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tudo Geetz [1963]). É no grupo étnico que se Ora, para os "subjetivístas", a identidade etno-
partilham as emoções e as solidariedades mais cultural não é nada além de um sentimento de
profundas e mais estruturantes. Definida deste vinculaçao ou uma identificação a uma coletivi-
modo, a identidade cultural é vista como uma dade imaginária em maior ou menor grau. Para
propriedade essencial inerente ao grupo por- estes analistas, o importante são então as repre-
que é transmitida por ele e no seu interior, sem sentações que os indivíduos fazem da realidade
referências aos outros grupos. A identificação é social e de suas divisões.
automática, pois tudo está definido desde seu Mas o ponto de vista subjetivista levado ao
começo. extremo leva à redução da identidade a uma
O que une estas duas teorias é uma mesma questão de escolha individual arbitrária, em que
concepção objetivista da identidade cultural. cada um seria livre para escolher suas identifica-
Trata-se em todos os casos da definição e da des- ções. Em última instância, segundo este ponto
crição da identidade a partir de um certo núme- de vista, tal identidade particular poderia ser
ro de critérios determinantes, considerados analisada como uma elaboração puramente fan-
como "objetivos", como a origem comum (a he- tasiosa, nascida da imaginação de alguns ideólo-
reditariedade, a genealogia), a língua, a cultura, a gos que manipulam as massas crédulas, buscan-
religião, a psicologia coletiva (a "personalidade do objetivos nem sempre confessãveis. A abor-
básica"), o vínculo com um território, etc. Para dagem subjetivista tem o mérito de considerar o
os objetivistas, um grupo sem língua própria, caráter variável da identidade, apesar de ter a
sem cultura própria, sem território próprio, e tendência a enfatizar excessivamente o aspecto
mesmo, sem fenótipo próprio, não pode preten- efêmero da identidade. Não é raro, no entanto,
der constituir um grupo etno-cultural. Não pode que as identidades sejam relativamente estáveis.
reivindicar uma identidade cultural autêntica.
Estas definições são muito criticadas pelos A concepção relacionai e situacional
que defendem uma concepção subjetivista do
fenômeno de identidade. A identidade cultural, Adotar uma abordagem puramente objetiva
segundo eles, não pode ser reduzida à sua di- ou puramente subjetiva para abordar a questão
mensão atributíva: não é uma identidade recebi- da identidade seria se colocar em um impasse. Se-
da definitivamente. Encarar o fenômeno desta ria raciocinar fazendo a abstração do contexto re-
forma é considerá-lo como um fenômeno estáti- lacionai. Somente este contexto poderia explicar
co, que remete a uma coletividade definida de porque, por exemplo, em dado momento tal
maneira invariável, ela também quase imutável. identidade é afirmada ou, ao contrário, reprimida.
Se a identidade é uma construção social e Em conseqüência disto, para Barth, os
não um dado, se ela é do âmbito da representa- membros de um grupo não são vistos como de-
ção, isto não significa que ela seja uma ilusão finitivamente determinados por sua vinculação
que dependeria da subjetividade dos agentes so- etno-cultural, pois eles são os próprios atores
ciais. A construção da identidade se faz no inte- que atribuem uma significação a esta vincula-
rior de contextos sociais que determinam a po- ção, em função da situação relacionai em que
sição dos agentes e por isso mesmo orientam eles se encontram. Deve-se considerar que a
suas representações e suas escolhas. Além dis- identidade se constrói e se reconstrói constan-
so, a construção da identidade não é uma ilusão, temente no interior das trocas sociais. Esta con-
pois é dotada de eficácia social, produzindo efei- cepção dinâmica se opõe àquela que vê a iden-
tos sociais reais. tidade como um atributo original e permanente
A identidade é uma construção que se ela- que não poderia evoluir. Trata-se então de uma
bora em uma relação que opõe um grupo aos mudança radical de problemática que coloca o
outros grupos com os quais está em contato. estudo da relação no centro da análise e não
Deve-se esta concepção de identidade como ma- mais a pesquisa de uma suposta essência que
nifestação relacionai à obra pioneira de Frederik definiria a identidade.
