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DILAINE BINICHESKI
SANTOÂNGELO (RS)
2010
DILAINE BINICHESKI
Comissão Julgadora:
________________________________________
Prof. Dr. Florisbal de Souza Del´Olmo
Orientador
_____________________________________________
Prof. Dr. Noli Bernardo Hahn
Examinador
__________________________________________
Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin
Examinador
No momento que tento escrever este agradecimento muitos rostos são trazidos para
dentro do texto, não só os que me ajudaram efetivamente na construção dessa Dissertação,
mas familiares, amigos e colegas que partilharam angústias e correrias, que auxiliaram de
todas as formas para que eu chegasse à reta final, quando muitos ficaram pelo caminho.
Assim, sou grata a cada um em particular, mas não posso deixar de nomear alguns, o que não
significa que os ausentes foram menos importantes, mas o afã do momento acarreta o pecado
da omissão. Assim, agradeço aos familiares, amigos e colaboradores com imenso carinho e,
em especial:
Ao meu marido, Paulo, por ter sido companheiro e cúmplice nesta difícil jornada e por
ter me incentivado a estudar sempre, mesmo quando o estudo significava a minha ausência.
Sua tolerância e compreensão nos meus muitos momentos de dificuldade e angústia foram e
são fundamentais para meu crescimento, principalmente por nunca me deixar desistir dos
meus sonhos. Obrigada por fazer parte da minha vida e ser meu porto seguro, onde sei que
sempre encontrarei força e estímulo.
Aos meus pais, Miguel (in memoriam) e Etelvina, que me guiaram pelos primeiros
caminhos e pelo amor incondicional. A minha mãe, exemplo de mulher guerreira e
persistente, com quem aprendi os mais belos valores da vida. Ao meu pai, ser humano
excepcional, que partiu antes da conclusão deste trabalho, com muitas saudades sei que hoje,
em seu mundo “encantado”, estás a comemorar comigo a realização deste sonho.
Às minhas irmãs, Dione e Dilone, mulheres maravilhosas, eternas companheiras da
minha vida, mesmo distantes continuamos unidas.
Ao meu orientador, Professor Doutor Florisbal de Souza Del´Olmo, que conduziu com
segurança a caminhada rumo à conclusão desta importante etapa de minha vida. Sua crença
no meu trabalho e auxílio na superação dos obstáculos foram fundamentais para a conclusão
desta dissertação. Sua transmissão de conhecimentos sem abafar minhas ideias foi o
sustentáculo de meu crescimento acadêmico. Obrigada pela amizade, paciência, incentivo e
dedicação de parte de seu tempo à leitura e contribuição de informações que resultou na
elaboração deste estudo. Minha admiração e meus sinceros agradecimentos!
Ao Professor Doutor William Smith Kaku, por sua posição e detalhamento objetivo de
possíveis melhorias no trabalho. Da mesma forma, ao Professor Doutor Noli Bernardo Hahn,
pelo interesse e pelas importantes contribuições.
A todas as pessoas que, de uma forma ou de outra, estiveram presentes no vir a ser
desta Dissertação meu muito obrigada
Temos o direito a ser iguais quando a diferença
nos inferioriza, temos o direito a ser diferentes
quando a igualdade nos descaracteriza.
(Boaventura de Sousa Santos)
RESUMO
A presente dissertação versa sobre os Direitos Humanos Internacionais e tem por escopo
analisar a cultura islâmica frente às relações de gênero. Dentre as diversas discussões sobre
diversidade humana e direitos humanos, a questão de gênero desponta como fundamental.
Através de uma reflexão que historiciza as relações que emergem de diferentes culturas
torna-se possível compreender a evolução formal de garantias jurídicas positivadas como
produto de intensas lutas, pois inseridas em uma dinâmica de conflitos políticos, econômicos
e sociais que marcaram várias épocas e diferentes culturas num cenário mundial globalizado,
porém com especificidades sociais e culturais de caráter regional e tribal que colocam em
destaque a discussão sobre questões como, dentre outras, autodeterminação dos povos,
dignidade humana, gênero, em contraposição a valores ligados às tradições religiosas e ao
poder político. Assim, lançam-se olhares sobre a cultura islâmica a fim de evidenciar
construções simbólicas e discursivas que engendraram processos de discriminação. Procura-
se, sem que o fiel da balança penda para qualquer lado, desmistificar a supremacia do
Ocidente sobre o Oriente, inclusive no tocante às conquistas femininas. O Direito
Internacional dos Direitos Humanos e a respectiva sistemática internacional da proteção dos
direitos humanos são discutidos ao som de vozes das culturas dissonantes, onde o atual
modelo universal é posto em confronto com o intercultural. O que se percebe é a necessidade
de lançar um olhar crítico para as diferenças, para que haja uma instrumentalidade política dos
Direitos Humanos, apesar dessas diferenças.
This thesis examines international human rights law and aims at analyzing the Islamic culture
in face of gender relations. Among the various discussions about human diversity and human
rights, gender issues emerged as key and through a reflection that historicizes relationships
that emerge from different cultures becomes possible to understand the evolution of formal
legal guarantees positivists and the product of intense struggle, therefore into a dynamic of
political conflicts, economic and social changes that have marked several times and different
cultures in a globalized world stage, but by social and cultural specificities of regional and
tribal that put the spotlight on the discussion of issues such as, among others, self-
determination of people, human dignity, gender as opposed to values connected to religious
traditions and political power. Thus, throws himself looks on Islamic culture in order to
highlight the symbolic and discursive constructions that engendered discrimination processes.
Demand, without which the balance overhang to either side, demystify the supremacy of the
West over the East, including in relation to female conquests. The International Law of
Human Rights and its systematic international protection of human rights are discussed at the
sound of voices dissonant cultures, where the current universal model is put into confrontation
with the exchange. What is noticeable is the need to take a critical look into the differences, so
there is a political instrumentality of Human Rights, despite these differences.
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 12
Todavia, o processo de universalização dos Direitos Humanos acaba por acarretar uma
série de violações, sobretudo nos países de tradição não ocidental, pois ao criar uma
fundamentação absoluta para os Direitos Humanos estabelece um contrasenso, em razão da
natureza variável dos direitos do homem, haja vista que os Direitos Humanos são categorias
construídas histórica e culturalmente, de modo que nascem em, e para, determinados
contextos culturais, onde um conjunto de significados e significantes são elaborados e
comungados por grupos humanos, o que não significa que serão compartilhados e/ou seguidos
por outro.
13
Este universo, aliado aos debates efetuados ao longo do Curso de Mestrado sobre o
Islã e a posição da mulher muçulmana, acabou por delinear a pesquisa, que parte da indagação
de como as diferenças culturais, políticas e religiosas da cultura islâmica interfere na
internacionalização dos Direitos Humanos em relação à mulher?
No Islã não existe diferença entre a religião e a política, entre a fé e a moral, pois todas
as obrigações religiosas, morais e sociais estão estabelecidas na sagrada lei muçulmana, a
Shária. No entanto, quando não constam no Alcorão as instruções definitivas, os muçulmanos
se voltam para a Suna (exemplos da vida do Profeta). A comunidade muçulmana fundamenta-
se nos pilares do Islã, que são as cinco práticas essenciais obrigatórias do Islamismo e que
serão analisadas em capítulo próprio.
A ideia de gênero aflorou após ter sido exaltada por uma espécie de pós-marxismo da
imposição de uma ideia de dominação, ou seja, a ideia da criação de um dominado pelo sexo.
Em cima deste pensamento dominador diversos discursos foram elaborados ao longo dos
tempos, até que grupos feministas conseguiram imprimir ideias que revolucionaram o modo
de pensar das mulheres em relação a sua posição na sociedade.
É nesse universo que a pesquisa transita, tendo por objetivo principal averiguar se há
possibilidade de diálogo entre a cultura islâmica e o Ocidente com relação aos direitos
humanos internacional e a efetiva igualdade de gênero.
Neste capítulo procurou-se, ainda, abordar alguns fatos que contribuíram para a
evolução dos Direitos Humanos, frisando a opinião de diversos autores, bem como as
divergências existentes entre estes. A questão da exclusão é apresentada, também, neste
16
capítulo no que toca à mulher, tendo no trabalho de René Lenoir aporte, pois a análise que se
pretende não é do fenômeno individual, mas sim social, cujas raízes são encontradas nos
princípios da sociedade moderna. Deixa-se consignado que o objetivo deste capítulo é
proporcionar ao leitor uma visão histórica geral dos Direitos Humanos na espera
internacional, motivo pelo qual não se privilegiou o trabalho de um autor específico, mas sim
trazer o contributo de doutrinadores de renome, cujos embates e concordâncias propiciam
uma compreensão do atual estágio desses direitos e a necessidade de sua efetivação.
Com relação ao espaço, cumpre destacar seu conceito essencial para a história e que
neste estudo teve o sentido de ajudar a entender os valores e a visão de mundo do Islã, ao
proporcionar a possibilidade de pesquisar o tipo de relação estabelecido dentro dos domínios
muçulmanos entre as diversas partes de seu território, como o espaço foi hierarquizado,
organizado e representado. Tempo e espaço são sistemas organizados de símbolos
significantes de que fala Cliford Geertz, estando permeado de significados específicos em
cada cultura, a partir de concepções produzidas socialmente. O arcabouço teórico de Henri
Lefebvre considera o espaço social como um conjunto de sistema de relações, pelo que este
capítulo procura utilizar uma análise formal, estrutural e funcional para avaliar o espaço social
islâmico da forma mais completa possível, mas limitado pelos objetivos da pesquisa. Neste
sentido, se procurou verificar como foi pensado o espaço nas ciências sociais e, em particular,
na história.
expressa no capítulo anterior, aqui tem um enfoque diferenciado, pois se procura a gênese
histórica da exclusão do ser feminino, bem como as medidas de amparo dos órgãos
internacionais que ao longo dos séculos foram criadas com a finalidade de proteger sua
dignidade enquanto pessoa. Passo seguinte, na segunda parte, se analisa a questão da mulher
islâmica entre o que é pregado pelo Islã e o que foi construído em seu nome.
Deve ser registrado que, a exceção do capítulo três, não houve o ressalte da teoria de
um autor para discussão, preferiu-se uma gama de doutrinadores que desse suporte ao tema
em exposição, cabendo consignar que, no caso de referências bibliográficas em distintos
idiomas estrangeiros, optou-se por uma tradução livre no corpo do texto, sendo a versão
original disposta nas respectivas notas de rodapé.
Assim sendo, este capítulo tem a finalidade de desenvolver uma análise sobre os
Direitos Humanos e sua evolução histórica, tornando-se relevante apontar a consagração
desses direitos fundamentados no Estado Democrático de Direito e Direitos Fundamentais da
Modernidade. Além disto, este capítulo apresenta o processo de internacionalização dos DH,
o surgimento e a consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos, voltado à
construção de uma cultura universal para a efetiva proteção desses direitos.
Todavia, entende-se necessário anteceder a todos estes aspectos, ainda que de forma
sintética, o estudo da pessoa humana, pois como preleciona Andorno:
Com base nesta asserção e tendo em vista que se deve “sopesar a ideia de pessoa e de
personalidade para além de um princípio de normas, uma vez que o Direito só pode ser
1
ANDORNO, Roberto. Pessoa substância ou pessoa consciência? um risco para os direitos do homem. In
CUNHA, Paulo Ferreira da. (Org). Direitos humanos: teorias e práticas. Coimbra: Almedina, 2003, p. 101.
20
O acima ratifica que desde o surgimento do Direito a “pessoa física ou natural” sempre
foi vista como sujeito de direitos e obrigações, valoração que foi fruto de um longo processo
histórico, cujo ápice ocorreu na configuração contemporânea.
A tradição bíblica aponta que a primeira pessoa humana sobre a terra, criada à imagem
e semelhança de Deus, teria sobre ela e tudo que nela existisse total domínio.4 Nesse período,
o homem é, ao mesmo tempo, espiritual e terreno, o que São Tomás de Aquino, séculos mais
tarde, definiria como “um composto de substância espiritual e corporal.”5
2
PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 84.
3
SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 27. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 607-608.
4
Gênesis (Gn) 1, 26-27. A bíblia sagrada. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. rev. e atual.
2. ed. em letra gigante. Babueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1996, p. 4.
5
COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 32. Este autor expõe que esta posição de São Tomaz de Aquino deriva de Boécio que, no início
do século VI, inaugurou a segunda fase na história do conceito de pessoa, influenciando todo pensamento
medieval. Com ele, a partir deste período, o termo pessoa teve um sentido diverso: “persona proprie dicitur
naturae rationalis individua substantia (diz-se propriamente pessoa a substância individual da natureza
racional”). Ibidem, p. 31.
21
Essa separação corpo e alma encontra em René Descartes a descrição de que entre eles
existe um elo puramente acidental. Para ele, a identidade da pessoa é com a res cogitans
(pensamento) em oposição a res extensa (corpo).
Tenho uma idéia distinta do corpo, em face a qual este é apenas uma coisa extensa e
que não pensa, e é certo que eu, ou seja, a minha alma, pela qual eu sou aquilo que
sou, é inteira e verdadeiramente distinta do meu corpo, e pode ser ou existir sem
ele.8
Ou seja, a pessoa é identificada por sua dimensão pensante, enquanto que sua
corporeidade é relegada a segundo plano, o que produz uma ruptura entre razão e corpo e
origina “a redução espiritualista da pessoa e a redução fisicista do corpo.”9 Ao contrário dos
gregos antigos e dos escolásticos, que acreditavam que as coisas existem simplesmente
porque precisam existir, ou porque assim deve ser, Descartes institui a dúvida como
indubitável, para ele só se pode dizer que existe aquilo que possa ser provado:
(...) notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, eu, que assim o
pensava, necessariamente era alguma coisa. E notando que esta verdade — eu penso,
logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos
cépticos seriam impotentes para a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo,
para primeiro princípio da filosofia que procurava. E, mesmo que um gênio maligno
persista em enganar-me, é, ainda assim, necessário que eu exista para ser
enganado.10
Séculos posteriores, o reducionismo cartesiano ainda encontra eco, mas que aos
poucos vai se dissipando, sendo substituído, passando a pessoa humana a ser definida pela
consciência, onde a sabedoria é adquirida por percepções; pela origem das idéias por onde se
percebe as coisas, independente de seus objetivos e significados; pela relação de causa-efeito;
pela autonomia do sujeito que afirma a variação da consciência de acordo com cada
6
Religião antiga do mundo grego, difundida a partir dos séculos VII e VI a.C. BRANDÃO, Juanito de Souza.
Mitologia Grega. 3º Vol. Petrópolis: Vozes, 1987.
7
ANDORNO, Roberto. Op cit, p. 102.
8
Idem Ibidem.
9
Ibidem, p. 103.
10
DESCARTES, René. Discurso do método. 2. ed. Lisboa : Guimarães Editores, 1994, p. 28.
22
momento; pela concepção da razão que não vê diferença entre o espírito e extensão. Esta
posição é assumida por John Locke,11 que afirma que pessoa é “um ser pensante, inteligente,
dotado de razão e reflexão, e que pode considerar-se a si mesmo como um eu, ou seja, como o
mesmo ser pensante, em diferentes tempos e lugares."12.
Immanuel Kant é outro filósofo que adere a esta posição, efetuando uma elaboração
teórica do conceito de pessoa como sujeito de direitos universais, anteriores e superiores a
toda ordenação estatal. Partindo da noção de “razão prática”, inerente a todos os seres
racionais dotados de vontade própria, formulou o princípio de que todo ser humano existe
como um fim em si mesmo e não simplemente como um meio através do qual a vontade
age.13
Fabio Konder Comparato informa que Kant defendia o valor relativo das coisas em
contraposição ao valor absoluto da dignidade humana, fato que desencadeou, relativamente ao
conceito de pessoa, a descoberta do mundo dos valores e a transformação dos fundamentos da
ética, conforme se pode verificar de sua exposição:
11
Considerado protagonista do empirismo, isto é, a teoria denominada de tábula rasa (do latim “folha em
branco"). Esta teoria afirma que todas as pessoas nascem sem saber absolutamente nada e que aprendem pela
experiência, pela tentativa e erro. John Locke. Um explorador do entendimento humano. Revista Nova
Escola. Disponível em: <http://revistaescola.abril.com.br/historia/pratica-pedagogica/explorador-entendimento-
humano-423338.shtml>. Acesso em: 15 out 2009.
12
MICHAUD, Yves. Locke. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986, p. 118.
13
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 7. Ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
14
COMPARATO, Fabio Konder. Op. cit., p. 37.
15
HESSEN, Johannes. Filosofia dos valores. Coimbra: Almedina, 2001, p. 26.
23
reconhecimento de que o homem é o único ser que pauta sua vida em função de preferências
valorativas, legislando conforme seus valores éticos e, voluntariamente, submetendo-se às
normas valorativas.16
Por outro lado, a essência do ser humano não condiz com questões permanentes e
imutáveis, mas sim com transformações e mudanças (que na sociedade atual são cada vez
mais céleres), o que deixa patente que o homem está em constante evolução e
aperfeiçoamento, pois sua personalidade é sempre algo de incompleto e inacabado, revelando
uma característica singular de eterna busca de si mesmo, conforme tem evidenciado
contemporâneas reflexões jurídico-filosóficas.19
Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (Anexo I),
aprovada de forma unânime pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro
16
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do futuro. Tradução:
Marcio Pugliesi. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/337826/nietzsche-alem-do-bem-e-do-mal>.
Acesso em: 15 out 2009.
17
ANDORNO, Roberto. Op. cit.
18
COMPARATO, Fabio Konder. Op. cit., p. 248.
19
A exemplo, entre tantos outros, REALE, Miguel, Filosofia do direito. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
COMPARTO, Fabio Konder. Op. cit. ANDORNO, Roberto. Op. cit.
24
de 1948, 20 consolidou toda complexidade dessa elaboração teórica, proclamando que “todo
homem tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa”, conforme disposto
no artigo VI desta Declaração. 21
20
Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm. Acesso em : 15 out
2010.
21
Ibidem, p. 44.
22
A Bioética investiga as condições necessárias para uma administração responsável da vida humana, animal e
ambiental. Considera questões onde não existe consenso moral como a fertilização in vitro, o aborto, a
clonagem, a eutanásia, os transgênicos e as pesquisas com células tronto, bem como a responsabilidade moral de
cientistas, e suas implicações, diante de suas pesquisas. É o estudo transdisciplinar entre Biologia, Medicina,
Ética e Direito para tratar destas questões. Já o Biodireito é ramo do Direito Público que, associado à bioética,
estuda as relações jurídicas entre o Direito e os avanços tecnológicos conectados à medicina e à biotecnologia,
peculiaridades relacionadas com o corpo e à dignidade da pessoa humana. BARBOZA, Heloisa Helena,
BARRETTO, Vicente de Paulo (Org.). Colaboradores: Bruno Lewicki [et al.]. Temas de Biodireito e Bioética.
Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
25
Com efeito, a resposta a essa indagação essencial, tem sido dada, historicamente, no
campo da religião, da filosofia e da ciência.23
23
Comparato pontua que no embrião dos DH a Magna Carta de 1215 despontou o valor da liberdade em favor,
principalmente, dos estamentos superiores da sociedade, ou seja, o clero e a nobreza. As liberdades pessoais
declaradas pelo Habeas Corpus e pelo Bill of Rights não beneficiavam indistintamente todos os súditos, mas
preferencialmente o clero e a nobreza. Assim como outros autores, este autor pontua que os DH não têm sua
origem no objetivo de se tornarem instrumentos de proteção da maioria pobre contra as condições indignas de
vida a que eram submetidas, mas, sim, têm sua origem nos instrumentos de proteção das elites em face dos
desmandos do rei. “A burguesia aproveitou-se desses instrumentos, apesar de não ser o grupo beneficiário
previsto.” COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit., p. 92.
24
SARLET, Ingo Wolfgang, A Eficácia dos Direitos Fundamentais: Uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2009. Nesta obra o autor expressa, às páginas 98-99, que “(...) cumpre ressaltar, de inicio, que a ideia do valor da
pessoa humana encontra suas raízes no pensamento clássico e na ideologia cristã. A concepção de inspiração
cristã e estóica continuou a ser sustentada durante a Idade Média, tendo sido Tomás de Aquino quem
expressamente chegou a fazer uso da expressão “dignitas humana” , no que foi secundado, já em plena
Renascença e no limiar da Idade Moderna (...)”.
25
COMPARATO, Fabio Konder. Op. cit., p. 16.
26
Comparato afirma que “muito mais abstrusa que a explicação mitológica e religiosa tradicional parece, assim,
a ideia de que o advento do ser humano na face da terra seria o resultado de um estupendo acaso. Ibidem, p. 17.
26
Vê-se nessa evolução que o ser humano pode ser compreendido como um ser capaz de
agir sobre si próprio e sobre o mundo físico e as demais espécies. Assim, o homem tem a
capacidade de alterar o seu ambiente, sendo interessante notar que esta capacidade se
potencializou com a descoberta das leis da genética. Doravante, o homem pode interferir no
processo generativo de sobrevivência de todas as espécies vivas, inclusive a sua própria.
Dentro desse contexto, as origens da evolução histórica dos direitos humanos passam
por um longo desdobramento das ideias, sendo compreendidas de outra forma que é dada pelo
conceito de período axial. Primeiramente, este conceito fora proposto por Karl Jaspers que:
sustentou que o curso inteiro da História poderia ser dividido em duas etapas, em
função de uma determinada época, entre os séculos VIII e II a.C., a qual formaria,
por assim dizer, o eixo histórico da humanidade. Daí a sua designação, para essa
época, de período axial (Achsenzeit).28
Oportuna torna-se a referência sobre a Era Axial, inobstante exemplificativa, com base
nas lições da Karen Armstrong:
27
Ibidem, p. 18.
28
JASPERS, Karl. Vom Ursprung und ziel der geschichte. Apud COMPARATO, Fabio Konder, Op. cit., p. 20.
(Tradução efetuada por este autor: “desde a origem e o fim da história”).
27
Compreende-se que foi nesse período, entre 600 e 800 a.C., que despontaram as
grandes religiões confessionais: o budismo e o hinduísmo (Índia); o confucionismo e o
taoísmo (Extremo Oriente); o monoteísmo (Oriente Médio); o racionalismo (Europa) e
pensadores como Zaratustra na Pérsia, Buda na Índia, Lao-Tsé e Confúcio na China, Pitágoras
na Grécia e o Dêutero-Isaías em Israel elaboravam trabalhos sobre a dignidade humana, os
quais, anos mais tarde, iriam influenciar na formação do pensamento da igual dignidade
humana.30
Nesse sentido, segundo este autor, deve-se reconhecer que a proto-história dos direitos
humanos tem seu inicio nos séculos XI e X a.C., quando se institui, sob Davi, o reino
unificado de Israel tendo por sua capital Jerusalém.32
29
ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: O fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo.
Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 12-13. [1]
30
COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit., p. 20.
31
Ibidem, p. 53.
32
Idem, ibidem.
28
um representante, um delegado do Deus único. Na verdade, isto pode ser compreendido como
o “embrião” da própria ideia de Estado de Direito, visto como organização política em que os
governantes também são submetidos aos princípios e normas instituídas por uma autoridade
superior.
33
Ibidem, p. 56-57.
29
34
Disponível em: <http://www.cpihts.com/PDF/C%C3%B3digo%20hamurabi.pdf>. Acesso em: 15 out 2009.
Este códice foi gravado em uma stela de basalto negro que hoje encontra-se no museu do Louvre, em Paris
35
CLARKE, John H. Grandes civilizações. 1. ed. são Paulo, Melhoramentos, 2000.
30
Buda, Zoroastro e Confúcio (VI a.C.) coincidem quanto às exigências com relação à
dignidade humana: tolerância, respeito, honestidade, generosidade e conduta exemplar dos
indivíduos, tanto para governantes como para governados. Zoroastro ou Zaratustra viveu na
31
Pérsia e sua doutrina, contida no livro Zend-Avesta, determinou uma concepção dualista do
universo: a eterna luta entre o bem e o mal. Buda (em sânscrito, Buddha, significando “o
iluminado”), nasceu na Índia, recebeu o nome de Siddharta Gautama, igualmente chamado de
“Shakya-muni” (“o sábio da tribo Shakya”). Príncipe de Kapilavastu, junto ao sopé do
Himalaia, desistiu da vida mundana e funda o Budismo, passa a pregar o “nirvana” (estágio
acessível pela purificação interior), oscilando entre o agnosticismo e o ateísmo, profetizando
valores que anteciparam alguns conceitos modernos de direitos humanos, tais como a
supremacia do Direito e da Justiça, a paz e a fraternidade, a ideia de direitos trabalhistas, a
igualdade entre as pessoas (numa sociedade de castas).
36
Isonomia significa a igualdade de todos perante a lei (cf. CF/88, art. 5º); já a isogoria quer dizer a igualdade de
participação na vida pública (cf. CF/88, art. 14 e 17). D´ANGELIS, Wagner Rocha. As raízes dos direitos
humanos e a cidadania hoje. In: RIBEIRO, Maria de Fátima; MAZZUOLI, Valério de Oliveira (Coords.).
Direito internacional dos direitos humanos: estudos em homenagem à Professora Flávia Piovesan. Curitiba:
Juruá, 2006. p. 401-402.
32
públicos). É ainda na Grécia, que nos legou institutos de Direito Internacional, que se
encontra uma das grandes lições acerca de direitos que transcendem o papel legislativo do
Estado, presentes no legado da história humana: Antígona, uma das peças mais fortes de
Sófocles.37
Em Roma, séculos V a III a.C., a plebe teve igualdade de direitos (teoricamente) aos
patrícios, com a possibilidade de acesso aos cargos públicos e aos colégios sacerdotais, ainda
tornando as resoluções das assembleias populares (plebiscitos) em lei para todos. Avançou-se
nas conquistas legislativas, com a eleição dos “tribunos”, representantes da plebe
considerados invioláveis, a eleição de “edis”, responsáveis por certos cuidados
administrativos com a cidade e a proibição da escravização por dívidas. Na prática, o Senado
continuou impondo-se na vida política, controlada por uma aristocracia econômica – era a
República plutocrática! Mesmo assim, a democracia antiga (Grécia e Roma) garantia a
liberdade do cidadão e não do homem enquanto homem. Ela só se manifestava pela interação
de pluralidade, onde o todo estava acima da parte (indivíduo). Ainda assim, a cidadania era
um direito de poucos, dela não faziam parte as mulheres, os estrangeiros e os escravos.
Dessa etapa decorrem significativos trabalhos com relação à construção dos ideais
humanísticos. Sem desconsiderar as não menos importantes contribuições de Sócrates,38
Platão, Gaio, Ulpiano e outros, igualmente cabe destacar a filosofia estoica. Para eles, as leis
na polis não tinham um valor intrínseco e sua legitimidade dependia de sua correspondência
com as leis naturais, eternas e imutáveis. Os seus filósofos ressaltavam a igualdade de
natureza entre os seres humanos (ab origene). O estoicismo originou-se na Grécia (século IV
a.C.), idealizada por Zenon de Citium, difundiu-se pelo século III a.C. e influenciou o mundo
latino (através de Cícero – “pai do direito natural”, Epicteto, Sêneca e Marco Aurélio). Essa
filosofia foi pródiga quanto à crença na fraternidade entre os seres humanos, sem distinção de
37
Sófocles, que viveu no século V a.C., retratava uma situação própria das cidades da Antiguidade, onde era
comum os governantes punirem os grandes culpados com um castigo considerado dos mais terríveis: a privação
da sepultura. Com isso, era como se punissem a sua própria alma, impondo-lhes um suplício quase eterno. Nesse
sentido, Antígona, numa das peças mais fortes de Sófocles, ao censurar Creon (Creonte), que a condenara à
morte por ter dado sepultura a seu irmão, assim proclama, com validade atemporal: “Não pensava que os
decretos de um simples mortal como tu pudessem ter força suficiente para prevalecer sobre as leis escritas, obra
imortal dos deuses. Estas não de hoje nem de ontem, mas continuam sempre vivas e ninguém conhece a sua
origem.” Ibidem, p. 410.
38
Sócrates colocava a verdade acima do costume; a justiça acima da lei. Num mundo em que o dever e a moral
eram ditados pela religião, o filósofo ousou mostrar que a origem do dever estava na própria consciência do
homem. Depois dele, filósofos como Platão e Aristóteles puderam discutir com toda a liberdade os princípios e
as regras da sociedade humana. Ibidem, p. .410-411.
33
Decorre daí a dedução de que as matrizes ideológicas dos direitos humanos estão
contidas na mensagem evangélica difundida pelas primeiras comunidades cristãs. Assim, pela
primeira vez na história, surgia concretamente a igualdade absoluta de natureza entre os
homens. E a prova disso foi a prática comunitária do Cristianismo primitivo, pois todos
viviam unidos e tinham tudo em comum. Além disso, Jesus pregava a esperança, a humildade
e o desapego aos bens materiais, a caridade, tolerância, perdão/reconciliação, a paz e a justiça.
39
O estoicismo praticamente emancipa o indivíduo, pois, ao rejeitar a ideia de pertença do cidadão a uma cidade
específica e à sua religião, reprovava igualmente a servidão do cidadão. E embora também estimulasse a sua
participação na vida pública, o estoicismo enfatizava o seu aperfeiçoamento individual e a independência da
consciência. Numa cidade tirânica, Zenon ensina ao homem a existência de uma dignidade, não de cidadão, mas
de ser humano; o que, além de seus deveres para com a lei (logo, para com a cidade), o homem os tem também
para consigo – logo, o seu mérito maior não está no exercício cívico, mas no das virtudes pessoais. Ibibem, p.
411.
34
Passando à Idade Média (século V a XV d.C.),41 ressalta-se que não foi no seu decurso
que surgiram documentos com caráter de declarações abstratas de direitos, houve sim, textos
legislativos onde esteve proposta a existência de direitos fundamentais. Contudo, foi na
Inglaterra, da última fase da Idade Média até o século XVII (já Idade Moderna), que se
desencadeou a iniciativa de afirmações sóciojurídicas como forma de controle do poder da
autoridade e proteção dos indivíduos, que são consideradas precursoras das grandes
Declarações de Direitos.
40
Jean-François Collange, confirmando a ideia de respeito à dignidade humana contida no Islã, assevera que “l’
homme étant presente par le Coran comme” vicaire (khalifa) de Dieu sur terre”. In: Théologie des droits de
l´homme, p. 240. Apud D´ANGELIS, Wagner Rocha. Op. cit., p. 412. Tradução da mestranda: O homem que
está sendo apresentado pelo Alcorão como "vigário (khalifa) de Deus na Terra”.
41
Conforme Bedin, por Idade Média entende-se o período histórico existente entre a queda do Império Romano,
no século V, e o surgimento do Renascimento, no século XV. BEDIN, Gilmar Antonio. A sociedade
internacional e o século XXI: em busca da construção de uma ordem judicial justa e soberana. Ijuí: Ed. Unijuí,
2002, p. 31.
35
o Act of Settlement (Ato do Parlamento), ainda sob Guilherme III, em 1701, que
exigia o consentimento prévio do Parlamento para declarar guerras e impedia a
destituição de magistrados pelo rei da Inglaterra.” (grifos da mestranda)42
Apesar deste extenso rol documental, não se pode deixar de acrescentar a contribuição
do mundo latino-americano, onde se desenvolveram grandes civilizações, extraordinariamente
avançadas, destacando-se: os maias, os astecas e os incas, com destaque a esta última
sociedade.
Os incas (século XIV – XV d.C.), no Peru e sua capital Cusco, que se estendia da
cordilheira sul-andina, atingiram alto grau de avanço material, mas, principalmente, espiritual,
criando um código geral humanista, o qual vai desde um inusitado sistema comunitário de uso
da terra, a uma política social de assistência a toda a população necessitada.
