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ARTIGO ARTICLE
Trabalho de campo, narrativa e produção de conhecimento
na pesquisa etnográfica contemporânea:
subsídios ao campo da saúde

Field work, narrative and knowledge production in contemporary


ethnographic research: a contribution to the field of health

Leny Alves Bomfim Trad 1

Abstract In this article I reflect on the peculiar- Resumo Neste artigo desenvolvo um exercício de
ities of contemporary ethnographic research, high- reflexão em torno das peculiaridades da pesquisa
lighting some challenges inherent to this process. etnográfica contemporânea, assinalando alguns
The discussion focuses in particular on the fol- desafios inerentes a este processo. A discussão se
lowing aspects: the limits imposed by the clear centrará, especialmente, nos seguintes aspectos:
reduction in immersion time in the field; the chal- os limites impostos pela notória abreviação do
lenges in learning about ethnographic work, ei- tempo de imersão no campo; os desafios na apren-
ther in the process of observation or interaction dizagem do trabalho etnográfico, seja nos proces-
in the field, or in the task of textual production; sos de observação ou interação no campo, seja na
issues of an epistemological and ethical nature tarefa de produção textual; questões de caráter
that deserve particular attention on the part of epistemológico e ético que merecem uma atenção
practitioners of the ethnographic approach and especial no por parte dos praticantes da aborda-
the scientific community in general. It is espe- gem etnográfica e da comunidade científica em
cially appropriate to foster debate around the eth- geral. Considero, especialmente, oportuno promo-
nographic method, addressing its peculiarities, ver o debate em torno do método etnográfico, abor-
operational complexity and potential as a tool for dando suas peculiaridades, complexidade opera-
knowledge production, in the sphere of health/ cional e potencialidades enquanto ferramenta de
public health, bearing in mind the marked in- produção de conhecimento, na esfera da saúde/
crease of this approach in this field. saúde coletiva, tendo em vista o incremento no-
Key words Reflexive anthropology, Ethnogra- tável desta abordagem neste campo.
phy in health, Field work, Narrative Palavras-chave Antropologia reflexiva, Etnogra-
fia em saúde, Trabalho de campo, Narrativa

1
Instituto de Saúde
Coletiva, Pró-Reitoria de
Pesquisa e Pós-Graduação,
Universidade Federal da
Bahia. Rua Basílio da Gama
S/Nº, Canela. 40110-040
Salvador BA. trad@ufba.br
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Introdução giu como estratégia privilegiada e legitimada para


obtenção de dados sobre povos exóticos desde os
A etnografia é reconhecida com um método cen- primórdios do século XX3. A partir da década de
tral na antropologia social. Contudo, sua valori- 1960, sobretudo nos anos oitenta, o panorama dos
zação e efetiva incorporação fazem-se notar em estudos etnográficos assumia novos contornos,
outros domínios disciplinares. Martinez-Hernaez1 revelando diferenças significativas respeito às clás-
ao reconhecer que o método etnográfico tem sido sicas etnografias realizadas por antropólogos como
utilizado cada vez mais em outras áreas de conhe- Malinovsky4, Evans Prichard5, Boas6, ou Lévi-
cimento, além da antropologia, recorda que para Strauss7, para citar exemplos paradigmáticos.
empreender estudos com essa metodologia é im- De estudos de sociedade “totais”, baseados
prescindível que o pesquisador detenha conheci- em uma observação completa, participante e viva
mento dos fundamentos básicos da antropolo- das sociedades estudadas8, a etnografia conver-
gia. Convém ainda distinguir a etnografia, enquan- te-se nos nossos dias em uma exploração muito
to método de pesquisa com bases teóricas especí- mais modesta, centrada em uma dada temática
ficas, da observação participante, técnica central ou aspecto específico da realidade a ser estudada.
para a coleta de dados nos estudos etnográficos. Vale remarcar que a delimitação de um foco mais
No campo da saúde é visível o incremento de preciso já era um aspecto cogitado entre antro-
estudos que adotam o enfoque etnográfico, es- pólogos clássicos, sob o argumento de que a
pecialmente nas últimas décadas. Em consulta à amplitude de uma cultura não poderia ser apre-
base Scielo, adotando os descritores etnografia e endida em uma investigação breve3.