Barth [19691- Esta concepção permite ultrapas- Não há identidade em si, nem mesmo uni-
sar a alternativa objetivismo/subjetivismo. Para camente para si.A identidade existe sempre em
Barth, deve-se tentar entender o fenômeno da relação a uma outra. Ou seja, identidade e alteri-
identidade através da ordem das relações entre dade são ligadas e estão em uma relação dialéti-
os grupos sociais. Para ele, a identidade é um ca. A identificação acompanha a diferenciação.
modo de categorização utilizado pelos grupos Na medida em que a identidade é sempre a re-
para organizar suas trocas.Também, para definir sultante de um processo de identificação no in-
a identidade de um grupo, o importante não é in- terior de uma situação relacionai, na medida
ventariar seus traços culturais distintivos, mas lo- também em que ela é relativa, pois pode evoluir
calizar aqueles que são utilizados pelos mem- se a situação relacionai mudar, seria talvez prefe-
bros do grupo para afirmar e manter uma distin- rível adotar como conceito operatório para a
ção cultural. Uma cultura particular não produz análise o conceito de "identificação" do que a
por si só uma identidade diferenciada: esta iden- "identidade" [Galissot, 1987].
tidade resulta unicamente das interações entre A identificação pode funcionar como afir-
os grupos e os procedimentos de diferenciação mação ou como imposição de identidade. A
que eles utilizam em suas relações. identidade é sempre uma concessão, uma nego-
ciação entre uma "auto-identidade" definida por aparece então como uma identidade vergonhosa
si mesmo e uma "hetero-identidade" ou uma e rejeitada em maior ou menor grau, o que se tra-
"exo-ídentidade" definida pelos outros [Simon, duzirá muitas vezes como uma tentativa para eli-
1979, p. 24]. A "hetero-identidade" pode levar a minar, na medida do possível, os sinais exteri-
identificações paradoxais: por exemplo, na Amé- ores da diferença negativa.
rica Latina, no fim do século XIX e no começo No entanto, uma mudança da situação de
do século XX, os imigrantes sírio-libaneses, em relações interétnicas pode modificar profunda-
geral cristãos, que fugiam do Império Otomano, mente a imagem negativa de um grupo. Isto
foram chamados (e continuam a sê-lo) de Tur- aconteceu com os Hmong, refugiados do Laos
cos, porque chegavam com um passaporte tur- na França nos anos setenta. No Laos, onde eles
co, ao passo que eles não desejavam justamente constituíam uma minoria étnica muito margina-
se reconhecer como turcos. O mesmo aconte- lizada, eram conhecidos pela denominação de
ceu com os Judeus orientais que emigraram "Méo", que lhes fora atribuída pelos Lao, grupo
para a América Latina na mesma época. majoritário. Para eles, o termo era sinônimo de
A auto-identídade terá maior ou menor le- "selvagem", de "retardado". Na França, eles pu-
gitimidade que a hetero-identidade, dependendo deram impor seu próprio etnônimo, "Hmong",
da situação relacionai, isto é, em particular da re- que significa simplesmente "homem" em sua lín-
lação de força entre os grupos de contato - que gua. Impuseram sobretudo uma representação
pode ser uma relação de forças simbólicas . Em muito mais positiva de si mesmos, participando,
uma situação de dominação caracterizada, a he- como a maioria dos refugiados do Sudeste
tero-identidade se traduz pela estigmatização Asiático, da imagem do "bom estrangeiro", adap-
dos grupos minoritários. Ela leva freqüentemen- tável e trabalhador. Outro benefício simbólico
te neste caso ao que chamamos uma "identidade deste exílio que é uma realidade, no entanto,
negativa". Definidos como diferentes em relação fundamentalmente dolorosa: os Hmong gozam
à referência que os majoritários constituem, os de um nivelamento interétnico no interior do
minoritários reconhecem para si apenas uma di- conjunto dos refugiados do Laos e se encon-
ferença negativa. Também pode-se ver o desen- tram, na França, classificados socialmente no
volvimento entre eles dos fenômenos de despre- mesmo nível que os Lao e os Sino-Laosenses
zo por si mesmos. Estes fenômenos são freqüen- que os desprezavam no Laos [Hassoun, 1988].
