiculado no ato mesmo de sua Lembrando aquelas hipóteses
criação, perante um público apreciador, levantadas por Silviano Santiago, o nar-
da mesma maneira como acontece com rador busca extrair de si a ação, não se
tantas outras manifestações poéticas da ocupando de contá-la na condição de atu-
oralidade, como as décimas cubanas, as ante e aproximando reportagem e nar-
payadas dos Pampas ou as cantorias nor- rativa, numa atitude semelhante à de um
destinas, para dar alguns exemplos do repórter ou espectador: “os ricos fazem
continente americano. Que foi perdida, subtraída; e quer campanha contra as drogas e falam sobre
Conforme já havíamos referido, provar a si mesmo que realmente o poder destrutivo delas. Por outro lado
dentro do hip-hop o rap é frequentemente mudou, que se recuperou e quer vi- promovem e ganham muito dinheiro com
ver em paz. Não olhar para trás, dizer
desenvolvido através de uma performance o álcool que é vendido na favela”. Nesses
ao crime: nunca mais! Pois sua infân-
mais ampla, em associação com os demais cia não foi um mar de rosas, não. Na moldes, é reavaliada a função jornalística
elementos dessa cultura de rua. O resul- Febem, lembranças dolorosas, en- do narrador: o relato promove uma re-
tado poético obtido, antes mesmo de se tão... Esse é o palco da história que viravolta estética na qual a figura do nar-
fixar na forma de sua escrita ou gravação, por mim será contada: um homem rador passa a ser basicamente a de quem
é suplementado por recursos de apoio na estrada. se interessa pelo “outro” e que, ao lhe dar
como: a) a “gagueira” intencional, que fala, acaba dando fala a si próprio, ainda
consiste na repetição ritmada de vogais, O fragmento acima transcrito, as- que de maneira indireta: “me digam quem
sílabas ou palavras inteiras, numa espécie sinado pelo rapper paulistano Mano Brown, é feliz, quem não se desespera, vendo nas-
de reiteração da mensagem vocalizada; b) dos Racionais MCs, (1993) remete-nos à cer seu filho no berço da miséria?!”.
o beatbox, atividade percussiva desenvolvi- história de um ex-presidiário em processo Ao subtrair-se da ação relatada, o
da pelo uso do aparelho fonador e da voz de reinserção social que se vê implicado, narrador cria também um espaço “para a
como substituto da instrumentação mu- no retorno à sua comunidade de origem, ficção dramatizar a experiência de alguém
sical, na ausência de instrumentos reais; como suspeito de novo delito criminal. que é observado e muitas vezes despro-
ou, ainda, c) pelo uso da pausa, do silên- O narrador nos traz, em tom de reporta- vido de palavra”, recobrindo-se por uma
cio, da melodia e da entonação, recursos gem policial, mas em permanente diálogo relação que se define pelo olhar e que
da linguagem presentes na oralidade que com o leitor, um relato em terceira pes- rompe com a ideia de continuidade li-
desempenham função semelhante, na arte soa que sofre aparentes interferências de near do processo de aprimoramento do
verbal, àquela representada pelos signos uma outra voz narrativa. Alguns aspectos homem e da sociedade defendida pelo
de pontuação na escrita. A origem toaster do cotidiano desse personagem são des- narrador clássico: as narrativas hoje são
do rap é flagrada também na própria es- critos detalhadamente até um momento “quebradas”, sempre a recomeçar, des-
truturação do texto escrito e verbalizado, de delação e da subsequente execução tituindo uma sabedoria “vencedora” e
que pode variar da versificação rimada durante blitz da polícia na favela. A estrada estabelecendo um conflito entre a sabe-
e metrificada à longa sucessão de versos aqui referida se reporta a uma condição de doria e a ingenuidade. Narrador e leitor
livres criados pelos MCs cronistas e pon- espaço simbólico, muito mais do que ao se definiriam, então, como espectadores
tuada pelo fundo sonoro manipulado pe- espaço real de trânsito e convivência que da ação alheia: “a vizinhança está calada
los DJs, num meio-caminho (num entre- se definiria concretamente pela existência e insegura, premeditando o final que já
lugar?) entre o jornalismo e a música, ou de um ponto de partida e outro de che- conhecem bem. Na madrugada da favela
entre esta, a prosa e a poesia: gada. Essa instância intervalar é sugerida não existem leis, talvez a lei do silêncio, a
pela ideia de deslocamento e relocação lei do cão, talvez”.
Um homem na estrada recomeça sua implícitos no texto e, consequentemen- O narrador, aqui, é também um
vida. Sua finalidade: a sua liberdade. te, pelo impasse verificado entre a meta ficcionista: a sabedoria por ele transmi-
46      CULTURA  CRÍTICA  14

tida, decorrente dessa observação da Nota


experiência alheia, respalda uma “auten- ϭ͘KĐŽŶĐĞŝƚŽĚĞĞŶƚƌĞͲůƵŐĂƌƐĞƌĞĨĞƌĞ͕ƐĞŐƵŶĚŽ^ĂŶƟĂŐŽ͕ĂŽƋƵĞƐƟŽŶĂŵĞŶƚŽ
ticidade” estabelecida pela lógica interna ƐŽďƌĞŽƉĂƉĞůĚŽŝŶƚĞůĞĐƚƵĂůůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽĞĂĨƵŶĕĆŽĚĞƵŵĚŝƐĐƵƌƐŽĐƌşƟĐŽ
ĨĂĐĞĂŽŶĞŽĐŽůŽŶŝĂůŝƐŵŽ͕ƚƌĂƚĂŶĚŽĞƐƐĞĞƐƉĂĕŽĐŽŵŽĂůŐŽŝŶƚĞƌƐƟĐŝĂů͕͞ĞŶƚƌĞŽ
do objeto narrado, na qual o “real” e o
ƐĂĐƌŝİĐŝŽĞŽũŽŐŽ͕ĞŶƚƌĞĂƉƌŝƐĆŽĞĂƚƌĂŶƐŐƌĞƐƐĆŽ͕ĞŶƚƌĞĂƐƵďŵŝƐƐĆŽĂŽĐſĚŝŐŽ
“autêntico” são colocados como constru- ĞĂĂŐƌĞƐƐĆŽ͕ĞŶƚƌĞĂŽďĞĚŝġŶĐŝĂĞĂƌĞďĞůŝĆŽ͕ĞŶƚƌĞĂĂƐƐŝŵŝůĂĕĆŽĞĂĞdžƉƌĞƐƐĆŽ͟
ções da linguagem: “homem mulato apa- ;^ĂŶƟĂŐŽ͕ϭϵϳϴ͕Ɖ͘ϮϴͿ͘
rentando entre vinte e cinco e trinta anos
ZĞĨĞƌġŶĐŝĂƐďŝďůŝŽŐƌĄĮĐĂƐ
é encontrado morto na estrada do M’Boi
Mirim, sem número. Tudo indica ter sido d,>z͘WŽůşƟĐĂ͘/Ŷ͗Yh/ZK͕ŵĂƌŝŶŽKůŝǀĞŝƌĂĚĞ.  Ritmo  e  poesia  no  Nordeste  
brasileiro:  ĐŽŶŇƵġŶĐŝĂƐĚĂĞŵďŽůĂĚĂĞĚŽƌĂƉ͘&ĞŝƌĂĚĞ^ĂŶƚĂŶĂʹ͕WŽƐ>͕ϮϬϬϮ͘
acerto de contas entre quadrilhas rivais.
ŝƐƐĞƌƚĂĕĆŽĚĞDĞƐƚƌĂĚŽ͘
Segundo a polícia, a vítima tinha vasta fi- z>͕DĂƌŝĂ/ŐŶĞnjEŽǀĂĞƐ͘No  arranco  do  grito:ĂƐƉĞĐƚŽƐĚĂĐĂŶƚŽƌŝĂŶŽƌĚĞƐƟŶĂ͘^ĆŽ
cha criminal...”. WĂƵůŽ͗ƟĐĂ͕ϭϵϴϴ͘
Silviano Santiago entende que, E:D/E͕tĂůƚĞƌ͘KŶĂƌƌĂĚŽƌ͘/Ŷ͗DĂŐŝĂĞdĠĐŶŝĐĂ͕ƌƚĞĞWŽůşƟĐĂ͘KďƌĂƐƐĐŽůŚŝĚĂƐ͕
ao revelar o espetáculo da vida hoje, o ǀŽů͘/͘dƌĂĚ͘^ĠƌŐŝŽWĂƵůŽZŽƵĂŶĞƚ͘ϰ͘ĞĚ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ƌĂƐŝůŝĞŶƐĞ͕ϭϵϵϭ͘
olhar pós-moderno tornaria a ação re- ZE͕ŝůĄ͘ŵďƵƐĐĂĚŽƚĞƌĐĞŝƌŽĞƐƉĂĕŽ͘/Ŷ͗Escrituras  híbridas:ĞƐƚƵĚŽƐĞŵůŝƚĞƌĂ-­‐
ƚƵƌĂĐŽŵƉĂƌĂĚĂŝŶƚĞƌĂŵĞƌŝĐĂŶĂ͘WŽƌƚŽůĞŐƌĞ͗ĚŝƚŽƌĂh&Z'^͕ϭϵϵϴ͘
presentação, experiência do ver, do ob- ,,͕,Žŵŝ͘ŽŵŽŽŶŽǀŽĞŶƚƌĂŶŽŵƵŶĚŽ͘/Ŷ͗O  local  da  cultura͘dƌĂĚ͘DLJƌŝĂŵ
servar, experiência do olhar em suas va- ǀŝůĂ͕ůŝĂŶĂ>ŽƵƌĞŶĕŽĚĞ>ŝŵĂZĞŝƐĞ'ůĄƵĐŝĂZĞŶĂƚĂ'ŽŶĕĂůǀĞƐ͘ĞůŽ,ŽƌŝnjŽŶƚĞ͗
riantes lúdicas como o futebol, a música ĚŝƚŽƌĂh&D'͕ϭϵϵϴ͕ĐĂƉ͘y/͘
popular, o teatro, o cinema ou a dança. ZKtE͕EŝŶŽ;KƌŐ͘Ϳ͘ABC  Rap.^ĆŽĞƌŶĂƌĚŽĚŽĂŵƉŽ͗WƌĞĨ͘DƵŶŝĐŝƉĂů͕^ĞĐ͘ƵůƚƵƌĂ͕
Ou, acrescentemos aqui, como o rap e ϭϵϵϭ͘
Khd/E,K͕ĚŝůďĞƌƚŽ͘Sangue  na  praça͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ŽĚĞĐƌŝ͕ϭϵϳϵ;Žů͘Ě͘ĚŽ
o hip-hop, na condição de discursos li-
WĂƐƋƵŝŵͿ͘
terário e cultural da pós-modernidade &ZZ͘>ŝƚĞƌĂƚƵƌĂDĂƌŐŝŶĂů͘ŶƚƌĞǀŝƐƚĂĂůĞdžĂŶĚƌĞĞDĂŝŽ͘/Ŷ͗Rap  Brasil  Cultura  de  
que estariam projetando, pelo exercício Rua͕Ŷ͘ϴ͕ϮϬϬϭ͕Ɖ͘ϰϲ͘
de confluência entre oralidade e escritu- ͺͺͺͺͺͺ͘Capão  Pecado.  ^ĆŽWĂƵůŽ͗>ĂďŽƌƚĞdžƚŽ͕ϮϬϬϬ͘
ra, palavra e imagem, formas arcaicas e &/'h/ZK͕ąŶĚŝĚŽ͘Grande  Dicionário  da  Língua  Portuguesa͘>ŝƐďŽĂ͗ĞƌƚƌĂŶĚ͕
modernas de que nos falava Zilá Bernd, ϭϵϵϭ͕Ɖ͘ϰϱϴ͘
:D^KE͕&ĞĚƌŝĐ͘Pós-­‐Modernismo  ou  A  Lógica  Cultural  do  Capitalismo  Tardio͘dƌĂĚ͘
a literatura e a cultura rumo à ocupação DĂƌŝĂůŝƐĂĞǀĂƐĐŽ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ƟĐĂ͕ϭϵϵϳ͘ĂƉ͘/͘
do “entre-lugar” proposto por Silviano, KWE^KZ͕'ĂďƌŝĞů͘Diário  noturno͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ĚŝƚŽƌĂKďũĞƟǀĂ͕ϮϬϬϭ͘
ou do “espaço intersticial” sugerido por Yh/ZK͕ŵĂƌŝŶŽKůŝǀĞŝƌĂĚĞ.  Ritmo  e  poesia  no  Nordeste  brasileiro:  ĐŽŶŇƵġŶĐŝĂƐĚĂ
Bhabha. Isso porque, reiterando uma ĞŵďŽůĂĚĂĞĚŽƌĂƉ͘&ĞŝƌĂĚĞ^ĂŶƚĂŶĂʹ͕WŽƐ>͕ϮϬϬϮ͘ŝƐƐĞƌƚĂĕĆŽĚĞDĞƐƚƌĂĚŽ͘
vez mais as palavras do próprio Silviano ZK:^D/y͕DŝŐƵĞů͘Cultura  afro-­‐americana:  ĚĞĞƐĐůĂǀŽƐĂĐŝƵĚĂĚĂŶŽƐ͘DĂĚƌŝĚ͗
ŶĂLJĂ͕ϭϵϴϴ͘
Santiago, o narrador pós-moderno exis-
^Ed/'K͕^ŝůǀŝĂŶŽ͘KŶĂƌƌĂĚŽƌƉſƐͲŵŽĚĞƌŶŽ͘/Ŷ͗Nas  malhas  da  letra͘^ĆŽWĂƵůŽ͗
tiria para falar das diversas facetas dessa ŽŵƉĂŶŚŝĂĚĂƐ>ĞƚƌĂƐ͕ϭϵϴϵ͘͘
arte, ele mesmo detendo a força do ver- ͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺ͘KĞŶƚƌĞͲůƵŐĂƌĚŽĚŝƐĐƵƌƐŽůĂƟŶŽͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽ͘/Ŷ͗Uma  literatura  
bo e o poder da palavra escrita. cc nos  trópicos͘^ĆŽWĂƵůŽ͗WĞƌƐƉĞĐƟǀĂ͕ϭϵϳϴ͘Žů͘ĞďĂƚĞƐ͘
Referências  eletrônicas
Amarino   Oliveira   de   Queiroz   é   Dou- ZKsZ͕tŝůƐŽŶ͘Oito  livros  para  entender  o  Novo  Jornalismo͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗
tor   em   Teoria   da   Literatura   (Literatu- фŚƩƉ͗ͬͬǁǁǁ͘ƌĂďŝƐĐŽ͘ĐŽŵ͘ďƌͬϮϭͬũŽƌŶĂůŝƐŵŽ͘Śƚŵх͘ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϮϴĂŐŽϮϬϬϯ͘
ras  Africanas  de  Línguas  Espanhola  e   WKZ͕ůĐŝƌ͘Querido  sistema.ĂŵƉŝŶĂƐ͗ŽƌƌĞŝŽWŽƉƵůĂƌŝŐŝƚĂů͕ϬϰŶŽǀϮϬϬϬ͘
Portuguesa)  pela  Universidade  Federal   ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬǁǁǁ͘ĐƉŽƉƵůĂƌ͘ĐŽŵ͘ďƌх͘ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϬϱĨĞǀϮϬϬϭ͘
de   Pernambuco.   Mestre   em   Literatu- ^Ed͛EE͕īŽŶƐŽZŽŵĂŶŽĚĞ͘Gabriel  e  o  Rap  Pensador͘/Ŷ͗ŐŽďůŽŐϮŽŶůŝŶĞ͕Ϯϴ
ra   e   Diversidade   Cultural   (Poéticas   ŶŽǀϮϬϬϭ͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬĞŐŽďůŽŐϮ͘ďůŽŐƐƉŽƚ͘ĐŽŵх͘ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϮϵũĂŶϮϬϬϮ͘
da   Oralidade   Afrodescendente:   rap   ^Kh͕ĂŶŝĞůĂĞ^/>s͕dĂƟĂŶĞ͘ĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽĚĞŝĚĞŶƟĚĂĚĞŶŽŵŽǀŝŵĞŶƚŽŚŝƉͲŚŽƉ
e   embolada)   pela   Universidade   Es- ĞŽƌĂƉĐŽŵŽĐŽŶƚƌĂͲŶĂƌƌĂƟǀĂ͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬǁǁǁ͘ĨĂĐŽŵ͘ƵĩĂ͘ďƌͬƐĞƌŚƵƌ-­‐
tadual   de   Feira   de   Santana,   Bahia.   ďĂŶŽͬŚŝƉŚŽƉх͘ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϭϴĨĞǀϮϬϬϭ͘
Bacharel   em   Letras/Espanhol   pela  
Universidade  Federal  da  Bahia.  Pro- ZĞĨĞƌġŶĐŝĂƐĨŽŶŽŐƌĄĮĐĂƐ
fessor   Adjunto   da   Universidade   Fe- ZKtE͕DĂŶŽ͘KŚŽŵĞŵŶĂĞƐƚƌĂĚĂ͘Raio  X  do  Brasil͘^ĆŽWĂƵůŽ͗Z^&ŽŶŽŐƌĄ-­‐
deral  do  Rio  Grande  do  Norte.   ĮĐĂ͕ϭϵϵϯ͕ĚŝŐŝƚĂů͕ƐƚĞƌĞŽ͕͘
CULTURA  CRÍTICA  14        47
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ

Hip-hop: uma fala histórica


contra-hegemônica
EDUARDO  GRANJA  COUTINHO
MARIANNA  ARAÚJO

Por qué no te callas? tos norte-americanos é, hoje, cantada associada a um conteúdo crítico – uma
(Juan Carlos I, Rei de Espanha) pelos jovens das periferias de todos os visão de mundo subalterna e frequen-
quadrantes do globo. Mas, diferente- temente subversiva. A esse fenômeno
Eu sou é do gueto mente das estereotipias produzidas pela poderíamos chamar de globalização
Pra revolucionar nação hegemônica e difundidas em esca- contra-hegemônica.1
Lutando para derrubar la planetária, a cultura hip-hop costuma Queiram ou não os tradicio-
A ditadura cultural que tenta nos
ser assimilada como uma fala histórica QDOLVWDV ð RV GHIHQVRUHV GD´DXWrQWLFD
calar.
(Gas-PA, rapper do Morro da essencialmente crítica por uma juven- FXOWXUD QDFLRQDOµ ð R KLSKRS p KRMH
Lagartixa) tude com tão escassas vias de fuga ao uma forma de expressão comunitária,
sempre igual. Quando, por exemplo, por meio da qual se comunicam e afir-

E ntre as vozes que se cruzam na


cacofonia urbana da sociedade
globalizada, há uma que sobres-
sai pela sua radicalidade marginal: o
rap. A moderna tradição negra dos gue-
jovens de uma favela brasileira incor-
poram esta linguagem tornada univer-
sal, por mais que a sua realidade seja
diferente daquela dos marginalizados
do país de origem, a forma permanece
mam sua identidade os habitantes dos
morros e comunidades populares. As-
sim como o samba foi e continua sen-
do uma linguagem capaz de expressar
crítica social e de costume, o rap se
48      CULTURA  CRÍTICA  14

constitui como uma fala política e, em


alguns casos, como uma música de re-
beldia e protesto.
É no contexto das comunidades
periféricas, privadas de voz e meios de
expressão cultural, que pretendemos
trabalhar o tema “cultura jovem”, com-
preendendo o hip-hop como a cultura
marginal daqueles jovens tratados no
jargão policial como “de menor”. Para
muitos, soará estranho falar em “cultura
jovem” em se tratando de jovens fave-
lados. O adjetivo jovem, exaustivamen-
te mobilizado pela indústria, remete à
ideia de consumo. Mas o rap cantado
nas comunidades não está à venda nas
lojas de discos e não é tocado nas rádios.
Estando à margem do mercado, teriam
os jovens do morro direito à juventu-
de, essa mercadoria tão idealizada? Ser
MRYHP QR %UDVLO ð VREUHWXGR QR %UDVLO
VLPXODGRGRVPHLRVGHLQIRUPDomRðp
um ideal e um privilégio.

Foto:  Davi  Francisco  da  Silva  


“I’m black and I’m proud”:
negros com atitude
O surgimento do movimento
hip-hop nos remete ao contexto no qual
estavam inseridos os Estados Unidos dos
anos 1960 e 1970, no auge da Guerra Fria.
Foram anos de tensão e muita agitação po-
lítica. O descontentamento popular com a
guerra do Vietnã somava-se à pressão das Num amplo movimento contra a dades por meio de suas próprias insti-
comunidades negras segregadas, submeti- segregação racial e por direitos civis, a tuições políticas e culturais. Assim dizia
das a leis similares às do apartheid sul-afri- população negra organizou-se em asso- Stokely Carmichael, militante radical do
cano. O clima de revolta e inconformismo ciações comunitárias, nas quais atuaram movimento, após sua 27ª detenção, em
tomava conta dos guetos negros. importantes líderes como Malcolm X e 1966: “Estamos gritando liberdade há
É nessa época que se dá o auge da Martin Luther King. As duas lideranças seis anos. O que vamos começar a dizer
disseminação das drogas nas grandes cida- adotaram diferentes formas de atuação agora é poder negro”. Com o assassinato
des. Durante a guerra, os entorpecentes e tinham estratégias divergentes, mas de Luther King em 1968, conflitos ra-
foram amplamente utilizados pelos solda- concordavam que os negros precisavam ciais ocorreram em dezenas de cidades
dos norte-americanos. 2 No pós-guerra, restabelecer a sua autoestima e desen- dos Estados Unidos. A solução pacífica
as drogas trataram de cumprir o seu papel volver sua capacidade de organização para os problemas dos negros parecia
de apaziguador social.3 Era comum entre política. cada vez mais distante. Nessa época,
os sobreviventes do confronto e entre os Fortalecia-se o movimento Black ganharam força propostas mais radicais,
jovens negros oprimidos e potencialmen- Power, reafirmando o direito dos negros como a do partido político Black Pan-
te rebeldes o vício em heroína. de decidirem os rumos de suas comuni- thers (Panteras Negras), cujo programa
CULTURA  CRÍTICA  14        49

político revolucionário chegou a adotar localizado na região norte da cidade É assim que, no início da déca-
algumas ideias do líder comunista chi- de Nova York, já estava sendo arqui- da de 1970, artistas como o pianista e
nês Mao Tsé-Tung. tetada a próxima reação da autenti- cantor de black music Gil Scott-Heron –
Na virada para os anos 1970, a cidade black. No final dos anos 60, o autor da canção “A revolução não será
polícia já tinha fechado a bala quase todos DJ Kool Herc trouxe da Jamaica para WHOHYLVLRQDGDµðUHFLWDYDPYHUVRVVREUH
os escritórios dos Black Panthers. Muitos o Bronx a técnica dos famosos sound bases percussivas que remetiam à tradi-
systems de Kingston (1997, p. 46).
militantes foram assassinados ou presos. ção poética dos griots das tribos africa-
Com tamanha repressão, o partido não nas escravizados na América.
Kool Herc levou para os Esta-
resistiu por muito tempo, mas deixou Os griots eram negros contado-
dos Unidos o costume dos DJs de seu
um legado de ideias que foram retoma- res de história, incumbidos de manter
país, que recitavam versos improvisa-
das por uma outra forma de organização viva a memória de suas tribos por meio
dos sobre versões remixadas do reggae,
dos negros: o movimento hip-hop. de versos que eram passados entre ge-
então chamadas de dub. Porém, Herc
Na trilha da agitação política rações. Essa tradição ficou conhecida
notou que o dub não fazia sucesso em
ocorriam inovações culturais. Nos gue- como “canto falado” e deu origem a di-
Nova York e teve de adaptar seu estilo,
tos, o que se ouvia era o soul, que foi versas manifestações culturais em toda a
cantando versos sobre os instrumentais
importante para a organização e cons- América. No discurso dos rappers brasi-
dos ritmos afro-americanos que eram
cientização daquela população. Pense- leiros, é comum, inclusive, a identifica-
populares na periferia nova-iorquina:
se, por exemplo, nas canções de James ção entre o rap e formas como o repente
o funk e o soul. Nascia assim, nas festas
Brown. Gravada em 1968, uma de suas e a embolada, que teriam o canto dos
de rua do Bronx, o rap, com versos im-
músicas mais conhecidas, “I’m black and griots como antepassado comum4.
provisados, rimas simples, repleto de
I’m proud”, ecoa uma frase do líder sul-- Por essa época ou um pouco an-
gírias e ditados populares. Junto com a
-africano Steve Biko: “Say it loud: I’m tes, jovens negros já dançavam nas ruas
arte do DJ de mixar, nascia também a
black and proud!” (Diga isto bem alto: ao som do soul e do funk de uma for-
do MC, o mestre de cerimônias, aquele
sou negro e me orgulho disso). No ma inovadora, executando passos que
que fazia as rimas e cantava de impro-
mesmo período surge uma variedade lembravam ao mesmo tempo uma luta
viso. Essa modalidade de rap, praticada
de outros ritmos, como o funk, marca- e os movimentos de um robô. Com essa
em seus primórdios, é mantida, ainda
dos por pancadas poderosas que causa- dança, a que deram o nome de break, os
hoje, no chamado freestyle e na batalha
vam estranhamento aos brancos, letras chamados b.boys (break boys)
de rima. No freestyle, o DJ coloca a base
que invocavam a valorização da cultura
e o MC rima de improviso, sem refrão e faziam uma espécie de protesto
negra e denunciavam as condições às
por quanto tempo conseguir. Na batalha contra a Guerra do Vietnã por meio
quais eram submetidas às populações
de rima, dois MCs vão rimando de for- dos passos de dança que simulavam
dos guetos. O soul e o funk foram as
ma alternada; em alguns casos repetem os movimentos dos feridos de guer-
bases musicais que permitiram o sur-
um refrão que serve de mote ao desafio, ra. Cada movimento do break possui
gimento do rap, que virá a ser um dos
algo como no samba de partido-alto. como base o reflexo do corpo debi-
elementos do movimento hip-hop.
litado dos soldados norte-america-
A expansão de um movimento no, ou então a lembrança de [algo
político-cultural negro e de rua na pe-
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞDŝŶŚŽĐĆŽ

relacionado à guerra]. (...) O giro


riferia dos Estados Unidos não passou de cabeça, em que o indivíduo fica
despercebida à indústria fonográfica, com a cabeça no chão e, com os pés
que tratou de hegemonizar o movimen- para cima, procura circular todo o
to, assimilando-o. Milhões de dólares corpo, simboliza os helicópteros
foram investidos nos artistas da black agindo durante a guerra. (Elaine
music. No entanto, observa Hermano Andrade apud Rocha, Domenich,
Vianna, Casseano, 2001, p. 47)

Enquanto acontecia a febre nas Finalmente, além da música e


pistas das discotecas, nas ruas do da dança, propagava-se pelos guetos,
Bronx, o gueto negro e caribenho ainda, o hábito de desenhar e escrever
50      CULTURA  CRÍTICA  14

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂů
em muros e paredes. Em meados da dé- Hip-hop no Brasil: o canto
cada de 1960, os jovens pichavam seus falado das favelas6
nomes nos muros dos bairros e isso foi
apropriado pelas gangues, que usavam a Por volta de 1982 o rap chegou
pichação para demarcar território. Com ao Brasil, fixando-se, sobretudo, em São
o tempo, o grafite assumiu a forma de Paulo. Nesse momento, pouco se sabia
letras quebradas e garrafais para chamar sobre o movimento hip-hop, que para
a atenção, mas também para dificultar o os brasileiros se resumia ao break.7 Os
entendimento de quem não era do lo- eventos de dança de rua aconteciam ao
cal, ou seja, os brancos, “os de fora”. No som da música importada. Entre 1983
mesmo espírito dos DJs que, preocupa- e 1988, os b.boys começaram a experi-
dos com a disseminação das drogas e o mentar rimas próprias, já que a música
aumento da violência, promoviam fes- em inglês era, para eles, incompreensí-
tas e batalhas de break com a intenção de vel. Como não dispunham de equipamen-
criar uma alternativa para a juventude, o então, a preocupação maior dos rappers to de som para executar as bases, a solução
grafiteiro Phase 2 estimulava a atividade militantes tem sido resistir ao processo encontrada era “bater latinha”, prática que,
criadora dos jovens, mostrando-lhes a de assimilação pelo mercado e à conse- de alguma forma, relacionava-se à tradição
possibilidade de se expresssar e revelar quente perda da identidade política do percussiva brasileira. Surgia, assim, a pri-
sua realidade por meio de painéis pin- falar marginal do Bronx. meira modalidade do rap brasileiro, o taga-
tados com tinta spray nas ruas da comu- Na década de 1980 surgem dois rela, que não tardou a ser reprimido pela
nidade. grupos que serão marcos para a reafir- polícia, o que de certo modo predispunha
Nesse contexto de efervescência mação do caráter contra-hegemônico os rappers a se organizarem.
político-cultural, grafiteiros, breakers e do hip-hop: o NWA (Niggers with Atti- Uma nova fase do movimento
rappers começaram a se reunir para reali- tude) e o Public Enemy, que projetam o será inaugurada em 1988 com a criação
zar eventos juntos; afinal suas artes esta- rap globalmente como um canto de ex- do MH2O (Movimento Hip-Hop Or-
vam relacionadas a uma experiência co- pressão e contestação. ganizado) por Milton Salles. No mesmo
mum: a cultura de rua. O DJ do Bronx Nesse momento, a mídia e o período começam a chegar ao país as
Afrika Bambaataa ganhou destaque pelas governo norte-americanos percebe- canções do NWA e do Public Enemy. As
festas que produzia. Para nomear esses ram que era necessário dar mais aten- rimas pesadas, a batida forte e o caráter
encontros que reuniam DJs, MCs e dan- ção ao hip-hop. Tratava-se de hegemo- rebelde desses grupos despertaram nos
çarinos de break, Bambaataa cunhou em nizar o rap explosivo e consciente que rappers e b.boys brasileiros a curiosidade
1968 a expressão hip-hop, que significa ganhava força para além dos guetos pela história do hip-hop. A biografia de
movimentar os quadris (do verbo to hip, dos Estados Unidos. É assim que a Malcolm X e o filme sobre os Black Pan-
em inglês) e saltar (do verbo to hop). Foi indústria fonográfica investe maciça- thers passam a ser considerados funda-
nas festas promovidas por Bambaataa, mente no rap, que cada vez mais se mentais na formação dos integrantes do
portanto, que o movimento hip-hop se distancia de suas origens nos guetos, movimento, como afirma Gas-PA, do co-
configurou como um conjunto de ma- e deixa de expressar uma historicida- letivo Lutarmada8.Tão importante quan-
nifestações culturais: um estilo musical, de alternativa, perdendo suas carac- to a forma ou a linguagem hip-hop, era a
o rap (sigla para rhythm and poetry); uma terísticas marginais. Como assinala assimilação do seu conteúdo histórico,
maneira de apresentar essa música em Edgar Morin, referindo-se à comer- sua visão de mundo marginal. Como ob-
shows e bailes que envolve um DJ e um cialização do rock, o próprio de todo seva Elaine Andrade, “se um jovem não co-
MC; uma dança, o break; e uma forma esse sistema da cultura de massa é o nhecer a história do hip-hop, não participar
de expressão plástica, o grafite (Rocha, de circunscrever a tendência dionisí- de um grupo organizado e se não fizer um
Domenich, Casseano, 2001, p. 19). aca, mas sem destruí-la; é o de abafar rap inteligente, pode até ser um rapper para
Com o passar do tempo e a po- o subversivismo latente, de maneira a a sociedade abrangente, mas para a juven-
pularização das festas, os grupos de explorá-lo e integrá-lo num star-sistem tude hip-hop jamais poderá ser conside-
hip-hop começaram a se organizar em clássico, descartando toda a tendência rado um verdadeiro b.boy” (apud Rocha,
associações, as chamadas Nações. Desde rebelde incontrolável.5 Domenich, Casseano, 2001, p. 110).
CULTURA  CRÍTICA  14        51

A partir da experiência do São Paulo. Isso foi em setembro dois fatores serão decisivos. Primeiro, o
MH2O surgem as primeiras posses em de 91. Aí eu fui. (...) Me assustei desenvolvimento das novas tecnologias.
São Paulo. As posses eram organizações ao ver como que o movimento era A realidade da turma que “batia latinha”
que reuníam grupos de praticantes das grande em São Paulo e fazia parte (o rap tagarela) foi ficando distante, já
artes do movimento para difundir os do cotidiano das pessoas. E no meio que o acesso aos equipamentos se tor-
ideais do hip-hop e constituir resistên- do show do Public Enemy eles pa- nou cada vez mais fácil, principalmente
raram e chamaram uns caras no
cia à violência polícial. A primeira posse depois da popularização do computador
palco. Aí todo mundo começou a
foi o Sindicato Negro, fundada em 1989 bater palmas e a gritar Racionais. pessoal. Os avanços tecnológicos não só
pelos frequentadores da Praça Roose- Então eu entendi que Racionais era facilitaram o processo de produção das
velt, no centro da cidade. o nome dos caras que estavam no músicas, tornando mais fácil a técni-
O movimento hip-hop paulista palco. Eles cantaram uma música ca do sampler, como também a difusão
será referência e influência para outras com quatro mil pessoas cantando delas. O segundo fator importante para
regiões do país. Um relato de Gas-PA junto com eles, a música foi Pânico consolidação do hip-hop foi a atuação
sobre um show ocorrido em 1991 ilus- na Zona Sul. Eu pensei então, que das rádios comunitárias. Entre estas,
tra a importância de São Paulo como existia todo um universo em torno destaca-se a Favela FM, da comunidade
centro irradiador da cultura hip-hop no do movimento que eu desconhecia. Nossa Senhora de Fátima, em Belo Ho-
Brasil: rizonte. Durante as décadas de 1980 e
A disseminação do movimen- 1990 era desejo de todo rapper ter sua
Eu curtia um rap e comecei a pres- to hip-hop para as demais regiões do música tocada no programa “Uai rap
tar atenção naquilo. Até que um dia país ocorre absolutamente à margem soul”. “A história da Favela FM confun-
o Public Enemy fez um show em da grande mídia. Para tal, pelo menos de-se com a da divulgação do hip-hop
Foto:  Davi  Francisco  da  Silva  
52      CULTURA  CRÍTICA  14

pelo país. Por muitos anos desprezado do mundo de uma maneira positiva exemplo, realiza anualmente no Morro
pelos meios de comunicação, o hip-hop e negativa. Hoje gosto muito mais da Lagartixa o “Hip-hop ao trabalho”. A
encontrou nas rádios comunitárias um do hip-hop do Brasil do que do festa, que acontece no dia 1º de maio,
microfone aberto” (Rocha, Domenich, hip-hop dos Estados Unidos. (...) reúne artistas de outras favelas da cida-
Casseano, 2001, p. 88). É [nos Estados Unidos] repetitivo, de, com o objetivo de incentivar dis-
Nos últimos anos da década de não combina ritmos, como faz o cussões na comunidade sobre questões
som brasileiro. (Rocha, Domeni-
1990, o rap brasileiro ultrapassou os li- GR FRWLGLDQR ð UHODo}HV GH WUDEDOKR
ch, Casseano, 2001, p. 125)
mites da periferia dos grandes centros segurança pública, violência policial,
e chegou à classe média. Em 1997, o etc. Gas-PA conta que o Lutarmada
Outra característica relevante
disco Sobrevivendo no Inferno, do grupo surgiu de encontros que ele promo-
do hip-hop brasileiro é sua proximida-
Racionais MC’s, sob selo independen- via entre os amigos para escutar rap e
de com os movimentos sociais, como
te, vendeu um milhão de cópias, cha- discutir filmes. Dois vídeos inspiraram
o Movimento dos Trabalhadores Rurais
mando a atenção tanto das gravadoras, a criação do coletivo: Black Panthers e
Sem-terra ou o Movimento dos Sem-
quanto da mídia. O rap de caráter mais Lamarca, o capitão da guerrilha. Com o
teto. São comuns composições que
comercial passou então a ser ampla- tempo, o grupo sentiu que precisava
fazem referência às bandeiras de lutas
mente difundido pelo país, ao mesmo levar seus debates para o restante da
dessas organizações, como o rap “Luta
tempo que, em sua forma marginal, a comunidade e daí nasceram iniciativas
pelo amor, amor pela luta”, do grupo
linguagem continuava a se desenvolver como o “Hip-hop ao trabalho”.
O Levante, feito em homenagem às
nos espaços populares. Hoje, em todas as grandes fave-
trabalhadoras sem-terra. Essa aproxi-
Há que se destacar o caráter las da região metropolitana do Rio de
mação faz com que grafiteiros e rappers
inovador do rap nacional, que reela- Janeiro existem grupos organizados em
estejam presentes nas mobilizações
bora, de forma criadora, a partir de associações culturais ou posses. Nesses
populares, colaborando com sua arte
tradições populares brasileiras, a lin- espaços comunitários, o hip-hop apare-
nos eventos culturais. Ao mesmo tem-
guagem dos guetos norte-americanos, ce como uma das principais formas de
po, algumas das discussões levantadas
mesclando o ritmo do Bronx a gêneros expressão política dos jovens. As letras
pelos trabalhadores foram apropriadas
como o samba e a embolada. Sobre o repletas de gírias, a arte do sampler, o
pelos rappers, como se verifica no Ma-
caráter do hip-hop que é feito no Bra- jogo de corpo, os giros e saltos, as le-
nifesto da Rede Brasileira de hip-hop:
sil, Afrika Bambaataa afirmou: tras garrafais e os desenhos nos muros
se mostram como uma possibilidade de
O Bronx é o lar do hip-hop. Nós Nós, jovens que fazemos hip-hop representar o cotidiano desses espaços
que fizemos o rap sair dali, não nas favelas brasileiras, comprome-
e fazer memória das experiências ali
gostaríamos que a música morres- tidos com as lutas sociais do nos-
so povo, por reforma agrária, em vividas.
se ali. E isso não aconteceu. Os Es- Não se trata, no entanto, de ida-
tados Unidos influenciaram o resto defesa dos direitos humanos, con-
tra o racismo e o machismo e pela lizar o hip-hop como forma de conhe-
ecologia, convidamos cada homem cimento. O movimento, seguramente,
e cada mulher, a colocar nossas não é homogêneo: possui tendências
vidas neste desafio: reencontrar a mais ou menos politizadas, mais ou
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂů

nossa identidade, a originalidade e menos engajadas e críticas. Há, por


a cultura do povo brasileiro mas- assim dizer, uma vertente cuja tônica
sacrado.9 é a denúncia, a agitação e o protesto;
outra, espontânea, sem uma linha polí-
É preocupação das associações tica coerente e definida; e outra ainda,
de hip-hop fortalecer suas comunida- talvez hegemônica, já assimilada pelo
des de origem. Muitas delas, além de mercado, que reproduz o modelo de
organizar shows e gravar CDs, promo- comportamento, aspirações e ideais
vem atividades comunitárias, como de- dominantes (consumismo, individu-
bates e reuniões para tratar de proble- alismo e exaltação da vida privada),
mas locais. O coletivo Lutarmada, por como a maioria das canções ditas “de
CULTURA  CRÍTICA  14        53

massa”. Os defensores da tradição mar-


ginal – herdeiros do Public Enemy, mas
também do GOG, dos Racionais, do
Thaíde, do DJ Hum, do Câmbio Negro

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞĞŶƚƌŽĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ
ð FULWLFDP HVVD WHQGrQFLD LQWLPLVWD GR
rap. Crônica, integrante do grupo de
rap A Família (São Paulo), expressa essa
preocupação com os rumos do movi-
mento.

O rap influencia muita gente e, se


ele não tiver seriedade naquilo que
está cantando, vamos perder um
espaço popular nas periferias, que
possa fortalecer o povo, que possa
unir essa massa. Sou sonhador mes-
mo e acredito que o rap pode fazer
uma mudança, não só dentro das
periferias, mas fora também.10
“Subversivismo esporádico”
Partindo do reconhecimento de
que não existe ideologia socialmente neu- do Deus como solução dos problemas da cumento de consciência de classe: é ape-
tra, pode-se dizer que a canção popular é sociedade: nas seu primeiro vislumbre. Segundo ele,
política na medida em que expressa um
conteúdo ideológico que age ética e po- Meu Deus eu me ajoelho e peço paz Não só não se tem consciência exata
liticamente na transformação da história. para o meu povo da própria personalidade histórica,
Deve-se sublinhar, entretanto, que grande Nessa luta desigual que acontece como não se tem sequer consciên-
parte da produção musical das camadas todo dia cia da personalidade histórica e dos
populares se apresenta como um mis- Sujando de sangue as ruas da perife- limites precisos do próprio adver-
to de “conformismo e resistência”, uma ria.11 sário. (As classes inferiores, estando
manifestação ambígua, diria Marilena historicamente na defensiva, não
Chauí, “tecido de ignorância e de saber, Essa crítica espontânea e fragmen- podem adquirir consciência de si
de atraso e de desejo de emancipação, tária, que Antonio Gramsci chamaria de a não ser por negações, através da
capaz de conformismo ao resistir, capaz “subversivismo esporádico”, é, segundo consciência da personalidade e dos
o pensador, característica da história das limites de classe do adversário).
de resistência ao se conformar” (1986, p.
(CC, v. 3, 189-190)
124). O hip-hop, como expressão cultu- classes subalternas, aliás, dos “elementos
ral das camadas subalternas, também se marginais e periféricos destas classes, que Frequentemente, no entanto,
encontra no domínio do senso comum, não alcançaram a consciência de classe grafites e raps atingem aquilo que Gra-
apresentando-se, portanto, como “filo- ‘para si’”. Em seu protesto, o rapper re- msci chamou de “senso comum críti-
sofia não sistemática”, fragmentária. Ao conhece a oposição entre os “manos” e os co”, enquanto manifestações criadoras
mesmo tempo que concebe o mundo e a patrões, entre pobres e ricos, oprimidos e progressistas determinadas por for-
vida em contraste com a sociedade oficial, e opressores. O “povo’” sente que tem mas e condições de vida em processo
não é capaz, via de regra, de realizar uma inimigos e os individualiza só empiri- de desenvolvimento. O grupo Nação
abordagem mais ampla das contradições FDPHQWH QRV FKDPDGRV VHQKRUHV ð´RV Maré, por exemplo, é capaz de reco-
da totalidade histórico-social. Veja-se, por ladrões de gravata e carro preto”. Mas, nhecer a existência das relações de do-
exemplo, a letra deste rap que protesta diria Gramsci, esse ódio genérico (…) minação e a força dos oprimidos como
contra a pobreza e a violência, apontan- não pode ser apresentado ainda como do- sujeito histórico:
54      CULTURA  CRÍTICA  14

Não tenho RG, CPF, ou CIC


Notas
Mas, por favor, não duvide
Que nós amassamos o aço no abraço ϭŵƵŶĚŝĂůŝnjĂĕĆŽĚĂĐƵůƚƵƌĂ͕ĐŽŵŽƚŽĚŽƉƌŽĐĞƐƐŽĚĞůƵƚĂƉĞůĂŚĞŐĞŵŽŶŝĂ͕
Traçamos o laço da paz ĞŶǀŽůǀĞŵŽǀŝŵĞŶƚŽƐĐŽŶƚƌĂĚŝƚſƌŝŽƐĚĞĚŽŵŝŶĂĕĆŽĞĞŵĂŶĐŝƉĂĕĆŽ͘ĞdžƉĂŶ-­‐
Nós somos mais do que muitos ima- ƐĆŽĚŽŵĞƌĐĂĚŽƐŽďŽŝŵƉƵůƐŽĚĂƐŶŽǀĂƐƚĞĐŶŽůŽŐŝĂƐĚĞŝŶĨŽƌŵĂĕĆŽŝŵƉůŝĐĂ͕
ginam, rapaz.12 ĐĞƌƚĂŵĞŶƚĞ͕ĂŚĞŐĞŵŽŶŝĂĚĂƉƌŽĚƵĕĆŽƐŝŵďſůŝĐĂĚŽĐĞŶƚƌŽĚĞĞŶƵŶĐŝĂĕĆŽ
ĚŽŵŝŶĂŶƚĞ͖ŽƋƵĞƚĞŵĐŽŵŽĐŽŶƚƌĂƉĂƌƟĚĂ͕ĂŝŶĚĂƋƵĞŵĂƌŐŝŶĂů͕ĂĐŝƌĐƵůĂĕĆŽĚĞ
Verdadeiras crônicas da vida social, ŝĚĞŝĂƐĂůƚĞƌŶĂƟǀĂƐ͕ĚĞĐĂƌĄƚĞƌŚƵŵĂŶŝƐƚĂĞĚĞŵŽĐƌĄƟĐŽ͘Ĩ͘ĚŐĂƌDŽƌŝŶ͕͞hŵĂ
as letras de rap representam o cotidiano ŵƵŶĚŝĂůŝnjĂĕĆŽƉůƵƌĂů͕͟ŝŶ͗ġŶŝƐĚĞDŽƌĂĞƐ;KƌŐ͘Ϳ͘Por  uma  outra  comunicação:  
dos moradores das favelas e subúrbios a mídia,  mundialização  cultural  e  poder͘
partir de uma perspectiva muito diferente Ϯ^ĞŐƵŶĚŽKƐǁĂůĚŽŽŐŐŝŽůĂ͕͞ŽƉƌŝŵĞŝƌŽĞƉƐſĚŝŽĚĞĐŽŶƐƵŵŽŵĂƐƐŝǀŽĚĞĚƌŽ-­‐
daquela difundida na grande mídia, onde ŐĂƐĞŵŐƌĂŶĚĞĞƐĐĂůĂĂĐŽŶƚĞĐĞƵĚƵƌĂŶƚĞĂ'ƵĞƌƌĂĚŽsŝĞƚŶĆ͕ƋƵĂŶĚŽϰϬйĚŽƐ
o preconceito e a mistificação são traços ƐŽůĚĂĚŽƐŶŽƌƚĞͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽƐĐŽŶƐƵŵŝĂŵŚĞƌŽşŶĂĞϴϬйŵĂĐŽŶŚĂ͘͟sĞƌ͞ĐŽŶŽ-­‐
marcantes. Mesmo dotadas do conformis- ŵŝĂƉŽůşƟĐĂĚŽĐŽŵĠƌĐŝŽŝŶƚĞƌŶĂĐŝŽŶĂůĚĞĚƌŽŐĂƐ͟ŝŶ͗Grupo  de  pesquisa  história  
mo e das ambiguidades da cultura popular, e  economia  mundial  contemporâneas͕ŵĂƌĕŽͬϮϬϬϳ͕ĚŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬ
ǁǁǁ͘ŐƚĞŚĐ͘ƉƌŽ͘ďƌͬdĞdžƚŽƐͬĞĐŽŶŽŵŝĂͺƉŽůŝƟĐĂͺĚŽͺĐŽŵĞƌĐŝŽͺŝŶƚĞƌŶĂĐŝŽŶĂůͺĚĞͺ
ao retratar a favela, o hip-hop trata de des-
ĚƌŽŐĂƐ͘ƉĚĨх͘ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϮϵũĂŶ͘ϮϬϭϮ͘
construir o mito de sociedade democrática,
ϯ^ŽďƌĞĂĨƵŶĕĆŽƐŽĐŝĂůĚŽƐĞŶƚŽƌƉĞĐĞŶƚĞƐ͕ĐĨ͘WŝĞƌƌĞ<ŽƉƉ͕A  economia  da  
da liberdade e igualdade de condições que droga.  
o capitalismo tenta vender, e mostrar que ϰƐƚĞĠƵŵƚĞŵĂďĂƐƚĂŶƚĞĚŝƐĐƵƟĚŽŶŽŵŽǀŝŵĞŶƚŽŚŝƉͲŚŽƉ͘WĂƌĂŽrapper  
vivemos em uma sociedade dotada de sen- ůŝĂĚŽ'͕͞ũƵŶƚŽĐŽŵŽƐŶĞŐƌŽƐ͕ƚĂŵďĠŵƐŽďƌĞǀŝǀĞƌĂŵĂŽƚůąŶƟĐŽ͕ĂŽƉŽƌĆŽ
tidos e finalidades diferentes para cada uma ĚŽŶĂǀŝŽŶĞŐƌĞŝƌŽ͕ăƐĐŚŝďĂƚĂĚĂƐ͕ăƚŽƌƚƵƌĂĞăŚƵŵŝůŚĂĕĆŽ͕ŽƐĞƵŵĂƌĂǀŝůŚŽƐŽ
das classes. A despeito de sua escassa com- ͚ĂŶƚŽ&ĂůĂĚŽ͕͛ƋƵĞĂƋƵŝĐŽŵĞĕĂĂƐĞƌĚŝĨƵŶĚŝĚŽĞŵŶŽǀĂƐďĂƐĞƐƌşƚŵŝĐĂƐ͘;͘͘͘Ϳ
preensão do Estado, os griots da periferia sa- EŽƌĂƐŝů͕ŽĐĂŶƚŽĨĂůĂĚŽƚĂŵďĠŵƐĞƐŽŵĂĂĚŝĨĞƌĞŶƚĞƐƐŽŶƐ͕ĐŽŵŽŽĚŽƉĂŶ-­‐
bem que a lei – o aparato jurídico e policial ĚĞŝƌŽ͕ĞĂşƐƵƌŐĞŽƌĞƉĞŶƚĞ͕ƐſƉƌĂĐŝƚĂƌƵŵĞdžĞŵƉůŽ͘ŝŶĚĂŚŽũĞ͕ƚĞŵŽƐŶŽƌĂƐŝů
– está a serviço das elites. Se o tratamento ŵĂŝƐĚĞƐĞƐƐĞŶƚĂĚŝĨĞƌĞŶƚĞƐƟƉŽƐĚĞĐĂŶƚŽĨĂůĂĚŽ͘͟ƌƟŐŽĚŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗ŚƩƉ͗ͬͬ
da polícia para o playboy é de proteção, para ǁǁǁ͘ǀĞƌŵĞůŚŽ͘ŽƌŐ͘ďƌͬďĂƐĞ͘ĂƐƉ͍ƚĞdžƚŽсϭϵϳϲϴх͘
o negro favelado é bem diferente: ϱĚŐĂƌDŽƌŝŶ͘͞KŶŶĞĐŽŶŶĂŠƚƉĂƐůĂĐŚĂŶƐŽŶ͕͟ŝŶŽŵŵƵŶŝĐĂƟŽŶƐ;ŚĂŶƐŽŶƐ
ĞƚĚŝƐƋƵĞƐͿ͕Ɖ͘ϴ͘
ϲƐƚĂƉĂƌƚĞĚĂƉĞƐƋƵŝƐĂĨŽŝŽƌŝĞŶƚĂĚĂŶŽƐĞŶƟĚŽĚĞŝĚĞŶƟĮĐĂƌĞŵĚŝĨĞƌĞŶƚĞƐ
Sexo masculino
ĐŽŵƵŶŝĚĂĚĞƐƉŽƉƵůĂƌĞƐŐƌƵƉŽƐĞĂƐƐŽĐŝĂĕƁĞƐůŝŐĂĚĂƐĂŽŵŽǀŝŵĞŶƚŽŚŝƉͲŚŽƉ͘
Descendente africano
ZĞĂůŝnjĂŵŽƐĞŶƚƌĞǀŝƐƚĂƐĐŽŵĂƌƟƐƚĂƐĚĞĚƵĂƐŐƌĂŶĚĞƐĨĂǀĞůĂƐĚĂĐŝĚĂĚĞĚŽZŝŽĚĞ
Jovem entre 15 e 21 anos
:ĂŶĞŝƌŽ͕ďƵƐĐĂŶĚŽĐŽŶŚĞĐĞƌĞƐƚĂƐŝŶŝĐŝĂƟǀĂƐĞĞŶƚĞŶĚĞƌĂĚŝŶąŵŝĐĂĚĞƚƌĂďĂůŚŽ
Se você se enquadra nessa descrição
ĚĞƐƚĞƐŐƌƵƉŽƐ͘EŽŽŵƉůĞdžŽĚĂDĂƌĠƉĞƐƋƵŝƐĂŵŽƐŽŐƌƵƉŽEĂĕĆŽDĂƌĠ͕ĞŶŽ
Fique ligado, irmão
ůĞŵĆŽ͕ĂĂƐƐŽĐŝĂĕĆŽƐŽĐŝŽĐƵůƚƵƌĂůZĂşnjĞƐĞŵDŽǀŝŵĞŶƚŽ͘ůĠŵĚĞƐƚĞƐ͕ĨŽƌĂŵ
Porque eles estão na sua intenção.13
ĐŽůŚŝĚŽƐĚĞƉŽŝŵĞŶƚŽƐĚŽƐŝŶƚĞŐƌĂŶƚĞƐĚĂƉŽƐƐĞ>ƵƚĂƌŵĂĚĂ͕ĚŽDŽƌƌŽĚĂ>ĂŐĂƌ-­‐
ƟdžĂ͕ĞĚŽŐƌĂĮƚĞŝƌŽ&ĞůŝƉĞZĞŝƐ͘
O hip-hop aparece, assim, como ϳEĂĚĠĐĂĚĂĚĞϭϵϳϬ͕ŶŽĂƵŐĞĚŽŵŽǀŝŵĞŶƚŽBlack  Power͕ĂƌƟƐƚĂƐĐŽŵŽdŽŶŝ
um intrumento na busca por “introduzir dŽƌŶĂĚŽ͕ĐŽŵƐĞƵƐĐĂďĞůŽƐŐƌĂŶĚĞƐʹƐĞŵĂůŝƐĂƌʹĞĂŶĚĂƌƌŽďſƟĐŽ͕ƚƌĂƚĂƌĂŵĚĞ
a ‘desordem’ na ordem, (...) caminhar ĚŝĨƵŶĚŝƌŽbreak͘
pelos poros e interstícios da sociedade ϴĞƉŽŝŵĞŶƚŽĚĞ'ĂƐͲWĂŽƐĂƵƚŽƌĞƐ͕ĞŵϭϳƐĞƚ͘ϮϬϬϳ͘
brasileira” e da cultura dominante (Chauí, ϵDĂŶŝĨĞƐƚŽĚĂZĞĚĞƌĂƐŝůĞŝƌĂĚĞ,ŝƉͲŚŽƉ;ĞĂƌĄ͕ϮϬϬϭͿ͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗
1986, p. 178). Os raps e os grafites pre- фŚƩƉ͗ͬͬǁǁǁ͘ƌĞĂůŚŝƉŚŽƉ͘ĐŽŵ͘ďƌͬŵĐƌͬƌĞĚĞͬŵĂŶŝĨĞƐƚŽ͘Śƚŵх͘
sentes nos becos e vielas se transformam ϭϬdĂƟĂŶĂDĞƌůŝŶŽ͘ZĂƉ͕ŝŶƐƚƌƵŵĞŶƚŽĚĂƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂĕĆŽ͘Brasil  de  fato͕Ϯϲ
na fala contra-hegemônica da população ĚĞnj͘ϮϬϬϳ͘
desses espaços, ao retratar o cotidiano ϭϭEĂĕĆŽDĂƌĠ͕͞>ŝƐƚĂĚĞŵŽƌƚĞ͘͟Nação  Maré;ƉƌŽĚƵĕĆŽŝŶĚĞƉĞŶĚĞŶƚĞͿ͕ƐͬĚ͘
da favela e as contradições da realidade. ϭϮEĂĕĆŽDĂƌĠ͕͞dŝƌŽƐǀĞƌďĂŝƐ͘͟Nação  Maré;ƉƌŽĚƵĕĆŽŝŶĚĞƉĞŶĚĞŶƚĞͿ͕ƐͬĚ͘
ϭϯK>ĞǀĂŶƚĞ͕͞KdžƚĞƌŵŝŶĂĚŽƌ͘͟Temeremos  mais  a  miséria  do  que  a  morte  
As rimas e os traços dos artistas de rua se
;ƉƌŽĚƵĕĆŽŝŶĚĞƉĞŶĚĞŶƚĞͿ͕ƐͬĚ͘
contrapõem às representações petrificadas
ϭϰK>ĞǀĂŶƚĞ͕͞ŝƚĂĚƵƌĂĐƵůƚƵƌĂů͘͟Temeremos  mais  a  miséria  do  que  a  morte  
e opressoras daqueles que detêm o poder. ;ƉƌŽĚƵĕĆŽŝŶĚĞƉĞŶĚĞŶƚĞͿ͕ƐͬĚ͘
Essa forma de arte sufocada, criminaliza-
CULTURA  CRÍTICA  14        55

