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Uma boa tarde,

antes de começar, gostaria de agradecer a presença de todos aqui, nessa


circunstância curiosa em meio ao verão. Quero agradecer em especial ao meu
orientador, o professor Alexandre, e aos membros da banca, os professores Ione
e Luciano, pela presença aqui e na banca de qualificação, e a professora
Claudia, que aceitou participar dessa banca final mesmo estando de férias.

Agora ao trabalho. Ou melhor, à história do trabalho, o percurso de pesquisa dos


últimos dois anos, que em verdade envolve bem mais tempo que isso e bem
mais mãos que as minhas, e desagua agora neste texto e nessa arguição. Começo
então com esta história da vida do trabalho, sua biografia, para nos atermos a
seus termos. Podemos dizer, biografematicamente, que essa biografia começa
biografemática, na exposição de uma só imagem:

[CAETANO ESTACIONA CARRO - TERRA]

Muito já se falou dessa reportagem, publicada pelo portal Terra em 2006. Se


falou de sua curiosidade, da banalidade do fato que narra, da condensação
de seu estilo, uma manchete e três fotos. Aqui para nós, mais do que matéria
de riso ou de espanto, esse objeto parece ser a expressão de um movimento
amplo da cultura, difuso pelas narrativas comunicacionais que nos cercam.

Caetano e seu carro, mas também as manchetes de que Chico Buarque compra
baguetes para o lanche da tarde ou que Marcela Temer é Bela, recatada e do
lar: tomamos aqui essas textualidades como delimitação de um fenômeno que
coloca em evidência e saturação histórias de vida de sujeitos e, ao mesmo
tempo, desloca em suas bases semióticas o que se entende por escrita biográfica.
Na tentativa de organizar um percurso de pesquisa capaz de interrogar esses
fenômenos, foi mesmo o fato dessas expressões serem compreendidas em
chaves como “o banal”, “o cotidiano”, “o pequeno” que encaminhou nosso
olhar. A partir da aparente placidez desse ato de estacionar um carro – e a
ingenuidade em traduzir tal gesto em notícia –, fomos levados a tensionar e
desconstruir tal movimento à luz do conceito de biografema.

O biografema é esta ideia discutida por Roland Barthes na década de 1970,


como uma forma outra de se grafar a vida: atendo-se a detalhes e a
idiossincrasias de seus personagens, e não aos critérios narrativos costumeiros,
voltados à contagem das trajetórias ilustres e aos grandes feitos.

Se aí aparece como provocação ao estado de coisas do biografismo, uma


inversão da organização semiótica desses relatos, há algo no estacionar de
Caetano e nos pães de Chico que faz lembrar as roupas de Sade, aludidas por
Barthes. E que nos faz propor o entendimento desses derrames de vidas no
contemporâneo como um resgate – e um desgaste – dessa proposição
barthesiana, cristalizada agora em modelo.

Na pré-história dessa dissertação, em nosso primeiro esforço acadêmico do


TCC, o biografema surgiu como uma espécie de sugestão criativa, capaz de
tensionar a prática do texto jornalístico. Como herança de algum antepassado,
essa ideia acabou por ser o ponto de partida dessa dissertação. Uma herança
torcida, porém: e a partir de elementos como aquela matéria sobre Caetano é
que construímos a hipótese que o uso do biografema como forma semiótica está
disseminado pelas narrativas comunicacionais do contemporâneo. Uso que se
transforma em abuso, e transforma tal estilo em veículo para tantas expressões
outras.
Essa tensão, motor de saída do trabalho no mestrado, se liga também a um
debate sobre a noção de espaço biográfico, como exposta por Leonor Arfuch.
Tendo em vista essa conceituação, se entende o biográfico como um espaço de
tradução da vida em formas semióticas, formas estas legíveis não apenas nos
suportes literários clássicos, mas mesmo fragmentadas por todos meios de
comunicação. Fragmentação visível na sua diacronia, sendo essas formas atores
em uma disputa de modelos narrativos. No contemporâneo, como afirma Arfuch
e demais autores e autoras a partir dela, citados por nós, a forma recorrente é
essa escritura do mínimo e do pessoal, compressão escritural da vida visível em
Caetano e legível como desdobramento do biografema.