Não existem dúvidas de que esses movimentos que anunciaram a Idade Moderna
coexistiram com a decomposição do feudalismo, o desenvolvimento e expansão do sistema
mercantil, a formação do Estado nacional e ainda com o advento do absolutismo. Assim, essas
circunstâncias abriram caminho para a emancipação da razão, valorização do espírito crítico e
a fé nas ciências, tais concepções impulsionaram o século XVII e distinguiram a classe
emergente, ou seja, a burguesia.
42
D’ANGELIS, Wagner Rocha. Op. cit., p. 413-414.
37
Porém, foi na Inglaterra, em 1215, que surgiu o documento principal referido por
todos que se dedicam ao estudo dos DH. Trata-se da Magna Carta, pacto firmado pelo Rei
João Sem-Terra e pelos bispos e barões ingleses, documento que se constituiu no primeiro
freio ao poder real. Para muitos, trata-se, a partir daí, do nascimento do constitucionalismo,
desprendendo-se inúmeras conquistas liberais, como o habeas corpus. Tendo em vista, que se
tratava de regime feudal, não se fala de DH, mas de declaração de direitos, que beneficiava
apenas comerciantes ingleses.
43
O conceito de “estado de natureza” e “natureza humana”, embora nem sempre manifesto, se faz presente no
pensamento dos filósofos da modernidade (de, Locke a Ralws, entre tantos). Interessante observar que a sua
configuração de natureza humana pode ter diferentes sentidos, dependendo de sua contextualização. Assim,
Locke, com sua ideia de Tabula Rasa, entende que os seres humanos não possuem conhecimentos inatos os
quais seriam adquiridos culturalmente a partir do nascimento, conforme já exposto.
38
das revoluções civis/burguesas) a partir dos séculos XVII e XVIII. Para tanto, foi no século
XVIII, com a Declaração de Virginia (1776)44 e com a Declaração Francesa (1789), que se
radicalizou a idéia de que todos os homens possuem direitos naturais anteriores a qualquer
sociedade política. Esses direitos naturais seriam direitos individuais inalienáveis e sagrados,
que se solidificaram nas reivindicações relacionadas à liberdade e à dignidade humana.
44
“O artigo I da Declaração que o “bom povo da Virginia” tornou público, em 16 de junho de 1776, constituiu o
registro de nascimento dos direitos humanos na História. É o reconhecimento solene de que todos os homens são
igualmente vocacionados, pela sua própria natureza, ao aperfeiçoamento constante de si mesmo. A ‘busca da
felicidade’, repetida na Declaração de Independência dos Estados Unidos, duas semanas após, é a razão de ser
imediatamente aceitável por todos os povos em todas as épocas e civilizações. Uma razão universal como a
própria pessoa humana”. COMPARATO, Fabio Konder. Op. cit., p. 62. Ressalta-se que foi uma grande inovação
a introdução ao “grupo de direitos fundamentais” o direito Fundamental à Felicidade no texto da Declaração de
Virginia.
45
Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Documento de Trabalho 26/CNECV/99. Reflexão ética
sobre a dignidade humana. 5. Jan. 1999. Disponível em: <http://www.cnecv.gov.pt/NR/rdonlyres/9D4875F1-
511B-4E29-81B2-C6201B60A D52/0/P026%20_DignidadeHumana.pdf>. Acesso em: 18 out 2009..
39
46
É preciso acentuar que “Direitos fundamentais” significam os direitos humanos (originários dos direitos
naturais) que foram reconhecidos juridicamente no texto das Constituições dos Estados de Direito Modernos.
Atualmente a doutrina é quase unânime em exigir a existência dos Direitos Fundamentais como condição de um
Estado de Direito. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho, apresentação de
Celso Lafer. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
47
SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 44.
48
COMPARATO, Fabio Konder. Op. cit. p. 65.
40
E mais, o decorrer do século XX “pode ser visto como o mais fértil período da
História,”50 o qual foi marcado pela luta em prol do reconhecimento dos direitos econômicos,
concomitante aos de liberdade, sendo o Estado o seu provedor. No entanto, a afirmação desses
novos direitos humanos só veio ocorrer com a Constituição Mexicana de 1917, sendo a
pioneira a consagrar o direito dos trabalhadores; a Revolução Russa de 1918, que levou à
Declaração dos Direitos do Povo, dos Trabalhadores e dos Explorados e a Constituição de
Weimar (1919), que tentou acrescentar os princípios da democracia social.
49
SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 47.
50
DEL´OLMO, Florisbal de Souza. A extradição no alvorecer do século XXI. Rio de Janeiro: Renovar, 2007,
p.58.
41
A tríade inicial foi acrescida pela quarta geração, desenvolvida pelo Professor Paulo
Bonavides, para quem o direito à democracia (direta), o direito à informação e o direito ao
pluralismo comporiam a quarta geração dos direitos fundamentais, “compendiando o futuro
da cidadania e o porvir da liberdade de todos os povos e, somente assim, tornando legítima e
possível a tão temerária globalização política.”55
51
Neste sentido, veja, dentre outros, BOBBIO, Norberto. Op., cit. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito
constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional
e teoria da constituição. 5. ed. Lisboa: Almedina, 2002. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos:
um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
52
A respeito ver TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Cançado Trindade Questiona a Tese de
"Gerações de Direitos Humanos" de Norberto Bobbio. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/
direitos/militantes/cancadotrindade/cancado_bob.htm›. Acesso em: 23 out 2009.
53
A propósito, v. BOBBIO, Noberto. Op. cit. Interessante observar que até o Supremo Tribunal Federal – STF
reproduziu esta teoria: "enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) - que compreendem
as liberdades clássicas, negativas ou formais - realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração
(direitos econômicos, sociais e culturais) - que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas -
acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade
coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e
constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos
humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial
inexauribilidade" (STF, MS 22164/SP. Relator Min. Celso de Mello. Julgamento: 30/10/1995. Órgão Julgador:
Tribunal Pleno. Publicação: DJ 17-11-1995 PP-39206 Disponível em: <http://www.ufrnet.br/~tl/jurisprudencia
_stf/ms_22164_sp_dimensoes_de_direitos.htm>. Acesso em: 25 out 2009.
54
Cf. dentre outros, PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998. [2].
55
BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 524-525.
42
geração por outra, como a princípio pode parecer, nem, tampouco, um direito não desaparece
para dar lugar a outro (por exemplo, os direitos de liberdade não desaparecem ou não
deveriam desaparecer quando surgem os direitos sociais e assim por diante). A respeito deste
tema, o professor Antonio Augusto Cançado Trindade fez a seguinte análise:
Em primeiro lugar, essa tese das gerações de direitos não tem nenhum fundamento
jurídico, nem na realidade. Essa teoria é fragmentadora, atomista e toma os direitos
de maneira absolutamente dividida, o que não corresponde à realidade [...]. Quais
são as razões de ordem jurídica que me fazem rechaçar essa tese nos meus livros e
nos meus votos? [...], porque creio que o próprio direito fundamental à vida é de
primeira, segunda, terceira e de todas as gerações. É civil, político, econômico-social
e cultural. Em primeiro lugar, essa tese não corresponde à verdade histórica. É certo
que houve as declarações dos séculos XVII e XVI1I e a Revolução Francesa, e
parece-me que a doutrina brasileira parou por aí. Houve a revolução americana e
depois a Declaração Universal. Essa conceituação de que primeiro vieram os direitos
individuais e, nesta ordem, os direitos econômico-sociais e o direito de coletividade
correspondem à evolução do direito constitucional. É verdade que isso ocorreu no
plano dos direitos internos dos países, mas no plano internacional a evolução foi
contrária. No plano internacional, os direitos que apareceram primeiro foram os
econômicos e os sociais. As primeiras convenções da OIT, anteriores às Nações
Unidas, surgiram nos anos 20 e 30. O direito ao trabalho o direito às condições de
trabalho é a primeira geração, do ponto de vista do Direito Internacional. A segunda
geração corresponde aos direitos individuais, com a Declaração Universal e a
Americana, de 1948. Então, a expressão “gerações é falaciosa, porque não
corresponde ao descompasso, que se pode comprovar; entre o direito interno e o
direito internacional em matéria de direitos humanos. Esta é a primeira razão
histórica. Trata-se de construção vazia de sentido e que não corresponde à realidade
histórica. Segundo, é uma construção perigosa, porque faz analogia com o conceito
de gerações. O referido conceito se refere praticamente a gerações de seres humanos
que se sucedem no tempo. Desaparece uma geração, vem outra geração e assim
sucessivamente. Na minha concepção, quando surge um novo direito, os direitos
anteriores não desaparecem. Há um processo de cumulação e de expansão do corpus
juris dos direitos humanos. Os direitos se ampliam, e os novos direitos enriquecem
os direitos anteriores. 56
56
TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Op. cit. Neste mesmo sentido, manifestam-se muitos doutrinadores,
como, por exemplo, GUERRA FILHO, Willis Santiago. Introdução ao direito processual constitucional.
Porto Alegre: Síntese, 1999; SARLET, Ingo Wolfgang. Op., cit; PIOVESAN, Flávia. Op., cit. [2].
57
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Ibidem. Cumpre esclarecer que neste trabalho a classificação dos direitos
humanos fundamentais em gerações ou dimensões não se constitui o foco principal, tendo efeito meramente
didático, podendo ser verificado a partir da formação histórica, nas denominadas “gerações ou dimensões de
direitos”, que seriam resultantes de conquistas históricas, através de revoluções levadas pelas necessidades
humanas
43
A grande etapa embrionária ou de gestação dos direitos humanos, que remonta aos
primórdios da História e se estende até o século XVII, e na qual se formulam
princípios, máximas e, reivindicações que constituem as “raízes” do conceito ou as
“fontes” do humanismo. A etapa da positivação dos direitos civis e políticos, ou
seja, a entronização dos mesmos no ordenamento jurídico, convencionalmente aceita
como o primeiro momento moderno ou, como tantos preferem, a Primeira Geração
de Direitos Humanos. Apanágio do século XVIII, eles dizem respeito ao princípio
da “liberdade”. A etapa da conquista dos direitos sociais, econômicos e culturais,
denominada de Segunda Geração dos Direitos Humanos, os quais se referem ao
princípio da “igualdade”, gestados a partir dos efeitos da Revolução Industrial
(notadamente, séculos XIX e XX). A terceira etapa é a da formulação dos “direitos
dos povos”, relativos ao princípio da “solidariedade internacional”. Esta Terceira
Geração de Direitos ganhou contornos definitivos na segunda metade do século XX,
ao se oficializarem princípios gerais ao contexto internacional, dentre os quais o da
autodeterminação dos povos, da não-intervenção, da defesa da paz e da solução
pacífica das controvérsias, da cooperação entre os povos e do patrimônio comum da
humanidade, e cujo corolário reside no direito ao desenvolvimento com justiça
social. Como desdobramento da etapa anterior, já é possível falar-se numa Quarta
Geração de Direitos Humanos, que ganhará contornos definitivos à medida que
avançamos no século XXI, e sintetizando no princípio da “qualidade de vida” -
como o direito ao meio ambiente saudável e ao desenvolvimento sustentável, o
direito de participação na formatação das políticas públicas e, agora com mais
ênfase, o direito ao desenvolvimento social de cada pessoa e/ou grupo social”.58
58 58
D’ANGELIS, Wagner Rocha. Op. cit., p. 401-402.
44
Com relação à quinta dimensão de direitos, mencionada por Oliveira Júnior, que
esclarece sua posição em relação à classificação em cinco dimensões dos “novos” direitos.
Segundo o autor, as gerações de direitos humanos evidenciam momentos históricos, que não
são estanques, nem acabados, mas momentos interligados, pois os direitos humanos são as
somatórias de todas essas fases. Assim, o que os diferencia entre os direitos de primeira e
segunda dimensão é, tão somente, com relação ao caráter, ou seja, os direitos de primeira
dimensão são garantias individuais contra o abuso do Estado; já os de segunda dimensão são
exigíveis desse mesmo Estado, como seu dever primordial.60
59
OLIVEIRA, Erivaldo da Silva, Direito constitucional direitos humanos. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 2009. p. 18.
60
OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades de. Teoria jurídica e novos direitos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
2000.
61
D’ANGELIS, Wagner Rocha. Op. cit., p. 407. Os grifos são do próprio autor.
62
Conforme Comparato “[...], uma proclamação de direitos, mesmo quando despida de garantias efetivas de seu
cumprimento, pode exercer, conforme o momento histórico em que é lançada, o efeito de um ato esclarecedor,
iluminando a consciência jurídica universal e instaurando a era da maioridade histórica do homem.[...]. E o
espírito do século XVIII, convém lembrar, é marcado pela ideia de que as luzes da razão (lumiéres, Aufklãrung,
enlightenment, iluminismo) iluminavam todas as ações humanas e desvendavam os segredos da natureza.”
COMPARATO, Fabio Konder. Op. cit, p. 152-153.
45
63
RODRIGUES, Adriano Duarte. Modernidade, E-Dicionário de Termos Literários. Disponível em:
<http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/M/modernidade.htm>. Acesso em: 25 out. 2009.
46
De todo o exposto, fica evidente que as lutas em defesa dos Direitos Humanos não são
recentes, sua história foi forjada ao longo dos tempos, envolta de grandes revoluções e
afirmações de declarações políticas e sociais (que tiveram seu ápice na modernidade) 65 que
64
SANTOS, Boaventura de Souza Reconhecer para Libertar: os caminhos do cosmopolitismo cultural. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 78.
65
Habermas considera que o conceito de modernidade se refere a um feixe de processos cumulativos que se
reforçam mutuamente: à formação de capital e mobilização de recursos, ao desenvolvimento das forças
produtivas e aumento da produtividade no trabalho, ao estabelecimento de poderes políticos centralizados e à
formação de identidades naturais, à expansão de direitos de participação política, de formas urbanas de vida e de
formação escolar formal, à secularização de valores e normas, dentre outros. O primeiro filósofo a desenvolver
um conceito preciso de modernidade foi Hegel, que o utilizou em contextos históricos, como conceito de época,
considerando que os “novos tempos”, são os “tempos modernos”. Hegel terá sido o primeiro a considerar como
problema filosófico o processo de separação da modernidade das sugestões normativas do passado que lhe são
exteriores. Só no fim do século XVIII, o problema da autocertificação da modernidade se torna de tal modo
premente que Hegel toma consciência da questão como problema filosófico e torna-o um problema fundamental
da sua filosofia. Isto se deve à inexistência de modelos da modernidade. Hegel coloca a subjetividade como
princípio dos tempos modernos. Este princípio explica a superioridade do mundo moderno e a sua
vulnerabilidade face à crise, que se revela no fato de ser um mundo de progresso e, ao mesmo tempo, o mundo
do espírito alienado de si próprio. Os acontecimentos históricos chave que permitem estabelecer o princípio da
subjetividade são a reforma, o iluminismo e a revolução francesa. A Declaração dos Direitos do Homem e o
Código Napoleônico consagraram, em detrimento do direito histórico, o princípio do livre arbítrio como
fundamento do Estado. O princípio da subjetividade permite determinar também, as configurações da cultura
moderna, em que se considera o homem como sendo capaz de determinar leis da natureza, e o conhecimento
desta, torna o homem livre. Os conceitos morais dos tempos modernos estão adaptados ao reconhecimento da
liberdade subjetiva dos indivíduos. Na modernidade, continua Habermas a vida religiosa, o Estado, a sociedade,
a ciência, a moral e a arte são encarnações do princípio da subjetividade. A consideração deste princípio implica
quatro conotações: a) o individualismo, em que se considera no mundo moderno que a peculiaridade particular
pode fazer valer as sua pretensões; b) o direito à crítica, considerando-se que o princípio do mundo moderno
exige que o que deve ser reconhecido por cada um se lhe apresente como legítimo; c) a autonomia do agir, sendo
característico dos tempos modernos, o fato de nos querermos responsabilizar pelo que fazemos; d) filosofia
idealista, em que Hegel considera como tarefa da filosofia dos tempos modernos, a apreensão da ideia que sabe
de si própria. HABERMAS, Jürgen. O Discurso filosófico da modernidade. 2 ed. Rio de Janeiro: Martins
Fontes, 2002. Já para Weber, a modernidade é produto de processos globais de racionalização, que se deram na
esfera econômica, política e cultural. A racionalização econômica levou a dissolução de formas produtivas do
feudalismo, formulando uma mentalidade empresarial moderna, baseadas no planejamento e contabilidade. O
fim do feudalismo libertou a força de trabalho, facilitando a constituição do trabalho assalariado. A
racionalização criou o Estado dotado de sistema tributário centralizado, legislação e militarismo centralizado,
monopolizado. Racionalização cultural envolve a dessacralização das visões de mundo tradicionais e a
diferenciação em esferas de valor autônomas, até então embutidas na religião: estas esferas são a ciência, a moral
e a arte. Weber, Max. Apud. ROUANET, Sérgio Paulo. Mal-estar na modernidade. São Paulo: Cia. das Letras,
1993. Modernização significa principalmente aumento de eficácia visando aumento de autonomia
(emancipação). Este ponto de vista da emancipação decorre do Iluminismo, deriva de três configurações
históricas: a ilustração, o liberalismo e o socialismo. A idéia iluminista propunha estender a todos os indivíduos
condições concretas de autonomia. Era universalista em sua abrangência, individualizante em seu foco (visa o
sujeito), e emancipatória em sua intenção, o homem pode aceder a plena autonomia do pensamento, da política e
da economia.
47
foram decisivas para a configuração desses direitos no Direito Internacional, tema que será
tratado no tópico a seguir sob o título de Direito Internacional dos Direitos Humanos, ramo do
Direito Internacional que vem assumindo maior peso na Ordem Jurídica Mundial. Procurar-
se-á abordar o assunto em seus aspectos jurídico e positivo, sendo focado na evolução
histórica das principais normas do Direito das Gentes, nos crimes praticados contra a
humanidade e nos sistemas internacionais de proteção aos Direitos Humanos.
quanto à origem: a) a tese da origem política, afirmando que esses direitos teriam
surgido de uma vontade de protesto coletivo, vez que havia uma ameaça do arbítrio
ou “riscos de despotismo”, na qual se encontram os autores do século XVIII, como
James Otis e Samuel Adams, que foram “os primeiros protagonistas desde 1772 das
Declarações de Direitos Americanos” e que, como Rousseau, alegam ser o
Iluminismo que contribuiu para os direitos do homem; b) a tese da origem religiosa,
de Jellinek e Welzel, que se fundamenta no “pensamento protestante reformador
anglo-saxão” desenvolvido no Novo Mundo, com destaque para a liberdade de
religião, ao defender a separação da Igreja e do Estado; e c) a tese da origem
histórica, dos que defendem “uma origem meramente contingente, de natureza
histórica”, constituindo as primeiras formulações teóricas dos direitos do homem a
expressão doutrinária dos “direitos históricos” dos colonos ingleses da América e
um “momento privilegiado” da história das suas relações com a metrópole.66
Complementando o acima, pode-se mesmo afirmar que cada uma delas tem sua
parcela de razão. O aparecimento dos direitos do homem devido a sua complexidade não pode
ser atribuído a um único fator.
66
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 13. ed. rev. e ampl. Rio de
janeiro: Renovar, 2001, vol. I, p. 779.
48
Não obstante, pode-se afirmar que o maior desafio da atualidade no campo dos
Direitos Humanos, “não é mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los.”69 Assim, com
essa perspectiva, ergue-se o Direito Internacional dos Direitos Humanos para resguardar o
valor da dignidade humana, concebida como fundamento desses direitos.
67
Flavia Piovesan. Op. cit, p. 109. [1]
68
BOBBIO, Norberto. Op cit; p. 30.
69
Ibidem, p. 25.
70
CLADEM. As mulheres e a construção dos direitos humanos. Comitê Latino Americano para a Defesa dos
Direitos da Mulher. São Paulo. Nov. de 1993.
49
nascimento dos direitos humanos na História.”71 Esse pioneirismo ocorreu devido aos
americanos valorarem a liberdade de religião, pois grande parte de sua população havia
justamente fugido da Europa em razão de perseguições desta natureza. Nesse sentido, mesmo
a Declaração de Virgínia tendo uma visão liberal sofre influência religiosa.
A Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, que, desde então até
hoje, é a de maior repercussão e influência no mundo. Anterior à Declaração de Virgínia e à
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, tem-se o modelo inglês de direitos
humanos, originário da Magna Carta de 1215, que visava limitar o poder real e o Bill of
Rights de 1689.
71
COMPARATO, Fabio Konder. Op. cit., p. 62.
72
PIAVESAN, Flavia. Op. cit, p. 111. [2].
50
A Liga das Nações foi criada após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), tendo por
finalidade promover a cooperação, a paz e a segurança internacional, condenando todo tipo de
agressões externas contra o território e a independência política dos seus membros,
representando, deste modo, um liame à concepção de soberania estatal absoluta, no momento
que a “Convenção da Liga estabelecia sanções econômicas e militares a serem impostas pela
comunidade internacional contra os Estados que violassem suas obrigações,”74 passando,
assim, a incorporar em seu conceito compromissos e obrigações de alcance internacional, no
tocante aos Direitos Humanos.
73
COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit, p. 67-68.
74
PIAVESAN, Flavia. Op. cit, p. 112-113. [2].
75
Ibidem, p. 117.
51
nazista poderia ter sido prevenida se existisse um efetivo sistema de proteção internacional de
Direitos Humanos.76
Nesse cenário, o maior dos direitos passa a ser, na terminologia de Hannah Arendt, o
“direito a ter direitos”, ou seja, o direito a ser sujeito de direitos.78 Neste contexto é que se
vislumbra o esforço de uma reconstrução dos direitos humanos e estes se desenham como
orientadores da ordem internacional contemporânea. Nasce, a partir de então, a certeza de que
a proteção dos direitos humanos não deve ser reservada somente ao Estado e sua concepção
como uma questão de ordem doméstica, mas deve ser enfrentada como tema de legítimo
interesse e relevância internacional. Como resultado, cria-se uma sistemática normativa de
proteção internacional que faz possível a responsabilização do Estado e pressupõe a
delimitação da soberania estatal no domínio internacional.
76
Idem, ibidem.
77
Ibidem, p. 118
78
A respeito, ver LAFER, Celso. Op. cit.
79
PIOVESAN, Flavia. Op. cit, p. 120-124. [1]
52
Após a Segunda Guerra Mundial, vários fatores contribuíram para que o processo de
internacionalização dos Direitos Humanos se fortalecesse, “dentre eles, o mais importante foi
a maciça expansão de organizações internacionais,”80 com destaque para a criação das Nações
Unidas com suas agências especializadas, com preocupações que incluem desde a
manutenção da paz e da segurança internacional; o desenvolvimento das relações amistosas
entre os Estados; o alcance da cooperação econômica, social e cultural no plano internacional;
uma padronização internacional de parâmetros para a saúde; a proteção do meio ambiente; a
criação de uma nova ordem econômica internacional e a proteção internacional dos Direitos
Humanos.81
Até a fundação das Nações Unidas, em 1945, não era seguro afirmar que houvesse,
[...], preocupação consciente e organizada sobre o tema dos direitos humanos. De
longa data alguns tratados avulsos cuidaram, incidentemente, de proteger certas
minorias [...]. Para o autor, a Carta de São Francisco, no dizer de Pierre Dupuy, fez
dos direitos humanos um dos axiomas da nova organização, conferindo-lhes
idealmente uma estatura constitucional no ordenamento do direito das gentes. E, três
anos mais tarde, é aclamada a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em
1948, texto que exprime de modo amplo [...[ as normas substantivas pertinentes ao
tema e serviria de princípio e inspiração para as convenções supervenientes.82
Desse modo, a Carta das Nações Unidas de 1945 consolida, então, o movimento de
internacionalização dos Direitos Humanos. Quando da adesão a ela, que é um tratado
multilateral, os Estados-partes reconhecem que esses direitos são objeto de legítima
preocupação internacional e, portanto, não mais de sua exclusiva jurisdição doméstica.
80
Ibidem, p. 125-126.
81
Ibidem, p.126. “[...]. Os principais órgãos das Nações Unidas são a Assembleia Geral, o Conselho de
Segurança, a Corte Internacional de Justiça, o Conselho Econômico e Social, o Conselho de Tutela e o
Secretariado, nos termos do artigo 7º da Carta da ONU. Adiciona o artigo 7º (2) que órgãos subsidiários podem
ser criados, quando necessários”.
82
REZEK, Francisco José. Direito internacional público. 9. ed., rev. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 210-211.
53
nenhum questionamento, reserva ou algum voto contrário, por parte dos Estados, aos seus
princípios e disposições, o que confere à Declaração Universal “o significado de um código e
plataforma comum de ação, e consolidando, ao consagrar-se em um consenso sobre valores de
cunho universal a serem seguidos pelos Estados.”83
83
Nesse sentido PIOVESAN esclarece que a Declaração foi aprovada pela Resolução nº 217-A (III) da
Assembleia Geral, em 10 de dezembro de 1948, por 48 votos a zero e oito abstenções. Os Estados que se
abstiveram: Bielo-rússia, Checoslováquia, Polônia, Arábia Saudita, Ucrânia, URSS, África do Sul e Iugoslávia.
Em Helsinki, em 1975, no Ato Final da Conferencia sobre Segurança e Cooperação na Europa, os Estados
comunistas da Europa aderiram expressamente à Declaração Universal. PIAVESAN, Flavia. Op. cit., p. 136-137.
[1].
84
Idem, ibidem.
54
Nações Unidas, e por esse motivo, apresenta força jurídica vinculante. “Há, contudo, aqueles
que defendem que a Declaração teria força jurídica vinculante por integrar o direito
costumeiro internacional e/ou os princípios gerais de direito [...].”85
85
Ibidem, p. 144.
86
Ibidem, p. 148.
87
Idem, ibidem.
88
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos humanos no limiar do novo
século e as perspectivas brasileiras. In: Temas de política externa brasileira II. Brasília: Ministério das
Relações Exteriores, 1994, vol. 1, p. 173.
55
O primeiro passo concreto quanto aos sistemas internacionais de proteção dos Direitos
Humanos foi a Conferência de Dumbarton Oaks, em 194489 onde o tema da segurança
coletiva dominou os debates entre os chefes das delegações dos EUA, Reino Unido e URSS.90
Nesta conferência foram elaborados os princípios e a estrutura da futura Organização das
Nações Unidas – ONU e o esboço da Carta da ONU,91 cujo preâmbulo expressa:
[...] preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no
espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé
nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na
igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e
pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações
decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser
mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de
uma liberdade ampla. E PARA TAIS FINS, praticar a tolerância e viver em paz, uns
com os outros, como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a
segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos
métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, a
empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e
social de todos os povos.92
Desse modo, a Carta das Nações Unidas foi o documento que fundou a organização
internacional denominada Organização das Nações Unidas (ONU), em 26 de junho de 1945.93
A promoção e a efetivação dos direitos humanos passam, então, a ser sua finalidade. Assim,
iniciou-se o processo de proteção universal dos DH, conforme se verifica do expresso em seu
artigo 55, alínea c:
89
Esta Conferência foi antecedida pelas Conferências de Moscou, em 1941-1943, e a Conferência de Teerão, em
1943.
90
Atual Comunidade dos Estados Independentes – CEI, formada pelas repúblicas da Rússia, Armênia,
Azerbaijão, Bielorrussia, Georgia, Casaquistão, Quirguistão, Moldávia, Tajiquistão, Ucrânia e Uzbequistão.
91
Cf. ACCIOLI, Hildebrando. Manual de direito internacional público. 11. ed. 7ª tiragem. São Paulo: Saraiva,
1988. p. 164
92
A Carta das Nações Unidas foi assinada em São Francisco, a 26 de junho de 1945, após o término da
Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional, entrando em vigor a 24 de Outubro daquele
mesmo ano. O Estatuto da Corte Internacional de Justiça faz parte integrante da Carta. Carta da ONU.
Disponível em: <http://unic.un.org/imucms/userfiles/rio/file/CartadaONU_VersoInternet.pdf>. Acesso em: 25
out 2009.
93
Segundo a ONU Brasil: “As Nações Unidas são constituídas por seis órgãos principais: a Assembléia Geral, o
Conselho de Segurança, o Conselho Econômico e Social, o Conselho de Tutela, o Tribunal Internacional de
Justiça e o Secretariado. Todos eles estão situados na sede da ONU, em Nova York, com exceção do Tribunal,
que fica em Haia, na Holanda. Ligados à ONU há organismos especializados que trabalham em áreas tão
diversas como saúde, agricultura, aviação civil, meteorologia e trabalho – por exemplo: OMS (Organização
Mundial da Saúde), OIT (Organização Internacional do Trabalho), Banco Mundial e FMI (Fundo Monetário
Internacional). Estes organismos especializados, juntamente com as Nações Unidas e outros programas e fundos
(tais como o Fundo das Nações Unidas para a Infância, UNICEF), compõem o Sistema das Nações Unidas.”
Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/conheca_onu.php>. Acesso em :29 out 2009.
56
94
Carta da ONU. Disponível em: <http://unic.un.org/imucms/userfiles/rio/file/CartadaONU
_VersoInternet.pdf>. Acesso em: 25 out 2009.
57
nova percepção de Direitos Humanos. A respeito foram criados sistemas gerais95 e regionais96
de proteção aos Direitos Humanos, surgindo, desse modo, os textos declaratórios de Direitos,
particularmente na Europa, na América, na África, na Ásia e também nos Estados Árabes.
Assim, a ideia de efetividade e a proteção aos direitos fundamentais ganham força e o
propósito é a coexistência de vários organismos garantindo o fortalecimento dos Direitos
Humanos, os quais devem ser tratados como um todo de forma equitativa, pelo que se
apresenta um panorama geral de cada um desses modelos.
a) O modelo europeu
95
Sistema global de proteção dos DH em caráter geral. Conforme ressalta Mazzuoli, “O Pacto Internacional dos
Direitos Humanos Civis e Políticos e Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, também
de caráter específico, como, por exemplo, as Conferencias Internacionais e ainda seus principais instrumentos
que são: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. A
proteção internacional dos direitos humanos e o Direito Internacional do meio ambiente. Revista
Ambiental, São Paulo, ano 0, n. 34, p. 100, abril/junho de 2004. Importante expressar algumas das principais
conferências do sistema global que possibilitaram a evolução e a própria internacionalização dos DH:
1992 – Rio de Janeiro: Conferencia Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento;
1993 – Viena: Conferencia Mundial sobre Direitos Humanos;
1994 – Cairo: Conferencia Mundial sobre População e Desenvolvimento;
1995 – Pequim: Conferencia Mundial sobre os Direitos da Mulher;
1996 – Istambul: Conferencia Mundial sobre Assentamentos Humanos;
2001- Durban: Conferencia Mundial sobre Racismo, Xenofobia e Intolerância Correlata;
2002 – Monterrey: Conferencia Mundial sobre Financiamento para o Desenvolvimento. MAGALHÃES, José
Luiz de Quadros e LAMOUNIER, Magalhães. A Internacionalização dos Direitos Humanos. Disponível em
www.jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9228. Acesso em 20 nov de 2009.