método etnográfico e considerando apenas traba- A partir destes apontamentos inicias, desen-
lhos em saúde, foram registradas 81 publicações, volvo ao longo deste artigo uma reflexão em tor-
destas, cerca de 90% são na última década. no das peculiaridades da pesquisa etnográfica
No rol dos pesquisadores que vem privilegian- contemporânea, assinalando alguns desafios ine-
do esta abordagem na área de saúde encontra- rentes a este processo. A discussão se centrará,
mos, além de antropólogos ou sociólogos, um especialmente, nos seguintes aspectos: os limites
número expressivo de psicólogos e de profissio- impostos pela notória abreviação do tempo de
nais de saúde de formação diversa. Um dado que imersão no campo; os desafios na aprendizagem
é especialmente observado no campo da saúde do trabalho etnográfico, seja nos processos de
coletiva, cujo hibridismo disciplinar constitui um observação ou interação no campo, seja na tarefa
traço identitário. de produção textual; questões de caráter episte-
Neste sentido, as reflexões em torno da in- mológico e ético, as quais merecem uma atenção
serção do enfoque etnográfico na pesquisa em especial por parte dos praticantes do método et-
saúde na atualidade, devem levar em conta o perfil nográfico e da comunidade científica em geral.
dos pesquisadores e, sobretudo, reafirmar a pre- Considera-se especialmente oportuno pro-
ocupação com o rigor metodológico desta etno- mover o debate em torno das questões propos-
grafia cada vez mais “plural e criativa”. No limite, tas na esfera da saúde/ saúde coletiva, tendo em
caberia interrogar se a etnografia adotada de for- vista o incremento já referido de estudos que
ma crescente na área de Saúde estaria mais pró- adotam a abordagem etnográfica no campo.
xima de observação de “tipo” etnográfico, dada
as distorções que se observam das premissas Imersão em campo: possibilidade
originais do método2. e limitações no cenário atual de pesquisa
Por certo que as características que adquire o
trabalho etnográfico nas fronteiras da saúde co- A presença no campo: ver sobre o terreno,
letiva não derivam apenas do perfil de seus pra- “estar lá” e voltar regularmente é a mais impor-
ticantes ou de traços inerentes ao campo. Muitos tante via de acesso ao conhecimento perseguido
elementos, em princípio presentes em outros con- em um estudo etnográfico9. É necessário reco-
textos disciplinares, incluindo a antropologia, nhecer que a qualidade das informações recolhi-
refletem as transformações processadas na tra- das e a imersão na vida diária de comunidades,
jetória histórica de desenvolvimento do método de pessoas ou de instituição em um estudo etno-
enquanto ferramenta de observação, registro e gráfico, dependem em grande medida do tempo
interpretação de comportamentos sociais e mo- do tempo de permanência do pesquisador no
dos de organização societais. terreno de investigação.
O trabalho de campo intensivo, levado a cabo Clifford3, ao mencionar que desde os primór-
por especialistas treinados na universidade, emer- dios da etnografia havia a expectativa de que o
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etnógrafo vivesse na comunidade de estudo e pre parciais. Por outro lado, é preciso reconhecer
permanecesse nela por tempo suficiente para o que este processo de ´leitura` da realidade obser-
desenvolvimento do seu trabalho, ressalta que, vada, pode ser mais ou menos superficial, mais
raras vezes, tal tempo era especificado. Caberia ou menos coerente.
interrogar se é possível prescrever um tempo ideal É imprescindível enfatizar ainda que a dis-
para este processo. Pode-se ponderar que a ne- cussão sobre o tempo de permanência no traba-
cessidade de imersão sobre o terreno é uma deci- lho de campo deve considerar sempre a intensi-
são que cada investigador toma em função das dade e a consistência das interações processadas
suas ideias; por conseguinte, “nenhuma receita” é entre o pesquisador e seus informantes. Uma
válida neste caso10. maior ou menor oportunidade do pesquisador
De qualquer maneira, é razoável problemati- de acercar-se ao universo pesquisado, ou de ex-
zar sobre o risco de que uma permanência muito plorar situações ou informações vinculadas ao
abreviada sobre o campo tenha como resultado objeto de estudo, bem como sua habilidade para
um conhecimento muito superficial da realidade apreender e traduzir o observado ou dito, são
estudada. Se participar muito pode comprome- aspectos que incidirão sobre a qualidade do pro-
ter o distanciamento necessário, participar mui- duto etnográfico. Além disso, é importante con-
to pouco pode dificultar a ruptura com o olhar siderar também outros recursos que o pesquisa-
etnocêntrico e superficial e, sobretudo, não favo- dor pode dispor ‘fora’ do campo. As notas de
recer a compreensão a partir do interior11. campo não são a única fonte de informação dis-
A racionalidade que orienta a produção cien- ponível sobre o tema ou objeto de estudo13.