da, e deformada pelos aparelhos de coer- ZĞĨĞƌġŶĐŝĂƐďŝďůŝŽŐƌĄĮĐĂƐ


ção e consenso, mesmo não sendo capaz
de romper com os laços de dominação >/K'͘hŵƉŽƵĐŽƐŽďƌĞ͗ƉĞƌŝĨĞƌŝĂ͕ũƵǀĞŶƚƵĚĞĞŚŝƉͲŚŽƉ͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬ
ǁǁǁ͘ǀĞƌŵĞůŚŽ͘ŽƌŐ͘ďƌͬďĂƐĞ͘ĂƐƉ͍ƚĞdžƚŽсϭϵϳϲϴх͕ϮϬϬϳ͘ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϮϵũĂŶ͘ϮϬϭϮ͘
da sociedade em que vivemos, traz em si Zy:Z͕:ŽƐĠ͘EĂƌĐŽƚƌĄĮĐŽ͗ƵŵũŽŐŽĚĞƉŽĚĞƌŶĂƐŵĠƌŝĐĂƐ͘  ^ĆŽWĂƵůŽ͗DŽĚĞƌŶĂ͘
uma consciência que exprime uma lógica ϭϵϵϳ͘
diferenciada, uma racionalidade que “diz ,h1͕DĂƌŝůĞŶĂ͘Conformismo  e  resistência:ĂƐƉĞĐƚŽƐĚĂĐƵůƚƵƌĂƉŽƉƵůĂƌŶŽƌĂƐŝů͘
não e recusa que a única história possível ^ĆŽWĂƵůŽ͗ƌĂƐŝůŝĞŶƐĞ͕ϭϵϴϱ͘
seja aquela concebida pelos dominantes” ͺͺͺͺͺͺͺͺͺ͘Simulacro  e  poderʹƵŵĂĂŶĄůŝƐĞĚĂŵşĚŝĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗WĞƌƐĞƵďƌĂŵŽ͕
ϮϬϬϲ͘
(Chauí, 1986, p. 179).
K''/K>͕KƐǁĂůĚŽ͘ĐŽŶŽŵŝĂƉŽůşƟĐĂĚŽĐŽŵĠƌĐŝŽŝŶƚĞƌŶĂĐŝŽŶĂůĚĞĚƌŽŐĂƐ͘/Ŷ͗
O poder das elites, sua capacida- Grupo  de  pesquisa  história  e  economia  mundial  contemporâneas͕ŵĂƌͬ͘ϮϬϬϳ͕/^^E
de de determinar o sentido da realidade, ϭϲϳϲͲϴϲϳϭϳ͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬǁǁǁ͘ŐƚĞŚĐ͘ƉƌŽ͘ďƌͬdĞdžƚŽƐͬĞĐŽŶŽŵŝĂͺƉŽůŝƟ-­‐
de criar e impor significações, ideias e ĐĂͺĚŽͺĐŽŵĞƌĐŝŽͺŝŶƚĞƌŶĂĐŝŽŶĂůͺĚĞͺĚƌŽŐĂƐ͘ƉĚĨ͘хĐĞƐƐŽĞŵϮϵũĂŶ͘ϮϬϭϮ͘
valores aos grupos subalternos é, assim, Khd/E,K͕ĂƌůŽƐEĞůƐŽŶ͘Cultura  e  sociedade  no  Brasil  –hŵĞŶƐĂŝŽƐŽďƌĞŝĚĞŝĂƐĞ
contrabalançado pela fala popular, uma ĨŽƌŵĂƐ͘ĞůŽ,ŽƌŝnjŽŶƚĞ͗KĮĐŝŶĂĚĞ>ŝǀƌŽƐ͕ϭϵϵϬ͘
Khd/E,K͕ĚƵĂƌĚŽ'ƌĂŶũĂ͘Velhas  histórias,  memórias  futuras͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗
linguagem viva, portadora de conteúdos ĚhZ:͕ϮϬϬϮ͘
históricos alternativos, que se refaz per- ͺͺͺͺͺͺͺ͘ĐŽŵƵŶŝĐĂĕĆŽĚŽŽƉƌŝŵŝĚŽ͗ŵĂůĂŶĚƌĂŐĞŵ͕ŵĂƌŐŝŶĂůŝĚĂĚĞĞĐŽŶƚƌĂͲŚĞŐĞ-­‐
manentemente no âmbito da comunica- ŵŽŶŝĂ͘Comunidade  e  contra-­‐hegemonia  no  Rio  de  Janeiro:  ZŽƚĂƐĚĞĐŽŵƵŶŝĐĂĕĆŽ
ção comunitária. ĂůƚĞƌŶĂƟǀĂ.ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗DĂƵĂĚ;ŶŽƉƌĞůŽͿ͘
^^/E'Z͕^şůǀŝŽ͘ĂƟĚĆŽ͗ƵŵĂŚŝƐƚſƌŝĂĚŽĨƵŶŬ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ZĞĐŽƌĚ͕ϮϬϬϱ͘
O microfone é nossa arma em prol da &Z/Z&/>,K͕:ŽĆŽĞ,Z^,DEE͕DŝĐĂĞů͘&ƵŶŬĐĂƌŝŽĐĂ͗ĞŶƚƌĞĂĐŽŶĚĞŶĂĕĆŽĞ
ĂĂĐůĂŵĂĕĆŽĚĂŵşĚŝĂ͘ECO-­‐Pós  ʹƉƵďůŝĐĂĕĆŽĚĂƉſƐͲŐƌĂĚƵĂĕĆŽĞŵĐŽŵƵŶŝĐĂĕĆŽĞ
revolução
ĐƵůƚƵƌĂ͕ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͕Ŷ͘Ϯ͕ϮϬϬϯ͘
(...) Informação circulando por todas 'ZD^/͕ŶƚŽŶŝŽ͘Cadernos  do  cárcere;ǀ͘ϭĞϯͿ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ŝǀŝůŝnjĂĕĆŽƌĂƐŝůĞŝ-­‐
as comunidades ƌĂ͕ϮϬϬϭ͘
Pelas ondas do rádio ,Zsz͕ĂǀŝĚ͘Condição  pós-­‐moderna:ƵŵĂƉĞƐƋƵŝƐĂƐŽďƌĞĂƐŽƌŝŐĞŶƐĚĂŵƵĚĂŶĕĂ
Ou pela clandestinidade ĐƵůƚƵƌĂů͘^ĆŽWĂƵůŽ͕>ŽLJŽůĂ͕ϮϬϬϯ͘
Ao vivo e em preto ,Z^,DEE͕DŝĐĂĞů͘O  funk  e  o  hip-­‐hop  invadem  a  cena͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗h&Z:͕
Eu sou é do gueto ϮϬϬϬ͘
Pra revolucionar :E^E͕EĞLJ͘ƌŽŐĂƐ͕ŝŵƉĞƌŝĂůŝƐŵŽĞůƵƚĂĚĞĐůĂƐƐĞ͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬǁǁǁ͘
Lutando para derrubar ƵƌƵƚĂŐƵĂ͘ƵĞŵ͘ďƌͬϬϭϮͬϭϮũĂŶƐĞŶ͘Śƚŵх͘ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϮϲũĂŶ͘ϮϬϭϮ͘
A ditadura cultural que tenta nos calar.14 cc
<KWW͕WŝĞƌƌĞ͘A  economia  da  droga͘ĂƵƌƵ͗ĚƵƐĐ͕ϭϵϵϴ͘
DZ>/EK͕dĂƟĂŶĂ͘ZĂƉ͕ŝŶƐƚƌƵŵĞŶƚŽĚĂƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂĕĆŽ͘Brasil  de  fato͕ϮϲĚĞnj͘ϮϬϬϳ͘
DKZ/E͕ĚŐĂƌ͘KŶŶĞĐŽŶŶĂŠƚƉĂƐůĂĐŚĂŶƐŽŶ͘ŽŵŵƵŶŝĐĂƟŽŶƐ;ŚĂŶƐŽŶƐĞƚĚŝƐ-­‐
ƋƵĞƐͿ͘WĂƌŝƐ͗^ĞƵŝů͕ϭϵϲϱ͘
Artigo disponível em: http://www.ver- ͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺ͘hŵĂŵƵŶĚŝĂůŝnjĂĕĆŽƉůƵƌĂů͘DKZ^͕ġŶŝƐĚĞ;ŽƌŐ͘Ϳ͘Por  uma  outra  
melho.org.br/base.asp?texto=19768>. comunicação͗ŵşĚŝĂ͕ŵƵŶĚŝĂůŝnjĂĕĆŽĐƵůƚƵƌĂůĞƉŽĚĞƌ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ZĞĐŽƌĚ͕ϮϬϬϯ͘
ZK,͕:ĂŶĂŝŶĂ͖KDE/,͕DŝƌĞůůĂĞ^^EK͕WĂƚƌşĐŝĂ͘Hip-­‐hop͗ĂƉĞƌŝĨĞƌŝĂŐƌŝƚĂ͘
^ĆŽWĂƵůŽ͗&ƵŶĚĂĕĆŽWĞƌƐĞƵďƌĂŵŽ͕ϮϬϬϭ͘
Eduardo   Granja   Coutinho   é   Doutor   ^>>^͕ĐŝŽ͘&ƵŶŬ͕ƐĂŵďĂĞĂƉƌŽĚƵĕĆŽĚŽĐŽŵƵŵ͗ĚŝĄůŽŐŽƐ͕ƐŽŶƐ͕ŝŶƚĞƌĂĕƁĞƐ͘
pela  Escola  de  Comunicação  da  Uni- ĞͲŽŵƉſƐоZĞǀŝƐƚĂĚĂƐƐŽĐŝĂĕĆŽEĂĐŝŽŶĂůĚŽƐWƌŽŐƌĂŵĂƐĚĞWſƐͲ'ƌĂĚƵĂĕĆŽĞŵ
versidade  Federal  do  Rio  de  Janeiro,   ŽŵƵŶŝĐĂĕĆŽ͕ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͕Ăďƌ͘ϮϬϬϳ͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬďŽƐƚŽŶ͘ďƌĂƐůŝŶŬ͘ĐŽŵͬ
onde  atualmente  leciona,  e  pesquisa- ĐŽŵƉŽƐ͘ŽƌŐ͘ďƌͬĞͲĐŽŵƉŽƐͬĂĚŵͬĚŽĐƵŵĞŶƚŽƐͬĞĐŽŵƉŽƐϬϴͺĂďƌŝůϮϬϬϳͺĞĐŝŽƐĂůůĞƐ͘ƉĚĨх͘
dor  nas  áreas  de  teoria  da  comuni- ^KZ͕DƵŶŝnj͘KŐůŽďĂůŝƐŵŽĐŽŵŽŶĞŽďĂƌďĄƌŝĞ͘/Ŷ͗DKZ^͕ĞŶŝƐĚĞ;ŽƌŐ͘Ϳ͘Por  
cação  e  história  da  cultura.  Publicou   uma  outra  comunicação͗DşĚŝĂ͕ŵƵŶĚŝĂůŝnjĂĕĆŽĐƵůƚƵƌĂůĞƉŽĚĞƌ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗
Velhas  histórias,  memórias  futuras:  o   ZĞĐŽƌĚ͕ϮϬϬϯ͘Ɖ͘ϮϭͲϰϬ͘
sentido  da  tradição  na  obra  de  Pau- s/EE͕,ĞƌŵĂŶŽ͘O  mundo  funk  carioca.ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ĂŚĂƌ͕ϭϵϵϳ͘
linho   da   Viola   (EdUERJ,   2002)   e  
Os   Cronistas   de   Momo   –   Imprensa   ZĞĨĞƌġŶĐŝĂƐĮůŵŽŐƌĄĮĐĂƐ
e   Carnaval   na   Primeira   República  
(Editora  UFRJ,  2006). Panther͘ŝƌ͘DĂƌŝŽsĂŶWĞĞďůĞƐ͘h͕ϭϵϵϱ͘

Marianna  Araújo  é  jornalista  e  mes- ZĞĨĞƌġŶĐŝĂƐĚŝƐĐŽŐƌĄĮĐĂƐ


tranda  em  Comunicação  e  Cultura  na   EĂĕĆŽDĂƌĠ͘Nação  Maré͘WƌŽĚƵĕĆŽŝŶĚĞƉĞŶĚĞŶƚĞ͕ƐͬĚ͘
Escola  de  Comunicação  da  UFRJ. K>ĞǀĂŶƚĞ͘Temeremos  mais  a  miséria  do  que  a  morte͘WƌŽĚƵĕĆŽŝŶĚĞƉĞŶĚĞŶƚĞ͕ƐͬĚ͘
56      CULTURA  CRÍTICA  14

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞĞŶƚƌŽĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ
É a cultura da rua,
a voz da periferia*
THAÍS  MARTÍNEZ  ARCARI

Por  que  pobre  pega  plástico  papel  papelão  pelo  pingado  pela  passagem  pelo  pão?  
Por  que  proliferam  pragas  pelo  país?  
Por  que  presidente  por  quê?  
Predominou  o  predador  
Por  quê?
GOG  ¨C  Brasil  com  P

O hip-hop é um movimento
cultural que surgiu no início
dos anos 1970 nos Estados
Unidos como uma forma de manifesta-
ção aos conflitos sociais e à violência so-
sociedade urbana. O hip-hop é compos-
to por três pilares artísticos principais:
rap, break e grafite.
Abordaremos aqui, especifica-
mente, a manifestação artística do rap. O
mente como gênero musical. Existe como
verbo na língua inglesa com o sentido de
“contar” ou “falar”. Pertenceu também ao
inglês falado por afro-americanos nos anos
1960 com a conotação de “conversar”. No
frida pelas classes sociais mais baixas da termo rap nem sempre foi conhecido so- entanto, o significado mais comum para a
CULTURA  CRÍTICA  14        57

palavra rap é de estilo musical. Rap é um seus falantes e, como tal, requer de sistema linguístico e apresenta caracte-
acrônimo para Rhythm and Poetry (Ritmo todo tradutor um amplo conhecimento rísticas particulares que estão relaciona-
e Poesia) e, como gênero musical, é um sobre os fenômenos sociais, culturais e das a diversos fatores, como história de
jogo de improvisação rimada com ver- regionais, um sólido domínio de pro- vida, classe social, nível de escolaridade,
sos criados na hora sobre uma batida em cedimentos tradutórios, um bom senso região e país, e outros. Portanto, pode-
tempo rápido, que pode ser acompanha- crítico e muita criatividade. mos considerar que o linguista, em sua
da por instrumentos musicais ou não. Assim, como é possível ao pro- teorização, inclui o estudo das variantes
O rap não surgiu por acaso na fissional tradutor interpretar textos ou da língua, que hoje conhecemos como
cultura negra, mas sim pela influência da dialetos de determinados povos para dialetos sociais e regionais, gírias, ex-
história de escravidão de uma raça que outra língua, buscando expressar o sen- pressões produzidas no interior de pe-
é discriminada há muitos anos. Desde timento verdadeiro que delas resultam? quenos grupos ou comunidades.
aquela época até os dias atuais, todos os No que concerne ao gênero musical rap, O termo “Sociolinguística”
gêneros musicais de origem negra sem- existe a possibilidade de encontrar uma surge pela primeira vez na década de
pre tiveram em si como fontes de inspi- equivalência na língua de chegada para 1950, mas se desenvolve como cor-
ração a manifestação da dor, sofrimento, as construções singulares de determina- rente nos Estados Unidos a partir da
discriminação racial e sua realidade social do artista? década de 1960, sobretudo nos tra-
periférica e, portanto, os temas mais Para responder a essas indaga- balhos do linguista William Labov. A
comuns abordados nas letras de rap são ções, analisaremos alguns trechos da le- Sociolinguística, conhecida também
dessa realidade social da periferia urbana tra do rap I want to talk to you, do rapper como Teoria da Variação, tem por ob-
brasileira, tais como violência, racismo, Nas, considerando as decisões que um jetivo a descrição de variações e mu-
preconceito, miséria e desemprego. tradutor seria levado a tomar, questões danças linguísticas, levando em conta
Considerando que há contex- tradutórias e, ainda, alguns conceitos da o contexto social de produção, por
tos no Brasil em que seria importante Sociolinguística. meio da observação do uso da língua
a tradução de letras de rap, pois muitos dentro de uma determinada comu-
Conceitos de Sociolinguística
jovens se interessam por esse movimen- nidade de fala. Ela utiliza o método
to social e musical e se identificam com O renomado linguista suíço Fer- quantitativo de análise dos dados ob-
ele, e este, por sua vez, é repleto de dinand Saussure apresenta em sua obra tidos a partir da fala espontânea dos
dialetos, expressões idiomáticas e gírias Curso de Linguística Geral (1969) quatro indivíduos, ou seja, do vernáculo.
enraizadas localmente, nos questiona- pares de dicotomias em seu trabalho, William Labov acredita que a
mos sobre quais seriam as estratégias entre as quais a dicotomia “Língua versus Linguística é uma ciência social e, por
de tradução utilizadas e como os raps Fala”. Segundo ele, a língua consiste em isso, dá ênfase às variáveis de natureza
chegariam aos ouvidos dos brasileiros. um sistema de elementos linguísticos, extralinguística. De acordo com ele,
Portanto, este artigo tem como objetivo que se definem uns pelos outros, isto é, é impossível compreender a mudança
a reflexão sobre as dificuldades com as as palavras adquirem sentido pela ordem linguística fora da vida social da co-
quais o tradutor depara na hora de tra- em que aparecem em uma frase, o mes- munidade em que ela se produz, pois
duzir textos culturalmente enraizados mo ocorrendo com vogais, consoantes e pressões sociais são exercidas constan-
como as letras de rap, assim como sobre outros, que só adquirem significado por temente sobre a língua. O sociolinguis-
o papel do tradutor ao realizar esse tra- meio de suas diferenças e semelhanças. ta estuda a ligação entre a língua e as
balho. Afinal, o profissional de tradução É importante dizer ainda que a língua, questões sociais.
tem a tarefa de reproduzir mensagens/ para ele, é forma e não substância. Já a A Sociolinguística rompeu com
ideias/formas e sons expressos em um fala é expressão da língua, mas o siste- as correntes estruturalistas anteriores
determinado idioma para outro idioma, ma linguístico subjacente utilizado para que analisavam a língua como uma es-
levando ao leitor da língua de chegada o formá-la é o mesmo, partilhado por to- trutura homogênea que podia ser estuda-
conhecimento sobre diferentes realida- dos os falantes. da fora de seu contexto social de produ-
des e culturas com que não teriam con- Partindo do conceito de fala ção. A partir dessa nova perspectiva, ela
tato se não houvesse a tradução. concebido por Saussure, podemos dizer possibilitou a análise e descrição do uso
A língua é um sistema social que a fala é a maneira pela qual cada in- de variantes linguísticas pelos indivíduos
vivo, constantemente modificado por divíduo se expressa utilizando o mesmo em uma determinada comunidade de
58      CULTURA  CRÍTICA  14

Tradução e cultura: desafios do rap

Grande parte dos escritores e


poetas considera a tradução uma desca-
racterização ou destruição do original.
Muitos acreditam na impossibilidade
de se realizar tal tarefa e, para outros, a
tradução de um texto poético ou literá-
rio é vista como um texto inferior. Para
esses escritores e poetas, a tradução é
considerada uma atividade secundária e

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ
de menos valor porque não captura “a
alma e o espírito” de um texto literá-
rio ou poético. O conhecido trocadilho
traduttori traditori (tradutores traidores)
reflete essa mesma postura de intole-
rância em relação à tradução. Sob essa
perspectiva, entende-se que a obra lite-
rária, o conjunto de sua forma/conte-
údo, não pode ser tocada sem que haja
prejuízo na transferência de significados
ou dos aspectos formais.
Refletindo sobre essa questão, a
pesquisadora doutora Rosemary Arrojo
(1986) sugere que o pressuposto sub-
jacente a essa concepção de tradução
literária parece ser que o literário ou
poético possui características intrínse-
cas e estáveis que o definem como tal e
o distinguem de um texto não-literário.
Com base nessa noção, qualquer mu-
fala. Da mesma forma, demonstrou que eles entendem que esses dialetos são dança ou alteração na obra de partida
é a presença da heterogeneidade que estruturados com base em regras gra- implicaria uma perda fatal daquilo que
permite ao sistema linguístico manter-- maticais que divergem das regras da torna o texto literário, pois é justamen-
-se em funcionamento mesmo nos perí- norma padrão. Dessa forma, muitos te a intocabilidade de sua forma/con-
odos de mudança linguística. estudos da Sociolinguística fomen- teúdo que o constitui como um texto
Essa linha de pesquisa demons- tam uma visão menos preconceituosa “artístico”. Portanto, a literariedade é
tra que a língua é uma instituição social, em contextos de ensino em comuni- uma propriedade dos textos, é como a
posta em funcionamento pelos próprios dades não privilegiadas, na medida alma ou o espírito de alguns textos pri-
interlocutores. As estruturas linguísticas em que orientam futuros professores vilegiados, que não pode ser apreendido
devem estar articuladas aos locutores/ a ensinar a seus alunos a valorização por um tradutor ou por outro idioma.
interlocutores, ao seu contexto comu- de todas as formas de falar e a mos- Para os textos considerados não-
nicativo e aos aspectos socioculturais e trar que a norma culta pode ser con- literários, o conjunto forma/conteúdo
ideológicos. siderada melhor socialmente, mas não compõe um todo orgânico, motivo
Para os sociolinguistas, os que, de maneira estrutural e funcio- pelo qual sua tradução não precisa se-
dialetos das classes economicamen- nal, não é nem melhor nem pior do guir um molde fixo desde que todos os
te desfavorecidas não são inferiores, que o dialeto pertencente à comuni- conteúdos sejam transmitidos. Porém,
insuficientes nem corrompidos, pois dade dos alunos. o que torna um texto literário ou não?
CULTURA  CRÍTICA  14        59

De acordo com Arrojo (2005), o poéti- aquilo que o leitor ou o tradutor conside- a acreditar que sabe o que deve ser dito
co ou literário é uma estratégia de leitura ra “verdadeiro” é determinado pelos fato- e de que maneira deve ser dito para que
e, portanto, é uma categoria conven- res que constituem sua história pessoal, a mensagem seja entendida completa-
cionada, estabelecida por uma série de cultural e social. Reitera ainda ser impos- mente. Porém, quando a tradução par-
decisões comunitárias. É o resultado do sível resgatar integralmente as intenções te de um texto que está carregado de
processo decisório de uma comunidade do autor, pois essas intenções serão, ine- termos regionais ou muito localizados,
cultural sobre os elementos que serão vitavelmente, a nossa visão daquilo que o cuidado e a pesquisa devem ser ain-
enfatizados como literários ou poéticos. elas possam talvez ter sido. da maiores para procurar garantir que
Para Venuti (2002) esta “comunidade Muitos fatores podem influen- o leitor possa entender a mensagem na
cultural” que tem o poder de decidir so- ciar decisões acerca da fidelidade de uma língua de chegada.
bre o que será considerado literatura é tradução, como, por exemplo, tempo- Considerando que o rap é um
uma camada influente da sociedade, um ralidade, espacialidade, fator linguístico, instrumento utilizado para verbalizar
grupo representativo, engajado na tare- cultural e, ainda, os gêneros textuais aos emoções, protestar ou até mesmo como
fa de ditar o que deve permanecer no quais o texto original está aplicado e aos meio de diversão, e que se trata de um
centro e o que deve ficar na periferia. quais será traduzido. A que ou a quem gênero musical repleto de gírias e ex-
Evidentemente, os que estão à margem seriam “fiéis” as traduções para o por- pressões idiomáticas, com fortes raízes
também buscam reivindicar seu direito tuguês da letra de uma música de rap? culturais e sociais, traduzir rap é uma
à visibilidade. Seriam “verdadeiras” e “fiéis” à realidade tarefa desafiadora que requer decisões
Nesse contexto, o rap ð REMHWR do jovem negro norte-americano que ancoradas em conhecimento cultural. A
GHVWHHVWXGRðSRGHULDVHUFRQVLGHUDGR vive na periferia de Nova York? Ou ao tarefa do tradutor não é traduzir textos,
literário ou poético ou apenas um gêne- que o tradutor, a partir de sua própria mas traduzir culturas.
ro periférico, dependendo da perspecti- história, acredita ser a realidade desse
va de quem o classifica. O rap apresenta jovem? Ou ao cotidiano e cultura dos Análise da letra de rap
características que poderiam defini-lo falantes da língua de chegada? I wanna talk to the mayor, the go-
como poético, pois esse gênero musical vernor, the motherfuckin president
tem rimas, jogos sonoros, “alma”, além Tradução e cultura I wanna talk to the FBI, and the
de forma e conteúdo “inseparáveis”. CIA, and the motherfuckin con-
A cultura pode estar ligada a gressman
Contudo, embora hoje esteja ganhando comportamentos externos como, por
mais espaço na mídia e na vida de pesso- exemplo, a língua, a significação dos Este é o trecho inicial da música
as de diferentes classes sociais, figuran- gestos, costumes e hábitos que geram I want to talk to you, do rapper america-
do inclusive como tema de pesquisas no literatura, folclore, arte e música. Ainda no Nasir Jones, conhecido como NAS.
mundo acadêmico, infelizmente o rap podemos dizer que a cultura também é Nasir nasceu em Nova York, nos Estados
ainda é considerado uma “manifestação caracterizada por ideias internas como Unidos, em 1973 e foi criado pelo pai,
artística periférica” por grande parte da os valores, a moral e as crenças de cada o músico de jazz Olu Dara, e pela mãe,
sociedade. comunidade. É por essas características Ann Jones. NAS adorava literatura e foi
Tradução e fidelidade peculiares a cada cultura que a atividade dos livros que tirou boa parte de seu
de traduzir um texto que tenha raízes vocabulário e lirismo aguçado para con-
Em seu livro 2ÀFLQD GH WUDGXomR culturais muito fortes torna-se bastante tar sobre a vida nas ruas de NovaYork.
(1986), Arrojo trata da questão da fide- desafiadora. I want to talk to you foi lançada em 1999
lidade da tradução. A estudiosa é bastan- De acordo com David Katan, o no álbum I am ... . Nessa música, NAS
te esclarecedora quando afirma que um tradutor deve ser um mediador cultu- tem a intenção de conversar com as au-
texto não é um receptáculo de conteúdos ral. O mediador cultural é mais do que toridades norte-americanas para lhes
estáveis e que podem ser mantidos sob um tradutor; além das competências contar sobre a vida do negro da peri-
controle e reproduzidos na íntegra. Todo comumente associadas ao tradutor, o feria e compará-la a outras realidades.
leitor ou tradutor não pode evitar que o mediador deve ainda possuir uma visão A princípio, sua tradução não pareceria
seu contato com o texto seja mediado bicultural e um olhar crítico. ser muito complexa; porém, quando
por sua própria realidade, concepções, Outro ponto importante é que o alcançamos o trecho I wanna talk to the
contexto social e histórico, uma vez que tradutor, ao traduzir, pressupõe e tende FBI, and the CIA, surge a necessidade de
60      CULTURA  CRÍTICA  14

decidir se vamos domesticar os termos Dictionary, sling quer dizer: To sell dru- gle Images e procurar a expressão, o
ou apenas mantê-los como FBI e CIA, gs. Usually crack but can also refer to meth, que obtemos são fotos aleatórias que
uma vez que essas organizações são co- heroine, and cocaine, descoberta que fa- não ajudam em nada o tradutor. Então,
nhecidas no Brasil por sua ocorrência cilitaria o trabalho do tradutor e, de qual seria a saída para o tradutor neste
comum em filmes e seriados america- acordo com seu contexto, daria muito caso?
nos. Quero falar com o FBI e a com a CIA mais sentido à letra.
seria a melhor tradução? Essas siglas Swing a mack é uma expressão We ain’t John Henry
têm um significado forte para o pú- local e difícil de desvendar; não foi Banging down machines and shit
blico-alvo ou haveria equivalentes em encontrada nos dicionários bilíngues Part of establishment
português para elas? comuns, que explicam swing como 1 That’s what we are steppin up for
A música segue: balançar, oscilar. 2 girar, voltear. 3 mover-- This shit is real
-se em linha curva. 4 mover-se livremente.
And we built this motherfucker 5 pender, pendurar, estar suspenso ou pen- Neste trecho, o nome de John
You wanna kill me because my durado. 6 brandir, vibrar. 7LQÁXHQFLDURX Henry aparece. Esta referência seria
hunger? lidar com sucesso. 8 tocar música em ritmo conhecida no Brasil? O nome soaria
de swing. 9 gingar, agitar, mover-se com familiar ao público-alvo da tradução?
Outro ponto importante e bas-
ritmo. 10 morrer enforcado. 11 brincar no Após pesquisa realizada na internet,
tante recorrente em letras de rap é o
balanço. 12 entrar em atividade. 13 bada- pode-se constatar que John Henry é
uso de palavrões e termos chulos. O
lar, frequentar os lugares da moda. 14 ter um ícone citado em diversas músicas,
tradutor deve optar por qual tradução
vida sexual ativa e variada (Michaelis). histórias e contos do povo negro. Hen-
para motherfucker: uma politicamente
E mack, por sua vez, como a waterproof ry foi escravo, nascido na década de
correta ou talvez uma mais “fiel” à pro-
raincoat made of rubberized fabric (The 1840 no estado americano do Missou-
posta do texto de partida?
Free Dictionary), o que não faz sentido ri. Depois da Guerra Civil e sua pos-
Além de considerar tais adap-
em combinação com o verbo swing. Ao terior liberdade, trabalhou em uma li-
tações e equivalências, o tradutor tem
passo que, em consulta ao Urban Dic- nha ferroviária que ligava as cidades de
que levar em conta que o texto original
tionary, deparamos com as seguintes Chesapeake e Ohio. John Henry travou
é a letra de uma música de rap, moti-
definições para swing como The state uma batalha contra a introdução do
vo pelo qual está costurado em rimas,
of being: the best at, master of, ultimate or martelo a vapor (martelo mecânico).
melodia, ritmo e cadência. As tradu-
supreme of, anything imaginable ever. this O objetivo da disputa era cavar o mais
ções para o português poderiam ser
state induces the overwhelming power of rápido possível um túnel na montanha.
“pesadas” demais ou desajeitadas, uma
authority on whatever it is being used for; O “gigante”, como era conhecido o ho-
vez que as palavras latinas tendem a
to mood swing quickly or easily, e final- mem com mais de 2 metros de altura,
ser mais longas e a seguir a terminação
mente, to take a drag, sip, or taste of some- impressionantemente, venceu a má-
VCV (vogal, consoante, vogal).
one else’s item (cigarette, blunt, cocktail, quina. Ao comemorar a vitória, John
etc.) e to move or pass, o que parece fazer Henry ergueu os braços com o martelo
Imagine your kids gotta sling
crack to survive mais sentido conforme o que se supõe na mão, sofreu um ataque cardíaco e
Swing a mack to be live cart back ser a proposta da música. faleceu no mesmo instante. Atualmen-
to get high As definições para mack sem- te, há diversas estátuas construídas em
It’s the ghetto life yea I celebrate pre aparecem como verbo e são as homenagem ao “gigante”. Após conhe-
it I live it seguintes: WR KLW RQ ÁLUW ZLWK RU VHGXFH cer a história de John Henry, o resto
another by using verbal or sometimes physi- dos versos faz muito mais sentido. No
O verbo to sling, neste contexto cal means of persuasion; to eat food intense- entanto, fará sentido para o ouvinte da
ðsling crackðQmRWHPRPHVPRVHQ- ly; another word for chill or relax; refers to música, que provavelmente não tem
tido do que se utilizado sozinho como money, or a person who has money e como conhecimento sobre a vida desse ícone
verbo: 1 atirar, arremessar, lançar (com substantivo é apresentado como a form norte-americano? Existiria um ícone
estilingue). 2 jogar, atirar. 3 levantar ou RI WUXFN D EUDQG RI SLHV D EUDQG RI ÁRRU equivalente a ele aqui em nosso país?
baixar com eslinga. 4 DPDUUDU À[DU FRP buffers; a brand of Australian apples. Ao Como se pode depreender des-
laço (Michaelis). Já segundo o Urban utilizar outra ferramenta como o Goo- tas observações , no caso da tradução
CULTURA  CRÍTICA  14        61

de letras de rap, como em diversos um papel fundamental na construção, mediador cultural promove o diálogo e
outros tipos de tradução, o tradutor percepção e tradução das realidades. o intercâmbio, ampliando as fronteiras
deve ter em mente o público que irá Deve ter conhecimentos sobre histó- das línguas e das culturas. cc
ouvir e cantar a música, lembrando que ria e tradição, costumes locais, valores
qualquer alternativa deve considerar o e crenças, proibições e tabus, além de Thaís  Martínez  Arcari  é  graduada  em  
FRQWH[WR GH SURGXomR ð QR FDVR GH I saber posicionar-se cultural e ideologi- letras   pela   Pontifícia   Universidade  
want to talk to you, a manifestação de camente frente à sua tarefa. Afinal, o Católica  de  São  Paulo.
um protesto da comunidade negra dos
Estados Unidos. Nota
Quando pondera o caminho
para suas decisões, o tradutor se en- ΎƐƚĞĂƌƟŐŽĨŽŝďĂƐĞĂĚŽŶŽdƌĂďĂůŚŽĚĞŽŶĐůƵƐĆŽĚĞƵƌƐŽ͞ĞƐĂĮŽƐĚĂ
frenta com uma questão que é, tam- ƚƌĂĚƵĕĆŽ͗ŽƐĚŝĂůĞƚŽƐƉƌĞƐĞŶƚĞƐŶĂƐůĞƚƌĂƐĚĞrap͕͟ĂƉƌĞƐĞŶƚĂĚŽăĂŶĐĂdžĂ-­‐
bém, ética: manter na tradução da ŵŝŶĂĚŽƌĂĚĂ&&/>ĚĂWŽŶƟİĐŝĂhŶŝǀĞƌƐŝĚĂĚĞĂƚſůŝĐĂĚĞ^ĆŽWĂƵůŽĐŽŵŽ
ĞdžŝŐġŶĐŝĂƉĂƌĐŝĂůƉĂƌĂĂŽďƚĞŶĕĆŽĚŽơƚƵůŽĚĞĂĐŚĂƌĞůĞŵ>ĞƚƌĂƐ͗dƌĂĚƵĕĆŽ
música elementos externos e estra-
/ŶŐůġƐͲWŽƌƚƵŐƵġƐƐŽďĂŽƌŝĞŶƚĂĕĆŽĚĂWƌŽĨĞƐƐŽƌĂŽƵƚŽƌĂ>ĞŝůĂƌŝƐƟŶĂĚĞ
nhos à cultura brasileira, para marcar
DĞůŽĂƌŝŶ͕ŶŽĂŶŽĚĞϮϬϭϬ͘
a “estrangeiridade” do texto na língua
portuguesa, ou optar por domesticar o Referências
texto, apagando grande parte dos tra-
ços que vinculam a letra a seu contexto EZ͕ůĂŝŶĞ͘Rap  e  educação,  Rap  é  educação͘^ĆŽWĂƵůŽ͗^ĞůŽEĞŐƌŽ͕
cultural de origem? Trazer o “estranho” ϭϵϵϵ͘
para ampliar o repertório dos ouvin- ZZK:K͕ZŽƐĞŵĂƌLJ͘KĮĐŝŶĂĚĞƚƌĂĚƵĕĆŽ͗ƚĞŽƌŝĂŶĂƉƌĄƟĐĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ƟĐĂ͕
tes da cultura de chegada ou adaptar e ϮϬϬϱ͘
aproximar a letra às referências cultu- 'EK͕DĂƌĐŽƐ͘WƌĞĐŽŶĐĞŝƚŽůŝŶŐƵşƐƟĐŽ͗KƋƵĞĠ͕ĐŽŵŽƐĞĨĂnj.^ĆŽWĂƵůŽ͗
rais de chegada, para reforçar valores, >ŽLJŽůĂ͕ϮϬϬϲ͘
comportamentos e visões da cultura ^^Edd͕^ƵƐĂŶ͘Estudos  da  tradução͘>ŝƐďŽĂ͗&ƵŶĚĂĕĆŽĂůŽƵƐƚĞ
doméstica? 'ƵůďĞŶŬŝĂŶ͕ϮϬϬϯ͘
Z/K͕DĂƌŝĂDĂƵƌĂĞDZd>Kdd͕DĄƌŝŽĚƵĂƌĚŽ;ŽƌŐƐ͘Ϳ͘Manual  de  
Questões como essas revelam
>ŝŶŐƵşƐƟĐĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ŽŶƚĞdžƚŽ͕ϮϬϬϵ͘
e confirmam o poder da tradução e a Zz^d>͕ĂǀŝĚ͘ŝĐƟŽŶĂƌLJŽĨ>ŝŶŐƵŝƐƟĐƐĂŶĚWŚŽŶĞƟĐƐ͘KdžĨŽƌĚ͗ůĂĐŬǁĞůů
natureza complexa e surpreendente do WƵďůŝƐŚĞƌƐ͕ϭϵϴϬ͘
processo de traduzir. hK/^͕:ĞĂŶ͘ŝĐŝŽŶĄƌŝŽĚĞ>ŝŶŐƵşƐƟĐĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗Ƶůƚƌŝdž͕ϭϵϳϯ͘
Concluímos, portanto, que a &/KZ/E͕:ŽƐĠ>Ƶŝnj;ŽƌŐ͘Ϳ͘/ŶƚƌŽĚƵĕĆŽă>ŝŶŐƵşƐƟĐĂ͘/͘KďũĞƚŽƐdĞſƌŝĐŽƐ͘
tradução dependerá da proposta e da ^ĆŽWĂƵůŽ͗ŽŶƚĞdžƚŽ͕ϮϬϬϲ͘
visão do tradutor. Se a ideia é manter '͘K͘'͘ƌŝŵĂĚĞŶƵŶĐŝĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗'ůŽďĂů͕ϮϬϭϬ͘
na letra um tom estrangeiro, para fa- />Z/͕ZŽĚŽůĨŽĞ^^K͕ZĞŶĂƚŽ͘O  português  da  gente:    a  língua  que  
zer transparecer as raízes culturais de estudamos,  a  língua  que  falamos.^ĆŽWĂƵůŽ͗ŽŶƚĞdžƚŽ͕ϮϬϬϲ͘
origem, então, seriam mantidos no- <dE͕ĂǀŝĚ͘dƌĂŶƐůĂƟŶŐƵůƚƵƌĞƐ͘Ŷ/ŶƚƌŽĚƵĐƟŽŶĨŽƌdƌĂŶƐůĂƚŽƌƐ͕
mes peculiares e fatos conhecidos da /ŶƚĞƌƉƌĞƚĞƌƐĂŶĚDĞĚŝĂƚŽƌƐ͘h<͗^ƚ:ĞƌŽŵĞWƵďůŝƐŚŝŶŐ͕ϮϬϬϰ͘Ϯ͘ĞĚ͘
outra cultura. Se a proposta for fazer >Ks͕tŝůůŝĂŵ͘Language  in  the  Inner  City:^ƚƵĚŝĞƐŝŶƚŚĞůĂĐŬŶŐůŝƐŚ
sĞƌŶĂĐƵůĂƌ͘  WŚŝůĂĚĞůƉŚŝĂ͗hŶŝǀĞƌƐŝƚLJŽĨWĞŶŶƐLJůǀĂŶŝĂWƌĞƐƐ͕ϭϵϳϮ͘
com que o ouvinte se identifique com
D'ZK͕s͘D͘D͘Adolescentes  como  autores  de  si  próprios:ĐŽƟĚŝĂŶŽ͕
a realidade apresentada pela letra da ĞĚƵĐĂĕĆŽĞŽŚŝƉͲŚŽƉ.  Cadernos  Cedes͕^ŝƚĞhŶŝĐĂŵƉ͘
música, quem sabe por alguma moti- D/>dKE͕:ŽŚŶ͘O  poder  da  tradução͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ƌƐWŽĠƟĐĂ͕ϭϵϵϯ͘
vação política ou ideológica, a opção é sEhd/͕>ĂǁƌĞŶĐĞ͘Escândalos  da  tradução͘^ĆŽWĂƵůŽ͗h^͕ϮϬϬϮ͘
realizar uma domesticação radical para t/>>/D^͕:͘Θ,^dZDE͕͘The  map͘h<͗^ƚ͘:ĞƌŽŵĞWƵďůŝƐŚŝŶŐ͕ϮϬϬϮ͘
que a letra soe de maneira familiar ao
ouvinte. Sites
Como ressalta David Katan, o
tradutor deve, sobretudo, assumir-se ŚƩƉ͗ͬͬǁǁǁ͘ůŝŶŐ͘ƵƉĞŶŶ͘ĞĚƵͬΕǁůĂďŽǀͬ,Žǁ/ŐŽƚ͘Śƚŵů͘ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϮϵƐĞƚ͘ϮϬϭϬ͘
como mediador cultural, pois tem ŚƩƉ͗ͬͬǁǁǁ͘ƵƌďĂŶĚŝĐƟŽŶĂƌLJ͘ĐŽŵ͘ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϭϬŽƵƚ͘ϮϬϭϬ͘
62      CULTURA  CRÍTICA  14

Diálogos em campo: práticas e reflexões


musicais dos rappers no Brasil e em Portugal 1
ANGELA  MARIA  DE  SOUZA

Deslocamentos

Vêm  junto  nesse  som  os  ver-­


dadeiros  bam-­bam-­bam
Lutando  por  justiça,  pelo  
justo  amanhã
Zona  Oeste  Monte  Cristo  só  
os  loucos  vêm  comigo
Rap  é  compromisso  nosso  
grito  nosso  hino2

E ssa pequena parte da letra de


uma música do grupo $C Flori-
pa, que aqui uso como epígrafe,
traz algumas das questões que fazem
parte das discussões deste trabalho. A
primeira delas é a música: o rap, utiliza-
do por vários grupos como uma maneira
de chamar a atenção para uma situação
vivenciada em determinados espaços
urbanos das grandes e médias cidades,
em suas periferias e favelas. Aqui o rap
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞZƵĂϮϰĚĞDĂŝŽ

é um grito, um hino, que chama a aten-


ção para essa vivência. Por sua vez, essa
vivência torna-se música, a qual, nessa
forma, possui um caráter reivindicati-
vo pelo justo amanhã. Nesse contexto,
a música localiza na cidade a desigual-
dade, a injustiça e mostra essa cidade,
a Zona Oeste. Mas, tal localização geo-
gráfica não se esgota em si, ela se am-
plia na maneira de perceber a cidade na
qual eles estão, como também de fazer
com que se perceba de que modo eles
se situam nela. Esse rap é também uma
maneira de reflexão sobre um “estar no
mundo”. E também um chamado, que
CULTURA  CRÍTICA  14        63

convoca os bam-bam-bans ou os manos, problema ou num sentido mais amplo, tugal, mais especificamente na Cova da
os parceiros que irão juntar-se nesse referindo-se à violência que a cidade, Moura, bairro da cidade de Amadora,
pensar sobre a cidade. como um todo, constrói na relação que na Grande Lisboa. Lá, além dos pontos
Porém, essa forma de pensar a estabelece com essa parte marginalizada em comum com os raps de Florianópolis
cidade parte de suas subjetividades, de de si mesma: as periferias. A violência ð H GH WDQWRV RXWURV OXJDUHV RQGH HV-
suas concepções de mundo. No caso dá o tom em muitas dessas narrativas ses hinos existem, falando de contexto
do rap, esse chamado tem uma especi- musicais e, através dos raps, essas pes- de vivências de grandes cidades, de seus
ficidade étnica e social – que se dirige soas refletem e discutem desigualdades, HVSDoRVVHJUHJDGRVHGLVFULPLQDGRVðp
principalmente aos negros, aos manos injustiças, discriminação e, além disso, a condição de imigrantes que diferencia
e aos pobres, o que se revela a partir constroem esses hinos3. a vivência destes e constrói a especifici-
da metáfora em que se transforma o $ =RQD2HVWH0RQWH&ULVWRñ é nesse dade de sua prática musical. Bam-bam-
presente no nome do grupo, o qual não espaço que o rap surge em Florianópo- bans, loucos, manos, mas também imigran-
deixa dúvida de que é de Santa Catarina lis, em 1988 (Souza, 1998), e de onde tes. Lutando por justiça. Pelo justo amanhã.
que se está falando. Assim, o objetivo é se espalha por toda a cidade. A periferia Com compromisso. Sendo suas músicas
fazer com que as pessoas percebam que continua sendo um espaço legitimador suas armas e seus hinos.
há uma localização (SC, Zona Oeste Monte dessa produção musical, o espaço tema- Florianópolis é a capital do Esta-
Cristo) e ao mesmo tempo uma globali- tizado pelas letras e o contexto dessas do de Santa Catarina e possui uma po-
zação em que esse som e seu ritmo serão narrativas musicais. Mas, além dessa pulação de mais de 400 mil habitantes.4
entendidos muito além das fronteiras periferia haver se ampliado pelos bair- Assim, realizar uma pesquisa sobre o
de SC ou do Brasil, pois esse é um som ros próximos da região continental de Movimento hip-hop implica redefinir os
global, que ecoa em SC, no Monte Cristo, Florianópolis, onde está o Bairro Monte espaços urbanos, visto que as fronteiras
mas também em Lisboa, em fluxos que Cristo e bairros que o tangenciam numa do rap não necessariamente correspon-
transpõem fronteiras nacionais. ligação com a cidade de São José, am- dem às do mapa do município porque,
No Movimento hip-hop mudam-se pliam-se também dentro da Ilha e de- mais do que fronteiras físicas, são limi-
os parâmetros, os limites e os perten- mais cidades vizinhas. tes simbólicos (Rial, 2008). Além disso,
cimentos nacionais, os quais se tornam Se em Souza (1998) o rap esta- as cidades de São José, Palhoça e Bigua-
transnacionais. Os ideais de transforma- va predominantemente no continente çu compõem uma região que percorri
ção, de mudança e seus agentes estão, de Florianópolis, hoje ele se espalha seguindo as práticas dos rappers, perce-
em grande parte, nas classes populares, pela cidade como uma forma de refle- bendo que essa região apresenta parti-
nas periferias, nas favelas, produzin- xão sobre ela própria, ampliando, com cularidades demográficas.
do outras estéticas e outras mudanças. esta, as temáticas que farão parte dessas Santa Catarina, a partir dos
Aqui não é somente o pobre brasileiro narrativas musicais. A cidade, com seus dados populacionais, é considerado
que propõe as transformações, mas po- problemas de especulação imobiliária, um Estado com larga predominância
pulações que estão em condições seme- poluição, desmatamento, violência em de população branca, principalmente
lhantes em qualquer lugar, ou seja, neste bairros de classe média, etc., participará oriundos de um processo de imigração
contexto as fronteiras nacionais são me- dessas músicas como forma de reflexão europeia. Essa face do Estado faz parte
nos importantes. Em seu lugar, condi- sobre esse “estar” nela. das representações institucionais, das
ções desiguais de vida, de exploração e Mas o rap se amplia também na propagandas turísticas, do calendário de
de pobreza criam essa nação. maneira como os jovens se apropriam festas, por exemplo. Em outras palavras,
Levanto neste artigo alguns as- dele numa relação complexa que fala há uma representação e representativi-
pectos presentes nesse estilo de músi- de suas vivências com a cidade e atra- dade desse Estado, considerado um dos
FD ð R rap ð TXH VH DPSOLD DWUDYpV GH vés das percepções que eles elaboram mais brancos do país. Do total da popu-
uma forma de perceber a cidade, seus sobre ela. Nesse sentido, perceber essa lação do Estado, e de seus municípios,
espaços urbanos e a vivência neles. Essa prática musical para além da cidade de em torno de 10 por cento correspon-
vivência, marcada pela violência, que Florianópolis tornou-se fundamental dem à população negra (preta e parda).
embora não apareça de forma direta no para pensar sobre outras vivências. Tive Se analisarmos outros dados que
trecho mencionado aparecerá em nume- a oportunidade de refletir sobre essas apontam as desigualdades sociais, não
rosos outros raps, seja denunciando esse práticas a partir do rap crioulo, em Por- vamos encontrar uma situação muito
64      CULTURA  CRÍTICA  14

