Professional Documents
Culture Documents
O INCÓMODO PENSAR
Autores clássicos, como o inglês Bertrand Russell, já tinham percebido que haveria
um qualquer duelo do homem com a sua capacidade de autoconsciência. "A maior
parte das pessoas prefere morrer a pensar; na verdade, é isso que fazem", escreveu
o filósofo. Em pleno século XXI, contudo, esta equipa acredita que está na altura
de voltar à pergunta, até porque alguma coisa tem atraído cada vez mais pessoas
para técnicas como a meditação, aparentemente porque isso as faz sentir bem.
1
Doutoramento
O INCÓMODO PENSAR
de hora. No fim, um terço admitiu ter feito batota e não ter resistido a mexer no
telemóvel ou a ouvir música.
E aqui, os resultados mostram que ainda há muito por perceber. Uma das teorias
seria que as pessoas, ao ficarem sozinhas com os seus pensamentos, poderiam
começar a "ruminar" sobre os seus defeitos, o que explicaria o desconforto. Mas,
ao testar a ideia, a equipa percebeu que pensar em si próprio não estava
correlacionado com mais ou menos satisfação. Outro problema poderia ser terem
de pensar no próprio momento em como iriam ocupar a cabeça. Porém, quando
deram tempo para planear, os resultados não se alteraram.
A única ligação que, para já, dá pistas tem a ver com o tipo de personalidade dos
participantes, mas ainda assim as correlações encontradas foram limitadas. Após
testes psicológicos, perceberam apenas que quem consegue direcionar os
pensamentos para sentimentos de felicidade tem 20% mais probabilidade de
encontrar prazer na experiência.
Erin Westgate conta que avaliaram também se usar mais ou menos o telemóvel no
dia-a-dia tinha alguma correlação com a capacidade de desfrutar do devaneio
mental, o que também não se verificou. O que leva a outra conclusão do estudo:
"O uso parece ser um sintoma de um problema, não a causa. Talvez os telemóveis
e as redes sociais sejam tão apelativos precisamente porque somos tão maus a
entretermo-nos com as nossas cabeças. Se algumas pessoas até preferem
eletrocutar-se, obviamente que a maioria de nós prefere mexer no telemóvel a
pensar."
A investigadora acredita que estamos perante um problema, que não sendo novo
está a aumentar e só agora começa a ser estudado: "Dantes havia outras distrações.
Ao longo dos séculos, líderes religiosos têm pedido às pessoas para passarem mais
tempo em contemplação e silêncio: se fosse fácil aderir a isso, não estaríamos
sempre a ouvir a mensagem."
2
Doutoramento
O INCÓMODO PENSAR
choques elétricos por algo mais inofensivo: uma fotografia desagradável ou uma
gravação de um barulho enervante.
3
Doutoramento
O INCÓMODO PENSAR
4
Doutoramento
O INCÓMODO PENSAR
Nos "tempos das cavernas" esta ligação ao contínuo circundante foi essencial para
que pudéssemos elevar a acuidade das nossas capacidades percetivas.
Desenvolvemos assim mecanismos, entre os quais as emoções, que nos permitiram
agir de modo instintivo sem necessidade de recorrer ao consciente (mais lento)
para sobreviver. A nossa condição animal não nos dava propriamente grandes
garantias à nascença, tendo em conta a força e mesmo inteligência, de alguns
predadores que por cá andavam antes de nós. Nesse sentido fomos desenvolvendo
e selecionando aqueles que de entre nós tinham melhores sistemas de alerta, ou
seja que conseguiam estabelecer a melhor sintonia com a realidade circundante
externa. Durante todo esse tempo a virtualidade interna das nossas mentes foi
muito pouco relevante. Os nossos mais hábeis funcionavam quase exclusivamente
em função da ação sobre o exterior, mantendo os aspetos interiores a um canto, o
que terá dado origem a ditados como “um homem não chora”.
Deste modo seriam conduzidos a uma hiperestimulação interna da mente que por
5
Doutoramento
O INCÓMODO PENSAR
A necessidade de estar em
sintonia com esse mundo exterior,
os perigos e a fome, foi
decrescendo já que a nossa
sobrevivência passou a estar
assegurada pelo esforço de comunidades cada vez maiores. Nesse sentido havia
cada vez mais pessoas que se podiam dedicar a refletir e a produzir pensamento
cada vez mais complexo. Esta reflexão interna daria origem ao
desenvolvimento das capacidades de elaboração mental, e por sua vez isso
levaria à criação de tecnologias de suporte à sua externalização como por
exemplo o surgimento da escrita. Com o passar do tempo fomos enriquecendo o
natural, complementando-o com o cultural tornando-o cada vez mais complexo e
elaborado.