tífica nas instituições acadêmicas nos mais diver-
sos campos, aliada ao deslocamento da etnogra- O trabalho etnográfico:
fia para o interior da sociedade de pertença do um aprendizado necessário
pesquisador, são fatores que repercutem direta-
mente sobre o modus operandi do trabalho et- A definição do etnógrafo como uma figura
nográfico. Atendo-se ao primeiro aspecto, ob- quase mítica pode ser claramente apreendida nas
serva-se que o tempo abreviado das etnografias palavras de Levis Strauss7 em “Tristes trópicos”:
pós-malinowsky decorrem em grande parte da sempre se considerando humano, o etnógrafo pro-
dificuldade de pesquisadores e de estudantes de cura conhecer e julgar o homem de um ponto de
pós-graduação de viabilizar uma permanência vista elevado e distante o suficiente para abstraí-lo
prolongada em campo. das contingências próprias a esta sociedade ou àque-
Dentre as dificuldades, aludidas acima, desta- la civilização. Ele complementa sua aposta no
cam-se a sobrecarga crescente de trabalho viven- caráter vocacional da etnografia, ao reconhecer
ciado pelos pesquisadores nos ambientes acadê- nesta uma das raras vocações autênticas. Podemos
micos e a redução do tempo de conclusão de dis- descobri-la em nós, ainda que não nos tenha sido
sertações e teses, imposta pelas agências financia- ensinada por ninguém. Esta imagem contrasta
doras. Em um cenário marcado pelo produtivis- com a visão de um etnógrafo forjado a custa de
mo acadêmico, no qual a quantidade do que se treinamento e de formação, a qual representou
produz importa mais do que a profundidade, a uma ruptura com a etnografia realizada pelos
consistência e a originalidade do conhecimento missioneiros e expedicionários.
produzido, soa quase anacrônico um tipo de Clifford3 destaca que algumas inovações ins-
metodologia que requeira imersão prolongada no titucionais e metodológicas contribuíram para
campo e maturação dos processos de análise. que a etnografia levada a cabo por especialistas
Para Geertz12, um notável representante da ganhasse força a partir da década de 1920. Im-
etnografia contemporânea, de inspiração herme- prime-se a partir de então a valorização tanto
nêutica, realizar uma etnografia é como tentar ler pública quanto profissional da figura do etnó-
(no sentido de ‘construir uma leitura de’) um ma- grafo profissional. Um tipo treinado em técnicas
nuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, modernas de análise e diferentes modalidades de
incoerências, emendas suspeitas e comentários ten- explicação científica. Tais habilidades, ressalta o
denciosos, escrito não com os sinais convencionais autor, o distinguia de missioneiros, administra-
do som. A leitura e a tradução deste “manuscrito dores e outros cuja visão dos nativos era, presu-
borrado” oferecem a cada momento novas pos- mivelmente, mais comprometida.
sibilidades. Neste sentido, pode-se argumentar A preocupação com o desenvolvimento de
que qualquer que seja o ponto de interrupção do habilidades específicas para a realização do tra-
trabalho de campo, os dados gerados serão sem- balho etnográfico rigoroso é reafirmada na con-
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temporaneidade por diferentes autores. Laplan- do trabalho etnográfico. Para Cardoso de Olivei-
tine9 recorda que o exercício competente dos pro- ra8, o nosso saber é construído a partir da articu-
cessos de olhar e de escutar na prática etnográfi- lação destes três atos cognitivos de natureza epis-
ca do investigador é resultado de um processo de têmica: se nossa percepção se realiza através do
aprendizagem. Um tipo de aprendizagem que olhar e do ouvir “disciplinado” pela disciplina, é
deveria ser contemplada por um programa es- no ato de escrever que o pensamento é exercitado
pecífico de formação. como produtor de um discurso. Acrescenta-se
Pensando em termos de uma formação dis- ainda que, se a escuta pode esclarecer aquilo que o
ciplinar, esta conformaria um projeto conceitual olhar registrou, será preciso compreender o sen-
que se reflete diretamente sobre a maneira de cada tido de cada visão ou palavra8.