96
Como sistemas regionais de proteção dos DH podem ser citados: A Convenção Americana sobre Direitos
Humanos – 1969. É o Pacto de São José da Costa Rica, um tratado obrigatório de DH em nível interamericano
que trata de direitos civis e políticos; o Protocolo de São Salvador – 1988, é protocolo adicional à Convenção
Interamericana de Direitos Humanos que trata dos direitos econômicos, sociais e culturais; o Protocolo Adicional
à Convenção Interamericana de Direitos Humanos – 1990, é o protocolo relativo à abolição da pena de morte e
os tratados multilaterais de DH que protegem determinados grupos de pessoas, como, por exemplo:
1948: Convenção contra o Genocídio;
1949: Convenção de Genebra sobre a Proteção das Vítimas de Conflitos Bélicos;
1965: Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial;
1969: Pacto de São José da Costa Rica;
1979: Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher;
1985: Convenção Interamericana para Prevenir e Punir Tortura;
1989: Convenção sobre os Direitos da Criança;
1992: Convenção sobre a Diversidade Biológica.
58
A Convenção Europeia dos Direitos Humanos foi criada em 1954, sendo um tratado
internacional assinado pelos Estados Membros do Conselho da Europa.98 A Convenção, que
institui a Comissão Europeia e a Corte, estabelece suas funções, bem como descreve uma lista
dos direitos e garantias que os Estados se responsabilizaram a respeitar, entre eles o direito à
vida; o direito de defesa em matéria civil e penal; direito ao respeito da vida privada e
familiar; a liberdade de expressão; a liberdade de pensamento, consciência e religião; o direito
a um recurso efetivo; o direito ao usufruto pacífico dos bens e o direito de voto e de
elegibilidade. Nesse passo, Henry Atique e Eliana Franco Neme explicam:
97
ATIQUE, Henry e NEME, Eliana Franco. Op. cit.
98
“São Estados Membros do Conselho da Europa: Albânia; Andorra; Armênia; Áustria; Azerbaijão; Bélgica;
Bósnia e Herzegovina; Bulgária; Croácia; Chipre; República Checa; Dinamarca; Estónia; Finlândia; França;
Geórgia; Alemanha; Grécia; Hungria; Islândia; Irlanda; Itália; Letônia; Liechtenstein; Lituânia; Luxemburgo;
Malta; Moldávia; Mônaco; Montenegro; Holanda; Noruega; Polônia; Portugal; Romênia; Federação Russa; San
Marino; Sérvia; Eslováquia; Eslovênia; Espanha; Suécia; Suíça; A antiga República Iugoslava; Iugoslávia da
Macedônia; Turquia; Ucrânia; Reino Unido.” Ibidem.
99
Ibidem.
59
Essa situação mostrou-se distante das pretensões do sistema europeu, pois não só
inviabilizava o acesso à Corte Europeia de garantias, haja vista que o acesso se dava através
da apresentação das reclamações à Comissão Europeia, mas também pela inefetividade das
regras de proteção diante da impossibilidade política e jurídica do Comitê de Ministros para
executar as decisões, demonstrando, assim, ser lento e inapto para solucionar os problemas
apresentados pelo sistema.
A titulo de solução foram criados onze protocolos adicionais, incluindo novos direitos
e liberdades (Protocolos nºs 1, 4, 6 e 7) e conduzindo a uma reestruturação no sistema
(Protocolos nºs 2, 3, 5, 8, 9 e 11), permitindo, desse modo, à Corte Europeia dos Direitos do
Homem a possibilidade de emitir pareceres consultivos, centralizando as reclamações e a
possibilidade de apresentação das reclamações individualmente, sem necessidade do prévio
comparecimento perante a Comissão Europeia. Assim, depois das modificações no sistema
europeu, a comissão encerrou as atividades em 1988, e hoje os direitos humanos no Sistema
Europeu são tutelados exclusivamente pela Corte dos Direitos do Homem.
b) O modelo americano
100
Ibidem.
60
101
GOMES, Luiz Souza. América Latina: seus aspectos, sua história, seus problemas. 2. Ed. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1966.
102
ATIQUE, Henry e NEME, Eliana Franco. Op. cit.,
103
Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Equador, El Salvador,
Estados Unidos, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.
Ibidem.
61
comuns e a democracia. Com relação a esta organização, Henry Atique e Eliana Franco Neme
afirmam:
Desde sua entrada em vigor até hoje, a Carta da OEA sofreu quatro alterações: em
1967 (Protocolo de Buenos Aires); em 1985 (Protocolo de Cartagena de Índias); em 1992
(Protocolo de Washington) e em 1993 (Protocolo de Manágua). A primeira reforma alterou a
estrutura organizacional da Organização; a segunda ampliou a competência do Conselho
Permanente e do Secretário-Geral; a terceira trouxe mecanismos de proteção da democracia
representativa e a última elaborou regras a respeito do desenvolvimento integral da região.
Oportuno ressaltar que nem todas as alterações foram ratificadas por todos os países-
membros, motivo pelo qual, hoje, existem várias cartas em vigor.105
104
Ibidem.
105
De acordo com os artigos 140 e 142 da Carta da OEA, as reformas empreendidas no documento somente
entrarão em vigor quando dois terços dos Estados-membros as ratificarem, sendo que somente obrigam os países
que completaram o processo de ratificação. Carta da organização dos estados americanos. Disponível em:
<http://www.oas.org/juridico/portuguese/carta.htm>. Acesso em: 30 out 2009.
106
Um desses juízes é brasileiro, Sr. Paulo Sérgio Pinheiro, com mandato até 31/12/2011.
62
107
ATIQUE, Henry e NEME, Eliana Franco. Op. cit.
63
Artigo 20: Com relação aos Estados Membros da Organização que não são Partes
da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a Comissão terá, além das
atribuições assinaladas no "artigo 18", as seguintes:
a) Dispensar especial atenção à tarefa da observância dos Direitos Humanos
mencionados nos "artigos 1, 2, 3, 4, 8, 25 e 26" da Declaração Americana dos
Direitos e Deveres do Homem.
b) Examinar as comunicações que lhe forem dirigidas e qualquer informação
disponível; dirigir-se ao Governo de qualquer dos Estados membros não Partes da
Convenção a fim de obter as informações que considerar pertinentes; e formular-lhes
recomendações, quando julgar apropriado, a fim de tornar mais efetiva a observância
dos Direitos Humanos fundamentais.
c) Verificar, como medida prévia ao exercício da atribuição da "alínea b", anterior,
se os processos e recursos internos de cada Estado membro não Parte da Convenção
foram devidamente aplicados e esgotados.108
108
ALMEIDA, Sueli Souza de. estatuto da comissão interamericana de direitos humanos. Aprovado pela
Resolução AG/RES. 447 (IX-O/79), adotada pela Assembléia Geral da OEA, em seu Nono Período Ordinário de
Sessões, realizado em La Paz, Bolívia, em outubro de 1979. Núcleo de Estudo de Políticas Públicas em Direitos
Humanos – NEP. Disponível em: <http://www.nepp-dh.ufrj.br/oea12.html>. Acesso em: 29 out 2009.
109
Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica). Legislação sobre DST e
AIDS no Brasil. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/legislacao/vol1_4.htm>. Acesso em: 29 out 2009.
110
PIOVESAN, Flavia. Op. cit., p.243-244. [1].
64
Humanos. Este também é o entendimento da própria Comissão que define DH como: (a) os
direitos definidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos com relação aos Estados
Partes da mesma; (b) os direitos consagrados na Declaração Americana de Direitos e Deveres
do Homem, com relação aos demais Estados membros.111
c) O modelo africano
111
ALMEIDA, Sueli Souza de. Op. cit.
112
A África é um continente com, aproximadamente, 30,27 milhões de quilômetros quadrados de terras que se
localizam parte no hemisfério norte e parte no sul. Ao norte é banhado pelo mar Mediterrâneo, ao leste pelo
Oceano Índico e a oeste pelo Oceano Atlântico. O Sul é banhado pelo encontro das águas destes dois oceanos. É
o segundo continente mais populoso do mundo (só perde para a Ásia). Possui, aproximadamente, 800 milhões de
habitantes. No geral, é um continente pobre e subdesenvolvido, apresentando baixos índices de desenvolvimento
econômico. Seus principais problemas são fome, epidemias (a AIDS tem um crescimento alarmante) e os
conflitos étnicos armados. Continente Africano. Sua pesquisa.com. Disponível em:
<http://www.suapesquisa.com/ geografia/continente_africano.htm>. Acesso em: 30 out 2009. É composta por 54
países independentes (sendo 48 continentais e 6 insulares) e por 4 províncias (territórios nacionais) e mais de 10
territórios estrangeiros. Os que possuem um nível de desenvolvimento um pouco melhor do que a média do
continente são: África do Sul, Egito, Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia. Países do continente africano.
Disponível em: < http://www.girafamania. com.br/africano/entrada.africana.html>. Acesso em: 30 out 2009.
65
A história da África não pode ser vista somente por suas formas de Estado, como
afirma o historiador Elikia M’Bokolo, “pois as etnias também possuem sua historicidade”,114
que foi interrompida de forma brutal pela conquista colonial, processo que, em numerosos
pontos do continente, estava conduzindo o nascimento de Estados proto-nacionais, como os
“Jihad” de Samori Touré ou de Uthman Dan Folio, o crescimento de Buganda ou o Estado
caravaneiro de Mirambo.115 Esta interrupção, às vezes de forma bem violenta, poderia
explicar, em parte, os conflitos e antagonismos irredutíveis vividos pela África hodierna. O
antropólogo Kabengele Munanga, professor-titular da USP e vice-diretor do Centro de
Estudos Africanos e do Museu de Arte Contemporânea da USP, assim expõe o assunto:
113
De forma geral, e isto é facilmente detectável nas exposições da mídia escrita e televisiva, a visão sobre a
África se sustenta em três pilares: (1) A África pré-colonial, despedaçada pelas guerras tribais; (2) a África e as
potências coloniais, o apaziguar das tribos selvagens através da colonização que trouxe, na visão do dominante, o
progresso no continente e (3) a África independente, cujo atavismo hereditário a faz retornar ao tempo pré-
colonial de guerras tribais, fatores que, reunidos, explicam (?), nesta visão simplista, um continente.
114
M’BOKOLO, Elikia. África negra: história e civilizações. Tomo I (até o século XVIII). Salvador: EDUFBA,
2009, p. 58.
115
A respeito ver M’BOKOLO, Elikia. Ibidem.
116
MUNANGA, Kabengele. Etnicidade, violência e direitos humanos em África. Cadernos Penesb, UFF, v.
3, 2000, p. 31-44.
66
Flavia Piovesan expressa que: “A este quadro, soma-se ainda o grave genocídio da
região de Darfur.”118 É neste contexto que se insere a Carta Africana dos Direitos Humanos e
dos Povos (Carta de Banjul),119 (Anexo II) aprovada pela Conferência Ministerial da
Organização da Unidade Africana - OUA (hoje União Africana – UA) em Banjul Gâmbia, em
janeiro de 1981, e adotada pela XVIII Assembléia dos Chefes de Estado e Governo da UA em
Nairóbi, Quênia, em 27 de julho de 1981.
A Carta, após seu preâmbulo, esta está dividida em três partes: Dos Direitos e
Deveres, das Medidas de Salvaguarda e Disposições Diversas. O preâmbulo apresenta
dispositivos relativos às especificidades dos problemas africanos dos direitos humanos, a
semelhança dos vários instrumentos internacionais, sem, contudo, esquecer a tradição
Africana. Todavia, ela expressa alguns dispositivos que não se encontram nos demais
instrumentos internacionais, como o elencado em seu artigo 28, que reza que os indivíduos
devem respeitar seus semelhantes sem nenhuma discriminação, e no seu art. 2º, ao incluir,
entre os motivos de não discriminação, a distinção étnica.120
Segundo Comparato, a inovação deste Normativo está “em afirmar que os povos são
também titulares de direitos humanos, tanto no plano interno como na esfera internacional”,121
porém, referido documento não define o conceito de povo, o que deixa margem a discussões,
mas, nem por isto, o termo deve ser confundido com minoria étnica, religiosa ou lingüística,
até porque cada povo tem a sua cultura, o seu modo de vida, necessitando de adequação de
cada sistema ao modo de vida de cada povo. A respeito Comparato faz a seguinte análise:
117
OUKO, John Otieno. Africa: The Reality of Human Rights. Apud PIAVESAN, Flavia. Carta Africana dos
direitos humanos e dos povos. Dicionário de Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.esmpu.gov.br/
dicionario/tiki-listpages.php>. Acesso em: 02 nov 2009.
118
PIOVESAN, Flavia (coord.) Direitos humanos. Curitiba: Juruá, 2006, p. 25. [2]
119
Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/africa/banjul.htm>. Acesso em: 28 nov 2009.
120
COMPARATO, Fabio Konder. Op. cit.
121
Ibidem, p. 407.
67
Os grupos sociais têm a sua própria cultura, que é condição natural e social, e as
pessoas que vivem nos grandes centros urbanos terão o modo de agir e pensar
diferente das pessoas que vivem nas savanas. Desse modo, mesmo com essas
diferenças, todos os seres humanos têm os mesmos direitos e deverão ser tratados
como tal, o que não acontece na prática e o tratamento dado aos indivíduos
diferentes decorre da existência dos direitos fundamentais iguais para todos.124
122
COMPARATO, Fabio Konder. Op. cit., p. 409.
123
KIMMINICH, Ott. Einfühtrung in das völkerrecht. Apud BIELEFELD, Op. cit., p. 13.
124
DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. 2. ed. Coleções Polêmica. São Paulo:
Moderna, 2004, p. 13.
68
Afirma este autor que até a assinatura da carta africana só “havia o reconhecimento do direito
dos povos à autodeterminação, assentado no artigo 1º de ambos os Pactos Internacionais de
1966.”125 Indo além, este doutrinador declara:
Um fator deve ser destacado: a Carta não faz nenhuma menção à democracia, mas
expressa, em seu artigo 22, o direito ao desenvolvimento. Tal fato apresenta um paradoxo, já
que este não é resultante de fato natural e sim fruto de um processo gestado no longo prazo,
que integra aspectos econômico, social e político e que, muitas vezes, estão sujeitos às
políticas públicas e programas governamentais, que para um bom progresso dependem, em
grande parte, da democracia. Neste sentido, Bedjaqui, citado por Flavia Piovesan, afirma:
Continuando, essa autora expressa que o “desenvolvimento deve ser concebido como
um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas podem usufruir.”128
A questão ecológica é outro traço marcante expresso na Carta Africana dos Direitos
dos Povos, sendo a primeira convenção internacional a firmar o direito à preservação do
equilíbrio ecológico (art. 24) e apresentar como condição do desenvolvimento nacional a tese
do desenvolvimento sustentável.
A Carta Africana traz, como todo instrumento relativo aos Direitos Humanos, uma mescla
de fatores jurídicos e políticos. Através dela, o povo africano anseia alcançar a paz e a efetiva
125
Este doutrinador se refere ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e ao Pacto Internacional
sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos adotados pela ONU no ano de 1966. COMPARATO,
Fabio Konder. Op. cit., p. 407.
126
Idem, ibidem.
127
PIOVESAN, Flavia (coord.) Op. cit., p. 20. [1].
128
Ibidem, p. 21.
69
proteção e promoção dos direitos humanos. Todavia, muito ainda necessita ser realizado para que
isto ocorra, muitos obstáculos ainda se encontram presentes, tendo em vista a precariedade dos
Estados Africanos e porque não dizer em muitos outros continentes.
d) O modelo asiático
Na verdade, a Ásia, com seus quarenta e cinco (45) países independentes (36 no
continente, mais a Palestina e duas regiões administradas pela China) e nove países insulares
(mais duas ilhas administradas pela China),129 não pode ser considerada uma região
homogênea com capacidade de gerar uma perspectiva una sobre Direitos Humanos, haja vista
sua diversidade e complexidade de Estados, religiões, línguas, comunidades e culturas, cada
uma com realidades completamente díspares. Afora isto, o caráter religioso é presente em
todos os países do continente, com regiões fortemente influenciadas pelo Islã, budismo,
hinduísmo, cristianismo e confucionismo, o que não significa que eles terão a mesma
expressão em todas as áreas. A língua também apresenta diversidade (híndi, singalês, tâmil,
mandarim, japonês, coreano, tailandês, tagalog e inglês são alguns exemplos). Da mesma
forma, malaios, chineses, indianos, indonésios, japoneses, afegãos, europeus e seus
descendentes são grupos étnicos que povoam as diversas regiões asiáticas, cada um com seu
costume e estrutura social.130
129
Países continentais: Afeganistão, Arábia Saudita, Armênia, Azerbaijão, Bangladeche, Butão, Camboja Catar,
Cazaquistão, China, Coreia do Norte, Coreia do Sul, Emirados Árabes Unidos, Geórgia, Iêmen, Índia, Irã,
Iraque, Israel, Jordânia, Kuwait, Laos, Líbano, Malásia, Mongólia, Mianmar, Nepal, Omã, Paquistão,
Quirguistão, Síria, Tailândia, Tajiquistão, Turcomenistão, Uzbequistão, Vietnã, Palestina, Macau e Tibete.
Países insulares: Barein, Brunei, Cingapura, Filipinas, Ilhas Maldivas, Indonésia, Japão, Sri Lanka, Timor Leste,
Hong Kong e Taiwan. Continente Asiático. Disponível em: <http://www.girafamania.com.br/asiatico/entrada.
asiatica.html>. Acesso em: 03 jan 2010.
130
MORE, Rodrigo Fernandes. Os direitos humanos na ásia oriental. Disponível em:
<http://www.more.com.br /artigos/Direitos%20humanos%20na%20%E1sia%20oriental.pdf>. Acesso em: 03 jan
2010.
70
bolsão de pobreza (ex. Bangladesh, Afeganistão, Índia, etc.). No continente podem ser
encontradas economias centralizadas, economias de mercado e economias mistas e os
sistemas políticos são diversos e oscilam entre semi-feudais a ditaduras militares, de regimes
comunistas a democracias bem estabelecidas.
A herança colonialista, sem dúvida alguma, deixou marcas profundas nas antigas
colônias sob muitos os aspectos: econômicos, sociais, culturais e políticos. A
independência política, que concretizou nas colônias o ideal de liberdade e da
autodeterminação, não correspondeu a um estado de paz que pudesse conduzir
muitas das colônias num caminho de desenvolvimento social, econômico ou mesmo
humano: a grande maioria das ex-colônias hoje são países muito pobres, com má
distribuição de renda, de conflitos sociais e instabilidade política. À primeira vista
parece uma descrição da África, cujos flagelos humanos "acostumamos" a ver e usar
como exemplos acadêmicos ou jornalísticos da miserabilidade do ser humano, em
todos os sentidos. Este cenário também era comum no mundo pós-colonial da Ásia,
entre as décadas de 1960 e 1970. A Ásia oriental, contudo, teve um impulso
econômico muito significativo com o acirramento do fenômeno da globalização dos
mercados, no início da década de 1980, e que perdura até hoje: países como a China,
Tailândia e Malásia tornaram-se centros de avançada tecnologia e,
consequentemente, centros financeiros respeitáveis, como a Bolsa de Bangkok e
Hong Kong. A modernidade chegava ao Oriente na forma de aumento do poder de
consumo, provocando alterações significativas na economia e na sociedade, com
reflexos na política, principalmente após a derrocada do socialismo na ex-URSS no
fim da década de 1980 e início da década de 1990. Neste contexto, a situação na
Ásia era a seguinte: a) Os Estados recém independentes não contavam infra-
estruturas ou estruturas políticas para guiá-los no exercício de sua autodeterminação;
b) em alguns países, o longo período sob o colonialismo fez alterar muitas tradições,
costumes e valores que, após a independência, passaram a ser revigorados na busca
das identidades nacionais que haviam se perdido. Essa busca deu margem a
interpretações ora mais, ora menos elásticas dos valores do passado, moldando-os
nem sempre de forma democrática por lideranças nem sempre legítimas e,
inegavelmente, viciadas por um profundo sentimento anticolonialista e de liberdade
sem limites: nada podia, mas hoje sou livre! c) noutros países como a Tailândia e
Malásia, os lucros da globalização provocaram mudanças na estrutura social: o
espírito individualista do capitalismo não se coaduna com o espírito coletivista do
sistema político daqueles países, embora esse não tenha sido abandonado, aliás, essa
uma das principais críticas que sofre o capitalismo no Oriente: o individualismo. d)
Estados de histórias peculiares, com diferentes experiências e influências políticas
não permitiam identificar valores uniformes ou mesmo harmonizados na Ásia
oriental. Há quem diga que esses "valores asiáticos" não existem, mas são simples
reflexos daquele sentimento anticolonialista, anti-Ocidente, que são, então, pseudo-
valores. Vale, então, reiterar a pergunta: mesmo com tanta diversidade, há um
núcleo de valores que se pode denominar de "asiáticos"? Os direitos humanos são
universais sob o ponto de vista extrínseco, comportando diferentes interpretações de
conteúdo que, sob o ponto de vista político (intrínseco) permitem identificar
variações legítimas sobre a implementação de um ou outro direito.131
Lógico que à indagação do autor não cabe resposta afirmativa, até mesmo porque,
como ele mesmo afirma, existem Direitos Humanos na Ásia que expressam valores dos
131
Ibidem. Ao longo deste texto, o autor faz referência a: YASUAKI. Onuma. Toward na intercivilizational
approach to human rights, p. 104 e GHAI, Yash. Rights. Social justice and globalization in east ásia, p. 242.
71
Estados, mas isto ocorre mais em razão da cultura que os apóia do que em função de Tratados,
Convenções ou Declarações Internacionais. Há deveres do indivíduo em relação ao Estado e à
coletividade muito mais fortes do que direitos, conforme se pode verificar de seu estudo:
e) O modelo árabe
132
Ibidem.
133
Bielefeldt é um dos autores, dentre outros, que ao tratar a questão dos direitos humanos sob a ótica islâmica,
confessa que “por uma questão de probidade, devo mencionar minha limitação na competência do debate desse
assunto, causada por meus parcos conhecimentos das línguas orientais. Para conversas com muçulmanos quase
sempre me vali das línguas inglesa e alemã. Também para a análise da literatura tive de restringir-me aos livros e
ensaios disponíveis nas línguas europeias. Por causa dessa barreira linguística não posso ter a pretensão de
reproduzir sistemática e adequadamente a multiplicidade de posicionamentos do pensamento islâmico a respeito
dos direitos humanos.” BIELEFELDT, Heiner. Op. cit., p.22.
134
CHEQUER, Jamile; CARVALHO, Marcelo. A guerra que Bush inventou e o mundo teve que engolir.
Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – IBASE. Disponível em:
<http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=785>. Acesso em: 30 nov 2009.
72
No tocante aos Direitos Humanos islâmicos, o primeiro ponto a ressaltar é que eles se
distanciam das declarações ocidentais pela subordinação dos direitos de natureza civil,
política, social e econômica aos dogmas religiosos, ao invés de submetê-los a uma razão
universal abstrata, até porque os fundamentos religiosos partem do princípio de que a razão,
por si só, sem a luz da revelação de Deus, não pode ser um guia certo nas questões do ser
humano. Nada obsta esta submissão, visto que o mundo ocidental cristão, muitas vezes,
recorre ao seu Livro Sagrado (a Bíblia) para resolução de impasses que digam respeito aos
Direitos Humanos, o problema é a forma dedutiva que o mulçumano impõe a questão, “isto é,
quando direitos humanos são derivados unilateralmente da revelação divina, com a
consequência de levar à reivindicação por exclusividade na compreensão daqueles
direitos.”135
Escritos islâmicos noticiam que os Direitos Humanos foram sancionados por Deus
(Alá) e que os direitos à vida, segurança, liberdade individual, justiça, igualdade entre as
pessoas já estavam marcados no Alcorão (al-qur’ān) muito antes do ocidente começar a
abordá-los. Bielefeldt aponta Abul A’la Mawadudi, um dos mais influentes escritores
islâmicos e o primeiro a escrever sistematicamente sobre direitos humanos, como defensor
dessa tese, além de mostrar documentos islâmicos que ratificariam esta posição, como o
descrito pela Comissão Internacional de Juristas: “O Islã foi o primeiro a reconhecer direitos
humanos básicos e quase 14 séculos atrás ele estabeleceu garantias e salvaguardas que apenas
recentemente foram incorporadas em declarações universais de direitos humanos.”136
Assim, se por um lado a adoção dos Direitos Humanos se faz pela via dos valores
ocidentais, de outro, eles são “islamizados unilateralmente” (para usar a expressão de
Bielefeldt) pelo mundo árabe. De certo, é que nas últimas décadas, a comunidade muçulmana
esforçou-se por buscar uma alternativa à Declaração Universal dos Direitos Humanos, mais
condizente com os princípios da religião islâmica, o que originou: a Declaração Islâmica
Universal dos Direitos Humanos (1981),137 (Anexo III) cujo preâmbulo deixa evidenciado seu
caráter religioso; a Declaração dos Direitos Humanos no Islã (1990), também denominada
135
BIELEFELDT, Heiner. Op. cit., p. 164.
136
Ibidem, p.. 165.
137
Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/declaracaoislamica.html>. Acesso em: 15 nov 2009.
73
Declaração do Cairo, que proporciona uma visão geral da perspectiva muçulmana sobre os
Direitos Humanos e fixa a Sharia como sua fonte principal e a Carta Árabe dos Direitos
Humanos (1994). Com elas, os muçulmanos tentam dar a esses direitos um fundamento
confessional, visto que para eles todo direito emana de Deus (Alá).
Há que se reconhecer que estas violações não são exclusivas do mundo árabe. A
Anistia Internacional tem relatado graves práticas de torturas em diversos países, conforme
noticiado na mídia escrita e televisiva, dentre eles se podem destacar: Sri Lanka
(desaparecimentos de jornalistas); Zimbábue (com a impunidade); Turquia (desaparecimentos
e execuções extrajudiciais no meio rural e urbano); Marrocos (desaparecimentos políticos),
Brasil (violações nos presídios, em conflitos agrários, contra povos indígenas, contra
moradores de favelas) e a África do Sul, com estupro de mulheres homossexuais (a não
aceitação do diferente), isto para citar uns poucos. Em recente relatório, a ONG Anistia
Internacional mostra que:
[...] o mundo está "em plena crise de direitos humanos", que, caso não consiga ser
solucionada, agravará ainda mais os problemas sociais, políticos e econômicos
globais. Segundo o informe, muitos governos continuam descuidando da população
pobre e marginalizada. Os governos poderosos estão interrompendo o progresso da
justiça internacional ao se colocarem acima da lei em relação aos direitos humanos,
protegendo os aliados de críticas e atuando apenas quando politicamente
conveniente.138
138 Consultor Jurídico. Relatório denuncia crise global dos direitos humanos. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2010-mai-26/anistia-internacional-denuncia-crise-global-direitos-humanos>. Acesso
em: 30 nov 2009.
74
Pode-se tentar entender o caráter ocidental dos direitos humanos do ponto de vista
sociológico, jurídico-institucional ou de desenvolvimento histórico das ideias.
Podem-se arrolar motivos religioso-filosóficos tradicionais, ou mencionar,
prioritariamente, o moderno desenvolvimento e ideias iluministas. Os direitos
humanos podem ser associados ao conjunto histórico do desenvolvimento espiritual
europeu ou a momentos históricos especiais, como a reforma ou a lutas
constitucionais inglesas. Seja qual for o ponto de vista da fundamentação, o certo é
que, enquanto os direitos humanos forem considerados essencialmente uma
conquista ocidental, sua aplicação com o objetivo de um reconhecimento mundial
deve ser encarada como ilusória ou como imperialista.139
Alguns estudos sobre a mulher evidenciam que não é possível compreender sua
posição e papel na sociedade contemporânea sem levar em conta a situação de classe. “Não
existe a mulher geral e abstrata, mas mulheres concretas, inseridas em classes sociais
historicamente determinadas.”141
139
BIELEFELDT, Heiner. Op. cit., p. 142.
140
ALVES, Rubens. Aprendiz de mim: um bairro que virou escola. Campinhas: Papirus, 2004, p. 26.
141
GIACOMINI, Sonia Maria. Mulher e escrava: uma introdução histórica a estudo da mulher negra no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 1988, p. 17.
75
Nesse sentido, necessário definir gênero, ressaltando-se que o termo será devidamente
estudado em capítulo ulterior, mas, por ora, cabe a defesa, calcada em Nancy Freire, da tese
de que gênero é uma condição bivalente, nem simplesmente uma classe, nem um grupo de
status. O gênero é, portanto, uma categoria hibrida pautada simultaneamente na política
econômica e na cultura. Ainda segundo esta autora, a “situação de ambivalente do gênero
reforça a condição marginalizada relegada ao tipo de classe explorada e sexualidade
renegada.”143
Assim posta a questão, pode-se afirmar que a relação de gênero se norteia pelas
diferenças biológicas entre homens e mulheres, diferenças que foram transformadas, ao longo
de todo um processo histórico, em desigualdades que tornaram a mulher um ser vulnerável à
exclusão social, seja pela via do trabalho, da classe, da cultura, da etnia, da idade, da raça,
entre outros. Desta forma, há que se conhecer o fenômeno da exclusão e suas formas de
manifestação para, só então, relacioná-la à questão feminina.
142
Assim como entre brancos e negros e outras categorias sociais, mas, para efeito deste estudo, se privilegia o
caráter dual homem-mulher.
143
FRASE, Nancy. Redistribuição, reconhecimento e participação: por uma concepção integra da justiça. Apud
SARMENDO, Daniel; IKAWA, Daniela e PIAVESAN, Flavia (Coord.). Op. cit, p. 167-189.
144
BALSA, Casimiro, BONETI; Lindomar Wessler e SOULET Marc-Henry (orgs). Conceitos e dimensões da
pobreza e da exclusão social: uma abordagem transnacional. Rio Grande do Sul: Editora Unijui, 2006.
76
ordem psicológica ou mental do indivíduo que é apartado, muitas vezes, do convívio familiar;
(5) comportamental, são os indivíduos que, por diversas causas, são levados à prostituição,
drogas, alcoolismo.145
A luta contra a exclusão e violência feminina tem crescido. A busca por direitos
equânimes, igualdade entre homens e mulheres e uma vivência liberta de padrões opressores
tem sido uma constante. Desde o século XIX, as mulheres brigam pelos seus direitos à
145
Ibidem.
146
TIBURI, Marcia; MENEZES, Magali M. de e EGGERT, Edla (Orgs). As mulheres e a filosofia. São
Leopoldo: Editora UNISINOS, 2002.
147
Embora algumas mulheres, nos últimos tempos, se destaquem como executivas de grandes empresas
nacionais e multinacionais, empresárias, altas funcionárias, a grande maioria ainda sofre o processo
preconceituoso de ganhos inferiores aos dos homens, embora desenvolvendo as mesmas tarefas. Pesquisas
evidenciam que as diferenças, convertidas em desigualdade ainda alijam a mulher do exercício de atividades de
maior prestígio e melhor remuneração, embora já se vislumbre uma tênue linha de mudanças. SCAVONE
Miriam. Mulheres em Ação. Revista Bovespa. Disponível em: <http://www.bmfbovespa.com.br/InstSites/
RevistaBovespa/104/Mulheres.shtml>. Acesso em: 05 jan 2010.
77
autonomia, integridade de seu corpo, ao aborto, de acesso à contracepção e aos cuidados pré-
natais de qualidades, à proteção contra a violência doméstica, assédio sexual, pedofilia,
estupro, direitos trabalhistas, entre tantos outros direitos.
Essa luta vem num crescente, tendo se intensificado a partir dos anos 90, através de
grupos e entidades femininas que procuram impulsionar o debate pelo reconhecimento dos
direitos humanos das mulheres, pois como afirma Antônio Negri, citado por Graciela
Rodrigues:
148
RODRIGUES, Graciele S. Os direitos Humanos das mulheres. Disponível em: <http://www.equit.org.br/
docs/artigos/direitoshumanos.pdf>. Acesso em: 10 jan 2010.
149
Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/pequim95.htm>. Acesso em :10 jan 2010.