tes entre os dominados e são ligados à aceitação A identidade é então o que está em jogo
e à interiorização de uma imagem de si mesmos nas lutas sociais. Nem todos os grupos têm o
construída pelos outros. A identidade negativa mesmo "poder de identificação", pois esse
poder depende da posição que se ocupa no sis- O poder de classificar leva à "etnicização"
tema de relações que liga os grupos. Nem todos dos grupos subalternos. Eles são identificados a
os grupos têm o poder de nomear e de se no- partir de características culturais exteriores que
mear. Bourdieu explica no clássico artigo "A são consideradas como sendo consubstanciais a
identidade e a representação" [1980] que so- eles e logo, quase imutáveis. O argumento de
mente os que dispõem de autoridade legítima, sua marginalização e até de sua transformação
ou seja, de autoridade conferida pelo poder, po- em minoria vem do fato de que eles são muito
dem impor suas próprias definições de si mes- diferentes para serem plenamente associados à
mos e dos outros. O conjunto das definições de direção da sociedade. Pode-se ver que a imposi-
identidade funciona como um sistema de classi- ção de diferenças significa mais a afirmação da
ficação que fixa as respectivas posições de cada única identidade legítima, a do grupo dominan-
grupo. A autoridade legítima tem o poder sim- te, do que o reconhecimento das especificida-
bólico de fazer reconhecer como fundamenta- des culturais. Ela pode se prolongar em uma po-
das as suas categorias de representação da reali- lítica de segregação dos grupos minoritários,
dade social e seus próprios princípios de divi- obrigados de certa maneira a ficar em seu lugar,
são do mundo social. Por isso mesmo, esta auto- no lugar que lhes foi destinado em função de
ridade pode fazer e desfazer os grupos. sua classificação.
Deste modo, nos Estados Unidos, o grupo do- Compreendida deste modo, como um mo-
minante WASP (White Anglo-Saxon Protestanf) tivo de lutas, a identidade parece problemática.
classifica os outros americanos na categoria de Não se pode então esperar das ciências sociais
"grupos étnicos" ou na categoria de "grupos ra- uma definição justa e irrefutável de tal ou tal
ciais". Ao primeiro grupo pertencem os descen- identidade cultural. Não é a sociologia ou a an-
dentes de imigrantes europeus não WASP; ao se- tropologia, nem a história ou outra disciplina
gundo grupo, os americanos chamados "de cor" que deverá dizer qual seria a definição exata da
(Negros, Chineses Japoneses, Portoriquenhos, Me- identidade bretã ou da identidade kabyla, por
xicanos. ..). Segundo esta definição, os "étnicos" são exemplo. Não é a sociologia que deve se pro-
os outros, os que se afastam de uma maneira ou de nunciar sobre o caráter autêntico ou abusivo de
outra da referência de identidade americana. Os tal identidade particular (em nome de que prin-
WASP escapam por um passe de mágica social a cípio ela faria isto?). Não é o cientista que deve
esta identificação étnica e racial. Eles estão fora de fazer"controles de identidade". O papel do cien-
qualquer classificação, por estarem evidentemente tista é outro: ele tem o dever de explicar os pro-
muito "acima" dos classificados. cessos de identificação sem julgá-los. Ele deve
elucidar as lógicas sociais que levam os indiví- etno-cultural ou confessional em sua carteira de
duos e os grupos a identificar, a rotular, a catego- identidade, mesmo que alguns deles não sç re-
rizar, a classificar e a fazê-lo de uma certa manei- conheçam nesta identificação. Em caso de con-
ra ao invés de outra. flito entre diferentes componentes da nação,
esta rotulação pode ter conseqüências dramáti-
A identidade, um assunto de Estado cas, como se viram no conflito libanês ou no
conflito em Ruanda.