investigador ver a realidade que observa; melhor No que diz respeito à escuta, é importante
dito, a maneira na qual o seu objeto de estudo é reconhecer as múltiplas oportunidades para o
apreendido8. Contudo, quando consideramos o seu exercício no decorrer da observação partici-
perfil dominante entre pesquisadores que desen- pante, evitando assim restringir este processo aos
volvem estudos etnográficos na área de saúde, momentos de entrevistas formais, uma tendên-
particularmente da saúde coletiva, encontramos cia recorrente em estudos que referem à adoção
um modo de “ver a realidade” ou uma “forma- da etnografia no campo da saúde coletiva. Em
ção” que refletem a interpenetração de conheci- certa medida, tal limitação foi observada em um
mentos biomédicos, instrumentais, sociais etc. dos estudos que realizei no campo da saúde17, o
Neste sentido, um dos grandes desafios para a qual seria mais bem qualificado como uma pes-
formação em pesquisa de base antropológica, quisa de cunho etnográfico.
notadamente de tipo etnográfica, consiste no de- Para ilustrar os limites da entrevista, quando
senvolvimento da capacidade dos pesquisadores comparada ao exercício mais amplo da observa-
em definir e apreender referenciais teórico-con- ção em campo, Binet18 descreve uma situação em
ceituais adequados ao seu estudo, os quais de- que o objeto de estudo consiste na prática profis-
vem modular “a observação, a percepção e a in- sional do assistente social. De imediato, ele reco-
terpretação do pesquisador em todas as fases da nhece que a entrevista com assistentes sociais
pesquisa”14. abordando sua prática profissional permitiria
Observa-se, ao mesmo tempo, que certas recolher narrativas sobre o tema, cujas análises
peculiaridades do campo da saúde podem po- poderiam ser enriquecidas através da triangula-
tencializar a adoção do enfoque etnográfico. Schi- ção com outras fontes. Em seguida, ele pondera
mit15 reconhece na saúde um campo fértil para a que os dados apreendidos por esta via confor-
prática etnográfica, identificando em seus domí- mariam um corpus de alcance limitado.
nios um território propício à formação ética e O autor argumenta que o discurso sobre a
especializada nesta abordagem. Ela sugere um prática profissional no contexto descrito (reco-
programa de formação (desde a graduação, ini- lhido através de entrevista) foi gerado fora do
ciação científica) que alie o ensino teórico à apren- contexto real em que ele se realiza. Perdem-se por
dizagem experiencial da etnografia. Insere-se aqui esta via, muitos “aspectos e detalhes que só uma
uma conjunção de estratégias que contempla dis- observação in situ permite capturar”. Cabe reite-
ciplinas específicas e um conjunto de atividades rar que a observação participante constitui a
que caracterizam o treino de pesquisa (seminári- principal estratégia metodológica da etnografia.
os, orientação, prática de trabalho de campo). Para concluir esta seção, acrescento algumas
Um dos grandes desafios para essa pretendi- considerações a respeito da escrita. A antropolo-
da formação reside no fato, enfatizado por Pei- gia de base reflexiva e pós-moderna tem destina-
rano16, da impossibilidade de ensinar etnografia do especial interesse aos processos textuais e nar-
como se esta fosse apenas uma técnica. Seu apren- rativos. O que é curioso se considerarmos que,
dizado, salienta a autora, é um processo que se durante um bom tempo, os antropólogos não
realiza através da experiência vivenciada e acu- pensaram muito em “narrativa”; a monografia
mulada em Campo e, sobretudo, das reflexões antropológica mantinha-se, há décadas, fiel a um
produzidas no percurso realizado. formato razoavelmente uniforme e aparentemen-
O fato é que, tanto no elenco daquilo que pode te natural19. Em tempos pós-modernos ou refle-
ser ensinado, quanto de outro, que reúna aquilo xivos, os etnógrafos são convocados a produzir
que só se aprende pela experiência, não poderá narrativas que considerem, entre outros aspec-
faltar considerações relativas à tríade olhar, ouvir tos, a dimensão histórica da realidade social, os
e escrever, posto que reside ai o percurso essencial limites inerentes ao processo de descrição do
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observado ou escutado, os dilemas éticos em tor- sociais, são também referidos por Segalen21. To-
no da autoridade ou da autoria etc.3,19. mando de empréstimo as considerações de Van
Admite-se, então, que a descrição etnográfica Gennep, a autora critica, particularmente, a au-