150
RODRIGUES, Graciele S. Op. cit.
78
151
Convenção de Belém do Pará. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
Contra a Mulher. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/oea/mulher2.htm>. Acesso em: 15 jan
2010.
79
2. A CULTURA ISLÂMICA
Até o século XVI, o termo era utilizado para se referir a uma ação e a processos, no
sentido de ter cuidado com algo. Com o passar do tempo, passou a designar, também, o
esforço despendido para o desenvolvimento das faculdades humanas. Em consequência, as
152
CUCHE, Denys. O conceito de cultura nas ciências sociais. Tradução de Viviane Ribeiro. 2 ed. Bauru:
EDUSC, 2002, p. 203.
80
A respeito desse sentido diverso, Laraia informa que na Alemanha o termo Kultur
simbolizava todos os aspectos espirituais de uma comunidade, ao passo que civilization na
França referia-se às realizações materiais de um povo.154 A evolução do significado de cultura
entre esses dois países europeus marcou, segundo Cuche, a formação de duas concepções de
cultura que estão na base dos estudos das Ciências Sociais. O entendimento francês de cultura
como característica do gênero humano deu origem ao conceito universalista. Já a concepção
alemã originou o conceito particularista ao afirmar que a cultura é “um conjunto de
características artísticas, intelectuais e morais que constituem o patrimônio de uma nação,
considerado como adquirido definitivamente e fundador de sua unidade”.155
A concepção universalista da cultura foi sintetizada por Edward Burnett Taylor (1832-
1917), em 1817, ao marcar o caráter de aprendizado cultural em oposição à ideia de
transmissão biológica e do determinismo geográfico.156 Para ele:
Tomando em seu amplo sentido etnográfico [cultura] é este todo complexo que
inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra
capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.157
153
Ibidem, p. 12.
154
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 19 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
155
CUCHE, Denys. Op. cit., p. 28.
156
Algumas teorias do passado afirmavam que a genética era determinante nas diferenças culturais, atribuindo
capacidades específicas inatas a raças ou a outros grupos humanos, ao que os antropólogos rebateram afirmando
que “não existe correlação significativa entre a distribuição dos caracteres genéticos e a distribuição dos
comportamentos culturais. Qualquer criança humana normal pode ser educada em qualquer cultura, se for
colocada desde o início em situação conveniente de aprendizado. KEESING, Felix, News perspectives in
cultural anthropology. Apud LARAIA, Roque de Barros. Op. cit., p. 17. Já para as teorias desenvolvidas no final
do século XIX, principalmente por geógrafos, as diferenças do ambiente físico condicionariam a diversidade
cultural, é o determinismo geográfico que vinha sendo construído desde a Antiguidade. Esta teoria foi refutada
por diversos antropólogos, como Boas, Wissler, Kroeber, entre outros. Para “eles existe uma limitação na
influência geográfica sobre os fatores culturais,” além do fato “que é possível e comum existir uma grande
diversidade cultural localizada em um mesmo tipo de ambiente físico.” Ibidem, p. 21. Afora isto, não se pode
esquecer que uma das grandes qualidades da espécie humana foi a de romper suas próprias limitações: um
animal frágil, provido de pouca força física, dominou a natureza. Sem ser alado alcançou os ares; sem guelras ou
membranas próprias conquistou os mares e acabou por se transformar no mais temível predador da natureza que
dominara.
157
TAYLOR, Edward. Primitive culture. Apud, ibidem, 25.
81
158
LARAIA, Roque de Barros. Op. cit.
159
KEESING, Roger. News perspectives in cultural anthropology. Apud LARAIA, Roque de Barros. Op. cit., p.
60-61.
160
LARAIA, Roque de Barros. Op. cit., p. 62.
161
LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Apud ibidem.
162
LARAIA, Roque de Barros. Op. cit., p. 64.
82
Nesse sentido, o autor propõe duas ideias: a primeira, é que “a cultura é melhor vista
não como complexos de padrões concretos de comportamento, costumes, usos, tradições [...],
mas como um conjunto de mecanismos de controle [...] para governar o comportamento.”164
A segunda, é que o homem depende, desesperadamente e muito mais do que qualquer outro
animal, desses mecanismos de controle para ordenar seu comportamento. Geertz estima que
sem esses padrões culturais o comportamento humano seria ingovernável. Para ele, a cultura,
a totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um ornamento da existência humana,
mas condição essencial para ela – a principal base de sua especificidade.165
Desse modo, a cultura se produz, como ressalta Isaura Botelho, “através da interação
social dos indivíduos, que elaboram seus modos de pensar e sentir, constroem seus valores,
manejam suas identidades e diferenças e estabelecem suas rotinas.”166 Para a autora:
163
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, p. 15.
164
Ibidem, p. 56.
165
Idem ibidem.
166
BOTELHO, Isaura. Dimensões da cultura e políticas públicas. São Paulo em Perspectiva, v. 15, n. 2. São
Paulo: Abril/Junho 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
88392001000200011>. Acesso em:10 jan 2010.
167
Ibidem.
168
CHAUÍ, Marilena. Cultura política e política cultural. São Paulo: Estudos Avançados 9 (23), 1995, p. 81.
83
Pelo até aqui desenvolvido se percebe que o conceito de cultura não possui uma
dimensão exata, mas ela, como aponta Ruth Benedict, é como uma lente através da qual o
homem vê o mundo, e homens de culturas diferentes usam lentes diversas, portanto, têm
visões desencontradas das coisas.170
O homem, separado em grupos com sua linguagem própria, sua visão de mundo, seus
costumes e expectativas, é levado a ver o mundo através do seu modo de vida, considerando
sua cultura como a mais correta. Esta tendência etnocentrista172 tem acarretado diversos
conflitos sociais. É comum a crença do povo eleito, predestinado a ser superior, o que tem
169
PRECHT, Anna Rosa de Almeida. Ritos, rituais e cerimônias como instrumento de comunicação. 109f.
Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Escola de Comunicação Social, Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro, 2001, p. 31-32.
170
BENEDICTIS, Ruth Fulton. O crisântemo e a espada. São Paulo Perspectiva, 1972. Neste livro a autora
procura apresentar os “padrões” da cultura japonesa, revelando como de fato um japonês é. Ou seja, é uma
tentativa de mostrar os aspectos da peculiaridade ideológica e cultural do universo nipônico, tal como ele se
revela nas maneiras e nos costumes da vida diária.
171
LARAIA, Roque de Barros. Op. cit., p. 70.
172
“O etnocentrismo consiste em erigir, de maneira indevida, os valores próprios da sociedade a que se pertence
em valores universais. O etnocentrista é, por assim dizer, a caricatura natural do universalista: este, na sua
aspiração ao universal, parte de um aspecto particular que depois procura generalizar; e esse aspecto particular
deve necessariamente ser-lhe familiar, isto é, encontrar-se na sua própria cultura. A única diferença — mas é
evidente que ela é decisiva — é que o etnocentrista segue a via do menor esforço, e procede de maneira não
crítica: acredita que os seus valores são os valores, e isso basta-lhe.” TODOROV, Tzvetan. Nous et les autres.
La réflexion française sur la diversité humaine, Paris: Seuil, 1989, p. 19-20. Do ponto de vista intelectual,
etnocentrismo é a dificuldade de pensar a diferença, de ver o mundo com os olhos dos outros.
84
Neste sentido, o olhar para a cultura islâmica deve ser desviado do “diferente”,
desnudo do olhar ocidental de certo e errado, que acabam por confrontar a humanidade. Com
este olhar se aborda a cultura árabe pré e pós-islamismo, antecedendo a percepção de tempo e
espaço, pois, como afirma Guriévich: “El hombre no nace con ‘sentido del tiempo’, sus
nociones temporales y espaciales vienen siempre determinadas por la cultura a la que
pertenece.”173
O espaço é um conceito essencial para a história, ele não se constitui em uma categoria
dada e sim construída cultural e historicamente. Nesse sentido, o objetivo deste tópico é
procurar entender os valores e a representação do mundo na sociedade árabe, visto que, na
maior parte das vezes, o estudo do meio habitado por uma sociedade é cindido no tempo, “por
razões de comodidade na exploração dos fatos. Daí advém uma verdadeira fratura entre estas
duas noções”174
173
GURIÉVICH, Aron. Las categorias de La cultura medieval. Madrid: Taurus Humanidade, 1990, p. 52.
(Traduzido pela mestranda: “O homem não nasce com ‘sentido de tempo’, suas noções espaciais e temporais
vêm sempre determinadas pela cultura à qual pertence.”)
174
CONDOMINAS, Georges. Espaço social. In Enciclopédia Einaudi. Vol. 38 (sociedade-civilização) Lisboa:
Imprensa Nacional-casa da Moeda, p. 355.
175
GURIÉVICH, Aron. Op. cit.
176
CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia. Ensaios. São Paulo. EDUSC,
2005.
85
177
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
178
Ibidem.
179
SANTOS, Douglas. A reinvenção do espaço. Diálogos em torno da construção do significado de uma
categoria. São Paulo: UNESP, 2002.
180
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: nova cultura (coleção Os Pensadores), 1999, p. 73
181
Idem, ibidem.
182
Ibidem, p. 75-79.
86
serviria para nada e sequer para ser pensado.”183 Esse sociólogo assevera que
Ao analisar esta posição de Durkheim, Beatriz Bissio informa que o autor, em seus
estudos sobre a sociedade humana,
[...] assinala que essas divisões, essenciais para a compreensão do espaço, decorrem
‘do fato de valores afetivos diferentes terem sido atribuídos às regiões’ por homens
de uma mesma civilização ‘que possuem uma mesma representação do espaço’.
Porque, evidentemente, ‘é necessário que esses valores afetivos e as distinções que
deles dependem sejam igualmente comuns, o que implica, quase necessariamente,
que são de origem social.185
Seguindo sua análise, Durkheim afirma que é o caráter social que permite
compreender de onde vem a necessidade das categorias:
Diz-se de uma ideia que ela é necessária quando, por uma espécie de virtude interna,
impõe-se ao espírito sem ser acompanhada de nenhuma prova. [...] Essa eficácia é
postulada pelo apriorismo mas não explicada [...] Mas se elas (as categorias) têm a
origem que lhes atribuímos, seu ascendente nada mais tem de surpreendente. [...] Se
os homens não estivessem de acordo sobre essas ideias essenciais, se eles não
tivessem uma concepção homogênea do tempo, do espaço [...] todo acordo entre as
inteligências tornar-se-ia impossível e, por conseguinte, toda a vida em comum.186
183
DURKEHIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Edições Paulinas, 1989, p. 40.
184
Idem, ibidem.
185
BISSIO, Beatriz. Percepções do espaço no medievo islâmico (século XIV). O exemplo de Ibn Khaudun e
Ibn Battuta. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2008, p. 24.
186
Ibidem, p. 46.
87
O espaço humano caracteriza-se por sua heterogeneidade, ele é, nos termos utilizado
por Ciro Flamarion Cardoso, “anisótropo, já que a consciência humana estima diferentemente
as dimensões horizontais e verticais (aquelas bem abaixo destas).”189 Por outro lado,
Lefebvre informa que quando olhamos ao redor vemos o espaço, mas também o tempo que
está dentro dele e isto ocorre porque o tempo se inscreve no espaço.190 Esta afirmativa
acarreta uma dualidade que é bem explicada por Milton Santos, quando afirmar que “o
momento passado está morto como tempo, mas não como espaço.”191 Prosseguindo, informa
que isto é o que se depreende como atualidade do espaço. O conceito de espaço cultural
desenvolvido por este autor se coaduna com o pensamento de Lefebvre, ambos registram,
claro que cada um em sua linguagem, que o conceito de espaço cria elos entre o mental e o
cultural, o social e o histórico, num processo de descobertas, onde cada sociedade produz uma
187
LEFEBVRE, Henri La production de l’espace. Paris. Editions Anthropos, 1986, p. 103. (Original traduzido
pela mestranda: “aucun espace ne disparît, au cours de la croissance et du développement. Le mondial n’abolit
pás de local”)
188
BISSIO, Beatriz. Op. cit., p. 28.
189
CARDOSO, Ciro Flamarion. Op. cit., p. 39.
190
LEFEBVRE, Henri. Op. cit., p. 114. (Tradução da mestranda: ““[...] Le temps s’inscrit dans l’espace.”)
191
SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo: EDUSP, 2004, p. 14.
88
organização espacial que lhe é própria, com um sentido particular, criando a noção de
pertencimento que, por sua vez, conduz à ideia de limite, de território. Bissio, citando Paul
Zumthor, afirma que
Nesse sentido, o espaço social tem que ser visto para além do geográfico, com forma,
estrutura e função mutantes, um conjunto de sistemas de relações, porquanto, como
afirmavam Le Goff e Schmitt, “a história desenrola-se sempre nos lugares, no espaço e esse
espaço produz a história tanto quanto é modificado e construído por ela.193 Assim, ao trazer a
categoria espaço para dentro deste estudo, se pretende explicitar as relações espaciais
relacionadas ao mundo árabe, procurando entender de que forma esse espaço contribuiu para
moldar a história do mundo islâmico e foi moldado por ela.
Pode-se dizer que a construção dos abrigos permanentes instalou uma divisão entre o
público e o privado, haja vista que a casa, que representou uma proteção contra as intempéries
do meio ambiente natural, passou a ser o abrigo das pessoas, mas, ao mesmo tempo, ergueu
uma barreira entre elas.
Há, a partir daí, uma divisão entre a vida nômade e a vida sedentária,194 que passa a
contemplar a construção planejada das cidades, iniciando o processo de urbanização, o que
192
ZUMTHOR, Paul. La medida del mundo. Apud BISSIO, Beatriz, op. cit., p. 30.
193
LE GOFF, Jacques e SHMITT, Hean-Claude. Dicionário temático do ocidente medieval. Vol. 1. São Paulo:
EDUSC, 2002, p. 201.
194
Benevolo informa que as construções planejadas de abrigos permanentes ocorreram na era neolítica (também
chamada de Idade da Pedra, devido aos instrumentos feitos de pedra lascada e polida) É, segundo o autor, o
período da pré-história que tem seu início em 8000 a.C, fase em que surge a agricultura e a fixação resultante do
cultivo da terra e da domesticação de animais. As moradias fixas em aldeias (sedentarismo) são criadas próximas
a rios para aproveitamento da terra fértil e água para homens e animais. O trabalho passa a ser dividido entre
homens e mulheres, aos primeiros cabem a segurança, caça e pesca, às segundas o plantio, a colheita e a
educação dos infantes. Nesta fase surge, também, a troca de materiais, o comércio, sendo o dinheiro representado
por sementes que eram diferenciadas umas das outras, representando, cada uma, um valor diferente. Havia a
troca do excedente sempre que uma aldeia produzia mais do que o necessário. BENEVOLO, Leonardo. A
cidade na história da Europa. Lisboa: Editorial Presença, 1993.
89
Bissio, com base nos estudos de Ibn Khaldum, chama de “ponto de mutação cultural,”195
condição necessária, mas não preponderante, para o desenvolvimento da civilização.
A cidade tem sido estudada sob diferentes enfoques. Sua origem remonta, segundo
Benevolo, ao III milênio a.C., “na Mesopotâmia, no vale do Nilo, do Indo, e do rio Amarelo,
como lugar onde se concentram e se trocam os excedentes da agricultura em certas zonas
férteis.”196 Este autor ressalta que a cidade é uma criação histórica particular; nem sempre
existiu, mas começou em certo momento da evolução social, com diferenças nas atividades
cultural, econômica e política.
Embora alguns estudos apontem a associação entre o Islã e a cultura do deserto, Bissio
afirma que isso não corresponde ao real, pois, no caso do império árabe-muçulmano, o
florescimento da atividade cultural, que acompanhou a consolidação econômica, política e
religiosa, teve por cenário a cidade, já que o islamismo nasceu e se propagou no espaço de
duas cidades, Meca e Medina, estando vinculado ao processo de urbanização.197 E a cidade,
até os dias de hoje, é o marco vital por excelência dos muçulmanos.
Comungando dessa mesma posição, Garcin, citado por Bissio, afirma que desde os
primórdios do Islã,
o papel fundamental das cidades era oferecer um lugar de culto comunitário aos
muçulmanos e um espaço protegido às atividades de intercâmbio de bens e serviços.
Secundariamente, cabia a elas impor justiça e fiscalizar o espaço rural que
administravam e que gozava também de sua proteção militar.198
195
KHALDUM, Ibn. Introducción a la historia universal. Apud BISSIO, Beatriz. Op. cit., p. 33.
196
BENEVOLO, Leonardo. Op. cit., p. 20.
197
BISSIO, Beatriz. Op. cit.
198
GARCIN, Jean-claude (org.) États, societies et cultures du monde musulman médieval (X-XV siècle). Apud
ibidem, p. 35.
199
BENEVOLO, Leonardo. Op. cit.
90
mudança de poder dos omíadas para os abássidas, o que será abordado no tópico posterior,
podem ser citadas: Bagdá, Fez, Caixo, Somarra, Madinat AL-Zhara, entre outras.200
Com a urbanização cada vez mais crescente, muitas metrópoles do Islã medieval201
superaram, segundo Bissio, cem mil habitantes (Ex.: Córdoba, Cairo, Meca, Medina,
Damasco, Bagdá, Kufo, Basca, para citar algumas). Esta autora noticia que “nenhuma cidade
do ocidente cristão chegava perto do desenvolvimento urbano que vivia o mundo
muçulmano.”202 Indo além, com base no exposto por Christopher Dawson, declara:
Nesse efervescente espaço urbano convivia uma relação dinâmica, estabelecida entre
espaços civilizado e não civilizado, espaços público e privado, o espaço de poder e o espaço
religioso, aos quais pertencem a mesquita e a madrasah (instituição de ensino superior). A
mesquita possuía (e ainda possui) papel de destaque na vida social, ao redor dela, expõe
Mantran, encontram-se reunidos “grupos de homens das mais diversas camadas sociais e
profissionais que constituíram a cidade.”204
A respeito desse grupo de homens medievos, cumpre lembrar que eles estavam
inseridos em categorias: muçulmano, cristão, judeu, membro dessa vila ou daquela tribo,
camponês desse ou daquele vilarejo, estando os determinantes de sua individualidade ligados
aos laços estabelecidos com a família, a religião, o lugar de nascimento, o ofício exercido.
Assim, a cidade muçulmana gerou nova identidade, não tribal, como no passado pré-islâmico,
mas urbana e regional. Este espaço traz um sentido de pertença e uma unidade cultural e
religiosa.
200
BISSIO, Beatriz. Op. cit.
201
Beatriz Bissio ressalta que falar em Idade Média no Islã “é uma extensão abusiva de um ponto de vista
ocidental, pois não corresponde a nenhuma periodização decorrente da história da sociedade muçulmana,”
posição que é acompanhada por Le Goff e Schmitt. Contudo, a explicação para referida utilização, que também é
assumida neste estudo, é devida à adoção pela maioria dos pesquisadores, tornando voz corrente se falar em Islã
Medieval. BISSIO, Beatriz, Op. cit., p. 32.
202
Ibidem, p. 37.
203
Ibidem, p. 37-38.
204
MANTRAN, Robert. Expansão muçulmana: Séculos VII – XI. Tradução de Trude Von Laschan Solstein.
São Paulo: Pioneira, 1977, p. 218.
91
Mais tarde, a expansão da língua árabe foi devida, sobretudo, ao fato de ser a língua
da revelação, a única utilizável pelos muçulmanos em todas as suas atividades
religiosas. Com o aumento das conversões, o árabe passou a ser usado pelas
populações novas: iranianas, turcas, berberes, visigóticas. Por outra, se nos
primeiros tempos da conquista as línguas nativas continuaram sendo usadas
paralelamente ao árabe como línguas da administração, aos poucos a islamização e a
arabização provocaram a predominância e, em seguida, a utilização do árabe como
língua única, da Espanha ao Khorasan.206
205
HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. Tradução Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006, p. 31.
206
MANTAN, Robert. Op. cit., p. 244. Khorasan era uma região histórica que cobria partes dos atuais
Afeganistão, Irã, Turcomenistão, Usbequistão e Tajiquistão.
92
onde, depois da primeira invasão síria, o último dos omíadas veio reforçar as
posições árabes. Todas as inscrições monumentais, fosse qual fosse o seu destino,
eram escritas em árabe: decretos administrativos, inscrições de fundação, textos
religiosos. [...] Em fins do século VIII, o árabe se tornou verdadeiramente a língua
de civilização do mundo muçulmano.207
[...] a língua árabe contou com um certo número de apoios, representados por
civilizações pré-existentes que, como a grega e helenística, já haviam sido
assimiladas pelos povos do Oriente Próximo. Judeus, cristãos, ortodoxos, siriacos,
coptas haviam feito o revezamento dos gregos. No tempo dos abássidas, estes
cristãos e judeus traduziram obras gregas para o árabe. Este esforço permitiu dispor,
em língua árabe, dos elementos essenciais de todas as ciências exatas (Matemática,
Química, Medicina, Astronomia) conhecidas nesta época, bem como da Filosofia e
da Teologia.210
207
Ibidem, p. 244-245.
208
Os árabes conheceram o papel através de seu contato com os chineses na Ásia Central no findar do século
VIII.
209
ARMSTRONG. Karen. Op. cit., p. 100.
210
MANTRAN, Robert. Op. cit., p. 245-246.
211
MIGUEL, André. La geógraphie humanine du monde musulman jusu’au milieu du XI siècle. Apud BISSIO,
Beatriz. Op. cit., p. 56. Esta autora deixa registrado que nas alturas montanhosas nascem os mais importantes
rios do Islã: Nilo, Tigre, Eufrates, Goyhem, Sayhim e Indo.
93
a origem das populações primitivas da Arábia é algo que guarda muitos segredos,
não existem relatos ou estudos suficientes para dizer como ocorreu a ocupação ao
certo, contudo muitas das referências sobre os primeiros povos se encontram nas
sagradas escrituras da Torá (livro sagrado dos hebreus), o que talvez sejam apenas
lendas, mas é certo afirmar que essas populações são um ramo dos povos semíticos e
que segundo a “lenda” das escrituras descendem da linhagem de Abraão. Os povos
do norte (Maaditas ou Nizaritas) acreditavam ser descendentes diretos de Ismael, e
os do sul (Ieminitas) se titulam descendentes de Noé [...].212
Nos séculos VI-VII d.C., pouco antes do surgimento do Islã, a região chamada de
Arábia pelos romanos desde o início da era cristã e, posteriormente, pelos bizantinos
compunha-se de diversas regiões que, segundo critérios etno-linguísticos e relações de
parentesco, eram referidas, segundo Mantran, como os territórios dos Banu-Kalb, Banu-
Ghassan, Tanukh, Tayyi, Kinda, Himyar, entre outros. Assim, essa antiga “Arábia” dos
romanos e bizantinos, que não constituía uma unidade político-nacional ou socioeconômica
para suas próprias populações árabes, equivale à totalidade do que hoje conhecemos por
península arábica.213
A Península Arábica está localizada no Oriente Médio, limitada entre o Mar Vermelho
a oeste, o Oceano Índico ao sul e o Golfo Pérsico a leste, ligada ao continente pelo deserto,
que cobre a maior parte da Península. Não existem rios permanentes e o clima é
extremamente seco, apresentando oscilações térmicas de áreas e variações de temperatura. Ao
centro e a leste encontram-se numerosos oásis, que têm origem na umidade do subsolo,
originando poços de água em torno dos quais crescia uma vegetação, tornando possível a vida
212
SOARES, Isaac Erder Silva. História sociedade e cultura na arábia pré-islâmica. Fundação Educacional
de Divinópolis – FUNEDI – UEMG - Instituto Superior de Educação de Divinópolis – ISED História Medieval.
Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/28680883/SOCIEDADE-CULTURA-E-TRADICOES-NA-
ARABIA-PRE-ISLAMICA>. Acesso em: 12 jan 2010.
213
MANTRAN, Robert. Op. cit.
94
na região. O grande deserto ao norte da península acabou por impedir sua anexação aos
grandes impérios antigos. Mesopotâmicos, egípcios, persas, os reinos helenísticos ou mesmo
o império romano não foram capazes de colocar a região sob seu domínio.214 Mantran
sintetiza a região da seguinte forma:
É nesse universo que se insere a fase pré-islâmica, estando presente nessas regiões a
Arábia Meridional, constituída pelos Estados de Main, Sabá, Qataban, Hadramaute, sendo
Sabá a mais conhecida de todas, célebre por suas riquezas. A parte central e setentrional da
Arábia era dominada pelos beduínos nômades de origem semita, encontrando-se divididos em
numerosas tribos ou grupos, conhecidos como árabes do deserto, cuja difícil sobrevivência
levou-os ao cultivo de uma escassa agricultura praticada nos oásis, à criação de rebanhos, às
incursões e ao comércio de caravanas que souberam incrementar por toda a península. Os
oásis e as cidades serviam-lhes de escala e de entrepostos de mercadorias.216
Com relação ao deserto, cumpre lembrar que a Arábia é, por excelência, uma região
desértica, de seu território, quase toda a extensão é coberta por longos desertos, destacando-se
o mais arenoso do mundo, o Rub’ al Khali (o “quarto vazio”), que se localiza ao centro-sul da
península. Para se entender o que é a vida inserida nesse ambiente, é necessário descrevê-lo.
Em estreita síntese, desertos são severamente quentes ao dia e cruelmente frios durante a
noite, são compostos quase que completamente por areia, rochas e sal; sua flora, só se
desenvolve em regiões que conseguem armazenar água, são em sua maioria arbustos, e
gramíneas, espaças e poucas; a fauna é em geral composta por pequenos animais: serpentes,
214
HOURANI, Albert. Op. cit.
215
MANTRAN, Robert. Op. cit., p. 49-50
216
Ibidem.
95
roedores, lagartos entre outros, que no geral só se expõem à noite, a fim de preservar o liquido
em seus corpos.217
Segundo Soares, a Arábia pode ser dividida em três grandes regiões, descritas a seguir
e que podem ser visualizadas no mapa 1:
a) A “Arábia Felix”, localizada ao sul é a porção de maior destaque, conhecida como Iêmen.
Nela se concentrava a maior parte dos territórios férteis, motivo pelo qual se destacava como
local de produção agrícola e, via de consequência, era onde residiam tribos sedentárias, tanto
de pastoreio, agricultura e comércio, destacando também ali, uma importante rota de
comércio, com exportação dos produtos da época (mirra e olíbano) para várias nações
importantes do mundo antigo (Grécia, Egito, Roma e Pérsia).
b) A “Arábia Pétrea”, região escarpada com colinas rochosas situada ao norte da península. É
uma região muito seca e pobre, mas servia de ligação entre as caravanas do sul e as regiões do
mediterrâneo, por isto sempre foi uma região de disputa, pois quem a detivesse controlava as
caravanas e, consequentemente, os produtos que ali circulavam.
c) E, compreendendo a maior parte da região árida, a “Arábia Desértica” (ou Arábia central).
Esta parte é essencialmente desértica, compõe toda parte central da Arábia, pontuada por
alguns oásis, é a região que “divide” as Arábias: Pétrea e Felix. Era habitada, e pode-se dizer
que em certa medida ainda é, por homens nômades, viajantes do deserto, os beduínos, que
transpondo as areias do deserto iam de uma região a outra, cuidando de seus rebanhos
praticando o comércio e por vezes saqueando outras caravanas entre as diversas regiões da
Arábia.
217
KARAM, Christian Da Camino. A Arábia pré-islâmica e o Oriente Próximo nos séculos VI-VII d.C.: rumo a
uma nova concepção de mundo. in História Viva. Edição especial Grandes Religiões nº 4: Islamismo. São
Paulo: Duetto, 2007.
96
Apesar dos aspectos nebulosos que cercam a origem dos povos árabes, é certo que a
Arábia passou por vários momentos históricos, sendo palco do surgimento, apogeu e declínio
de diversos reinos e impérios, com seus povos e suas culturas diferenciadas, como os
descendentes dos Semitas, os Endomitas, que povoaram o norte em 1200 a.C., região ocupada
posteriormente pelos nabateus. Esta região, por ser um posto de passagem, onde inúmeras
caravanas se abrigavam e reabasteciam, era um importante ponto de comércio entre o oriente
e o ocidente, o que ocasionava a cobiça e a disputa, culminando no domínio de vários
impérios da antiguidade: Mesopotâmio, Egito, Pérsia, Helênico, Arsácida (Partos), Roma (sob
o império de Trajano no século II), Bizâncio e, novamente, a Pérsia (Sassânica), que inclusive
dominava todo o entorno do golfo pérsico e a região do Iêmen, ao sul da península. De forma
contrária, a região central não oferecia grandes atrativos aos impérios da antiguidade, o que se
deve às dificuldades naturais do deserto, além do fato de que seus habitantes pouco podiam
oferecer aos dominadores da época.218
Assim como o norte, a região sul da península (Iêmen) e as margens leste do Golfo
Pérsico ofereciam atrativos aos dominadores, primeiro por sua posição estratégica,
desembocando no Mar da Arábia e, consequentemente, no Oceano Índico, propiciando um
lucrativo comércio com o mundo indiano e com a China (e suas especiarias), sem contar a
rota alternativa oferecida para a Europa, passando pelo nordeste africano (Egito) e
desembocando no Mediterrâneo.
218
KARAM, Christian Da Camino. Op. cit.
97
No século V, a região da Arábia Pétrea estava sob o domínio dos bizantinos e a costa
do Golfo Pérsico e as regiões do Iêmen sob o controle dos sassânidas. Segundo Soares, “só a
região central da Arábia e as costas do Mar Vermelho viviam sob relativa liberdade.”219
Essas regiões são marcadas pela história de seu povo, que, vencendo as diversidades
naturais de um seco e arenoso deserto e alguns poucos oásis, viviam em comunidade familiar,
nômade por excelência, foram o elo entre os mercados da Índia, da China e do mundo persa e
mediterrâneo. Esses homens, chamados de beduínos (Al bedu), que significa habitantes das
terras abertas, acabaram por formar uma sociedade com múltiplas particularidades, onde a
tribo é a estrutura máxima, formada por indivíduos ligados por parentesco de sangue, tribo
que, por sua vez, é composta por clãs chefiados sempre pela figura masculina e que passa de
219
SOARES, Isaac Erder Silva. Op. cit., p. 8.
98
pai para filho (sempre o primogênito). Os casamentos se dão dentro da própria tribo, como
uma espécie de preservação desta, sendo a mulher preparada já na tenra idade para este
acontecimento. Como povos do deserto, os nômades são peritos em lê-lo, interpretando todos
os signos dessa natureza árida e mortal.
Um traço marcante desse povo é a oralidade, onde suas tradições individuais e da tribo
são passada de geração para geração, tendo papel de destaque a figura do poeta que ao narrar
estes feitos mesclava tradição, mitos, heroísmos e a essência da vida dos beduínos. Hourani
destaca que a linguagem da poesia desta época possuía “um crescente senso de identidade
cultural entre as tribos pastoris, demonstrada no surgimento de uma linguagem poética
comum a partir dos dialetos árabes.”220 Prosseguindo o autor afirma:
Essa cultura dos nômades seria característica em toda região da Arábia antes das
conquistas islâmicas, e posterior a ela se estenderia ao norte africano e por todo o mundo
árabe. Valendo lembrar que, ainda hoje, se tem a presença de grupos nômades, preservando
suas raízes culturais e modos de vida.