Com a edificação dos Estados-Nações mo- A tendência à mono-identificação, à identi-
dernos, a identidade tornou-se um assunto de dade exclusiva, ganha terreno em muitas socie-
Estado. O Estado torna-se o gerente da identida- dades contemporâneas. A identidade coletiva é
de para a qual ele instaura regulamentos e con- apresentada no singular, seja para si ou para os
troles. A lógica do modelo do Estado-Nação o outros. Quando se trata dos outros, isto permite
leva a ser cada vez mais rígido em matéria de todas as generalizações abusivas. O artigo defini-
identidade. O Estado moderno tende à mono- do identificador permite reduzir um conjunto
identificação, seja por reconhecer apenas uma coletivo a uma pesonalidade cultural única,
identidade cultural para definir a identidade na- apresentada geralmente de forma depreciativa:
cional (é o caso da França), seja por definir uma "O Árabe é assim...""Os Africanos são assiru...".
identidade de referência, a única verdadei- O Estado-Nação moderno se mostra infi-
ramente legítima (como no caso dos Estados nitamente mais rígido em sua concepção e em
Unidos), apesar de admitir um certo pluralismo seu controle da identidade que as sociedades
cultural no interior de sua nação.A ideologia na- tradicionais. Ao contrário da idéia preconcebi-
cionalista é uma ideologia de exclusão das dife- da, as identidades elno-culturais nestas socie-
renças culturais. Sua lógica radical é a da "purifi- dades não eram definidas de uma vez por to-
cação étnica". das. Deste modo, pode-se chamá-las de "socie-
Nas sociedades modernas, o Estado regis- dades com identidade flexível" [Amselle,
tra de maneira cada vez mais minuciosa a iden- 1990], Estas sociedades deixam um grande es-
tidade dos cidadãos, chegando em certos casos paço para a novidade e para a inovação social.
a fabricar carteiras de identidade "infalsifícá- Nelas, os fenômenos de fusão ou cisão étnicas
veis". Os indivíduos e os grupos são cada vez são comuns e não implicam necessariarnente
menos livres para definir suas próprias identida- conflitos agudos.
des. Alguns Estados pluriétnicos impõem aos Não se pode, no entanto acreditar que a
seus cidadãos a menção de uma identidade ação do Estado não provoque nenhuma
por parte dos grupos minoritários cuja identida- em impor uma definição tão autônoma quanto
de é negada ou desvalorizada. O aumento das possível de identidade (para retomar o exemplo
reivindicações de identidade que se pode obser- dos negros americanos, pode-se observar o sur-
var em muitos Estados contemporâneos é a con- gimento da reivindicação de uma identidade
seqüência da centralização e da burocratização "afro-americana" ou de Black Muslims ou ainda
do poder. A exaltação da identidade nacional de Black Hebrews).
pode levar somente a uma tentativa de subver- O sentimento de uma injustiça coletiva-
são simbólica contra a afimaçao da identidade. mente sofrida provoca nos membros do grupo
Segundo o enunciado de Pierre Bourdieu: vítima de uma discriminação um forte senti-
mento de vinculação à coletividade. Quanto
[...] os indivíduos e os grupos investem nas lu- maior for a necessidade da solidariedade de to-
tas de classificação todo o seu ser social, tudo dos na luta pelo reconhecimento, maior será a
o que define a idéia que eles fazem de si mes- identificação com a coletividade. O risco é no
mos, tudo o que os constitui como "nós" em entanto, de sair de uma identidade negada ou
oposição a "eles"e aos "outros"e tudo ao que desacreditada para cair, por sua vez, em uma
eles têm um apreço e uma adesão quase cor- identidade que seria exclusiva, análoga à identi-
poral. O que explica a força mobilizadora ex- dade dos que pertencem ao grupo dominante, e
cepcional de tudo o que toca a identidade na qual todo indivíduo considerado como mem-
[1980b,p.69,nota20] bro do grupo minoritário deveria se reconhe-
cer, sob pena de ser tratado como traidor. Este
Todo o esforço das minorias consiste em fechamento em uma identidade etno-cultural,
