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ARTIGO ARTICLE
Trabalho de campo, narrativa e produção de conhecimento
na pesquisa etnográfica contemporânea:
subsídios ao campo da saúde
Abstract In this article I reflect on the peculiar- Resumo Neste artigo desenvolvo um exercício de
ities of contemporary ethnographic research, high- reflexão em torno das peculiaridades da pesquisa
lighting some challenges inherent to this process. etnográfica contemporânea, assinalando alguns
The discussion focuses in particular on the fol- desafios inerentes a este processo. A discussão se
lowing aspects: the limits imposed by the clear centrará, especialmente, nos seguintes aspectos:
reduction in immersion time in the field; the chal- os limites impostos pela notória abreviação do
lenges in learning about ethnographic work, ei- tempo de imersão no campo; os desafios na apren-
ther in the process of observation or interaction dizagem do trabalho etnográfico, seja nos proces-
in the field, or in the task of textual production; sos de observação ou interação no campo, seja na
issues of an epistemological and ethical nature tarefa de produção textual; questões de caráter
that deserve particular attention on the part of epistemológico e ético que merecem uma atenção
practitioners of the ethnographic approach and especial no por parte dos praticantes da aborda-
the scientific community in general. It is espe- gem etnográfica e da comunidade científica em
cially appropriate to foster debate around the eth- geral. Considero, especialmente, oportuno promo-
nographic method, addressing its peculiarities, ver o debate em torno do método etnográfico, abor-
operational complexity and potential as a tool for dando suas peculiaridades, complexidade opera-
knowledge production, in the sphere of health/ cional e potencialidades enquanto ferramenta de
public health, bearing in mind the marked in- produção de conhecimento, na esfera da saúde/
crease of this approach in this field. saúde coletiva, tendo em vista o incremento no-
Key words Reflexive anthropology, Ethnogra- tável desta abordagem neste campo.
phy in health, Field work, Narrative Palavras-chave Antropologia reflexiva, Etnogra-
fia em saúde, Trabalho de campo, Narrativa
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Instituto de Saúde
Coletiva, Pró-Reitoria de
Pesquisa e Pós-Graduação,
Universidade Federal da
Bahia. Rua Basílio da Gama
S/Nº, Canela. 40110-040
Salvador BA. trad@ufba.br
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Trad LAB
temporaneidade por diferentes autores. Laplan- do trabalho etnográfico. Para Cardoso de Olivei-
tine9 recorda que o exercício competente dos pro- ra8, o nosso saber é construído a partir da articu-
cessos de olhar e de escutar na prática etnográfi- lação destes três atos cognitivos de natureza epis-
ca do investigador é resultado de um processo de têmica: se nossa percepção se realiza através do
aprendizagem. Um tipo de aprendizagem que olhar e do ouvir “disciplinado” pela disciplina, é
deveria ser contemplada por um programa es- no ato de escrever que o pensamento é exercitado
pecífico de formação. como produtor de um discurso. Acrescenta-se
Pensando em termos de uma formação dis- ainda que, se a escuta pode esclarecer aquilo que o
ciplinar, esta conformaria um projeto conceitual olhar registrou, será preciso compreender o sen-
que se reflete diretamente sobre a maneira de cada tido de cada visão ou palavra8.
investigador ver a realidade que observa; melhor No que diz respeito à escuta, é importante
dito, a maneira na qual o seu objeto de estudo é reconhecer as múltiplas oportunidades para o
apreendido8. Contudo, quando consideramos o seu exercício no decorrer da observação partici-
perfil dominante entre pesquisadores que desen- pante, evitando assim restringir este processo aos
volvem estudos etnográficos na área de saúde, momentos de entrevistas formais, uma tendên-
particularmente da saúde coletiva, encontramos cia recorrente em estudos que referem à adoção
um modo de “ver a realidade” ou uma “forma- da etnografia no campo da saúde coletiva. Em
ção” que refletem a interpenetração de conheci- certa medida, tal limitação foi observada em um
mentos biomédicos, instrumentais, sociais etc. dos estudos que realizei no campo da saúde17, o
Neste sentido, um dos grandes desafios para a qual seria mais bem qualificado como uma pes-
formação em pesquisa de base antropológica, quisa de cunho etnográfico.
notadamente de tipo etnográfica, consiste no de- Para ilustrar os limites da entrevista, quando
senvolvimento da capacidade dos pesquisadores comparada ao exercício mais amplo da observa-
em definir e apreender referenciais teórico-con- ção em campo, Binet18 descreve uma situação em
ceituais adequados ao seu estudo, os quais de- que o objeto de estudo consiste na prática profis-
vem modular “a observação, a percepção e a in- sional do assistente social. De imediato, ele reco-
terpretação do pesquisador em todas as fases da nhece que a entrevista com assistentes sociais
pesquisa”14. abordando sua prática profissional permitiria
Observa-se, ao mesmo tempo, que certas recolher narrativas sobre o tema, cujas análises
peculiaridades do campo da saúde podem po- poderiam ser enriquecidas através da triangula-
tencializar a adoção do enfoque etnográfico. Schi- ção com outras fontes. Em seguida, ele pondera
mit15 reconhece na saúde um campo fértil para a que os dados apreendidos por esta via confor-
prática etnográfica, identificando em seus domí- mariam um corpus de alcance limitado.