é antes redescrição de uma realidade, cujo inves- sência da análise em torno das relações que se
tigador, através do ato da escrita, assume o papel estabelecem entre os vários elementos que com-
de intérprete ou de tradutor9. A credibilidade do põe as cenas, as situações descritas:
texto etnográfico neste contexto dependeria me- Um rito ou um acto social não tem valor nem
nos da amplitude das descrições, e mais da capa- sentido intrínsecos constantes; muda de valor e de
cidade do autor em convencer aos que não com- sentido de acordo com os actos que o precedem e
partilharam com ele da experiência de campo, de com os que o seguem; de onde se conclui que para
que ele efetivamente esteve ali e conseguiu pene- compreender um rito, uma instituição ou uma téc-
trar (ou ser penetrado) e apreender o modo de nica, não devemos extraí-lo arbitrariamente do
vida do grupo em questão20. conjunto cerimonial, jurídico ou tecnológico em
À medida que as pretensões realistas da etno- que está inserido; mas, pelo contrário, é sempre ne-
grafia clássica foram postas em cheque, as nar- cessário considerar cada elemento deste conjunto
rativas contemporâneas esforçam-se em realçar nas suas relações com todos os outros elementos21.
o caráter polifônico das experiências e das situa- O etnógrafo observa e paralelamente inter-
ções coletivamente compartilhadas. Requer-se preta. Seleciona do contexto o que há de signifi-
ainda que os manuscritos problematizem limites cativo em relação à elaboração teórica que está
e contradições associadas às eventuais diferenças realizando. Cria hipótese, realiza uma multiplici-
de classe, de padrões culturais ou de capital polí- dade de análises, reinterpreta, formula novas hi-
tico entre o investigador e o grupo ou a socieda- póteses22.
de estudada. Não se trata apenas de entender o indivíduo
enquanto indivíduo, mas sim os processos que
Implicações epistemológicas e éticas fabricam o social, seu mundo social em torno
da etnografia: ‘falar com’, ‘falar de’, deste processo23. A vigilância epistêmica no tra-
produzir conhecimento balho etnográfico consiste em equilibrar a valo-
rização da subjetividade com o imperativo de
É necessário sempre distinguir a descrição et- produzir conhecimento científico. A interação no
nográfica do texto literário, bem como, do jorna- campo não é neutra, ela se confronta sempre
lístico. Peirano16 alerta sobre o risco de transfor- com a realidade objetiva que é pensada, expres-
mar o texto etnográfico em um conjunto de des- sa, comprimida pelas pessoas segundo os ter-
crições que privilegiam os aspectos mais bizarros mos de sua cultura; deste modo é necessário in-
ou exóticos que o investigador encontrou sobre o vestigar as contradições entre os informantes e
terreno. Ela rechaça uma concepção empiricista considerar a manipulação que possam fazer dos
da etnografia, cujo produto limita-se à mera des- dados, revendo ao mesmo tempo as nossas pró-
crição de depoimentos, por mais criativa que esta prias impressões e interpretações23.
resulte. Convém, portanto, desmistificar a “cren- Parte das preocupações e questões apontadas
ça de que a criatividade pode superar a falta de acima comporta, necessariamente, dimensões éti-
disciplina e a carência de um ethos científico”16. cas que não dizem respeito apenas à pesquisa et-
O processo de refinamento de problemas e nográfica. Mas, atendo-se a esta última, ressalta-
conceitos, enfatiza Peirano16, implica adotar duas se o risco de que o deslocamento da etnografia
perspectivas complementares. Uma que reconhe- para terrenos próximos do investigador, o leve a
ce a especificidade do caso concreto investigado. subestimar as diferenças culturais e de poder entre
Outra que busca apreender o caráter universal ele e os seus entrevistados. As mudanças e/ou mul-
da sua manifestação. Usando termos semelhan- tiplicação dos territórios de pesquisa não torna-
tes, Laplantine9 salienta que a descrição etnográ- ram mais fácil a tarefa de inserir o outro no pro-
fica deve responder à exigência de globalidade, duto final da etnografia. Seja no campo convencio-
realizando um duplo movimento: ligar o fenô- nal ou no novo, mantém-se a questão de como
meno estudado à totalidade social na qual se ins- falar do outro de uma maneira que permita con-
creve e, ao mesmo tempo, compreender as suas ciliar, no mesmo texto, o caráter íntimo e subjeti-
dimensões específicas. vo da experiência no campo com as dimensões
Os limites da descrição descontextualizada de analíticas ligadas aos enunciados que ele porta13.