se reapropriar dos meios de definir sua identida- que em certos casos apaga todas as outras iden-
de, segundo seus próprios critérios, e não ape- tidades sociais de um indivíduo, será mutilante
nas em se reapropriar de uma identidade, em para ele, na medida em que ela leva à negação
muitos casos, concedida pelo grupo dominante. de sua individualidade, como foi explicado por
Trata-se então da transformação da hetero-iden- Georges Devereux:
tidade que é freqüentemente uma identidade
negativa em uma identidade positiva. Em um [...] quando uma identidade étnica biperinves-
primeiro momento, a revolta contra a estigmati- tida oblitera todas as outras identidades de
zação se traduzirá pela reviravolta do estigma, classe, ela deixa de ser uma ferramenta ou uma
como no caso exemplar do black is beautilful. caixa de ferramentas; ela se torna [...] uma ca-
Em um segundo momento, o esforço consistirá misa de força. Na realidade, a realização de uma
diferenciahüidade coletiva por meio de uma sociedade. A pretensa "dupla identidade" dos jo-
identidade hiperinvestida e hiperatualizada vens de origem imigrante está ligada, na realida-
pode [...] levar a uma obliteração da diferen- de, a uma identidade mista [Giraud, 1987). Ao
ciabilidaáe individual. [...] contrário do que afirmam certas análises, estes
Atualizando sua identidade étnica hiperinvesti- jovens não têm duas identidades opostas entre
da, tende-se cada vez mais a minimizar e até a as quais eles se sentiriam divididos, o que expli-
negar sua própria identidade individual. E no caria sua perturbação de identidade e sua insta-
entanto, é a dissimilaridade, funcionalmente bilidade psicológica e/ou social. Esta representa-
pertinente, de um homem em relação a todos ção nitidamente desqualificante vem da incapa-
os outros que o torna humano: semelhante aos cidade de pensar o misto cultural. Ela é explica-
outros precisamente pelo seu alto grau de dife- da também pelo medo obsessivo de uma dupla
renciação. É isto que lhe permite atribuir a si lealdade que é veiculada pela ideologia nacio-
mesmo"uma identidade humana"e,conseqüen- nal. Na realidade, como cada um faz a partir de
temente, também uma identidade pessoal suas diversas vinculações sociais (de sexo, de
[1972, p.162-1631. idade.de classe social,de grupo cultural.,.),o in-
divíduo que faz parte de várias culturas fabrica
A identidade multidimensional sua própria identidade fazendo uma síntese ori-
ginal a partir destes diferentes materiais. O re-
Na medida em que a identidade resulta de sultado é, então, uma identidade sincrética e
uma construção social, ela faz parte da comple- não dupla, se entendermos por isso uma adição
xidade do social. Querer reduzir cada identida- de duas identidades para uma só pessoa. Como
de cultural a uma definição simples^pura", seria já foi dito, esta "fabricação" se faz somente em
não levar em conta a heterogeneidade de todo função de um contexto de relação específico a
grupo social. Nenhum grupo, nenhum indivíduo uma situação particular.
está fechado a priori em uma identidade unidi- O recurso à noção de "dupla identidade"
mensiònal. O caráter flutuante que se presta a está ligado às lutas de classificação evocadas an-
diversas interpretações ou manipulações é ca- teriormente. A concepção negativa da "dupla
racterístico da identidade. É isto que dificulta a identidade" permite que se desqualifiquem so-
definição desta identidade. cialmente certos grupos, principalmente as po-
Querer considerar a identidade como mo- pulações vindas da imigração. Num sentido in-
nolítica impede a compreensão dos fenômenos verso, será elaborado um discurso para reabili-
de identidade mista que são freqüentes em toda tar estes grupos, fazendo a apologia da "dupla
identidade" como algo que representa um enri- catórias que estão ligadas à sua história. A iden-
quecimento . Mas qualquer que seja a represen- tidade cultural remete a grupos culturais de re-
tação da suposta "dupla identidade", positiva ou ferência cujos limites não são coincidentes.