 SDVVRX D VRPDU  ð HVVH

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞD/ŶŚŽĐĆŽ
número é referente às pessoas que vi-
viam legalmente em Portugal, sendo
que houve mudança na estatística em
quantidade de imigrantes de acordo
com a nacionalidade, passando o Brasil
a ocupar o primeiro lugar, seguido de
Cabo Verde e Ucrânia. Em 2008, um di-
ferencial é percebido: essas populações
estão se deslocando para outros destinos
dentro da própria Europa e, inclusive,
alguns números começam a diminuir
nesses últimos anos.
Países que falam língua portu-
guesa, principalmente as ex-colônias de
Portugal no continente africano, entre
diferente da apresentada no restante sileiros, principalmente pela centrali- eles Cabo Verde e Angola, formam a
do país; ou seja, guardadas as especi- dade que o “estar” nesses bairros ocupa grande quantidade de imigrantes que se
ficidades numéricas próprias de cada nas suas músicas. Lá, foram os bairros deslocaram para Portugal em busca de
Estado com relação às suas populações, sociais ou bairros “degradados” com sig- trabalho, para estudar ou mesmo para
em Santa Catarina estão localizadas as nificativa parcela de imigrantes, princi- escapar de guerras. Atualmente, esse
populações negra e indígena que mais palmente cabo-verdianos e angolanos, grupo de imigrantes já está na segunda e
agudamente são atingidas por essas de- que na vivência dessa condição de imi- terceira gerações.
sigualdades. E, nos bairros de periferia grantes, nesses espaços urbanos, cons- Muitos desses imigrantes e seus
e favelas de suas cidades, é possível en- truíram suas narrativas musicais. descendentes estão nos bairros em que
contrar uma população negra em quan- Portugal, nas últimas décadas, me encontrei com o Movimento hip-
tidade muito mais elevada em relação à passou a receber importantes fluxos mi- -hop em Portugal. Além disso, mesmo
população branca, em termos propor- gratórios que ampliaram a diversidade sendo o Movimento naquele país bem
cionais. sociocultural do país. Há uma significa- mais amplo e diversificado, tive a opor-
É nesse contexto e cantando so- tiva parcela populacional em terras por- tunidade de interagir com essas práticas
bre essas várias desigualdades que o Mo- tuguesas composta de imigrantes e, en- estético-musicais.
vimento hip-hop se forma nesses espa- tre estes, uma parte expressiva provém Tanto no Brasil quanto em Por-
ços urbanos. Mais do que isso, os rappers de ex-colônias portuguesas na África, tugal, algumas especificidades os unem.
propõem reflexões sobre a vivência nes- como Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau Uma é o fato de tais movimentos esta-
ses espaços, sejam vivências de negros e Moçambique. De acordo com dados rem em espaços bem determinados na
ou de brancos, mas todos buscando pen- do Alto Comissariado para Imigração cidade, que podem ser definidos como
sar sobre as condições sociais que dis- e Minorias Étnicas, entre os anos de de periferia, onde eles lutam por me-
criminam, estigmatizam e invisibilizam. 2000 e 2002 a população de imigran- lhores condições de vida e perspecti-
Em Portugal, mais especifica- tes passou de 207.607 (2000) para vas de futuro. Outra é o fato de eles,
mente na Grande Lisboa, nos municí- 405.508 (2002). Entre as nacionalida- os rappers, se colocarem a partir de um
pios de Seixal, Amadora e Barreiro,5 fui des com maior representação estavam posicionamento estético-musical, princi-
encontrar um Movimento hip-hop mui- as da Ucrânia (60.571), de Cabo Verde palmente através de sua música, na relação
to diferente; a condição de imigrantes (59.678), do Brasil (58.370), de Angola que constroem com a cidade e o país.
era muito presente, principalmente na (31.332) e de Guiné-Bissau (22.855). Nesse sentido, a produção, prin-
música e nos grafites, onde Cabo Ver- Em 2008, segundo informações da cipalmente musical, não se dá isolada-
de e Angola eram referenciados a todo Rede de TV RTP, com base nos dados mente; ela escoa por fluxos que mantêm
momento. Ao mesmo tempo, encontrei fornecidos pelo Serviço de Estrangeiros relação entre diferentes coletividades. A
muitos aspectos comuns aos rappers bra- e Fronteiras, o total de imigrantes em produção musical do Movimento hip-
CULTURA  CRÍTICA  14        65

-hop é feita localmente, mas se espalha “a questão da diáspora é colocada xidade que as permeia possibilita uma
globalmente no estabelecimento dessas aqui principalmente por causa da constante criação e recriação dessas
relações. Além disso, é a partir dessas luz que é capaz de lançar sobre as formas de manifestação cultural a par-
relações que os rappers expõem seus complexidades, não simplesmente tir de sua condição étnico-racial e, en-
relatos sobre as cidades em que vivem, de se construir, mas de se imaginar tre elas, situo as práticas do Movimento
bem como relatam como se situam nela. a nação (nationhood) e a identidade hip-hop, que localizam essa condição de
caribenha, numa era de globaliza-
Partindo da proposição de Hall diáspora6 e de suas consequências. Nessa
ção crescente”. (2006, p. 256)
(2006), para quem a produção musical perspectiva, o que é preponderante é a
é também, e antes de tudo, uma pro- “subversão dos modelos culturais tradi-
Parto dessas complexidades para
dução cultural, busco refletir, através cionais orientados para a nação” (Hall,
refletir sobre o Movimento hip-hop
da música produzida pelos rappers, so- 2006, p. 36).7
tanto no Brasil quanto em Portugal,
bre as especificidades dessas produções A produção do Movimento hip-
principalmente a partir das relações que
culturais e, particularmente, pelas re- -hop é reflexo dessa complexidade. Isso
estabelecem com as cidades nas quais
lações que criam com a cidade, com o porque esse movimento se encontra
residem e das formas como estas emer-
local e com a periferia, estabelecendo imerso num processo de globalização
gem na produção musical.
uma relação “glocal”. “Glocal”, sim, que permite maior fluidez em sua cir-
Para Hall (2006, p. 26-27) na “si-
pois, mesmo havendo uma dimensão culação e, consequentemente, interfere
tuação de diáspora as identidades se tor-
local na produção musical estabelecida em sua forma de produção musical. As-
nam múltiplas”. No Brasil há uma infini-
a partir da cidade, essa mesma produ- sim, pode-se dizer, que ele
dade de manifestações culturais que são
ção está atada por elos que a unem a
resultantes dessa situação (candomblé,
dimensões mais amplas, globais, inclu- é a história da produção, da cultu-
umbanda, samba, capoeira, etc.) e que ra, de músicas novas e inteiramen-
sive a partir de uma condição étnico-
são derivadas da combinação de aspec- te modernas da diáspora – é claro,
racial predominante, que está relacio-
tos culturais africanos, indígenas, e mes- aproveitando-se dos materiais e
nada a deslocamentos historicamente
mo europeus, mas com relevante posi- formas de muitas tradições musicais
sofridos, voluntária (as emigrações de
cionamento de manutenção de práticas fragmentadas. (Hall, 2006, p. 37)
hoje) ou involuntariamente (a diáspo-
culturais alvo de perseguições sofridas
ra), por diferentes populações saídas
pela população negra no Brasil, as quais Busco aqui refletir sobre essa
ou retiradas de países africanos.
tiveram muitas dessas práticas associa- complexidade estruturante da produ-
Enquanto no Brasil os rappers irão
das à marginalidade e à contravenção. ção musical de grupos de rap no Brasil
situar tais deslocamentos principalmen-
Além de serem múltiplas, a comple- e em Portugal que refletem sobre os es-
te a partir do processo escravocrata, em
paços (geográficos e sociais) ocupados,
Portugal, esses deslocamentos podem
por homens e mulheres, nos centros
ser percebidos nos processos de emi-
urbanos de cidades como Florianópolis
gração de países africanos, ex-colônias
e Lisboa em suas produções musicais.
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞD/ŶŚŽĐĆŽ

de Portugal.
Dessa forma, busco analisar as práticas
Sejam brasileiros ou portugue-
estético-musicais dos rappers dentro do
ses, os deslocamentos históricos sofri-
Movimento hip-hop, principalmente a
dos por diversas populações negras,
partir das relações construídas com as
saídas ou retiradas de países africanos,
cidades nas quais estão e sobre as quais
ainda que em épocas diferentes, é cons-
buscam refletir, a partir de suas vivên-
tituinte de sua condição presente e das
cias no espaço urbano.
diferentes formas de reflexão e mani-
Perceber a produção e circulação
festações culturais que produzem. Des-
desses grupos na cidade é refletir sobre
se modo, podemos fazer um paralelo
a própria cidade a partir das diferentes
nesses deslocamentos, assim como com
coletividades que a povoam e dos usos
outros, pois, como aponta Hall, referin-
que fazem dela. E, nesses usos, a música
do-se aos negros do Caribe
emerge como um importante aspecto
66      CULTURA  CRÍTICA  14

para a formação das coletividades. As- uma proposta política. O rap é o que ela
sim, busco compreender os significados chama de black noise, ou seja, uma voz
que atribuem à produção dessa música, que emerge dos guetos de cidades como

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞD/ŶŚŽĐĆŽ
seus usos e circulação entre as chamadas Nova York com a proposta de dar visibi-
“periferias”, mesmo com a ampliação do lidade a um cenário rechaçado e invisi-
alcance dessa produção musical. Mais do bilizado na cidade. Nessa abordagem a
que os países, meu interesse reside em autora, além de tornar público e audível
refletir sobre a produção musical do rap esse “barulho”, irá analisá-lo à luz das te-
enquanto uma forma de reflexão sobre a orias culturais, abordando o fenômeno a
cidade e o lugar que ocupam nela, já que partir das questões étnico-raciais, de gê-
uma cidade como Florianópolis inclui ou nero, e agregando a essa discussão ques-
invisibiliza grupos populacionais de acor- tões referentes ao uso da tecnologia, a
do com determinados interesses.8 condições econômicas desfavoráveis, a
Nessa circulação pela cidade relação com a polícia, a mídia, a políti-
tornam-se perceptíveis e diferenciam-se ca, a cidade e a oralidade, num contexto
pelo comportamento e padrão estético de globalização, ou seja, discutindo o
que elaboram. O conjunto vestimentá- que ela denomina de techno-black cultural
rio, acessórios, calçados, cabelos, cores, syncretism.9 sicionam a partir de suas subjetividades
expressão corporal, dança, música, etc., Atualmente podemos encontrar na relação que estabelecem com a cida-
refletem a forma como o grupo quer ser uma vasta bibliografia sobre o Movi- de e o bairro em que moram, a partir
visto e sentido. A composição estética é mento hip-hop, que o aborda sob distin- da violência que presenciam, da discri-
um dos demarcadores da coletividade; é tas perspectivas e através de várias áreas minação que experimentam, da imobi-
um sinal de pertencimento, de exposição do conhecimento, das quais é possível lidade à qual estão sujeitos, das muitas
da diferença e definidor de práticas de destacar alguns pontos em comum, en- negações de uma sociedade globalizada,
consumo. tre eles o fato de que o Movimento hip- com amplo aparato tecnológico, com
Acompanho Geertz (1997, p. -hop toma forma dentro de um proces- profundas redes de consumo, altamente
145) na sua reflexão sobre arte, quando so de globalização, em espaços urbanos midiatizada. É nesse cenário que não só
afirma que de grandes cidades que fazem emergir se posicionam, mas interagem e cons-
discursos de contestação e revolta da troem suas narrativas musicais. Cenário
discursos sobre arte que não se-
periferia. Outro aspecto importante esse que atualmente é utilizado como
jam meramente técnicos (...) têm
como uma de suas funções princi- que vários autores apontam refere-se importante forma de manifestação tam-
pais buscar um lugar para a arte no aos usos da tecnologia, que é apropriada bém para jovens brancos, de classe mé-
contexto das demais expressões dos principalmente pelos rappers e DJs, que dia baixa e não moradores de periferias
objetivos humanos, e dos modelos irão possibilitar a criação e circulação e favelas.
de vida a que essas expressões, em da produção musical. Importante res-
Aventurar-se nas cidades:
seu conjunto, dão sustentação. saltar ainda que o rap apresenta-se nos
Florianópolis /Lisboa/Florianópolis
mais diversos estilos, porém o que mais
Assim, incluo a música do Movi- fortemente se enraíza no Brasil e que é Uso o termo “aventura” para de-
mento hip-hop como uma forma de arte amplamente discutido pela bibliografia signar meu trabalho de campo. Seguin-
que possui seu significado cultural e, por aqui apresentada refere-se ao que alguns do a obra de Simmel (2004, p. 180),
isso, se torna importante compreendê-la autores definem como rap político ou para o qual “num sentido mais agudo,
a partir das relações que estabelece com militante, que possui um discurso con- como aquele que costumamos atribuir a
o “estar no mundo”, com os símbolos e testador que o caracteriza. Essa postu- outras formas dos nossos conteúdos de
com os significados que transmite. ra de contestação é construída a partir vida, a aventura tem princípio e fim. É
Num dos primeiros trabalhos GHMRYHQVðKRPHQVHPXOKHUHVðGDV isto que constitui a sua independência
realizados sobre o Movimento hip-hop classes popular e média baixa, muitos dos entrelaçamentos e meandros da-
nos Estados Unidos, Rose (1994) já dos quais são moradores de periferias e queles conteúdos, o estar centrada num
aponta o rap como uma arte, que possui favelas, mas, principalmente, que se po- sentido próprio” e com isso construir
CULTURA  CRÍTICA  14        67

um outro sentido a que o autor chama ficiente para perceber as relações que po. Pude perceber e entender esse des-
de “conteúdos da vida”, os quais se con- estabelecemos. Essa não é uma aventura locamento quando levei, pela primeira
trapõem à “aventura”, mas se relacionam no sentido de enfrentamento do perigo vez, a dissertação para um rapper que fez
e se constroem mutuamente. Partindo que muitos personagens do cinema nos parte do trabalho de campo anterior.
das proposições de Simmel, traço aqui apresentam de forma banalizada, mas é Logo ao recebê-la, foi folheando e, nas
um paralelo com sua discussão referin- uma “aventura” em busca de um relati- primeiras páginas, encontrou os agrade-
do-me à cidade e ao trabalho de campo, vo desconhecido, de “ocasiões incertas” cimentos; sem muita cerimônia, então,
em que o segundo está na primeira mas, que nos nutrem nessa busca, nos insti- foi logo procurando seu nome e, ao en-
ao fim do trabalho de campo, a cidade se gam na satisfação de uma curiosidade, contrá-lo, deu um sorriso discreto, sem
transforma. Se o Movimento hip- -hop, mesmo saindo ainda mais curiosos. A in- tirar os olhos do trabalho. Continuou a
que emerge no trabalho de campo em certeza, a dúvida, são companhias cons- folhear, mas parava somente nas páginas
Souza (1998), antes estava “fora” da ci- tantes nesse processo de “aventurar-se” em que encontrava imagens, até se ver
dade ou invisibilizado,10 agora está den- no trabalho de campo. Diria que é a numa delas. Outros rappers tiveram re-
tro e é constituinte da maneira como partir dessas indagações que seguimos ação parecida e sempre se procuravam
percebo a cidade. adiante. Mesmo sabendo que talvez essa nas fotografias, com exceção de um de-
E Simmel (2004, p. 185) conti- certeza nunca venha e que a insegurança les, que procurou um depoimento seu
nua nos dizendo que aumente, e com ela surja a “tensão” que sobre o início do Movimento hip-hop na
constitui e caracteriza a “aventura”. cidade.
a síntese das grandes categorias da No caso da pesquisa aqui apre- Os rappers se viam, viam seus
vida, entre as quais a aventura figu- sentada, mesmo não sendo um campo amigos, faziam comentários, e me apre-
ra como forma especial, é realizada desconhecido, no caso de Florianópolis, sentavam outra cidade, demarcando
entre atividade e passividade, entre a “aventura” se fez presente no sentido nela o tempo passado. As imagens foto-
aquilo que conquistamos e aquilo de perceber essa cidade com outros gráficas que encontravam foram funda-
que nos é dado. Sem dúvida que a
olhos a partir dessa segunda imersão em mentais para estabelecer essa relação, e
síntese da aventura revela com agu-
deza a contradição entre esses ele- campo. “Aventurar-me” pela minha pró- aspectos que eu sequer havia percebido,
mentos. pria cidade mudou a forma de percebê- emergiam nesse diálogo com a disserta-
la e de encará-la, o que defino como ção. Numa daquelas fotografias, realiza-
É a contradição, que o autor des- um segundo “estranhamento” que tive a da num espaço descampado próximo ao
loca e destaca, que aqui pontuo como oportunidade de exercer. Bairro Monte Cristo, os rappers aponta-
constituinte do próprio trabalho de Como já possuía trabalho de vam para a cidade ao fundo e um outro
campo que realizei. É a cidade, mas em campo sobre o mesmo tema e na mesma rapper que observava a foto, mesmo não
suas margens, em suas periferias, enfim, cidade, agora o que se estabeleceu foi tendo participado do trabalho de cam-
com suas contradições que emerge a outro deslocamento em termos tempo- po da dissertação, discorria com gran-
partir desta aventura. rais e espaciais, deslocamento temporal de detalhamento sobre aquele espaço, e
de mais de 10 anos já passados após a me dizia que hoje aquele espaço, antes
Na aventura (...) apostamos tudo realização do primeiro trabalho de cam- vazio, está ocupado por prédios que
precisamente na ocasião incer-
ta, no destino e no aproximativo,
queimamos as pontes atrás de nós,
adentramo-nos nas brumas como
Foto:  Davi  Francisco  da  Silva  

se o caminho fosse seguro sob todos


os pontos de vista. (Simmel, 2004,
p. 187)

O que também ocorre no traba-


lho de campo, mas isso sequer é perce-
bido, pois somente depois de findá-lo é
que podemos dele nos distanciar o su-
68      CULTURA  CRÍTICA  14

conhecida e que estava sendo apresentada


com seus bairros, suas pessoas, suas mú-

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞD/ŶŚŽĐĆŽ
sicas. Esse meu deslocamento geográfico
foi importante porque permitiu não só o
aprofundamento no campo, mas me fez
perceber também deslocamentos do rap
do Brasil em direção às terras portugue-
sas, estabelecendo aqui uma importante
“ponte”.13
Em terras portuguesas, meu con-
tato maior nesse espaço de tempo, foi
com o Movimento hip-hop produzido
por imigrantes ou filhos destes, principal-
PHQWHGH&DER9HUGHH$QJRODðHP
VXDJUDQGHPDLRULDQHJURVðHTXHFULDP
o que alguns me definiam como o rap
obstruíram a passagem dos moradores dade, bairros centrais e turísticos, são crioulo,15 em contraposição ao que cha-
e principalmente das crianças que uti- locais de moradia e atuação de inúmeros mam de rap tuga, definido como de por-
lizavam aquele espaço para brincar, prin- grupos. tugueses.
cipalmente jogar futebol e soltar pipa, Esses deslocamentos foram fun- Meus primeiros contatos e visitas
como eu várias vezes presenciara.11 As damentais para me fazer perceber outras aconteceram com os rappers do bairro da
imagens fotográficas contidas na disser- versões da cidade que afloram a partir Cova da Moura e com eles pude exercitar
tação funcionaram como um importante do Movimento hip-hop e, nesse sentido, uma inicial observação de campo, tanto
interlocutor, tanto entre os que fizeram pude “aventurar-me” na realização deste no bairro como nos diversos locais para
parte delas, como entre os que não fize- “experimento” etnográfico que procuro onde iam e que me permitiam que os
ram, mas que conheciam e reconheciam aqui trazer, através de alguns fragmentos, acompanhassem.
aquele universo cantado, fotografado, es- e que é fruto de um exercício de senti- A Cova da Moura é um bairro que
crito. dos, entre os quais o “olhar” e o “ouvir” possui uma população formada predomi-
Quanto ao deslocamento espacial, são determinantes para dar a forma escri- nantemente por imigrantes e seus filhos,
este se deu de várias formas. Uma delas ta como bem nos mostra Oliveira (2000). HP VXD JUDQGH PDLRULD FDERYHUGLDQRV ð
refere-se à localização do hip-hop na ci- A união dessas três ações, entre outras, em torno de 75% da população do bairro,
dade, e não posso mais falar de um Mo- já que o campo é permeado por sabores, como me diziam. Ao ser apresentada ao
vimento hip-hop de Florianópolis, como odores, texturas, nos possibilita melhor bairro, percorrendo suas ruas e vielas com
antes, e sim de um Movimento hip-hop sentir o universo que está sendo revelado. os anfitriões que me guiavam, parecia estar
da Grande Florianópolis, já que municí- Em Lisboa percorri a cidade e, em um bairro no Brasil. Ao mesmo tempo
pios como São José, Palhoça e Biguaçu fo- como em Florianópolis, tive que sair dela que tudo era muito diferente e novo, tam-
ram espaços que percorri com os rappers para encontrar o Movimento hip-hop. bém havia uma sensação de familiaridade
com certa constância. Fui para bairros de periferia de cidades no ar. E somente tempos depois pude en-
Além da inserção do Movimento vizinhas, como a Cova da Moura – Ama- tender essa familiaridade. A Cova da Moura
hip-hop nos municípios vizinhos, outro dora, atravessei o Rio Tejo em direção a é um bairro de periferia, com uma signi-
GHVORFDPHQWRVHID]SUHVHQWHðHVWHGL] Arrentela – Seixal e Vale das Amoreiras ficativa população negra, com problemas
respeito à ampliação do seu alcance na – Barreiro.12 E a Lisboa antes imaginada sociais dos mais diversos, mas com uma
cidade de Florianópolis. Se antes estava tornava-se agora a Grande Lisboa, assim musicalidade muito intensa e forte. Não
nas periferias e favelas, hoje, a cidade, com como Florianópolis. Em outras palavras, somente o rap se fazia ali presente; mui-
seus variados bairros e praias, tornou-se essas cidades alargaram-se a partir do Mo- to reggae e os ritmos cabo-verdianos
palco dessa manifestação. Ribeirão da vimento hip-hop. eram ouvidos a todo momento, prin-
Ilha, Canasvieiras, Campeche, Lagoa da Aqui a “aventura” se fez novamen- cipalmente quando anoitecia e os bares
Conceição, Pantanal, Agronômica, Trin- te presente. Era uma cidade até então des- começavam a ficar movimentados. Era
CULTURA  CRÍTICA  14        69

significados, o que me fez perceber que “produtores” dessa música. Ressalto ainda
essa circulação é muito mais intensa e que que este trabalho possibilitou-me perce-
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞD/ŶŚŽĐĆŽ

a música leva consigo um estilo que os ber uma importante relação entre Brasil
une, mesmo sem se conhecerem. A mes- e Portugal, que surge em função dessa
ma situação se repetiu com outros rappers produção musical, porém muito mais no
daquele e de outros bairros, uma vez que, sentido do Brasil para Portugal do que o
além da Cova da Moura, visitei a Arren- inverso. Aspecto este fundamental para
tela – Seixal, através da Khapaz17, e Vale compreensão de alguns “fluxos” (Han-
das Amoreiras – Barreiro, no Centro de nerz, 1997) pelos quais a música brasilei-
Hip-hop, entre outros. ra, no caso o rap, percorre.
Essas visitas me permitiam am- Tanto em Florianópolis como em
pliar o olhar sobre a cidade e suas ma- Lisboa, o Movimento hip-hop me levou
nifestações. Minha interlocução ocorreu a percorrer suas ruas, me guiando dos
com uma parcela dos rappers na Grande centros aos bairros de periferia e me des-
Lisboa, mas de fundamental importân- locando para as cidades vizinhas. A cada
cia para pensar a cidade e a forma como percurso essas cidades se modificavam.
uma familiaridade auditiva que estava se esta é descrita principalmente através da Florianópolis já me era familiar
estabelecendo, mesmo desconhecendo a produção musical – o rap – de jovens em por haver realizado ali trabalho de campo.
grande parte daqueles sons que ouvia. grande parte nascidos em Portugal, mas Lisboa, ao contrário, começava a se abrir
Nos primeiros encontros pude filhos de imigrantes, em sua maioria ca- e se mostrar; tudo era novo, desconheci-
perceber que o rap do Brasil é bastan- bo-verdianos e angolanos. do e instigante, mesmo quando me perdia
te ouvido no bairro. Músicas de grupos Essa produção musical tem, na nos percursos. Eu queria conhecer o Mo-
como Racionais, Câmbio Negro, Facção condição de “imigrantes” de seus inte- vimento hip-hop e para isso Lisboa, assim
Central16 circulam entre os rappers locais. grantes, um importante elo de discussão. como Florianópolis, se ampliou. Nessa
Esse foi um primeiro contato com meu Não somente como uma forma de rela- “aventura”, vivenciei dois momentos bas-
objetivo de pesquisa, onde pude perceber to de sua condição, mas também como tante distintos do trabalho de campo. E os
uma circulação dessa produção musical, uma maneira de atualização de seu con- dois me impuseram o desafio de descorti-
através da construção de alguns fluxos e, tato com a terra natal, mesmo que não nar essas cidades.
nesse caso, muito mais no sentido do Bra- a conheçam, por mais estranho que isso Nos percursos pelos espaços ur-
sil para Portugal. Essa ideia foi reforçada possa parecer. Mas a África imaginada na banos dessas cidades, me guiava a forma
quando fiz circular alguns CDs de grupos produção musical do rap brasileiro tam- como eram construídas as relações dos
de rap com os quais realizei trabalho de bém está presente no rap crioulo, de forma rappers com aqueles espaços, não somente
campo na Grande Florianópolis. Era uma muito diversa, até porque a relação com o de moradia, a partir de seus bairros, mas
forma de mostrar a eles a produção musi- essa África através de seus pais e avós é com a cidade de uma forma mais ampla.
cal de grupos que fizeram parte da minha cotidiana, bem como os locais em que Buscava, através dessas relações, compre-
pesquisa. Entreguei o CD a um rapper e, residem, geralmente bairros com consi- ender as representações que elaboravam
no dia seguinte, quando estava no bairro derável população na mesma condição de sobre os espaços urbanos a partir de suas
novamente, perguntei a ele se havia ou- “diáspora”. vivências, de suas subjetividades.
vido. Disse que sim, e que tinha gostado O alargamento dos limites do 2 0RYLPHQWR KLSKRS p ð H VH
muito. Naquele momento uma preocu- trabalho de campo me auxiliou na refle- FRQVWLWXLHPðHVSDoRVXUEDQRVGHPp-
pação se colocou: as gírias, as formas de xão sobre minha incursão em campo no dias e grandes cidades, mas, nos contextos
falar que fazem parte das narrativas mu- Brasil – Grande Florianópolis, ampliando aqui apresentados, me questionava sobre
sicais, podiam não ser compreendidas. a perspectiva de abordagem da tese aqui como são construídas essas relações para
Tentei apresentar e “traduzir” algumas das apresentada, tendo em vista que um dos dar “forma” aos estilos que o compõem, e
gírias, mas, antes de meu esboço de res- eixos de discussão refere-se aos fluxos e me movimentava na busca de respostas, o
posta, ele não só citou algumas das gírias circulação dessa produção musical, da que muitas vezes resultava em mais ques-
ouvidas nas músicas do Arma-Zen (grupo qual participam tanto como “consumi- tionamentos. Esses espaços urbanos cons-
de rap de Florianópolis), como deu seus dores”, quanto, e principalmente, como tituem e são constituintes do Movimento
70      CULTURA  CRÍTICA  14

hip-hop, o qual, através de suas práticas xa escolaridade e desemprego são comuns ção da produção musical do hip-hop. Mais
musicais, amplia o debate sobre as rela- aos discursos dessas práticas musicais. do que uma simples importação de um
ções que constrói com eles. Ao mesmo tempo, são contextos estilo musical que se projeta a partir dos
Mesmo não realizando grandes completamente diversos e diferentes. Estados Unidos da América, a produção
deslocamentos geográficos e culturais na Um aspecto que os diferencia é o próprio musical deste país perde em importân-
pesquisa etnográfica em Florianópolis, os país sobre o qual cantam. Se no Brasil essa cia na constituição de referências para a
deslocamentos e distanciamentos estão a produção musical vai discutir o precon- prática musical e outros “fluxos” são cons-
todo o momento tendo que ser reaviva- ceito e a discriminação de uma população truídos. Nos próprios Estados Unidos, o
dos. Se o pesquisador que está distante descendente de africanos que para cá fo- rap surge a partir de encontros entre di-
depara com esse estranhamento de forma ram trazidos como escravos, em Portugal ferentes populações, dos negros morado-
mais direta, nas pesquisas urbanas essa é emerge uma condição de imigração e o res dos bairros de Nova York e imigrantes
uma condição que temos que colocar em rap funciona, para quem o produz, como vindos da Jamaica e da América Latina;
prática constantemente em nossas pes- uma forma de atualização e manutenção em outras palavras, no encontro de “flu-
quisas. Em meu trabalho de campo tive a de redes e da própria língua de seus países xos” de populações, com suas diversas
oportunidade de experienciar essas duas de origem.18 E, como já citei, o fato de te- concepções de mundo e musicais, que
sensações. Buscava esse estranhamen- rem nascido em Portugal não é suficiente propiciam a formação de novos “fluxos”.
to na “aventura” etnográfica na Grande para se considerarem portugueses, o que A partir do debate proposto por
Florianópolis, procurando nela estranhar demonstra um embate que travam com a Hannerz (1997), ressalto aqui a discussão
o familiar, ou relativamente familiar, já nação na qual estão e que se concretiza na que o autor empreende sobre o termo
que outra cidade descortinou-se nesses relação construída com a cidade e o bair- “fluxo”. Um primeiro aspecto que ressal-
percursos. Na Grande Lisboa a “aventu- ro. Mais especificamente, na relação que to como fundamental para a reflexão so-
ra” estava em tornar familiar o estranho constroem com o espaço urbano das cida- bre esse universo de pesquisa e apontado
e procurar ampliar as redes que me possi- des na qual produzem suas músicas. Esses pelo autor citado diz respeito à comple-
bilitavam a inserção nos espaços do Movi- espaços, a partir de suas cidades, ganham xificação do conceito de cultura. Mais do
mento hip-hop. outra dinâmica. A cidade passa a ser per- que cultura, estamos deparando com as
cebida de forma crítica a partir da relação mais complexas relações entre culturas,
Buscando aproximações, que ela estabelece com os rappers. que por sua vez dão vida a outras “formas”
mesmo na distância Nesse aspecto, a forma como al- e concepções de mundo, estejam elas nos
guns desses bairros são vistos pela cidade diversos bairros brasileiros, nas cidades no
Se, no Brasil, uma significativa se aproximam nos dois países, guardadas entorno de Lisboa ou nos bairros negros
parcela do Movimento hip-hop está lo- as devidas proporções. Principalmente norte-americanos. Perceber o Movimen-
calizada em bairros de periferia e favela, quando esses bairros são de periferia ou to hip-hop é uma tentativa de observação
e ele é praticado por uma parcela ex- “bairros sociais”, e, não por acaso, pos- dessas distintas e complexas relações que
pressiva da população negra a partir de suem um contingente populacional ne- envolvem “fluxos migratórios, de mídia,
um posicionamento crítico em relação à gro bastante significativo. Nesse sentido, de mercadorias”, e, acrescento, de ideias,
sociedade na qual se inclui em Portugal a é bastante comum encontrar visões es- de tecnologias que nos desafiam a pensar
produção do rap crioulo, localizado princi- tereotipadas e negativas desses espaços na complexidade que permeia esse uni-
palmente nos “bairros sociais”, não ocor- na cidade, e é possível percebê-los ou a verso de pesquisa.
re de forma diferente. Em comum, esse partir de uma estigmatização ou de uma Aqui o conceito de cultura se
posicionamento crítico discute a questão invisibilidade que a cidade constrói sobre amplia e se complexifica a partir do es-
étnico-racial, já que muitos são negros, eles, visões essas fartamente questionadas tabelecimento das relações, e nos impõe
e, principalmente no caso das mulheres, e contestadas através do rap. a impossibilidade de uma definição que
rediscute uma condição de gênero. Com Nesses espaços em que se redis- dê conta de explicar a diversidade, já que
esse posicionamento, fazem emergir uma cutem e se reposicionam, não aceitando esta se constitui nas relações que constrói
UHODomRðHPPXLWRVPRPHQWRVFRQIOLWX- a discriminação ou desigualdade, criam entre esses diferentes universos simbóli-
RVDðTXHHVWDEHOHFHPFRPDFLGDGHHR “fluxos” (Hannerz, 1997)19 que os unem a cos. E a música, aqui o rap, parece uma
país, e temas como violência, desigualda- outros espaços. E uma maneira de estabe- interessante “forma” de perceber esta
de social, discriminação, preconceito, bai- lecimento desses “fluxos” ocorre em fun- complexidade, já que se constrói num
CULTURA  CRÍTICA  14        71

processo de deslocamentos constante. táfora do fluxo nos propõe é a tarefa tâncias, ocorrem somente de forma
Com isso, a existência dessa música, de problematizar a cultura em termos virtual e que, por sua vez, aumentam
desde sua concepção ou composição processuais, não a permissão para os “fluxos” de produção e circulação
até o processo de veiculação, nos im- desproblematizá-la, abstraindo suas musical. E esses “fluxos” formam-se a
põe esses deslocamentos, redefinindo complicações” (p. 15), entre as quais partir de escolhas que definem, a par-
concepções sobre direitos autorais, situaria tensões, contradições, confli- tir de inúmeros aspectos, entre eles
reprodução, originalidade. tos e paradoxos, que dinamizam esse uma condição social e étnico-racial
Nesse sentido, “fluxo” é um universo cultural. que os une a determinado estilo de
termo transdisciplinar, sendo empre- Com isso estou aqui abordan- rap, a opção ideológica dessa produ-
gado em áreas de conhecimento tais do a produção e circulação musical a ção musical, enfim. A ampliação da
como demografia, economia, comuni- partir também dos “fluxos” que esses circulação dessa produção musical le-
cação, etc. Mas aqui ressalto uma de universos constituem e de escolhas vou com ela uma redefinição das suas
suas características para justificar sua que fazem para constituí-los. Se o sur- relações de produção, na qual fazer
utilização neste trabalho, nas palavras gimento do Movimento hip-hop nos rap, por mais que este se ancore em
de Hannerz (1997, p. 10), para o qual Estados Unidos é fruto de encontros um local específico, precisa também
“fluxo” é também um “(...) modo de de diferentes populações, essa relação dialogar com outros universos de pro-
fazer referências a coisas que não per- só tendeu a se ampliar com o decorrer dução dessa música. cc
manecem em seu lugar”, aspecto este do tempo e da facilitação da comuni-
que nutre e constitui o rap; só assim cação propiciada pelos avanços tecno- Angela   Maria   de   Souza   é   Docente  
do  curso  de  Antropologia  da  Unila  –  
ele vive criativamente e por isso faz lógicos. Universidade   Federal   da   Integração  
parte de um Movimento. E o autor Ampliam-se aqui as redes entre Latino  Americana.
acrescenta adiante que “o que a me- as pessoas, que, em muitas circuns- angela.souza@unila.edu.br

Notas
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72      CULTURA  CRÍTICA  14

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CULTURA  CRÍTICA  14        73

Referências

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D'EE/͕'͘͘ĞƉĞƌƚŽĞĚĞůŽŶŐĞ͗ŶŽƚĂƐƉĂƌĂƵŵĂĞƚŶŽŐƌĂĮĂƵƌďĂŶĂ͘Revista  Brasileira  de  Ciências  Sociais.ǀ͘ϭϳ͕Ŷ͘ϰϵ͕^ĆŽ
WĂƵůŽ͕ϮϬϬϭ͘
ͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺ͘KƐĐŝƌĐƵŝƚŽƐũŽǀĞŶƐƵƌďĂŶŽƐ͘Tempo  e  Sociedade͘ǀ͘ϭϳ͕Ŷ͘Ϯ͘^ĆŽWĂƵůŽ͕ŶŽǀĞŵďƌŽϮϬϬϱ͘
D'EE/͕'͘͘ΘdŽƌƌĞƐ͕>͘>͘;KƌŐƐ͘Ϳ͘Na  metrópole͘dĞdžƚŽƐĚĞĂŶƚƌŽƉŽůŽŐŝĂƵƌďĂŶĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗Ě͘h^W͖&W^W͕ϮϬϬϬ͘
Ds/>>͕d,z͕͘Falcão͗DĞŶŝŶŽƐĚŽƚƌĄĮĐŽ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗KďũĞƟǀĂ͕ϮϬϬϲ͘
Ds/>>͕d,z͕͘Θ^KZ^͕>͘͘Cabeça  de  porco.ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗KďũĞƟǀĂ͕ϮϬϬϱ͘
K>/s/Z͕Z͘͘O  trabalho  do  Antropólogo͘ƌĂƐşůŝĂ͖^ĆŽWĂƵůŽ͗WĂƌĂůĞůŽϭϱ͕hŶĞƐƉ͕ϮϬϬϬ͘
Z/>͕͘ZŽĚĂƌ͗ĐŝƌĐƵůĂĕĆŽĚŽƐũŽŐĂĚŽƌĞƐĚĞĨƵƚĞďŽůďƌĂƐŝůĞŝƌŽƐŶŽĞdžƚĞƌŝŽƌ͘Horizontes  Antropológicos͕WŽƌƚŽůĞŐƌĞ͕Ŷ͘ϯϬ͕ϮϬϬϴ͘
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ͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺ;KƌŐ͘Ϳ͘Antropologia  urbana͗ĐƵůƚƵƌĂĞƐŽĐŝĞĚĂĚĞŶŽƌĂƐŝůĞĞŵWŽƌƚƵŐĂů͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ĂŚĂƌ͕ϭϵϵϵ͘
ͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺ͘Projeto  e  metamorfose  ʹŶƚƌŽƉŽůŽŐŝĂĚĂƐƐŽĐŝĞĚĂĚĞƐĐŽŵƉůĞdžĂƐ͘ϯ͘ĞĚ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ĂŚĂƌ͕ϮϬϬϯ͘
s/EE͕,͘O  mundo  funk  carioca͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ĂŚĂƌ͕ϭϵϴϴ͘
ͺͺͺͺͺͺͺͺͺ͘KDŽǀŝŵĞŶƚŽ&ƵŶŬ͘/Ŷ͗,Z^,DEE͕D͘;KƌŐ͘Ϳ͘Abalando  os  Anos  90о&ƵŶŬĞ,ŝƉͲ,ŽƉо'ůŽďĂůŝnjĂĕĆŽ͕sŝŽůġŶĐŝĂĞ
ƐƟůŽƵůƚƵƌĂů͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ZŽĐĐŽ͕ϭϵϵϳ͘
_________;KƌŐ͘Ϳ'ĂůĞƌĂƐĂƌŝŽĐĂƐоdĞƌƌŝƚſƌŝŽƐĚĞŽŶŇŝƚŽƐĞŶĐŽŶƚƌŽƐƵůƚƵƌĂŝƐ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗Ě͘h&Z:͕ϮϬϬϯ͘
74      CULTURA  CRÍTICA  14

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ
O movimento hip-hop e a formação
da consciência crítica
CLAUDIMAR  ALVES  DURANS

Contradições sócio-raciais histórico. Cabe destacar que, segundo da por valores que negam sua história,
e formação da identidade Gramsci (1966, p. 37) “[...] toda relação sua arte e seus modos de viver. Jovens
de hegemonia é necessariamente uma negros e pobres convivem com uma sé-

É preciso pensar a sociedade como


um espaço de contradições e
conflitos entre classes desiguais
e hierarquizadas, perpassadas por rela-
ções de gênero e etnia, concernentes
relação pedagógica”.
Diante do exposto, e levando-se
em consideração o processo histórico e
os mecanismos de reprodução da ideo-
logia dominante, veiculada em especial
rie de estigmas que lhes são imputados
colaborando, dessa maneira, para sua
autodesvalorização. Um estigma é, por-
tanto, uma “[...] referência a um atribu-
to profundamente depreciativo, mas o
à apropriação de bens materiais e sim- pela escola, a população negra brasilei- que é preciso, na realidade, é uma lin-
bólicos onde se estabelece uma disputa ra, além de ter impedimentos à forma- guagem de relações e não de atributos.
pela hegemonia de determinado bloco ção de sua identidade, se vê estigmatiza- Um atributo que estigmatiza alguém
CULTURA  CRÍTICA  14        75

pode confirmar a normalidade de ou- com o qual quer se parecer o máximo de impor uma reviravolta nas definições
trem, [...]” (Goffman, 1975, p. 13). possível. A vergonha de si mesmo tor- produzidas pelas classes dominantes e
Segundo Goffman (1975), um na-se a marca de sua personalidade. De com isso definir, de forma autônoma,
estigma configura-se quando atribuímos acordo com Goffman (1975), o estig- os princípios de organização do mundo
valores a outros que, supostamente, fo- matizado responderá a esse problema da social e de sua identidade.
gem da normalidade. O outro se torna “aceitação” na sociedade tentando corri- Neste caso, assemelha-se com a
indesejável, porque não o qualificamos gir diretamente o que considera a base segunda resposta analisada por Goffman
como normal e, dessa forma, é trata- objetiva de sua rejeição. É por isso que (1975), qual seja, a reconquista de sua
do como alguém diminuído, estragado. muitos negros acreditam que alisando identidade coletiva, no caso de nosso
Goffman (1975) alerta que os atribu- o cabelo, clareando os pelos, afilando o estudo, étnico-racial. Aos oprimidos
tos indesejáveis em questão são apenas nariz, e atribuindo-se inúmeros padrões cabe objetivar os dominados e romper
aqueles incompatíveis com o estereó- cromáticos, a exemplo do “moreno”, a aderência que possuem em relação ao
tipo que temos para determinado tipo vão conseguir se afastar do padrão in- opressor.
de indivíduo. Um estigma é uma relação desejado e se aproximar do considera- A luta, nesse sentido, contra a
entre atributos estabelecidos para de- do “normal” ou “esteticamente bonito”. dominação simbólica que impõe uma vi-
terminados grupos ou indivíduos e os É a negação de sua identidade visando são negativa sobre a identidade dos do-
estereótipos preconcebidos. aproximar-se de valores construídos minados, não intenta apenas a conquista
Com relação à sociedade bra- pela elite dominante. ou reconquista da identidade, mas o po-
sileira, existe todo um estereótipo de Na mesma linha de raciocínio, der de definir sua própria identidade, do
normalidade e beleza. Ser branco, se referente à identidade dos grupos domi- qual havia abdicado em detrimento da
possível loiro de olhos azuis, ter cur- nados, Bourdieu (2004) concebe duas visão dominante, no momento em que
so superior, ter um bom emprego, ser perspectivas: ou aceitam a definição se negaram para serem reconhecidos.
cristão... são atributos vistos como bons de sua identidade pela classe dominan- “O estigma produz a revolta contra o
e desejáveis. Um negro subempregado te buscando, inclusive, sua assimilação estigma, que começa pela reivindicação
ou desempregado, de formação esco- por meio da recusa de suas caracterís- pública do estigma, constituído assim
lar incompleta e morador de periferia ticas identitárias (linguagem, vestuário, em emblema, [...]” (Bourdieu, 1989, p.
foge completamente do estereótipo estilo de vida, religião, etc.); ou, por 125).
considerado desejável por grande parte meio de uma luta coletiva, eliminam a Segundo Freire (2005), para
da população brasileira. Daí surgem os valoração dos seus estigmas no sentido romper com a dominação urge eliminar
estigmas referentes aos negros, que são
vistos como desocupados, preguiçosos
ou marginais.
Quanto mais nos aproximarmos
do referencial desejado, mais teremos a
chance de fugir da estigmatização e dos
efeitos sociais dela decorrentes. É por
essa razão que os dominados procuram
de alguma forma escapar de si mesmos e
apropriam-se da visão dominante. É por
isso que pessoas negras têm dificuldade
em assumir sua identidade e incorporam
Foto:  Davi  Francisco  da  Silva

a visão das classes dominantes sobre elas.