Até a nossa qualificação, o estudo do biografema aliado a essas tensões


conceituais serviu no sentido de uma dessencialização do conceito barthesiano.
Se ele surge em um contexto de debate sobre textos literários e se apresenta
como uma provocação criativa, vinda de um lugar de desorganização, sua
reinsserção no espaço dos discursos cotidianos da comunicação de massa deu a
ver uma deriva dessa forma a que chamamos biografemática, esse gesto de
coleta das sobras da experiências. Mais que a deriva: sua cristalização em
modelo replicável e autoritário. O que o debate da qualificação e o período de
trabalho posterior da dissertação buscou é a linha de fuga dessa tensão, no
rastreio de certa permanência da potência do biografema em dobrar os
contornos de tal conflito.

A reorganização da dissertação foi, portanto, e em certo paroxismo, na direção


de alargar o trabalho, abordando de forma mais amplas essas viradas do
biografema, bem como expandindo nosso campo de objetos para mais de um
gênero textual (a literatura e o jornalismo, como aparecem aqui); mas, assim, o
reduzindo a um foco mais específico, que lança mão de debates históricos e
literários para deles extrair apenas o problema estrutural e semiótico, voltando o
interesse à organização e repercussão da vida desses discursos sobre a vida.

Nesse sentido que chegamos a uma versão final do problema de pesquisa,


redigido como: Tendo em vista a dispersão do biografema no
contemporâneo, como os textos dos meios de comunicação de massa e suas
contrapartes críticas dão a ver as estratégias de uso dessa forma? Quais as
relações semióticas que se instauram entre essas escrituras?

Um momento de detenção aqui, no que a organização desse problema e alguns


de seus termos-chave servem para encapsular bem os rumos decisivos da
dissertação:
- há a ideia de uma dispersão do biografema, como forma narrativa voltada
ao detalhe e à minúcia, parte de nossa hipótese inicial, confirmada pela
investigação de textualidades como Caetano estaciona e pela revisão de
teorias como as de Arfuch;
- há a centralidade da Comunicação nesse movimento, de início
compreendida pelo papel dos meios de comunicação em produzir e
veicular essas narrativas;
- mas também a própria Comunicação como processo de produção de
sentido, que envolve textualidades muito diversas; essa foi uma
importante abertura de perspectiva, a que exporemos melhor na
apresentação de nossos métodos e objetos;
- e, por fim, a ideia das relações semióticas instauradas no trânsito entre
essas textualidades, em relação no espaço biográfico. O que nos interesse
perguntar aqui – e nisso reside, acreditamos, a especificidade de nosso
trabalho – é: que forças articulam as estruturas de tais discursos e, a partir
delas, como esses próprios discursos estruturam o que se entende por
biografismo
Tal referência à estruturas e às relações de textos sobre outros textos nos
encaminha na exposição do método em nosso percurso de pesquisa.

SUMÁRIO: explicar

CONTRACOMUNICAÇÕES

Feita essa extensa leitura das variações de uso das formas biográficas, a última
etapa do trabalho, pós-qualificação, foi a aposta em um rearranjo metodológico,
com maior investimento na exploração dos objetos.

Se a construção inicial seguiu o objetivo arque-genealógico de traçar as linhas


de força discursivas em dispersão na constituição da forma biografemática, ao
lidar com essa vazamento midiático nos fez perceber a necessidade de assomar
a essa metodologia um outro dispositivo, capaz de ler o cenário formado na
institucionalização de tais traços, na fixação desses embates semióticos.

Trabalhando os textos e indo no sentido cada vez maior de uma crítica


barthesiana, chegamos a essa ideia de explorar a cristalização da significação
biografemática na mídia pela contracomunicação, essa ideia de um
desdobramento intertextual capaz de interrogar as formas de modelização
presentes na Comunicação;

Devendo sobretudo ao uso do conceito desenvolvido por Décio Pignatari e


aludido por Barthes, pensamos aqui em textualidades literárias que fazem
referência aos meios de comunicação de massa, discutindo o modo como
instauram ambiências.

Assim, a contracomunicação se entende como a abordagem de textos cuja


função é instaurar um regime de visibilidade sobre certas práticas e
concepções midiáticas.