negativa, ambas estão ligadas ao mesmo erro Cada indivíduo tem consciência de ter uma
analítico. identidade de forma variável, de acordo com as
Os encontros dos povos, as migrações in- dimensões do grupo ao qual ele faz referência
ternacionais multiplicaram estes fenômenos de em tal ou tal situação relacionai. Um mesmo in-
identidade sincrética cujo resultado desafia as divíduo, por exemplo, pode se definir, segundo
expectativas, sobretudo quando elas são base- o caso, como natural de Rennes, como bretão,
adas em uma concepção exclusiva da identida- como francês, como europeu e talvez até como
de. Para tomar um exemplo, no Maghreb (norte ocidental. A identidade funciona, por assim di-
da África) tradicional não é raro que os mem- zer, como as bonecas russas, encaixadas umas
bros das velhas famílias judias presentes há sé- nas outras [Simon, 1979, p. 31]. Mas, apesar de
culos sejam chamados de "Judeus árabes", dois ser multidimensional, a identidade não perde
termos que parecem hoje pouco conciliáveis sua unidade.
desde o crescimento dos nacionalismos. Esta identidade com múltiplas dimensões
Em um contexto completamente diferen- em geral não causa problema e é bem aceita. O
te, o cio Peru contemporâneo, existem peruanos que causa problema para alguns é a "dupla iden-
chamados de Chinos que se reconhecem como tidade"cujos pólos de referência estariam si-
tais. São os descendentes dos imigrantes chine- tuados no mesmo nível. No entanto, não se sabe
ses, chegados ao Peru no século XIX, após a abo- por que a capacidade de integrar várias referên-
lição da escravatura. Eles se sentem hoje total- cias identificatórias em uma só identidade não
mente peruanos mas continuam muito ligados a funcionaria, a menos que uma autoridade domi-
sua identidade chinesa. Isto não choca no Peru, nadora a proibisse em nome da identidade
país que elegeu e reelegeu recentemente um fi- exclusiva.
lho de imigrantes japoneses para a presidência É verdade que, mesmo no caso de uma in-
da República, sem que a maioria dos peruanos tegração de duas referências de mesmo nível
(mesmo dos que não votaram nele) considere em uma só identidade, os dois níveis raramente
esta eleição uma ameaça para a identidade são equivalentes, pois remetem a grupos que
nacional. não estão quase nunca em uma posição de equi-
De fato, cada indivíduo integra, de maneira valência no contexto de uma dada situação.
sintética, a pluralidade das referências identifi-
Asuestratégiíis de identidade mo que a identidade se preste à instrumentaliza-
ção por sua plasticidade - segundo Devereux ela
A identidade é tão difícil de se delimitar e seria uma "ferramenta" e até uma "caixa de ferra-
de se definir, precisamente em razão de seu ca- mentas" - não é possível aos grupos e aos indiví-
ráter multidimensional e dinâmico. É isto que duos fazer o que quer que desejem em matéria
lhe confere sua complexidade mas também o de identidade: a identidade é sempre a resultante
que lhe dá sua flexibilidade .A identidade conhe- da identificação imposta pelos outros e da que o
ce variações, presta-se a reformulações e até a grupo ou o indivíduo afirma por si mesmo.
manipulações. Um tipo extremo de estratégia de identifi-
Para sublinhar esta dimensão mutável da cação consiste em ocultar a identidade preten-
identidade que não chega jamais a uma solução dida para escapar à discriminação, ao exílio ou
definitiva, certos autores utilizam o conceito de até ao massacre. Um caso histórico exemplar
"estratégia de identidade". Nesta perspectiva, a desta estratégia é o dos Marranos. Os Marranos
identidade é vista como um meio para atingir são os judeus da Península Ibérica que se con-
um objetivo. Logo, a identidade não é absoluta, verteram exteriormente ao catolicismo no sécu-
mas relativa. O conceito de estratégia indica lo XV para escapar à perseguição e à expulsão,
também que o indivíduo, enquanto ator social, continuando fiéis à sua fé ancestral e mantendo
não é desprovido de uma certa margem de ma- secretamente um certo número de ritos tradi-
nobra. Em função de sua avaliação da situação, cionais. A identidade judaica pôde assim ser
ele utiliza seus recursos de identidade de manei- transmitida clandestinamente no seio de cada
ra estratégica. Na medida em que ela é um mo- família durante séculos, de geração em geração,
tivo de lutas sociais de classificação que buscam até poder se afirmar novamente em público.