6
Doutoramento
O INCÓMODO PENSAR
Isto não quer dizer que tenhamos abolido a nossa ligação ao exterior, antes pelo
contrário, com a expansão do natural pelo cultural e tecnológico, apenas
acentuámos mais ainda a nossa ligação e dependência do exterior. O ato de pensar
não se confina ao nosso interior, porque ele apenas se finaliza quando tornado
material. Por outro lado o ato de pensar a complexidade não existe nunca sem
estimulação externa, esta obviamente não precisa de ser contínua, mas precisa de
acontecer. Para compreender esta condição basta parar e “observar” o que acontece
no interior da nossa mente quando acabamos de ler um livro que nos apresentou
ideias desconhecidas mas que fizeram sentido para nós. O pensamento entra em
ebulição abstrata, procurando criar novos esquemas mentais para encaixar o
conhecimento novo. Nesses momentos é fácil estar 10, 30 ou 60 minutos em
hipoestimulação, porque o pensamento está totalmente “entretido”.
7
Doutoramento
O INCÓMODO PENSAR
Acabei de ler The Age of Empathy de Frans de Waal, que viagem magnífica.
Trabalho com o conceito da Empatia desde o início da década passada, e vi o
evoluir da aceitação do conceito pela academia ao longo dos últimos anos, ler tudo
isto foi um reforçar de muitas convicções. Não conhecia ainda Frans de Waal que
foi eleito em 2007 um dos 100 cientistas a seguir pela Time. O seu trabalho
enquanto biólogo, primatologista e etologista levou-o a desenvolver estudos
comparativos entre os animais, só mamíferos, e o ser humano, e a procurar
compreender que características animais se comparam connosco. De Waal
publicou vários livros mais ligados à primatologia e etologia, mas apareceu no ano
passado numa TED muito partilhada, Moral Behavior in Animals, e que
praticamente resume o conteúdo de The Age of Empathy.
8
Doutoramento
O INCÓMODO PENSAR
Aliás um dos melhores documentários que vi até hoje, e que continua a ter muito
pouca divulgação, chama-se Why Dogs Smile and Chimpanzees Cry (1999) (em
partes no Youtube). É uma obra poderosa, capaz de demover qualquer
antropocentrista. Ao longo de hora meia somos levados a compreender como entre
o homem e os restantes mamíferos, existem tão poucas diferenças. Mas diga-se
que o grande responsável por se ter colocado as Ciências Afetivas no mesmo
patamar das restantes ciências na academia foi António Damásio, e o seu O Erro
de Descartes (1994). Com ele foi possível começar a aceitar-se no plano científico
o conceito de empatia sem se ser rotulado de fantasista, ou pior. Continuamos a
trabalhar para demonstrar a sua cientificidade, mas são cada vez mais as áreas que
abraçam o conceito, desde a Psicologia à Biologia. E se no campo da criatividade
antes se falava em Desejo e Projeção, conceitos caros à Psicanálise, hoje
assumimos a Empatia como o grande conceito que define de forma ampla a relação
entre os seres, entre os seres e os animais, e entre os seres e os objetos ou obras.
9
Doutoramento
O INCÓMODO PENSAR
10
Doutoramento
O INCÓMODO PENSAR
Não é de agora que estabelecemos a forma como o ser mamífero funciona por
oposição ao réptil. A essência está presente desde a primeira hora em que
nascemos. Sem uma vinculação forte entre mãe e filho, a possibilidade do bebé
sobreviver é muito reduzida. Passamos a infância toda dependentes dos seres mais
velhos, que nos levam comida a boca e dão carinho. Dos estudos realizados há
mais de meio de século, em tempos perturbados, percebemos que o bebé não
definha apenas por falta de comida, mas também por falta de contacto humano.
Sem o contacto humano, o nosso cérebro não constrói as sinapses necessárias para
poder compreender o outro, e emocionar-se com o outro, os fundamentos da
empatia não se constroem tornando-se num ser associal.
A empatia é assim como diz De Waal a cola que nos mantém juntos, e nesse sentido
é uma das característica que a Seleção Natural tudo tem feito para preservar.