Nesse contexto, duas saídas apresentam--
-se aos oprimidos: ou fazem de tudo para
se parecerem com o opressor; ou recon-
quistam suas dimensões negadas.
Na primeira resposta, o oprimi-
do se enxerga com o olhar do opressor,
76      CULTURA  CRÍTICA  14

D GXDOLGDGH GRPLQDGRUðGRPLQDGR 2 pela destruição do sistema que o ne- para a conscientização é a existência de
problema é que o “medo da liberdade” gou durante séculos não estará esgo- um sujeito consciente de sua ação sobre a
torna-se característica dos dominados, tado o ciclo que se instaurou com os realidade e dos limites impostos por ela.
visto que estão ainda impregnados dos primeiros negros quilombolas: o da “[...], o sujeito existente reflete sobre sua
mitos que o formam. Romper com es- busca de sua completa emancipação vida, no domínio mesmo da existência e se
tes é um ato de violência contra si mes- como ser social e como ser individu- pergunta em torno de suas relações com o
al. (Bernd, 1987, p. 42)
mos, motivo pelo qual muitos hesitam mundo” (Freire, 1984, p. 66).
em fazê-lo. Isso, porém, passa por um Como observa Gramsci (1966,
Destacamos que as ações político-
processo profundo de conscientização p. 12), “O início da elaboração crítica é a
culturais desenvolvidas pelo movimen-
no qual os oprimidos devem romper consciência daquilo que somos realmente,
to hip-hop têm possibilitado, além da
com as visões estigmatizantes sobre si isto é, ‘conhece-te a ti mesmo’ como pro-
construção da identidade étnico-racial,
mesmos e lutar pela modificação das es- duto do processo histórico até hoje desen-
a elaboração de uma consciência crítica,
truturas que fortalecem e sustentam tais volvido [...]”. Uma ressalva, no entanto,
no sentido de transcender reivindicações
estigmas e estereótipos. é necessária visto que existe uma predo-
imediatas, exigindo a transformação radi-
minância da visão de mundo das classes
O hip-hop e a formação da cal da sociedade. Além dos efeitos práticos
opressoras bem como a formação e con-
consciência crítica de incentivo ao estudo e desenvolvimento
solidação de uma cultura do silêncio no seio
artístico, aparece como marca central no
das classes oprimidas. Estas se percebem
É necessário chegar aonde os hip-hop a proposta de um novo tipo de
como naturalmente inferiores frente aos
estereótipos se originam, onde existem sociedade, que passa necessariamente pela
desígnios dos dominadores ou mesmo de
os que se apropriam dos meios de pro- destruição da realidade capitalista e cons-
divindades; não se percebem como sujei-
dução usufruindo em proveito próprio tituição do socialismo.
tos transformadores da realidade e da his-
e os que são explorados e oprimidos em De acordo com Freire (1984),
tória; possuem uma visão fatalista, passiva,
detrimento do privilégio daqueles. para se entender o processo de conscien-
pois percebem a realidade com algo dado
tização, devemos compreender critica-
e realizado, permanecendo em “silêncio”
Enquanto o negro não for capaz de mente que o ser humano existe no mundo
frente aos limites impostos.
converter-se em agente histórico e com o mundo, pois a condição básica
Esse tipo de consciência Freire
(1984) denomina de semi-intransitiva, pois
as classes oprimidas estão imersas na rea-
lidade imediata, aderentes ao mundo, não
o objetivando a partir da ação e reflexão
recíprocas. Nas classes populares predo-
mina o que Gramsci (1966, p. 143) qua-
lificou de senso comum, isto é, uma visão
de mundo “[...] absorvida acriticamente
pelos vários ambientes sociais e culturais
nos quais se desenvolve a individualidade
do homem médio”. O senso comum é uma
concepção de mundo desagregada, inco-
erente e inconsequente. Está pautado em
Foto:  Davi  Francisco  da  Silva

formas religiosas de se explicar o mundo e


a percepção da realidade ocorre apenas no
imediato, na sensação empírica.
Os oprimidos interiorizam a ideo-
logia opressora e por isso, além de se per-
ceberem como inferiores, não constituem
uma concepção de mundo crítica sobre
a realidade e que esteja voltada aos seus
CULTURA  CRÍTICA  14        77

interesses. No entanto, as próprias con-


dições impostas às classes dominadas são
tão desumanizadoras que, entrando em
choque com suas necessidades imediatas,
contraditoriamente os impulsionam a lu-
tar por melhores condições de vida. “[...],
o silêncio começa a ser percebido como
o resultado de uma realidade material que
pode ser transformada e não mais algo
inalterável, uma espécie de destino ou
sina” (Freire, 1984, p. 74).
Neste momento ocorre a forma-
Foto:  Davi  Francisco  da  Silva

ção da consciência transitivo-ingênua, na


qual as classes oprimidas iniciam a per-
cepção das imposições e limites sociais,
bem como da exploração e opressão de-
sencadeadas pelas elites dominantes. Os
oprimidos, nesse estágio, tornam-se classe
em si no sentido mesmo que dão conta das
necessidades de classe. O primeiro passo é
descobrirem-se hospedeiros do opressor,
para, na negação deste, constituírem uma o coração. Infelizmente a gente bem atento ain-
ação emancipadora (Freire, 2005). Dos devaneios tolos que se passam da vacila,
Nesse sentido é interessante ob- como vulto, E dizem que o malandro não escorre-
servarmos a letra de rap “Minhas prisões”, Do surto idiota que você teve há um ga, nem cochila.
do rapper PRC + UM COMUNA, que minuto. Cada um, cada um, quando é
discorre sobre as contradições presentes Acorde ou vá dormir, diz aí o um, não faço parte,
no pensamento dos oprimidos, em re- que cê quer? Tem que fazer barulho e não
lação com suas necessidades materiais. Manera no desdobro eu quero ver brincar de fazer arte.
Essa música é um exemplo de como os quem você é. [REFRÃO]
militantes do hip-hop procuram tomar Se eu não te conheço é uma pena, que O que me impede de trair meus com-
pena! panheiros, agora!
decisões frente às visões fatalistas e ingê-
Não paga de bandido, quando tem Só mais um pecado triste na trajetória
nuas que predominam no seio das classes mocinho em cena. quilombola.
populares.Transcreveremos a letra inteira, Tu tá fudido mesmo, é isso mesmo, Ignorar no espelho meu reflexo ru-
pois acreditamos que a percepção dela por na real, bro-sangue,
completo ajudará melhor a compreender Olha pra mim bandido, sem fazer Pra passear de carruagem no filme de
os elementos contraditórios da consciên- cara de mau, bangue-bangue.
cia dos oprimidos. Me conta tua verdade, diz pra mim, Na mente minhas prisões, no mundo
desembucha, minhas ilusões,
Cê sabe qual que é, a aflição que te Prefere ouvir, então, cd do GOG ou A vida é traiçoeira e cheia de contra-
domina? ver a Xuxa? dições.
Cê sabe qual que é, o lado seu que Tá cheio de aflição, o que é que Homossexuais, idosos, crianças
predomina? cê vai fazer? sem futuro,
Cê sabe qual que é, se analisar de Pro bar encher a cara ou pensar Bem assim, iguais a mim, dentro
mente aberta? bem forte em Che? da prisão sem muro.
Cê sabe qual que é, no teu defeito, a Cadê o teu herói, superior pra rir de Qual é a tua desculpa pra pen-
coisa certa? (REFRÃO) mim? sar só em você?
Por que tu não me fala, ladrão? O príncipe encantado vira sapo no Que a sociedade é podre, eu tô
Dos pensamentos podres que acelera jardim. cansado de saber.
78      CULTURA  CRÍTICA  14

Do jeito que se escreve, se apa- encontram-se sem perspectivas. “A socie- Para superar o estágio da consciên-
ga o que não presta, dade é podre”, diz a letra. Por outro lado, cia transitivo-ingênua, daquela que percebe
O número da besta, eu já tirei deve-se tomar uma atitude frente a essas apenas as necessidades de classe, e chegar à
de minha testa. dificuldades: “7iFKHLRGHDÁLomRRTXHpTXH elaboração de uma consciência crítica,
Correr, fugir, voar, escapar, cê vai fazer? Pro bar encher a cara, ou pensar onde os oprimidos se tornem seres para si
Sumir, deixar rolar, direto e reto ve- bem forte em Che?”. Aqui se encontram duas são necessárias, no processo de conscien-
getar.
posturas opostas: o bar e o álcool como tização, duas questões fundamentais: a
Gozar de outros valores, na falsa fe-
licidade, exemplos de fuga da realidade, de acomo- denúncia das estruturas de dominação e
Fazer de tudo agora e ter o que contar dação, e a imagem do guerrilheiro Che o anúncio de uma nova realidade, vincu-
mais tarde. Guevara como exemplo de luta. A luta lada aos interesses dos dominados (Freire,
Quem sabe um dia o mundo gira em deve ser a tônica dos oprimidos, mas de 1984).
torno de você, forma coletiva e não individual: “Cada um, Sendo assim, uma característica
Quem sabe um dia eu fique sem ter cada um, quando é um, não faço parte.Tem que fundamental da consciência crítica é a in-
mais o que dizer. fazer barulho e não brincar de fazer arte”. tencionalidade. “Toda consciência é sem-
Se a gente tivesse tudo que a gente O “fazer barulho” diz respeito a pre consciência de algo que se intenciona”
quisesse, entrar na briga, afinal, como diz o título (Freire, 1984, p. 144). Segundo este autor,
A tempestade passasse, pra que a bo- do álbum de cujo repertório esta música a consciência sobre si resulta na consciên-
nança viesse. faz parte, “A Guerra é pra valer”. cia sobre o mundo, pois percebe-se, em
Quisera que os sonhos estivessem ao
Nesse sentido, não se admite a luta meio à realidade, como sujeito histórico.
alcance,
E cada um tivesse, de repente a sua individual: “qual é a tua desculpa pra pen- Com efeito, ter conhecimento de
chance, sar só em você?” É preciso se autovalorizar, que os condicionamentos históricos, ma-
Tormentos queimariam na fo- afirmar-se enquanto sujeito histórico, re- teriais, exercem uma influência poderosa
gueira da igualdade, tirar os estigmas que lhe foram impostos. nos modos de pensar e agir, não significa
E as grades invisíveis sumiriam É por isso que PRC + UM COMUNA diz anular o fazer humano. “O fato mesmo de
de verdade. (grifos nossos). bem claro que “O número da besta eu já ti- se ter ele tornado apto a reconhecer quão
rei de minha testa”, ou seja, os estigmas que condicionado ou influenciado é pelas es-
No refrão inicial encontram-se o desqualificam não fazem mais parte de truturas econômicas o fez também capaz
questionamentos que se referem aos sua identidade, pois “do jeito que se escreve, se de intervir na realidade condicionante”
conflitos presentes no pensamento dos apaga o que não presta”. (Freire, 2001, p. 326).
oprimidos em relação à realidade que os Isto posto, não há nada que seja Numa sociedade dividida em
envolve. Será que o oprimido sabe se ana- definitivo, preestabelecido, e que não pos- opressores e oprimidos, estes devem pos-
lisar de mente aberta (ou seja, de maneira sa ser mudado pela intervenção e leitura suir a consciência crítica da opressão para
consciente)? Conhece os problemas que o crítica da realidade. É possível mudar tan- lutarem contra ela; no entanto, ela se for-
afetam? Qual lado predomina: o passivo? o to a realidade material, quanto as formas mará apenas “na práxis desta busca” (Frei-
militante?1 Existe em seus defeitos algo de de dominação cultural empreendidas pe- re, 2005, p. 41), pois a situação opressora
positivo? Enfim, já no começo, discute-se las classes dominantes; ou seja, “Tormentos se por um lado domina e acarreta autodes-
sobre a necessidade de se autoanalisar, des- queimariam na fogueira da igualdade e as gra- valorização, por outro lado faz imergir a
cobrir seus defeitos e acertos; conhecer a des invisíveis sumiriam de verdade”. consciência do oprimido.
si mesmo, como já dizia Gramsci (1966), Afirmamos, diante do exposto, O simples conhecimento crítico
como um passo importante para tornar-se que o hip-hop, por meio de seus elemen- da situação opressora, no entanto, não é
sujeito histórico. tos artísticos e práticas político-organi- suficiente para transformá-la, no sentido
A letra se desenvolve a partir de zativas, tem servido de base propulsora de sua eliminação. A consciência crítica,
oposições. Primeiro é necessário que a para uma transformação na concepção construída na práxis, só se consubstancia
pessoa saiba quem é; segundo, que tome de mundo das pessoas envolvidas em seu em sua inserção crítica, isto é, na organização
uma decisão sobre sua vida: “Acorde ou vá campo de ação, que vai da desconstrução e ação concretas dos oprimidos em busca
dormir. Diz aí o que cê quer?”. do pensamento hegemônico à constitui- da transformação da realidade. “Quanto
É uma vida de precariedade, afli- ção de uma consciência crítica e histórica mais as massas populares desvelam a rea-
ção, onde homossexuais, crianças, idosos da realidade que os cerca. lidade objetiva e desafiadora sobre a qual
CULTURA  CRÍTICA  14        79

eles devem incidir sua ação transformado- significativa de jovens pobres não-negros os manos e as minas que estão em situação
ra, tanto mais se inserem nela criticamente” que se inserem nesse movimento. Nessa social oposta à dos playboys,2 a elite, a bur-
(Freire, 2005, p. 44). A realidade deixa de direção, há também um sentimento de guesia que habita mansões e condomínios
ser percebida como algo fixo, imutável, e classe que perpassa a dinâmica das práticas fechados.
torna-se dinâmica, mutável. hip-hoppianas. No entanto, a maior parte Com efeito, por meio de práticas
desses jovens, em razão do desemprego e político-organizativas e artísticas, o Hip-
[...] se não há conscientização sem das poucas oportunidades de acesso e per- hop tem possibilitado a reelaboração da
desvelamento da realidade objetiva manência na escola, vivem em situação de identidade étnico-racial, resgatando va-
[...] não basta ainda para autenticar a precariedade social, ou seja, fora do mer- lores da cultura e da história negra antes
conscientização. [...] A sua autentici- cado de trabalho. negados, no contexto da sociedade brasi-
dade se dá quando a prática do des- Em razão disso, os referencias leira de herança escravista e capitalismo
velamento da realidade constitui uma
clássicos da luta de classes pautados na dependente, mas, para além da identi-
unidade dinâmica e dialética com a
prática de transformação da realida- luta operários versus burguesia são redi- dade, consegue formar uma consciência
de. (Freire, 1984, p. 145) mensionados no campo do hip-hop. O crítica objetivando transformar a realida-
pertencimento de classe no movimento é de e edificar uma sociedade onde a dis-
Assim, não basta refletir sobre a reelaborado a partir de uma vivência co- criminação de raça e a exploração social
realidade, conhecer suas imposições e li- mum de exploração e opressão conjunta sejam eliminadas.  cc
mites, ter clareza sobre as necessidades de aos moradores da periferia. Esta passa a ser
classe, entender as formas de domínio e um marco referencial de constituição de Claudimar  Alves  Durans  é  Licenciada  
manipulação dos opressores; é preciso, um sentimento de classe na qual vivem os em  Letras  –  UFMA  e  Professora  da  
mais do que isso, organizar-se coletiva- pobres, os favelados, os pretos e as pretas, Educação  Básica.
mente, intervir na realidade no sentido
de modificá-la em proveito próprio. Para Notas
se adquirir a consciência crítica torna-se
imprescindível a passagem da necessidade de ϭ͘EŽĐŽŶũƵŶƚŽĚĂŵƷƐŝĐĂĮĐĂŵďĞŵĐůĂƌĂƐĞƐƐĂƐĚƵĂƐƉŽƐŝĕƁĞƐĂĞƐĐŽůŚĞƌ͘
classe, característica da consciência transiti- Ϯ͘Playboy  ĠƵŵƚĞƌŵŽĐŽŵƵŵƵƟůŝnjĂĚŽŶŽŚŝƉͲŚŽƉ  ƉĂƌĂĚĞƐŝŐŶĂƌŽƐďƵƌŐƵĞ-­‐
vo-ingênua, ou classe em si, para o nível de ƐĞƐ͕ĂĞůŝƚĞ͘
classe para si, isto é, consciência da necessi-
dade da reflexão e ação, da práxis transfor- Referências
madora, enquanto sujeitos históricos.
ZE͕ŝůĄ͘EĞŐƌŝƚƵĚĞĞůŝƚĞƌĂƚƵƌĂŶĂŵĠƌŝĐĂ>ĂƟŶĂ͘WŽƌƚŽůĞŐƌĞ͗DĞƌĐĂĚŽ
Considerações finais ďĞƌƚŽ͕ϭϵϴϳ͘
KhZ/h͕WŝĞƌƌĞ͘A  economia  das  trocas  simbólicas.  ^ĆŽWĂƵůŽ͗WĞƌƐƉĞĐƟǀĂ͕
O movimento hip-hop é compos- ϮϬϬϰ͘
to principalmente por jovens negros que ͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺ͘O  poder  simbólico͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ĞƌƚƌĂŶĚƌĂƐŝůͬŝĨĞů͕
sofrem discriminação racial e geralmente ϭϵϴϵ͘
são estigmatizados como marginais. Por ZZE͕&ůĄǀŝŽ͖KZ'^͕ZŽƐĂŶĞĚĂ^ŝůǀĂ;ŽƌŐƐ͘Ϳ͘ƐƉĞůŚŽŝŶĮĞů͗ŽŶĞŐƌŽ
isso, a partir da inserção no hip-hop, exis- ŶŽũŽƌŶĂůŝƐŵŽďƌĂƐŝůĞŝƌŽ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗/ŵƉƌĞŶƐĂKĮĐŝĂůĚŽƐƚĂĚŽĚĞ^ĆŽWĂƵůŽͬ
te uma construção, valorização e resgate ^ŝŶĚŝĐĂƚŽĚŽƐ:ŽƌŶĂůŝƐƚĂƐŶŽƐƚĂĚŽĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ͕ϮϬϬϰ͘
dos referenciais da cultura e história dos &Z/Z͕WĂƵůŽ͘Pedagogia  do  oprimido͘ϰϯ͘ĞĚ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗WĂnjĞdĞƌƌĂ͕ϮϬϬϱ͘
negros no Brasil. O movimento, nesse ͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺ͘džƚĞŶƐĆŽĞŝŶǀĂƐĆŽĐƵůƚƵƌĂů͘/Ŷ͗^Kh͕ŶĂ/ŶġƐ;ŽƌŐ͘Ϳ͘
Paulo  Freire:  ǀŝĚĂĞŽďƌĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗džƉƌĞƐƐĆŽWŽƉƵůĂƌ͕ϮϬϬϭ͘
sentido, contribui substancialmente para a
ͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺ͘Ação  cultural  para  a  Liberdade͘ϳ͘ĞĚ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗WĂnjĞ
constituição de uma identidade étnico-ra- dĞƌƌĂ͕ϭϵϴϰ͘
cial valorizada em meio a um contexto de 'K&&DE͕ƌǀŝŶŐ͘ƐƟŐŵĂ͗ŶŽƚĂƐƐŽďƌĞĂŵĂŶŝƉƵůĂĕĆŽĚĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞĚĞƚĞƌŝŽ-­‐
discriminação racial e exploração social. ƌĂĚĂ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ĂŚĂƌ͕ϭϵϳϱ͘
Além disso, por conta desse con- 'ZD^/͕ŶƚƀŶŝŽ͘ŽŶĐĞƉĕĆŽĚŝĂůĠƟĐĂĚĂ,ŝƐƚſƌŝĂ͘dƌĂĚ͘ĚĞĂƌůŽƐEĞůƐŽŶ
texto, o hip-hop não é constituído apenas ŽƵƟŶŚŽ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ŝǀŝůŝnjĂĕĆŽƌĂƐŝůĞŝƌĂ͕ϭϵϲϲ͘
de negros e negras, mas existe uma parcela
80      CULTURA  CRÍTICA  14

O hip-hop e as novas perspectivas


de mobilização social
TATIANA  GALVÃO

S e durante muito tempo as classes


populares no Brasil foram defen-
didas por lideranças e intelectuais
oriundos de uma classe média univer-
sitária, a crise pela qual as vanguardas
artístico-intelectuais passaram nos anos
1970 possibilitou a emergência de no-
vos atores sociais. Na década de 1980 e,
de forma particular, nos anos 1990, vo-
zes alternativas passaram a oferecer um
discurso reflexivo sobre o próprio gru-
po e, de modo geral, sobre a sociedade.
Saíram da posição de tuteladas para agi-
rem e falarem por si mesmas.
Dentro desse cenário e firman-
do-se a partir de parâmetros ideológicos
construídos na periferia e voltados para
a reflexão de sua realidade de miséria e
exclusão, o hip-hop emerge na década
de 1980, ecoando o descontentamen-
to da periferia por meio de produções
artísticas que têm como protagonistas a
comunidade e seus problemas. Ele con-
seguiu, como poucas expressões artísti-
cas, uma projeção capaz de ampliar suas
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞĞůĂsŝƐƚĂ

IURQWHLUDV ð JHRJUiILFD H GH FODVVH ð


saindo da margem para ocupar um lugar
de destaque no cenário cultural urbano
do Brasil.
A chegada dos anos 1990 trou-
xe consigo os holofotes midiáticos e o
hip-hop passou a ser consumido tam-
bém entre as camadas mais altas da
sociedade. Para se beneficiarem dessa
visibilidade e da inserção social que ela
possibilita, hip-hoppers passaram a ela-
borar estratégias diferentes para serem
vistos e ouvidos. Não há unanimidade na
CULTURA  CRÍTICA  14        81

maneira como o fazem. Mas, ao quebra-


rem o silêncio, fortalecem a consciência
do público para o qual se direcionam e
reafirmam a posição de liderança que

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞDŝŶŚŽĐĆŽ
ocupam na mobilização daqueles que
compartilham a mesma realidade de ex-
clusão e invisibilidade social.
A periferia pelos olhos do hip-hop
Desde sua origem o hip-hop
teve um caráter político e o objetivo de
promover a conscientização coletiva.
Ele emerge e ganha força nas décadas
de 1960 e 1970 nos Estados Unidos,
onde prevalecia um clima de revolta e
inconformismo por parte de comuni-
dades negras que viviam uma realidade
de segregação racial e violação de seus
direitos civis. Dentro desse contexto, que seus militantes chamam de “quinto peraram que as “grandes massas”
ganharam contornos muitos movimen- elemento”: a consciência. Existe uma chegassem à instrução, antes, por
tos de cunho político voltados para a grande preocupação social em oferecer mais que isso pareça pretensioso,
organização política da população ne- condição e oportunidade para que o in- eles se propõem como meio de
gra, bem como inovações culturais que divíduo não só consiga elevar sua auto- instrução, assumindo uma tarefa
percorreram o mundo. estima, mas também desenvolver suas flagrantemente pedagógica. Em se-
gundo lugar, eles entenderam que
No Brasil, o hip-hop chega na habilidades, sejam elas artísticas ou so-
no seu meio, devido até à falta de
década de 1970 a reboque da cultu- ciais. Sem dúvida, o instrumento mais instrução, muitas vezes o discurso
ra black. Mas foi apenas ao longo dos utilizado para fazer suas denúncias tem ficcional é um luxo. Eles vão pro-
anos 1980 que ele ganhou fôlego nos sido o rap. Por meio de sua batida e suas por, então, uma poesia com pé bem
salões que animavam a noite paulis- letras pesadas, o rap não só evidencia fincado na realidade, mas ao mesmo
tana no circuito negro e popular dos um sentido sociopolítico, mas também, tempo preocupada em transformar
bairros periféricos. Nesse momento, o por meio do discurso do confronto, o mundo”. (Salles, 2008, p. 85)
hip-hop no Brasil se resumia ao break e questiona a ideia de conciliação social
foi das equipes de dança que surgiram e procura neutralizar discursos oficiais Assim, é possível perceber a pre-
os primeiros rappers. Com a criação, tendenciosos (Herschmann, 2008, p. ocupação em estabelecer uma identifi-
em 1988, do Movimento Hip-hop Or- 196). Conforme M.V.Bill definiu: “o cação com o público por meio de ex-
ganizado (MH2O)1, por Milton Salles, rap é o canal de comunicação entre as periências compartilhadas que poderão
produtor do grupo Racionais MC’s até comunidades e, mais que isso, também significar a diferença numa reação posi-
1995, foi que começou uma nova fase é o meio de comunicação entre o mor- tiva a ser desencadeada. Por isso, no hip-
para o hip-hop . O MH2O organizou ro e o asfalto”.2 -hop, a figura do rapper é tão importan-
e divulgou o hip-hop no Brasil, definiu Ainda é interessante ressaltar, te. É por meio dele que muitos outros
as posses como “organizações que reu- conforme salientado por Salles (2008), falam, denunciam e questionam.
niam grupos de praticantes das artes que o rap se torna não só uma crítica Assim, mesmo chegando ao
do movimento para difundir os ideais a um modelo social excludente, mas mercado para ser consumido por ou-
do hip-hop e constituir resistência à também a um modelo de arte e estética tras classes sociais, o hip-hop tem suas
violência policial” (Araújo; Coutinho, hegemônico e descomprometido com a raízes fincadas na periferia e tem sido
2008, p. 219). realidade. ela a grande inspiração para toda sua
Além da dança, do rap, do grafite produção artística e para aqueles que
e do DJ, o hip-hop ainda possui aquilo “em primeiro lugar eles não es- dela vivem.
82      CULTURA  CRÍTICA  14

mia de produzir seu próprio discurso.


Se antes eram os intelectuais da classe
média universitária que falavam pela
periferia, agora ela mesma escolhe e
legitima seus intelectuais, aqueles que
nascidos nas periferias e favelas se tor-
nam suas referências e seus porta-vozes.
Nesse momento é interessante lembrar
que, em seus escritos, Gramsci já indi-
cava que a forma para resistir ao poder
de uma classe capitalista dominante e
vencê-la era desafiar seu domínio cultu-
ral e sua liderança a partir de uma nova
proposta de organização da sociedade.
As classes subalternas precisavam impor
uma nova visão de mundo, organizando

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ
a cultura de uma forma diferente da ofi-
cial. Tudo isso por meio do engajamento
das massas. Para ele, a nova consciên-
cia nasceria da própria cultura popular.
Diante disso, pode-se dizer que, mesmo
bem-intencionada, a vanguarda inte-
lectual e artística dos anos 1960/1970,
com sua postura paternalista e uma vi-
são idealizada da cultura popular, dei-
xava de considerá-la um processo e não
chegava a atingir e mobilizar as massas.
Dentro do hip-hop, alguns têm
conseguido perceber a necessidade de
se tornarem protagonistas de suas pró-
prias conquistas. Preto Ghóez, respon-
sável por dar visibilidade ao hip-hop do
Norte e Nordeste, declarou durante seu
discurso na Câmara dos Deputados:

Já sabemos que toda essa socieda-


de que está aí é planejada. Estamos
Novas perspectivas de mobilização necessidade de se posicionar diante da cansados de as pessoas planejarem
realidade na qual estavam inseridos. Por por nós também as soluções. So-
Embora a lógica capitalista di- meio de expressões artísticas nascidas mos capazes de construir nossas
ficulte propostas potencialmente sub- nas periferias, esses indivíduos trazem soluções porque estamos lá. Está
versivas, é possível encontrar projetos na hora de abandonar o ativismo
à tona “a discussão do lugar do pobre,
coletivos que investem na possibilidade da tutela. Nós já crescemos, até já
o direito ao discurso e o acesso à cida- envelhecemos, temos juventude
de transformação social. Diferentemen- de, colocando em pauta as contradições acumulada o suficiente para deter-
te da cultura popular ou minoritária do processo de democratização do país” minar nossos caminhos. 3
idealizada pelas vanguardas da década (Herschmann e Bentes, 2002).
de 1960, e possuindo maior autono- O paternalismo dos anos Gramsci acreditava que a emer-
mia, grupos marginalizados sentiram a 1960/1970 é substituído pela autono- gência de uma classe viria acompanhada
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ
CULTURA  CRÍTICA  14        83

pela produção de seus próprios intelec- é longo e está presente em qualquer site
tuais, “intelectuais orgânicos” que da- ou matéria impressa sobre o gênero.
riam coesão e forma à consciência dessa Seu discurso tem a tônica da violência,
classe. Aqueles que o fizessem seriam da discriminação e da necessidade de
intelectuais não por uma erudição, mas promover a cidadania à população que
pelas funções que desempenhariam e se encontra nas periferias e favelas das
que seriam diferentes da retórica abstra- cidades brasileiras. De seu primeiro
ta e burocrática dos intelectuais tradi- contato com o rap até a figura altamente
cionais que fortalecem a visão de mun- midiática que se tornou, sua atuação ex-
do dominante. O intelectual orgânico trapolou o âmbito da música.
não lutaria pelo, mas com, pois estaria O rapper defende o diálogo com
inserido na realidade social da qual se outras classes sociais e se define como
torna porta-voz e uma importante refe- uma ponte entre o asfalto e a favela afir-
rência, tendo assim condição não só de mando: “O fato de ser poliglota e falar
compreender mas também de sentir e, as duas línguas me deu trânsito. Não
por isso mesmo, teria uma força maior faço diferença, embora tenha preferên-
urbana, seja da periferia ou não (Hers-
de mobilização. Nesse sentido, é inte- cia pela minha raiz”.4 Ao se classificar
chmann e Bentes, 2002).
ressante a colocação que Downing faz: como parte da “ala falante do rap”, MV
MVBill, Mano Brown e Ferréz: Bill evidencia a intenção de falar para
seu “intelectual orgânico”, tal como intelectuais produzidos pela um público que vai além da periferia.
ele o concebe, quase poderia ser rein- periferia Ao usar os meios disponíveis para isso,
terpretado como o “comunicador/ ele está entre aqueles que acreditam na
ativista”, visto que, para Gramsci, o Embora vários rappers ou pro- importância de se fazer presente na mí-
termo intelectual jamais se refe- dutores envolvidos com o hip-hop dia.
ria a pessoas que se põem a pensar tenham recebido projeção midiática,
grandes pensamentos, que só elas e alguns se tornaram não só referências Existe um mito que o rap não vai à
um pequeno círculo compartilham.
mas lideranças célebres. Se em muitos TV. Não é isso. Tem muitos grupos
Gramsci esperava que os comu-
momentos o carisma é visto como algo que recusam o convite que na rea-
nicadores intelectuais/ativistas se
meramente estetizante, esses “marginais lidade nunca foi feito. Tem uns gru-
integrassem organicamente com as
midiáticos” evidenciam que ele não é pos que não vão por opção e tem
classes trabalhadoras para o desen-
necessariamente despolitizante. A nar- muitos grupos que não vão porque
volvimento de uma ordem social
rativa que apresentam tem sido capaz de não têm o que dizer. Eu faço parte
justa e culturalmente superior”.
da ala falante do rap. Eu gosto de
(Downing, 2002, p. 48) fazer aquilo que o pensamento racional
discutir o assunto (...) Acho que dá
e burocrático muitas vezes não con- pra você participar de algumas pa-
Assim, esses intelectuais locais segue: convencer e mobilizar a práxis. radas, de alguns programas sem de-
da periferia, ao recusarem qualquer Por isso a importância de destacar aqui negrir a sua imagem, sem precisar
tipo de paternalismo, passam a elaborar a atuação de MV Bill, Mano Brown e se corromper, sem precisar se livrar
seu próprio discurso e a apresentar sua Ferréz, que a partir de diferentes for- de alguns pensamentos seus.5
própria versão a respeito do contexto mas de atuação se tornaram referências
social do qual fazem parte. Independen- para a cultura e os trabalhos desenvolvi- Dessa forma, embora admita a
temente dos discursos conservadores da dos nas periferias. Não só destituíram os importância do rap, o direcionamento
classe média e mesmo de intelectuais tradicionais porta-vozes da cultura, mas de seu trabalho e a desenvoltura com
tradicionais, expressões culturais como também passaram a disputar o mesmo que ocupa o espaço midiático demons-
o hip-hop trazem à tona os novos mar- espaço. tram uma estratégia de visibilidade que
ginalizados, os “marginais midiáticos”, Nascido e criado na Cidade de tem dado resultados, seja na conquista
que, com um discurso de conotações Deus, favela da zona oeste do Rio de Ja- de parcerias para os projetos que desen-
políticas, têm conseguido se impor e neiro, MV Bill é o mais famoso rapper volve seja na reafirmação de seu sucesso
mobilizar parte expressiva da juventude carioca. O histórico de suas produções junto a um público já bem diversificado.
84      CULTURA  CRÍTICA  14

Atuando a partir de outra pers- Mas, se hoje chegou o momento de Capão Pecado, que em um mês teve a
pectiva está Mano Brown, reconhecido alguns companheiros ocuparem a tiragem esgotada, até Deus foi almoçar,
como uma das principais lideranças do mídia, eu não vou oprimir a vonta- lançado recentemente, foram livros,
hip-hop nacional e considerado a voz de deles. Sou a favor da liberdade.7 coletâneas, revistas, Selo Povo, projetos
da periferia pobre de São Paulo. Líder culturais sempre voltados para o público
e vocalista do Racionais MC’s , Brown, A mesma liberdade que usa para das periferias e usando sua linguagem.
Ice Blue, Edy Rock e o DJ KL Jay trans- dispensar a maior parte dos pedidos de A respeito dessas características, a an-
formaram-se numa expressão das ideias entrevista. Entretanto, pode-se dizer tropóloga Érica Peçanha (2006), em
sobre consciência negra, ocupando uma que é exatamente essa recusa em esta- seu trabalho sobre Literatura Marginal,
posição ímpar e obtendo projeção na- belecer uma relação com a mídia que o explica que “essas particularidades re-
cional distante da grande mídia. torna uma figura midiática porque ren- sultam em uma produção literária en-
Em 1997 ultrapassaram a marca de audiência mesmo que não compareça gajada que visa, ao mesmo tempo, dar
de um milhão de cópias do álbum So- ou não dê entrevista. Anunciar, por si voz ao grupo social do qual se originam
brevivendo no Inferno, lançado por uma só, a presença de Brown já gera expec- os autores e enaltecer o seu modo de
gravadora independente, à revelia da tativa. Este foi o recurso usado na cha- vida e a sua comunidade”.9 Foi com es-
grande mídia, sem uma grande rede de mada do programa Roda Viva de 24 de sas características que Ferréz chegou ao
distribuição e pelo qual ganharam vários setembro de 2007: “Uma aparição rara grande circuito editorial e, embora sua
prêmios. Embora hoje em dia faça suces- na tv, Mano Brown está hoje no centro prioridade seja alcançar o público que
so também entre a classe média, o rapper do Roda Viva”. inspirou seus livros, hoje ele consegue
diz que seu verdadeiro público está na Recuperar a voz e a dignidade atingir também outras classes sociais.
periferia. Desde 1992, Mano Brown e da periferia por meio da promoção e
os Racionais desenvolvem trabalhos nas do fortalecimento do pensamento críti- Visibilidade, resultados e impasses
comunidades, realizando palestras sobre co de seus habitantes também tem sido
violência e racismo, entre outros temas. preocupação de Ferréz, outra referência A partir de diferentes formas
Considerado pelos hip-hoppers o mais ra- para os jovens da zona sul de São Paulo. de atuação e divergindo em vários mo-
dical dos rappers, na periferia ele é visto Ligado ao hip-hop, Ferréz já participou mentos, MV Bill, Mano Brown e Ferréz
como líder e fora dela é visto como ar- de vários grupos de rap, mas sua proje- mostram antes de tudo que não se deve
rogante e portador de um preconceito ção se tem dado a partir da literatura, esperar uma homogeneidade dentro do
às avessas. Brown raramente concede onde se tornou um dos mais respeitados hip-hop. Entretanto, isso não impediu que
entrevistas e sua justificativa sempre autores da nova geração de escritores da eles se tornassem exemplos dos novos ti-
consistiu em dizer que o mais importan- chamada literatura marginal. pos de liderança. Lideranças com projeção
te era o trabalho que desenvolvia no dia Mais do que abordar os proble- midiática que têm conseguido dar voz às
a dia dentro das comunidades. mas da periferia, seu objetivo é desen- favelas e periferias. A visibilidade e os re-
Brown já fez críticas contunden- volver as potencialidades existentes ali, sultados que obtêm a partir do trabalho
tes àqueles que, segundo ele, achavam de forma a garantir a autossuficiência que realizam têm sido significativos, prin-
que “a gente só vai vencer se tiver tudo da comunidade. A proposta é chegar a cipalmente para uma parcela expressiva
misturado e unido”6 e apareciam em lugares em que a grande mídia não che- de jovens moradores de periferia.
programas de auditório ou em revistas ga. Conforme ele mesmo disse: “nosso Ao elaborarem seu próprio dis-
de celebridades. Porém se, para ele, tipo de cultura a gente está disseminan- curso evidenciam o grau de autonomia
manter-se na periferia continua sendo do, da nossa forma. Vai pra uma escola conquistado pelas classes subalternas,
a escolha mais óbvia, hoje ele procura municipal, vai pra uma palestra menor, deixando a posição de objeto para se
não tomar para si a responsabilidade de vai preenchendo lacunas onde o sistema tornarem sujeitos de sua própria fala,
determinar o que outros irão fazer. não alcança”.8 propondo visão e versão alternativas
Ferréz defende que a periferia àquelas produzidas pelos setores hege-
Somos jovens cheios de vontade de fale por si, buscando todos os espaços mônicos. Por isso, caberia enxergá-los a
vencer e, às vezes, somos arrogan- disponíveis e usando sua própria lingua- partir do conceito de “intelectuais orgâni-
tes. Quando a mídia abriu as pernas gem, sem a mediação de algum inte- FRVµWUDWDGRVSRU*UDPVFLðDTXHOHVTXH
e disse “vem”, a gente falou “não”. lectual. Da notoriedade em 2000 com gerados por sua própria classe social,
CULTURA  CRÍTICA  14        85

conseguiriam exercer a função de lide-


Notas
rança moral e intelectual em prol da co-
esão e do fortalecimento da consciência ϭ͘ŽŶƐŝĚĞƌĂĚŽĂŵĂŝŽƌŽƌŐĂŶŝnjĂĕĆŽĚĞŚŝƉͲŚŽƉĚŽƌĂƐŝů͕ŽDŽǀŝŵĞŶƚŽ,ŝƉͲŚŽƉ
dessa classe. KƌŐĂŶŝnjĂĚŽĚŽƌĂƐŝůоD,ϮKоĂƚƵĂĞŵϭϰĞƐƚĂĚŽƐ͘ŵϭϵϵϴĨŽŝĐƌŝĂĚĂĂKE'
Por isso a importância de desta- D,ϮK͕ƋƵĞƉĂƐƐŽƵĂĂƚƵĂƌŶŽĐĂŵƉŽŝŶƐƟƚƵĐŝŽŶĂů͕ƚŽƌŶĂŶĚŽͲƐĞƵŵĂĚĂƐŵĂŝŽƌĞƐ
car a atuação de MV Bill, Mano Brown KE'ƐĚĞũƵǀĞŶƚƵĚĞĚŽƌĂƐŝů͘ƚƵĂůŵĞŶƚĞŽD,ϮKĚĞƐĞŶǀŽůǀĞƉƌŽũĞƚŽƐĞƉƌŽŐƌĂ-­‐
e Ferréz, que a partir de diferentes for- ŵĂƐĞŵůŝŶŚĂƐĐŽŵŽƵůƚƵƌĂĞĚƵĐĂĕĆŽ͕ĐŽŶŽŵŝĂ^ŽĐŝĂůĞŽŵďĂƚĞăsŝŽůġŶĐŝĂ͘
mas de atuação se tornaram referências Ϯ͘ŵĞŶƚƌĞǀŝƐƚĂƌĞĂůŝnjĂĚĂŶŽƉƌŽŐƌĂŵĂZŽĚĂsŝǀĂĞŵϮϰĂďƌ͘ϮϬϬϱ͘
dentro do hip-hop. Divergem em vários ϯ͘WŽůşƟĐĂƐƉƷďůŝĐĂƐăũƵǀĞŶƚƵĚĞ͘ƐƚĕĆŽ,ŝƉͲŚŽƉ͘^ĆŽWĂƵůŽ͕ŶŽϯ͕ŶΣϯϬ͕Ɖ͘ϭϬĞϭϭ͘
momentos, em muitas de suas opiniões, ϰ͘ůĞdžĂŶĚƌĞ^ĂŶĐŚĞƐ͘KƌĂƉĞůĞǀĂŽƐŽŵ͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬƉĞĚƌŽĂůĞdžĂŶ-­‐
mas, têm seus trabalhos voltados para ĚƌĞƐĂŶĐŚĞƐ͘ďůŽŐƐƉŽƚ͘ĐŽŵͬϮϬϬϲͬϬϲͬŽͲƌĂƉͲĞůĞǀĂͲŽͲƚŽŵ͘Śƚŵůх͘ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϭϱŽƵƚ͘
suas comunidades, para a promoção de ϮϬϭϭ͘
ϱ͘ŵĞŶƚƌĞǀŝƐƚĂƌĞĂůŝnjĂĚĂŶŽƉƌŽŐƌĂŵĂZŽĚĂsŝǀĂĞŵϮϱĂďƌ͘ϮϬϬϱ͘
novas possibilidades aos jovens que ali
ϲ͘dĄŶĂŵŽĚĂ͕ĂŐŽƌĂƚŽĚŽŵƵŶĚŽƋƵĞƌƐĞƌŶĞŐƌŽ͘ƐƚĕĆŽ,ŝƉͲŚŽƉ͘ŶŽϱ͕ŶΣϮϵ͕Ɖ͘ϳ͘
moram. Se o trabalho ainda é longo, os
ϳ͘ĞŶŝƐĞƌŝƚŽ͕DĂŶŽƌŽǁŶƐĞŵĚƷǀŝĚĂƐ͘&ŽůŚĂƚĞĞŶ͘^ĆŽWĂƵůŽ͕ϮϬŶŽǀ͘ϮϬϬϲ͘Ɖ͘ϲ͘
resultados já são visíveis. ϴ͘ŶƚƌĞǀŝƐƚĂĚĂĚĂăĂƵƚŽƌĂĞŵϮϯƐĞƚ͘ϮϬϬϴ͘
Seja pela exposição mais midi- ϵ͘ƌŝĐĂWĞĕĂŶŚĂ͘>ŝƚĞƌĂƚƵƌĂDĂƌŐŝŶĂů͗ŽƐĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐĚĂƉĞƌŝĨĞƌŝĂĞŵĐĞŶĂ͘
ática de MV Bill, para quem a “pobreza ϭϬ͘Ds/>>͕KŚŝƉͲŚŽƉĠƵŵŝŶƐƚƌƵŵĞŶƚŽĚĞƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂĕĆŽ͘ZĞǀŝƐƚĂCaros  Ami-­‐
só pode ser resolvida com o auxílio da gos͕^ĆŽWĂƵůŽ͕ũƵŶ͘ϮϬϬϱ͘Ɖ͘ϯϬͲϯϱ͘
riqueza”10, pela postura mais radical de ϭϭ͘DĂŶŽƌŽǁŶ͕dĄŶĂŵŽĚĂ͕ĂŐŽƌĂƚŽĚŽŵƵŶĚŽƋƵĞƌƐĞƌŶĞŐƌŽ͘ƐƚĕĆŽ,ŝƉͲ
Mano Brown, para quem “não tem como ŚŽƉ͘ŶŽϱ͕ŶǑϮϵ͕Ɖ͘ϳ͘
unir um lado que só está usufruindo com
um que está sempre sendo usado”11, ou Referências
pela posição mais flexível de Ferréz em
defender a importância de a periferia Zj:K͕DĂƌŝĂŶŶĂĞKhd/E,K͕ĚƵĂƌĚŽ'ƌĂŶũĂ͘,ŝƉͲŚŽƉ͗ƵŵĂďĂƟĚĂĐŽŶƚƌĂͲ
mostrar sua arte, o objetivo comum dos ŚĞŐĞŵƀŶŝĐĂŶĂƉĞƌŝĨĞƌŝĂĚĂƐŽĐŝĞĚĂĚĞŐůŽďĂů͘/Ŷ͗KZ>>/͕^ŝůǀŝĂ,͘^͖͘&Z/Z
três está relacionado ao fortalecimento e &/>,K͕:ŽĆŽ;ŽƌŐƐ͘Ϳ͘Culturas  juvenis  no  século  XXI.^ĆŽWĂƵůŽ͗h͕ϮϬϬϴ͘Ɖ͘
à conscientização de classe. Não devem ϮϭϭͲϮϮϳ͘
ser vistos a partir de uma expectativa ide- />>͕Ds͘KŚŝƉͲŚŽƉĠƵŵŝŶƐƚƌƵŵĞŶƚŽĚĞƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂĕĆŽ͘ZĞǀŝƐƚĂCaros  Amigos͕
^ĆŽWĂƵůŽ͕ũƵŶ͘ϮϬϬϱ͘Ɖ͘ϯϬͲϯϱ͘
alizada. Ao contrário, Bill, Ferréz e Brown
Z/dK͕ĞŶŝƐĞ͘DĂŶŽƌŽǁŶƐĞŵĚƷǀŝĚĂƐ͘Folha  de  S.Paulo͘&ŽůŚĂƚĞĞŶ͘^ĆŽWĂƵůŽ͕
refletem bem as contradições, polêmi- ϮϬŶŽǀ͘ϮϬϬϲ͘Ɖ͘ϲ͘
cas e dilemas existentes no hip-hop que, ZKtE͕DĂŶŽ͘dĄŶĂŵŽĚĂ͕ĂŐŽƌĂƚŽĚŽŵƵŶĚŽƋƵĞƌƐĞƌŶĞŐƌŽ͘EstAção  Hip-­‐hop͘
mesmo sendo uma expressão cultural de ŶŽϱ͕ŶǑϮϵ͕Ɖ͘ϳ͘
cunho político, comporta uma heteroge- KtE/E'͕:ŽŚŶ͘Mídia  Radical.ZĞďĞůĚŝĂŶĂƐŽŵƵŶŝĐĂĕƁĞƐĞDŽǀŝŵĞŶƚŽƐ^ŽĐŝ-­‐
neidade de interesses. ĂŝƐ͘  ^ĆŽWĂƵůŽ͗^ĞŶĂĐ͕ϮϬϬϮ͘
Nesse caso, é necessário compre- 'ZD^/͕ŶƚŽŶŝŽ͘Cadernos  do  cárcere͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ŝǀŝůŝnjĂĕĆŽƌĂƐŝůĞŝƌĂ͕
ender a própria cultura hip-hop e seus ϮϬϬϭ͘Ϯǀ͘
atores sociais para além das perspectivas ,Z^,DEE͕DŝĐĂĞůĞ'>sK͕dĂƟĂŶĂ͘ůŐƵŵĂƐĐŽŶƐŝĚĞƌĂĕƁĞƐƐŽďƌĞĂĐƵůƚƵƌĂ
maniqueístas, a partir de processos no s ŚŝƉͲŚŽƉŶŽƌĂƐŝůŚŽũĞ͘/Ŷ͗KZ>>/͕^ŝůǀŝĂ,͘^͘Ğ&Z/Z&/>,K͕:ŽĆŽ;ŽƌŐƐ͘Ϳ͘Cul-­‐
quais embates, aparentes contradições e turas  juvenis  no  século  XXI.  ^ĆŽWĂƵůŽ͗ĚƵĐ͕ϮϬϬϴ͘Ɖ͘ϭϵϱͲϮϭϬ͘
conflitos podem ser vistos como parte da ,Z^,DEE͕DŝĐĂĞůĞEd^͕/ǀĂŶĂ͘KĞƐƉĞƚĄĐƵůŽĚŽĐŽŶƚƌĂĚŝƐĐƵƌƐŽ͘Folha  de  
S.Paulo͘ĂĚĞƌŶŽDĂŝƐ͘^ĆŽWĂƵůŽ͕ϭϴĂŐŽ͘ϮϬϬϮ͘
necessidade histórica de negociação e es-
WE,͕ƌŝĐĂ͘>ŝƚĞƌĂƚƵƌĂDĂƌŐŝŶĂů͗ŽƐĞƐĐƌŝƚŽƌĞƐĚĂƉĞƌŝĨĞƌŝĂĞŵĐĞŶĂ͘^ĆŽWĂƵ-­‐
tratégias de aquisição de poder. cc ůŽ͗ĚŝĕƁĞƐdŽƌſ͕  ϮϭĚĞŵĂƌĕŽĚĞϮϬϬϵ͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬǁǁǁ͘ĞĚŝĐŽĞƐƚŽƌŽ͘
Tatiana  Galvão  é  pós-graduada  (lato   ŶĞƚͬƉĞƐƋƵŝƐĂƐͬĞƌŝĐĂͲƉĞĐĂŶŚĂͲĚŽͲŶĂƐĐŝŵĞŶƚŽ͘Śƚŵůх͘ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϭϱŽƵƚ͘ϮϬϭϭ͘
sensu)  em  Jornalismo  e  Crítica  Cul- ^>>^͕ĐŝŽ͘Poesia  revoltada.ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ĞƌŽƉůĂŶŽ͕ϮϬϬϴ͘
tural   pela   UFPE   e   Mestre   em   Co- ^E,^͕ůĞdžĂŶĚƌĞ͘KƌĂƉĞůĞǀĂŽƐŽŵ͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬƉĞĚƌŽĂůĞdžĂŶĚƌĞ-­‐
municação  e  Cultura  pela  Escola  de   ƐĂŶĐŚĞƐ͘ďůŽŐƐƉŽƚ͘ĐŽŵͬϮϬϬϲͬϬϲͬŽͲƌĂƉͲĞůĞǀĂͲŽͲƚŽŵ͘Śƚŵůх͘ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϭϱŽƵƚ͘
Comunicação  da  UFRJ. ϮϬϭϭ͘
tati.galvao@globo.com
86      CULTURA  CRÍTICA  14

Foto:  Davi  Francisco  da  Silva  


Hip-hop, multiculturalismo e ideal do
branqueamento: um estudo do tipo etnográfico1
WILLIAM  DE  GOES  RIBEIRO

O multiculturalismo pode ser


entendido como um corpo
teórico, prático e político re-
vestido de sentidos que desafiam discri-
minações ancoradas em preconceitos.
movidos pelo desejo destrutivo em que
partem olhares estanques para a cútis,
gênero, sexualidade e demais marcado-
res identitários. Nessa perspectiva, alme-
ja desafiar a hierarquização da diferença,
No entanto, não raro, a humani-
dade insiste na intolerância e na manu-
tenção de privilégios para determinados
grupos. Por isso, a educação é uma das
principais instâncias em que a proble-
Dialogando com seres humanos que por compreendendo a vida humana em um matização de tal ordem é um impera-
um motivo, ou vários, sentem as dores projeto social mais amplo do que a uni- tivo. Nesse sentido, ainda que verda-
de uma história dinâmica e socialmente versalização de particularismos enlaçados des tidas como absolutas sejam alvo de
construída, rompe com pensamentos pelos seus próprios grupos de pertença. questionamentos, cabe reiterar algumas
CULTURA  CRÍTICA  14        87

tensões que envolvem o campo educa- ção foi entender a possibilidade, ou não, texto desse movimento cultural ofereceu
cional: que conhecimentos, entre tantas da desconstrução do ideal do branque- pistas para delinear uma aproximação:
opções que informam múltiplas cultu- amento, independentemente da identi- onde e como surgiu o hip-hop? Faz senti-
ras, selecionar? O que propor em meio ficação étnica dos sujeitos. Os/as parti- do falarmos sobre hip-hop e escola? Por
a uma sociedade tão problemática? cipantes tiveram contato com discursos quê? Não seria uma prática machista
Indagações como essas emergem presentes em letras de rap nacional, fil- que iria de encontro com o multicul-
em diversos debates, envolvendo uma mes temáticos e com as diversas lingua- turalismo proposto? Como ele pode
demanda sobre identidade, compondo, gens (desenho, dança de rua, eventos, ser entendido em meio às questões que
sobretudo, uma discussão contemporânea etc.) do movimento cultural em ques- buscam problematizar os conhecimen-
de que fazem parte discursos educacionais, tão, dentro da escola. Será uma prática tos e práticas educativas nas instituições
de maneira ampla e, em especial, “teorias” multicultural? escolares? Em que medida se configura
curriculares. Nesse horizonte de preo- Para responder, mesmo que pro- em termos de categoria de análise nas
cupações, o propósito da pesquisa, a que visoriamente, buscamos a realização do produções teóricas contemporâneas?
se vincula o presente trabalho, foi buscar seguinte: em um primeiro momento, Desde quando emergiu nos Esta-
entendimento de um problema atual da houve um levantamento sobre refe- dos Unidos, na década de 1970, o hip-hop
sociedade brasileira: o ideal do branque- rências em que propostas dessa ordem expandiu-se para o mundo, atingindo os
amento. Segundo Silva Júnior e Vasconce- foram pensadas, ao passo que esboça- interesses, principalmente, da juventu-
los (2005) entende-se como um “conceito mos traduzir para um currículo prá- de urbana, negra e periférica (Hersch-
antropológico que afirma existir em nossa ticas pedagógicas multiculturalmente mann, 2000). Nesse sentido, pode ser
sociedade uma tendência a tomarmos a comprometidas, através de um projeto entendido como resultado da diáspo-
cultura e as características brancas (cau- realizado em conjunto com membros ra africana e das condições de vida de
casoides) como padrão de excelência” (p. do movimento hip-hop de São Gonçalo uma raça oprimida. Defende, embora
89). Assim sendo, uma preocupação mul- (Chape). A partir disso, o passo poste- em crescente hibridização, a resistência
ticultural, já que o quadro teórico a que rior foi realizar, ao longo de um ano, à opressão, proporcionando caminhos
nos referimos (Bhabha, 1998; McLaren, um estudo de caso de cunho etnográfi- que visam à conscientização de direitos
2000; Canen, 2007) procura romper com co (Lüdke e André, 1986) (observação e oportunidades: social, econômica e
hierarquizações culturais. participante, entrevista e análise docu- cultural. Entretanto, não há (nem pode-
Pensamos, destarte, numa proposta mental). Para o trabalho de pesquisa, mos afirmar se houve) um movimento
pedagógica em que fossem traduzidas essas a partir do referencial teórico, fizemos cultural puro em sua essência (Lodi,
questões para o currículo, acompanhando uso dos conceitos de hibridização (Bha- 2005; Ribeiro, 2008a, 2008b, 2009).
uma experiência formal de ensino, entre- bha, 1998; McLaren, 2000) e ideal do Nesse contexto, hoje, quantas
cruzada com um movimento cultural que branqueamento (Souza, 1983; Silva Jú- pessoas conseguem ver o hip-hop para
já traz em seu bojo esse desafio: o hip-hop. nior e Vasconcelos, 2005) como cerne além dos carros luxuosos, jóias e eroti-
Nesse contexto, estamos cônscios de que nessa proposta. zação presentes nas letras e nos clipes de
contamos com um número muito reduzido Para fins de estruturação do tra- rap norte-americano? Quantos conse-
de trabalhos multiculturalmente compro- balho, iniciamos uma discussão teórica a guem compreendê-lo por trás das rou-
metidos (Moreira, 2001; Canen, Arbache partir de uma abordagem hip-hop com pas, bonés, e demais símbolos culturais
e Franco, 2001; Gonçalves e Silva, 2006; a qual tecemos o estudo, numa perspec- construídos? Essas questões são desdo-
Xavier, 2008), o que reforça uma vigilân- tiva multicultural. Posteriormente, te- bramentos dos objetivos específicos da
cia ética, já que, no âmbito das intenções, o cemos reflexões acerca da prática peda- presente pesquisa de caráter multicultu-
trabalho estaria envolvido com o multicul- gógica observada. Ao final, salientamos ral: analisar o que é hip-hop para além
turalismo. Nossas análises estiveram centra- considerações e recomendações. de visões reducionistas de uma mídia
das em um projeto escolar denominado “A reprodutora de preconceitos e discrimi-
Cultura Hip-Hop em Ação Pedagógica na Rede de significação nações. Justifica-se pensar essa proble-
Escola” (Chape). em constante devir matização pelo fato de esse movimento
Trazemos à baila três categorias Longe de buscar a definição de se manter resistente às narrativas domi-
principais: identidade negra, ideal do hip-hop, procuramos destacar momen- nantes, podendo nos oferecer um terre-
branqueamento e hip-hop. A preocupa- tos discursivos em que o próprio con- no fértil ao campo educacional através
88      CULTURA  CRÍTICA  14

do diálogo com os movimentos sociais se “preto” e “violento”). Tratar-se-ia de de workshops, pode despertar os
(Moreira, 2001; Assis e Canen, 2004). uma condição juvenil em respeito ao re- alunos para as diferentes culturas
Dayrell (2002, 2003), portanto, conhecimento e à valorização da diver- musicais. Além disso, para aqueles
contribui para a trajetória analítica tra- sidade cultural, embora em constante que estão mais familiarizados como
çada neste estudo, quando nos ajuda a interação e híbrida, produzindo atores o hip-hop, oferece a oportunidade
(re)pensar a condição juvenil, em que sociais ao passo que vive, no presente, de vivenciá-la também no espaço
escolar. Isso faz com que haja uma
toma o rap e o funk como objeto, para suas identidades.
integração entre dois mundos: o da
longe das amálgamas preconceituosas É justamente o que Souza, Fialho escola e o do cotidiano extra-esco-
que atribuem ao jovem das camadas e Araldi (2005) se propõem a discutir, lar. (p. 116)
populares o estigma de violento, linear- aproximando-nos, especificamente, de
mente atrelado à condição da pobreza. algumas tensões. As autoras sugerem O estudo de caso: caminhos
O estudo articula-se à reflexão atual, o hip-hop como uma proposta para o metodológicos
pois tem a visão do jovem pobre brasi- trabalho em sala de aula. Desse modo,
leiro, não raro, de cor, como sujeito que trazem o diálogo com grupos do movi- Tendo como base a trajetória
busca atuação, contrapondo os reducio- mento hip-hop (Rio Grande do Sul), e teórica exposta, havia o interesse em
nismos e taxativos conceitos essencialis- neles se percebe o compromisso enga- identificar a compreensão por par-
tas (o pobre nasceu para o que é, diga- jado com as questões políticas, sociais te dos sujeitos da construção cultural
e culturais, assim como o trânsito das do branqueamento, a partir de uma
identidades, conforme depoimento de postura que reconhecemos como pós-
MC Bronx: colonial (Bhabha, 1998; Canen, 2007).
Esse aspecto levou-nos a um estudo de
O hip-hop me mostrou uma coisa caso de cunho etnográfico, pois pen-
boa: que ele tinha um objetivo. Qual samos em cruzar os dados observados
seria o objetivo? Tu podes trabalhar ao longo do projeto com entrevistas
com tua comunidade. A gente tá fa- e documentos oriundos da proposta
zendo um trabalho cultural em cima mencionada. Destarte, a observação
disso, e a gente tá correndo atrás sistemática de uma prática pedagó-
também pra ver se a gente coloca gica (hip-hop na escola) tornou--se o
oficinas dentro das escolas, tanto de núcleo da análise. Cabe ilustrar que se
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ

hip-hop, como de capoeira. A gente trata de uma aproximação intencional,


quer englobar mais, a gente quer
sugerida por autores do campo educa-
fazer mais grupos. E até mesmo en-
sinar à criançada também a questão cional e por pesquisadores das mais di-
política porque a gente quer colocar versas áreas do conhecimento (Andra-
a parte da política negra e consciên- de, 1999; Souza, Fialho e Araldi, 2005;
cia negra. (p. 10) (sic) Ribeiro, 2008a, 2008b).
Na presente pesquisa, o foco
As autoras trazem, em seus estava numa prática pedagógica já
construtos, a base de um pensamento envolvida por uma abordagem mul-
que vê aproximações entre os saberes ticultural crítica pós-colonial (ressal-
escolares, bem como a dinâmica cultu- ta-se no plano da intencionalidade),
ral por ela produzida, e os saberes não-- cabendo destacar, como aspecto im-
-formais, carregados de significação de portante, que o estudo ocorreu em
mundo. Há, para elas, possibilidades de uma escola em que o pesquisador atua
trabalho que seja significativo aos alu- como professor de Educação Física.
QRVðFRQWH[WXDOL]DGRHHVWLPXODQWHDR Essa informação caracteriza não uma
pensar crítico: pesquisa-ação, mas o envolvimento de
Trabalhar com o hip-hop na es- alguma intencionalidade, na medida
cola, seja por meio de oficinas ou em que assumo o olhar para o ideal do
CULTURA  CRÍTICA  14        89
Foto:  Davi  Francisco  da  Silva  

branqueamento como algo indesejável negra: “seu cabelo é duro”; “pelo menos escola. Não houve critério de inclusão
dentro de uma concepção de mundo sou branco”; “seu nariz é feio”, inaceitá- bem definido, exceto: estar matricula-
multicultural. veis do ponto de vista multicultural que do no turno da manhã ou da noite; ter
Levando em consideração o an- defendemos. disponibilidade de horário; ter vontade
teriormente assinalado, estou cônscio Após esse horizonte de preocu- de participar; limite no número de ins-
das limitações, pois a subjetividade do pações, somado à ideia de construção critos (20).3 Todos faziam parte do en-
pesquisador foi alvo contínuo de refle- de um estudo, o projeto escolar foi sino médio (sem critério de seriação),
xão e de uma vigilância epistemológica. elaborado no final de 2006, juntamen- com idade que variava entre 15 e 21
Entretanto, cabe lembrar que, por outro te com um integrante de um grupo de anos de idade. As aulas ocorreram no
lado, as experiências anteriores como hip-hop de São Gonçalo, com fins de turno da tarde, motivo pelo qual os(as)
docente resultaram no problema do comprometimento com uma perspecti- alunos(as) desse turno não puderam fa-
atual estudo, não um pressuposto. Sa- va multicultural.2 A versão utilizada nas zer parte. Essa opção deu-se pela maior
liento o desafio de assumir papéis como presentes análises foi submetida à apre- procura em atividades semelhantes em
o de professor e pesquisador, porém ciação da direção da escola. Após isso, anos anteriores. A duração de cada aula
vejo isso como algo que possui a quali- iniciamos as inscrições dos estudantes, foi em torno de três horas, duas vezes
dade de pensarmos numa abertura para que desde o início tinham a informação na semana, ao longo de dois semestres
outras produções de conhecimentos que do duplo papel desse projeto: prática letivos. Metade das aulas ministradas
contribuam para a educação. Compete pedagógica e pesquisa. pelo autor e a outra pelo hip-hopper co-
dizer que o aspecto que me levou a pes- Assim como ocorreu em proje- nhecido como Pluto.4 Compuseram o
quisar o tema diz respeito ao estranha- tos realizados anteriormente, os interes- planejamento das atividades: cronogra-
mento com agressões simbólicas entre sados ficaram sabendo das aulas a partir ma, estratégias pedagógicas e discussões
os/as estudantes, atingindo a identidade de cartazes informativos nos murais da teóricas sugeridas por ambos.
90      CULTURA  CRÍTICA  14