Além dos povos nômades, havia grupos que se estabeleciam nos oásis ou em regiões
estratégicas, fundando importantes cidades (ex. Meca, Ta’if e Medina). Meca era o centro
religioso da Arábia, local onde se encontrava a Caaba (Kaaba, que significa cubo)222 e um
próspero mercado, concentrando ricos mercadores que, em estreita simbiose com os beduínos
nômades, formavam várias rotas de comércio. Jomier informa que Meca:
Não era nem uma cidade de pastores nem um oásis de cultura, mas um centro de
comércio e de peregrinação, um verdadeiro centro árabe. Cada ano, no inverno, uma
caravana de cidadãos de Meca ia procurar em Aden, no Ocenao Índico, mercadorias
provenientes da Índia pelo mar (mercê dos ventos que sopravam regularmente na
220
HOURANI, Albert. Op. cit., p. 29
221
Ibidem, p. 29-30.
222
Jomier descreve a caaba da seguinte forma: é um edifício quase cúbico, com as seguintes dimensões: 15
metros de altura, 10 e 12 metros de comprimento e de largura. Uma pedra preta, objeto de veneração, estava e
está engastada no ângulo leste da Caaba, do lado de fora, à altura do peito de um hoje. Há muitas histórias sobre
a origem dela, mas apesar de tudo esta ainda permanece obscura [...].” JOMIER, Jacques. Islamismo: história e
doutrina. Tradução de Luiz João Baraúna. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 15.
99
A importância de Meca não parava de crescer. Para lá fluíam as mais diversas tribos
em busca da adoração da Pedra Negra e de seus deuses. Cada tribo trazia de seus lugares
remotos produtos típicos que comercializavam a partir das sagradas orações, realizadas por
meio de um ritual; porém, todas as transações comerciais eram controladas pela tribo dos
coraixitas, uma quase aristocracia árabe. Meca não dispunha de uma organização ou de
instituições políticas, nem possuía um forte sentimento nacional. O principal personagem da
mudança cultural, política e religiosa foi, inquestionavelmente, Maomé.224
Todavia, antes de Maomé ser inspirado por Alá a escrever e anunciar o Alcorão, a
palavra sagrada do Islã, a população árabe era politeísta, adorando várias divindades,
geralmente baseadas em elementos da natureza, prática realizada, sobretudo, pela população
da região sul. A população do norte e da região central tinha como crença os Dijjins, os quais,
segundo Soares, corresponderiam aos anjos descritos na cabala judaica e na própria bíblia
cristã, são criaturas de fogo que podem ser boas ou más, possuindo poderes místicos.225
Segundo este autor:
A religiosidade na Arábia era algo muito parecido com a própria estrutura política
árabe de então (pré-islâmica ou dos beduínos), fragmentada e sem nenhuma
centralidade política e administrativa, isso quer dizer que na maioria das vezes,
assim como na estrutura política, esses povos eram muito isolados, independentes,
fechados em suas próprias tribos (algumas fontes citam diferentes formas desse
“entender a religião”, onde esses “entendimentos” muitas das vezes divergiam entre
si). Só havia um ponto em comum ou em medida “centralizado” na religiosidade
pré-islâmica, e isso era a Kaaba na cidade de Meca. 226
223
Idem ibidem.
224
Ibidem.
225
SOARES, Isaac Erder Silva. Op. cit.
226
. Ibidem, p. 13
100
certa influência nos meios mais abertos e favorecer uma tendência ainda mal
definida em busca de um monoteísmo árabe.227
Essa fé monoteísta trouxe ao mundo Árabe uma profunda transformação pelas mãos
do profeta Maomé. Pertencente à família dos haxemitas, ramo pobre da poderosa tribo dos
coraixitas; o seu nascimento é estimado como ocorrido em torno do ano 570. Não existem
dados históricos probatórios da genealogia e juventude de Maomé, algumas informações
repousam nas hadith (narrativas que formam a tradição muçulmana). Seu nome completo era
Muhammad Bin Abdullah Bin Abdul Mutalib Bin Hachim Bin Abd Manaf Bin Kussay - e
passou à história como Muhammad (Maomé é a tradução para o português e será adotada
neste estudo).228 O mundo em que ele vivia encontra-se evidenciado no mapa abaixo:
Muito cedo Maomé ficou órfão, passando a viver no deserto sob os cuidados de seu
avô, onde aprendeu a conhecer a difícil vida dos beduínos e suas necessidades materiais e
227
MANTRAN, Robert. Op. cit., p. 54.
228
Ibidem.
101
espirituais. Com a morte de seu avô foi educado pelo seu tio, Abu Taleb. Na idade adulta
exerceu o comércio, empreendendo algumas viagens comerciais, inclusive à Síria. Essas
viagens ocasionaram contatos com povos monoteístas, principalmente judeus e cristãos, dos
quais sofreu profundas influências religiosas. Aos 25 anos casou-se com Khadija, uma viúva
rica para quem trabalhava como homem de confiança e que lhe deu seis filhos (somente 4
mulheres sobreviveram). Pelo ano de 610 fez um retiro de longa duração em uma gruta do
monte Hira, a alguns quilômetros de Meca, em pleno deserto. Em sonho (ou visão como
preferem alguns) viu um ser que o chamou de “Enviado de Deus” (Rasul Alá) e lhe deu a
ordem de recitar um texto, que constitui, atualmente, os vinte primeiros versículos do capítulo
96 do Alcorão. Durante um período de dois ou três anos não houve nenhum “sonho”, até que
no ano de 612 esses fenômenos retornaram. Essas visões ou revelações estão contidas no
Alcorão.229
Assim, Armstrong assevera que “a nova religião denominava-se Islã (islam: submeter-
se); o muçulmano (muslim) era um homem ou uma mulher que submeteu todo o seu ser a Alá
e ao pedido deste para que os seres humanos agissem uns em relação aos outros com justiça,
equidade e compaixão.”230
Após três anos, seguido por um pequeno grupo de fiéis convertidos à nova fé, Maomé
começou a falar para os coraixitas (qorayshitas) em frente à Caaba, pregando a destruição dos
ídolos e afirmando a existência de um só deus, Alá. As mudanças religiosas propostas pelo
profeta acabaram por entrar em choque com os líderes coraixitas, pois a implantação do
monoteísmo significaria a diminuição da peregrinação de fiéis a Meca, uma vez que Alá, não
tendo forma física, estaria em toda parte.
229
JOMIER, Jacques. Op. cit.
230
ARMSTRONG, Karen. O Islã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 44. [2]
102
e consideraram o tratado vergonhoso, mas Maomé estava decidido a conseguir a vitória por
meios pacíficos.”231
[...] os Crentes da tribo de qoraysh e os de Yatrib, bem como os que a ele se uniram
e lutaram a seu lado, constituem uma comunidade (umma) única, distinta dos demais
homens; são solidários uns dos outros. Os judeus formam uma única comunidade
com os Crentes. Aqueles dos judeus que nos seguirem têm o direito à nossa ajuda e
ao nosso apoio, enquanto não agirem incorretamente contra nós ou não prestarem
auxílio a nossos inimigos contra nós.233
Assim, o pacto regulava as relações entre os crentes e os diversos grupos, tendo uma
finalidade prática, mas, ao mesmo tempo, esboçava as linhas mestras da constituição
teocrática que, aos poucos, fez do Islã uma religião e um império. As velhas tradições tribais
foram abolidas, e o infringir do regulamento religioso era punido com a perda da proteção, até
mesmo de seu parente mais próximo. Desta forma, o Islã não era apenas uma religião, mas
uma fraternidade, que comportava algumas práticas pré-islâmicas, principalmente em matéria
de propriedade, casamento e relações entre os membros de uma mesma tribo. O papel do
profeta era de intermediário de Alá.
Contra essa nova forma religiosa levantaram-se os judeus que, segundo Mantran,
nutriam “a esperança secreta de levar Maomé ao judaísmo, da mesma forma que ele esperava
231
Ibidem, p. 64.
232
MANTRAN, Robert. Op. cit.
233
Ibidem, p. 65.
234
Idem ibidem.
103
convertê-las ao Islã.”235 Afora isso, os judeus perceberam que, gradativamente, a nova forma
religiosa apartava as concepções e os costumes judaicos, afastando-se a pregação dos seus
Livros Sagrados. A ruptura foi fatal, declarando Maomé que a verdadeira fé era a de Abraão,
devendo os fiéis efetuar suas orações voltados para Meca e não mais para Jerusalém. A partir
daí a ruptura foi total.
A morte do Profeta é cercada de lendas e mistérios. Acredita-se que ele tenha subido
aos céus numa nuvem a partir da Cúpula do Rochedo, em Jerusalém, no ano 632 d.C. No
ocidente são comuns as referências à sua morte, neste mesmo ano, por conta de um mal
súbito. Debates à parte, é certo que a comunidade islâmica após a morte do Profeta ficou
mergulhada em grave crise. Todos os atos, editos e decisões estratégicas foram tomados
unicamente por Maomé, não havia orientação clara relativa à sucessão em sua ausência. Um
Estado Teocrático, na falta do líder, sem um indicativo claro de forma sucessória, eis a raiz da
crise.
235
Ibidem, p. 66.
236
Ibidem.
237
ARMSTRONG, Karen. Op. cit., p. 68. [2].
104
Durante séculos, os árabes tinham obtido seus parcos recursos por meio dos ghazu,
mas o Islã interrompera essa atividade por não ser permitido às tribos da umma
atacar umas às outras. O que substituiria os ghazu, que haviam possibilitado aos
muçulmanos sobreviver precariamente? Umar percebeu que a umma precisava de
ordem. Os elementos marginais tinham que ser controlados, e as energias que
tinham sido anteriormente despendidas nos ataques e nas vendetas tinham então que
ser canalizadas para uma atividade comum. A resposta óbvia foi uma série de
ataques-surpresa contra as comunidades não muçulmanas dos países vizinhos238
Assim, sob a liderança de Umar, os árabes invadiram o Iraque, a Síria e o Egito com
vitória sobre esses povos. Derrotaram o exército persa no ano de 637, o que levou à queda da
capital da Pérsia, Sassânida, em Ctesifonte. Tentaram conquistar o império bizantino, não
lograram êxito, mas conseguiram conquistar Jerusalém no ano de 638 e, em 641, já tinham o
controle da Síria, da Palestina e do Egito, além de tomarem a costa da África até a Cirenaica.
Assim, um século após a morte do Profeta os árabes se viram com um império considerável,
conforme se vê do mapa abaixo:
238
Ibidem, p. 69.
105
Embora as leis islâmicas tentem dar uma interpretação religiosa a essas conquistas,
vários estudiosos informam que nada havia de religioso nessa campanha, conforme se pode
verificar do exposto por Armstrong:
Umar não acreditava ter um mandato divino para conquistar o mundo. O objetivo de
Umar e seus guerreiros era inteiramente pragmático: eles queriam a pilhagem e uma
atividade comum que preservasse a unidade da ummah. Por séculos, os árabes
haviam tentado atacar as terras mais ricas já colonizadas que existiam para além da
península; a diferença era que dessa vez eles tinham encontrado um vácuo de poder.
A Pérsia e o Bizâncio tinham estado durante décadas envolvidos numa longa e
debilitante série de guerras de um contra o outro. Ambos estavam exauridos. Na
Pérsia, havia brigas entre facções, e as inundações tinham destruído a agricultura do
país. A maioria das tropas sassânidas era de origem árabe e se passava para o lado
dos invasores durante a campanha. Nas províncias sírias e nas províncias bizantinas
do norte da África, a população local tinha sido alienada pela intolerância religiosa
da igreja ortodoxa grega, e não se dispunha a ajudá-los quando os árabes atacavam,
embora os muçulmanos não pudessem fazer nenhum avanço em terras bizantinas da
Anatólia.239
Esse período triunfante chegou ao final com a morte de Umar, em 644. Para substituí-
lo foi eleito Uthman ibn Affan que nos primeiros anos de seu reinado deu continuidade ao
prosperar da umma. Com ele houve novas conquistas: Chipre, norte da África, Armênia,
estendendo o domínio muçulmano até o rio Oxus no Irã, o Herat, no Afeganistão e o Sind, no
subcontinente indiano.240 Apesar disso, seu reinado enfrentou alguns problemas. Acusado de
nepotismo, pois havia afastado de Medina os muçulmanos, entregando os postos de maior
prestígio aos membros de sua família, os omíadas. O descontentamento acabou por gerar um
motim generalizado e o califa foi assassinado, sendo eleito para substituí-lo Ali ibn Abi Talib,
que enfrentou disputas pela não aceitação dos omíadas no poder, até que, também, foi
assassinado. Como visto, os primeiros tempos após a morte do Profeta foram de conquistas
para o Islã, mas, também, foram trágicos, pois “as numerosas divisões que tinham dilacerado
a ummah”241 evidenciava a necessidade de unidade, o que se tornava, mais do que nunca, um
valor crucial no Islã e para isto o conhecimento do Alcorão era fundamental.
O Alcorão não foi escrito em sua forma final durante a vida de Maomé. Quando ele
morreu tudo o que havia das revelações era um conjunto de fragmentos, escritos em pedra, em
ossos, em folhas de palmeiras. A redação do livro sagrado só foi terminada no reinado do
califa Omã (644-656 d.C.).
239
Ibidem, p. 72.
240
Ibidem.
241
Ibidem, p. 80.
106
O Cinco Pilares do Islã, segundo Roger Garaudy, podem ser assim resumidos:242
1) Profissão de Fé: “Existe um único Deus e Maomé é seu profeta”. Nenhuma outra divindade
se não Deus: Maomé, seu mensageiro. O universo inteiro, assim, ganha um sentido, o
absoluto revelando-se no relativo sob a forma de "sinais", de símbolos. A natureza e os
homens, do mesmo modo que a palavra do Alcorão, eram uma aparição, uma manifestação de
Deus.
2) Oração: a prece é e a participação consciente do homem no canto de louvor que liga todas
as criaturas ao seu criador. "Volte a si mesmo para encontrar toda a existência resumida em
você.” A prece integra o homem de fé a essa adoração universal, realizando-a, com o rosto
voltado para Meca, todos os muçulmanos do mundo e todas as mesquitas cujo nicho do
mirhab designa a direção da Caaba são assim integrados, por círculos concêntricos, a essa
vasta gravitação dos corações rumo ao seu centro. A ablução ritual, antes da prece, simboliza
o retorno no homem à pureza primitiva pela qual, rejeitando a si mesmo tudo o que pode
macular a imagem de Deus, ele se torna seu perfeito espelho.
3) Jejum durante o mês sagrado do Ramadã. O jejum, interrupção voluntária do ritmo vital,
afirmação da liberdade do homem em relação ao seu “eu” e aos seus desejos, e ao mesmo
tempo lembrança da presença em nós mesmos daquele que tem fome, como de um outro eu
mesmo que devo contribuir para tirar da miséria e da morte.
4) Zakat. Não é esmola, mas uma espécie de justiça interior institucionalizada, obrigatória,
que torna efetiva a solidariedade dos homens da fé, isto é, daqueles que sabem vencer em si
mesmos o egoísmo e a avareza. O zakat é a lembrança permanente de que toda riqueza, como
tudo, pertence a Deus, e que o indivíduo não pode dispor dela à vontade, que cada homem é
membro de uma comunidade.
242
GARAUDY, Roger. Promessas do Islã. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
107
muçulmanos, o Ramadã; dar esmola aos pobres e fazer uma peregrinação à cidade de Meca ao
menos uma vez na vida.
Essas leis são seguidas hoje por mais de 1,3 bilhão de muçulmanos, os adeptos do
Islamismo, a religião que mais cresce no mundo. No entanto, Maomé não pensava em fundar
uma nova crença. Ele se considerava um profeta na linha de Abraão, Moisés e Jesus, uma vez
que falava do mesmo Deus que os judeus e os cristãos. O arcanjo Gabriel que ele vê na
caverna é o mesmo anjo da Anunciação, que, na tradição cristã, contou a Maria que ela seria
mãe do filho de Deus.243
Todos os preceitos que devem ser seguidos encontram-se reunidos no Alcorão, livro
sagrado escrito a partir das sínteses dos ensinamentos de Maomé. Trata-se de um livro com
conotações nitidamente político-religiosas, assumindo o caráter de uma verdadeira
constituição para o povo islâmico. Os feitos de Maomé foram reunidos por seus familiares em
um livro denominado Suna, no qual se encontram as bases da tradição, formuladas a partir dos
exemplos dados por Maomé durante sua vida. Destaca-se, entre os preceitos básicos da Suna,
a Djihad. Por vezes mal compreendida, a Djihad ou Jihad, pode ser traduzida realmente como
“Guerra Santa”.
243
JOMIER, Jacques. Op. cit.
244
GARAUDY, Roger. Op. cit.
108
Ali destaca três elementos que explicariam o atual atraso das nações muçulmanas em
relação ao Ocidente. O primeiro elemento é a religião. A relação que o muçulmano tem para
com seu Deus (Alá) se rege, segundo a autora, pelo medo e sua concepção de divindade é
absoluta. Esse Deus exige uma submissão total, recompensando aqueles que cumprem suas
regras e, em contrapartida, punindo de forma cruel aqueles que as transgride. O segundo
elemento está ligado à questão da autoridade moral, cujo representante máximo é o profeta
Maomé, ser humano supremo que representa Deus na terra. Por este motivo, os seguidores do
islamismo devem conduzir suas vidas segundo seu exemplo. Se o Alcorão é a fala de Deus
aos homens, ditas através do Profeta, os hadiths registram os ditos, feitos e conselhos desse
enviado. Todavia, deve ser lembrado que esses preceitos serviam para regular a vida do
muçulmano no século VII, mas ainda hoje, o homem muçulmano do século XXI busca
respostas para as questões da vida cotidiana. Por fim, o terceiro elemento, está ligado à
questão sexual, cujos valores derivam de valores tribais árabes em vigor na época do Profeta,
que embora, como visto, abrisse precedentes na questão de gênero não pôs a termo a questão
de ser as mulheres propriedades de seus pais, irmãos, tios, avôs ou tutores.245
Por tudo até aqui descrito ficam evidenciadas algumas características ligadas à
identidade religiosa e cultural dos muçulmanos, dentre as quais se destaca a existência de uma
mentalidade hierárquica e autoritária, o que significa uma obediência aos preceitos
estabelecidos no Alcorão que não são passíveis de discussão, ao menos que o muçulmano
pague o preço do que Ali chama de “deserção”:
[...] qualquer muçulmano que levante questões críticas sobre o islã é imediatamente
tachado de “desertor”. Um muçulmano que defenda a exploração de outras fontes de
moralidade que não as oferecidas pelo profeta Maomé será ameaçado de morte, e
uma mulher que se retire da jaula das virgens será tachada de prostituta. [...]
qualquer investigação acerca da tríade islâmica por um muçulmano é considerada
um ato de absoluta traição à religião e ao profeta Maomé. Para um fiel, é
extremamente doloroso fazer questionamentos ou ouvir críticas de outros
muçulmanos246
245
ALI, Ayaan Hirsi. Op. cit.
246
Ibidem, p. 12. A autora apresenta alguns casos como o assassinato de Theo van Gogh em Amsterdã ou
mesmo o ocorrido na Dinamarca, quando o jornal Jyllands-Posten publicou as imagens do profeta feita por
cartunistas, casos que eclodiram na comunidade internacional.
109
estando a honra fortemente associada a ele, daí a importância de se pertencer à família, ao clã,
a tributo e, em última instância, à comunidade dos fiéis, a umma. “No contexto da
comunidade dos fiéis, o fato de alguém de declarar muçulmano basta para que os outros
muçulmanos se considerem mais próximos dele do que de qualquer não-muçulmano.”247
“Toda criança tem de aprender suas habilidades sociais numa cultura da vergonha,
centrada nos conceitos de honra e desgraça. Nesse modo de pensar não há espaço
para os valores da liberdade e da responsabilidade individual. A primeira regra
aprendida por uma criança é obedecer aos adultos da família. Os meninos, além
disso, aprendem desde cedo a não levar desaforo para casa. O comportamento
agressivo é funcional nessa cultura e tem como propósito evitar a humilhação
pública pelos outros.248
Não se pode deixar apartada da discussão sobre o Islã, a questão do Direito. A Lei
Islâmica nasceu com a profecia de Maomé e foi clarificada pelas escolas jurídicas e jamais
decaiu. O Direito islâmico, apesar do seu passado, tem se aproximado das necessidades dos
novos tempos. Tempos, no caso do Direito não divino, em que o paradigma do direito
subjetivo terá de vir a dar lugar, sob o impacto dos DH, dos direitos econômicos, culturais, a
um novo paradigma denominado de direito social.
Nesse contexto não se pode pensar em um Direito para o século XXI assentado em
esquemas básicos do século XIV. Ao comparar a tradição jurídica islâmica com a tradição
europeia e ocidental derivada do direito romano, Joseph Schadt, descreve as similitudes entre
ambas, evidenciando, também as principais diferenças: A Lei Islâmica representa um caso
extremo do que ele nomina de “lei dos juristas”; 249 haja vista que foi criada e desenvolvida
por especialistas privados. Nesse sentido, fácil perceber, segundo o autor, alguns paralelismos
entre as funções destes especialistas na lei islâmica e na romana, mas suas dissonâncias
também se fazem presentes.
247
Ibidem, p. 72.
248
Ibidem, p. 73
249
Schadt, Joseph. Introdução à Lei Islâmica. 1962, p. 209.
110
A lei islâmica constitui um fenômeno único de ciência legal, visto que o Estado não
preconiza, nem tem o papel de legislador, na realidade, inexiste a palavra Estado na
elaboração da lei divina. O legislador é Alá, e numa escala inferior seu Profeta Maomé, com a
Sunna e os Hadiths.
Talvez o cerne dessa questão esteja no traço marcante que diferencia o Ocidente do
Islã: a democracia. O Ocidente produziu sociedades democráticas, fundadas na separação
entre a política e a religião, em contraste ao Islã, que conserva a submissão do homem ao
Alcorão.
250
MAGNOLI, Demétrio e BARBOSA ,Elaine Senis. Por um diálogo entre o Ocidente e o Islã. Disponível
em: http://www.moderna.com.br/moderna/didaticos/em/geografia/projensinogeo/rumos/0028. Acesso em: 15
mai 2010.
111
O processo histórico do islamismo deixa evidenciado que mesmo antes das luzes
iluministas na Europa, a cultura islâmica vivenciou, com Avicena (980-1037) e Ibn Khaldun
(1332-1406), o que Demétrio e Elaine denominam de desenrolar “o fio de uma tradição
enraizada na cultura helenística,”251 Mas esse processo, segundo esses autores foi abortado
pela crise do califado abácida e pela invasão dos mongóis. “A grande perturbação dos
espíritos que fundou o Ocidente contemporâneo chegou ao Islã no final do século XIX,
quando uma geração de modernistas entregou-se à aventura de reformar as sociedades
muçulmanas.”252 O intelectual egípcio Muhammad Abduh (1849-1905) queria "liberar o
pensamento dos grilhões da imitação" e reconciliar a religião com a investigação científica. O
sírio Rashid Rida (1865-1935) propunha a distinção entre as doutrinas religiosas imutáveis e
as leis sociais, que deveriam se adaptar às circunstâncias.253
251
Ibidem.
252
Ibidem
253
Ibidem.
254
Ibidem.
112
Embora o mundo islâmico seja objeto de estudos acadêmicos há algum tempo, a partir
de 11 de setembro de 2001, quando dezenove muçulmanos praticaram um atentado terrorista
contra os EUA, esse interesse se intensificou, assim como as multidões dos países ocidentais
que acabaram por descobrir que esse universo era muito mais complexo do que à primeira
vista parecia. Ao fim do comunismo, os Estados Unidos e seus aliados tinham como certo que
a modernidade, a democracia e a economia de mercado são desejadas em todo o mundo. Mas
as escalas de valores não são iguais para todos e algumas delas não foram (e ainda não são)
bem-vindas para um número significativo de muçulmanos.
255
Ibidem.
113
A pesquisa deixou evidente que os muçulmanos são a maioria na Ásia, o que não
chega a ser surpresa, haja vista que neste continente se encontram as principais nações. No
topo da lista, revela a pesquisa, estão: Indonésia, com 202.867.000 (12,9% da população
muçulmana mundial) e Paquistão, com 174.082.000 (11,1%). Há, ainda, a Índia, com
160.945.000 de muçulmanos, número que representa 10,3% da população muçulmana
mundial e 13,4% da população indiana.257
O mundo não muçulmano, em sua grande maioria, considera que eles estão
circunscritos ao Oriente Médio, conceito que, para Mohammed Ayoob, professor de Relações
Internacionais e diretor do Programa de Estudos Muçulmanos da Universidade de Michigan, é
resultado da maior aproximação histórica do Ocidente com o Oriente Médio do que com o
Sudeste Asiático. Embora seja berço histórico do islã, o Oriente Médio (classificado pelo
instituto junto com o norte da África), fica em segundo lugar, com 315.322.000 muçulmanos,
ou seja, 20,1% desta população, em comparação com 61,9% (972.537.000) na Ásia.258
256
Pew Forum on Religion & Public Life. Mapping the Global Muslim Population. A Report on the Size and
Distribution of the World's Muslim Population. <http://pewforum.org/Mapping-the-Global-Muslim-
Population.aspx> Acesso em: 20 jan 2010.
257
Ibidem.
258
Ibidem.
114
Outro conceito que deve ser revisto é o chamado islamofobia que desde o atentado de
11 de setembro permeia a Europa e os Estados Unidos, países que temem um aumento
desproporcional da população muçulmana com a imigração, além do fato de possíveis outros
atentados. Nos EUA há estimativas que apontam até 7 milhões de muçulmanos no país. O
mapa do Pew Forum (aqui utilizado através da Folha Online) reduz este número para 2,4
milhões, porém, há estudos que apontam que este número está subestimado. Na Europa há
uma intensa imigração de países de maioria ou grande influência muçulmana, o que é
decorrente da busca de trabalho (geralmente braçais). Segundo o instituto, a população
muçulmana que se concentra no oeste do continente europeu é de imigrantes recentes ou
filhos de imigrantes da Turquia, África ou sul da Ásia. Já no leste europeu, onde está a
maioria da população muçulmana do continente, estes são cidadãos que estão há gerações no
país --caso da Rússia, Albânia, Kosovo e Bulgária.
Rússia, Alemanha e França, os três países europeus com maior população absoluta de
muçulmanos, têm menos de 1% cada da população muçulmana mundial.
É importante ressaltar, também, a grande divisão religiosa dentro do Islã: 83% são
sunitas, 16% são xiitas259 e 1% pertencem a outras correntes menores como as seitas.
Algumas delas são os Cariditas, Ibaditas, Drusos, Ismaelitas entre outras.260 A tabela abaixo
deixa em confronto as crenças dos sunitas e xiitas.
259
A religião islâmica possui várias vertentes, tais como fundamentalistas (são os mais conservadores e literais
seguidores da religião, chegando, por vezes, a se desenvolverem militarmente. Acreditam em seus dogmas como
verdades absolutas, indiscutível, sem abrir-se, portanto, à premissa do diálogo religioso. Por este motivo, o
fundamentalismo religioso se revela como fonte de intolerância, na qual o outro é analisado sob a ótica de
ameaça, símbolo do mal, que pode fragilizar as "muralhas de verdade" construídas pelo fundamentalista em seu
discurso) e os não-fundamentalistas, mas a principal divisão dentro da religião se encontra em relação aos Xiitas
e Sunitas. Xiitas e Sunitas são duas correntes da religião islâmica, se diferenciam em relação ao profeta Maomé e
sua descendência. Os Sunitas consideram os sucessores diretos do profeta Maomé, já os Xiitas não concordam,
para eles o sucessor deveria ser Ali, genro do profeta. Os Sunitas localizam-se, em grande maioria, em países
como Arábia Saudita, Egito e Indonésia, já os Xiitas predominam em países como Irã e Iraque. Embora no
Iraque 60% sejam Xiitas, são os Sunitas que compõem o governo e exercem perseguições e repressões à maioria.
História do Mundo. A diferença entre xiitas e sunitas. Disponível em:
<http://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/diferenca-entre-xiitas-e-sunitas.htm>. Acesso em:
20 jan 2010.
260
MASSOULIÉ, François. Os conflitos do oriente médio: século XX. São Paulo: Editora Ática, 1996.
116
Enzo Pace esclarece as conseqüências que podemos tirar, no plano social e político,
das diferentes concepções teológicas expressas por essas duas famílias do Islã, ditas nesta
ordem:261
261
PACE, Enzo. Op. cit., p.101.
262
ESPOSITO, Joh L. Political islam: Beyond the Green Menace. Originalmente publicado no jornal Current
History, January 1994. Disponível em: <http://www.uga.edu/islam/espo.html.>. Acesso em: 10 abr 2010.
117
qualidade de vida desses países mais pobres. O resultado positivo disso, o crescimento
vegetativo, refletiu incisivamente no crescimento do número de adeptos da religião.
263
Ibidem.
118
O Islã que cresce numericamente, não representa uma ameaça direta ao Ocidente
secular, mas sim uma diversidade de povos e culturas que, através de suas mais variadas
expressões, demonstram qual o nível de diálogo que têm com o Ocidente. Por isso Berger
aponta que a questão da ressurgência religiosa do Islã nas questões mundiais deve ser
analisada e entendida caso a caso, jamais em sua totalidade.265
Criado inicialmente para designar um movimento protestante nos Estados Unidos, nas
primeiras décadas do século XX, a denominação “fundamentalista” hoje tem um caráter
pejorativo e confuso na mídia e no senso comum. Segundo Pierucci, fundamentalista é todo
aquele religioso que ergue no centro de sua fé a literalidade de um texto sagrado, revelado por
um Deus Pessoal e único. Dessa forma, todo fundamentalista pauta a sua crença na narração
de um fato, numa escritura divina capaz de oferecer aos seus adeptos orientações seguras para
264
VICENZI, Roberta Aragoni Nogueira. Percepções sobre a islamização da política. Dissertação de Mestrado
em Ciência Política. São Paulo: USP, 2001.
265
BERGER, Peter. O dossel sagrado: Elementos para uma teoria da religião. São Paulo: Edições Paulinas,
1984.
119
São bem diversas entre si as ramificações das também diversas linhagens religiosas,
diversos os movimentos institucionalizados e as lideranças, diversos os seus centros
irradiadores, as organizações políticas e os partidos (legalizados ou ilegais) atuantes
nos diferentes países do mundo islâmico. O radicalismo islâmico, já aprendemos em
vinte anos de frequência ao noticiário internacional, além de múltiplo é polimorfo.267
Berger aponta que nessa relação entre a religião islâmica e o mundo ocidental
moderno existem outros movimentos islâmicos diferentes dos já conhecidos fundamentalistas.
266
PIERUCCI, Antônio Flávio. Secularização em Max Weber: da contemporânea serventia de voltarmos a
acessar aquele velho sentido. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 13, nº 37, 1998.
267
Ibidem, p. 183.
268
ARMSTRONG, Karen. Op. cit., [1]
120
Contudo, não se pode esquecer que a Indonésia é um país que apresenta o tipo de Islã
mais aberto ao contato com outras religiões e que o extremismo islâmico é bastante isolado
pelo aparato governamental. Assim, conforme suas afirmações a grande parte da população da
Indonésia convive bem melhor com os valores da modernidade numa espécie de
“aggionarmento Islâmico” apreciando um diálogo mais aceitável e pacífico entre os preceitos
islâmicos e os valores do mundo moderno. Como este autor mesmo salienta, quando as
circunstâncias políticas o permitem o diálogo entre o Islã e a Modernidade, sobretudo nas suas
divergências, aparece de forma positiva.
É difícil dizer com precisão, qual o nível de diálogo que as várias faces do mundo
islâmico tentam estabelecer com a cultura ocidental. Porém é certo afirmar que o termo
“globalização” já entrou para os dicionários árabes demonstrando certa disposição sobre o
assunto nas sociedades islâmicas.
269
BERGER, Peter. Op. cit.