De novo a Caetano, se entende uma indagação de sua manipulação do


biográfico por meio deste conto chamado Caetano Veloso se prepara para
atravessar uma rua do Leblon, do livro Um homem burro morreu.

Aqui, aquela matéria sobre o estacionar de Caetano, ponto de partida dessa


investigação biografemática, é transformada em um texto outro, que amplia e
distende as marcas de enunciação do original: aqui, no caso, a absoluta
banalidade dos fatos, narrados em seus menores detalhes.

São textos que nos fazem perceber melhor o cenário esboçado até então, de uma
absoluta relação transformadora entre a expressão biográfica e sua veiculação
comunicacional, apostanto em diversos tipos de remissões, entre aquelas mais
diretas, como nos textos de Caetano, ou em referências mais oblíquas a essa
relação intrínseca entre a vida e sua publicização midiática – SYLVIA PLATH

A construção do objeto de pesquisa, assim, se estabeleceu nesse jogo


metalínguistico: entre textualidades dos meios de comunicação, onde se
observavam traços biografemáticos, até essas experiências literárias, no
que fazem referência a essa publicização da vida. Assim foram selecionados
sete livros, desmontados nas análises na medida em que apresentam essas
remissões e nos ajudam a perceber as diversas estratégias de uso da
palavra biográfica pela experiência midiática.

Aqui essas estratégias foram reunidas em três espécie de categorias distintas de


políticas-poéticas de uso: a palavra de ordem, a palavra mítica e a palavra
fágica.
PALAVRA DE ORDEM

A palavra de ordem aparece aqui como a estratégia que usa a linguagem de


forma pragmática, de modo a construir as vidas de que trata no próprio texto.
Isso se lê na narrativa de O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, que
resgata matérias sobre o músico, todas focadas nesses detalhes insignificantes,
mas que constroem sua figura sob a ótica do exótico, do estranho.

É, assim um uso político, não é inocente: se cria a vida para ela transformar em
modelo de conduta ou apontamento de punição, em um arquivo de infâmias que
faz sobreviver aquele descrito por Foucault. Mas com sua particularidade: o
detalhe é o que registra o desvio, ao mesmo tempo que o pune.

Lembremos Bela e recatada, construída como modelo. Já João Gilberto é


tratado como o desvio. Estratégias de uso ativo da palavra midiática como
modelizadora dos sujeitos: escancarada no conto Talk show, que explora a
persona de uma apresentadora de TV, ao mesmo tempo que discute os modos
como a apresentadora de uma programa de TV guia a entrevista com o escritor,
como constrói sua vida.

PALAVRA MÍTICA

Esse ímpeto de construção discursiva da vida alheia obedece a estratégias ainda


mais específicas, formais, e é a uma delas que nos dedicados a explorar a seguir.
O biografema, como dado de construção, privilegia uma exposição
“insignificante” do sujeito, aparentemente inocente. É e jogo entre uma
superfície plácida e seus sentidos ulteriores que transparece nas narrativas
analisadas, e faz lembrar a exploração que Barthes realiza da mitologia como
sistema semiológico.
Vejamos uma entrevista de Amaury Jr. com o recém-eleito João Doria: ele
afirma não querer falar nada demais, não tratar da grandeza pública de Doria,
seu papel político ou qualquer coisa assim. Quer falar do seu dia a dia, suas
manias, seus hábitos de acordar cedo, etc. Nada mais biografemático.

Como mito, a vida de Doria adquire dupla dimensão, no que é narrada por
Amaury: o política se torna secundária, e o primeiro plano é ocupado pela
frivolidade e simplicidade do cotidiano, de suas manias.

Essa forma é amplificada pelo discurso contracomunicacional, inclusive com


referências diretas a estratégias como as de Amaury. Somos levados a
compreender as figuras por essas miudezas, mas tal exposição guarda objetivos
que uma leitura tradicional desses signos deixaria passar.

A entrevista de Lula e formal e breve, mas dá lugar às frivolidades da festa, as


férias dos convidados, os gostos pessoais de cada um ali, esgarçando esse gosto
biografemático. Lula, bem como Marisa ou qualquer outro personagem, só se dá
a ver nesse conto por tais detalhes, que carregam suas próprias presunções: mais
claras, quando vemos que se descreve um Reveillon fútil e frio, em
contraposição a uma festa popular do ex-presidente também narrada ali.