11
Doutoramento
O INCÓMODO PENSAR
“The Art Instinct” de Denis Dutton é um livro de grande relevância, pela forma
revolucionária como discute o complexo conceito de arte. Para dar uma ideia da
extensão do interesse que este livro gerou, posso dizer que extraí doze páginas de
excertos e notas do mesmo. O livro saiu em 2009, e apenas um ano depois, Denis
Dutton deixava-nos, vítima de cancro, com apenas 66 anos.
12
Doutoramento
O INCÓMODO PENSAR
Foi exatamente contra isto que se moveram os estudos fílmicos nos últimos 20
anos, fartos de tanta diarreia mental e orgasmos em prosa. Um dos seus maiores
impulsionadores, David Bordwell trouxe a psicologia e as ciências cognitivas para
o estudo do cinema, e desde então estes nunca mais foram os mesmos. Hoje
podemos estudar o cinema, analisar um filme, estudar a carreira de um realizador,
seguindo abordagens e metodologias de base científica, apresentando evidências
muito objetivas daquilo que queremos demonstrar na obra.
Ora Dutton vai neste livro muito mais longe que Bordwell. Dutton não se limita à
psicologia tal como a discutimos hoje, mas arrisca a entrar numa das áreas da
psicologia mais controversas das últimas duas décadas, a Psicologia
Evolucionária. Este ramo da psicologia preocupa-se essencialmente em encontrar
evidências que suportem os comportamentos humanos na biologia. Ou seja,
estuda-se de que forma aquilo que somos mentalmente, é o resultado de adaptações
ao longo do processo evolucionário, baseado na teorização da Seleção Natural e
Sexual de Darwin. No fundo, começámos a perceber que tudo aquilo que somos é
fruto de uma necessidade adaptativa ao mundo que nos rodeia, no sentido de
garantir a nossa sobrevivência como espécie. Daí os instintos básicos de comer
para manter vivo, de reproduzir para impedir a extinção da espécie, e das emoções
que nos alertam para os perigos e dão cola aos laços sociais que são essenciais para
uma espécie mamífera que só consegue sobreviver em grupo. O que se pensa é que
todo o nosso comportamento instintivo foi moldado tendo por base estas
necessidades. Mas porque é controversa esta abordagem?
13
Doutoramento
O INCÓMODO PENSAR
Mas é depois no capítulo seguinte (3) que vamos poder encontrar o cerne do livro.
Depois de defender a universalidade do ímpeto criador artístico, Dutton lança-se
na sua definição da arte, sem antes disso convocar e criticar as definições de
grandes nomes da estética como Kant, Tolstoi e Clive Bell. Para dar resposta às
suas críticas e objeções às definições da arte, Dutton apresenta uma definição
pouco usual, mas provavelmente a mais completa que podemos encontrar. A sua
definição é espartilhada por 12 critérios que permitem aferir se uma obra é arte, ou
não é. Com isto procura tornar o discurso mais sustentado e objetivo possível. E
como ele diz, o importante de qualquer definição filosófica de arte, não deve ser
procurar responder às grandes obras, mais difíceis, esotéricas ou inqualificáveis
(como os readymades de Duchamp ou o 4'33” de John Cage), mas antes se deve
14
Doutoramento
O INCÓMODO PENSAR
centrar sobre uma “abordagem que trate a arte como um campo de atividades,
objetos e experiências que aparecem de forma natural na vida humana”. Dutton,
defende claramente a arte de um ponto de vista naturalista, destituído de
preâmbulos que procuram justificar o aparente inexplicável. Assim os 12 critérios
apresentados por Dutton, são,
"1. Direct pleasure. The art object - narrative story, crafted artifact, or visual and
aural performance - is valued as a source of immediate experiential pleasure in
itself, and not essentially for its utility in producing something else that is either
useful or pleasurable.
2. Skill and virtuosity. The making of the object or the performance requires and
demonstrates the exercise of specialized skills. These skills learned in an
apprentice tradition in some societies or in others picked up by anyone who finds
that she or he “has a knack” for them.
3. Style. Objects and performances in all art forms are made in recognizable styles,
according to rules of form, composition, or expression. Style provides a stable,
predictable, “normal” background against which artists may create elements of
novelty and expressive surprise.
4. Novelty and creativity. Art is valued, and praised, for its novelty, creativity,
originality, and capacity to surprise its audience. Creativity includes both the
attention-grabbing function of art (a major component its entertainment value)
and the artist’s perhaps less jolting capacity explore the deeper possibilities of a
medium or theme.
5. Criticism. Wherever artistic forms are found, they exist alongside some kind of
critical language of judgment and appreciation, simple more likely, elaborate.
6. Representation. In widely varying degrees of naturalism, art objects, including
sculptures, paintings, and oral and written narratives, and sometimes even music,
represent or imitate real and imaginary of the world.