A população discente investigada destaque: alguns alunos e alunas passa- com aquelas músicas, já que sabidamen-
era composta de moradores pertencen- ram a usar roupas largas, característica te não o teriam até então (ouviam rap e
tes, em sua maioria, a favelas e morros da vestimenta hip-hop. Adriana5 passou músicas americanas).
da região, como o Morro do Feijão, a usar uma corrente como acessório. “... gosto de hip-hop. Amo mi-
próximo da escola. Confrontamos as Houve em Wilson uma grande mudan- nha mãe e minha família. Sou amiga,
observações das aulas com a análise de ça: deixou o cabelo crescer e passou a sincera e também bastante tímida”, diz
documentos (planejamento, músicas usar óculos escuros. Mas, contraditoria- Adriana. Enquanto Daniele: “negra,
utilizadas e sugeridas pelos participan- mente, usou lentes de contato azul. In- acima do peso, cabelos pretos, olhos
tes, endereços eletrônicos) e entrevis- grid e Cláudia mantiveram seus cabelos castanhos claros, 1,63 m”. A resposta à
tas, garantindo a triangulação dos dados alisados. Quando assistíamos ao filme questão “Quem sou?” revelou a presença
a fim de conjeturar maior poder narra- Malcolm X6, que retratava a tensão (ne- de identidades híbridas. Nessa direção,
tivo (Alves Mazzotti e Gewandsznadjer, gro de cabelo alisado/ideal do branque- Wilson demonstra uma mudança em
1998). amento), elas se incomodaram e disse- relação às suas atitudes e revela a cons-
Incumbe salientar, a inversão ram que com cabelos alisados se sentem trução discursiva da identidade:
GHSDSpLVHQWUHYLVWDGRUðHQWUHYLVWDGR PDLVERQLWDVðRTXHIRLUHVSHLWDGR
quando oportunizei, ao final de cada No decorrer do projeto, todos (...)Eu adoro ouvir música que
bloco de perguntas, um espaço para realizaram um autorretrato, além de de- tenha letra e conteúdo enquanto
o entrevistado questionar o que fosse cidirem o nome do grupo. Foi distribu- desenho. Me amarro em hip-hop e
de sua vontade, se assim o desejasse, o ído, a cada aluno(a), um cartão, no qual em toda a sua história. Eu conquis-
que caracteriza uma entrevista semi-- escreveram informações sobre si e sobre to muita amizade por ser sincero,
também já perdi. Mas, fazer o quê?
-estruturada de profundidade (Minayo, um dos colegas presentes. Ficou com-
A vida é assim. Porque deixei
2007). Reconheço esse caminho como binado que as informações pessoais não de ser branco para ser franco.
um potencial de pesquisa, já que um dos seriam lidas em público. Nesse dia, cada (grifo nosso)
limites da entrevista está na ocultação um recebeu um CD com várias músicas
de dados e na possibilidade de os entre- de rap nacionais. O objetivo era que ou- Sua fala está de acordo com os
vistados dizerem o que desejamos ouvir. vissem e depois dissessem o que acha- depoimentos analisados por Assis e Ca-
ram; o intuito era que tivessem contato nen (2004), em que salientam a cons-
O projeto: multiculturalmente trução da identidade negra para além
comprometido? do fenótipo e na hibridização. Dessa
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ

forma, a preocupação do projeto Chape


De que formas as discussões an- foi ao encontro de muitos autores (Assis
tirracistas foram conduzidas? Que tipo e Canen, 2004; Canen, 2007; Oliveira,
de comportamento foi possível perce- 2006), quando enfatizam a necessidade
ber ao longo do estudo? Em que medida de iniciativas como essa irem além do
os interesses dos/as estudantes foram folclórico, dando visibilidade às ques-
articulados às questões que traz o hip- tões raciais, não as tratando como algo
-hop? Até que ponto o trabalho na es- “natural”.
cola foi além da exaltação do folclórico? Com relação aos nomes sugeri-
Como perceberam sua própria identi- dos para o grupo, surgiu a ideia de RAIZ
dade ao longo do projeto? Foi possível – sigla cujas palavras ainda seriam cria-
perceber a desconstrução do ideal do das no coletivo. A opção foi bem-aceita
branqueamento? Tais questionamentos por todos, mas faltavam as palavras,
conduziram a respostas, no decorrer do posteriormente definidas como: Raça,
estudo, emergindo potenciais e desafios Amor, Integração e Zumbi. Essa defini-
que procuravam traduzir o multicultu- ção se deu através da decisão coletiva.
ralismo para o currículo escolar. Em momento seguinte, Sandra
Ao longo do projeto, vestimen- disse: “o objetivo do grupo estava indo
tas, acessórios e atitudes mereceram além. Percebo um avanço em relação
CULTURA  CRÍTICA  14        91
Foto:  Davi  Francisco  da  Silva  

que a aluna pratica balé e queixa-se dos


preconceitos que sofre no ambiente do
qual luta para fazer parte.
Alunos e alunas assinalaram o
hip-hop com um potencial de explicitar
as diferenças. Entretanto, dificilmente
foi possível perceber as diferenças como
construção sociocultural. Outro pon-
to percebido foi que essa aproximação
possibilitou visibilidade para a beleza
aos anos anteriores”. O grupo sugeriu inferir que não bastava só ouvir as músi- negra. Ingrid, por exemplo, afirma que
que o tema da coreografia envolvesse o cas nacionais para “automaticamente” se o hip-hop a “ajudou a mudar para me-
negro e a violência. Quiseram também, identificarem com elas. Argumentamos, lhor. Eu chegava no lugar: será que as
por decisão própria, usar música nacio- com esses dados, que havia um processo pessoas iriam me aceitar por ser negra?
nal. Essa decisão corrobora a anterior de identificação em andamento. As artistas são formosas”. Percebe-se
e nos aponta uma direção favorável: o Daniele preocupava-se com a a intencionalidade da erotização e o
grupo estava preocupado com o que os questão feminina. Não fora a primeira folclórico nessa afirmação, em que se
debates ofereciam. vez que se preocupava com a mulher desvia de uma perspectiva mais crítica
Entendemos que alunos e alunas nessas questões de raça, desigualdade, para uma exaltação/erotização do cor-
queriam denunciar a discriminação ra- etc. Isso parecia preocupá-la, constan- po negro, sobretudo por influência do
cial enfrentada por eles, o que está de temente. De fato, revela-se importante mercado. Porém, e de forma positiva,
acordo com toda uma discussão con- estarmos atentos às diferenças nas di- entendemos essa afirmação como um
temporânea étnico-racial: Silva Filho ferenças (Canen, 2007). Nessa mesma enfrentamento ao ideal do branquea-
(2006) chama-nos a atenção para a ne- direção, Pedro pediu para Pluto fazer mento que, a propósito, é percebido em
cessidade de desconstruirmos os discur- uma camisa grafitada: metade desenha- Ingrid. Ou seja, a visibilidade do belo
sos sobre o negro na história do Brasil, da com a bandeira do Brasil e a outra não é um problema, se juntamente se
pois existe uma história que não é con- metade a bandeira de Israel. O fato diz problematiza outras questões, tais como
tada, não é discutida nem é ensinada. respeito à religião, pois é evangélico. Dis- a erotização exacerbada do corpo, dei-
Em vez de aprendermos sobre as lutas se que tinha identificação com o hip-hop xando de fora o inteligível, o criativo e o
dos negros em busca de sua liberdade, gospel. Mais um momento a hibridiza- crítico, assim como a construção social
de vermos o negro como resistente à ção na construção das identidades se fez da categoria negro/negra, tendendo a
opressão, “aprendemos” através da es- presente (Assis e Canen, 2004). reforçar preconceitos, tais como “o ne-
cola e das telenovelas a ver um negro Com relação às entrevistas, o gro é bom de bola”, etc. Entendi que há
submisso ao escravismo. maior interesse estava no segundo blo- uma problematização quando se apro-
O fato de se interessarem por co, concernente à identidade negra. Po- ximam, e se identificam, com as letras
música nacional nos traz a informação rém, o objetivo era buscar e perceber, do rap nacional. Logo, junto a Moreira
de que é possível construir um trabalho também, outras identidades, como a vi- (2001) e Canen (2007), ressaltamos a
no qual a música transmita uma men- são do não-negro sobre o branqueamen- necessidade de irmos além da folclori-
sagem positiva. Para isso, é necessário to. Nesse sentido, Adriana é a única que zação da cultura.
que se construam sentidos. Usar rap na- se considera branca, Cláudio se conside- Nesse bloco de perguntas, Adriana
cional não seria possível sem um passo ra pardo e os demais, negras e negros. diz que não é possível julgar pelas aparên-
anterior, pois a influência da indústria Destaca-se a fala de João, pois revela cias. O que está por trás desse discurso?
cultural é grande – o produto mais ven- a complexidade e ao mesmo tempo a Que aparências? Lembro que se manifes-
dido é o hip-hop americano. A indústria construção narrativa do que “somos”: tou como a única aluna branca do projeto.
cultural apropria-se dos produtos cultu- “negro. Na certidão, pardo”. No entan- Entendo que a aluna confronta-se com o
rais e os devolve como produtos para o to, Wilson: “negro. Gosto do jeito que racismo cultural e socialmente construí-
consumo, à sua maneira. Esse esquema sou” e Camila: “negra. Eu tinha precon- do. Os seus discursos são ambíguos e até
é muito eficiente, o que nos conduz a ceito com meu cabelo (...)”. Ressalto mesmo contraditórios.
92      CULTURA  CRÍTICA  14

Já Camila, dançarina de rua e sos tempos, assim como os abusos éti- trazem a necessidade de pensarmos
bailarina, também demonstra ambigui- cos por parte de alguns pesquisadores. não só a identidade negra, mas a visão
dade: “ajudou. No hip-hop tem tanto Cabe destacar ainda nas falas que o não-negro tem sobre o negro.
preconceito quanto no balé. Mas, há dos entrevistados: “...Quando Pluto, Desse modo, em que medida
diferenças. O preconceito é mais forte nas oficinas, falou sobre a História dos aproximar-se do hip-hop, dentro da es-
no balé. Maior. O negro tem um biotipo quilombolas, passei a ver a Educação cola, poderia contribuir na construção
que não pede no balé: magro, alto, sem Física diferente. Era um saco. Só fa- de identidades, da mesma maneira que
quadril, sem bunda” (sic). Percebe-se zer esporte para ganhar e pronto. O a identidade racial positiva, ao enfren-
que, nesse caso, não foi possível desna- método de ensino foi diferente. Bem tamento do ideal do branqueamento?
turalizar as diferenças a partir dos “bio- melhor” (sic) (João). E, ainda: “Apren- Argumentamos, através dos dados, a
tipos”. Não foi possível questionar, como di na escola tudo o que todo mundo partir do quadro teórico, como resposta
construção social, o fato de o negro não aprende. Aprendi o outro lado da his- provisória à questão, que esse enfrenta-
possuir o “biotipo” do balé, ainda que ela, tória. Qual dos dois lados está certo? mento se dá através de um processo de
por algum motivo, ou vários, lute por Falta um pedaço no outro, se com- transformação possível que pode tomá-
permanecer em um espaço que perce- plementam. Tem que ser obrigatório: lo (o hip-hop) como um dos instrumen-
beu como hostil. aprender as culturas, histórias...”. tos suscitadores.
Do mesmo modo que assinala Interessante perceber, nesse Todavia, ressalto que esse pro-
Moita Lopes (2002), é necessário des- caso, que o aluno fala de culturas, uma cesso não ocorre com todas as pessoas
naturalizar questões como essas, des- percepção que já aponta um caminho da mesma forma, no mesmo tempo, sob
construindo as bases para preconceitos pós-colonial (Bhabha, 1998; Hall, as mesmas circunstâncias, assim como
a partir de novas bases. Permitir-se-ia, 2003; Canen, 2007). É possível inferir o até então compreendido não revela,
portanto, olhar para o balé como algo que o aluno atinge diferentes histórias na maioria dos casos, a desconstrução
inventado e construído por uma elite como resultado de uma construção do preconceito em suas bases (Moita
econômica branca e racista que signi- social e na necessidade do diálogo in- Lopes, 2002). A “diferença” é percebi-
fica “o clássico” como parte da suposta tercultural. Existiria, segundo ele, e da, em quase todos os momentos, não
alta cultura etnocêntrica. Nessas bases, diria segundo os pós-coloniais, mais como espaço de enunciação, mas como
compreendemos como núcleo o mul- de uma história, discursivas, e não a algo que fixa o lugar de cada um. Não
ticulturalismo pós-colonial (Bhabha, “História”. foi possível identificar, com exceção de
1998; McLaren, 2000). Com relação à estrutura fami- um aluno, a desnaturalização dos pre-
Houve somente uma pergunta liar, o revelado por Adriana aponta conceitos. No entanto, o estudo revela
destinada ao pesquisador nesse bloco. desafios: “A família não gosta e não progressos quando a condição social do
Percebe-se como falar de preconceito aceita. Acha que é coisa de favelado: negro ou negra na sociedade é questio-
configura-se como um preconceito a palavrão, etc. Parece coisa de bandi- nada, revelando a necessidade de conti-
ser superado. A exceção foi Daniele, do”. Outra fala sua evidencia como nuidade do projeto e de uma maior liga-
ao perguntar: “Por você ser branco, deve ter sido o enfrentamento den- ção com todas as disciplinas escolares,
por que uma cultura afrodescenden- tro da família, ao passo que se envol- destarte com o projeto político-pedagó-
te te chamou a atenção?” E respondi: via com o projeto: “Sim. Eu era meio gico da escola e com a própria família
“Porque raça é uma construção social, racista. Aquele é negro, não deve ser dos envolvidos.
não biológica. Não é pela cor da pele companhia. Agora não. Me dou super-
Conclusões
e por traços de nosso fenótipo que nos bem”.
definimos”. Percebo, hoje, que fui ob- O que vimos nesse caso rati- Procurei, nesse trabalho de pes-
jetivo e que poderia ter aprofundado fica o quanto é importante pensar- quisa, encontrar respostas, mesmo que
mais essa resposta; talvez não estives- mos num sentido multiculturalmente provisórias, a questões que se referem
se preparado para ela, o que reforça orientado. O ambiente assinalado, em às identidades na ambiência escolar.
a utilização da entrevista de profundi- que ela convive e construiu suas bases, Não somente, entender esse processo
dade (Minayo, 2007) como útil à pro- consequentemente, a impedia (ou im- a partir da desconstrução, que julguei
dução de conhecimento, invertendo pede) de se libertar como opressora. necessária, de bases discursivas que na
polaridades tão questionadas em nos- Não obstante, essas questões também dinâmica da prática social, resultariam
CULTURA  CRÍTICA  14        93

em preconceitos, discriminações, este- Notas


reótipos, desigualdades – fato este que,
indubitavelmente, acomete em relações ϭ͘ǀĞƌƐĆŽƉƌĞůŝŵŝŶĂƌĚŽƉƌĞƐĞŶƚĞƚƌĂďĂůŚŽĨŽŝĂƉƌĞƐĞŶƚĂĚĂĞŵŽŵƵŶŝ-­‐
interraciais, reforçando o ideal do bran- ĐĂĕĆŽKƌĂůŶŽ'dϮϭĚĂEWĚ͕ĞŵŽƵƚƵďƌŽĚĞϮϬϭϬ͘ŐƌĂĚĞĕŽĂƐĐŽŶƚƌŝ-­‐
queamento. ďƵŝĕƁĞƐƋƵĞŵĞĨŽƌĂŵƉƌŽƉŽƐƚĂƐŶĂƋƵĞůĂŽĐĂƐŝĆŽ͘
Argumentamos, através de uma Ϯ͘ĂďĞĚŝnjĞƌƋƵĞŽƚƌĂďĂůŚŽĞŵĐŽŶũƵŶƚŽĐŽŵƵŵŝŶƚĞŐƌĂŶƚĞhip-­‐hopperŶĆŽ
experiência específica com o hip-hop, ŐĂƌĂŶƚĞƵŵĂƉƌŽƉŽƐƚĂŵƵůƚŝĐƵůƚƵƌĂůĚĞĂĐŽƌĚŽĐŽŵĂƉĞƌƐƉĞĐƚŝǀĂƉŽƌŶſƐ
que ele se configura, positivamente, ĚĞĨĞŶĚŝĚĂ͕ĐŽŶĨŽƌŵĞŽƌĞĨĞƌŝĚŽƚĞdžƚŽĞdžƉůŝĐŝƚĂ͘ĂŵĞƐŵĂŵĂŶĞŝƌĂ͕ŶĆŽĞƐƚĂ-­‐
como um dos caminhos possíveis no ŵŽƐĚĞĨĞŶĚĞŶĚŽƋƵĞƐſƉĞůĂĂƉƌŽdžŝŵĂĕĆŽĐŽŵŵŽǀŝŵĞŶƚŽƐƐŽĐŝĂŝƐĂƚŝŶŐŝƌşĂ-­‐
processo anteriormente descrito. No ŵŽƐƚĂůŽďũĞƚŝǀŽ͕ŵĂƐƋƵĞĞƐƐĂĠƌĞůĞǀĂŶƚĞƉĂƌĂĂǀĂŶĕĂƌŵŽƐĚŽƉŽŶƚŽĚĞ
ǀŝƐƚĂĚŝĂůſŐŝĐŽĞĚĞŵŽĐƌĄƚŝĐŽ͘
entanto, para que isso tenha tido senti-
ϯ͘ƐƐĞŶƷŵĞƌŽĞƐƚĄďĂƐĞĂĚŽĞŵĞdžƉĞƌŝġŶĐŝĂƐĂŶƚĞƌŝŽƌĞƐ͘
do, faz-se necessária maior compreen-
ϰ͘EŽŵĞƐƵŐĞƌŝĚŽƉĞůŽƉƌſƉƌŝŽ͘
são desse movimento cultural. A con- ϱ͘WĞůŽĐĂƌĄƚĞƌĚŽĞƐƚƵĚŽĞŽĐŽŵƉƌŽŵŝƐƐŽĠƚŝĐŽ͕ƚŽĚŽƐŽƐŶŽŵĞƐƵƚŝůŝnjĂĚŽƐ
tribuição teórica do multiculturalismo ƐĆŽĨŝĐƚşĐŝŽƐ͕ĐŽŵĞdžĐĞĕĆŽĚŽĚŽƉĞƐƋƵŝƐĂĚŽƌ͘
priorizada, nesse sentido, sintetiza-se ϲ͘&ŝůŵĞƋƵĞƌĞƚƌĂƚĂĂǀŝĚĂĚĞƵŵĂƚŝǀŝƐƚĂĂŵĞƌŝĐĂŶŽŶĞŐƌŽ͕ĚŽƐĂŶŽƐϭϵϲϬ͘
na forma com a qual pensa as diferentes DĂůĐŽůŵ͕ƋƵĂŶĚŽƐĞĂƉƌŽdžŝŵŽƵĚĂƌĞůŝŐŝĆŽŝƐůąŵŝĐĂ͕ĚĞŝdžŽƵĚĞĂůŝƐĂƌŽƐ
formas de significar o mundo e na valo- ĐĂďĞůŽƐ͘WĞƌĐĞďĞƵƋƵĞĞƌĂƵŵĂĨŽƌŵĂĚĞŶĞŐĂƌƐƵĂƉƌſƉƌŝĂĐƵůƚƵƌĂĞƐĞƵ
rização da diversidade. ĐŽƌƉŽ͘
Buscamos compreender como
seria possível o hip-hop se relacionar Referências
com a escola formal, destacando que
essa aproximação já havia sido sugerida >s^ͲDKdd/͕͘:͖͘'tE^E:Z͕&͘O   método   n as  Ciências  
na literatura acadêmica. Dessa forma, Naturais   e   S ociais:WĞƐƋƵŝƐĂYƵĂŶƚŝƚĂƚŝǀĂĞYƵĂůŝƚĂƚŝǀĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗WŝŽŶĞŝƌĂ͕
o projeto explicita episódios que en- ϭϵϵϴ͘Ɖ͘ϭϮϵͲϭϳϴ͘
EZ͕͘E͘ĚĞ;KƌŐ͘Ϳ͘RAP   e   educação,   R AP   é   educação͘^ĆŽWĂƵůŽ͗
tendo como potenciais multiculturais,
^ƵŵŵƵƐ͕ϭϵϵϵ͘ϭϲϴƉ͘
em que a diversidade não nos parece
^^/^͕D͘͘W͘ĚĞ͖EE͕͘/ĚĞŶƚŝĚĂĚĞŶĞŐƌĂĞĞƐƉĂĕŽĞĚƵĐĂĐŝŽŶĂů͗sŽnjĞƐ͕
obscura. O interesse estava em torno ŚŝƐƚſƌŝĂƐĞĐŽŶƚƌŝďƵŝĕƁĞƐĚŽŵƵůƚŝĐƵůƚƵƌĂůŝƐŵŽ͘Cadernos   d e  Pesquisa͕^ĆŽ
da desconstrução do ideal do branque- WĂƵůŽ͕ǀ͘ϯϰ͕Ŷ͘ϭϮϯ͕Ɖ͘ϳϬϵͲϳϮϰ͕ƐĞƚͬ͘ĚĞnj͘ϮϬϬϰ͘
amento, de uma convivência permeada ,,͕,͘<͘O   local   d a   cultura͘dƌĂĚ͘DLJƌŝĂŵǀŝůĂ͕ůŝĂŶĂ>ŽƵƌĞŶĕŽĚĞ
pelo respeito mútuo e por uma ética >ŝŵĂZĞŝƐĞ'ůĄƵĐŝĂZĞŶĂƚĞ'ŽŶĕĂůǀĞƐ͘ĞůŽ,ŽƌŝnjŽŶƚĞ͗Ě͘h&D'͕ϭϵϵϴ͕
multicultural. Para além da identidade ϯϵϱƉ͘
racial, embora essa seja central na dis- Eh͕s͘D͘;KƌŐ͘Ϳ͘ŝƌĞŝƚŽƐŚƵŵĂŶŽƐ͕ĞĚƵĐĂĕĆŽĞŝŶƚĞƌĐƵůƚƵƌĂůŝĚĂĚĞ͘
cussão, estava atento às demais identi- Revista   B rasileira   d e   Educação͕ĂŵƉŝŶĂƐ͕ǀ͘ϭϯ͕Ŷ͘ϯϳ͕Ɖ͘ϰϱͲϱϲ͕ũĂŶͬ͘Ăďƌ͘
dades, buscando não hierarquizá-las. O ϮϬϬϴ͘
projeto revelou identidades híbridas, EE͕͘KŵƵůƚŝĐƵůƚƵƌĂůŝƐŵŽĞƐĞƵƐĚŝůĞŵĂƐ͗ŝŵƉůŝĐĂĕƁĞƐŶĂĞĚƵĐĂĕĆŽ͘
não esbarrando em conflitos entre elas. Comunicação   e   p olítica͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͕ǀ͘Ϯϱ͕Ŷ͘Ϯ͕Ɖ͘ϵϭͲϭϬϳ͕ϮϬϬϳ͘
EE͕͖͘Z,͕͘W͖͘&ZEK͕D͘WĞƐƋƵŝƐĂŶĚŽŵƵůƚŝĐƵůƚƵƌĂůŝƐŵŽ
O que foi possível perceber está mais
ĞĞĚƵĐĂĕĆŽ͗ŽƋƵĞĚŝnjĞŵĂƐĚŝƐƐĞƌƚĂĕƁĞƐĞƚĞƐĞƐ͘Educação   e   Realidade͕
para uma procura de se afirmarem no
WŽƌƚŽůĞŐƌĞ͕ǀ͘Ϯϲ͕Ŷ͘ϭ͕Ɖ͘ϭϲϭͲϭϴϭ͕ũĂŶͬ͘ũƵů͘ϮϬϬϭ͘
mundo, em alguns momentos com EE͕͘ĞEE͕͘'͕͘ZŽŵƉĞŶĚŽĨƌŽŶƚĞŝƌĂƐĐƵƌƌŝĐƵůĂƌĞƐ͗Ž
vergonha de não ser o que a sociedade ŵƵůƚŝĐƵůƚƵƌĂůŝƐŵŽŶĂĞĚƵĐĂĕĆŽĞŽƵƚƌŽƐĐĂŵƉŽƐĚŽƐĂďĞƌ͘Currículo  s em  
valoriza. Fronteiras͕ǀ͘ϱ͕Ŷ͘Ϯ͕Ɖ͘ϰϬͲϰϵ͕ũƵůͬ͘ĚĞnj͘ϮϬϬϱ͘
Ressaltamos que fenômenos zZ>>͕:͘KƌĂƉĞŽĨƵŶŬŶĂƐŽĐŝĂůŝnjĂĕĆŽĚĂũƵǀĞŶƚƵĚĞ͘Educação   e  
como o ideal do branqueamento são um Pesquisa͕^ĆŽWĂƵůŽ͕ǀ͘Ϯϴ͕Ŷ͘ϭ͕Ɖ͘ϭϭϳͲϭϯϲ͕ũĂŶͬ͘ũƵŶ͘ϮϬϬϮ͘
empecilho ao respeito mútuo e desafia- ͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺ͘KũŽǀĞŵĐŽŵŽƐƵũĞŝƚŽƐŽĐŝĂů͘Revista   B rasileira   d a   Educação͕
dores ao multiculturalismo que defen- ĂŵƉŝŶĂƐ͕Ŷ͘Ϯϰ͕Ɖ͘ϰϬͲϱϮ͕ƐĞƚͬ͘ĚĞnj͘ϮϬϬϯ͘
demos. Tal como o caminho não está 'KD^͕E͘>͘ĚƵĐĂĕĆŽĞŝĚĞŶƚŝĚĂĚĞŶĞŐƌĂ͘/Ŷ͗Z/dK͕͘D͘͘͘ĚĞ͖
dado, também não estamos fadados ao ^EdE͕D͘ĚĞD͖͘KZZ/͕Z͘>͘>͘^͘Kulé   Kulé͗ĞĚƵĐĂĕĆŽĞŝĚĞŶƚŝĚĂĚĞ
imobilismo aparente das tradições que ŶĞŐƌĂ͘ůĂŐŽĂƐ͗ĚƵĨĂů͕ϮϬϬϱ͘Ɖ͘ϴͲϭϳ͘
94      CULTURA  CRÍTICA  14

não desejamos. Quando digo não deseja-


mos, incluo os sujeitos que falam a partir 'KE>s^͕>͘͘K͘Ğ^/>s͕W͘͘'͘O  jogo  das  diferenças:ŽŵƵůƟĐƵůƚƵƌĂůŝƐŵŽ
de um quadro teórico que permite esse ĞƐĞƵƐĐŽŶƚĞdžƚŽƐ͘ϰ͘ĞĚ͘ĞůŽ,ŽƌŝnjŽŶƚĞ͗ƵƚġŶƚŝĐĂ͕ϮϬϬϲ͘
olhar e/ou então que tenham sensibili- ,>>͕^͘Da   d iáspora:/ĚĞŶƚŝĚĂĚĞƐĞDĞĚŝĂĕƁĞƐƵůƚƵƌĂŝƐ͘KƌŐ͘>ŝǀ^ŽǀŝŬ͘
dade de estar com o mundo e a humani- dƌĂĚ͘ĚĞůĂŝŶĞ>Ă'ƵĂƌĚŝĂZĞƐĞŶĚĞĞƚĂů͘ĞůŽ,ŽƌŝnjŽŶƚĞ͗ĚŝƚŽƌĂh&D'͕
dade através de um olhar vigilante (até ϮϬϬϯ͘ϰϭϬƉ͘
consigo mesmo) sobre o racismo e ou- ,Z^,DEE͕D͘O   Funk   e   o   Hip-­‐Hop   invadem   a   cena͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗
tras formas de negação de outrem. h&Z:͕ϮϬϬϬ͘ϯϬϰƉ͘
>K/͕͘͘DĂŶŝĨĞƐƚĂĕƁĞƐĐƵůƚƵƌĂŝƐũƵǀĞŶŝƐ͗͞K,ŝƉͲŚŽƉĞƐƚĄĐŽŵĂ
Esse trabalho tem o limite de ser
ƉĂůĂǀƌĂ͘͟ϮϬϬϱ͘ϭϱϱƉ͘ŝƐƐĞƌƚĂĕĆŽ;DĞƐƚƌĂĚŽĞŵWƐŝĐŽůŽŐŝĂͿʹ
um dos poucos estudos sobre um proje-
hŶŝǀĞƌƐŝĚĂĚĞ&ĞĚĞƌĂůĚŽZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͘
to cultural específico dentro da escola. >m<͕D͖͘EZ͕͘͘͘ĚĞ͘Pesquisa  em  educação:ĂďŽƌĚĂŐĞŶƐ
Nesse contexto, com relação à pesqui- ƋƵĂůŝƚĂƚŝǀĂƐ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗Wh͕ϭϵϴϲ͕ϵϵƉ͘
sa científica do país, compreendemos DĐ>ZE͕W͘Multiculturalismo   r evolucionário͗ƉĞĚĂŐŽŐŝĂĚŽĚŝƐƐĞŶƐŽ
que avançaremos a partir do momento ƉĂƌĂŽŶŽǀŽŵŝůġŶŝŽ͘WŽƌƚŽůĞŐƌĞ͗ƌƚĞƐDĠĚŝĐĂƐ^Ƶů͕ϮϬϬϬ͘
em que pensarmos mais com os jovens. D/EzK͕D͘͘ĚĞ^͘dƌĂďĂůŚŽĚĞĐĂŵƉŽ͗ĐŽŶƚĞdžƚŽĚĞŽďƐĞƌǀĂĕĆŽ͕
Em particular, a juventude negra, maio- ŝŶƚĞƌĂĕĆŽĞĚĞƐĐŽďĞƌƚĂ͘/Ŷ͗D/EzK͕D͘͘ĚĞ^͖͘'KD^͕^͘&͘͘Z͘'͘Pes-­‐
ria na escola pública. Para além de “dar quisa   S ocial:dĞŽƌŝĂ͕ŵĠƚŽĚŽĞĐƌŝĂƚŝǀŝĚĂĚĞ͘Ϯϲ͘ĞĚ͘WĞƚƌſƉŽůŝƐ͕Z:͗sŽnjĞƐ͕
voz”, infiro que seja urgente a presença ϮϬϬϳ͘Ɖ͘ϲϭͲϳϴ͘
de uma pluralidade de narrativas. DK/d>KW^͕>͘W͘ĚĂ͘Identidades   f ragmentadas:ĂĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽĚŝƐĐƵƌƐŝǀĂ
Vejo na possibilidade de se es- ĚĞƌĂĕĂ͕ŐġŶĞƌŽĞƐĞdžƵĂůŝĚĂĚĞĞŵƐĂůĂĚĞĂƵůĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗DĞƌĐĂĚŽĚĞ
>ĞƚƌĂƐ͕ϮϬϬϮ͕ϮϯϮƉ͘
tudar os movimentos juvenis um po-
DKZ/Z͕͘&͘͘ƌĞĐĞŶƚĞƉƌŽĚƵĕĆŽĐŝĞŶƚşĨŝĐĂƐŽďƌĞĐƵƌƌşĐƵůŽĞŵƵůƚŝ-­‐
tencial para que compreendamos mais
ĐƵůƚƵƌĂůŝƐŵŽŶŽƌĂƐŝů;ϭϵϵϱͲϮϬϬϬͿ͗ĂǀĂŶĕŽƐ͕ĚĞƐĂĨŝŽƐĞƚĞŶƐƁĞƐ͘Revista  
essas trajetórias, que constantemente Brasileira   d e   Educação͕ĂŵƉŝŶĂƐ͕Ŷ͘ϭϴ͕Ɖ͘ϲϱͲϴϭ͕ƐĞƚͬ͘ĚĞnj͕͘ϮϬϬϭ͘
mudam, mas repetem e reconstroem K>/s/Z͕/͘ĚĞ͘ĚƵĐĂĕĆŽĞƉŽƉƵůĂĕĆŽŶĞŐƌĂ͗ĞƐƉĞĐŝĂůŝƐƚĂƐĞŵƐĂůĂĚĞ
determinados laços tradicionais inde- ĂƵůĂĞŶŽĐŽŶƚĞdžƚŽĞƐĐŽůĂƌ͘/Ŷ͗K>/s/Z͕/ŽůĂŶĚĂĚĞ;KƌŐ͘Ϳ͘Cadernos  
sejáveis para um projeto social de um PENESB͕EŝƚĞƌſŝ͕Ŷ͘ϲ͕Ɖ͘ϭϳϵͲϮϬϴ͕ϮϬϬϲĂ͘
ponto de vista cidadão. Como me sen- Z//ZK͕t͘'͘͞EſƐĞƐƚĂŵŽƐĂƋƵŝ͗͟K,ŝƉͲŚŽƉĞĂĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽĚĞŝĚĞŶƚŝĚĂ-­‐
tir parte de um lugar se este me em- ĚĞƐĞŵƵŵĞƐƉĂĕŽĚĞƉƌŽĚƵĕĆŽĚĞƐĞŶƚŝĚŽƐĞůĞŝƚƵƌĂƐĚĞŵƵŶĚŽ͘ϮϬϬϴĂ͘
purra para fora? Portanto, podemos ϭϳϮƉ͘ŝƐƐĞƌƚĂĕĆŽ;DĞƐƚƌĂĚŽŵĚƵĐĂĕĆŽͿʹh&Z:͕ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͘
perceber, como caminho de pesquisa, Z//ZK͕t͘'͘,ŝƉŚŽƉŽůŽŐŝĂ͗ŽƋƵĞĚŝnjĞŵƉĞƐƋƵŝƐĂĚŽƌĞƐďƌĂƐŝůĞŝƌŽƐƐŽďƌĞ
que o seguido possa ser enriquecido na ŽŚŝƉͲŚŽƉŶĂĞƐĐŽůĂ͍ĂdžĂŵďƵ͕ϯϭǐZĞƵŶŝĆŽŶƵĂůĚĂEWĚ͕ϮϬϬϴď͘
medida em que haja mais estudos sobre Z//ZK͕t͘'͘KŚŝƉͲŚŽƉĐŽŵŽĂƉƌŽƉƌŝĂĕĆŽŵƵůƚŝĐƵůƚƵƌĂů͗ŽĐĂƐŽĚĂƐ
rappersĞŽƉƌŽũĞƚŽĞŵŝŶĂ͘Divers@   Rev.   E let.   I nterdisc.͕DĂƚŝŶŚŽƐ͕ǀ͘Ϯ͕
a educação interracial na escola, atra-
Ŷ͘ϭ͕Ɖ͘ϯͲϭϲ͕ũĂŶͬ͘ũƵŶ͘ϮϬϬϵ͘
vés de um diálogo com os movimen-
^/>s&/>,K͕:͘͘ĚĂ͘,ŝƐƚſƌŝĂĚŽŶĞŐƌŽŶŽƌĂƐŝů͘/Ŷ͗K>/s/Z͕/͘ĚĞ͖^/^^͕
tos sociais e culturais. Representações, ͘;KƌŐ͘Ϳ͘Cadernos   P ENESB͕EŝƚĞƌſŝ͕Ŷ͘ϳ͕Ɖ͘ϭϬϳͲϭϰϬ͕ϮϬϬϲ͘
significações, subjetivações em experi- ^/>s:jE/KZ͕'͘͘ĚĂ͖s^KE>K^͕^͘ĚĞ͘D͘ƵƚŽͲĞƐƚŝŵĂĞŵ
ências escolares e não-escolares podem ĂĨƌŽĚĞƐĐĞŶĚĞŶƚĞƐ͗ĂƉĂƌƚŝƌĚĞĞƐƚƵĚŽƐĐŽŵƉĂƌĂƚŝǀŽƐ͘/Ŷ͗Z/dK͕͘D͘͘͘
revelar caminhos, não para a domina- ĚĞ͖^EdE͕D͘ĚĞD͖͘KZZ/͕Z͘>͘>͘^͘Kulé   Kulé͗ĞĚƵĐĂĕĆŽĞŝĚĞŶƚŝĚĂ-­‐
ção, mas para vida, respeito mútuo, ĚĞŶĞŐƌĂ͘ůĂŐŽĂƐ͗ĚƵĨĂů͕ϮϬϬϱ͘Ɖ͘ϴϴͲϵϵ͘
ética, diálogo, educação, escola-de- ^Kh͕:͖͘&/>,K͕s͘D͖͘Z>/͕:͘Hip-­‐hop͗ĚĂƌƵĂƉĂƌĂĂĞƐĐŽůĂ͘ZŝŽ
portas-abertas. cc 'ƌĂŶĚĞĚŽ^Ƶů͗^ƵůŝŶĂ͕ϮϬϬϱ͘ϭϯϲƉ͘
^Kh͕E͘^͘Tornar-­‐se  negro͗ĂƐǀŝĐŝƐƐŝƚƵĚĞƐĚĂŝĚĞŶƚŝĚĂĚĞĚŽŶĞŐƌŽ
William  de  Goes  Ribeiro  é  Doutoran- ďƌĂƐŝůĞŝƌŽĞŵĂƐĐĞŶƐĆŽƐŽĐŝĂů͘Ϯ͘ĞĚ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗'ƌĂĂů͕ϭϵϴϯ͘ϴϴƉ͘
do  em  Educação  do  PPGE  –  UFRJ.   d,/K>>Ed͕D͘Metodologia   d a   p esquisa-­‐ação͘ϭϰ͘ĞĚ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ŽƌƚĞnj͕
Coordenador   do   Grupo   de   Pesqui- ϮϬϬϱ͘ϭϬϳƉ͘
sas   Éticas   e   Multiculturais   (GEEM)   ys/Z͕'͘W͘ĚĞD͘ZĞĨůĞƚŝŶĚŽŵƵůƚŝĐƵůƚƵƌĂůŵĞŶƚĞƐŽďƌĞĂĨŽƌŵĂĕĆŽ
da  Faculdade  de  Formação  de  Pro- ĐŽŶƚŝŶƵĂĚĂĚĞƉƌŽĨĞƐƐŽƌĞƐĞŐĞƐƚŽƌĞƐĞƐĐŽůĂƌĞƐ͗ƉƌŽĚƵĕĆŽĚŽĐŽŶŚĞĐŝ-­‐
fessor  (FFP)  –  UERJ.  Professor  da   ŵĞŶƚŽĞƉĞƌƐƉĞĐƚŝǀĂƐ͘ĂdžĂŵďƵ͕ϯϭǐZĞƵŶŝĆŽŶƵĂůĚĂEWĚ͕ϮϬϬϴ͘
FFP  –  UERJ.
CULTURA  CRÍTICA  14        95
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞ^ĆŽ:ƵĚĂƐ

N as últimas décadas, a difusão


espacial da cultura hip-hop no
Brasil tem dado outros signi-
ficados às cidades. Entendemos que a
inscrição territorial do hip-hop tem se
Cultura Política Urbana
Uma análise da inscrição territorial do
constituído como uma forma de poli- hip-hop no bairro de Monjolos, São Gonçalo (RJ)
tização dessa cultura mundializada que
vem (re)posicionando o tema da ques-
tão racial no debate das nossas desigual- DENILSON  OLIVEIRA
dades. Uma cultura política negra que se
manifesta como um canal de expressão nos quanto aos imigrantes negros e po- com o reggae, lutas políticas e uma altís-
e instrumento de luta por direitos so- bres “latinos” que em NovaYork passaram sima desigualdade social. Os imigrantes
ciais, majoritariamente apropriada por a fazer da cultura um canal de expressão jamaicanos que foram para os Estados
jovens pobres e negros das “periferias dos problemas sociais por que passavam Unidos em busca de melhores condições
sociais urbanas”, vem convocando para os jovens que viviam nos guetos (Olivei- revelavam, em suas festas de rua, conhe-
outros olhares sobre o negro, as favelas ra, 2006; 2011). cidas como sound systems, misturas de tra-
e as periferias sociais urbanas. O hip-hop foi criado pelo DJ ja- dições “africanas” através da animação. O
Uma geografia da origem maicano Kool Herc, que nas suas viagens músico norte-americano Afrika Bambaa-
do hip-hop entre o Caribe e a África do Sul descobriu taa reinventou esses espaços de encontro
cantos falados de grupos étnicos que se e celebração criados pelos jamaicanos ao
O hip-hop nasceu ligado às dife- assemelhavam ao reggae. Kool Herc levou transferir a guerra de jovens que se orga-
rentes geografias da desigualdade a que essa tradição para os guetos de NovaYork nizavam em gangues por território para
foi submetida a população negra nos Es- nos anos 1960/1970 (Gomes, 1999). guerras simbólicas na música, na dança
tados Unidos nas décadas de 1960/1970. Nesse período a Jamaica passava por uma e nos desenhos nos muros, apontando as
Ele nasceu ligado tanto aos afro-america- enorme efervescência cultural e política mazelas dos bairros guetificados (idem).
96      CULTURA  CRÍTICA  14

Nesse período, os Estados Uni- instaura mudanças no modo de pensar


dos também passavam por uma enorme a sociedade por uma “geografia do coti-
efervescência cultural e política com a diano” no seu fazer político.
luta pelos direitos civis dos negros, os
discursos que ganhavam o mundo, dos No mundo atual, o progresso na
líderes Martin Luther King, Malcom produção da consciência vai se dar