121
[...] os direitos humanos são uma janela através da qual uma cultura determinada
concebe uma ordem humana justa para seus indivíduos, mas os que vivem naquela
cultura não enxergam a janela; para isso, precisam da ajuda de outra cultura, que,
por sua vez, enxerga através de outra janela. Eu creio que a paisagem humana vista
através de uma janela é, a um só tempo, semelhante e diferente da visão de outra. Se
for o caso, deveríamos estilhaçar a janela e transformar os diversos portais em uma
única abertura, com o consequente risco de colapso estrutural, ou deveríamos antes
ampliar os pontos de vista tanto quanto possível, e acima de tudo, tornar as pessoas
cientes de que existe, e deve existir, uma pluralidade de janelas? (RAIMON
PANIKKAR, 2004).
270
PANIKKAR, Raimon. Seria a noção de direitos humanos um conceito ocidental? In BALDI, César Augusto
(org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
271
SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma concepção multicultural dos direitos humanos. IN BALDI, César
Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 257.
122
direitos transindividuais, associados a questões que são atinentes não só aos indivíduos, mas à
globalidade da comunidade humana e, inclusive, transgeracional. Consagra o princípio da
fraternidade e engloba o direito ao meio ambiente equilibrado, uma saudável qualidade de
vida, progresso, paz, autodeterminação dos povos e outros direitos difusos. Esta leitura,
embora suscite críticas no campo temporal, 272 tem um substrato ocidental e eurocêntrico, pois
é decorrente dos lemas da Revolução Francesa em sua exata ordem de enunciação (liberdade,
igualdade e fraternidade).273
272
A geração ou dimensão dos DH, bem como as discussões doutrinarias que envolvem a questão, foram
discutidas no item 1.2 deste estudo.
273
É necessário que fique bem registrado que esta dissertação não nega a necessidade dos DH e longe de
propugnar a não aplicação do princípio da universalidade dos direitos humanos, este estudo visa a examinar de
que maneira seria possível alcançar o tão sonhado consenso legítimo e universal sobre normas de proteção à
pessoa humana, haja vista que o atual paradigma reflete um discurso liberal de matriz iluminista e racional, cuja
ideia basilar remonta à lógica do individualismo. O homem projetado nos tratados e declarações internacionais é
um ser atomizado e titular de direitos inatos. Assim sendo, o que se lança à discussão é que o homem não pode
ser visto sob a mesma ótica em todas as culturas e para isto basta cotejar as díspares concepções acerca da
origem dos DH nas diversas tradições culturais (sua gênese encontra-se em Deus, nos cosmos ou na natureza
humana?) para se questionar o atual paradigma. Por outro lado, a leitura, por mais desatenta que seja, deixa
evidenciada que as recentes manifestações nos conclaves internacionais de discussão dos DH, principalmente
pós Conferência de Viena, dão conta de que a universalidade dos direitos humanos é, cada vez mais, desafiada
pela diversidade cultural.
274
COSTA, Sérgio. Direitos humanos e anti-racismo no mundo pós-nacional. Novos Estudos CEBRAP. São
Paulo, vol. 68. Março/2004.
275
BALDI, César Augusto. Da diversidade de culturas à cultura da diversidade: desafios dos direitos humanos.
In MARTIINEZ, Alejandro Rosillo et al (Org.). Teoria crítica dos direitos humanos no século XXI. 1. ed.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008, p. 299.
123
276
Idem ibidem.
277
Neste sentido ver SAID, Edward. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 50-70.
278
Tanto é assim que, à guisa de exemplo, Olympe de Gouges (nascida em 1748, Marie Gouze), ao se lançar à
arena pública e tentar por em prática suas ideias de reivindicar os mesmos direitos e obrigações legados aos
homens, denunciando os abusos do Antigo Regime, assim como os do novo, lutando incessantemente pela
liberdade, pela justiça, pelos oprimidos, pelas mulheres, negros, mães solteiras, filhos fora do casamento,
prostitutas e desempregados, paga um alto preço pelo seu ideal libertário ao lançar a Declaração dos Direitos da
Cidadã, que exigia o direito feminino a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo suas
capacidades, foi presa, julgada sem direito a defesa e condenada à morte pelo Tribunal Revolucionário. Ao subir
ao cadafalso ainda lutaria por seu ideal de liberdade feminina ao afirmar, se "A mulher tem o direito de subir ao
cadafalso, ela deve ter igualmente o direito de subir à tribuna." PERROT, Michelle. Os Excluídos da história:
operários, mulheres e prisioneiros. Tradução de Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
124
próprios ideais libertários da Revolução. A ela era legado e exigido que permanecesse em seu
lugar, o que significava o ambiente doméstico e a vida privada.279 A doutrina dá conta que se
fazia presente o temor de que as mulheres invadissem o território masculino dos direitos, da
vida pública e da superioridade na hierarquia dos sexos. Numa época onde as leis eram
criadas por homens, as mulheres tomavam, cada vez mais, consciência de sua cidadania,
visualizando a possibilidade de romper as correntes repressivas que as deixavam em posição
de submissão e inferioridade. A mulher era, agora, civil, política e exigente do seu lugar na
sociedade, segundo os direitos que a Revolução lhe dera, embora essa liberdade fosse
limitada.280
Essa visão dos Direitos Humanos tem por base uma epistemologia que privilegia a
razão ocidental, se constituindo no que Boaventura Santos, Maria Paula Meneses e João
Arriscado chamam de não reconhecimento da existência “em pé de igualdade, de outros
saberes, e por isso se constitui, de fato, em hierarquia epistemológica, geradora de
marginalizações, silenciamentos, exclusões ou liquidações de outros conhecimentos.”281
Continuando, afirmam que “essa diferença epistemológica inclui outras diferenças – a
diferença capitalista, a diferença colonial, a diferença sexista – ainda que se não esgote
nelas.”282 Por esta exposição se deduz que tudo que não é passível de ser incluso no cânone
ocidental, seja ele democrático, científico, moderno ou jurídico, é excluído, ignorado,
silenciado, eliminado e condenado à não existência.
É este espectro que rondou o Oriente a partir do final do século XVIII, marcado pelo
“nós ocidentais”; “eles orientais”; a superioridade do Ocidente desenvolvido, racional e
humano em contraposição ao Oriente aberrante, inferior, subdesenvolvido, despótico; o
Ocidente dinâmico, diversificado, passível a autotransformação e autodefinição, contra um
Oriente estático, eterno, uniforme, incapaz de autorrepresentação e, também, um Oriente
temível, que deve ser controlado, seja de que forma for, através da guerra, invasão,
colonização ou pacificação.283 Nesse sentido, Walter Mignolo chama a atenção para o fato de
que “não pode haver um Oriente, como outro, sem o Ocidente como o mesmo: o
279
Deve ser lembrado que, ao longo da história, diversas mulheres, mesmo pagando alto preço por seus ideais,
sempre ergueram a bandeira da libertação contra a opressão. Ainda que representado por uma minoria, este
aspecto não pode ser desprezado.
280
PERROT, Michelle. Op. cit.
281
SANTOS, Boaventura de Souza; MENESES, Maria Paula G. e NUNES, João Arriscado. Introdução: para
ampliar o cânone da ciência: a diversidade epistemológica do mundo. Disponível em:
<http://www.ces.uc.pt/publicacoes/res/pdfs/IntrodBioPort.pdf>. Acesso em: 18 abr 2010.
282
Ibidem.
283
SAID, Edward. Op. cit.
125
284
MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e
pensamento liminar. Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 82.
285
PANIKKAR, Raimon. Religión, filosofía y cultura. Disponível em <http://them.polylog.org/1/fpr-
es.htm#s2>. Acesso em: 20 abr 2010.
286
FLEURI, Reinaldo Matias. Multiculturalismo e interculturalismo nos processos educacionais. In: CANDAU,
Vera (Org.). Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 69. Apesar
de o autor tratar de questões atinentes ao setor educacional, suas propostas e posições são plenamente aplicáveis
nas discussões que aqui se propõe.
287
Ibidem.
288
Ibidem.
126
reconhece que cada povo e cada grupo social desenvolve historicamente uma
identidade e uma cultura próprias. Considera que cada cultura é válida em si mesma,
na medida em que corresponde às necessidades e às opções de uma coletividade. Ao
enfatizar a historicidade e o relativismo inerentes à construção das identidades
culturais, o multiculturalismo permite pensar alternativas para as minorias.289
Isso posto, cumpre esclarecer que numa perspectiva interculturalista, a construção das
identidades políticas e associativistas deverá ser pensada a partir de uma epistemologia
dialógica, isto é, como fruto das experiências sociais e processos de trocas e interações
intersubjetivas entre atores ou grupos sociais. É através do encontro com o outro que se
constrói a identidade específica, individual ou coletiva. Porém, do ponto de vista da
construção de uma sociedade democrática, os processos de subjetivação coletiva realizam-se a
partir das interações e participações na esfera pública. Ou seja, há uma proposição de novas
estratégias de relação entre sujeitos e grupos diferentes, de forma a promover a construção de
identidades sociais e o reconhecimento das diferenças culturais.
289
Ibidem, p. 69.
290
Ibidem.
291
PANIKKAR, Raimon. In BALDI, Cesar Augusto. Op. cit., p. 88.
127
[...] Uma relação que se dá, não abstratamente, mas entre pessoas concretas. Entre
sujeitos que decidem construir contextos e processos de aproximação, de
conhecimento recíproco e de interação. Relações estas que produzem mudanças em
cada indivíduo, favorecendo a consciência de si e reforçando a própria identidade.
Sobretudo, promovem mudanças estruturais nas relações entre grupos. Estereótipos
e preconceitos - legitimadores de relações de sujeição ou de exclusão – são
questionados, e até mesmo superados, na medida em que sujeitos diferentes se
reconhecem a partir de seus contextos, de suas histórias e de suas opções.292
292
FLEURI, Reinaldo Matias. Op. cit., p. 79.
293
BIELEFELDT, Heiner. Op. cit., p. 143-144.
294
Os DH, reconhecidos no sistema internacional de proteção da pessoa humana, possuem as seguintes
pretensões: universalidade (basta ser humano para adquirir titularidade dos direitos humanos) e a indivisibilidade
(observância dos direitos políticos e civis que se complementam com os direitos sociais). Contudo, há discussão
em torno do universalismo frente ao relativismo cultural, que é tido como a vinculação dos direitos do sujeito a
cultura a qual está atrelado. Assim, valores tidos como basilares no Ocidente não terão a mesma consideração no
Oriente. Para o universalismo, a dignidade humana é algo inerente a todo ser humano, um valor que será igual no
Brasil ou em Israel, nas palavras da professora Flávia Piovesan: “mínimo ético irredutível”. PIOVESAN, Flavia.
Op. cit. [1] Para os relativistas, os universalistas, de certa forma, impõem sua cultura aos demais povos, que
possuem alguns valores repudiados pelos ocidentais. COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit.
295
BIELEFELDT, Heiner. Op. cit., p. 144.
128
Baldi afirma que essa não é a única leitura possível (que ele nomina narrativa) ao
apresentar doutrinadores não ocidentais que trabalham a noção de dignidade (karamah),
inviolabilidade (ismah), humanidade (âdammyyah) e as tensões entre distintas correntes
jurídicas islâmicas.300 Para esses autores haveria um Islã sem fronteiras e universal, e que
diante de uma realidade plural, multicultural, desigual, complexa, sem fronteiras e injusta não
pode ignorar a necessidade de:
296
SANTOS, Boaventura de Souza. In BALDI, César Augusto (Org.). Op. cit.
297
Segundo Perelman e Tyteca, são lugares comuns teóricos, premissas fundantes da argumentação que, sendo
auto-evidentes, permitem a produção de troca de argumentos e, portanto, o diálogo. Ao se transportar um topoi
de uma cultura para outra isto acaba por torná-los vulneráveis, visto que são recontextualizados e, como tal,
passam a ser vistos como meros argumentos e não mais como premissas evidentes. PERELMAN, Chaim,
OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumantação. A Nova Retórica. [Traité de L'argumentation: la
nouvelle rhetorique]. Tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 112-
113. Esta interligação valeu de Raimon Panikkar a titulação de “hermenêutica diatópica” (dia: através e topos:
lugares comuns teóricos). PANIKKAR, Raimon. In BALDI, Cesar Augusto. Op. cit.
298
BALDI, César Augusto. In MARTIINEZ, Alejandro Rosillo et al (Org.). Op. cit., p. 125. O Ocidente
apresenta uma ênfase na coletividade, em detrimento à individualidade, ao passo que o Islã traz um apego
demasiado aos deveres, implicando a desconsideração de direitos de populações marginalizadas, tais como as
mulheres.
299
SANTOS, Boaventura de Souza. In BALDI, César Augusto. Op. cit., p. 260.
300
BALDI, César Augusto. In MARTIINEZ, Alejandro Rosillo et al (Org.). Op. cit. Os autores citados são
Farish A. Noor, Asma Barlas, Farid Esack, dentre outros.
129
[...] forjar uma nova cadeia de equivalências que equacione os interesses universais
com os muçulmanos e os problemas universais com os muçulmanos. O coração
muçulmano não pode sangrar somente quando vê lágrimas e sofrimentos
muçulmanos. Se nós não formos movidos pelas condições ruins e o sofrimento dos
outros, se não pudermos sentir a dor e as ansiedades dos outros, se não pudermos
compartilhar a alegria e aspirações dos outros, então não podemos reivindicar os
mesmos direitos e atribuições para nós mesmos. E tampouco podemos dizer que a
nossa é uma abordagem universal do Islã. A mensagem universal do Islã não será –
e não se transformará – uma realidade enquanto não ultrapassar os domínios do Dar-
301
al Islam.
Essa leitura interna tem sido proferida por autores islâmicos que afirmam a relevância
e necessidade para os DH sob uma perspectiva local, nativa, diminuindo formas de
dependência intelectual. Para esses autores, por que utilizar Kant quando se deseja abordar
DH, liberdade de pensamento e racionalidade quando a cultura árabe tem seu próprio
representante que disse e escreveu as mesmas coisas centenas de anos antes de Kant, Ibn
Ruchd.302 Esta visão, para esses doutrinadores, é a melhor forma para o mundo islâmico
reavivar o debate sobre direitos humanos, individualismos, racionalidade, liberdade de
pensamento e expressão.
Ebrahim Moosa salienta que da “mesma forma que uma tradição não é estática, mas
constantemente se reinventa a si mesma, similarmente o equivalente cultural de direitos
humanos não é fixo.”303 O que leva a pensar que pode haver uma linguagem comum entre os
discursos de DH e o de direitos islâmicos, até porque as sociedades islâmicas também têm
passado por transformações sociológicas, econômicas e políticas e este, como afirma Baldi,
tem sido o intento das chamadas feministas islâmicas, aqui entendida a corrente de
301
BARLAS, Asma. Jihad = Holy war = Terrorism: the politics of conflation and denial. Disponível em:
<http://www.asmabarlas.com/PAPERS/2003_AJISS.PDF>. Acesso em: 25 mai 2010. O Dar al Islam (espaço do
mundo Islâmico) corresponderia ao mundo de paz, ao passo que o Dar al Harb (espaço de mundo não islâmico)
seria o mundo de permanente guerra.
302
Abu al-Walid Muhammad Ibn Ahmad Ibn Munhammad Ibn Ruchd , filósofo, médico e polímata muçulmano,
é conhecido na literatura europeia como Averróes, sendo considerado um dos maiores conhecedores e
comentaristas de Aristóteles. Aliás, o próprio Aristóteles foi redescoberto na Europa graças aos árabes e os
comentários de Averróes muito contribuíram para a recepção do pensamento aristotélico. “O pensamento de Ibn
Ruchd centralizou-se na conciliação entre a filosofia e a religião, e procurou explicar que a Shária islâmica tem
suas bases na razão e no direito para com os muçulmanos, ou seja, a Shária não vem abolir a razão e dela não se
diferencia, mas acrescenta e afirma. Com isso, Ibn Ruchd não faz discrepância entre a lei islâmica (Shária) e a
razão, qualquer suposta discrepância pode ser resolvida através da correta interpretação da lei em concordância
com a razão. O foco filosófico de Ibn Ruchd consiste em afirmar que o mundo criado não é estático, mas se
renova; em incentivar as mulheres a assumirem seu papel no mundo como os homens e garantir que o bem de
todos se dá no equilíbrio ético das atitudes virtuosas. A religião, portanto, não pode se resumir a uma mera
doutrina prática, mas se legitima na teoria de seus ensinamentos.” ARABESQ. Ibn Ruchd (Averróes). o
filósofo árabe herói da renascença européia. Disponível em: <http://www.arabesq.com.br/
Principal/Cultura/CultureArticle/tabid/58/ArticleID/1143/Default.aspx>. Acesso em: 25 mai 2010.
303
MOOSA, Ebrahim. The dilemma of islamic rights schemes. Disponível em:
<http://www.jhfc.duke.edu/wko/dossiers/1.1/MoosaE.pdf>. Acesso em: 25 mai 2010. Texto original traduzido
pela mestranda: “just as tradition is not static but constantly re-invents itself, similarly the cultural equivalent for
human rights is not fixed.”
130
pensamento que defende um discurso de igualdade de gênero e justiça social que deriva seu
entendimento e mandato do Alcorão e procura a prática de direitos e justiça para todos os
seres humanos na totalidade de sua existência, num continum de público-privado.
Continuando, o autor afirma:
[...] os intentos desenvolvidos por Asma Barlas, Amina Wadud e Heba Ezzat (Egito)
vêm desafiando, mais que o “mainstream” islâmico interno, a própria epistemologia
em que se baseiam os desenvolvimentos do feminismo no Ocidente, seja porque: a)
veiculando o pensamento em termos religiosos, a partir de uma releitura do Corão
em termos não-patriarcais e em absoluta ênfase de igualdade e co-regência do
universo, colocam em xeque a primazia da veiculação do discursos de direitos
humanos em termos “seculares” – e a própria noção destes direitos se constitui como
contraposto à dominação religiosa, então vigente na Europa, e, neste ponto, as
dicotomias “secular” e “teológico”, “leste” e “oeste” ou “Islã” e “democracia”
ignoram o complexo, envolvente diálogo a respeito de igualdade de gênero em uma
vigorosa sociedade civil; b) ao mesmo tempo, descredenciam o “status” privilegiado
da ciência como forma de saber. Por fim o próprio conceito, formulado pela última
autora, de um “secularismo islamicamente democrático” é um sério repensar das
noções de “umma” (comunidade islâmica), “civilidade”, política, estado e
secularismo, de forma a abraçar uma “pacífica luta por uma ‘civil jihad’ contra a
pobreza e a discriminação, desenvolvendo, assim, um entendimento de uma política
da presença, deliberação, comunicação e negociação na vida diária, bem como de
um ativo papel das mulheres e das minorias na política local, colocando em contato
os debates sobre Islã democrático e progressista e aqueles outros sobre democracia
radical no mundo ocidental.304
entre o véu haïk (tradicional), o niqab (fundamentalista: negro e que cobre todo o
rosto) e o hiyab (versão islâmica moderna que, diferentemente dos demais, cobre a
cabeça, mas deixa o rosto descoberto, de forma que o véu perde sua missão
tradicional de fazer invisível e anônima a mulher no espaço público), há toda uma
linguagem sociológica que expressa a diferença entre a nova geração e a precedente,
entre a que estuda e sai e a reclusa, entre a que se afirma e a que se submete.305
304
BALDI, César Augusto. In MARTIINEZ, Alejandro Rosillo et al (Org.). Op. cit., p. 128.
305
MARTÍN-MUÑOZ, Gema. La percepción occidental de los conflictos en el mundo musulmán: cultura
frente a política. Direito e Democracia. Vol. 5, nº 1, 2004, p. 53-54.
131
Nesse sentido, Fatima Mernissi alerta para o fato de que se oculta a existência de um
viés etnocêntrico, inclusive no que diz respeito à visão das feministas:
[...] que algumas feministas ocidentais vejam as mulheres árabes como escravas
servis e obedientes, incapazes de tomar consciência ou de desenvolver idéias
revolucionárias próprias que não sigam o ditado das mulheres mais libertadas do
mundo (de Nova York, Paris e Londres), à primeira vista parece mais difícil de
entender que uma postura similar nos patriarcas árabes. Mas se alguém se pergunta
seriamente (como eu já fiz muitas vezes) porque uma feminista americana ou
francesa crê que não estou tão preparada como ela para reconhecer os esquemas de
degradação patriarcal, se descobre que isto a coloca numa posição de poder: ela é a
líder e eu a seguidora. Ela, que quer mudar o sistema para que a situação da mulher
seja mais igualitária, apesar disto (no fundo, em decorrência de seu legado
ideológico subliminar) retém o instinto distorcido, racista e imperialista dos homens
ocidentais, inclusive ante uma mulher árabe com qualificações, conhecimentos e
experiências similares à sua, ela reproduz, inconscientemente, os esquemas coloniais
306
de supremacia.
A mulher islâmica, assim como a ocidental, são frutos de suas culturas e, em cada uma
delas, há uma história de luta pela determinação de suas metas e valores, o que gera uma
pluralidade de tradições. Desta forma, por trás de cada face há um complexo horizonte de
códigos simbólicos, de formas de vida, de sistema de crença e neles, há sempre um conflito de
tradições que, por sua vez, deve ser lido, conforme expressa Fornet-Betancourt: “como a
história que evidencia que em cada cultura há possibilidades truncadas, abortadas, por ela
mesma; e que, consequentemente, cada cultura pode também ser estabilizada de outro modo
como hoje a vemos.”307
Continuando, o autor informa que essa via alternativa à cultura estabilizada pode ser
alcançada, “seja recuperando a memória das tradições truncadas ou oprimidas na história de
seu universo cultural, seja recorrendo à interação com tradições de outras culturas, ou
inventando perspectivas novas a partir do horizonte das anteriores,”308 o que é designado por
ele como “desobediência intercultural” e que passa pelo reconhecimento de que “identidades
culturais são processos conflitivos que devem ser discernidos, e não ídolos a conservar ou
monumentos de um patrimônio nacional intocável”.309
306
MERNISSI, Fatima. Sobre la autonomía del feminismo árabe. Web Islam, nº 138, 14 set. 2001. Disponível
em < http://www.webislam.com/?idt=1923>. Acesso em: 26 mai 2010.
307
FORNET-BETANCOURT, Raúl. Transformación intercultural de la filosia: ejercicios teóricos y practicos
de filosofia intercultural, desde latinoamerica en el contexto de la globalización. Bilbau: Desclée de Brouwer,
2001, p. 185.
308
Ibidem, p. 187.
309
Ibidem, p. 188.
132
Nos últimos tempos, a mídia falada e escrita do mundo tem sido pródiga ao noticiar
alguns fatos, como o ocorrido em Bangladesh, onde mulheres foram atacadas com jatos de
ácido no rosto, geralmente garotas pobres que recusaram os casamentos arranjados, sem
contar as investidas sexuais ou mesmo a clausura imposta por pais ou maridos; ou no
310
MIGNOLO, Walter D. The many faces of cosmo-polis: border thinking and critical cosmopolitan.
Disponível em: <http://www.duke.edu/~wmignolo/InteractiveCV/Publications/ManyFacesCosmo.pdf>.
Acesso em: 28 mai 2010.
311
BALDI, César Augusto. In MARTIINEZ, Alejandro Rosillo et al (Org.). Op. cit., p. 130.
312
Há uma tendência de se pensar nesses termos como sinônimos, contudo, Islamismo é a religião, a seita;
muçulmano são seus seguidores e árabe é o natural ou habitante da Arábia, península do Sul da Ásia entre o Mar
Vermelho e o Golfo Pérsico, e que inclui a região desértica e diversos Estados. ARMSTRONG, Karen. Op. cit.
Assim, ao contrário do que diz o senso comum, Islã não é sinônimo de Arábia, nem todo árabe é islâmico,
embora o árabe seja o idioma de seu livro sagrado, o Alcorão. Os árabes são numericamente minoritários no
mundo islâmico, sendo que Irã, Paquistão, Indonésia e Malásia são os quatro maiores países islâmicos não-
árabes. Web Islam. Comunidad Virtual. Que es el Sufismo. Disponível em:
<http://www.webislam.com/?idt=4992>. Acesso em: 10 mai 2010.
133
Afeganistão, onde mulheres que se atrevem a abandonar o traje formal (burca, veste longa
com uma carapuça que esconde a cabeça e com uma tela que possibilita a visão) são
apedrejadas em público; no Irã, onde elas são obrigadas a usar o véu para esconder os cabelos,
são repudiadas por seus maridos e seus testemunhos valem metade do de um homem; na
Arábia Saudita, onde elas não podem dirigir ou sentar sozinhas em um restaurante, devendo
estar acompanhadas pelos pais, maridos, irmãos ou filhos e as saídas são sempre de acordo
com a vontade deles; os ocorridos nos países africanos e no Oriente Médio, ou mesmo na
Indonésia, Malásia, Paquistão e Índia, locais que praticam a mutilação genital em jovens e
mulheres adultas.
313
O desenvolvimento, nesta dissertação, da mulher através dos tempos teve por aporte os estudos de: SOUZA,
Itamar. A mulher na idade média: a metamorfose de um status. Revista da FARN. Vol. 3, nº 1/2, jul.
2003/jun. 2004. OPTIZ, Claudia. O quotidiano da mulher no final da idade média (1225 - 1500). In KLAPISCH
- ZUBER, Christiane. Histórias das mulheres no ocidente. Porto: Afrontamento. Vol. 2, 1993, KHEL, Maria
Rita. Deslocamento do feminino. Rio de Janeiro: Imago, 2008. CARVALHO, Marília Pinto de; PINTO, Regina
Pahim. Mulheres e Desigualdade de Gênero. Fundação Carlos Chagas. São Paulo: Contexto, 2008. DEL
PRIORE, Mary. História das mulheres: as vozes do silêncio. In FREITAS, Marcos Cezar (Org.). Historiografia
brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998 e PERROT, Michelle; DUBY, Georges. (Org.). História
das mulheres no ocidente. Tradução Maria Helena C. Coelho e Alberto Couto. Porto: Edições Afrontamento,
1990. Na questão da mulher islâmica, se utilizou o estudo de MOHAMMED, Sherif Abdel Azeem. A Mulher
no Islam: mito e realidade. Disponível em: <http://www.islamismo.org/mito_e_realidade.htm>. Acesso em: 28
mai 2010. PACE ENZO, Op. cit., p. 111-115 e 148-154. TOURAINE, Alain. Op cit.. A respeito da mulher no
judaísmo, utilizou-se KOCHMANN, Sandra. O lugar da mulher no judaísmo. In: Revista de Estudos de
Religião, nº 2, ISSN 1677-1222, 2005. Disponível em: <http://www.pucsp.br/rever/rv2 2005/p_kochmann.pdf>.
Acesso em 29 mai 2010.
134
314
A bibliografia consultada aponta que em diversas sociedades do mundo antigo a mulher ocupou papel de
destaque, como Benerice, que reinou em Cirene em 210 a.C; Safo que foi cunhada em moedas no século III d.D.;
Ester, que governou a Pérsia em 460 a.C.; Vasti, que reinou da Índia à Etiópia em 480 a.C.; Hipácia, que
completou sua educação na Academia Neoplatônica com Plutarco, sem esquecer as diversas rainhas egípcias,
Cleópatra, Nefertari, Nerfertite e Hatshepsut.
135
como por exemplo: "E dissemos ó! Adão, mora tu e tua zauja (mistura companheira)
no Paraíso e comam dele prosperamente onde lhes aprouver, e não vos aproximeis
desta árvore e então sereis dos injustos." (Alcorão 2:35). Então, Satanás sussurrou
para eles, a fim de revelar a ambos o que lhes havia sido ocultado de SAUÉTIHIMÉ
(suas ambas e outras igualmente presentes, invisíveis, não bons atributos) e, então,
disse: "Não vos proibiu a ambos, Vosso Senhor, desta árvore senão de seres ambos
convertidos em anjos ou de serem ambos dentre os imortais". E jurou-lhes que era
um conselheiro sincero. Assim, a ambos, DALLÉHUMÉ (indicou a ambos em
confiança, porém, com enganos, arrancando-os e enviando-os para baixo, no que
intencionou). Quando ambos provaram da árvore, divisaram ambos suas
SAUÉTIHIMÉ e começaram a cobrir-se com folhas do paraíso. E seu Senhor
chamou a ambos: "Eu não vos havia proibido daquela árvore e dito a ambos que
Satanás é vosso inimigo declarado?" Eles disseram: "Senhor Nosso. Nós
injustiçamos a nós mesmos e se Tu não nos perdoares, Te apiedares de nós,
certamente estaremos dentre os perdedores." (7:20:23). Um exame mais cuidadoso
dos dois relatos sobre a Criação, revela algumas diferenças essenciais. O Alcorão, ao
contrário da Bíblia, coloca a culpa igualmente em Adão e Eva pelo erro de ambos.
Não há no Alcorão a mais leve sugestão de que Eva tentou Adão, ou mesmo que ela
tenha comido do fruto antes dele. Eva, no Alcorão, não é insinuante, sedutora ou
vencida. Além do mais, Eva não pode ser culpada pelas dores do parto. Deus, de
acordo com o Alcorão, não pune ninguém pelas faltas do outro. Ambos, Adão e Eva,
cometeram um pecado e então pediram a Deus o perdão, e Ele os perdoou.315
A imagem bíblica de Eva (criada da costela de Adão) como uma mulher sedutora,
acarretou impactos negativos para a mulher sob o signo da tradição judaico-cristã, pois a
crença que se instaurou é de que todas as mulheres haviam herdado de sua mãe (a bíblica
Eva), tanto a sua culpa como a sua astúcia. Consequentemente, menstruação, gravidez e parto
passaram a ser consideradas punições justas para uma culpa eterna do amaldiçoado sexo
feminino e o legado sobre as mulheres é de que elas não são dignas de confiança, sendo
moralmente inferiores e más. Isto fica bem evidenciado no Velho Testamento:
Achei coisa mais amarga do que a morte: a mulher cujo coração são redes e laços e
cujas mãos são grilhões; quem for bom diante de Deus fugirá dela, mas o pecador
virá a ser seu prisioneiro. Eis o que achei, diz o Pregador, conferindo uma coisa com
outra, para a respeito delas formar o meu juízo, juízo que ainda procuro e não o
achei: entre mil homens achei um como esperava, mas entre tantas mulheres não
achei nem sequer uma. Eis o que tão somente achei: que Deus fez o homem reto,
mas ele se meteu em muitas astúcias.316
315
MOHAMMED, Sherif Abdel Azeem. Op. cit.
316
Eclesiastes 7:26-29.
317
Eclesiastes 25:19,24.
136
318
SOUZA, Itamar. Op cit., p. 159. O autor ressalva que o período é predominantemente masculino, mas não
exclusivamente, pois várias foram as mulheres que exerceram importantes papéis fora do lar, embora a regra
dominante na Idade Média, era a mulher ser uma criatura submissa e dependente do pai e do marido, e
juridicamente tutelada.
319
OPTIZ, Claudia. Op. cit., p. 356.
320
KHEL, Maria Rita. Op. cit., p. 56.
137
A Declaração dos Direitos Humanos afirma que os seres humanos nascem análogos
em direitos e igualdade, mas, de fato, não é assim que ela se impõe. Mesmo nos países
desenvolvidos, defensores dos DH, e que apresentam conquistas nos campos político,
econômico e social, eles são violados. Este fato foi reconhecido na IV Conferência da Mulher,
ocasião em que foram apresentados dados de mulheres vítimas de preconceitos, crimes,
espoliação dos direitos enquanto pessoa, golpeadas, mutiladas, violadas, sequestradas,
aterrorizadas, enfim, atacadas em sua dignidade ou mortas.