E aí, como demonstração da circularidade do método e da força heurística


da leitura contracomunicacional, voltamos a Amaury, para perceber que
suas construções são essas mesmas, nada distantes das “inverdades”
satirizadas por André Sant’anna. Esse pessoal que se coloca em primeiro
plano é ou até mais político que os dados que o biografismo clássico
destacaria: é esse o ímpeto que move a estratégia mítica de apropriação do
biografema.
PALAVRA FÁGICA

É esse tipo de dobra a que nos voltamos ao final dos análises, na percepção de
que, ao se apropriar da forma biografemática, essas narrativas (bem como suas
contracomunicações críticas) não apenas manipulam uma ferramenta, como se o
biografema fosse apenas um instrumento dócil. A forma de dizer condiciona
esse dizer, parece uma lição clara.

Se essa ideia já aparecia antes, essa ressonância do biografema se desenvolveu


de forma mais clara no texto pós-qualificação, no que se tentou dar mais força a
essa presença crítica. Ao entender essas narrativas comunicacionais como
biografemáticas, se passa a ler as formas como elas digerem essa forma e por
ela são alteradas. A comunicação feita de biografema devorado: como ela
significa após essa digestão?

Aí de volta a Inverdades e o fim desse texto, que acreditamos amarrar parte das
reflexões feitas até aqui, simultamente no que comenta um biografismo
midiático, retornando a suas matérias de origem, e o torcendo.

É exatamente essa expressão de sucesso misturada com humildade que o


senhor deve manter na frente das câmeras: é nesse trecho de Inverdades que
parecem se condensar boa parte dos apontamentos feitos até aqui sobre o
jogo de estratégias envolvido na apropriação contemporânea do
biografema. Temos aí o gesto de uma ordem para a publicização da vida,
incentivada pelo gesto do comunicador (o assessor de imprensa), em
relação com sua modulação pela mídia (a entrevista com Amaury Júnior,
por exemplo). Vemos também esse gesto ser organizado por uma forma
semiótica específica, relativa à expressão do sucesso e da humildade,
aparente paradoxo resolvido pela hierarquização da mensagem no signo,
veiculando um sentido sob o outro. Tudo isso para performar na frente das
câmeras: e nessa volta da frase se desvela, ao mesmo tempo, a tomada da
vida como conteúdo e o biografemismo como forma por parte dos discursos
comunicacionais – as câmeras precisam, afinal, ter o que exibir –, e
também o retorno dessa discursividade à própria noção de vivido – só
importam aqueles traços que tenham visibilidade para esta câmera.

Gesto que é fágico, no sentido que nos obriga a voltar a Amaury e perceber que,
em meio a suas injunções, há também uma construção: que sua própria prática
de biografismo é tão fictícia quanto qualquer biografema. Aqui a estratégia é do
texto, torcendo aqueles que dele se utilizam.

CONSIDERAÇÕES

Até a metade da pesquisa os esforços foram no sentido de uma crítica da


biografia no contemporâneo, talvez mais próxima de perspectivas como as de
Paula Sibilia. Crítica em um sentido de senso comum: apontar os problemas e
injunções dessa escrita.

Porém o trabalho com o textos e a reorganização metodológica posterior, nos


fez assumir de vez a crítica noutros termos, barthesianos: escrituras sobre
escrituras, com o intuito da remontagem dos processos de significação. Nesse
esforço, o biografema aparece menos como algo desgastado, mas como uma
fórmula proliferante. O que muda é menos ele próprio, sua ontologia, por
assim dizer, do que a política de seu uso.

Como encerramento, vejamos que a dissertação começa e termina com duas


citações de timbre semelhante.
O esforço visto aqui foi no sentido de um trabalho ativo com a desmontagem e
remontagem da linguagem, tendo por foco específico os modos pelas quais ela
constrói essas representações da vida – que, tendo o trabalho em vista, nem
podemos bem chamar de representações. Construção parece uma palavra-chave,
desde essa visão de Italo Calvino da vida como um arquivo de puzzles
reorganizáveis, até a imagem de Barthes de um objeto estrutural, cuja unidade é
maior que a soma de suas peças, intercambiáveis.

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