nios um território propício à formação ética e O autor argumenta que o discurso sobre a
especializada nesta abordagem. Ela sugere um prática profissional no contexto descrito (reco-
programa de formação (desde a graduação, ini- lhido através de entrevista) foi gerado fora do
ciação científica) que alie o ensino teórico à apren- contexto real em que ele se realiza. Perdem-se por
dizagem experiencial da etnografia. Insere-se aqui esta via, muitos “aspectos e detalhes que só uma
uma conjunção de estratégias que contempla dis- observação in situ permite capturar”. Cabe reite-
ciplinas específicas e um conjunto de atividades rar que a observação participante constitui a
que caracterizam o treino de pesquisa (seminári- principal estratégia metodológica da etnografia.
os, orientação, prática de trabalho de campo). Para concluir esta seção, acrescento algumas
Um dos grandes desafios para essa pretendi- considerações a respeito da escrita. A antropolo-
da formação reside no fato, enfatizado por Pei- gia de base reflexiva e pós-moderna tem destina-
rano16, da impossibilidade de ensinar etnografia do especial interesse aos processos textuais e nar-
como se esta fosse apenas uma técnica. Seu apren- rativos. O que é curioso se considerarmos que,
dizado, salienta a autora, é um processo que se durante um bom tempo, os antropólogos não
realiza através da experiência vivenciada e acu- pensaram muito em “narrativa”; a monografia
mulada em Campo e, sobretudo, das reflexões antropológica mantinha-se, há décadas, fiel a um
produzidas no percurso realizado. formato razoavelmente uniforme e aparentemen-
O fato é que, tanto no elenco daquilo que pode te natural19. Em tempos pós-modernos ou refle-
ser ensinado, quanto de outro, que reúna aquilo xivos, os etnógrafos são convocados a produzir
que só se aprende pela experiência, não poderá narrativas que considerem, entre outros aspec-
faltar considerações relativas à tríade olhar, ouvir tos, a dimensão histórica da realidade social, os
e escrever, posto que reside ai o percurso essencial limites inerentes ao processo de descrição do
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mo momento que o investigador chega ao seu tos daquilo que é publicizado. Para minimizar os
terreno; melhor dito, no momento que ele esco- limites inerentes à tarefa de interpretar e de tra-
lhe o seu objeto de estudo23. Nesta direção, reve- duzir vidas alheias, tarefa por excelência da etno-
la-se oportuna a proposta de redefinir a posição, grafia, Godelier23 recomenda como atitude me-
relativamente passiva, do informante. Cardoso tódica da pesquisa de campo realizar, sempre que
de Oliveira8 sugere um tipo de enquadre para o possível, a revisão conjunta com os colaborado-
relacionamento entre o pesquisador e o sujeito, res de transcrições de relatos orais e de observa-
o grupo ou a comunidade investigada, no qual ções, bem como de textos interpretativos.
“o ouvir ganha uma qualidade que altera a rela- Para concluir, recorro primeiro a Price19, com-
ção, de uma estrada em mão única para uma de partilhando com ele as seguintes inquietações:
mão dupla, portanto uma verdadeira interação”. como encontrar o caminho para chegar ao com-
Detendo-se inicialmente na etapa de campo, plicado relacionamento entre fato e ficção, ver-
encontramos em Schmidt15 a descrição de algu- dade e fantasia, passado e presente, trabalho de
mas atitudes que expressariam o compromisso campo e memória em nossos relatos etnográfi-
ético do pesquisador. A saber: busca de interlo- cos, ao mesmo tempo em que permanecemos
cução e de diálogo no trabalho de campo visan- comprometidos com aqueles sobre quem escre-
do compreender o sentido e os significados da vemos? Ou ainda, como atender aos apelos des-
experiência de outros próximos ou distantes; dis- sa “nova” etnografia que pressupõe reflexivida-
tribuição democrática de lugares de escuta, fala e de, contextualização, envolvimento ético e políti-
decisão entre pesquisador e colaboradores ou co, ao tempo que joga o leitor de um lado para o
interlocutores; disposição para negociar e refazer outro no tempo e no espaço?
os contratos ou pactos de trabalho comparti- Ressalto ainda que as pretensões de formação
lhado entre pesquisador e colaborador sempre do etnógrafo, seja no campo da saúde ou alhures,
que necessário; empenho no esclarecimento, fi- se defronta com um aspecto paradoxal em torno
delidade, respeito e solidariedade às formas de da etnografia. Qual seja: de que seu aprendizado
viver desenhadas pelos colaboradores e cuidado se realiza efetivamente através do exercício práti-
em sua transcrição em texto. co. Sendo também razoável supor que parte de
As preocupações de caráter ético não se res- seu êxito depende da maior ou menor sensibili-
tringem ao momento do trabalho de campo. Deve dade/habilidade do pesquisador nos processos de
incluir necessariamente o produto que dele deriva interação, escuta e observação em campo. Mas,
e que é publicizado. Como advertiu Geertz20, “uma ao mesmo tempo, a ausência de uma formação
vez que se passa a olhar para os textos etnográfi- mais consistente em torno das bases teóricas e
cos, além de através deles, uma vez que eles são epistemológicas que dão sustentação ao método
vistos como objetos produzidos, e produzidos etnográfico, bem como de interlocuções com pes-
para persuadir, aqueles que os produzem têm quisadores mais experientes que possam assu-
muito mais pelo que se responsabilizar”. mir, em certos casos, uma posição de supervisão,
Schmidt15 reconhece que os efeitos políticos e pode comprometer fortemente sua validade. As-
ideológicos da divulgação e da recepção de uma sim sendo, convém vislumbrar estratégias de for-
pesquisa não podem ser planejados ou contro- mação na abordagem etnográfica que combinem
lados pelo pesquisador. Mas, ressalta a necessi- duas experiências de imersão: na esfera teórico-
dade de antever e de ponderar os eventuais efei- conceitual e no campo.
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