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ
X e os Panteras Negras. Portanto, a mediante a ampliação das organiza-
cultura hip-hop expressa uma mistura ções, mas também a partir de ma-
da pluralidade das culturas e lutas ne- nifestações desorganizadas. Essas
organizações, de uma forma ou de
gras em diáspora, que se constituíam
outra, são limitantes de qualquer
em contextos da Jamaica aos guetos de movimento. As organizações são,
Nova York nos anos 1960/1970 com por definição, um freio às inova-
uma nova forma de conviver e lutar por ções, pois a organização começa por
direitos sociais. Nascem aí também os eleger seus líderes, cujo comporta-
seus elementos, a música rap (rhythm and mento um dia ou outro se distingue
poetry, ou seja, ritmo e poesia) criada e do comportamento dos liderados.
cantadas pelos MCs (mestres de ceri- (Santos, 2000, p. 18)
mônias) e o DJ (disc jockey), a mistura de
danças de rua com o break e os desenhos No hip-hop não existe uma es-
nos muros, os grafites. Logo essas prá- trutura que o comanda. Portanto, di-
ticas tiveram o acréscimo de mais um zer que o hip-hop é desorganizado não
elemento: a consciência racial do negro significa fraqueza política, até mesmo
afro-americano, imigrante e morador porque essa chamada desorganização
do gueto. vem produzindo um dos movimentos
Logo o hip-hop se mundiali- mais fortes da história recente1. Ape-
zou mesclado a outros ritmos musicais sar de o hip-hop no Rio de Janeiro não
como a soul music e a filmes norte-ame- possuir uma organização que o unifique,
ricanos para o grande público, que re- como os clássicos movimentos sociais necessariamente as posses, isto é, espaços
tratavam as cidades americanas que co- que criam uma hierarquia entre os in- historicamente criados pelos primeiros
meçavam a ser grafitadas com os grafites tegrantes do movimento (dirigentes e hip-hoppers que se espalharam pelo mun-
de hip-hop e os dançarinos de break com dirigidos), metas a serem alcançadas e do para juntar e organizar grafiteiros,
suas performances nas ruas. Desde a sua um programa e uma plataforma polí- MCs, DJs, breakers e pessoas envolvidas
emergência nos guetos americanos até tica, ele traz uma dimensão geográfica com o universo hip-hop. Para alguns, essa
a sua territorialização nas cidades brasi- de movimento social ao negar o lugar autonomização faz com que o hip-hop
leiras, o hip-hop criou uma disposição sócio-espacial imposto aos negros e aos seja desorganizado e com pouca força po-
de poder ao enfrentar as manifestações pobres nas periferias sociais urbanas lítica, fato já criticado por nós anterior-
de preconceito, estereótipos e discrimi- (Porto-Gonçalves, 1999). Assim, são mente. Essas formas de organização au-
nação racial sofridas por jovens. múltiplas as agendas do hip-hop, mas tônomas do hip-hop no Brasil revelaram
O hip-hop nunca foi homogê- os agentes e os temários geralmente en- a sua face de movimento social ao criar
neo. Ele tem instalado de forma densa volvem pobres e negros moradores de intervenções urbanas e formas de parti-
e conflitante uma mística de justiça social. favelas e periferia. cipação na esfera pública. Apesar disso,
Contudo, ele também é prenhe de con- entendemos que o hip-hop não produz
As estratégias territoriais como
tradições ligadas a consumismo, sexis- líderes, no sentido clássico do termo, isto
afirmação política do hip-hop
mo e, em alguns casos, homofobia, fato é, de uma pessoa que conduz a um fim,
muito combatido pelos militantes que O hip-hop em cada lugar do Bra- mas sim intelectuais públicos (Nascimento,
colocam o hip-hop como uma cultura sil e do mundo tem uma instância de or- 2003), ou seja, pessoas engajadas na sua
política, isto é, um canal de expressão ganização própria. No Brasil as formas de práxis de transformação sócio-espacial. A
dos negros e pobres (Abreu, 2005) que organização são autônomas. Elas não são “liderança” desses intelectuais públicos sur-
CULTURA  CRÍTICA  14        97

ge da legitimidade das ações dos sujeitos Atualmente várias ONGs e insti- (do local ao global), contraditoriamen-
e de seu discurso político. Todavia, tuições públicas e privadas vêm criando te, ao mesmo tempo em que fortalece o
ações em parceria com pessoas envolvi- hip-hop enquanto um ator modificador
[...] enquanto existir contradição das com o universo hip-hop. Essas têm da esfera pública injusta e desigual pro-
entre ação e a concepção do mun- promovido a criação de estratégias ter- duz também uma matematização do tempo
do que a guia, a ação não pode ser
ritoriais identitárias de construção política (Santos, 2002), pois os projetos pos-
consciente e não pode se tornar co-
erente. Será sempre uma ação, por interna em forma de fóruns, seminários suem prazo de entrega (custo-benefício,
assim dizer, fragmentada; [...] A e encontros de hip-hop e também es- relatórios), descolando os atores do seu
ação coerente exige ser guiada por tratégias territoriais identitárias de caráter entorno imediato e do espaço vivido.
uma concepção do mundo, por uma pedagógico, como as oficinas (Oliveira, Historicamente as oficinas de
visão unitária e crítica dos proces- 2006; 2011). Sujeitas, em muitos casos, hip-hop se constituíram espaço de so-
sos sociais. (Gruppi, 2000, p. 69) a projetos e financiamentos de grandes cialização dessa cultura, através da
instituições, essas organizações aca- transmissão de técnicas da dança break,
Estas prerrogativas de rompi- bam criando um engessamento e uma de discotecagem, de técnicas dos grafi-
mento com a subalternização que Gru- hierarquização do hip-hop enquanto tes, do histórico do hip-hop ou mesmo
ppi (2000) traz de Gramsci, emerge no movimento social, pois se instaura um de conscientização política; ou seja, elas
hip-hop em forma de tensões em rela- campo de tensões em relação às par- reforçam o direito ao conhecimento. Lo
ção às parcerias feitas com determina- cerias construídas e à apropriação do Bianco (2004, p. 17) afirmará, através
dos grupos sociais que reproduzem a discurso dentro do universo hip-hop. A de sua pesquisa, que nas oficinas
ideologia dominante e a legitimidade de eficácia da ação racional, trazida pelas
quem fala em nome do hip-hop. ONGs que atuam em diferentes escalas [o] discurso dos oficineiros entre-
98      CULTURA  CRÍTICA  14

vistados é uma faca de dois gumes, no hip-hop, sendo, neste sentido, produ- a identidade hip-hop e desvincular-se
pois se o hip-hop tira os jovens das toras e geradoras de uma economia. As de uma cultura consumista, sexista e
drogas e evita que a criança entre oficinas de hip-hop são utilizadas como homofóbica de entretenimento despoli-
para alguma marginalidade, na vi- instrumento de difusão da cultura e dos tizado que uma vertente do hip-hop de
são da tal professora [referindo-se a seus ideais pedagógicos. Essa estratégia matriz norte-americana tem difundido
uma professora de escola municipal territorial criada por pessoas envolvi- nas grandes mídias.
do Rio de Janeiro que achava a única
das com o universo hip-hop é utilizada
solução para os seus alunos “bagun- Antecedentes
ceiros” era a oficina de hip-hop] os para afirmar a identidade política do
oficineiros são os que devem resol- hip-hop, mas em alguns casos isso tem Durante o ano 2006 participei
ver, já que “vocês falam a linguagem gerado tensões na autonomia do grupo como palestrante com o grupo CLAM3
deles”. Os professores já não sabem quando estabelecem parcerias. de várias oficinas em escolas públicas
o que fazer diante dos problemas Vejamos uma inscrição territo- do município de São Gonçalo na região
que os alunos trazem para a escola, rial do hip-hop no bairro de Monjolos, metropolitana do Rio de Janeiro4. Algu-
ausentando-se de suas responsabili- município de São Gonçalo (RJ). O grupo mas dessas pessoas posteriormente cria-
dades. De qualquer forma, como a que coordena essa estratégia territorial, ram o Ponto de Cultura Observatório
rapper afirmou, “o hip-hop não vem apesar da articulação governamental,
para substituir a educação e sim de Hip-hop, de que falaremos adiante.
consegue afirmar-se politicamente com Percebi que o convite para a atuação
vem para complementar, ajudar a autonomia, apesar de algumas tensões.
educação”.2 nessas escolas colocava em debate três
O Ponto de Cultura Observatório questões centrais que faziam o hip-hop
Lo Bianco (2004), a partir de de Hip-hop em Monjolos se aproximar da escola:
depoimentos colhidos na sua pesquisa, (São Gonçalo)
critica a cultura salvacionista impressa ‡'HTXHSRQWRGHYLVWDWrPVLGRQDU-
nas oficinas de hip-hop, fato com o qual Para se entender a inscrição rados/representados os negros(?).
concordamos. territorial do hip-hop pressupõe-se a ‡4XDLVJUXSRVWrPRSRGHUGHQDU-
compreensão dos grupos que o fazem. rar/representar e quais apenas são nar-
As oficinas são uma das faces da Percebemos que quando os atuantes rados/representados(?).
cultura hip-hop enquanto movi- da cultura hip-hop criavam estratégias ‡ &RPR HVVDV QDUUDo}HVUHSUHVHQWD-
mento social, pois uma das frases territoriais, estes passavam a se afir- ções fixam posições subalternas e posi-
que escutei, durante as conversas mar como sujeitos da ação que rompem ções dominantes(?).
com diversos interlocutores, foi com a invisibilidade, com o estereótipo
que a cultura hip-hop estaria as- e lutavam por direitos sociais. São os Essas oficinas nas escolas públi-
sociada ao fato de tirar os “jovens grafiteiros que criavam suas inscrições cas de São Gonçalo buscavam de forma
das drogas”, da “vida do crime”,
nas paisagens das cidades; são os grupos tensa e contraditória uma mudança no
“dar uma ocupação aos jovens para
não se envolverem na ‘vida erra- que criavam espaços de encontro e ce- currículo escolar praticado5. Apesar de
da’”. Isso de fato acontece? Como? lebração da cultura hip-hop através de as oficinas serem um evento de algumas
As oficinas seriam para isso? Não festas e rodas de break; são grupos que horas, percebia que o repertório da cul-
quero aqui afirmar o contrário, estabelecem programas de rap em rá- tura negra se inseria no currículo esco-
mas são frases que merecem uma dios comunitárias, em geral em espaços lar. Contudo, contraditoriamente, algu-
discussão. (Lo Bianco, 2004, p. 17) de favelas e periferias sociais, entre ou- mas vezes oficinas eram propostas por
tros. A inscrição territorial do hip-hop escolas apenas para responder à lei nº
Ele lembra que isso acaba repro- é múltipla. 10.639/036, mas sem problematizar o
duzindo preconceitos e estereótipos, Por várias cidades do Brasil en- seu conteúdo, as práticas dos professo-
pois as oficinas em áreas nobres da ci- contramos iniciativas que inscrevem o res, funcionários e de todo o currículo
dade significam “evento cultural para os hip-hop territorialmente através das das escolas. Dessa forma, a nossa atua-
jovens” e nas áreas empobrecidas signi- rodas de break, das festas, das posses, ção se dava sob tensões, mas ela tinha
ficam “salvar os jovens da vida do crime dos seminários e encontros, dos grafi- como base:
e das drogas”. As oficinas são um impor- tes difundidos nas paisagens, entre ou-
tante instrumento de profissionalização tros. Essas iniciativas passam a politizar i. politizar o conhecimento e o
CULTURA  CRÍTICA  14        99

currículo escolar com a afirmação da bairro era menos urbano, apresentava racializada do espaço que impunha uma
cultura hip-hop; várias olarias em funcionamento e ou- dominação.
ii. reconstruir e combater repre- tras fechadas, diferentemente da entra- Já para Semira Adler Vainsen-
sentações que instituem imagens e ima- da, em que era mais urbano e comer- cher, Pesquisadora da Fundação Joa-
ginários estereotipados e racistas sobre cial. As ruas transversais eram de chão quim Nabuco, “a palavra monjolo deve
os negros; batido; traziam a referência ao passado ter origem sânscrita, vindo de musala,
iii. envolver uma preocupação rural e o abandono das políticas públicas pilão para descascar arroz, e seu aper-
na produção de subjetividades, identi- no bairro. feiçoamento ocorreu por volta do sécu-
dades, sujeitos com a população negra; A toponímia (nome dos lugares) lo XVIII”7. Para ela, o monjolo expres-
iv. a necessidade de reforma do é reveladora da produção racializada do sa um desenvolvimento técnico de um
currículo praticado, o que demanda espaço urbano. Lembremos que Mon- instrumento muito utilizado no período
uma compreensão mais ampla e densa jolos é um termo referente à diáspora da escravidão “[...] constituído por duas
tanto do passado quanto do presente da africana, pois para Lopes (2004) é um SHoDVðRSLOmRHDKDVWHðHRQGHDKDV-
organização espacial da população ne- dos nomes dos grupos étnicos que vi- te é movida através de um sistema simi-
gra; viam na atual República do Congo, os lar ao de uma balança; pode ser aciona-
v. o reconhecimento de outras Batequese ou Tios. Lopes afirma que no do por meio hidráulico”8.
formas de conhecer, marcar e dar signi- período colonial o termo preferencial Não entraremos aqui na polêmi-
ficado ao mundo em que vivemos, que era “anjicos”, contudo, na segunda me- ca de quais das teses originaram o nome
são inscritas pelos negros. tade do século 19 passaram a ser mais do bairro gonçalense, apenas salienta-
conhecidos como “monjolos”. O termo mos que ambas fazem referência à diás-
O Ponto de Cultura monjolos, para Lopes parece ter sido pora africana.
Depois de marcar uma entrevis- um apelido criado na diáspora. Enten- Percebi que só era possível com-
ta com integrantes do CLAM e agora demos que ao deixar de se referir ao preender o Ponto de Cultura analisando
os coordenadores do Ponto de Cultura grupo e passar a se referir a uma por- Monjolos como o resultado do desen-
Observatório de Hip-hop, Dinho K2 ção do espaço, expressa uma inscrição volvimento desigual e combinado e da
(rapper) e Roberta Federico (psicóloga),
em junho de 2011 fui ao bairro Mon-
jolos, periferia do município de São
Gonçalo. A entrevista era parte da mi-
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ

nha tese de doutorado sobre racismo e


o contexto urbano. A entrevista com um
rapper e uma psicóloga negra que atuava
com o hip-hop na periferia da periferia,
isto é, periferia do município de São
Gonçalo, que é periferia da região me-
tropolitana do Rio de Janeiro marcada
com várias deficiências de infraestru-
tura, mas também da luta cotidiana dos
seus moradores. “Periferia é periferia
em qualquer lugar”, diriam os Racionais
MC’s.
Saí de minha casa em Inoã (mu-
nicípio de Maricá) num sábado por volta
das 12 horas e fui em direção ao bairro
de Monjolos, no município de São Gon-
çalo. O bairro era marcado por uma via
asfaltada que corta todo o bairro. Uma
diferença era bem clara: o interior do
100      CULTURA  CRÍTICA  14

produção racializada daquele espaço que


expressa heranças sócio-espaciais afro- LOGOMARCA  DO  OBSERVATÓRIO  DE  HIP-­HOP
brasileiras fruto de um intercruzamento Por  compreender  o  papel  da  cultura  
violento e sangrento de civilizações que se hip-­hop  na  vida  dos  jovens  das  perife-­
rias  urbanas,  escolhemos  como  nossa  
deu de maneira destrutiva e muito negativa
logomarca  o  adinkra  (símbolo  ancestral  
para os descendentes da diáspora africana. africano)  
Dessa forma, o bairro como patrimônio Nea-­OnNim,  que  simboliza  a  busca  con-­
das lutas negras expressa outras formas de tínua  pelo  conhecimento.  O  Observatório  
de  Hip-­Hop  propõe  uma  outra  epistemo-­
existência e luta. Entendia o Ponto de Cul- logia,  um  outro  processo  de  estruturação  
tura como parte dessas lutas históricas. e  articulação  dos  conhecimentos,  que  
Os conflitos na concepção e im- seja  centrado  na  valorização  da  comu-­
nidade,  seus  saberes  tradicionais  e  suas  
plementação do Ponto de Cultura Obser- relações.9
vatório de Hip-hop expressavam também
escalas de poder racializado que os criado-
res dessa estratégia territorial tiveram que momento. Buscando incorporar símbo- no projeto concebido para o governo e o
enfrentar nos representantes da instituição los negros e da diáspora ao imaginário do vivido pelos coordenadores. Percebi, em
bancária em que foi aberta a conta. Observatório, o conflito também ocorreu conversas informais e posteriormente em
num momento com um fundamentalismo entrevista que tive com os coordenadores
[...] quando a gente conseguiu aprovar religioso de matriz evangélica que tem des- Dinho K2 e Roberta Federico, que a estru-
o Ponto de Cultura no edital, a gen- truído do imaginário social das periferias tura em módulos era pensada no projeto
te precisou abrir uma conta bancária
simbologias das religiões de matriz afro. de forma distinta pelos alunos pois, mes-
específica para receber o recurso. E
aí a gente tinha que dar um endereço Visitando o Ponto de Cultura coor- mo com o fim do módulo break, crianças
de uma agência e aí agência foi a uma denado por Dinho K2 e Roberta Federico, e jovens continuavam frequentando diaria-
agência mais próxima, próxima onde em outubro de 2011, eles relataram um mente o espaço para praticar, já que o Ob-
a gente morava na época que era na fato local que expressa uma tensão com servatório estava se tornando também um
Praça Seca [na cidade do Rio de Janei- os valores culturais, intelectuais e morais espaço de referência para o entretenimento
ro] e, assim, a gente até que não sentiu afro-diaspóricos. Uma mãe, indo levar os local. Desta forma, a ação necessariamente
tanta dificuldade de entrar na agência, filhos para a inscrição em oficinas do Ponto precisava se traduzir à realidade das pessoas
mas a gente percebeu o tratamento de Cultura, perguntou em tom agressivo: do lugar. Os ritmos do lugar também inter-
[...] era como se a gente fosse tram- “Que desenhos são esses nas paredes?”, feriam na dinâmica das oficinas.10
biqueiro [...] começou a pedir vários referindo-se aos grafites feitos numa das O Ponto de Cultura Observató-
documentos, a questionar o estatu- oficinas. “Isso é macumba?”, perguntou a rio de Hip-hop busca pela educação de
to, a questionar que só tinha ... um
mãe. Dinho K2 respondeu, em tom afir- jovens o desenvolvimento de lideranças,
tesoureiro e se o tesoureiro morrer
[...] O funcionário começou a querer mativo, das culturas afro-diaspóricas: “Sim utilizando as tecnologias da informação e
questionar para arranjar um empeci- é macumba, sim”. E aquela mãe não ins- visando realizar transformações na cultura
lho para a gente não abrir a conta. [...] creveu o filho na oficina e não voltou mais racista dominante. Ele atinge dezenas de
a gente voltou para casa, ligou para ao local. crianças e jovens através de uma estratégia
o SAC [Serviço de Atendimento ao O Ponto de Cultura Observatório territorial de base pedagógica que, além
Consumidor] do Banco do Brasil. [...] de Hip-hop é um espaço criado por mo- de socializar o conhecimento e as práticas
(Entrevista com Roberta Federico, ju- radores do bairro e integrantes do grupo do hip-hop, estabelece ações afirmativas
nho de 2011) CLAM, que viram a necessidade de criar em sentido lato ao focar a consciência de
uma ação política de intervenção no bairro direitos sociais e da identidade de crian-
A discriminação racial no processo que alterasse as desigualdades entre bran- ças e jovens, majoritariamente negros.
de criação de um território do hip-hop re- cos e negros e um combate ao racismo A politização da identidade negra
vela os obstáculos criados aos negros que através do hip-hop. Apesar de estar dentro através do hip-hop, que se inscreve territo-
buscam mudar suas trajetórias. Contudo, de uma estrutura de política governamen- rialmente nas periferias, pelos pobres, pe-
a luta antirracista dos integrantes do Ob- tal, o comando do Ponto de Cultura é lo- los negros via oficinas, é marcada também
servatório de Hip-hop não acabou nesse cal. Isso não significa que não haja tensões por lutas contra a segregação e discrimina-
CULTURA  CRÍTICA  14        101

ção cultural, econômica e racial. O Ponto Notas


de Cultura Observatório de Hip-hop é ϭ͘WĂůĞƐƚƌĂĚĞ:ƷůŝŽĠƐĂƌĚĞ^ŽƵnjĂdĂǀĂƌĞƐŶŽĞǀĞŶƚŽŝŵĞŶƐƁĞƐĚĞ'ġŶĞƌŽĞ
uma iniciativa que tem atualizado o pro- ZĂĕĂŽƌŐĂŶŝnjĂĚŽƉĞůĂKE'ƌŝŽůĂŶŽĚŝĂϭϲĚĞĂďƌŝůĚĞϮϬϬϱŶĂhZ:ͲDĂƌĂ-­‐
testo negro nas periferias urbanas e através ĐĂŶĆ͘
da inscrição territorial da cultura hip-hop,
Ϯ͘WĂƌĂŽďƐĞƌǀĂƌĂĂƉůŝĐĂĕĆŽĚĂŵƷƐŝĐĂrapŶĂĞĚƵĐĂĕĆŽ͕ǀĞƌEZ͕ϭϵϵϵ͘
oferecendo várias oficinas à comunidade e
criando ações psicossociais na construção ϯ͘>DĠƐŝŐůĂƋƵĞƐŝŐŶŝĮĐĂ͗ŽŶƐĐŝġŶĐŝĂ͕>ŝďĞƌĚĂĚĞ͕ƟƚƵĚĞĞDŽǀŝŵĞŶƚŽ͘
da identidade negra e afrodescendente, es- ƵŵĂĂƐƐŽĐŝĂĕĆŽĐƵůƚƵƌĂůĐƌŝĂĚĂƉŽƌũŽǀĞŶƐĚŽƵŶŝǀĞƌƐŽŚŝƉͲŚŽƉƋƵĞĂƚƵĂŶŽŵƵ-­‐
pecialmente com crianças e jovens. São ofi- ŶŝĐşƉŝŽĚĞ^ĆŽ'ŽŶĕĂůŽ;Z:ͿĚĞƐĚĞϮϬϬϰ͕ĐŽŵƉƌŽĚƵĕĆŽĞƉƌŽŵŽĕĆŽĚĞĐƵůƚƵƌĂ
cinas de rap, break, grafite, DJ, informática, ŚŝƉͲŚŽƉ͘^ĞŐƵŶĚŽŝŶĨŽƌŵĂĕƁĞƐĐŽůŚŝĚĂƐŶŽƐŝƚĞĚĂĂƐƐŽĐŝĂĕĆŽ͕ĂƐƐŝŵĞŶƚĞŶĚĞŵ
editoração eletrônica, fotografia, técnicas ŽŚŝƉͲŚŽƉ͗͞WĂƌƟŵŽƐĚŽƉŽŶƚŽĚĞǀŝƐƚĂĚĞƋƵĞĂĐƵůƚƵƌĂŚŝƉͲŚŽƉĠƵŵŝŶƐƚƌƵ-­‐
ŵĞŶƚŽƉŽůşƟĐŽĞƉŽĠƟĐŽĚĞŵĂŶŝĨĞƐƚĂĕĆŽĨƌĞŶƚĞăƐĚĞƐŝŐƵĂůĚĂĚĞƐƐŽĐŝĂŝƐ͕Ğ
de edição de imagens, edição de vídeo, de
ƋƵĞƉŽĚĞĞĚĞǀĞƐĞƌŵĂŝƐƵƟůŝnjĂĚŽŶŽĚŝĄůŽŐŽĞŶƚƌĞĂƐũƵǀĞŶƚƵĚĞƐƉĞƌŝĨĠƌŝĐĂƐ
imagens e de áudio. Desta forma, em nosso ĞŵĂƌŐŝŶĂůŝnjĂĚĂƐ͘WĞŶƐĂŵŽƐĞƌĞĂůŝnjĂŵŽƐŶŽƐƐĂƐĂƟǀŝĚĂĚĞƐĚĞŶƚƌŽĚŽƋƵĞ
entender o Ponto de Cultura Observatório ĂĐƌĞĚŝƚĂŵŽƐ͗ƋƵĞŽŚŝƉŚŽƉĠƵŵĂĐƵůƚƵƌĂĚĂƐƉĞƌŝĨĞƌŝĂƐ͕ƐƵƌŐŝĚĂƉĂƌĂƚƌĂnjĞƌ
de Hip-hop estabelece um combate: ŵĞŶƐĂŐĞŶƐƉŽƐŝƟǀĂƐĞĞĚŝĮĐĂĚŽƌĂƐƉĂƌĂƐĞƵƐĂĚŵŝƌĂĚŽƌĞƐ͘EĆŽĂĐƌĞĚŝƚĂŵŽƐ
ĞŵĂƌƚĞĚĞƐĐŽŵƉƌŽŵŝƐƐĂĚĂ͕ŵƵŝƚŽŵĞŶŽƐĞŵŶĞƵƚƌĂůŝĚĂĚĞ͘WĂƌĂŶſƐ͕ĂĐƵůƚƵƌĂ
‡jVIRUPDVGHUHJXODomRFULDGDVSHORUD- ŚŝƉͲŚŽƉĞƐƚĄŶĞĐĞƐƐĂƌŝĂŵĞŶƚĞůŝŐĂĚĂĂŽƟǀŝƐŵŽ͟;ZĞƟƌĂĚŽĞŵϬϱĚĞũĂŶĞŝƌŽ
cismo na trajetória das pessoas negras que ĚĞϮϬϭϮ͕ăƐϭϰŚͿ͘
instituem comportamentos sócio-espaciais ϰ͘ǀĞŶƚŽ͗WƌŽũĞƚŽĂŽƌĚĂƵůƚƵƌĂŶŽZ&KE;ĞŶƚƌŽĚĞZĞĨĞƌġŶĐŝĂĞŵ
a serem seguidos; ĚƵĐĂĕĆŽĞ&ŽƌŵĂĕĆŽŽŶƟŶƵĂĚĂͿ͕ŶŽďĂŝƌƌŽĚĞEĞǀĞƐ͖ǀĞŶƚŽ͗/y^ĞŵĂŶĂĚĞ
‡jVWHQWDWLYDVGHVXEPLVVmRGRQHJUR /ŶƚĞŐƌĂĕĆŽWĞĚĂŐſŐŝĐĂŶŽŽůĠŐŝŽWĂŶĚŝĄĂůſŐĞƌĂƐ͕ŶŽďĂŝƌƌŽĚĞůĐąŶƚĂƌĂ͖
dos seus referenciais políticos e culturais; ǀĞŶƚŽ͗WŽƌƵŵƌĂƐŝůDĞůŚŽƌ͘͘͘ZĞƐƉĞŝƚĞĂƐŝĨĞƌĞŶĕĂƐ͕͊ŶŽŽůĠŐŝŽDƵŶŝĐŝƉĂů
‡jQDWXUDOL]DomRGDFRQFHQWUDomRUDFLDO ĠůŝĂWĞƌĞŝƌĂĚĂZŽƐĂ͕ŶŽďĂŝƌƌŽĚĞ^ĂŶƚĂ/ƐĂďĞů͘
da riqueza e do poder que excluir de forma
ϱ͘EŽŽůĠŐŝŽDƵŶŝĐŝƉĂůĠůŝĂWĞƌĞŝƌĂĚĂZŽƐĂ͕ŶŽďĂŝƌƌŽĚĞ^ĂŶƚĂ/ƐĂďĞů͕Ƶŵ
precária, perversa e subalterna os negros ĨĂƚŽŵĞĐŚĂŵŽƵŐƌĂŶĚĞĂƚĞŶĕĆŽ͗ŽƉĂƉĞůƋƵĞŽŚŝƉͲŚŽƉĐƌŝĂĐŽŵŽƐũŽǀĞŶƐ͘
dos melhores empregos, escolas e salários, &ĂnjŝĂŵŝŶŚĂƉĂůĞƐƚƌĂŶƵŵĂƋƵĂĚƌĂƉŽůŝĞƐƉŽƌƟǀĂůŽƚĂĚĂĞĐŽŵŵƵŝƚŽďĂƌƵůŚŽĚĞ
entre outros. ĐƌŝĂŶĕĂƐĞũŽǀĞŶƐ͘EĂŚŽƌĂƉĞƌĐĞďŝƋƵĞŽŵĞƵĨŽƌŵĂůŝƐŵŽĂĐĂĚġŵŝĐŽĞŵŶĂĚĂ
ŵĞĂũƵĚĂƌŝĂĐŽŵƵŵƉƷďůŝĐŽƚĆŽĚŝǀĞƌƐŽƋƵĞŝŶĐůƵşĂƉĂŝƐĚĞĂůƵŶŽƐ͕ƉĞƐƐŽĂƐƋƵĞ
Assim, ele cria uma modalidade do ŵŽƌĂǀĂŵŶŽĞŶƚŽƌŶŽĚĂĞƐĐŽůĂ͕ƉƌŽĨĞƐƐŽƌĞƐĚĞƚŽĚĂƐĂƐƐĠƌŝĞƐĞĚŝƐĐŝƉůŝŶĂƐ͕ĂƵ-­‐
protesto negro que atua no cotidiano das ƚŽƌŝĚĂĚĞƐŵƵŶŝĐŝƉĂŝƐĞĂůƵŶŽƐĚĞƚŽĚŽŽĞŶƐŝŶŽĨƵŶĚĂŵĞŶƚĂůĞŵĠĚŝŽ͘YƵĂŶĚŽ
áreas pobres da cidade reconstruindo uma ƚĞƌŵŝŶĂǀĂĂŵŝŶŚĂƉĂůĞƐƚƌĂĞŽŐƌƵƉŽ>D͕ũŽǀĞŶƐŶĞŐƌŽƐĐŽŵĂŝŶĚƵŵĞŶƚĄƌŝĂ
identidade racial negra de forma positiva ĐĂƌĂĐƚĞƌşƐƟĐĂƐĚĞb.boysƐĞĚŝƌĞĐŝŽŶĂǀĂƉĂƌĂĂƐƵĂĂƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽ͕ĚĞnjĞŶĂƐĚĞ
“[...] através do afrocentrismo e do qui- ĐƌŝĂŶĕĂƐĞũŽǀĞŶƐƋƵĞĞƐƚĂǀĂŵĨĂnjĞŶĚŽ͚ďĂŐƵŶĕĂ͛ĐŽƌƌĞƌĂŵĞŵĚŝƌĞĕĆŽăƌŽĚĂ
lombismo, que procuravam resgatar a he- ŽŶĚĞŽĐŽƌƌŝĂĂŵŝŶŚĂƉĂůĞƐƚƌĂ͘dŽĚŽƐĮĐĂƌĂŵƐƵƌƉƌĞĞŶĚĞŶƚĞŵĞŶƚĞĐĂůĂĚŽƐ
ŶĂĂƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽĚĞrapĞǀŝďƌĂŶĚŽĐŽŵĂƐƉĞƌĨŽƌŵĂŶĐĞƐĚŽƐb.boys͘ĐŽƌƉŽ-­‐
rança africana no Brasil (invenção de uma
ƌĞŝĚĂĚĞĚĂƋƵĞůĞƐũŽǀĞŶƐƋƵĞĞŶƚƌĂǀĂŵŶĂƋƵĂĚƌĂƉĂƌĂƵŵĂĂƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽĚĞ
cultura negra)” (Guimarães, 2002, p. 160).
ŚŝƉͲŚŽƉĨĂůĂǀĂĂŶƚĞƐĚĞƋƵĂůƋƵĞƌƉĂůĂǀƌĂƉƌŽĨĞƌŝĚĂ͘
Desta forma, EŽŽůĠŐŝŽWĂŶĚŝĄĂůſŐĞƌĂƐ͕ŶŽďĂŝƌƌŽĚĞůĐąŶƚĂƌĂ͕ĂƉſƐĂŶŽƐƐĂĂƉƌĞƐĞŶƚĂĕĆŽ
ŽƐĂůƵŶŽƐ͕ŶĂŵĂŝŽƌŝĂŶĞŐƌŽƐ͕ŶŽƐĞůŽŐŝĂǀĂŵĞŝŶƐŝƐƚĞŶƚĞŵĞŶƚĞƋƵĞƌŝĂŵƟƌĂƌ
No fundo, surgem duas repulsas ele- ĨŽƚŽƐĐŽŵŝŐŽĞĐŽŵŽƐb.boys͘
mentares: a de conformar-se com as WĞƌĐĞďŝŶĞƐƐĂƐĚƵĂƐĞƐĐŽůĂƐƋƵĞĂƉĂůĞƐƚƌĂĚĞƵŵŶĞŐƌŽĞĂƐƉĞƌĨŽƌŵĂŶĐĞƐ
condições de vida imperante e a de ĚĞĚĂŶĕĂĚĞŽƵƚƌŽƐŶĞŐƌŽƐƋƵĞƐĞƵƟůŝnjĂǀĂŵĚĞĞůĞŵĞŶƚŽƐŝĚĞŶƟĮĐĂĚŽƌĞƐĚŽ
conformar-se com as ideias simplistas ŚŝƉͲŚŽƉ;ĂŝŶĚƵŵĞŶƚĄƌŝĂ͕ŽĂŶĚĂƌŐŝŶŐĂĚŽ͕ĐĂďĞůŽƐĞƐƟůŽĂĨƌŽ͕ĂůŝŶŐƵĂŐĞŵĞŽ
de que o negro tinha aberta diante de ͚ĚŝĂůĞƚŽ͛ĚĂƐƉĞƌŝĨĞƌŝĂƐͿĂĮƌŵĂǀĂŵŽŽƌŐƵůŚŽĚĂĐƵůƚƵƌĂŶĞŐƌĂĞĂĂƵƚŽĞƐƟŵĂ
si a estrada que lhe concederia a cida- ƋƵĞĞƌĂŵƉĞƌĐĞďŝĚŽƐƉĞůĂƐĐƌŝĂŶĕĂƐĞũŽǀĞŶƐƋƵĞƐĞĞŵƉŽůŐĂǀĂŵĐŽŵĂƐƉĞƌĨŽƌ-­‐
dania e tudo o que pudesse conquistar ŵĂŶĐĞƐĚŽŐƌƵƉŽ͘
através dela. (Fernandes, 1989, p. 38) KŚŝƉͲŚŽƉ͕ĞŶƋƵĂŶƚŽƵŵĂĐƵůƚƵƌĂƉŽůşƟĐĂŶĞŐƌĂ͕ďƵƐĐĂĚĞƐŵŝƐƟĮĐĂƌŽƐĞƐ-­‐
ƚĞƌĞſƟƉŽƐĞƉƌŽĚƵnjŝƌƵŵĂ͞ƉŽƐŝƟǀŝĚĂĚĞ͟ĚĂŝĚĞŶƟĚĂĚĞĚŽŶĞŐƌŽ͘
Percebemos que o protesto negro
criado pelo grupo do Ponto de Cultura ϲ͘>ĞŐŝƐůĂĕĆŽĨƌƵƚŽĚĂůƵƚĂŚŝƐƚſƌŝĐĂĚŽŵŽǀŝŵĞŶƚŽŶĞŐƌŽ͕ƋƵĞƚŽƌŶŽƵŽďƌŝŐĂ-­‐
102      CULTURA  CRÍTICA  14

Observatório de Hip-hop emerge num ƚſƌŝŽ͕ĂƉĂƌƟƌĚĞϮϬϬϯ͕ŶŽƐĞƐƚĂďĞůĞĐŝŵĞŶƚŽƐĚĞĞŶƐŝŶŽĨƵŶĚĂŵĞŶƚĂůĞŵĠĚŝŽ


momento de efervescência intelectual e ŽĮĐŝĂŝƐĞƉĂƌƟĐƵůĂƌĞƐ͕ŽĞŶƐŝŶŽĚĞ,ŝƐƚſƌŝĂĞƵůƚƵƌĂĨƌŽͲƌĂƐŝůĞŝƌĂ͘
mobilização política que tem efetivado de ϳ͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фďĂƐŝůŝŽ͘ĨƵŶĚĂũ͘ŐŽǀ͘ďƌͬƉĞƐƋƵŝƐĂĞƐĐŽůĂƌͬŝŶĚĞdž͘
forma conflituosa a implementação das ƉŚƉ͍ŽƉƟŽŶсĐŽŵͺĐŽŶƚĞŶƚΘǀŝĞǁсĂƌƟĐůĞΘŝĚсϲϮϵΘ/ƚĞŵŝĚсϭϵϱх͘  ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϭϬ
ações afirmativas e da lei nº 10.639/03, ũĂŶϮϬϭϮ͘
que se incluem na luta contra o preconcei- ϴ͘/ĚĞŵ͘
to racial e o modo como os negros foram ϵ͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬŽďƐĞƌǀĂƚŽƌŝŽĚŽŚŝƉŚŽƉ͘ǁŽƌĚƉƌĞƐƐ͘ĐŽŵͬƉĂŐĞͬϲͬх͘
definidos e incluídos na formação espacial ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϭϬũĂŶ͘ϮϬϭϮ͘
de nossa sociedade. ϭϬ͘ŝŶŚŽ<ϮĐŽŵĞŶƚŽƵĐĞƌƚĂǀĞnjƋƵĞ͕ĞŵƌĂnjĆŽĚĂƐhWWƐ;hŶŝĚĂĚĞĚĞWŽůşĐŝĂ
WĂĐŝĮĐĂĚŽƌĂͿŶĂĐŝĚĂĚĞĚŽZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͕ŵƵŝƚŽƐĐƌŝŵŝŶŽƐŽƐĞƐƚĂƌŝĂŵŵŝŐƌĂŶĚŽ
Para não concluir
ƉĂƌĂĂůŽĐĂůŝĚĂĚĞĞŵŽĚŝĮĐĂŶĚŽŽƌŝƚŵŽĚĞǀŝĚĂĚŽƐŵŽƌĂĚŽƌĞƐĚŽůƵŐĂƌ͘
A cartografia dos ativismos e ϵ͘ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬŽďƐĞƌǀĂƚŽƌŝŽĚŽŚŝƉŚŽƉ͘ǁŽƌĚƉƌĞƐƐ͘ĐŽŵͬƉĂŐĞͬϲͬх͘
movimentos sociais envolvidos com a ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϭϬũĂŶ͘ϮϬϭϮ͘
cultura hip-hop em várias partes do Bra- ϭϭ͘KrapperWƌĞƩƵ:ƷŶŝŽƌƚĞŵĞŶĨĂƟnjĂĚŽƉĞůĂƐƌĞĚĞƐƐŽĐŝĂŝƐŽďŽŝĐŽƚĞăƐŝŶƐƟ-­‐
sil, apesar das inúmeras contradições, ƚƵŝĕƁĞƐĞĞŵƉƌĞƐĂƐƋƵĞƉƌŽŵŽǀĞŵƌĂĐŝƐŵŽ͕ĞƐƚĞƌĞſƟƉŽĞĞƐƟŐŵĂƐăƉŽƉƵůĂĕĆŽ
apresenta ações afirmativas em sentido ŶĞŐƌĂ͘WĂƌĂĞůĞ͕ĐŽŵŽƋƵĂůƟǀĞŵŽƐĚĞnjĞŶĂƐĚĞĐŽŶǀĞƌƐĂƐ͕ĂƐƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂĕƁĞƐŶĂ
amplo. Entendemos que essas ações ex- ĐƵůƚƵƌĂƌĂĐŝƐƚĂĚŽŵŝŶĂŶƚĞƐſƐĆŽƉŽƐƐşǀĞŝƐƉĞůŽĐŽŶĨƌŽŶƚŽĚŝƌĞƚŽ͘
pressam um protagonismo negro, reivin- Referências
dicações de direitos sociais, lutas antirra-
cistas, afirmação política da identidade Zh͕D͘ƵůƚƵƌĂƉŽůşƟĐĂ͕ŵƷƐŝĐĂƉŽƉƵůĂƌĞĐƵůƚƵƌĂĂĨƌŽͲďƌĂƐŝůĞŝƌĂ͗ĂůŐƵŵĂƐ
ƋƵĞƐƚƁĞƐƉĂƌĂĂƉĞƐƋƵŝƐĂĞŽĞŶƐŝŶŽĚĞ,ŝƐƚſƌŝĂ͘/Ŷ͗^K/,d͕Z͘et  alli͘ƵůƚƵƌĂƐWŽůşƟ-­‐
negra e afrodescendente. cas:ĞŶƐĂŝŽĚĞŚŝƐƚſƌŝĂĐƵůƚƵƌĂů͕ŚŝƐƚſƌŝĂƉŽůşƟĐĂĞĞŶƐŝŶŽĚĞŚŝƐƚſƌŝĂ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗
As distintas formas de ações prota- DĂƵĂĚ͕ϮϬϬϱ͘
gonizadas por pessoas do universo hip-hop EZ͕͘E͘;ŽƌŐ͘Ϳ͘Rap  e  EducaçãoʹZĂƉĠĚƵĐĂĕĆŽ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗^ƵŵŵƵƐ͕
têm tido como consequência: a criação de ϭϵϵϵ͘
outros itinerários possíveis para os sujei- E^/DEdK͕D͘͘ƚƌĂũĞƚſƌŝĂĚĞǀŝĚĂĚĞDĂŶŽƌŽǁŶ͗ƵŵşĐŽŶĞĚŽŵŽǀŝŵĞŶƚŽ
tos silenciados e subalternizados em nossa ŚŝƉͲŚŽƉ͘hŶŝǀĞƌƐŝĚĂĚĞ&ĞĚĞƌĂů&ůƵŵŝŶĞŶƐĞʹĞŶƚƌŽĚĞƐƚƵĚŽƐ'ĞƌĂŝƐ͘ƵƌƐŽ
,ŝƐƚſƌŝĂ͕EŝƚĞƌſŝ͕ϮϬϬϯ͘;DŽŶŽŐƌĂĮĂĚĞĂĐŚĂƌĞůĂĚŽͿ͘
história; a transgressão e redefinição de &ZEE^͕&͘^ŝŐŶŝĮĐĂĚŽĚŽƉƌŽƚĞƐƚŽŶĞŐƌŽ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ŽƌƚĞnj͕ϭϵϴϵ͘
padrões normativos inscritos nas paisagens 'KD^͕:͘Arte  e  Educação:ĂĞdžƉĞƌŝġŶĐŝĂĚŽDŽǀŝŵĞŶƚŽ,ŝƉͲŚŽƉƉĂƵůŝƐƚĂŶŽ͘/Ŷ͗
como os grafites; a instauração de espaços EZ͕͘E͘;ŽƌŐ͘Ϳ͘Rap  e  EducaçãoʹZĂƉĠĚƵĐĂĕĆŽ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗^ƵŵŵƵƐ͕
de referência identitária para a cultura ne- ϭϵϵϵ͘
gra; a difusão pelas redes, tanto global (In- 'h/DZ^͕͘^͘͘Classe,  raça  e  democracia͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ĚŝƚŽƌĂϯϰ͕ϮϬϬϮ͘
'ZhWW/͕>͘O  conceito  de  hegemonia  em  Gramsci͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗'ƌĂĂů͕ϮϬϬϬ͘
ternet)11 quanto local (rádio comunitária), >K/EK͕Z͘/ĚĞŶƟĚĂĚĞĞƌĞůĂĕƁĞƐƌĂĐŝĂŝƐŶĂƵůƚƵƌĂ,ŝƉͲŚŽƉ͗hŵĂĂďŽƌĚĂŐĞŵ
formas de protesto e de criação negra e ĂŶƚƌŽƉŽůſŐŝĐĂ͘ZĞƋƵŝƐŝƚŽƉĂƌĂĂŽďƚĞŶĕĆŽĚŽŐƌĂƵĚĞĂĐŚĂƌĞůĞŵŝġŶĐŝĂƐ^ŽĐŝĂŝƐͬ
periférica. h&&͘EŝƚĞƌſŝ͕ϮϬϬϰ͘
A busca por tornar-se visível em >KW^͕E͘Enciclopédia  Brasileira  da  Diáspora  Africana͘^ĆŽWĂƵůŽ͗^ĞůŽEĞŐƌŽ͕ϮϬϬϰ͘
uma realidade urbana marcada pelo pre- K>/s/Z͕͘͘dĞƌƌŝƚŽƌŝĂůŝĚĂĚĞƐŶŽŵƵŶĚŽŐůŽďĂůŝnjĂĚŽ͗ŽƵƚƌĂƐůĞŝƚƵƌĂƐĚĞĐŝĚĂĚĞĂ
conceito, impessoalidade, distanciamento ƉĂƌƟƌĚĂĐƵůƚƵƌĂŚŝƉͲŚŽƉŶĂŵĞƚƌſƉŽůĞĐĂƌŝŽĐĂ͘EŝƚĞƌſŝ͗WƌŽŐƌĂŵĂĚĞWſƐͲ'ƌĂĚƵĂĕĆŽ
Ğŵ'ĞŽŐƌĂĮĂh&&͘ŝƐƐĞƌƚĂĕĆŽĚĞDĞƐƚƌĂĚŽ͕ϮϬϬϲ͘
dos diferentes que dissimula o racismo, faz ͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺ͘:ƵǀĞŶƚƵĚĞĞdĞƌƌŝƚŽƌŝĂůŝĚĂĚĞƐhƌďĂŶĂƐ͗ƵŵĂĂŶĄůŝƐĞĚŽŚŝƉͲŚŽƉŶŽ
com que os envolvidos com a cultura hip- ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͘/^ĞŵŝŶĄƌŝŽĚĞWĞƐƋƵŝƐĂ:ƵǀĞŶƚƵĚĞĞŝĚĂĚĞ͘hŶŝǀĞƌƐŝĚĂĚĞ&ĞĚĞƌĂů
hop criem uma forma de romper o ano- ĚĞ:ƵŝnjĚĞ&ŽƌĂ͕:ƵŝnjĚĞ&ŽƌĂ͕ϬϲĂϬϳŽƵƚ͘ϮϬϭϭ͘
nimato (Simmel,1987), isto é, tornam-se WKZdKͲ'KE>s^͕͘t͘ƚĞƌƌŝƚŽƌŝĂůŝĚĂĚĞƐĞƌƌŝŐƵĞŝƌĂ͘/Ŷ͗Revista  Geographia.  ZŝŽ
sujeitos. cc ĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ  ϭ͕Ϯ͕ϭϵϵϵ͘
^EdK^͘D͘  A  natureza  do  EspaçoͲƚĞŵƉŽĞƚĠĐŶŝĐĂƌĂnjĆŽĞĞŵŽĕĆŽ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗
ĚŝƚŽƌĂĚĂhŶŝǀĞƌƐŝĚĂĚĞĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ͕ϮϬϬϮ͘
ͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺ͘ƐĞdžĐůƵƐƁĞƐĚĂŐůŽďĂůŝnjĂĕĆŽ͗WŽďƌĞƐĞŶĞŐƌŽƐ͘/Ŷ͗&ZZ/Z͕͘D͘
Denilson  Oliveira  é  Doutor  em  Geografia  
;ŽƌŐ͘Ϳ͘Na  própria  pele:KƐŶĞŐƌŽƐŶŽZŝŽ'ƌĂŶĚĞĚŽ^Ƶů͘WŽƌƚŽůĞŐƌĞ͗ŽƌĂŐ͕ϮϬϬϬ͕
pela   Universidade   Federal   Fluminense  
Ɖ͘ϵͲϮϭ͘
e   professor   adjunto   da   Faculdade   de  
^/DD>͕'͘ŵĞƚƌſƉŽůĞĞĂǀŝĚĂŵĞŶƚĂů͘/Ŷ͗s>,K͕K͘'͘O  fenômeno  urbano͘ZŝŽ
Formação  de  Professores  da  UERJ.  
ĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗'ƵĂŶĂďĂƌĂ͕ϭϵϴϳ͘
(araujo.denilson@gmail.com)
CULTURA  CRÍTICA  14        103
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ

Espaço, política e cultura


Breves considerações acerca do movimento hip-hop
GLAUCO  BRUCE  RODRIGUES

Espaço e sociedade populares, a caracterização do hip-hop movimento hip-hop, buscando ressal-


como um ativismo social, a questão de tar que, mais do que um simples palco

E xistem diversas formas de se


apreender, discutir e analisar
o movimento hip-hop: a partir
de suas práticas culturais (rap, break e
grafite), a análise do discurso crítico
gênero, suas formas de organização, as
atividades políticas e culturais que são
desenvolvidas pelos seus protagonistas,
as relações entre o espaço urbano e o
movimento. Em outras palavras, são
onde as ações sociais se desenvolvem, o
espaço geográfico é um elemento que
constitui o próprio movimento (Ro-
drigues, 2005). O que nos interessa
diretamente é deixar explícito aquilo
produzido pelos seus protagonistas diversas as possibilidades e os cami- que podemos denominar de espacia-
(principalmente em relação ao racis- nhos para apreendermos a rica dinâmi- lidade do social, ou seja, as relações
mo, à violência policial e às desigual- ca deste movimento político e cultural imanentes entre as ações sociais e a
dades socioeconômicas), a relação ao longo do tempo e do espaço. dinâmica de produção, organização e
entre hip-hop e educação, a história Vamos desenvolver, aqui, algu- apropriação do espaço geográfico pela
do movimento em si, o potencial po- mas reflexões a partir das relações en- sociedade; ou seja, queremos explorar
lítico e pedagógico para mobilizações tre o espaço geográfico e a dinâmica do e explicitar a espacialidade do hip-hop.
104      CULTURA  CRÍTICA  14

A ideia da espacialidade do social presentações, discursos e formas de Tampouco devemos considerá-lo uma
está fundada no princípio de que não apropriação do espaço que passam pela instância social autônoma, com leis pró-
existe nenhuma sociedade a-espacial subjetividade, pela estética e pelas per- prias de desenvolvimento. Trata-se de
ou a-geográfica, desprovida de uma es- cepções corpóreas. A espacialidade não incorporar o espaço como uma catego-
pacialidade material e subjetiva que lhe possui apenas uma dimensão material, ria imanente às relações sociais, uma vez
permita constituir-se, reproduzir-se e concreta e objetiva, mas implica a pro- que as ciências sociais1, em grande par-
transformar-se no decorrer da sua dinâ- dução de uma subjetividade individual te, o negligenciaram2 como uma catego-
mica sócio-espacial. Em outras palavras, e coletiva, que é a base dos discursos, ria fundamental para a compreensão da
toda sociedade humana, para se consti- representações e significados que dão sociedade.
tuir enquanto tal, necessita espacializar-- sentido e organizam o espaço e deter- O espaço geográfico, nessa
-se e territorializar-se. Por este proces- minadas relações sociais. A produção de perspectiva, é um produto social, que
so, entendemos: subjetividade não é um dado acessório expressa um conjunto de relações so-
ou secundário, mas ela funda as próprias ciais e de poder, ao mesmo tempo que
‡ $ WUDQVIRUPDomR GD QDWXUH]D SHOR relações sociais e de poder, legitimando é condição para a reprodução ou insti-
trabalho humano produzindo objetos e dando sentido a práticas sociais con- tuição de novas relações sociais. O es-
(cidades, portos, pontes, plantações, re- cretas (Relph, 1979; Tuan, 1983; Guat- paço geográfico é um produto social na
presas) e organizando-os de acordo com tari e Rolnik, 1986; Guattari, 1992). medida em que ele é produzido pelas
a organização política, econômica e cul- ‡ $ SROtWLFD H R SRGHU VmR HOHPHQWRV sociedades humanas através da trans-
tural de cada sociedade (Santos, 1977, constitutivos da espacialidade do social, formação da natureza, pela atribuição
2002; Quaini, 1979 e 1983; Oliveira, pois através deles são estabelecidas nor- de sentidos e significados, o que implica
1982). Assim, a transformação da natu- mas, regras e valores hegemônicos em uma apropriação simbólica e subjetiva e
reza pelo trabalho humano (que é uma uma dada sociedade e até onde este con- por um ordenamento político e econô-
relação social e de poder e não apenas junto de regras é válido, instituindo um mico (logo, um ordenamento vinculado
uma relação econômica) implica uma território (Sack, 1986; Raffestin, 1993; às relações de poder) do território, das
nova organização do espaço e em uma Souza, 1995). A política e o poder são forças produtivas, dos recursos naturais
determinada relação sociedade-natureza relações estabelecidas entre os homens e da população. As sociedades humanas
(predatória como as sociedades urbano-- para se definir o conjunto de regras que são distintas entre si, justamente por-
-industriais modernas; não-predatória, organizam a sociedade, a distribuição que cada uma é caracterizada por um
como sociedades tradicionais). dos objetos, pessoas (grupos e classes determinado conjunto de relações so-
‡ 3HOD SURGXomR GH VLJQLILFDGRV UH- sociais) dentro de um território e o li- ciais e de poder, que constituem uma
mite até onde vigoram estas regras. determinada organização social, políti-
‡$HVSDFLDOLGDGHGRVRFLDOLPSOLFDXPD ca, econômica e cultural hegemônica e
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ

relação de imanência entre sociedade e relativamente estável. Uma vez que as


espaço, onde os termos não podem ser sociedades humanas são diferentes en-
analisados separadamente. A ideia da es- tre si, o espaço geográfico produzido
pacialidade do social refuta a percepção por cada uma delas será singular. Em
de que o espaço geográfico é um palco outras palavras, cada sociedade, a par-
para as ações humanas, algo externo à tir das relações sociais e de poder que
sociedade, remetendo à ideia de homo a constituem, expressa sua própria es-
geographicus de Sack (1997). pacialidade, ou seja, uma determinada
organização sócio-espacial. Vamos dar
Trata-se de considerar o espaço dois exemplos extremos de como as
geográfico como uma categoria cons- sociedades humanas expressam essa es-
tituinte da sociedade e não como um pacialidade. 1. Ao se tornar sedentário,
fenômeno secundário, como um palco é necessário que o homem domine téc-
onde a História se realiza, apenas como nicas que lhe permitam trabalhar o solo,
um produto material, ou reduzido controlar o ritmo de crescimento de
às noções de distância e localização. vegetais, domesticar animais. Tudo isso
implica organizar o espaço da agricul- A espacialidade é imanente à sociedade
tura, do pastoreio, da moradia, do ce- porque também é um dos componentes