Por ocasião da IV Conferência Mundial sobre a Mulher em Pequim, que tinha como
ponto central a violência contra as mulheres, televisões de todo mundo exibiram imagens de
agressões contra a mulher, a grande maioria das ocorrências era de países islâmicos ou
africanos. Esse fato valeu de Grossi a observação de que, naquela ocasião, não fora mostrada
a violência que ocorre no Ocidente, “como se ela não existisse ou fosse de menor grau.”322
321
Ver: <http://www.un.org/> e <http://www.bancomundial.org/>.
322
GROSSI, Miriam Pillar. Direitos humanos, feminismo e lutas contra a impunidade. Antropologia em
Primeira Mão. Florianópolis; UFSC, 1999, p. 2.
138
A autora chama a atenção que o mundo ocidental, com todos os seus pressupostos de
igualdade, liberdade e democracia, ainda não resolveu suas mazelas sociais. A corrupção,
tráfico, violência e opressão feminina não são privilégios das mulheres dos países pobres ou
das mulheres muçulmanas, tão evidenciadas pela mídia, a violação dos Direitos Humanos está
em todos os lugares. A autora ressalta que o horror se estampa com a extirpação do clitóris
das mulheres muçulmanas, no entanto, há outras formas de violência ou mortes igualmente
brutais contra as mulheres ocidentais, mas elas não chocam porque ocorrem em nosso
quintal.323 Dados da Anistia Internacional demonstram que “a violência contra as mulheres é,
provavelmente, a violação dos direitos humanos mais comum e a que afeta o maior número de
pessoas.”324
A Declaração dos Direitos Humanos tem sido o baluarte maior para a efetivação dos
princípios universais do direito à vida com dignidade e liberdade. Todavia, uma análise, por
mais superficial que seja, evidencia que essas ideias universalistas esbarram e contrastam com
condutas de culturas específicas, diferenciadas. É o caso das comunidades muçulmanas que
legitimam e praticam valores divergentes dos levados a efeito no Ocidente. Assim, a grande
questão, como expõe Rolim, é “como afirmar os direitos humanos sem violar o direito a
diferença, como sustentar o universalismo sem desconhecer o direito à pluralidade dos
próprios valores?”325 Boaventura de Souza Santos afirma que "na forma como são agora
predominantemente entendidos, os direitos humanos são uma espécie de esperanto que
dificilmente se poderá tomar na linguagem quotidiana da dignidade humana nas diferentes
regiões do globo,"326 até porque é sabido que o relativismo levado a extremo encerra suas
próprias contradições.
323
Peirano afirma que a Antropologia, como ciência artesiana, interpretativa e microscópica, que liga o particular
mais minúsculo ao universal mais abrangente, tem procurado demonstrar o porquê do espanto frente a outras
culturas e do fato do Ocidente se chocar com o tratamento dispensado a outras mulheres nos recônditos cantos
do planeta. Neste sentido, segundo o autor, ao olhar o outro, ele nos parece tão terrível, tão bárbaro e violento
que o repudiamos e esquecemos que muitas das violências também acontecem na sociedade ocidental
desenvolvida. Assim, a proposta da Antropologia é a “desconstrução das categorias abstratas da nossa própria
sociedade – a começar pelo que chamamos, ‘religião’, ‘filosofia’, ‘política, senso comum.” PEIRANO, Mariza
G.S. Uma antropologia no plural: três experiências contemporâneas. Brasília: UNB, 1992, p. 30. Neste grupo
se incluiria a condição da mulher, as questões relativas à igualdade e à violência.
324
Anistia Internacional. Campanha não mais violência contra a mulher. Disponível em:
<http://br.amnesty.org/?q=svaw_nao_mais_violencia_contra_as_mulheres>. Acesso em: 05 abr 2010.
325
ROLIM, Marcos. Direitos humanos: universalismo e utopia. In DORA, Denise D. Feminino e masculino:
igualdade e diferença na justiça. Porto Alegre: Sulina, 1997, p. 44.
326
SANTOS. Boaventura de Souza. A globalização e as ciências sociais (Org.). São Paulo: Cortez, 2002, p. 14.
139
dessa organização aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde os Estados
Membros reafirmaram a fé nos Direitos Humanos fundamentais, na dignidade, no valor da
pessoa humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher.
1) Carta das Nações Unidas (1945). Nela se estabelece a cooperação internacional para a
solução de problemas sociais, econômicos, culturais ou de caráter humanitário. Sua principal
327
Presidência da República: Observatório Brasil da Igualdade de Gênero. Principais documentos
internacionais para a promoção dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero. Disponível em:
http://www.observatoriodegenero.gov.br/eixo/internacional/documentos-internacionais>. Acesso em: 28 mai
2010.
328
Ibidem.
329
Os documentos referidos podem ser encontrados em: <http://www.observatoriodegenero.gov.br/eixo/
internacional/documentos-internacionais>. Em relação às Convenções da OIT verificar:
<http://www.mte.gov.br/seg_sau/pub_cne_convencoes_oit.pdf>. Acesso em: 28 mai 2010.
140
2) Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Além de instaurar o paradigma para a
solução de conflitos individuais, internos e internacionais, seu princípio basilar é que os
direitos do homem são universais, indivisíveis e inalienáveis, conforme expresso em seu
preâmbulo. A categoria “homem” pressupõe a humanidade, independentemente de sexo,
masculino ou feminino.
3) Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis à Mulher (1948). Esse
instrumento outorga às mulheres, conforme expresso em seu artigo 1º, os mesmos direitos
civis de que gozam os homens, afirmando em seu preâmbulo que "a mulher tem direito igual
ao do homem na ordem civil".
6) Convenção da OIT nº 103 (1952). Versa sobre o amparo materno às mulheres empregadas
na indústria e em trabalhos não industriais e agrícolas, inclusive assalariadas que trabalham
em seu domicílio, estabelecendo o artigo 1º o “Direito da mulher à licença-maternidade de
pelo menos doze semanas, mediante apresentação de atestado médico contendo a data prevista
do parto.”
10) I Conferência Mundial Sobre a Mulher (1975). Nela se teve por reconhecido o direito da
mulher à integridade física, inclusive a autonomia de decisão sobre o próprio corpo e o direito
à maternidade opcional.
11) Convenção Para Eliminar Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher – CEDAW
(1979). Dispõe que todos os países participantes deverão assumir o compromisso de combater
todas as formas de discriminação contra as mulheres.
12) II Conferência Mundial Sobre a Mulher (1980). Nessa Conferência foram avaliados os
progressos ocorridos nos primeiros cinco anos da Década da Mulher, sendo convertido o
Instituto Internacional de Pesquisa e Treinamento para a Promoção da Mulher - INSTRAW
em organismo autônomo no sistema das Nações Unidas.
13) Convenção da OIT nº 156 (1981). Essa Convenção tem por objeto a igualdade de
oportunidades e de tratamento para homens e mulheres trabalhadores com encargos de
família, estando marcada em seu preâmbulo a efetiva igualdade de oportunidades e de
tratamento entre homens e mulheres com encargos de família.
14) III Conferência Mundial Sobre a Mulher (1985).Nela são aprovadas as estratégias de
aplicação voltadas para o progresso da mulher. O Fundo de Contribuições Voluntárias das
Nações Unidas para a Década da Mulher é convertido no Fundo de Desenvolvimento das
Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM).
142
15) Convenção da OIT nº 171 (1990). Dispõe sobre o trabalho noturno, este entendido, nos
termos do artigo 1º, alínea a, como “todo trabalho que seja realizado durante um período de
pelo menos sete horas consecutivas, que abranja o intervalo compreendido entre a meia noite
e as cinco horas da manhã, e que será determinado pela autoridade competente.” Como
trabalhador noturno a Convenção designa “todo trabalhador assalariado cujo trabalho exija a
realização de horas de trabalho noturno em número substancial, superior a um limite
determinado.” A norma é aplicada tanto ao homem quanto à mulher.
16) Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992).
Embora o tema fosse meio ambiente, a Agenda 21, documento resultante da Conferência,
inseriu, em seu artigo 24, questões relativas à mulher, inclusive o item 4 desse artigo
estabelecia, em caráter de urgência, que os Governos ratificassem todas as Convenções
pertinentes relativas à mulher, empreendendo todos os esforços no sentido de se fazer cumprir
procedimentos jurídicos, constitucionais e administrativos “para fortalecer a capacidade
jurídica da mulher de participar plenamente e em condições de igualdade nas questões e
decisões relativas ao desenvolvimento sustentável.”
17) II Conferência Mundial de Direitos Humanos (1993). Essa Conferência inclui os direitos
do homem, da mulher e das crianças do sexo feminino como parte inalienável, integral e
indivisível dos direitos humanos universais, estipulando o artigo 18 que “a participação plena
e igual das mulheres na vida política, civil, econômica, social e cultural, em nível nacional,
regional e internacional, e a erradicação de todas as formas de discriminação com base no
sexo constituem objetivos prioritários da comunidade internacional.”
18) Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher (1993). Nela se estabelece
que a violência contra a mulher “[...] constitui uma violação dos direitos humanos e liberdades
fundamentais das mulheres, gerando obstáculos ou anulando o usufruto de tais direitos e
liberdades fundamentais.”
19) Declaração de Budapeste. Adotada pela 45ª Assembleia Geral da Associação Médica
Mundial (1993). Tendo em vista o reconhecimento que a mutilação genital feminina afeta
mais de 80 milhões de mulheres e meninas no mundo e é praticada por muitas grupos étnicos
em mais de trinta países, esta declaração registra o repúdio a tal prática, afirmando que a
“Associação Médica Mundial condena a prática de mutilação genital, inclusive circuncisão
em mulheres e meninas, assim como a participação de médicos na execução de tal prática.”
143
21) Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher
(1994). Nela se definiu como violência contra a mulher “qualquer ato ou conduta baseada nas
diferenças de gênero que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico, tanto
na esfera pública quanto na esfera privada.”
23) II Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (1996). Reconhece que
“mulheres, crianças e jovens possuem necessidades específicas de viver em condições
seguras, saudáveis e estáveis e afirma a participação plena e equitativa de todos os homens,
todas as mulheres e jovens na vida política, econômica e social.” Expõe a necessidade de os
Estados incluírem, junto aos programas voltados para moradia, o acesso livre para pessoas
com deficiências e a igualdade de gênero.
25) III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e formas
Conexas de Intolerância (2001). É afirmado que o racismo, a discriminação racial e a
intolerância correlata constituem uma negação dos propósitos e princípios da Carta das
Nações Unidas e reafirma os princípios de igualdade como direito de todos, sem distinções de
sexo. Nela se aponta a necessidade de se adotar uma perspectiva de gênero e reconhecer todas
as inúmeras formas de discriminação a que são suscetíveis as mulheres nos âmbitos social,
econômico, cultural, civil e político.
Após essa exposição, cabível uma digressão acerca de gênero, termo utilizado desde a
década de 70 para teorizar a questão da diferença sexual, priorizando o caráter relacional entre
mulheres e homens, sendo que a compreensão dos sexos não deve ocorrer pelos estudos dos
dois separadamente, mas sim em termos recíprocos.
Para Scott, gênero como categoria de análise se baseia na relação entre duas
proposições: “gênero tanto é um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as
diferenças percebidas entre os sexos, quanto uma maneira primária de significar relações de
poder.”330 A primeira proposição se refere ao processo de construção das relações de gênero e
sublinha a importância dos procedimentos de diferenciação pelos quais, em cada contexto
histórico, são formuladas e reformuladas, em termos dicotômicos, os conteúdos
aparentemente fixos e coerentes do masculino e do feminino. A segunda proposição apresenta
o gênero como categoria de relações de poder. Aliás, Lidia Possas em seus estudos já
chamava atenção para o fato, conforme se pode depreender de suas palavras:
Dessa forma, a relação entre homem e mulher não decorre de um fato natural, mas de
uma interação social que foi construída e remodelada, de forma incessante, ao longo dos
tempos e em sociedades diversificadas. Assim, gênero, conforme analisado por Scott, expõe
as estratégias de dominação que sustentam a construção binária das diferenças entre os dois
330
SCOTT, Joan W. El gênero: una categoria útil para el analisis. In AMELANG, James e NASH, Mary (Eds).
História y gênero. Las Mujeres en la Europa moderna y contemporânea. Valência: Edicion’s Alfons el
Magnarnim, 1990, p. 67.
331
POSSAS, Lidia M. Vianna. Vozes femininas na correspondência de Plínio Salgado. In GOMES, Ângela de
Castro (Org.). Escrita de si e escrita da história. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 265-266.
145
sexos. Para a autora, gênero também é saber a respeito das diferenças sexuais, ou seja, como
compreensão produzida pelas culturas e sociedades sobre as relações humanas, no caso
presente, sobre as relações entre mulheres e homens, lembrando que este saber é relativo, haja
vista que ele “é uma forma de organizar o mundo e, como tal, não antecede a organização
social, mas é inseparável dela.332
Quando se aborda gênero é importante não se pensar no singular, mas no plural, pois
referente às mulheres e homens, com suas diferenças de classe, etnia, cultura, religião, etc. A
história de gênero evidencia que cada sociedade produz em relação aos sexos seu próprio
entendimento do que é ser homem e mulher e que o papel desempenhado por cada um deles é
determinado por seu específico ambiente cultural. É neste sentido que se constitui a crítica de
Rachel Soihet à teoria de Scott. Segundo aquela autora (Rachel), esta (Scott) não dá espaço
para que venham à tona as particularidades das relações entre os sexos, das quais não se pode
excluir as alianças e os consentimentos por parte das mulheres.333 Consentimento como o
expresso pela imame334 turca Fatma Katirci:
A discussão não pode ser sobre o cardápio do jantar. Tem de ser algo mais sério,
como uma questão de honra, infidelidade, por exemplo. Quando o comportamento
de uma mulher mancha a reputação da família... Veja, certas mulheres precisam
apenas de uma boa conversa para aprender; outras só pensam melhor em suas ações
se dormirem em camas separadas; e algumas são verdadeiramente neuróticas. Nestes
casos, uma palmadinha pode ser o último recurso para que enxerguem os erros do
seu comportamento. Não me interprete mal: sou contra isso. Bater é degradante,
mas, se realmente não houver alternativa, é inevitável que seja assim.335
332
SCOTT, Joan W. Apud VARIKAS, Eleni. Gênero, experiência e subjetividade: a propósito do desacordo
Tilly-Scott. Cadernos Pagu nº 3, 1994, p. 66.
333
SOIHET, Rachel. História, mulheres, gênero: contribuições para um debate. In AGUIAR, Neuma (org).
Gênero e ciências humanas: desafios às ciências desde a perspectiva das mulheres. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 1997.
334
Ministra religiosa muçulmana que conduz as orações quando as mulheres se reúnem para rezar.
335
Palavras proferidas pela ministra Fatma Katirci, em Amsterdã, quando explanava sobre o versículo do alcorão
que dá aos homens o direito de bater em suas mulheres, conforme expresso por ALI, Ayaan Hirsi. A virgem na
jaula. um apelo à razão. Tradução de Ivan Weisz Kuck. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 24.
146
Dessa forma, é arriscado investir no estudo do sexo e suas diferenças sob o manto da
explicação universal, pois como pontua Soihet, é “essencial dirigir a atenção para os usos
diferenciados de modelos culturais comuns aos dois sexos.”336 Talvez aí resida a resposta a
Rolim deixada em suspenso anteriormente.
[...] o que podemos reter da análise das diversas faces da grande discórdia é que a
pluralidade das posições que não tardaram a surgir na vida social e religiosa da
primeira comunidade islâmica mostra como estão errados todos os estereótipos
relativos à pretensa univocidade das concepções alternativamente políticas, sociais e
até religiosas. Isso nos deveria ensinar cautela ao fazer as contas e considerar bem
assentados alguns conceitos que não estão bem fundamentados [...].340
Nesse universo inclua-se a questão de gênero, pois o pesquisador que o utiliza como
categoria analítica tem que estar atento para o fato de que a realidade histórica é social e
culturalmente construída, e que gênero é um aspecto geral da organização social, sendo
encontrado em muitas partes, pois os significados da diferença sexual são apropriados e
utilizados em muitos tipos de luta pelo poder, delegando à mulher um local certo na
sociedade, estipulando papéis e modelos que, dependendo de seu meio cultural, serão ou não
por ela introjetados.
336
SOIHET, Rachel. Op. cit. p. 106.
337
PACE, Enzo. Sociologia do Islã. Fenômenos religiosos e lógicas sociais. Tradução de Ephraim Ferreira
Alvez. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 113.
338
O autor se refere à Khadija e A’isha, respectivamente, primeira e segunda esposa de Maomé.
339
PACE, Enzo. Op. cit., p. 114.
340
Ibidem, p. 114-115.
147
como sistema de crenças religiosas, mas com muito mais plausibilidade a longa
memória do passado, os mecanismos sociais de organização dos papéis masculinos e
feminino que se criaram e consolidaram na sociedade tribal e patriarcal e resistiram
ao passar do tempo, até nossos dias, quando as conflitividades entre as diversas
identidades de gênero explodiram e ganharam visibilidade na sociedade.342
341
Ibidem, p. 151.
342
Ibidem, p. 151-152.
148
uma impossibilidade material do princípio da igualdade.343 Por mínima que seja a diferença
(física, sexual, social ou cultural) fica sem efeito a possibilidade concreta sobre a qual o
princípio da igualdade possa ser erigido. A expressão “todos são iguais perante a lei”
significa, tão-só, que não pode haver sujeito fora do discurso jurídico, ao que Phillip, citando
Singer, esclarece:
A igualdade é um princípio ético básico e não uma assertiva factual. Assim quando
se afirma que todos os seres humanos são iguais, para além das diferenças
empiricamente constatadas existem interesses importantes – como evitar a dor,
desenvolver as aptidões pessoais, satisfazer necessidades básicas, manter relações
amigáveis e ter liberdade de realização pessoal – que devem ser consideradas
igualmente em todos indistintamente.344
343
COMPARATO, Fabio Konder. Op. cit.
344
PHILLIPI, Jeanine N. In DORA. Op. cit., p. 37.
345
Idem ibidem.
346
Women Watch. Informe de la Cuarta Conferencia Mundial sobre la Mujer. Disponível em:
<http://www.un.org/esa/gopher-data/conf/fwcw/off/platesp/9520p1.sp>.. Acesso em 15 abr 2010.
149
347
SUARÉZ, Mireya. A problematização das diferenças de gênero e a antropologia. In AGUIAR, Neuma. Op.
cit.
348
Termo usado para se referir à crença na interpretação literal dos livros sagrados. Fundamentalistas são
encontrados entre religiosos diversos que pregam que os dogmas de seus livros sagrados devem ser seguidos à
risca. O termo surgiu no começo do século XX nos EUA, quando protestantes determinaram que a fé cristã
exigia acreditar em tudo que está escrito na Bíblia. Atualmente há uma tendência de se associar a palavra
fundamentalista aos muçulmanos que visam implementar um estado islâmico, mesmo através de revoluções ou
atos terroristas. CASTELLS, M. O poder da identidade. Vol. II. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
150
Ao formar sua nova grande tribo, ele se mostrou ansioso para estabelecer laços com
algumas de suas companheiras mais íntimas, para juntá-las. Sua nova esposa, e a
favorita, era Aisha, filha de Abu Bakr, e Hafsah, filha de Umar ibn AL-Khattab, era
uma outra. Maomé casou duas de suas filhas com Uthamn ibn Affn e com Ali ibn
Abi Talib. Muitas de suas outras esposas eram mulheres mais velhas, que não
tinham protetores ou eram parentes dos chefes das tribos que se tornaram aliadas da
ummah.350
A autora afirma ainda que a emancipação das mulheres era um dos projetos do Profeta
e o Islã previa que elas teriam o direito de herança e de divórcio preservados, isto séculos
antes desses direitos serem concedidos à mulheres ocidentais. Afora estes, o islã assegurava,
também, às mulheres os seguintes direitos:
349
Aisha tinha 9 anos na ocasião de suas bodas com o Profeta Maomé que contava 51 anos. Segundo alguns
relatos, ela brincava no quintal quando foi chamada para dentro de casa. Lá encontrou o noivo e foi posta sobre
seus joelhos. Os pais da menina se retiraram e o casamento se consumou ali, na casa paterna. JONES Sherry. A
jóia de medina. Rio de Janeiro: Record, 2009. Ao todo Maomé teve 13 esposas e algumas concubinas, destas a
cristã Mirian deu-lhe um filho homem, Ibrahim, que morreu quando criança. ARMSTRONG, Karin. Op. cit. p.
55.
350
CASTELLS, M. Op. cit. p. 55.
151
política e social. Nessa época, as opiniões das mulheres eram levadas em consideração e não
podiam ser desrespeitadas.
d) Direito de contratar: O Islã garantia às mulheres direitos iguais para contratar, assumir
empreendimentos, ter ganhos e posses independentemente.
e) Direito à herança: A mulher tem participação na herança, embora entre homens e mulheres
exista diferença, pois elas recebem uma cota e eles duas, o que é explicado pelo fato de ao
homem caber as responsabilidades financeiras completas da casa e da família. Por outro lado,
o Islã protege a mulher se ela é esposa, o marido é o provedor.
Esses e outros aspectos propiciados pelo Islã deram à mulher uma posição que ainda
não fora ocupada, desfrutando de direitos nunca antes vistos na sociedade da Península Arábia
onde o Alcorão foi revelado, e uma lida cuidadosa deste livro “mostra que tudo o que foi
reivindicado pelas feministas nos anos 70 estava à disposição das mulheres muçulmanas há
1.400 anos.”352
Assim sendo, como explicar as violências a que estão submetidas muitas mulheres
islâmicas na atualidade? Armstrong responde a essa indagação informando que:
351
ESPINOLA Cláudia Voigt. O véu que (des)cobre: etnografia da comunidade árabe muçulmana em
Florianópolis . Tese (doutorado) em Antropologia Social Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, abril,
2005.
352
Depoimento de Ridley Yvone (Muçulmana, convertida após ter sido capturada pelo Taliban em 2001)
publicado no Washington Post em 22 de outubro de 2006, sob o título de Como passei a amar o véu.
Disponível em: <http://www.myciw.org/forums/showthread.php?t=2108>. Acesso em 20 abr 2010.
152
Esses costumes foram adotados cerca de três ou quatro gerações depois da morte do
Profeta. Nessa ocasião os muçulmanos estavam copiando os cristãos gregos de
Bizâncio, que havia muito tempo cobriam de véus e segregavam suas mulheres
dessa maneira, eles também se apropriaram de uma certa misoginia cristã.”353
Da leitura do Alcorão se percebe que homens e mulheres são parceiros diante de Deus,
com idênticos deveres e responsabilidades e a poligamia nele prevista ocorria desde que os
homens tivessem até quatro esposas e que houvesse absoluta equidade no tratamento entre
elas, não devendo ser demonstrada nenhuma preferência de uma em detrimento da outra, o
que alcançou os dias atuais, conforme expressa a 4ª Surata:
[...] podereis desposar duas, três ou quatro das que vos aprouver, entre as mulheres
(O número irrestrito de esposas dos "tempos de idolatria" foi, então,
meticulosamente reduzido ao máximo de quatro, contanto com se pudesse tratar
todas com perfeita eqüidade, no tocante às coisas materiais, bem como em afeição, e
às coisas imateriais. Como tal condição é dificílima de ser preenchida,
compreendemos estar a tendência descambando para a monogamia). Mas, se
temerdes não poder ser equitativos para com elas, casai, então, com uma só, ou
conformai-vos com o que tende à mão (cativas de guerra). Isso é o mais adequado,
354
para evitar que cometais injustiças.
Maomé legou aos muçulmanos o Alcorão, mas não teve tempo de regulamentar todos
os princípios que deveriam reger o cotidiano dos convertidos. Quando vivo, podia ser
consultado sobre qualquer questão, com sua morte tornou-se tarefa de seus seguidores
transferirem da memória para a escrita as palavras e ações do Projeto – os Hadith. Quase
cinco décadas após a morte de Maomé suas esposas tiveram papel influente (tendo Isha papel
de destaque), sendo consultadas inúmeras vezes em pontos importantes sobre religião, política
e conduta do Profeta. Muitos dos Hadith da época foram transcritos por Isha.
Não demorou muito para que os Hadith, cujas compilações foram surgindo por conta
da sucessão do profeta, fossem forjados, um deles, conforme expõe Fátima Mernissi, que
justificam a inferioridade feminina, expressa que “as mulheres são comparadas aos cães e
353
ARMSTRONG, Karin. Op. cit, p. 56.
354
4ª Surata. Alcorão. Fonte digital: Centro Cultural Beneficente Árabe Islâmico de Foz do Iguaçu. Disponível
em: <http://www.cpihts.com/PDF/Alcorao.pdf>. Acesso em: 20 abr 2010. Surata é cada capítulo do Alcorão.
355
ARMSTRONG, Karin, Op. cit. p. 57.
153
jumentos na sua capacidade de perturbar a oração” ou o que afirma que “aqueles que confiam
seus negócios a uma mulher nunca conhecerão a prosperidade.”356 A autora levantou, em
suas pesquisas, que Abu Hurayra foi o mentor de alguns desses Hadith. Homem com sérios
problemas de identidade sexual era ferrenho opositor de Isha, a quem repreendia dizendo de
sua mania de inventar Hadith. A respeito de Isha, Armstrong informa que ela sofreu uma
grande derrocada ao intervir em uma das sucessões do profeta, perdendo muitos de seus
soldados e, ao final de peleja, foi bastante criticada por ter se exposto de uma maneira
inconveniente a uma mulher. Seu prestigio decaiu e muitos dos seus Hadith foram suprimidos
e ignorados. Assim, a voz feminina tão valorizada nos primórdios do Islã começou a
silenciar.357
Do estudo dos Hadith emergiram várias escolas do pensamento Islâmico, alguns estão
acorde ao que é proibido (haram) e ao que é obrigatório (wajib), entre eles encontram-se os
atos inconvenientes (makruh) e os atos desejáveis, mas não obrigatório (summat). Neste
sentido, ocorrem divergências que geram violências às vezes radicais como a cirurgia genital
ou circuncisão feminina condenada pela Declaração dos Direitos Humanos e pelas ONGs que
lutam contra ela. A respeito dessa prática Ali expressa:
A circuncisão feminina, dizem, nada tem a ver com o Islã, pois esse ritual cruel não
acontece em todas as sociedades islâmicas. Mas o Islã exige que você se case
virgem. Preserva-se o dogma da virgindade trancafiando as meninas em casa e
costurando seus lábios maiores. A circuncisão feminina serve a dois propósitos: o
clitóris é removido, a fim reduzir a sexualidade da mulher os lábios vaginais são
costurados, para garantir sua virgindade.358
356
MERNISSI, Fatima. O véu e a elite masculina: uma interpretação feminista dos direitos da mulher no Islã.
Tradução de Mary Jo Lakeland. Cambridge: Perseus Books, 1991
357
ARMSTRONG, Karin, Op. cit.
358
ALI, Ayaan Hirsi. Op. cit., p. 103.
359
Nessa prática existem variações, seja em relação às comunidades familiares, sociedades e países, quanto em
aspectos como a idade das vítimas, a quantidade e localização de pele removida. Neste estudo não se pretende
descrever a prática em si, pelo que se recomenda a leitura de A mutilação Genital não pode ser tolerada. In ALI,
Ayaan Hirsi. Op. cit., p. 146-156 e do documento "Mutilação Genital Feminina: Guia de Informação" da
Organização Mundial de Saúde (OMS), disponível em: <http://www.who.int/whd/FGM/>. Acesso em: 20 abr
2010.
154
360
Um documento grego de 163 a.C. menciona que garotas do Egito eram submetidas à prática da circuncisão, o
que faz com que se creia que tal procedimento tenha se originado no Egito, ao longo do vale do Nilo, na época
dos faraós. Múmias encontradas recentemente mostram que procedimentos de circuncisão feminina já eram
executados desde aquela época. Não se sabe, no entanto, como essa prática se disseminou entre outro grupo,
passando a ser praticada por muçulmanos, cristão e animistas. DINIZ, Débora. A cirurgia de mutilação genital
feminina. Brasília: Letras Livres, 2000.
361
ALI, Ayaan Hirsi. Op. cit.
362
KIMBANDA. Rufino Waway. Excisão como iniciação sexual e religiosa em mulheres negro-bantu. In
REVER - Revistas de Estudos da Religião nº 1, 2006, p. 121. Disponível em:
<http://www.pucsp.br/rever/rv1_2006/p_kimbanda.pdf>. Acesso em: 18 mai 2010
363
Ibidem
155
Outro fator para essa prática e que acaba por propugnar sua manutenção é o fator
econômico, pois as “parteiras e enfermeiras” que executam a mutilação genital feminina
possuem na comunidade um status social e econômico muito baixo, seus rendimentos não são
suficientes para manter suas necessidades básicas, tornando-se a mutilação genital feminina
fonte de ganho extra, ao mesmo tempo em que se vale de sua “técnica e conhecimento” para
desfrutar de certo poder social. Mesmo os médicos, requisitados por pessoas de poder
aquisitivo mais elevado, contribuem para a manutenção desses costumes por razões
financeiras.364
Art. 1º. O termo tortura designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos,
físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela
ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou
terceira pessoa tenha cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas;
ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais
dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no
exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com seu consentimento ou
aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam
conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais
sanções ou delas decorram.366
364
ALI, Ayaan Hirsi. Op. cit.
365
Tradição no sentido definido por Hobsbawm e Ranger trazida por Stuart Hall, ou seja, “significa um conjunto
de práticas, de natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas de comportamentos
através da repetição, a qual, automaticamente, implica continuidade com um passado histórico adequado. HALL,
Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu Silva e Guaracira Lopes Louro.
Rio de Janeiro: DPA, 2005, p. 54.
366
Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. Adotada pela
Resolução nº 39/46, da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1984. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/tortura/lex221.htm>. Acesso em: 20 mai 2010
156
367
ALI, Ayaan Hirsi. Op. cit., p. 150.
368
Idem, ibidem.
369
BARRETO, Vicente de Paulo. Direitos humanos e sociedades multiculturais. In Anuário do Programa de
Pós-Graduação em Direito: mestrado e Doutorado. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 464.
157
No cristianismo o véu também se fez presente nos rituais litúrgicos e, de maneira mais
marcante, na vestimenta das freiras. Aliás, interessante observar que as vestimentas dessas
pouco diferem da utilizada pela mulher muçulmana, embora exista uma reação
completamente diversa no trato destes dois mundos. O Ocidente vê a utilização do véu pela
370
Ibidem, p. 472.
371
O judaísmos, desde seus primórdios, apresentou duas correntes: de um lado o formalismo ritual da Bíblia e,
de outro, o Talmud, a tendência ao misticismo, ao ocultismo que criou a Cabalá e o Zohar. Daí a oposição entre
fariseus e essênios na época do Talmud e entre talmudistas e cabalistas na Idade Média. O formalismo ritual, tão
rigorosamente praticado pelas massas do povo na Europa Oriental entre os séculos XVII e XVIII, tendia a
produzir uma reação e daí nasceu o hassidismo, isto é, o sistema de "hassid", que em hebraico significa "pio".
SANTOS, Rudinei Borges dos. No princípio é a relação: encontro e diálogo no pensamento de Martin
Buber. Trabalho de Conclusão de Curso de Filosofia. Centro Universitário Assunção, São Paulo. Orientado pelo
Prof. Dr. Ênio José da Costa Brito. Pontíficia Universidade Católica-PUC/SP, 2005.
372
MOREIRA, Maria C. O Hijab ou o véu islâmico. Disponível em: <http://islamicchat.org/hijab.html>.