processos referentes a uma dada sociedade ou A preocupação com a construção de uma et-
grupo social, sejam estes rituais ou outros atos nografia dialógica e polifônica começa no mes-
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mo momento que o investigador chega ao seu tos daquilo que é publicizado. Para minimizar os
terreno; melhor dito, no momento que ele esco- limites inerentes à tarefa de interpretar e de tra-
lhe o seu objeto de estudo23. Nesta direção, reve- duzir vidas alheias, tarefa por excelência da etno-
la-se oportuna a proposta de redefinir a posição, grafia, Godelier23 recomenda como atitude me-
relativamente passiva, do informante. Cardoso tódica da pesquisa de campo realizar, sempre que
de Oliveira8 sugere um tipo de enquadre para o possível, a revisão conjunta com os colaborado-
relacionamento entre o pesquisador e o sujeito, res de transcrições de relatos orais e de observa-
o grupo ou a comunidade investigada, no qual ções, bem como de textos interpretativos.
“o ouvir ganha uma qualidade que altera a rela- Para concluir, recorro primeiro a Price19, com-
ção, de uma estrada em mão única para uma de partilhando com ele as seguintes inquietações:
mão dupla, portanto uma verdadeira interação”. como encontrar o caminho para chegar ao com-
Detendo-se inicialmente na etapa de campo, plicado relacionamento entre fato e ficção, ver-
encontramos em Schmidt15 a descrição de algu- dade e fantasia, passado e presente, trabalho de
mas atitudes que expressariam o compromisso campo e memória em nossos relatos etnográfi-
ético do pesquisador. A saber: busca de interlo- cos, ao mesmo tempo em que permanecemos
cução e de diálogo no trabalho de campo visan- comprometidos com aqueles sobre quem escre-
do compreender o sentido e os significados da vemos? Ou ainda, como atender aos apelos des-
experiência de outros próximos ou distantes; dis- sa “nova” etnografia que pressupõe reflexivida-
tribuição democrática de lugares de escuta, fala e de, contextualização, envolvimento ético e políti-
decisão entre pesquisador e colaboradores ou co, ao tempo que joga o leitor de um lado para o
interlocutores; disposição para negociar e refazer outro no tempo e no espaço?
os contratos ou pactos de trabalho comparti- Ressalto ainda que as pretensões de formação
lhado entre pesquisador e colaborador sempre do etnógrafo, seja no campo da saúde ou alhures,
que necessário; empenho no esclarecimento, fi- se defronta com um aspecto paradoxal em torno
delidade, respeito e solidariedade às formas de da etnografia. Qual seja: de que seu aprendizado
viver desenhadas pelos colaboradores e cuidado se realiza efetivamente através do exercício práti-
em sua transcrição em texto. co. Sendo também razoável supor que parte de
As preocupações de caráter ético não se res- seu êxito depende da maior ou menor sensibili-
tringem ao momento do trabalho de campo. Deve dade/habilidade do pesquisador nos processos de
incluir necessariamente o produto que dele deriva interação, escuta e observação em campo. Mas,
e que é publicizado. Como advertiu Geertz20, “uma ao mesmo tempo, a ausência de uma formação
vez que se passa a olhar para os textos etnográfi- mais consistente em torno das bases teóricas e
cos, além de através deles, uma vez que eles são epistemológicas que dão sustentação ao método
vistos como objetos produzidos, e produzidos etnográfico, bem como de interlocuções com pes-
para persuadir, aqueles que os produzem têm quisadores mais experientes que possam assu-
muito mais pelo que se responsabilizar”. mir, em certos casos, uma posição de supervisão,
Schmidt15 reconhece que os efeitos políticos e pode comprometer fortemente sua validade. As-
ideológicos da divulgação e da recepção de uma sim sendo, convém vislumbrar estratégias de for-
pesquisa não podem ser planejados ou contro- mação na abordagem etnográfica que combinem
lados pelo pesquisador. Mas, ressalta a necessi- duas experiências de imersão: na esfera teórico-
dade de antever e de ponderar os eventuais efei- conceitual e no campo.
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