a reprodução ou a reviravolta das relações de Emblema ou estigma, a identidade pode
dominação, a identidade se constrói através das então ser instrumentalizada nas relações entre
estratégias dos atores sociais. os grupos sociais.A identidade não existe em si
No entanto, recorrer ao conceito de estraté- mesma, independentemente das estratégias de
gia não deve levar a pensar que os atores sociais afirmação dos atores sociais que são ao mesmo
são totalmente livres para definir sua identidade tempo o produto e o suporte das lutas sociais e
segundo interesses materiais e simbólicos do mo- políticas '[Bell, 19751-Ao se enfatizar o caráter
mento. As estratégias devem necessariamente le- estratégico da identidade, pode-se ultrapassar o
var em conta a situação social, a relação de força falso problema da veracidade científica das afir-
entre os grupos, as manobras dos outros, etc. Mes- mações de identidade.
Segundo Bourdieu, o caráter estratégico da dos haitianos imigrados para Nova York. A pri-
identidade não implica necessariamente uma meira geração da primeira grande onda migrató-
perfeita consciência dos objetivos buscados pe- ria (década de sessenta), vinda da elite mulata
los indivíduos e tem a vantagem de dar conta do Haiti, optará pela assimilação à nação ameri-
dos fenômenos de eclipse ou de despertar de cana, mas acentuando tudo o que pudesse evo-
identidade. Esses fenômenos suscitam muitos car uma certa "brancura"e a "distinção" para se
comentários contestáveis, pois são marcados na diferenciar dos Negros americanos e escapar da
maior parte das vezes por um certo essencialis- relegação social.A segunda onda migratória (dé-
mo. Por exemplo, o que foi chamado nos anos cada de setenta), composta essencialmente de
setenta, na América do Norte e na América do famílias da classe média (de cor negra), diante
Sul, de "despertar índio" não pode ser considera- das dificuldades de integração, escolherá uma
do como a ressurreição pura e simples de uma outra estratégia, a da afirmação da identidade
identidade que teria conhecido um eclipse e haitiana, para evitar qualquer risco de confusão
que teria se mantido invariável (certos autores com os negros dos Estados Unidos; a utilização
evocam de maneira inapropriada um "estado de sistemática da língua francesa, inclusive em pú-
hibernação" para descrever tal fenômeno).Trata- blico, e o esforço para se fazer reconhecer
se na realidade da retnvencão estratégica de uma como grupo étnico específico serão os instru-
identidade coletiva em um contexto completa- mentos privilegiados desta estratégia. Quanto
mente novo: o contexto do aumento dos movi- aos jovens haitianos, sobretudo os da "segunda
mentos de reivindicação das minorias étnicas geração", sensíveis à desvalorização social cada
nos Estados-nações contemporâneas. vez maior da identidade haitiana nos anos oiten-
De uma maneira mais geral, o conceito de ta nos Estados Unidos, devido ao drama dos
estratégia pode explicar as variações de identi- boat people naufragados na costa da Flórida e
dade, que poderiam ser chamadas de desloca- da classificação de sua comunidade como "gru-
mentos de identidade: Ele faz aparecer a relativi- po de risco" no desenvolvimento da Aids, eles
dade dos fenômenos de identificação. A identi- rejeitam esta identidade e reivindicam uma
dade se constrói, se desconstrói e se reconstrói identidade transnacional caribenha, aproveitan-
segundo as situações. Ela está sem cessar em do o fato de Nova York ter se transformado, de-
movimento; cada mudança social leva-a a se re- vido à imigração, na primeira cidade caribenha
formular de modo diferente. do mundo.
Em um estudo sugestivo, Françoise Morin
[1990] analisa as recomposições da identidade
As "fronteiras" tia identidade particular.A identidade etno-cultural usa a cultu-
ra, mas raramente toda a cultura. Uma mesma
O exemplo anterior mostra claramente cultura pode ser instrumentalizada de modo di-
que toda identificação é ao mesmo tempo dife- ferente e até oposto nas diversas estratégias de
renciação. Para Barth [1969J, no processo de identificação.