7. Special focus. Works of art and artistic performances tend to bracketed off from
ordinary life, made a separate and dramatic focus experience.
8. Expressive individuality. The potential to express individual personality is
generally latent in art practices, whether or not it is fully achieved. Where what
counts as achievement in a productive activity is vague and open-ended, as in the
arts, the demand expressive individuality seems inevitably to arise.
9. Emotional saturation. In varying degrees, the experience of works of art is shot
through with emotion.
15
Doutoramento
O INCÓMODO PENSAR
16
Doutoramento
O INCÓMODO PENSAR
17
Doutoramento
O INCÓMODO PENSAR
• Works of art should be very time-consuming to create. In that sense, they may
demonstrate that the maker has leisure — conspicuous leisure — in a way that
indirectly indicates that possesses wealth or status.
• Even if a work of art is quickly executed, the skills to make it should have been
time-consuming or difficult to acquire. (skills are often manual, showing fine
motor control or dexterity: “He’d painted every hair” or “She never missed a
note.”)
• The created work of art may be more impressive if it is remote from any possible
use. Expensive and useful can be very pleasant, but expensive and useless might
well be much better.”
• A sense of waste, and therefore handicap, can be emphasized channeling
resources into work that is this fleeting: the perfect centerpiece for an expensive
dinner party may be a poignantly lovely ice sculpture. Marble is fine, but ice can
be even better from the standpoint of signal theory.
• In addition to time, works of art will have required special intellectual or creative
effort to create. The sheer brains and energy needed to produce Picasso’s or
Wagner’s oeuvre is bound, the Pyramids, to impress us. “
Dutton não fecha esta abordagem sem antes aprofundar mais o tema e ir ainda mais
longe na base de todo o processo para o qual contribui a seleção sexual, defendendo
que no processo da arte, não está apenas em causa um contributo para o
acasalamento e reprodução, mas acima de tudo um processo de comunhão, e de
seleção do mais capaz, não apenas fisicamente mas também mentalmente.
“We find beautiful artifacts - carvings, poems, stories, arias - captivating because
at a profound level we sense that they take us into the minds that made them. This
sense of communion, even of intimacy, with other personalities may be erroneous
- even systematically delusional - but the self-domestication of sexual selection
was not about truth; it was about living the richer sociality that would carry on
the human species and allow it to flourish. That too defines success, for the survival
not just of the physically strongest but of the cleverest, wittiest, and wisest. If along
the way this amazing process has given us Lascaux, Homer, Cervantes, Chopin,
Stravinsky, and The Simpsons, as well as minds to appreciate and take pleasure in
them, then so much the better."
Quase no final do livro Dutton volta ao tema, que é para mim muito caro, o da
comunhão e comunicação, afirmando algo com o qual não poderia estar mais de
acordo,
18
Doutoramento
O INCÓMODO PENSAR
“Extending Darwin’s original suggestion, I believe that this intense interest in art
as emotional expression derives from wanting to see through art into another
human personality: it springs from a desire for knowledge of another person.”
A Arte é assim fruto de um processo evolutivo, que se originou lá atrás no processo
de desenvolvimento da nossa espécie. A arte, tal como todas as outras tecnologias
que fomos desenvolvendo, serve assim de elemento essencial na sobrevivência da
espécie. A arte não é dispensável, a arte não é uma perda de tempo, a arte é um
bem da humanidade, capaz de nos elevar mentalmente e levar aonde nenhum outro
processo mental consegue. Aliás, não é por acaso, este mais recente interesse das
academias de ciências pela arte. A necessidade de juntar a arte à tecnologia, revela
que é na arte que reside a nossa capacidade para nos transcendermos
intelectualmente.
“We remain like our ancestors in admiring high skill and virtuosity. We find
stylish personal expression arresting, well as the sheer wonder of seeing the
creation of something new. Art’s imaginary worlds are still vivid in the theater
of the mind, saturated with most affecting emotions, the focus of rapt attention,
offering intellectual challenges that give pleasure in being mastered. And over
all this, we still share with our ancestors a feeling of recognition and communion
with other human beings through the medium of art.”
Notas finais:
O livro apresenta ainda mais alguns pontos interessantes, mas que me parecem de
algum modo colaterais ao centro da discussão. Apesar disso julgo que podem
interessar a quem estuda cada um dos temas.
Entretanto o livro foi traduzido e lançado em Portugal pela Temas e Debates, sob
o título "Arte e Instinto".
19