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ
mitério, das festas, delimitar campos de da condição humana; ela é um processo
caça, etc. Uma série de relações sociais de construção e instituição permanente e
e atividades são instituídas a partir dessa imanente da própria sociedade. Esta só se
espacialidade. 2. Uma sociedade urbana constitui e se institui completa e conti-
industrial está fundada em uma divisão nuamente, enquanto espaço, produzin-
entre cidade e campo, constituição de do-o e organizando-o, não apenas, en-
complexos e eficientes conjuntos tec- quanto tempo.
nológicos que permitem a produção e Essas considerações foram ne-
transmissão de energia (hidroelétricas, cessárias para deixar mais clara nossa
cabos de transmissão, usinas nucleares, proposta neste pequeno texto. A partir
termoelétricas, etc.), significativo con- dessas reflexões, vamos procurar expli-
trole da natureza através destes conjun- citar aquilo que denominamos de espa-
tos técnicos, elevado grau de exploração cialidade do movimento hip-hop. O que
e degradação dos ecossistemas, produ- significa isso? Vamos procurar explicitar
ção, circulação e consumo de mercado- as relações entre o espaço e a dinâmica
rias e serviços nas cidades; aglomeração do movimento, tentando identificar os
da população em pontos da superfície seguintes pontos:
terrestre, calcadas em intensos padrões 1. O espaço de referência iden-
de segregação sócio-espacial, faveliza- titária, ou seja, a identidade e a subje-
ção e periferização, além de amplas de- tividade coletiva produzida com uma
sigualdades regionais. referência explicitamente espacial que texto, e por levar em conta a dinâmi-
O espaço geográfico, além de funda e constitui o próprio movimento; ca complexa do próprio hip-hop, não
ser um produto, também é uma condi- 2. O espaço enquanto lugar, ou vamos analisar ponto por ponto sepa-
ção de existência e de reprodução para a seja, uns espaços vividos e percebidos, radamente, mas estabelecendo relações
própria sociedade. Afinal, uma socieda- apropriados simbólica e afetivamente, o e conexões entre os diversos elementos
de só se constitui efetivamente a partir que permite a produção de novos dis- ao longo de nossa análise.
do momento em que institui para si uma cursos e práticas sobre o espaço, parti-
espacialidade própria. Tal espacialidade cularmente, sobre o espaço urbano; As cidades e o hip-hop: a
é a condição de existência e de reprodu- 3. As formas de manifestação do trajetória geográfica e as
ção das relações sociais e de poder desta hip-hop no espaço urbano; questões do movimento
sociedade pelas futuras gerações, que 4. A forma como o substrato es-
herdarão o espaço produzido pelas gera- pacial (a materialidade) influencia, con- O hip-hop surge nos Estados
ções anteriores. É importante salientar diciona ou determina as demandas ou Unidos, mais precisamente nos guetos
que o espaço é transformado, dentro das questões que são a razão de existência negros da cidade de NovaYork, no final
possibilidades existentes, para atender a do ativismo (carência e deficiência dos da década de 1960 e início da década de
novas necessidades socialmente criadas bens de consumo coletivo, poluição, se- 1970, e rapidamente é disseminado para
ou para expressar transformações pro- gregação sócio-espacial, etc.); outros guetos de grandes cidades norte--
fundas nas relações sociais e de poder de 5. A forma como a dinâmica -americanas e, posteriormente, para o
uma determinada organização social (o sócio-espacial da cidade contribui para mundo.
que ocorre no caso de processos revolu- a constituição do hip-hop, levando em Apesar de ter surgido nos Esta-
cionários, por exemplo). consideração as relações sociais e de po- dos Unidos, podemos pensar o hip-hop
A espacialidade do social se faz der, que expressam e reproduzem rela- mais como um movimento político-cul-
através das práticas e relações sociais ções de desigualdade e exploração (vio- tural, que já nasce globalizado, do que
imanentes aos próprios homens. O es- lência policial, concentração de renda, como uma experiência genuinamente
paço geográfico não vem antes ou de- racismo, etc.). norte-americana. Dessa forma, pode-
pois da sociedade, mas é imanente a ela. Em função dos limites deste mos dizer o seguinte: o hip-hop nasce
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globalizado em território norte-ameri- lecidos bairros, escolas, bares, boates,

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞZƵĂϮϰĚĞDĂŝŽ
cano. Defendemos essa tese porque os meios de transporte, para que cada gru-
elementos que o constituíram estavam po ocupe um lugar específico no espa-
espalhados pelo mundo e serão articu- ço. Tal política exige a disciplinarização
lados e agenciados nos Estados Unidos. e o controle dos corpos no espaço para
Da África vieram as influências na dança manter a ordem, as pessoas e as coisas nos
e nos ritmos musicais; dos latinos tam- seus devidos lugares.
bém vieram influências rítmicas para a Enquanto expressão de relações
música e principalmente para a dança, heterônomas estruturais da sociedade
além de vir da Jamaica o costume de se norte-americana fundadas no racismo,
fazerem festas simplesmente levando os a segregação legitima uma sociedade
aparelhos de som às ruas e improvisan- desigual. A sua espacialidade imanente a
do falas em cima da música (possivel- tais relações heterônomas manifesta-se
mente dando origem aos primeiros DJs nos guetos urbanos. Os guetos podem
e MCs); dos negros americanos temos ser entendidos como enclaves territo-
toda a produção cultural (spiritual, gos- riais étnicos, bairros caracterizados pela
pel, soul, blues e principalmente o funk). precária infraestrutura de serviços ur-
Os elementos que o constituíram são banos básicos (escolas, postos de saúde,
indissociáveis do movimento de des- iluminação, limpeza, segurança e trans- engloba essas duas “dimensões” da vida
territorialização e reterritorialização porte), baixa renda da população, aces- humana, que não podem ser vistas de
da população negra e latina ao longo do so somente aos piores empregos e salá- forma separada; rompe com uma forma
processo de formação e desenvolvimen- rios, altas taxas de desemprego, maior de pensar e agir que fragmenta a vida hu-
to do mundo colonial. A arte pode ser grau de violência urbana (gangues, por mana em “esferas” – política, econômica,
identificada como um importante fator exemplo), violência policial, etc. cultural e social3. O hip-hop nos mostra
de reterritorialização dessas populações O final da década de 1960 e iní- como a economia, a cultura e a política
expropriadas e escravizadas ao longo do cio da década de 1970 são marcados por perpassam uma pela outra, constituindo
processo de desenvolvimento do capi- inúmeros movimentos que lutam pelos um movimento do socius que não pode
talismo. Por isso defendemos a tese de direitos civis da população negra e con- ser esquartejado. Através da arte e da
que o hip-hop é produto de uma globa- tra o racismo. O hip-hop surge neste cultura se faz política, que, por sua vez,
lização dos “de baixo”, uma expressão contexto como uma forma de sociabi- é matéria-prima para a arte e a cultura.
contemporânea de um movimento de lidade e mobilização política através da O hip-hop rapidamente será dis-
resistência e reinvenção do cotidiano arte e da cultura, principalmente da ju- seminado para outras cidades dos Esta-
dominado por relações heterônomas. ventude. São criados espaços de encon- dos Unidos e daí para o mundo. A sua
No caso do hip-hop, os elementos cita- tros, diversão e lazer onde a sociabilida- disseminação pelo mundo só foi possí-
dos anteriormente podem ser conside- de, a mobilização política e a produção vel através da apropriação das técnicas
rados como fluxos que são agenciados, de uma identidade andam juntas.Tais es- de comunicação e produção musical.
misturados e ressingularizados em um paços são públicos (ruas, praças, quadras De posse desse aparato tecnológico, as
outro contexto sócio-espacial caracte- de esporte) ou privados (bares, clubes e informações e a produção artística do
rizado pela a política segregacionista boates) e neles se desenvolvem as fes- movimento puderam ser conhecidas em
norte-americana. tas e os bailes de hip-hop, onde rappers, outros lugares (principalmente favelas e
A política segregacionista está grafiteiros e b.boys (dançarinos de break) periferias das grandes cidades mundiais)
calcada no racismo da população branca irão se encontrar. É nesses espaços que e passam por um novo processo de res-
em relação aos não-brancos (asiáticos, o hip-hop, enquanto movimento polí- singularização.
latinos e, principalmente, naquele mo- tico-cultural, começa a tomar forma. Os elementos que constituem o
mento, negros). Ela estabelece uma rí- A partir do momento em que a cultura hip-hop serão os mesmos, no entanto,
gida separação espacial entre os grupos encontra a política, surge o hip-hop, que serão ressingularizados de acordo com
sociais utilizando a etnia como referên- não pode ser caracterizado apenas como o novo socius onde estão engendrados:
cia identitária. Dessa forma, são estabe- um movimento cultural ou político. Ele o hip-hop colombiano demonstra uma
preocupação com a questão dos confli- ria”,“grito da periferia”.4
tos entre o Estado, as FARC e guerrilhas Essa forma de autoidentificar/
de direita; em Cuba, levanta-se a ques- nomear o movimento indica a relação
tão da censura e do racismo; na França, de imanência entre o movimento e o es-
os imigrantes argelinos, por exemplo, se paço geográfico (que se faz território e
colocam contra a xenofobia, o racismo e lugar), pois indica que os elementos que
a vida nas periferias francesas; em São o constituem encontram-se justamente

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞĞůĂsŝƐƚĂ
Paulo discute-se o problema do crack; nas periferias. O conteúdo das letras, as
no Rio de Janeiro é o poder do tráfico gírias, os códigos, as normas, a estética
e seus impactos socioeconômicos, etc. das roupas, o ritmo das músicas, o gra-
Através de redes comunicativas, fite, tudo isso se constrói a partir dos
chegam ao Brasil revistas, discos, víde- agenciamentos que são feitos na perife-
os, filmes e fitas, primeiro em São Paulo ria e nas suas relações com outras partes
e logo depois no Rio de Janeiro e daí da cidade.
para Salvador, Porto Alegre, Fortaleza, No caso do hip-hop a experiên-
etc. Em São Paulo e no Rio de Janeiro o cia de condições objetivas e subjetivas
hip-hop é disseminado através de festas de existência do espaço urbano leva à
e bailes de black music (soul, funk), jus- criação de um conjunto de críticas que
tamente no momento de fortalecimen- pode ser considerado como seu núcleo
to do movimento negro do Brasil e de discursivo. Esse conjunto crítico é for-
valorização da cultura e estética negra. mado pelos seguintes elementos:
Os bailes serão espaços de sociabilidade
fundamentais para que o hip-hop pos- 1. A crítica à segregação sócio- ção, saúde, transporte, saneamento,
sa ser apropriado pelos seus frequen- espacial, onde esta é entendida como HGXFDomR HWF ð HP IDYHODV H SHULIH-
tadores. Daí, os elementos do hip-hop uma expressão das desigualdades es- rias brasileiras e, principalmente, em
passaram a ser conhecidos, estudados, truturais de uma sociedade capitalista relação às políticas de segurança, onde
praticados e produzidos nas favelas e pe- semiperiférica instituída pelas relações a violência policial contra a população
riferias brasileiras. heterônomas entre morro e asfalto ou desses espaços é sistemática e arbitrária.
As periferias conseguiram se centro e periferia. Além disso, podemos acrescentar a falta
apropriar das técnicas hegemônicas de 2. Crítica à subjetividade hege- de canais institucionais de participação
comunicação, produção musical e visu- mônica que representa a favela e a pe- política efetiva que garantam os direitos
al, bem como de técnicas das artes plás- riferia como o espaço da violência, do políticos e civis estabelecidos nos mar-
ticas e da indústria de tintas, jets, etc., caos, cujos moradores são os principais cos da democracia representativa.
para imprimir o seu tempo, sua voz, suspeitos dos crimes e responsáveis pela
seu corpo, suas grafias, suas ideias e seu maioria dos problemas da cidade (vio- Dentro do conjunto crítico, po-
território no mundo. Por esse motivo, lência, insegurança, assaltos, tráfico de demos identificar duas questões que
vamos designar o hip-hop como um ati- drogas, “arrastões”, ocupação de encos- aglutinam as demais e possuem o maior
vismo político-cultural produzido nas tas, poluição de rios e lagoas). São os es- destaque no discurso e na subjetividade
periferias e favelas do mundo. paços cancerosos, os tumores da cidade. singular do movimento, que são a crítica
O ponto de partida para apre- 3. A crítica contundente ao ra- à segregação sócio-espacial e ao racismo.
ender a espacialidade do hip-hop é ana- cismo brasileiro e ao mito da democra- A crítica à segregação sócio-es-
lisar a relação entre hip-hop, favelas e cia racial, entendidos pelo hip-hop como pacial aglutina as questões das desigual-
periferias. É explícito no discurso dos componentes estruturais da sociedade dades socioeconômicas (desemprego,
protagonistas como a vivência nesses es- brasileira que não podem ser considera- subemprego, renda, etc.), acesso aos
paços conforma a subjetividade coletiva dos “contradições secundárias”. bens de consumo coletivo (hospitais,
do movimento. O hip-hop, em diversos 4. A crítica às ações do Estado, moradia, transporte público, saneamen-
momentos, é definido a partir desse es- seja por omissão ou precariedade de to, iluminação, educação, etc.), inexis-
paço como “cultura de rua”, “voz da perife- serviços públicos essenciais – habita- tência ou precariedade de políticas de
Negro drama, eu sei quem trama cado pela inexistência ou precariedade
e quem tá comigo, o drama que eu de serviços públicos, elevado grau de
carrego para não ser mais um preto violência, desemprego (ou subempre-
fudido, o drama da cadeia e favelas, go), baixa renda, indicadores sociais
túmulos, sangue, sirene, choros e UXLQV RX SpVVLPRV HWF ð PDV TXH DR
velas (...) eu vivo o negro drama, mesmo tempo possui suas singularida-
eu sou o negro drama, eu sou o fru-
des. A letra é a seguinte:
to do negro drama (Negro Drama).
Periferia é periferia. “Milhares de
Essa formulação é uma das prin- casas amontoadas.”
cipais contribuições políticas do hip-hop Periferia é periferia. “Vacilou, ficou
pois, de forma hegemônica, tanto a es- pequeno. Pode acreditar.”
querda quanto o discurso conservador Periferia é periferia. “Em qualquer
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ

e reacionário separavam as duas ques- lugar. Gente pobre.”


tões. A esquerda, de forma hegemônica, Periferia é periferia. “Vários bote-
sempre tratou o problema do racismo cos abertos. Várias escolas vazias.”
Periferia é periferia. “E a maioria
como uma contradição secundária do
por aqui se parece comigo.”
modo de produção capitalista, como Periferia é periferia. “Mães cho-
um problema da superestrutura. Uma rando. Irmãos se matando. Até
vez que a revolução fosse levada a cabo quando?”
pelos trabalhadores, uma vez que a con- Periferia é periferia. “Em qualquer
tradição principal estivesse superada, o lugar. É gente pobre.”
racismo poderia ser eliminado.5 Periferia é periferia. “Aqui, meu
A crítica à segregação sócio-es- irmão, é cada um por si.”
pacial engloba a materialidade dos es- Periferia é periferia. “Molecada
paços segregados em si e dos discursos sem futuro eu já consigo ver.”
preconceituosos construídos sobre es- Periferia é periferia. “Aliados,
ses espaços que legitimam e reprodu- drogados, então...”
Periferia é periferia. “Deixe o cra-
zem relações violentas, discriminação,
ck de lado, escute o meu recado.”
desrespeito, arbitrariedades, etc. Esse (Racionais MC’s, “Periferia é peri-
ponto é fundamental, pois existe um feria (em qualquer lugar)”)
discurso hegemônico que se materializa
em práticas concretas de poder. A letra descreve o conteúdo só-
planejamento e gestão urbanos (com des- O hip-hop constrói uma rede cio-espacial da periferia. As imagens são
taque para a habitação), violência policial discursiva crítica a essa formulação he- contundentes e conseguem conciliar a
e segurança pública. O racismo, por sua gemônica e parte de uma interessante questão de racismo e classe, destacando
vez, é articulado à crítica da segregação formulação da segregação sócio-espa- a condição do negro de duplamente ex-
como um dos seus elementos estruturais cial: quando os Racionais MC’s, um dos plorado e marginalizado:“Em qualquer
e não como uma causa secundária. mais importantes e influentes grupos de lugar. Gente pobre (...) E a maioria aqui
A questão fundamental que o rap do Brasil, criam a música “Periferia é se parece comigo”. As casas amontoa-
hip-hop coloca é da inseparabilidade en- periferia (em qualquer lugar)”, nos per- das, consequência de um processo de
tre o racismo e as desigualdades de clas- mitem pensar o caráter globalizado da urbanização calcado na espoliação urba-
se no Brasil, onde ambas perpassam uma periferia. Em outras palavras, podemos na (Kowarick, 1993); os botecos aber-
à outra, constituindo um único processo pensar que a periferia está por todo es- tos e as escolas vazias são um retrato da
que produz e organiza um espaço urba- paço desde que exista um centro que a ausência do Estado como provedor de
no segregado. Podemos observar essa subordina a partir de relações de poder direitos básicos, como educação; mães
formulação nos trechos a seguir, das heterônomas. Assim, existe um caráter chorando, irmãos se matando na violên-
músicas do grupo Racionais MC’s: global para a periferia – um espaço mar- cia cotidiana do tráfico de drogas, con-
CULTURA  CRÍTICA  14        109

flitos com a polícia e desentendimentos sua produção cultural é também uma lar pros caras da área, e ficava pa-
do dia a dia; são todos elementos que forma de se fazer política, pois afirma recendo que não éramos nós. Aí eu
caracterizam as periferias não só de São outras formas de ser e estar no mundo, falei: ‘Não, para, mano!’6
Paulo ou do Brasil, mas do mundo. Por outros modos de existência.
isso, ao mesmo tempo que mantém um O hip-hop é constituído por As letras dos raps são verdadei-
forte laço com o espaço de referência três elementos centrais: o rap, o break ras crônicas do cotidiano das periferias,
subjetiva, o hip-hop contém um ele- e o grafite. são relatos do dia a dia dos seus mo-
mento de caráter global que caracte- O rap é a música, é um canto radores feitos de forma extremamen-
riza a cidade brasileira do capitalismo (às vezes, um verdadeiro discurso) em te crítica, que nos permite fazer uma
semiperiférico, que é a constituição de cima de uma base musical, geralmen- importante leitura das contradições
espaços de pobreza, segregação e explo- te eletrônica. Esse é o elemento que e conflitos que existem na sociedade.
ração do trabalho baseados em macros e conseguiu atingir o maior grau de po- Através do discurso do hip-hop pode-
micros estruturas, mecanismos e práti- pularidade, através do qual o hip-hop mos buscar a compreensão das princi-
cas de poder disseminadas pelas diversas consegue se expressar de forma mais pais clivagens da sociedade brasileira: o
práticas humanas: no trabalho, na eco- direta e contundente. A maior parte da racismo, desigualdades de toda ordem,
nomia, na produção de subjetividade e força do discurso do hip-hop vem da a concentração de renda, a cidadania
de desejo, na política, etc. sua produção musical. mutilada, a segregação sócio-espacial,
Um rap possui três elementos a opressão e a violência física, psicoló-
Os elementos do hip-hop centrais: a base musical (melodia, rit- gica e subjetiva que são exercidas por
O hip-hop deve ser compreen- mo e harmonia), a forma (rimas, or- instituições do Estado (com destaque
dido como uma forma de ação social tografia) e o conteúdo. A questão fun- para a polícia) e pela construção de dis-
coletiva produzida na experiência coti- damental é encontrar uma harmonia cursos e imagens estigmatizantes pelas
diana de seus protagonistas nas grandes entre os três elementos. A linguagem elites e classes médias.
cidades do mundo. Em outras palavras, utilizada pelo hip-hop é a do cotidia- O break é o elemento do hip-hop
é a experiência concreta das relações no, com gírias e expressões locais, que que trabalha com a potência do corpo.
sociais e de poder, da materialidade e podem causar estranheza para quem A dança é uma arte que busca explorar
da subjetividade que constituem o es- escuta uma música; afinal, a produ- essas potencialidades e possibilidades,
paço urbano que é a força matriz dessa ção artística é imanente ao território construindo uma nova linguagem, uma
ação coletiva. É a relação imanente en- da vida, logo, a linguagem do hip-hop nova forma de expressão, em que não
tre o espaço urbano e os protagonistas é a linguagem do seu território, é a existe a necessidade da interpretação,
que produz o hip-hop. linguagem singular de cada periferia, apenas da captação da força do movi-
O hip-hop pode ser considera- ainda que se considere que “periferia mento do corpo.
do um ativismo político-cultural urba- é periferia em qualquer lugar”. Dessa O break abre a possibilidade da
no. Em primeiro lugar, é produtor de forma, o hip-hop busca ser o mais au- apropriação do espaço público (ruas, pra-
cultura, ou seja, de novas formas de têntico possível na construção do seu ças, estações de metrô, etc.) por um curto
ser e estar no mundo, de novas esté- discurso. A preocupação com a lingua- período de tempo, mas que significa um
ticas e linguagens (corporais, musicais gem é explicada pelo fato de o rapper ato de intervenção político-cultural na
e plásticas). Através dos seus elemen- querer ser totalmente compreendido dinâmica urbana, pois leva uma nova es-
tos constituintes, o hip-hop gera novas pelas pessoas que escutam sua música. tética, um novo ritmo, uma nova lingua-
formas de produção artística que são O trecho de uma entrevista dada por gem e um novo tempo que não é o tempo
inseparáveis de novas formas de agir. Mano Brown, integrante do Racionais hegemônico das relações de trabalho, da
Quando falamos em novas produções MC’s é elucidativo: reprodução do capital, dos transportes,
artísticas que engendram ou apontam da multidão que passa. Quando os b.boys
Tinha medo de falar gíria, de ser
para novas relações sociais, estamos fa- levam o break para o centro de uma me-
mal interpretado, da música ser
lando de política. E a política é o prin- vulgar. Se você ouvir, vai ver que trópole como Rio de Janeiro ou São Pau-
cipal alimento para a produção artística as palavras... parece que eu sou lo, conseguem fazer um minúsculo espaço
desse movimento. Para produzir cultu- um professor universitário... Tudo da cidade parar para observar o ritmo do
ra, ele se alimenta de política. Logo, a quase semianalfabeto querendo fa- novo corpo que ocupa a cidade.
110      CULTURA  CRÍTICA  14

O grafite é a arte mais visível


Notas
na cidade, é aquela pela qual o hip-hop
intervém de forma mais direta na pai- ϭ͘^ŽƵnjĂ;ϭϵϵϳͿŶŽƐůĞŵďƌĂĚĞŝŵƉŽƌƚĂŶƚĞƐĞdžĐĞĕƁĞƐƋƵĞǀĂůŽƌŝnjĂƌĂŵĂĚŝŵĞŶƐĆŽ
sagem urbana. São desenhos e inscri- ĞƐƉĂĐŝĂůĚĂƐŽĐŝĞĚĂĚĞ͕ĐŽŵŽǀŽŶdŚƺŶĞŶ͕ůĨƌĞĚtĞďĞƌ;ĞĐŽŶŽŵŝƐƚĂƐͿĞŚƌŝƐƚĂůůĞƌ
ções feitos nos muros das cidades, que ;ĞĐŽŶŽŵŝƐƚĂĞŐĞſŐƌĂĨŽͿĞƉĞůĂƐŽĐŝŽůŽŐŝĂĂƐĐŽůĂĚĞŚŝĐĂŐŽĞƵŵĂƉĂƌƚĞƐŝŐŶŝĮĐĂƟǀĂ
ĚĂ^ŽĐŝŽůŽŐŝĂhƌďĂŶĂ͘
não devem ser confundidas com picha- Ϯ͘ŝǀĞƌƐŽƐŐĞſŐƌĂĨŽƐũĄĂƉŽŶƚĂƌĂŵ͕ŚĄƚĞŵƉŽ͕ƚĂůŶĞŐůŝŐġŶĐŝĂ͕ĐŽŵŽ,ĂƌǀĞLJ͕ϭϵϳϱ͕
ções. Se olharmos com atenção para as ϭϵϴϬĞϭϵϵϲ͖^ŽũĂ͕ϭϵϴϬĞϭϵϵϯ͖^ĂŶƚŽƐ͕ϭϵϳϴĞϭϵϵϲ͖^ŽƵnjĂ͕ϭϵϴϴď͕ϭϵϵϳ͕ϮϬϬϬ͖'ŽŶ-­‐
grandes cidades brasileiras, poderemos ĕĂůǀĞƐ͕ϮϬϬϮ͘ƐƐĂŶĞŐůŝŐġŶĐŝĂƐĞĂƉƌĞƐĞŶƚĂĚĞǀĄƌŝĂƐĨŽƌŵĂƐ͗
perceber facilmente o grande cresci- ͻKĞƐƉĂĕŽĠƵƟůŝnjĂĚŽĂƉĞŶĂƐĐŽŵŽƵŵĂŵĞƚĄĨŽƌĂƉĂƌĂŝŶĚŝĐĂƌĂĂďƌĂŶŐġŶĐŝĂĚĞƵŵ
mento do grafite no Brasil. O grafite ĚĞƚĞƌŵŝŶĂĚŽƉƌŽĐĞƐƐŽŽƵĨĞŶƀŵĞŶŽ;͞ĞƐƉĂĕŽůŝƚĞƌĄƌŝŽ͕͟͞ĞƐƉĂĕŽƉƐŝĐŽůſŐŝĐŽ͕͟͞ĞƐƉĂĕŽ
ĞĐŽŶƀŵŝĐŽ͟ͿĞŶĆŽƵŵĂĐĂƚĞŐŽƌŝĂĚĞĂŶĄůŝƐĞĨƵŶĚĂŵĞŶƚĂůƉĂƌĂĂĐŽŵƉƌĞĞŶƐĆŽĚĂƐ
é a expressão de uma nova estética e ƉƌĄƟĐĂƐŚƵŵĂŶĂƐ͘ƐƚĂƉĞƌĐĞƉĕĆŽ͕ŝŵƉůŝĐŝƚĂŵĞŶƚĞ͕ƌĞĚƵnjĞƐŝŵƉůŝĮĐĂŽĞƐƉĂĕŽĂƵŵĂ
de uma nova subjetividade coletiva que ĄƌĞĂĚĞĂďƌĂŶŐġŶĐŝĂĞŽĐŽƌƌġŶĐŝĂĚĞƵŵĨĞŶƀŵĞŶŽŽƵƉƌŽĐĞƐƐŽƐſĐŝŽͲĂŵďŝĞŶƚĂů͘
se apropria do espaço da cidade, dando ^ĂŶƚŽƐ;ϭϵϵϲͿŶŽƐůĞŵďƌĂƋƵĞ͞ĐŽŶĐĞŝƚŽƐĞŵƵŵĂĚŝƐĐŝƉůŝŶĂƐĆŽĨƌĞƋƵĞŶƚĞŵĞŶƚĞĂƉĞ-­‐
visibilidade para grupos sociais histori- ŶĂƐŵĞƚĄĨŽƌĂƐŶĂƐŽƵƚƌĂƐ͕ƉŽƌŵĂŝƐǀŝnjŝŶŚĂƐƋƵĞƐĞĞŶĐŽŶƚƌĞŵ͘DĞƚĄĨŽƌĂƐƐĆŽŇĂƐŚĞƐ  
ŝƐŽůĂĚŽƐ͕ŶĆŽƐĞĚĆŽĞŵƐŝƐƚĞŵĂƐĞŶĆŽƉĞƌŵŝƚĞŵƚĞŽƌŝnjĂĕƁĞƐ͟;Ɖ͘ϳϬͿ͘^ĞŵĚƷǀŝĚĂ͕
camente silenciados e marginalizados ĞƐƐĂĨĂůƚĂĚĞƌŝŐŽƌ͕ĚĞƐĐŽŶŚĞĐŝŵĞŶƚŽĞŶĞŐůŝŐġŶĐŝĂƐĆŽƵŵŽďƐƚĄĐƵůŽĂŽĚŝĄůŽŐŽĚĂƐ
(principalmente jovens negros e mora- ĚŝǀĞƌƐĂƐĚŝƐĐŝƉůŝŶĂƐĚĂƐĐŝġŶĐŝĂƐƐŽĐŝĂŝƐĞŶƚƌĞƐŝĞĞŶƚƌĞĞƐƚĂƐĞĂƐĐŝġŶĐŝĂƐŶĂƚƵƌĂŝƐ͘
dores de favelas e periferias). A apro- ͻƐƐŽĐŝĞĚĂĚĞƐƚĞŶĚĞŵĂƐĞƌĂŶĂůŝƐĂĚĂƐĚĞĨŽƌŵĂĂͲĞƐƉĂĐŝĂů͕ĐŽŵŽƐĞĂƉƌŽĚƵĕĆŽĞ
priação do espaço urbano se dá através ŽƌŐĂŶŝnjĂĕĆŽĚŽĞƐƉĂĕŽĨŽƐƐĞŵƉƌŽĐĞƐƐŽƐƐĞĐƵŶĚĄƌŝŽƐŽƵĂƉĞŶĂƐŽƌĞƐƵůƚĂĚŽĚĞƵŵĂ
de desenhos, mensagens políticas, assi- ĚŝŶąŵŝĐĂĚĂƐŽƵƚƌĂƐ͞ŝŶƐƚąŶĐŝĂƐ͟ŽƵ͞ĞƐĨĞƌĂƐ͟ĚĂǀŝĚĂƐŽĐŝĂů͕ĐŽŵĚĞƐƚĂƋƵĞƉĂƌĂĂ
͞ŝŶƐƚąŶĐŝĂ͟ŽƵ͞ĞƐĨĞƌĂĞĐŽŶƀŵŝĐĂ͟;ƉƌŝŶĐŝƉĂůŵĞŶƚĞĚĞŶƚƌŽĚĂƐƚƌĂĚŝĕƁĞƐŵĂƌdžŝƐƚĂĞ
naturas com nomes e apelidos, etc. ůŝďĞƌĂůͿ͘ĐŽŶƐĞƋƵġŶĐŝĂĚĞƐƚĂƉŽƐŝĕĆŽĠĞŶƚĞŶĚĞƌŽĞƐƉĂĕŽŐĞŽŐƌĄĮĐŽĐŽŵŽƵŵƉƌŽ-­‐
ĚƵƚŽƐŽĐŝĂůŽƵĐŽŵŽƵŵƌĞŇĞdžŽĚĂƐŽĐŝĞĚĂĚĞ͕ƐĞŵĐŽŶƐŝĚĞƌĂƌƋƵĞŽĞƐƉĂĕŽŐĞŽŐƌĄĮĐŽ
O hip-hop e o “direito à cidade” ƚĂŵďĠŵĠƵŵĞůĞŵĞŶƚŽƋƵĞĐŽŶĚŝĐŝŽŶĂ͕ĨĂĐŝůŝƚĂŶĚŽ͕ĚŝĮĐƵůƚĂŶĚŽŽƵĐŚĂŵĂŶĚŽă
ƌĞĂůŝnjĂĕĆŽĚĞĂĕƁĞƐŚƵŵĂŶĂƐ͘KĞƐƉĂĕŽĠƵŵƌĞĐĞƉƚĄĐƵůŽǀĂnjŝŽĞĞƐƚĠƌŝůƉŽƌŽŶĚĞƐĞ
Destacamos que o hip-hop não ĚĞƐĞŶǀŽůǀĞŵĂƐĨŽƌĕĂƐĞƉƌŽĐĞƐƐŽƐŚŝƐƚſƌŝĐŽƐ͖ĠƵŵĂƉĄŐŝŶĂĞŵďƌĂŶĐŽăĞƐƉĞƌĂĚĂ
deve ser considerado apenas uma ma- ƉĞŶĂĚĂ,ŝƐƚſƌŝĂ͕ĞƐƐĂƐŝŵ͕ƉƌĞŶŚĞĚĞǀŝĚĂ͕ŵŽďŝůŝĚĂĚĞĞƌŝƋƵĞnjĂ͖ŽƵĂŝŶĚĂ͕ŽĞƐƉĂĕŽĠ
nifestação cultural ou estética. Ele é, ĂƉĂŝƐĂŐĞŵŶĂƚƵƌĂůƋƵĞƐĞƌĄĚŽŵŝŶĂĚĂĞĚŽŵĞƐƟĐĂĚĂƉĞůĂĐƵůƚƵƌĂ͕ƉĞůĂƌĂnjĆŽĞƉĞůĂ
de fato, um ativismo social, com um ĐŝǀŝůŝnjĂĕĆŽŚƵŵĂŶĂ;ŽƵŵĞůŚŽƌ͕ƉŽƌĞƵƌŽƉĞƵƐĞŶŽƌƚĞͲĂŵĞƌŝĐĂŶŽƐ͕ĐŽŵƵŵĂƉĞƋƵĞŶĂ
ĂďĞƌƚƵƌĂƉĂƌĂŽ:ĂƉĆŽŵŽĚĞƌŶŽĞĐĂƉŝƚĂůŝƐƚĂͿ
grande potencial questionador, crítico ͻEĂĚŝŶąŵŝĐĂĚĂŐůŽďĂůŝnjĂĕĆŽ͕ŽĞƐƉĂĕŽĞƐƚĂƌŝĂƉĞƌĚĞŶĚŽƐƵĂŝŵƉŽƌƚąŶĐŝĂĞdžƉůŝĐĂƟǀĂ͕
e pedagógico que pode ser a base de ŽƋƵĞ͕ƐĞŐƵŶĚŽĂůŐƵŶƐĂƵƚŽƌĞƐ͕ŝŵƉůŝĐĂƵŵ͞ĮŵĚĂ'ĞŽŐƌĂĮĂ͘͟ƉĞƌĚĂĚĞƐĞŶƟĚŽĞ
importantes conquistas de cidadania. ŝŵƉŽƌƚąŶĐŝĂĚŽĞƐƉĂĕŽ;ĞĚĂ'ĞŽŐƌĂĮĂͿƐĞĚĞǀĞĂŽĨĂƚŽĚĞƋƵĞĂŵďŽƐƐĆŽƌĞĚƵnjŝĚŽƐă
Além disso, devemos salientar que a ĚŝƐƚąŶĐŝĂ͘KĞƐƉĂĕŽĞĂ'ĞŽŐƌĂĮĂƚŽƌŶĂŵͲƐĞďĂƐŝĐĂŵĞŶƚĞŽƐŝŶƀŶŝŵŽĚĞĚŝƐƚąŶĐŝĂĞĚĞ
ůŽĐĂůŝnjĂĕĆŽ͘^ĞŵĚƷǀŝĚĂ͕ĞƐƐĂĠƵŵĂƐŝŵƉůŝĮĐĂĕĆŽŐƌŽƐƐĞŝƌĂ͕ƉŽŝƐĂŝŶĚĂƋƵĞĂĚŝƐƚąŶĐŝĂ
vertente mais crítica do hip-hop deve ƐĞũĂƵŵĚŽƐĂƚƌŝďƵƚŽƐĚŽĞƐƉĂĕŽ͕ŶĆŽƉŽĚĞŵŽƐĐŽŶĨƵŶĚŝͲůĂĐŽŵŽƉƌſƉƌŝŽĞƐƉĂĕŽ͕ŽƵ
ser considerada um autêntico movi- ƉŝŽƌ͕ƌĞĚƵnjŝͲůŽĂĞƐƚĞĂƚƌŝďƵƚŽ͖ĂůĠŵĚŝƐƐŽ͕'ĞŽŐƌĂĮĂŶĆŽĠĂĐŝġŶĐŝĂĚĂƐĚŝƐƚąŶĐŝĂƐ;ŶŽ
mento social, por colocar como ho- ĞŶƚĂŶƚŽ͕ŶĆŽŶĞŐĂŵŽƐ͕ĚĞĨŽƌŵĂĂůŐƵŵĂ͕ĂŝŵƉŽƌƚąŶĐŝĂĚĂƐĚŝƐƚąŶĐŝĂƐŶĂĐŽŶĨŽƌŵĂ-­‐
rizonte processos de transformações ĕĆŽĚĂƐƉƌĄƟĐĂƐƐſĐŝŽͲĞƐƉĂĐŝĂŝƐͿ͘hŵĂǀĞnjƋƵĞĂŐůŽďĂůŝnjĂĕĆŽƉĞƌŵŝƚĞ͕ĂƚƌĂǀĠƐĚĞƵŵ
efetivas na sociedade. ĐŽŶũƵŶƚŽĚĞƚĠĐŶŝĐĂƐĚĞƚƌĂŶƐƉŽƌƚĞĞĐŽŵƵŶŝĐĂĕĆŽ͕ƵŵĂĂŵƉůĂĨĂĐŝůŝĚĂĚĞĚĞůŽĐŽ-­‐
ŵŽĕĆŽĞĐŝƌĐƵůĂĕĆŽĚĞƐĞƌǀŝĕŽƐ͕ŵĞƌĐĂĚŽƌŝĂƐ͕ĐĂƉŝƚĂŝƐĞŝŶĨŽƌŵĂĕĆŽĚĞĚĞƚĞƌŵŝŶĂĚĂƐ
A potencialidade político-peda- ŝŶƐƟƚƵŝĕƁĞƐ;ĞŵƉƌĞƐĂƐ͕ŽƌŐĂŶŝƐŵŽƐŝŶƚĞƌŶĂĐŝŽŶĂŝƐ͕ďĂŶĐŽƐ͕ĂŐġŶĐŝĂƐĚĞĮŶĂŶĐŝĂŵĞŶƚŽͿ
gógica do hip-hop pode e deve ser utili- ĞĐůĂƐƐĞƐƐŽĐŝĂŝƐ͕ĚŝŵŝŶƵŝŶĚŽƐŝŐŶŝĮĐĂƟǀĂŵĞŶƚĞĂŝŵƉŽƌƚąŶĐŝĂĚĂĚŝƐƚąŶĐŝĂ͕ŽĞƐƉĂĕŽ
zada para mobilizar e organizar pessoas ĞƐƚĂƌŝĂĞůŝŵŝŶĂĚŽ͕ƵŵĂǀĞnjƋƵĞŶĆŽƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂŵĂŝƐŝŵƉŽƌƚąŶĐŝĂƉŽůşƟĐĂ͕ĞĐŽŶƀŵŝĐĂĞ
em torno de organizações que possam ĂŶĂůşƟĐĂƉĂƌĂĂĐŽŵƉƌĞĞŶƐĆŽĞĂƌĞƉƌŽĚƵĕĆŽĚĂƐƌĞůĂĕƁĞƐƐŽĐŝĂŝƐĞĚĞƉŽĚĞƌŚĞŐĞŵƀ-­‐
ŶŝĐĂƐ͘
emergir como efetivos protagonistas ϯ͘ĐƌşƟĐĂăĨƌĂŐŵĞŶƚĂĕĆŽĚĂǀŝĚĂƐŽĐŝĂůĨŽŝĚĞƐĞŶǀŽůǀŝĚĂĂŶƚĞƌŝŽƌŵĞŶƚĞĞŵĂƐƚŽƌŝĂ-­‐
políticos nas cidades brasileiras. Atra- ĚŝƐ;ϭϵϴϮͿĞ^ŽƵnjĂ;ϭϵϴϴĂͿ͘
vés de suas organizações, o hip-hop ϰ͘WŝŵĞŶƚĞů;ϭϵϵϳͿ͕,ĞƌƐĐŚŵĂŶŶ;ϮϬϬϬͿ͕ZŽĐŚĂĞƚĂů;ϮϬϬϭͿ͕Rap  BrasilŶǑϯ͘
promove projetos culturais e educacio- ϱ͘ƐƐĞƌĂĐŝŽĐşŶŝŽŶĆŽĐŽŶƐŝĚĞƌĂĂƉŽƐƐŝďŝůŝĚĂĚĞĚĞƋƵĞĂƐƵƉĞƌĂĕĆŽĚĂĐŽŶƚƌĂĚŝĕĆŽ
ĐĂƉŝƚĂůͬƚƌĂďĂůŚŽŶĆŽůĞǀĂŶĞĐĞƐƐĂƌŝĂŵĞŶƚĞăĞůŝŵŝŶĂĕĆŽĚŽƌĂĐŝƐŵŽ͘ƉŽƐƐşǀĞůĂ
nais, cursos profissionalizantes (produ- ĞdžŝƐƚġŶĐŝĂĚĞŽƉĞƌĄƌŝŽƐƌĂĐŝƐƚĂƐĂƉſƐĂƌĞǀŽůƵĕĆŽƉƌŽůĞƚĄƌŝĂ͕ƉŽƌĞdžĞŵƉůŽ͘ƋƵĞƐƚĆŽ
ção audiovisual, por exemplo), geração ƉƌŝŶĐŝƉĂůĠďƵƐĐĂƌƐƵƉĞƌĂƌĂŚĞƚĞƌŽŶŽŵŝĂƐƵďũĂĐĞŶƚĞăĞdžƉůŽƌĂĕĆŽĚĞĐůĂƐƐĞĞĂŽ
de emprego e renda (shows, gravação, ƌĂĐŝƐŵŽ͕ƌĞĐƵƐĂŶĚŽƵŵĂŚŝĞƌĂƌƋƵŝĂa  priori͕ŽƵƵŵĂĚĞƚĞƌŵŝŶĂĕĆŽŵĞĐąŶŝĐĂĚĞƵŵĂ
produção e comercialização de CDs), ƐŽďƌĞĂŽƵƚƌĂ͘
que, somados à produção político- ϲ͘ZĞǀŝƐƚĂCaros  Amigos͕ŶŽϭ͕ŶǑϭϬ͕ũĂŶĞŝƌŽĚĞϭϵϵϴ͘
CULTURA  CRÍTICA  14        111

cultural do movimento, criam um am- Referências


biente favorável à mobilização política.
Caros  AmigosƐƉĞĐŝĂůŶǑϯ͘^ĆŽWĂƵůŽ͘ĚŝƚŽƌĂĂƐĂŵĂƌĞůĂ͘
O hip-hop visita velhas (mas Caros  AmigosŶŽϭ͕ŶǑϭϬ͘^ĆŽWĂƵůŽ͘ĚŝƚŽƌĂĂƐĂŵĂƌĞůĂ͘ϭϵϵϴ͘
ainda atualíssimas) questões, como a ^dKZ//^͕ŽƌŶĞůŝƵƐ͘ŝŶƐƟƚƵŝĕĆŽŝŵĂŐŝŶĄƌŝĂĚĂƐŽĐŝĞĚĂĚĞ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͘ϭϵϴϮ͘
segregação sócio-espacial, as desigual- 'KE>s^͕ĂƌůŽƐtĂůƚĞƌWŽƌƚŽ͘Ă'ĞŽŐƌĂĮĂăƐ'ĞŽͲ'ƌĂĮĂƐоhŵŵƵŶĚŽĞŵ
dades socioeconômicas, o racismo, ďƵƐĐĂĚĞŶŽǀĂƐƚĞƌƌŝƚŽƌŝĂůŝĚĂĚĞƐ͘>ĂŐƵĞƌƌĂŝŶĮŶŝƚĂо,ĞŐĞŵŽŶşĂLJƚĞƌƌŽƌŵƵŶĚŝĂů͘
a violência policial a partir de outros ^Z͕ŵŝƌĞH͕ŶĂƐƚŚĞƌ;ŽƌŐƐ͘Ϳ͘ƵĞŶŽƐŝƌĞƐ͗>^K͕ϮϬϬϮ͘
'hddZ/͕&ĞůŝdžĞZK>E/<͕^ƵĞůLJ͘DŝĐƌŽƉŽůşƟĐĂоĂƌƚŽŐƌĂĮĂƐĚŽĚĞƐĞũŽ͘WĞƚƌſƉŽůŝƐ͗
olhares e lugares, construindo um dis-
sŽnjĞƐ͕ϭϵϴϲ͘
curso próprio e autêntico. Esse ponto ,Zsz͕ĂǀŝĚ͘dŚĞ'ĞŽŐƌĂƉŚLJŽĨĐĂƉŝƚĂůŝƐƚĂĐĐƵŵƵůĂƟŽŶ͗ĂƌĞĐŽŶƐƚƌƵĐƟŽŶŽĨDĂƌdžŝĂŶ
é fundamental, pois se queremos cons- ƚŚĞŽƌLJ͘ŶƟƉŽĚĞŶǑϳ͕Ɖ͘ϵͲϮϭ͘
truir uma sociedade mais justa e solidá- ͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺ͘ũƵƐƟĕĂƐŽĐŝĂůĞĂĐŝĚĂĚĞ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗,ƵĐŝƚĞĐ͕ϭϵϴϬ͘
ria é crucial ouvirmos essas vozes, por ͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺͺ͘Condição  Pós-­‐Moderna͘^ĆŽWĂƵůŽ͗>ŽLJŽůĂ͘ϭϵϵϲ͘
tanto tempo silenciadas. ,EZ/Yh^͕ZŝĐĂƌĚŽ͘Desigualdade  racial  no  Brasil:ĞǀŽůƵĕĆŽĚĂƐĐŽŶĚŝĕƁĞƐĚĞǀŝĚĂŶĂ
ĚĠĐĂĚĂĚĞϵϬ͘dĞdžƚŽƉĂƌĂĚŝƐĐƵƐƐĆŽŶo  ϴϬϳ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗/W͕ũƵůŚŽϮϬϬϭ͘
O conjunto crítico do hip-hop ,Z^,DEE͕DŝĐĂĞů͘O  funk  e  o  hip-­‐hop  invadem  a  cena͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ĚŝƚŽƌĂ
pode nos fornecer elementos para pen- h&Z:͕ϮϬϬϬ͘
sarmos um planejamento urbano críti- <KtZ/͕>ƷĐŝŽ͘A  espoliação  urbana͘^ĆŽWĂƵůŽ͗WĂnjĞdĞƌƌĂ͕ϭϵϵϯ΀ϭϵϳϯ΁͘
co e alternativo, uma vez que ele nos WZ>DE͕:ĂŶŝĐĞ͘O  mito  da  marginalidade͘&ĂǀĞůĂƐĞƉŽůşƟĐĂŶŽZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͘ZŝŽĚĞ
permite fazer uma leitura diferente da :ĂŶĞŝƌŽ͕WĂnjĞdĞƌƌĂ͕ϭϵϳϲ͘
W/DEd>͕^ƉĂŶƐLJ͘O  livro  vermelho  do  hip-­‐hop͘^ĆŽWĂƵůŽ͗d͕ͬh^W͕ϭϵϵϳ͘
cidade e da sociedade a partir de um
Yh/E/͕DĂƐƐŝŵŽ͘DĂƌdžŝƐŵŽĞ'ĞŽŐƌĂĮĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗WĂnjĞdĞƌƌĂ͕ϭϵϳϵ΀ϭϵϳϰ΁͘
ativismo social singular, que traz suas ͺͺͺͺͺͺͺͺͺ͘ĐŽŶƐƚƌƵĕĆŽĚĂ'ĞŽŐƌĂĮĂ,ƵŵĂŶĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗,ƵĐŝƚĞĐ͕ϭϵϴϯ΀ϭϵϳϱ΁͘
próprias questões, que coloca os pro- Z&&^d/E͕ůĂƵĚĞ͘WŽƌƵŵĂ'ĞŽŐƌĂĮĂĚŽƉŽĚĞƌ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ƟĐĂ͕ϭϵϵϯ΀ϭϵϴϬ΁͘
blemas à sua maneira. Dessa forma, é Z>W,͕ĚǁĂƌĚ͘Place  and  placeness͘>ŽŶĚŽŶ͗WŝŽŶ͕ϭϵϳϲ͘
possível que possamos apreender desta REVISTA  RAP  BRASIL.ŶŽϭ͕ŶǑϯ͕ϰ͕ϱ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ĚŝƚŽƌĂƐĐĂůĂ͘
crítica elementos que nos permitam ZK,͕:ĂŶĂşŶĂĞƚĂů͘Hip-­‐hopоƉĞƌŝĨĞƌŝĂŐƌŝƚĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗&ƵŶĚĂĕĆŽdĞƐĞƵďƌĂŵŽ͕
ϮϬϬϭ͘
pensar em novas formas de democra- ZKZ/'h^͕'ůĂƵĐŽƌƵĐĞ͘'ĞŽŐƌĂĮĂƐŝŶƐƵƌŐĞŶƚĞƐ͗ƵŵŽůŚĂƌůŝďĞƌƚĄƌŝŽƐŽďƌĞĂ
tização radical do planejamento e da ƉƌŽĚƵĕĆŽĚŽĞƐƉĂĕŽƵƌďĂŶŽĂƚƌĂǀĠƐĚĂƐƉƌĄƟĐĂƐĚŽŵŽǀŝŵĞŶƚŽŚŝƉͲŚŽƉ͘ŝƐƐĞƌƚĂĕĆŽ
gestão urbana, assim como incorporar ĚĞŵĞƐƚƌĂĚŽ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͘WƌŽŐƌĂŵĂĚĞWſƐͲ'ƌĂĚƵĂĕĆŽĞŵ'ĞŽŐƌĂĮĂ͘h&Z:͘ϮϬϬϱ͘
uma ampla discussão sobre o racismo ^<͕ZŽďĞƌƚ͘Human  territorialityʹ/ƚƐdŚĞŽƌLJĂŶĚ,ŝƐƚŽƌLJ͘ĂŵďƌŝĚŐĞ͗ĂŵďƌŝĚŐĞ
dentro e para além do planejamento e hŶŝǀĞƌƐŝƚLJWƌĞƐƐ͕ϭϵϴϲ͘
^EdK^͕DŝůƚŽŶ͘A  natureza  do  espaço͘^ĆŽWĂƵůŽ͗,ƵĐŝƚĞĐ͕ϭϵϵϲ͘
da discussão da cidade.
ͺͺͺͺͺͺͺͺͺ͘WŽƌƵŵĂ'ĞŽŐƌĂĮĂŶŽǀĂ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ZĞĐŽƌĚ͕ϮϬϬϮ΀ϭϵϳϴ΁͘
A partir do hip-hop podemos ^/>s͕ůŝĂŶĞ^ŽƵƐĂ͘KŵŽǀŝŵĞŶƚŽĐŽŵƵŶŝƚĄƌŝŽĚĞEŽǀĂ,ŽůĂŶĚĂ͗ŶĂďƵƐĐĂĚŽĞŶĐŽŶ-­‐
pensar em construir uma nova cidade, ƚƌŽĞŶƚƌĞŽƉŽůşƟĐŽĞŽƉĞĚĂŐſŐŝĐŽ͘ŝƐƐĞƌƚĂĕĆŽĚĞŵĞƐƚƌĂĚŽ;ŵŝŵĞŽͿ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͘
logo, uma nova sociedade, que rompa Wh͘ϭϵϵϱ͘
com o primado da propriedade pri- ^K:͕ĚǁĂƌĚ͘dŚĞ^ŽĐŝŽͲƐƉĂƟĂůŝĂůĞĐƟĐ͘ŶŶĂůƐŽĨƚŚĞƐƐŽĐŝĂƟŽŶŽĨŵĞƌŝĐĂŶ
vada sobre os direitos e sobre a vida, Geographers͕ϳϬ͘ϭϵϴϬ͘Ɖ͘ϮϬϳͲϮϮϱ͘
ͺͺͺͺͺͺͺ͘'ĞŽŐƌĂĮĂƐƉſƐͲŵŽĚĞƌŶĂƐ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗:ŽƌŐĞĂŚĂƌ͕ϭϵϵϯ͘
em que a dignidade, a solidariedade e ^Kh͕DĂƌĐĞůŽ>ŽƉĞƐĚĞ͘Espaciologia:ƵŵĂŽďũĞĕĆŽ͘dĞƌƌĂ>ŝǀƌĞ͗^ĆŽWĂƵůŽͬ'͕Ŷo  
a autonomia sejam os norteadoras das ϱ͗ϮϭͲϰϱ͘ϭϵϴϴĂ͘
novas relações sociais e da organização ͺͺͺͺͺͺͺ͘KƋƵĞƉŽĚĞŽĂƟǀŝƐŵŽĚĞďĂŝƌƌŽ͍ZĞŇĞdžƁĞƐƐŽďƌĞĂƐůŝŵŝƚĂĕƁĞƐĞƉŽƚĞŶĐŝĂůŝ-­‐
sócio-espacial. Uma organização sócio-- ĚĂĚĞƐĚŽĂƟǀŝƐŵŽĚĞďĂŝƌƌŽăůƵnjĚĞƵŵƉĞŶƐĂŵĞŶƚŽĂƵƚŽŶŽŵŝƐƚĂ͘ŝƐƐĞƌƚĂĕĆŽĚĞ
-espacial pautada na liberdade e na vida ŵĞƐƚƌĂĚŽŶŽĞƉĂƌƚĂŵĞŶƚŽĚĞ'ĞŽŐƌĂĮĂĚĂh&Z:͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗h&Z:͘ϭϵϴϴď͘
ͺͺͺͺͺͺͺͺ͘KƚĞƌƌŝƚſƌŝŽоƐŽďƌĞĞƐƉĂĕŽĞƉŽĚĞƌ͕ĂƵƚŽŶŽŵŝĂĞĚĞƐĞŶǀŽůǀŝŵĞŶƚŽ͘/Ŷ͗
e não nas desigualdades, nos desman-
^dZK͕/ŶĄ͘ĞƚĂů͘;ŽƌŐ͘Ϳ͘'ĞŽŐƌĂĮĂ͗ŽŶĐĞŝƚŽƐĞdĞŵĂƐ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ĞƌƚƌĂŶĚƌĂƐŝů͕
dos e nas relações heterônomas. cc ϭϵϵϱ͘
ͺͺͺͺͺͺͺͺ͘ůŐƵŵĂƐŶŽƚĂƐƐŽďƌĞĂŝŵƉŽƌƚąŶĐŝĂĚŽĞƐƉĂĕŽƉĂƌĂŽĚĞƐĞŶǀŽůǀŝŵĞŶƚŽ
ƐŽĐŝĂů͘Território͕ŶǑϱ͕Ɖ͘ϱͲϮϵ͘ϭϵϵϳ͘
Glauco  Bruce  Rodrigues  é  Professor   ͺͺͺͺͺͺͺͺ͘KĚĞƐĂĮŽŵĞƚƌŽƉŽůŝƚĂŶŽ͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ĞƌƚƌĂŶĚƌĂƐŝů͕ϮϬϬϬ͘
do  Colégio  Militar  do  Rio  de  Janeiro,   ͺͺͺͺͺͺͺͺ͘A  prisão  e  a  ágora͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗ĞƌƚƌĂŶĚƌĂƐŝů͕ϮϬϬϲ͘
Doutor   em   Geografia   pela   Univer- ^Kh͕DĂƌĐĞůŽ>ŽƉĞƐĞZKZ/'h^͕'ůĂƵĐŽƌƵĐĞ͘WůĂŶĞũĂŵĞŶƚŽƵƌďĂŶŽĞĂƟǀŝƐŵŽƐ
sidade   Federal   do   Rio   de   Janeiro.   sociais͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ĚŝƚŽƌĂhŶĞƐƉ͕ϮϬϬϰ͘
(glauco_bruce@ig.com.br) dhE͕zŝͲ&Ƶ͘Espaço  e  lugar͘ƉĞƌƐƉĞĐƟǀĂĚĂĚŝĨĞƌĞŶĕĂ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ŝĨĞů͕ϭϵϴϯ΀ϭϵϳϳ΁͘
112      CULTURA  CRÍTICA  14