identificação o principal é a vontade de marcar Segundo Barth, a etnicidade que é o pro-
os limites entre "eles" e "nós" e logo, de estabele- duto do processo de identificação, pode ser de-
cer e manter o que chamamos de "fronteira". finida como a organização social da diferença
Mais precisamente, a fronteira estabelecida re- cultural. Para explicar a etnicidade o importante
sulta de um compromisso entre a que o grupo não é estudar o conteúdo cultural da identidade
pretende marcar e a que os outros querem lhe mas os mecanismos de interação que, utilizando
designar. Trata-se, evidentemente de uma fron- a cultura de maneira estratégica e seletiva man-
teira social, simbólica. Ela pode, em certos ca- têm ou questionam as "fronteiras" coletivas.
sos, ter compensações territoriais, mas isto não Contrariamente a uma convicção larga-
é o essencial. mente difundida, as relações contínuas de longa
O que separa dois grupos etno-culturais duração entre grupos étnicos não levam neces-
não é em princípio a diferença cultural, como sariamente ao desaparecimento progressivo das
imaginam erroneamente os culturalistas. Uma diferenças culturais. Freqüentemente, ao contrá-
coletividade pode perfeitamente funcionar ad- rio, estas relações são organizadas para manter a
mitindo em seu seio uma certa pluralidade cul- diferença cultural. Às vezes, elas provocam até
tural. O que cria a separação, a "fronteira", é a uma acentuação desta diferença através do jogo
vontade de se diferenciar e o uso de certos tra- da defesa (simbólica) das fronteiras de identida-
ços culturais como marcadores de sua identida- de. Entretanto, as "fronteiras" não são imutáveis.
de específica. Grupos muito próximos cultural- [pUra Barth, todas as fronteiras são concebidas
mente podem se considerar completamente es- como uma demarcação social suscetível de ser
tranhos uns em relação aos outros e até total- constantemente renovada pelas trocas. Qual-
mente hostis, opondo-se sobre um elemento quer mudança na situação social, econômica ou
isolado do conjuto cultural. política pode provocar deslocamentos de fron-
A análise de Barth permite escapar à con- teiras. O estudo destes deslocamentos é neces-
fusão tão freqüente entre "cultura" e "identida- sário se quisermos explicar as variações de
de". Participar de certa cultura particular não identidade. A análise da identidade não pode
implica automaticamente ter certa identidade então se contentar com uma abordagem sincró-
nica e deve ser feita também em um plano
diacrônico. Conteúdos e Usos Sociais da
Logo, não existe identidade cultural em si Noção da Cultura
mesma, definível de uma vez por todas. A análi-
se científica não deve pretender achar a verda-
deira definição das identidades particulares que
ela estuda. A questão não é saber, por exemplo, Há algumas décadas, a noção de cultura
quem são "verdadeiramente" os Corsos, mas o obtém um sucesso crescente. A palavra tende a
que significa recorrer à identificação "corsa1'. Se suplantar outros termos que haviam sido mais
admitirmos que a identidade é uma construção usados anteriormente, como "mentalidade", "es-
social, a única questão pertinente é: "Como, por pírito", "tradiçao"e até "ideologia". Este sucesso
que e por quem, em que momento e em que é devido em parte a uma certa vulgarização da
contexto é produzida, mantida ou questionada antropologia cultural, vulgarização que não
certa identidade particular?" acontece sem certas interpretações errôneas ou
sem simplificação excessiva; desta disciplina re-
tomam-se, freqüentemente as teses mais discutí-
veis de seu início, já abandonadas pela maior
parte dos antropólogos.
"Cultura" foi introduzida recentemente em
campos semânticos que ela não freqüentava an-
teriormente. A palavra é correntemente utiliza-
da nos dias de hoje pelo vocabulário político:
evoca-se assim a "cultura de governo" à qual se
compara a "cultura de oposição". Um dirigente
do partido socialista se referia, em outubro de
1995, no jornal Lê Monde, à "cultura de decen-
tralizacão" (que se opõe implicitamente à "cultu-
ra de centralização"). Outro exemplo: durante o
jornal radiofônico das 13 horas da emissora
France Inter do dia 11 de setembro de 1995, foi
citada a seguinte declaração cie um alto funcio-
nário da ONU a respeito do conflito militar na