&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ
O hip-hop e para além da cultura de rua
Contribuições da montagem cinematográfica para o rap
RODRIGO  LAGES  E  SILVA
LUIS  ANTONIO  BAPTISTA  DOS  SANTOS

N este artigo pretendemos fazer


algumas considerações sobre
o rap que se afastem da fre-
quente abordagem ideológica ou socio-
logizante a que ele é submetido. Em vez
de com transformações nos modos de
conceber a arte e de exercer a política.
Para argumentar nesse sentido, aborda-
remos o hip-hop no seu aspecto técni-
co, enfatizando as práticas de sampling e
lo como um gênero musical de jovens
“transviados”. Quantos anos ainda tar-
darão para que o hip-hop deixe de ser
uma cultura de jovens “de periferia”?
Buscaremos aqui enunciar pos-
disso, apresentaremos o rap como ex- looping como modos de produção que síveis formas de pensar o hip-hop que
pressão cultural que, no seu surgimen- nos ajudam a pensar a experiência con- estejam para além das reduções ideoló-
to, antecipou certas transformações temporânea, especialmente a experiên- gicas ou sociologizantes às quais ele, fre-
contemporâneas nas relações de pro- cia da rua. Também com esse intuito, quentemente, está associado. Será que o
dução e consumo de objetos artísticos. abordaremos o tema do surgimento do hip-hop, como modo de produção ar-
Para tanto, levaremos em consideração hip-hop e das block parties que lhe deram tística, nos pode aportar outras inquie-
as contribuições de Walter Benjamin a proveniência. tações que não sejam a de um projeto
respeito da montagem cinematográfica, Passados mais de 60 anos do ideológico para a juventude negra estig-
observando que o surgimento de novos surgimento do rock and roll, nenhum matizada, ou a produção de um sentido
modos de produção artística coinci- jornalista ou estudioso ousará descrevê- sociológico para a expressão dos jovens
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de periferia, sentidos, na pior das hipó- grupos sociais, mas como elemento que O que o rap tem em comum
teses, estreitamente relacionados com problematiza as relações dos homens com o cinema?
preocupações da ordem da segurança com o momento histórico no qual estão
e do controle1? O que pode o hip-hop inseridos e, igualmente, anuncia as po- No meio musical, o rap intro-
problematizar sobre a vida em geral? tências de transformação nos modos de duziu práticas que até hoje geram um
Isto é, a vida impessoal, que pode ser ser e de viver a cidade. debate a respeito da sua validade como
a vida de qualquer um: vida nossa, vida A partir de uma análise das ino- método de composição. Dentre elas,
sua, e também a vida como potência vações produtivas introduzidas pelo destaca-se o sampling, isto é, o recorte
anônima, vida que viceja fora da juris- sampling e pelo looping, dois modos de de trechos de músicas previamente gra-
dição dos pronomes possessivos. Qual o fazer música apresentados pelo rap,2 vadas (frequentemente músicas que já
sentido de rua que pode estar associado buscamos compreender aquilo que o rap tiveram sucesso no passado) e sua co-
ao hip-hop, para além da sua categoriza- pode nos dizer sobre a relação do sujei- lagem sobre outra batida, outro ritmo,
ção como cultura “de rua”? to contemporâneo com o fazer artístico. gerando uma nova música que faz refe-
Uma vez que optamos por for- No momento em que há uma tendência rência à anterior, sem, entretanto, coin-
mular essa pergunta, portanto, torna-se global de compartilhar músicas, textos, cidir com ela. Além do sampling, outro
imperioso enfrentar imediatamente ou- imagens e vídeos gratuitamente pela in- método frequentemente usado pelos
tro problema: é possível dizer qualquer ternet, será que o rap não nos antecipou DJs, os responsáveis pela parte “ins-
coisa a respeito de uma expressão artís- uma nova qualidade da relação entre o trumental” do rap, é o looping, ou seja,
tica ou cultural abrindo mão de analisar artista, os objetos de arte e o público? o encadeamento sucessivo de um mes-
a ideologia que ela profere ou as con- Mais do que isso, será que esse modo de mo trecho musical de modo que ele se
dições sociológicas dos seus protago- relacionar-se com a arte não problema- repita diversas vezes, gerando um com-
nistas? A arte é mesmo capaz de dizer tiza certa experiência do urbano, certa SDVVRVLPpWULFRVREUHRTXDOR0&ðRX
qualquer coisa que não seja sempre uma concepção da rua? PHVWUHGHFHULP{QLDVðRXrapper pode
justificativa, ou uma apologia, ou uma Nesse sentido, buscaremos improvisar sua fala-canto. Na sua forma
crítica, ou uma interpretação das con- em Charles Baudelaire (2005) e em mais ordinária, o rap é uma arte de re-
dições de vida de um povo? Quando se Bakhtin (1987) indicações para pensar cortar, colar, montar e editar. Uma re-
abre mão de buscar elementos de análi- o urbano e para compreender a rela- lação secundária e não primária com os
se nas contingências locais ou contextu- ção do hip-hop com a rua. No primei- instrumentos musicais. Mas não seriam
ais, o que resta? ro caso, o poeta busca nas multidões a também as pick-ups dos DJs um tipo de
É a partir do cinema, mais es- inspiração para sabotar a linearidade instrumento musical?
pecificamente da montagem cinema- das ruas, a previsibilidade dos traçados. É possível comparar esse méto-
tográfica, que vamos enfrentar essas No segundo, o crítico literário pensa as do de composição que lança mão de ob-
questões. Para nos ajudar nessa tarefa, práticas populares de habitar o espaço jetos pré-produzidos com a arte de um
buscaremos inspiração no trabalho em- público, mais especificamente, o modo compositor que faz nascerem melodias
preendido pelo filósofo alemão Walter primordial de sua ocupação: a festa. a partir da pressão das teclas do piano?
Benjamin (1994) no ensaio A obra de arte Assim, vamo-nos reportar às block par- Não seria cada nota, cada emissão sono-
na era de sua reprodutibilidade técnica, no ties, isto é, as festas de rua que estão na ra produzida por um piano, ou um vio-
qual ele analisa as transformações do gênese do hip-hop, para pensar quais lão, ou um instrumento qualquer, tam-
homem e da cidade no início do século as contribuições políticas que essa cul- bém um objeto pré-produzido?
passado, no momento em que as inova- tura nos aporta e que estão para além Walter Benjamin, nos anos 1930,
ções tecnológicas da Revolução Indus- do conteúdo dos discursos, ou da sua colocou-se questões muito parecidas
trial espalharam-se dos bens de consu- posterior organização como movimen- com estas, mas a respeito das inovações
mo para os objetos artísticos. Benjamin to social. Será que, ao compartilhar produzidas pelo cinema e pela fotografia
(1994), principalmente a partir da sua da natureza festiva e criativa das block relativamente à pintura, principal méto-
análise sobre o cinema, aponta-nos um parties,o rap pode ajudar a pensar a po- do pictórico empreendido até então:
caminho para pensar a arte não como lítica no seu sentido primeiro, a saber, Muito se escreveu, no passado, de
beleza universal ou objeto transcenden- como modo de ocupar-se da polis, de modo tão sutil quanto estéril, sobre
te, tampouco como representação de experimentar o urbano? a questão de saber se a fotografia
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞ^ĆŽ:ƵĚĂƐ

o observador a um recolhimento, certo real, assim como da subjetividade e da


encanto capaz de suscitar uma devoção. história humana. O homem do século
A “destruição da aura” foi um 19 preocupava-se com o resguardo da
fenômeno que mudou a maneira de os sua interioridade, preocupava-se em
homens perceberem os objetos de arte proteger a sua intimidade das velozes
“ao mesmo tempo que transforma- transformações por que passava a cida-
ria a sua existência” (Benjamin, 1994, de. O cinema veio para perturbar os
p. 169). Desde que os objetos de arte modos daquela burguesia ensimesmada
passaram a ser reproduzidos em gran- e encarcerada no culto ao bom gosto,
de escala através de dispositivos técni- às artes clássicas, aos bons modos, à so-
cos inovadores – o que coincidiu com ciabilidade dos salões e sua crença no
era ou não uma arte, sem que se a escalada populacional e os grandes objeto artístico como naturalização do
colocasse sequer a questão prévia movimentos de massa da primeira me- belo. No cinema, o ritmo de corpos, ob-
de saber se a fotografia não havia tade do século passado como o fascismo, jetos, paisagens e do próprio espectador
alterado a própria natureza da arte. por exemplo –, eles perderam sua aura que os observava na tela da sala escura
(Benjamin, 1994, p. 74) e surgiu um novo homem que não se re- perdia a inocência das naturalidades. A
lacionava mais com a arte em busca de soberania do eu, que dava sentido a tudo
Para Benjamin, o surgimento de recolhimento e contemplação, mas com que via, dissipava-se. Para o filósofo ber-
novas técnicas capazes de reproduzir ob- necessidade de distração e posse. A tra- linense a fragmentação das imagens, e
MHWRVGHIRUPDVHULDOðFRPRDLPSUHQVD dição renascentista, e que foi em grande suas possíveis montagens, legariam-nos
e a fotografia, por exemplo – destaca do parte mantida na belle époque, de ir ao a libertária explosão do “universo car-
objeto de arte sua aura, isto é, faz com encontro da obra de arte em busca de cerário” da vida citadina; o cárcere que
que o sujeito perca o “aqui e agora” da um momento de epifania ou revelação aprisiona os sentidos inesgotáveis do
obra de arte. A autenticidade, por exem- foi substituída na aurora do capitalismo gesto e do real.
plo, deixa de ser uma qualidade testável pela relação desritualizada com o objeto
nos objetos reproduzidos tecnicamente. artístico. Mais do que visitá-lo, o sujei- Nossos cafés e nossas ruas, nos-
Um quadro pode, sem dúvida, ser re- to do início do século passado desejava sos escritórios e nossos quartos
produzido a partir da cópia manual, mas possuí-lo, ainda que apenas para exibi- alugados, nossas estações e nossas
entre ele e a cópia entrepõe-se o teste lo como ornamento, peça de exposição fábricas pareciam aprisionar-nos
de autenticidade. Apenas um deles po- tanto mais visível quanto banal. A perda inapelavelmente. Veio então o cine-
derá ser aprovado nesse critério. Já em da aura foi também o processo através ma, que fez explodir esse universo
do qual os objetos artísticos, segundo carcerário com a dinamite dos seus
relação aos objetos de reprodução serial
décimos de segundo, permitindo--
a autenticidade não é um valor impor- Benjamin (1994, p. 172), afastaram-se
-nos empreender viagens aventu-
tante, ou ao menos não o era na época das qualidades mágicas e secretas com rosas entre ruínas arremessadas à
de Benjamin. Os métodos de produção que eram cultivados desde a pré-histó- distância. O espaço se amplia com
industrial contemporâneos e a pirata- ria, para se tornarem explícitos e ordi- o grande plano, o movimento se
ria, ou reprodução ilegal, estão aí para nários. torna mais vagaroso com a câmara
interrogar-nos se a questão da autenti- Mas o sujeito da aurora do sé- lenta. É evidente, pois, que a natu-
cidade não retomou de alguma manei- culo passado não conseguiu cultivar reza que se dirige à câmara não é a
UDVHXSDSHOðHPWRGRFDVRVREXPD por muito tempo o sonho de resgate mesma que a que se dirige ao olhar.
forma modificada. No início do século daquela aura perdida; a busca pela arte (Benjamin, 1994, p. 189)
passado o que estava em jogo não era a sacralizada na eternidade dos valores
fetichização da indústria sob a forma da universais foi interrompida, para Ben- A intervenção da câmara per-
grife, mas o declínio da experiência re- jamin, pela montagem cinematográfica. mitia continuar de outro modo, desviar
nascentista da obra de arte como objeto Segundo ele, a tecnologia do cinema ou interromper histórias supostamente
aurático,3 objeto que abrigava certa ca- não se resumiria a mais uma invenção exauridas. Gestos humanos e inumanos
pacidade de produzir uma experiência da modernidade. O cinema dissolveu libertavam-se das amarras funcionais.
única do belo, certa potência de levar as formas petrificadas da percepção do A percepção humana escapava através
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desta intervenção dos limites da consci- A tecnologia artística de cada época fala a autoria e posse dos objetos artísticos.
ência. O olho politizava-se, perdia a ino- sobre o sujeito enquanto produto do seu Nossa hipótese é de que o modo
cência atravessado pelo que via na sala tempo, mas também sobre uma qualida- de produção do rap mudou, assim como
escura. Cortes, interrupções, imagens de inexorável do tempo, que é proble- o fez o cinema no século passado, a
congeladas, silêncios produziam outros matizar as formas de subjetivação. maneira com que passamos a perceber
sentidos a um corpo agora profanado. A A fotografia veio para proble- a beleza, a maneira como mediamos a
explosão do universo carcerário dos ca- matizar o valor eterno e sacralizado da nossa relação com a produção artística,
fés, das ruas, dos escritórios, das fábricas obra pictórica, mas o cinema veio, na a maneira, enfim, com que percebe-
fazia desses lugares territórios do im- sua sequência, para modificar a nossa mos a realidade. Na sequência do sur-
provável, da estranheza do não familiar, maneira de olhar. As transformações gimento do rap, vimos instalar-se uma
do gesto inacabado, da ambiguidade, do dos objetos artísticos são, nesse sentido, transformação na questão dos direitos
ainda não. A montagem cinematográfica concomitantes com as mudanças nas ca- de autoria e um redimensionamento
provocava, com sua explosão, oxigênio: pacidades perceptivas dos homens, nas nos direitos de reprodução e posse de
um promissor espaço propiciado pelo suas aspirações existenciais e também na objetos artísticos. É certo que esse redi-
vazio das “ruínas arremessadas à distân- sua forma de exercício político, isto é, mensionamento passou a ser muito mais
cia”. Fragmentar ensejava um particular no seu modo de viver a polis, a cidade, perceptível com a popularização da in-
exercício de liberdade. o urbano. Para Benjamin, a crise instala- ternet, mas, se não tivesse surgido o rap,
da pelo cinema no campo da arte fez-se é possível afirmar que tudo teria acon-
Através dos seus grandes planos, acompanhar de uma crise na relação do tecido dessa forma? A internet não teria
de sua ênfase sobre pormenores homem com os espaços. Esse “universo apenas aprofundado uma modificação
ocultos dos objetos que nos são fa- carcerário” constituído pela interiorida-
miliares, e de sua investigação dos de dos ambientes da cidade industrial
ambientes mais vulgares sob a di- que abominava o caráter desordenado
reção genial da objetiva, o cinema
das ruas foi posto em cheque pelo ci-
faz-nos vislumbrar, por um lado,
os mil condicionamentos que de- nema e pela sua capacidade, enquanto
terminam nossa existência, e por novidade técnica, de abrir espaços para
outro lado assegura-nos um grande novas experimentações.
e insuspeitado espaço de liberdade. Atualmente há também uma
(Benjamin, 1994, p. 189) asfixia instalada no espaço urbano. O
encarceramento dos salões que foi im-
O que os impasses conceituais plodido pelo cinema parece ter-se rein-
enfrentados por Walter Benjamin nos ventado numa outra forma de cárcere
primórdios dos novecentos nos ensina- em espaços privados, nos shopping cen-
ram, portanto, é que, mais do que falar ters, nos condomínios fechados, no des-
algo universal sobre o ser humano, ou prezo à rua como espaço de encontro,
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞĞůĂsŝƐƚĂ

refletir suas ideologias, sua consciência e seu consequente rebaixamento à mera


de época, ou ainda as interações entre função de deslocar-se, deslocamento
grupos ou classes sociais; as técnicas de esse que não tira ninguém do lugar.
produção artística, como qualquer outro Parece-nos, nesse sentido, que,
modo de produção, colocam a história se há algo de politicamente interes-
em perspectiva, isto é, dão visibilidade sante no hip-hop, é menos o conteúdo
aos conflitos, as disputas de sentido, as discursivo que a ele se associa, mas as
forças que lutam para definir aquilo que inovações técnicas que ele anuncia e a
tem valor e aquilo que não tem, aquilo possibilidade de perturbar esse universo
que pode e o que não pode ser chamado privatista que se materializa na arquite-
de artístico. O modo de produção ar- tura e nos modos de habitar a cidade. E
tística não está separado dos modos de a forma pela qual ele o faz é colocar em
perceber a realidade e de viver a cidade. cheque não a aura e a autenticidade, mas
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na maneira de nos relacionarmos com criada por um autor consagrado e exe- dições de produção artística operada
a arte que nos foi apresentada pelo rap? cutada por uma orquestra consagrada. pela internet, portanto, pelo menos no
Entre todos os objetos possíveis de pos- que tange aos objetos artísticos, parece
Uma das tarefas mais importantes suir, esse seria um objeto de bom gosto. abrir um horizonte no qual a arte pode
da arte foi sempre a de gerar uma A internet veio para confundir engendrar-se num território comum e
demanda cujo atendimento integral essa lógica. À digitalização dos prin- a nossa hipótese é que o rap tem muito
só poderia produzir-se mais tarde. FLSDLV PHLRV GH SURGXomR DUWtVWLFD ð que ver com isso.
A história de toda a forma de arte P~VLFD SLQWXUD OLWHUDWXUD ð VHJXLXVH Já que o rap teve seus primórdios
conhece épocas críticas em que essa
o problema da posse e dos direitos de na manipulação simultânea de dois apa-
forma aspira a efeitos que só podem
concretizar-se sem esforço num autoria. Por um lado, a distribuição relhos toca-discos quando ainda não exis-
novo estágio técnico, isto é, numa gratuita, que abalou primeiro a música, tia ampla acessibilidade aos equipamen-
nova forma de arte. (Benjamin, mas que já faz seus estragos no campo tos digitais5, ao recortar e colar objetos
1994, p. 190) da literatura, do cinema e das imagens prontos, num ambiente totalmente cria-
estáticas, praticamente universalizou o tivo e improvisado, não estaria antecipan-
O colecionador de objetos do acesso aos objetos artísticos, diminuin- do, em certa medida, as transformações
início do século é uma figura que sim- do a importância da posse: “ter” um ar- que se passam nos modos de se conceber,
bolizou o modo de relação possível en- quivo digital de uma determinada obra produzir e consumir arte atualmente?
tre os sujeitos e os objetos de arte após não confere especial status a ninguém; Não seriam as possibilidades atuais de
o surgimento do cinema e das demais por outro lado o desenvolvimento de criação artística a partir da internet o
formas de reprodução técnica que mar- ferramentas de edição de som, imagem “novo estágio técnico”, como dito por
caram as primeiras décadas do século e vídeo, compatíveis com a maioria dos Benjamin (1994, p. 190), que enfim é ca-
20. Ter muitos objetos de menor va- microcomputadores caseiros, fez com paz de realizar plenamente aquilo que o
lor artístico era indubitavelmente mais que qualquer cidadão que se empenhe rap prometia no seu surgimento?
importante e mais gerador de status do seja capaz de acessar e modificar uma A questão, pois, se a prática do
que ter a oportunidade de contemplar infinidade de músicas, filmes, quadros DJ e do rapper é arte ou não, tal como
apenas um objeto alheio, mas de imenso ou fotografias, problematizando a ques- no caso da fotografia e do cinema, já não
valor artístico. Mais importante do que tão dos direitos de autoria. O consumi- se aplica. Existe algo que foi profunda-
assistir uma vez na vida a execução de dor de arte do início deste século, dife- mente alterado pelas condições técnicas
um concerto pela Filarmônica de Ber- rentemente daquele do século passado, do período em que vivemos. A nós, que
lim seria possuir a coleção completa de não entende que adquirir um produto fazemos parte dessas transformações,
concertos da Filarmônica de Berlim em artístico é uma boa maneira de consu- não nos cabe lamentá-las em nome de
discos. A questão da autenticidade do mir arte. Ele quer fazer o download da um passado mais “digno”, sonhando com
objeto não era mais um tema de debate, música ou do filme que lhe interessa, uma aura que já não existe, mas seguir
cada disco tinha o mesmo valor do que depois alterá-lo, juntá-lo com outras na direção das transformações políticas
qualquer outro disco feito pela mesma músicas ou filmes, mudar sua sequên- e existenciais que elas nos apontam.
fábrica, mas a questão da autoria seguia cia, mudar sua velocidade, mudar o seu O rap, portanto, pode ter-nos
importando. Era um disco de uma obra sentido e, então, publicá-lo novamente aportado inovações técnicas que ante-
na internet, para que seja baixado nova- ciparam as formas contemporâneas de
mente de graça por outros usuários e, produzir arte. Mas, além disso, como
Foto:  Davi  Francisco  da  Silva

quem sabe, novamente alterado, mo- veremos a seguir, sua maneira de operar
dificado... Nunca a afirmação de Marx parece ser também uma forma de pro-
(1999) de que não há uma diferença ra- blematizar a cidade contemporânea que
dical entre produção, circulação e con- não cessa de multiplicá-lo. A paisagem
sumo foi tão válida quanto nesta era de UHSHWLWLYD GDV JUDQGHV FLGDGHV ð VHXV
creative commons4, o que reforça a ideia grandes blocos residenciais, as avenidas
de que é a concentração dos meios de lisas e velozes onde nada se agarra, nada
produção que faz com que se opere a SHUGXUDðSRGHULDVHUXPHOHPHQWRDR
mais-valia. A descentralização das con- qual o hip-hop viria a se opor?
&ŽƚŽ͗Ăǀŝ&ƌĂŶĐŝƐĐŽĚĂ^ŝůǀĂͲ'ƌĂĮƚĞdĞĂƚƌŽDƵŶŝĐŝƉĂůĚĞ^ĆŽWĂƵůŽ
A montagem cinematográfica e aberrações (...) uma sessão típica
cidade das multidões. Pode o rap de vaudeville em 1895 podia incluir
perturbar a cidade contemporânea? um ato de acrobacia de animais,
uma comédia pastelão, uma decla-
Desde a grande reforma de Paris ração de poesia inspirada, um tenor
realizada por Napoleão II sob responsa- irlandês, placas de lanterna mágica
bilidade do Barão Haussmann na Paris sobre a África selvagem. (Costa,
da segunda metade dos oitocentos, as 2005, p. 40)
cidades vêm perdendo a sinuosidade e a
estreiteza característica das ruas medie- Os primeiros filmes, à seme-
vais. As cidades mais recentes, constru- lhança das ruas, escapavam da linea-
ídas depois da Revolução Industrial, já ridade das histórias à espera de uma
são projetadas desde o princípio inspi- presumível conclusão. Cenas do coti-
radas num modelo higienista no qual as diano urbano misturavam-se a imagens
ruas e as avenidas são vistas como veias de fatos assombrosos, em oposição ao
e artérias, feitas para circular, tanto mais drama familiar burguês completamente
saudáveis quando menos obstruídas. previsível; mistura que turvava os limi-
Contudo, com os primeiros mo- tes claros entre ficção e realidade. No
vimentos de massa do século 19, a pre- alarido dos vaudevilles o cinema nascia,
sença das multidões nas ruas começou a anunciando a potência do truque. O real
sabotar esse ideal de linearidade. Tam- desvencilhava-se do conforto tramado
bém o cinema participou dessa transfor- no universo carcerário dos cafés, escri- Qual de nós, em seus dias de ambi-
mação. Os primeiros filmes do final dos tórios, lares e fábricas. O truque des- ção, não sonhou com o milagre de
oitocentos levaram para a sala escura a truía a aura de qualquer coisa imaculada uma prosa poética, musical sem rit-
descontinuidade encontrada nas ruas e pretensamente eterna. mo e sem rima, bastante maleável e
das cidades europeias. A morte abrup- Contrastes de ritmos, modu- bastante rica de contrastes para se
lações, sobressaltos não são legados adaptar aos movimentos líricos da
ta dos fatos, a eletrizante composição e
alma, às ondulações do devaneio,
decomposição das multidões da urbe, exclusivos da arte cinematográfica da
aos sobressaltos da consciência?
o sentimento do nunca mais anunciado modernidade. Nas ruas, Charles Bau- É sobretudo da frequentação das
na imagem que passa, o ritmo descom- delaire encontrou o material necessário grandes cidades, é do cruzamento
passado do corpo aturdido por novas para produzir a literatura na qual alma de suas inúmeras relações que nas-
mobilidades entraram na tela ao avesso e sonhos investem-se da inesgotável ce este ideal obsessor. (Baudelaire,
de qualquer linearidade narrativa. A rua materialidade das formas da cidade. Os 1995, p. 857)
sujou a tela de fragmentos de ritmos e choques urbanos, a Paris inundada por
imagens díspares entre fumaças e o bur- estranhamentos, destruindo valores só- O encarceramento de que nos fala
burinho dos espectadores. lidos do passado, a imprevisibilidade das Benjamin, portanto, não diz respeito ape-
multidões seriam saudados pelo poeta. A nas a um modo de frequentar ambientes
Os primeiros filmes apareceram em cidade maculada por misturas que trans- fechados, mas também a uma depreciação
1895. Começaram a ser exibidos tornavam o tempo contínuo do outrora da rua, ambos associados ao redesenho da
em feiras, circos, teatros de ilusio- o inspirava. Nuvens libertas da eterni- cidade produzido pela haussmanização.
nismo, parque de diversões, cafés e
dade das suas formas, o lixo esquecido O cinema, assim como as multidões, sa-
em todos os lugares onde houvesse
espetáculos de variedades. Mas o pela Paris fascinada por suas luzes eram, botaram essa funcionalidade natural do
principal local de exibição de filmes entre outros, fragmentos da montagem modelo higienista. O truque, o artifício da
eram os vaudevilles. Os vaudevilles ti- da sua literatura. A destruição da aura da montagem cinematográfica, surgiu para
nham surgido a partir de teatros de arte seria também celebrada por Baude- restituir à rua sua potência de criação, de
variedades (...) que exibiam coisas laire; nas ruas, para o poeta, a dissipação inspiração literária que fez com que Bau-
como mulheres barbadas, anões, do “universo carcerário” oferecia à alma delaire abrisse mão do ritmo e da rima
bichos de duas cabeças e outras urbana a sua provável profanação. para poder expressar tal desvio.
Foto:  Davi  Francisco  da  Silva  
de que nas nossas atuais metrópoles um entretenimento e lazer.
“universo carcerário” pode estar sendo Talvez um dos mais importan-
cultivado com outras estratégias. Talvez tes teóricos da literatura de seu tempo,
não por meio da interioridade burguesa Mikhail Bakhtin dedicou uma vasta obra
no século 20, mas, quem sabe, através de à análise da produção literária do bardo
um projeto de cidade funcional e utilitá- da literatura francesa: François Rabelais.
ria na qual os espaços urbanos cada vez Nela, ocupa um lugar destacado a inte-
mais seguem um modelo privado. Mais pretação do significado da festa popular
do que falar sobre uma população ou uma na Idade Média. Para Bakhtin (1987), a
minoria, poderia o hip-hop constituir um festa não é secundária em relação ao fenô-
Nesse sentido, quem sabe, pode- modo de afrontar certa lógica confinató- meno coletivo, ela não existe prioritaria-
ríamos dizer que o rap retoma o ritmo e ria que diz respeito a todos nós? mente para celebrar o ócio em contrapo-
a poesia justamente pelos mesmos moti- Pensamos, pois, que há algo sobre sição ao trabalho ou para afrouxar a carga
vos? a relação do hip-hop com a rua que pode de opressão que incide sobre as camadas
A cidade da segunda metade do ser bastante interessante em termos po- populares. “A festa é a categoria primeira
século passado, em especial as cidades da líticos, mas que nada tem que ver com a e indestrutível da civilização humana” (p.
América, já nascidas jovens, espalham-se ideia de uma “cultura de rua” no sentido 240).
verticalmente em tediosa repetição. Cada de uma cultura “própria” daqueles que A partir de uma análise da obra
bairro parecido com o vizinho, num apa- frequentam a rua, ou daqueles que não cômica de Rabelais, Bakhtin (1987)
rente esforço por copiarem-se infinita- têm boas casas para morar e, portanto, aborda a relação entre o espaço da pra-
mente. Os blocos residenciais espelham-- habitam a rua. Acreditamos que há algo ça pública medieval e os seus modos de
-se reciprocamente, cada rua imitando a interessante na relação do hip-hop com ocupação: a feira, os jogos, os folguedos,
seguinte e assim por diante. Ser funcional a rua e que pode ser observado logo nos os charlatões, os discursos, o carnaval e,
é o seu objetivo. As ruas dessa cidade são seus primórdios: a relação com a festa. sobretudo, a festa. Fundamentalmente, o
tanto mais ordinárias quanto populosas. inesperado que sua observação singular
Política: festa vs espetáculo nos aponta é que todos esses elementos
Não apenas está-se encarcerado
dentro de ambientes fechados, mas a ex- O rap surgiu nos bairros de pre- estavam mesclados em sua gênese, não
periência do espaço aberto, do espaço pú- dominância negra de Nova York, a partir havia uma separação evidente entre o que
blico é cada vez menos uma experiência dos sound systems, grandes aparelhagens de eram as compras e as vendas de objetos,
exterior no sentido e nas possibilidades som dispostas ao ar livre durante eventos as exibições públicas de habilidades físi-
de liberdade que o “lado de fora” supõe. que ficaram conhecidos como block parties, cas, as disputas cômicas, os jogos, a dança
Pois o rap, em seu recorta-e-cola, ou festas de quarteirão. Nesses aparelhos, e a música. A ocupação festiva do espaço
no sampling e no looping, copia exatamen- DJs alternavam músicas funk alteradas a público é o modo de estar em público por
te esse movimento. Montar blocos em partir de loopings e samples. Sob o ritmo excelência e a sua restrição ou desnatu-
sucessão parece definir muito bem tanto dessa batida (beat), um MC (mestre de ralização em atividades, datas ou ocasiões
a atividade do DJ quanto a do planejador cerimônias) improvisava fraseados no in- é um efeito secundário, fruto dos modos
urbano. Nesse contexto, seria possível tuito de animar a multidão aglomerada no de produção social e de exercício do po-
continuar a fazer canção com o swing e a seu entorno. der. É o Estado e as suas instituições que
poética dos anos 1950? Faz sentido para A festa constitui-se, portanto, se apropriam da festa para seus próprios
um morador da metrópole da segunda numa das condições fundamentais de fins e não o contrário.
metade do século 20 falar da vida com a emergência do rap e do hip-hop de um
É a festa que, libertando-se de todo
diversidade de cores, timbres, ritmos, en- modo geral. Contudo, é preciso tomar utilitarismo, de toda finalidade práti-
tonações e síncopes do jazz? duas precauções para não sermos dema- ca, fornece o meio de entrar tempo-
A repetição rítmica e prosódica siado precoces na compreensão do sig- rariamente num universo utópico. É
do rap nos fala também sobre a rua, mas nificado da festa para as manifestações preciso não reduzir a festa a um con-
não num sentido territorial e sociológico. coletivas: a primeira delas é em relação teúdo determinado e limitado (por
Não nos fala dos moradores de determi- à função da festa como celebração; a se- exemplo, à celebração de um aconte-
nada rua, de determinados bairros, e, sim, gunda é relativizar a sua utilidade como cimento histórico), pois na realidade
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ela transgride automaticamente esses cábulo romano ludus dá origem a ambas as block parties. Se há um discurso que se as-
limites. É preciso não arrancar a festa SDODYUDVðjogo e ilusão. socia a ele, isso não significa que discursar
à vida do corpo, da terra, da nature- Se argumentamos, pois, que o rap seja uma característica intrínseca da forma
za, do cosmos. Nessa ocasião, “o sol encontra sua força política justamente artística que constitui o rap, senão que o
se diverte no céu” e parece mesmo porque tem na sua proveniência a marca ambiente de festa é precisamente aquele
existir um “tempo de festa” especial. das block parties, isto é, do jogo, da cria- em que é possível dizer o que é necessário
Na época burguesa, tudo isso decli-
ção, da improvisação, cabe dizer que, pelo ser dito. Segundo Bakhtin, as festas me-
nou. (Bakhtin, 1987, p. 241)
mesmo motivo, ele também traz consigo dievais eram também a ocasião em que os
armadilhas ilusórias, espetaculares. oradores se dirigiam ao público com fran-
Voltando às block parties, seria
queza:
uma redução perigosa caracterizá-
A metamorfose do modo de expo-
-las como ato de insubordinação às Tratava-se da franqueza perfeitamen-
sição pela técnica da reprodução é
leis de silêncio ou dos modos ordei- visível também na política. A crise te objetiva, proclamada em voz alta
ros de habitar a metrópole em prol da democracia pode ser interpretada diante do povo reunido na praça pú-
de entretenimento e lazer, ainda que como uma crise nas condições de ex- blica, que dizia respeito a todos e a
estes elementos estivessem presentes. posição do político profissional. (...) cada um. Era preciso colocar o pen-
Antes disso, gostaríamos de pensá-las Com isso os parlamentos se atrofiam samento e a palavra em condições tais
como uma emergência dessa memória juntamente com o teatro. (...) Esse que o mundo voltasse para eles a sua
popular que está sempre prestes a ser fenômeno determina um novo pro- outra face, a face oculta, da qual não
atualizada na relação com os espaços cesso de seleção diante do aparelho, se falava nunca ou sobre a qual não
públicos, ainda que as práticas gover- do qual emergem, como vencedores, se dizia a verdade, que não coaduna-
namentais e de urbanização contempo- o campeão, o astro e o ditador. (Ben- va com as declarações e as formas de
jamin, 1994, p. 183) concepção dominante. (1987, p. 237)
râneas, o choque de ordem, a tolerân-
cia zero pareçam atuar frequentemente
As transformações anunciadas Diferentemente do discurso “de
em sentido contrário.
pelo cinema não foram recebidas por conscientização dos pobres” que uma es-
O elemento político está nas con-
Benjamin com tolo otimismo. Ao mesmo querda antiga já almejou, o que surpreen-
dições de emergência do rap antes mesmo
tempo que ele reconhecia forças disrupti- deu no conteúdo social do rap na ocasião
de qualquer associação com discursos de
vas que afrontavam as comodidades bur- do seu surgimento foi essa franqueza de
classe, raça ou contestação minoritária. O
guesas, seu recolhimento, seu recato em dizer as coisas que precisavam ser ditas,
rap surge como expressão política porque
prol de uma reapropriação do real como ainda que por vezes aludissem a uma rea-
é um ator importante de uma relação fes-
contingente, como artefato, como artifí- lidade dura, de violência e segregação. Ca-
tiva com o espaço público, de suspensão
cio, uma força destruidora que abria um racterizar esse conteúdo como denúncia
das boas maneiras e do comedimento pri-
campo de liberdades possíveis, ele per- ou prática de “dar visibilidade” é diminuir
vados, de encontros excessivos, urbanos,
cebeu como essa tecnologia servia para a a força política que ele carrega consigo
multitudinais, imprevisíveis, improvisa-
hipnose das massas, para os jogos verticais enquanto exercício de estar em público.
dos, criativos...
de identificação, para o fascismo. A posição do rapper ao falar em público
Essa inversão ontológica apontada
Assim como o cinema não é “bom” faz alusão justamente à posição do políti-
por Bakhtin não é banal e solicita que a ob-
por si só, também o rap deve ser incen- co como aquele que se ocupa da polis sob
servemos com cuidado. São os modos de
sado com tais predicados. Buscar louvá-lo a sua forma mais direta e democrática, e
exercício do poder que definem e qualifi-
como cultura popular, cultura de perife- menos disfarçada sob o que veio a caracte-
cam as práticas como festa, dando-lhes um
ria, cultura de resistência, apenas intensi- rizar a política enquanto prática de espetá-
pretexto, um santo para abençoá-la, uma
fica seu aspecto espetacular, suas seduções culo e, em última instância, prática fascista
liturgia para especializá-la. A experiência
mais rasteiras, afasta-o do saudável am- de relação com o público.
do espaço público é genericamente festi-
va, porque o ato de estar coletivamente na biente festivo do qual ele provém. A rua como inspiração cotidiana
rua, na praça pública, enseja a experimen- O rap não surgiu para protestar ou
tação e o jogo. O caráter lúdico da festa para representar a minoria negra nova-ior- Vimos que caracterizar o hip-
medieval nos adverte para o fato de que a quina; surgiu como efeito desse momento hop como cultura de rua, numa tenta-
política é jogo, mas também ilusão. O vo- de encontro e descontração que eram as tiva romântica de fazer-lhe aderir tons
120      CULTURA  CRÍTICA  14

revolucionários ou sociais, diminui em escapa. Ele pertence à insignificância, dos encontros coletivos num espaço pú-
intensidade aquilo que o hip-hop pode nos e o insignificante é sem verdade, sem blico é que ela tem tanto que ver com a
apontar como experimentação política. realidade, sem segredo, mas é talvez política no seu sentido mais primordial,
Numa estratégia inspirada em o lugar de toda significação possível. isto é, de experiência da polis, da cidade
Walter Benjamin e sua análise do cinema, (Blanchot, 2007, p. 237) enquanto universo de possibilidades. cc
acreditamos que o hip-hop pode aportar
importantes pistas para pensarmos a cida- Nas festas urbanas pode-se cele- Rodrigo  Lages  e  Silva  é  Doutorando  
de e os modos de subjetivação contempo- brar a radicalidade cortante do cotidiano, em  Psicologia  na  UFF.
râneos, tomando como ponto de partida lugar onde o anônimo afirma-se corroen- Luis   Antonio   Baptista   dos   Santos   é  
as técnicas nele empreendidas e não o con- do o aprisionamento identitário de qual- Professor  Titular  do  Programa  de  Pós-
teúdo das músicas ou os discursos que sua quer estética. E porque a festa é a marca -graduação  em  Psicologia  da  UFF.
modulação como movimento social pro-
fere, muito embora também não se trate Notas
de rejeitá-los completamente.
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Neste começo de século, assim EĞǀĞƐĚĂ͘WĂƌĂĚŝŐŵĂƉƌĞǀĞŶƟǀŽĞůſŐŝĐĂŝĚĞŶƟƚĄƌŝĂŶĂƐĂďŽƌĚĂŐĞŶƐƐŽďƌĞŽ
como no começo do século passado, as ŚŝƉͲŚŽƉ͘Fractal͕  Rev.  Psicol.͕ũƵŶϮϬϬϴ͕ǀ͘ϮϬ͕Ŷ͘ϭ͕Ɖ͘ϭϯϱͲϭϰϴ͘/^^EϭϵϴϰͲϬϮϵϮ͘
tensões que atravessam o nosso modo de ŝƐƉŽŶşǀĞůĞŵ͗фŚƩƉ͗ͬͬǁǁǁ͘ƐĐŝĞůŽ͘ďƌͬƐĐŝĞůŽ͘ƉŚƉ͍ƐĐƌŝƉƚсƐĐŝͺĂƌƩĞdžƚΘƉŝĚс^ϭϵϴϰͲ
produção, a nossa sensibilidade, as nossas ϬϮϵϮϮϬϬϴϬϬϬϭϬϬϬϭϱΘůŶŐсƉƚΘŶƌŵсŝƐŽх͘ĐĞƐƐŽĞŵ͗ϭϱĨĞǀ͘ϮϬϭϮ͘
formas de perceber a realidade encontram Ϯ͘,ŝƉͲŚŽƉĠĂĐŽŶũƵŐĂĕĆŽĚĞhip;ƋƵĂĚƌŝůͿĐŽŵhop;ƐĂůƚŽͿ͘ĨƌŝŬĂĂŵďĂĂƚĂĂ
ĐƵŶŚŽƵĞƐƐĞƚĞƌŵŽƉĂƌĂĂŐƌƵƉĂƌƚƌġƐĨŽƌŵĂƐĚĞĞdžƉƌĞƐƐĆŽĂƌơƐƟĐĂƋƵĞƐƵƌŐŝƌĂŵ
seu palco na rua. O hip-hop não é mais
ŶŽƐďĂŝƌƌŽƐŶĞŐƌŽƐĚĞEŽǀĂzŽƌŬŶŽĮŶĂůĚŽƐĂŶŽƐϭϵϳϬĞŝŶşĐŝŽĚŽƐĂŶŽƐϭϵϴϬ͗Ž
cultura de rua do que qualquer forma de ŐƌĂĮƚĞ͕ŽƌĂƉ(rhythm  and  poetry)ĞŽbreak͘KrapĠĂĞdžƉƌĞƐƐĆŽŵĂŝƐĐŽŶŚĞĐŝĚĂ
arte no sentido de que a rua é “o lugar” de ĚŽŚŝƉͲŚŽƉĞĠŵƵŝƚĂƐǀĞnjĞƐĐŚĂŵĂĚŽĚĞƐƐĂĨŽƌŵĂ͘EĞƐƚĞĂƌƟŐŽƵƟůŝnjĂƌĞŵŽƐĂŵ-­‐
criação, por princípio, uma vez que con- ďŽƐŽƐƚĞƌŵŽƐƉĂƌĂĂůƵĚŝƌĂŽrap͘YƵĂŶĚŽƐĞƚƌĂƚĂƌĚŽŚŝƉͲŚŽƉĐŽŵŽŵŽǀŝŵĞŶƚŽ
sideramos a criação uma potência impes- ƐŽĐŝĂů͕ƐĞƌĄĂƐƐŝŵƌĞĨĞƌŝĚŽ͕ĞdžƉůŝĐŝƚĂŵĞŶƚĞ͘
soal, anônima, que nos habita, mas a qual ϯ͘ďĞŵǀĞƌĚĂĚĞƋƵĞ͕ƐĞĨŽƌŵŽƐůĞǀĂƌăƐƷůƟŵĂƐĐŽŶƐĞƋƵġŶĐŝĂƐŽƚĞŵĂĚĂ
ĂƵƚĞŶƟĐŝĚĂĚĞ͕ƐĂďĞŵŽƐƋƵĞĂZĞŶĂƐĐĞŶĕĂĨŽŝƚĂŵďĠŵŽĂƉŽŐĞƵĚĂƐĐſƉŝĂƐ͕ũĄ
não fazemos cativa. O que, sim, o hip-hop ƋƵĞĐŽŶƐƟƚƵŝ͕ƐŽďƌĞƚƵĚŽ͕ƵŵŐƌĂŶĚĞŵŽǀŝŵĞŶƚŽĚĞĐſƉŝĂĚĂƐĨŽƌŵĂƐŚƵŵĂŶĂƐ
consegue, pela maneira despretensiosa ĞŶĐŽŶƚƌĂĚĂƐŶĂƐĞƐĐĂǀĂĕƁĞƐĂƌƋƵĞŽůſŐŝĐĂƐĚĞĞƐƚĄƚƵĂƐƌŽŵĂŶĂƐ͕ĞƐƚĂƐ͕ƉŽƌƐƵĂ
com que se constitui, é falar em nome de ǀĞnj͕ĐſƉŝĂƐĞŵŵĄƌŵŽƌĞĚĞŽƌŝŐŝŶĂŝƐĞŵďƌŽŶnjĞŐƌĞŐŽƐ͘͘͘ŽĮŶĂůǀĞŵŽƐƋƵĞŽ
um cotidiano. ƋƵĞŚĄĚĞŵĂŝƐĂƵƚġŶƟĐŽĞŵƚĞƌŵŽƐĚĞĂƌƚĞĠŽĂƚŽĚĞĐŽƉŝĂƌ͘
ϰ͘ƌĞĂƟǀĞĐŽŵŵŽŶƐĠƵŵĂĞŵƉƌĞƐĂŶĆŽͲŐŽǀĞƌŶĂŵĞŶƚĂůƋƵĞĞŵŝƚĞůŝĐĞŶĕĂƐ
O cotidiano é o movimento pelo qual ĚĞĚŝƌĞŝƚŽƐĂƵƚŽƌĂŝƐǀŽůƚĂĚĂƐƉĂƌĂŽĐŽŵƉĂƌƟůŚĂŵĞŶƚŽĚĞƉƌŽĚƵƚŽƐĂƌơƐƟĐŽƐĞ
ƚĞĐŶŽůſŐŝĐŽƐ͘EĞƐƐĂŵŽĚĂůŝĚĂĚĞĚĞůŝĐĞŶĕĂĐĂĚĂĂƵƚŽƌĚĞĮŶĞƋƵĞƉĂƌƚĞŽƵƵƐŽ
o homem se mantém como que à sua
ĚŽƚƌĂďĂůŚŽĞƐƚĄƌĞƐĞƌǀĂĚĂĞƋƵĞƉĂƌƚĞĞƐƚĄůŝďĞƌĂĚĂƉĂƌĂŽĐŽŵƉĂƌƟůŚĂŵĞŶƚŽ͕Ă
revelia no anonimato humano. No co- ŵŽĚŝĮĐĂĕĆŽ͕ĂĐſƉŝĂ͕ĞƚĐ͘ůĂƐƵďƐƟƚƵŝĂƐƚƌĂĚŝĐŝŽŶĂŝƐůŝĐĞŶĕĂƐĚĞ͞ƚŽĚŽƐŽƐĚŝƌĞŝ-­‐
tidiano não temos mais nome, temos ƚŽƐƌĞƐĞƌǀĂĚŽƐ͟ƉŽƌƵŵĂŵŽĚĂůŝĚĂĚĞĚĞ͞ĂůŐƵŶƐĚŝƌĞŝƚŽƐƌĞƐĞƌǀĂĚŽƐ͘͟
pouca realidade pessoal e quase não ϱ͘sĂůĞĂƉĞŶĂƌĞƐƐĂůƚĂƌĂĚƵĂůŝĚĂĚĞ͞njĞƌŽĞƵŵ͟ƌĞƉƌĞƐĞŶƚĂĚĂƉĞůŽĚŝŐŝƚĂůƉĂƌĂ
temos uma figura (...) o cotidiano dis- ƉĞŶƐĂƌĂĚƵƉůŝĐĂĕĆŽĚŽƐƚŽĐĂͲĚŝƐĐŽƐĐŽŵŽƵŵĂƉŽƐƐşǀĞůĞŵƵůĂĕĆŽĚĂĞƌĂĚŝŐŝƚĂů
solve as estruturas e desfaz as formas, ĂƚƌĂǀĠƐĚŽƐŵĞŝŽƐĚŝƐƉŽŶşǀĞŝƐŶĂĠƉŽĐĂ͘
se bem que reformando-se sem ces-
sar por trás da forma que insensivel- Referências  
mente arruinou (...) Foram necessá-
rios esses desertos que são as cidades <,d/E͕DŝŬŚĂŝů͘A  cultura  popular  na  Idade  Média  e  no  Renascimento:  o  con-­‐
mundiais para que a experiência do ƚĞdžƚŽĚĞ&ƌĂŶĕŽŝƐZĂďĞůĂŝƐ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗,ƵĐŝƚĞĐ͕ϭϵϴϳ͘
cotidiano começasse a alcançar-nos. h>/Z͕͘Poesia  e  prosa͘ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͗EŽǀĂŐƵŝůĂƌ͕ϭϵϵϱ͘
O cotidiano não está no calor de nos- E:D/E͕tĂůƚĞƌ͘ŽďƌĂĚĞĂƌƚĞŶĂĞƌĂĚĞƐƵĂƌĞƉƌŽĚƵƟďŝůŝĚĂĚĞƚĠĐŶŝĐĂ
;ƉƌŝŵĞŝƌĂǀĞƌƐĆŽͿ͘/Ŷ͗Obras  escolhidas//͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ƌĂƐŝůŝĞŶƐĞ͕ϭϵϵϰ͘
sos lares, não está nos escritórios (...) >E,Kd͕D͘ĐŽŶǀĞƌƐĂŝŶĮŶŝƚĂ͘ĞdžƉĞƌŝġŶĐŝĂůŝŵŝƚĞ͘^ĆŽWĂƵůŽ͗ƐĐƵƚĂ͕ϮϬϬϳ͘
(VWiðVHHVWLYHUHPDOJXPOXJDUðna K^d͕&͘͘O  primeiro  cinema:ĞƐƉĞƚĄĐƵůŽ͕ŶĂƌƌĂĕĆŽ͕ĚŽŵĞƐƟĐĂĕĆŽ͘ZŝŽĚĞ
rua (...) Quaisquer que sejam os seus :ĂŶĞŝƌŽ͗njŽƵŐƵĞ͕ϮϬϬϱ͘
aspectos, o cotidiano tem esse traço DZy͕<Ăƌů͘WĂƌĂĂĐƌşƟĐĂĚĂĞĐŽŶŽŵŝĂƉŽůşƟĐĂĚŽĐĂƉŝƚĂů͘/Ŷ͗Os  pensadores͘^ĆŽ
essencial: não se deixa apanhar. Ele WĂƵůŽ͗EŽǀĂƵůƚƵƌĂů͕ϭϵϵϵ͘

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