Acesso em 25 mai 2010. A autora aponta que “a razão para restringir o véu apenas às mulheres casadas é
baseada no entendimento de que cobrir os cabelos é uma punição pelo pecado cometido por Eva, que fez com
que seu marido, Adão, se rendesse ao pecado.
158
mulher islâmica como sinal de submissão e opressão, ao passo que a veste da freira é vista
como sinal de fé, muito embora não exista uma diferença significativa entre as vestes de uma
e de outra.
Maria Moreira afirma que a mulher muçulmana ocupa, na visão ocidental, o papel de
vítima coberta pelo véu: “uma figura subordinada, sofrendo pela opressão religiosa, donde o
véu, a reclusão ou marginalização são temas comuns, símbolos das relações e limitações da
mulher em terras islâmicas.”373 O véu, nesse caso, afirma a autora, ou se interpreta de forma
orientalista, como sinônimo de mistério, ou de forma tradicionalista, como submissão e
opressão, como se a mulher não desempenhasse responsabilidades, não tivesse filiações
profissionais, ao mesmo tempo ignorando o caráter multidimensional do significado do véu
ou o próprio fato de “numerosas mulheres instruídas e trabalhadores estarem usando o véu
voluntariamente nos últimos anos”.374 Uma visão, como relembra a socióloga, que “provoca
irritação porque desarma a visão tradicional”, porque é inconcebível que “depois de estarem
discriminadas e postergadas, optem voluntariamente por assumir sua doutrina islâmica e
ponham e reivindiquem o véu”.375
Nesse sentido, Touraine aponta em sua pesquisa que “não se pode dizer que é a
religião que aprisiona estas mulheres, mas antes, que elas recorrem à religião para dar um
sentido mais ou menos positivo e voluntário a um isolamento que lhes é imposto pela família
[...]”376
O mundo ocidental vê a mulher islâmica como um ser submisso, sendo sua opressão
justificada pela religião. Todavia, os problemas enfrentados por ela não são maiores ou
menores do que os enfrentados pela mulher ocidental, que tem sua imagem espalhada pelo
mundo como independente, dona do próprio corpo, que não precisa dos pais ou mesmo do
marido. Porém, esta imagem não representa a realidade da grande maioria. O que se vê são
dramas de adolescentes mães solteiras que acreditavam que eram donas de seu próprio corpo,
algumas o vendem em troca de um prato de comida. A prostituição é oferecida como
alternativa para muitas meninas e mulheres, o que acaba por destruir sua dignidade. A
violência doméstica é um fenômeno presente em todos os países muçulmanos e não
muçulmanos. A mulher islâmica vê o movimento feminista com alguma apreensão, embora
373
Idem Ibidem.
374
Idem ibidem.
375
Idem ibidem.
376
TOURAINE, Alain. Op. cit., p. 142.
159
haja alguns aspectos dessa causa as quais ela gostaria de juntar esforços, outros provocam
desapontamento ou mesmo posição, o que leva à afirmação de que não há uma resposta
simples para a possibilidade de uma futura cooperação, até por que:
A grande maioria das mulheres muçulmanas tem perfeita consciência de sua prisão aos
valores que lhes foram incutidos nas formas de vida, nos ritos, nas proibições, no peso das
tradições, na repressão de sua sexualidade, na rejeição violenta ou não e este aprisionamento
as aproxima do modelo ocidental, isto é, a uma modernidade onde existe o livre exercício da
377
TOURAINE, Alain. Op. cit., p. 137.
378
Ibidem, p. 135.
379
Ibidem, p. 144.
160
razão e do respeito aos direitos individuais. Todavia, ainda assim, elas não se distanciam do
Islã e do orgulho de serem muçulmanas.
Esses autores, que a seguir terão suas teorias apresentadas e discutidas, lançam
propostas que, como dito, vão ao encontro de ou de encontro a construções realizadas por um
ou outro desses doutrinadores, motivo pelo qual se verá cada um separadamente, o que não
significa somente a fala de cada um, pois interposta por outros estudos referenciados ao longo
do texto.
a) Raimon Panikkar
Para Panikkar, esses aspectos devem ser pensados de forma distintas. Para ele, há uma
distinção da operação de pensar com símbolos e pensar com conceitos, da mesma forma que o
conhecimento simbólico se distingue do conhecimento conceitual. O autor diferencia o
processo cognoscitivo da simbolização do da conceitualização, pois fala e escrita utilizam
termos conceituais e símbolos polissêmicos que expressam as experiências coletivas de um
povo.383
380
ARENHART, Livio Osvaldo. Pressupostos filosóficos da hermenêutica diatópica proposta por Raimon
Panikkar. Revista Direitos Culturais. Vol. 3 nº 3, dezembro de 2007, p. 81.
381
Idem, ibidem.
382
Idem, ibidem.
383
Panikkar, Raimon. Paz e interculturalidad: uma reflexión filosófica. Barcelona: Herder, 2006.
163
Direitos Humanos, no entender de Panikkar, é uma expressão simbólica, haja vista que
diferem de um conceito, visto que “são polivalentes e polissêmicos por natureza,”384 são
símbolos385 de validade universal, pois têm por base outro símbolo universal: o fato de terem
nascido entre os seres humanos, como ser humano.386
Arenhart assevera que para Panikkar a mesma distinção entre conceito e símbolo pode
ser encontrada entre logos e mythos, sendo este último “veiculado pelo símbolo e não pelo
conceito.”389 Continuando, o professor dispõe:
384
PANIKKAR, Raimon. In BALDI César Augusto. (Org.). Op. cit., p. 226.
385
O Professor Alenhart, citando Luciano Costa Santos, informa que símbolos são “tecidos em instâncias pré-
reflexivas pela imaginação criadora da comunidade, os símbolos constituem a unidade de sentido em que a
cultura dos povos se expressa. Eles trazem um sentido, ao mesmo tempo, idêntico – correspondente ao núcleo
sapiencial da comunidade a que pertencem – e plural, na medida em que livremente apropriáveis por cada sujeito
da comunidade”. ARENHART, Livio Osvaldo. Op. cit., p. 82.
386
PANIKKAR, Raimon.. Op. cit,
387
PANIKKAR, Raimon. Op. cit., p. 44.
388
ARENHART, Livio Osvaldo. Op. cit., p. 83.
389
Idem, ibidem
390
Idem ibidem.
164
O que esse professor deixa consignado é que para Panikkar os mitos expressam o
mundo e a realidade humana, mas cuja essência é efetivamente uma representação coletiva, e
que foi perpassado através de várias gerações, até chegar aos nossos dias. E, na medida em
que pretende explicar o mundo e o homem, isto é, a complexidade do real, o mito não pode
ser lógico, ao contrário, apresenta-se ilógico e irracional, prestando-se a todas as
interpretações. Assim, cremos neles de maneira tão natural que os damos por supostos e que,
para descobri-los, necessitamos de interlocutores de outra cultura.
O mito é o lugar da crença, até porque é necessário acreditar em algo, ainda que o
logos tenha que intervir para discernir o valor dos respectivos símbolos. Aliás, segundo
Panikkar, mitos e logos não podem ser separados, porque um representa a etiologia (causa) e
o outro a razão, portanto, pode-se distingui-los, mas não separar, “pois um nutre o outro, e
toda cultura humana é uma textura de mito e logos, [...] eles são como dois fios que se
interlaçam para tecer a realidade.”392 Arenhart, citando Panikkar, afirma que “o mythos, caso
não compensado pelo logos do diálogo intercultural, corre o risco de desembocar no
fanatismo, de resvalar facilmente para o puro e simples subjetivismo.”393 Assim, não há como
prescindir o mito do logos.
Panikkar pensa as culturas a partir dos mitos, motivo pelo qual a comunicação
intercultural é efetuada pelo que ele nomina de “comunhão do mythos”, o que permite captar
“o significado do que o outro diz, inclusive quando não compartilhamos seu mundo
conceitual. Para compreender outra cultura, não é suficiente penetrar em seu logos, tem que
participar também de seu mythos.”394
391
ARENHART, Livio Osvaldo. Op. cit., p. 84.
392
Idem ibidem.
393
Idem ibidem.
394
PANIKKAR, Raimon. Op. cit., p. 79 e 82.
165
ir além do simples logos, sem destruí-lo, para formar e estabelecer uma conexão com o
mythos.”395
Nesse contexto, para que haja um diálogo intercultural fértil também sobre o direito
“não é suficiente estarmos cientes dos processos e lógicas sociolegais das diferentes culturas;
é fundamental que se reconheçam suas respectivas visões, horizontes ou universos jurídicos, e
seus mitos subjacentes.”396
As culturas não são semelhantes, elas possuem suas diferenças, pelo que a
relativização, princípio intrínseco à interculturalidade, deve se fazer presente para que haja
um diálogo, pois “só reconhecendo nossos limites podemos não absolutizar nossas convicções
e dar lugar à escuta e à eventual compreensão do outro.”398
Para a filosofia intercultural, não se pode privilegiar uma linguagem, uma religião,
uma cultura, o que deve ser buscado é um intercâmbio, uma ampliação de perspectivas. Neste
395
Ibidem, p. 145.
396
EBERHARD, Christoph. Direitos humanos e diálogo intercultural: uma perspectiva antropológica. In
BALDI. César Augusto. (Org.). Op. cit., p. 175.
397
ARENHART, Livio Osvaldo. Op. cit., p. 86.
398
PANIKKAR, Raimon. Op. cit., p. 31-32.
399
Ibidem, p. 76.
400
ARENHART, Livio Osvaldo. Op. cit., p. 88.
166
caso, o respeito à dignidade humana exige o respeito ao cultural e o conhecimento mútuo das
diferenças, exigindo que se resista à tentação de impor ao outro uma cultura como modelo de
convivência humana.
A filosofia intercultural reconhece que não possui condições de dar uma resposta
multicultural aos problemas que se pressupõem universais, isto porque reconhece a
inexistência de uma linguagem intercultural ou universal, mas mesmo assim procura se
interrogar sobre a pretendida universalidade.
401
Ibidem, p. 89.
402
Idem, ibidem.
403
Tem foco nas diferentes concepções de DH, de acordo com diferentes culturas, seu objetivo não é atingir a
completude, certamente inatingível, mas ampliar ao máximo a consciência da incompletude mútua por meio de
um diálogo que se desenrola em uma e noutra cultura. PANIKKAR, Raimon. Op. cit.
167
[...] a única alternativa que promete nos conduzir à superação efetiva de formas de
pensar que, de uma ou outra maneira, resistem ao processo de argumentação aberta,
ao condensar-se em posições dogmáticas, determinadas somente a partir de uma
perspectiva monocultural. Resumindo: o diálogo intercultural nos parece ser hoje a
alternativa histórica para empreendermos a transformação dos modos de pensar
vigentes.406
404
ASTRAIN, Ricardo Salas. Ética intercultural e pensamento latino-americano. In SIDEKUM, Antonio.
Alteridade e multiculturalismo. Ijuí: Editora Unijui, 2003.
405
PANIKKAR, Raimon. Op. cit.
406
FORNET BETANCOURT, Raúl. Questões de método para uma filosofia intercultural a partir da ibero-
américa. São Leopoldo: Unisinos, 1994, p. 19.
168
Este autor lista uma série de fatores responsáveis pelas frequentes violações dos
Direitos Humanos na atualidade, como as condições econômicas, sociais, políticas e até
mesmo os ímpetos egoístas dos seres humanos. Contudo, seu maior enfoque recai na falta, ou
insuficiência, de legitimidade cultural interna, o que contribui para as graves violações dos
Direitos Humanos. O autor chama atenção para o fato de que o padrão universal de Direitos
Humanos, consagrado nas declarações e tratados internacionais, é estranho aos valores e
instituições de determinada cultura, com destaque para a cultura islâmica que é o seu campo
de estudo. Este o fator, segundo o autor, da problemática que envolve o respeito aos Direitos
Humanos nessas localidades.408
407
PANIKKAR, Raimon. Op. cit., p. 237.
408
AN-NA’IM, Abdullahi Ahmed. Human rights in cross-cultural perspectives. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 1992. O disposto neste tópico está alicerçado nessa obra. Ressalta-se, também, que como
não existe na língua portuguesa um sinônimo que exprima o significado de cross-cultural na forma disposta pelo
autor, se utilizará a expressão intercultural, que é usada por diversos autores e por ser a mais adequada para
expressar a ideia de diálogo entre as culturas.
409
ARNAUD, André-Jean et. al. Dicionário enciclopédico de teoria e sociologia do direito. Tradução de
Patrice Cjarles, F.X. Willaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 220.
410
BIELEFELDTH, Henry. Op. cit., p. 161.
169
Nesse debate, An-Na’im procura uma saída intermediária. Sua proposta é legitimar a
concepção ocidental de Direitos Humanos inseridas nos valores possíveis de reinterpretação e
reconstrução da cultura islâmica. O que significa não desprezar os valores que informam a
tradição islâmica, aparentemente incompatível com as normas consagradas nos instrumentos
internacionais de Direitos Humanos, mas sim construir sobre eles uma “interpretação
iluminada.”411 Na realidade, isso seria uma abordagem que se distancia tanto da atitude
fundamentalista como da posição secular, assumindo uma abordagem religiosa moderada.
Qualquer das posições polarizadas nesse campo seria desastrosa: a fundamentalista, por não
abrir espaço para o diálogo intercultural; a secular, por ser uma pretensiosa ilusão separar o
homem de suas identificações. Bielefeldth atesta a posição intermediária do autor ao afirmar:
“Assim, é possível encontrar muçulmanos que defendem a imutabilidade da Shária islâmica e,
ao mesmo tempo, estão dispostos a trilhar o caminho de abrangentes reformas com
interpretação pragmática das diretivas religiosas.”412
Para o autor, esse movimento seria impulsionado por debates acadêmicos, lutas
políticas, manifestações artísticas e literárias, de forma a demonstrar que os valores e
instituições tradicionalmente consagradas podem e devem ser revistos e reformulados acorde
à nova realidade. Contudo, isso deve ser realizado à luz dos princípios informadores da
411
AN-NA’IM, Abdullahi Ahmed. Human rights in cross-cultural perspectives. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, 1992, p. 21. Como não existe na língua portuguesa um sinônimo que exprima o disposto
pelo autor, se utilizará a expressão intercultural, que é utilizada por diversos autores e por ser a mais adequada
para expressar a ideia de diálogo entre as culturas.
412
BIELEFELDTH, Henry. Op. cit., p. 163.
170
própria cultura a que visam transformar. E esse, segundo o autor, é o ponto fundamental de
uma interpretação iluminada, legítima, que viabilize o discurso cultural interno. Ou seja, a luz
que iluminará o sentido dos valores e das instituições tradicionais só será aceita se partir dos
próprios princípios que informam tais valores e instituições.
O autor apresenta alguns intelectuais que propugnam o discurso cultural interno, como
Norani Othman (porta-voz da Sisters in Islam da Malásia, organização não governamental
islâmica de disseminação dos direitos das mulheres) e Nasr Hami Abu Zaid (especialista em
literatura que procura entender o Alcorão de forma contingente, relacionando-o com a
realidade histórica atual). Apesar de representarem uma minoria, os discursos por eles
elaborados demonstram que é possível haver uma intermediação crítica entre a tradição
islâmica e os Direitos Humanos.
An-Na’im propõe, também, uma releitura da Shária, já que esta, estabelecida nos
séculos VIII e IX, reflete o contexto social, econômico e político daquela época, em que não
existia a igualdade entre homens e mulheres, aliás, diga-se de passagem, isto não era efetivado
nem no Oriente Médio nem na Europa Ocidental. Assim, essa nova interpretação (como
ocorreu no passado, quando os juristas interpretavam os escritos sagrados do Alcorão e da
Sunna de acordo com a realidade vigente) seria condicionada pela realidade histórica, social,
econômica e política hodierna, proporcionando uma interpretação dos escritos sagrados mais
condizentes com as normas internacionais de Direitos Humanos e com legitimidade cultural
interna.
O autor ressalta aquilo que alhures já se afirmou, que a natureza das culturas é, por um
lado, estável, na medida em que possuem valores tradicionalmente consagrados, mas, por
413
AN-NA’IM, Abdullahi Ahmed. Op. cit.
171
outro, revela-se estremamente dinâmica, uma vez que os valores estão em constante processo
de contestação e mutação. De certo, hoje, eles não têm a mesma aceitação, o que revela uma
estabilidade relativa dos valores culturais, como bem dispôs Bhikhur Parekh:
A cultura, portanto, não é uma herança passiva, mas um processo ativo de criação de
significados, que não são dados, mas constantemente redefinidos e construídos. Ela
tem uma estrutura que direciona e delimita o espectro de novos valores, mas a
estrutura é relativamente frouxa e alterável.414
414
Texto original traduzido pela mestranda:“Culture thus is not a passive inheritance but an active process of
creating meaning, not given but constantly redefined and reconstituted. It does have a structure which directs
and delimits the range of new meanings, but the structure is relatively loose and alterable.” PARECKH, Bhikhu.
Op. cit., p. 153.
415
HAHN, Noli Bernardo. Violência: construção cultural. Revista Direitos Culturais. Vol. 1 nº 2, junho, 2007,
p. 129.
172
Se cada pessoa reconhecesse os demais como seus semelhantes, já não haveria lugar
para a discórdia; a partir do dia em que cada um tratasse os próximos como iguais,
com o respeito que ensinam todos os credos, já não haveria como pretender
contrapor ‘particularismo’ à universalidade dos direitos humanos.416
Essa assertiva, apesar de regra em todos os credos, acaba sendo aplicada somente em
relação aos membros mais próximos culturalmente. Quando se pensa as tradições
fundamentalistas, esta regra acaba por se tornar mais forte, mas, é precisamente nesses casos
que não se pode, como afirma Leonardo Boff, “renunciar ao diálogo, à tolerância e ao uso da
razão para mostrar as contradições internas, subjacentes ao discurso e a prática
fundamentalistas.”417
416
TRINDADE, AntonioAgusuto Cançado. Op. cit., p. 337
417
BOFF, Leonardo. Fundamentalismo: a globalização e o futuro da humanidade. Rio de Janeiro:
Sextante, 2002, p. 48.
418
SANTOS, Boaventura de Souza. Op. cit., p. 456
173
A simultaneidade do processo dialógico deve ser vista mais como ponto de partida do
que de chegada, cabendo a cada cultura decidir em qual momento o diálogo irá cessar, pois
não se pode denegar a decisão sobre a reversibilidade do diálogo às comunidades culturais
individualmente, visto que se determinada cultura perceber o enfraquecimento do diálogo
pode preferir finalizá-lo ou suspendê-lo de imediato. Assim, a proposta de An-Na’im de
reconstrução e reinterpretação iluminada das culturas não visa, paradoxalmente, a eliminar ou
subjugar os instrumentos internacionais existentes, ao contrário, sua proposta é trabalhar com
os mesmos:
Apesar dos problemas com a legitimidade cultural e a eficácia prática dos padrões
existentes, poderemos nunca reganhar o chão até então conquistado pelos
movimentos internacionais de direitos humanos se esses padrões forem hoje
repudiados.419
O autor justifica seu trabalho com o padrão universal por este servir como ponto de
referência para os debates interculturais, algo que se possa concordar, discordar e até
modificar e, ao mesmo tempo, por ele ser visto como uma ferramenta jurídica de proteção aos
ativistas que pretendem travar discursos culturais internos, em especial quando suas propostas
alternativas vão de encontro aos interesses culturais dominantes. De fato, os instrumentos
internacionais de Direitos Humanos oferecem ferramentas essenciais para atuação de ativistas
e organizações não governamentais no discurso jurídico dos Direitos Humanos. Afora isso,
oferecem, também, uma maior publicidade quando da existência de violações que, como fator
de constrangimento moral e político do Estado violador, surge como um significativo fator de
proteção.
O diálogo intercultural pode levar, segundo An-Na’im, à revisão dos valores e normas
consagrados nos tratados e declarações internacionais de Direitos Humanos, é o que o autor
chama de processo de legitimidade retroativa dos padrões universais. Ou seja, o diálogo entre
culturas diversas, e suas múltiplas interpretações acerca dos valores e normas que tutelam a
dignidade humana, acarreta a possibilidade de revisões e reformulações dos padrões
universais de Direitos Humanos.
Eu acredito que um grau suficiente de consenso cultural com relação aos objetivos e
métodos de cooperação na proteção e promoção dos direitos humanos pode ser
alcançado através do discurso cultural interno e do diálogo intercultural. O discurso
419
Texto original traduzido pela mestranda: “Despite the problems with cultural legitimacy and practical
efficacy of existing standards, we may never regain the ground gained by the international human rights
movements thus far if these standards are repudiated today.”AN-NA’IM, Abdullahi Ahmed. Human rights in the
muslim world. In: STEINER, Henry; ALSTON, Philip. Op. cit., p. 5.
174
O consenso intercultural proposto por An-Na’Im diz respeito às conclusões que podem
ser tiradas do processo de legitimidade cultural e não à justificação dessas conclusões, pois
como ele afirma: “o objetivo do discurso interno e do diálogo intercultural é concordar sobre
um corpo de crenças para guiar ações que auxiliam os direitos humanos, apesar do desacordo
sobre a justificação dessas crenças.”421
Da leitura das pesquisas de An-Na’Im pode-se perceber que o autor não propõe
grandes rupturas quando pensa o paradigma contemporâneo da teoria e prática dos Direitos
Humanos, já que seus estudos partem da realidade normativa já existente (ainda que seja ela
ilegítima) em busca de uma legitimidade local. Por outro lado, a proposta do autor leva em
conta a realidade da cultura islâmica, de modo que deve ser considerada como pertinente a
ela, o que não invalida sua aplicação em outras realidades culturais, até mesmo porque o autor
trabalha com premissas gerais, que podem ser aplicadas às demais culturas.
420
Tradução da mestranda:“I believe that a sufficient degree of cultural consensus regarding the goals and
methods of cooperation in the protection and promotion of human rights can be achieved through internal
cultural discourse and cross-cultural dialogue. Internal discourse relates to the struggle to establish enlightened
perceptions and interpretations of cultural values and norms. Cross-cultural dialogue should be aimed at
broadening and deepening the international (or rather intercultural) consensus” (AN-NA’IM, A. op.cit., p. 27).
421
Texto original traduzido pela mestranda: “The object of internal discourse and cross-cultural dialogue is to
agree on a body of beliefs to guide action in support of human rights in spite of disagreement on the justification
of those beliefs.” Ibidem, p. 28.
422
Consiste na Declaração Universal de Direitos Humanos, estabelecida pela Resolução 217-A, da Assembleia
Geral da ONU, em 10/12/1948; no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e no Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos, ambos estabelecidos pela Resolução 2200-A da Assembleia Geral da
ONU em 16/12/1966 e, ainda, nos Protocolos adicionais a estes dois Pactos. A título de ilustração, estes Pactos
só entraram em vigor em 1976, ocasião em que se alcançou a ratificação mínima de 35 (trinta e cinco) países
necessária a tanto.
175
Afora o acima, o autor destaca que é através da noção de universalismo, e por meio da
globalização hegemônica, que os valores ocidentais se disfarçam de universais para expansão
de ideias ligadas ao legado ocidental: liberalismo, individualismo e mercado. Dessa forma, o
autor propõe uma revisão na falsa universalidade atribuída aos Direitos Humanos, que deve se
transformar em uma nova universalidade, construída de baixo para cima, o que ele nomina de
cosmopolitismo. Ainda que efetuando essa afirmação, o autor não nega os esforços para
universalizar um conjunto de valores que possa ser compartilhado por todas as culturas.
Contudo lança um alerta:
Para tanto, o autor propõe o método da hermenêutica diatópica (proposta que já fora
considerada por Raimon Panikkar), que se assenta no fato de que não se pode compreender
facilmente as construções de uma cultura a partir dos topos de outra, lembrando que topos
para o autor são os lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura. Com
este método ele busca um caminho para superar as dificuldades que surgem do diálogo
intercultural. Ou seja, a recolocação dos discursos culturais (dia-logoi) em suas respectivas
realidades (dia-topoi) para que se tornem mutuamente inteligíveis, favorecendo o diálogo
entre as diversas culturas do mundo.
Para que haja a transformação teórica e prática dos Direitos Humanos, de forma a
conceitualizá-los e aplicá-los como multiculturais, algumas premissas, segundo o autor,
devem ser levadas em consideração, como: (1) a superação da tensão universalimo-
relativismo; (2) a constatação de que, embora todas as culturas possuam concepções de
dignidade humana, nem todas elas a concebem em termos de Direitos Humanos; (3) a
verificação de diferentes versões de Direitos Humanos; (4) a percepção da incompletude das
culturas; e (5) a aprovação entre as políticas de igualdade e de diferença.
423
SANTOS, Boaventura de Sousa Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In: SOUSA
SANTOS, Boaventura de (Org). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo cultural. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.438.
176
Da mesma forma, a posição relativista não concebe o consenso, nela não se vislumbra
a possibilidade de construção de um futuro comum, nem de uma compreensão cultural mútua,
até porque isso representaria a imposição de uma cultura à outra. Contudo, é forçoso
reconhecer que a noção de relatividade das perspectivas culturais é de vital importância para o
estabelecimento do diálogo, uma vez que obriga as respectivas culturas a admitirem e
conhecerem a validade dos valores alheios.
424
EBERHARD, Chistoph. Derechos Humanos y Diálogo Intercultural. In: GARCIA, Manuel Calvo.
Identidades culturales y derechos humanos. Madrid:IISJ/Dykinson, 2002, p. 259.
177
termos de Direitos Humanos, e cada uma delas possua uma determinada amplitude, o que
acaba por determinar a sua abertura para as demais tradições culturais e nelas devem ser
buscadas as que mais aceitam as particularidades das demais construções culturais. E quando
mais amplo for o que Boaventura de Souza Santos chama de “circulo de reciprocidade”, 425 o
reconhecimento do outro vai mais longe.
425
SOUSA SANTOS, Boaventura de. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica juridica.
Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988, p. 455;
426
TAYLOR, Charles. The politics of recognition. In: GUTMANN, Amy. Multiculturalism. New Jersey:
Princeton University Press, 1994, p. 25.
427
Ibidem, p. 33.
428
Bielefeldt, Henry. Op. cit. p. 209.
178
429
A antropóloga Débora Diniz afirma que uma das vias para a frustração cultural ocorre com a experiência do
horror trágico. Que “[...] é a condição irrevogável para a mudança das crenças com status de verdade, ou seja, a
experiência do horror trágico é o único meio reservado aos personagens moralizados para que experimentem o
princípio do acaso e habilitem-se a modificar suas certezas. No entanto, por outro lado, a prova a que o
personagem moralizado se submete por ocasião do horror trágico não é facilmente suportada. Deparar-se com a
contingência de todas as crenças, inclusive aquelas que justificam o auto-aniquilamento, faz com que muitos não
tolerem o princípio da ausência de sentido, optando por uma saída inesperada para os que apostam na
metamorfose como saída pacífica para os conflitos morais: reforçar ainda mais o sentido. Ou seja, para muitos
personagens moralizados, o desnudamento da ausência de sentido último para o real provoca um estremecimento
moral tão severo que, ao invés de a experiência do horror trágico os conduzir à mudança esperada, ela pode vir a
reforçar ainda mais a intransigência do conflito, produzindo o reforço da crença original. O horror trágico é a
condição para o desvendamento da ausência de sentido, mas não necessariamente para a metamorfose trágica.”
O que a autora deixa evidenciado é que “a experiência do horror trágico tanto pode ser sublime e assim permitir
a metamorfose do sujeito moralizado, quanto aniquilante, transformando-se em uma espécie de castigo.” DINIZ,
Débora. Antropologia e os limites dos direitos humanos: o dilema moral de Tashi. In NOVAES, Regina Reyes e
LIMA, Roberto Kant de. Antropologia e direitos humanos. Niterói: UFF, 2001, p. 35-36.
430
Esse aspecto remete, como exemplo de encontros culturais destrutivos, aos povos indígenas das Américas, da
Austrália, da Nova Zelândia, da Índia, etc, “agressivamente amputados e descaracterizados pela cultura
ocidental.” ARENHART, Livio Osvaldo, Op. cit., p. 93.
179
considera completa, não se tem o instaurar de diálogo com as demais, se ele admite sua
incompletude e aceita participar do diálogo intercultural corre o risco da conquista, da
absorvição ou mesmo destruição. Mesmo estando presente esse risco, o autor é favorável à
consciência da incompletude, pois o fechamento cultural impossibilita qualquer tentativa de
diálogo, mas condiciona que ela seja utilizada na medida em que não represente uma
conquista cultural (o que destruiria a própria noção de diálogo).
431
MELO, Carolina de Campos. Multiculturalismo e globalização: desafios contemporâneos ao Estado
Nacional. Dissertação para a obtenção do título de Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela
PUCRio. Rio de Janeiro, 2001, p. 57-58.
432
SANTOS, Boaventura de Souza. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica juridica.
Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988, p. 444.
180
determinados topoi está fadada ao fracasso. Assim, a saída é o diálogo intercultural, ponto de
partida e chegada para construção de uma noção multicultural de Direitos Humanos.
433
Ibidem, p. 451.
434
Ibidem, p. 443.
181
Segundo César Rodríguez, um caso é difícil quando: (a) os fatos e normas relevantes
permitem mais de uma solução (antinomia); (b) dois ou mais princípios colidem; (c) não
existe nenhuma norma aplicável (anomia - lacuna), ou mesmo que exista a norma, e seja
clara, seja injusta; e, finalmente, (d) um caso é difícil quando mesmo que exista um
precedente judicial, considere-se necessário modificar.435
A respeito do assunto, Ronald Dworkin expressa que a solução proposta nos casos
difíceis deve levar em consideração um juízo de ponderação, através da dimensão de peso ou
importância da consequência da aplicação da conservação da dignidade. Ou seja, o que o
autor defende é a idéia de que a prática jurídica não é apenas um exercício eventual de
interpretação, mas que a essência do Direito depende de uma prática hermenêutica.436 Nesse
sentido, advogados, juízes, promotores, jurisconsultos, jusfilósofos devem pensar suas
práticas e teorias dentro de um determinado contexto sociopolítico. Todavia, isso não
significa que o Direito seja uma questão de interpretação subjetiva ou partidarista. Para evitar
essa visão parcial, é necessário aprofundar a tese de que o Direito é, fundamentalmente, uma
atividade hermenêutica.437
Nos casos controversos, Dworkin admite que as necessárias respostas não são muito
fáceis, pois a interpretação e a aplicação da lei tornam-se uma tarefa verdadeiramente
hercúlea. Ciente disso, o autor imagina um juiz com habilidades super-humanas, a quem
435
GARAVIT, César Rodríguez. La Decisión judicial. El debate Hart-Dworkin. Colômbia: Siglo del Hombre
Editores, 1997.
436
. O termo hermenêutica provém do verbo grego "hermēneuein" e do latin hermeneutica (que interpreta ou que
explica), é empregado na “técnica jurídica para assinalar o meio ou modo por que se devem interpretar as leis, a
fim de que se tenha delas o exato sentido ou o fiel pensamento do legislador. Na hermenêutica jurídica, assim,
estão encerrados todos os princípios e regras que devem ser judiciosamente utilizados para a interpretação do
texto legal. E esta interpretação não se restringe ao esclarecimento de pontos obscuros, mas a toda elucidação a
respeito da exata compreensão da regra jurídica a ser aplicada aos fatos concretos.” SILVA, De Plácido e.
Vocabulário Jurídico. 27. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 396.
437
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes,
2002
182
Deve ser salientado que o Dworkin expressa que esse “Hércules” aceita as leis
vigentes, reconhece o dever de seguir as decisões anteriores, sabe que são as leis que criam e
extinguem direitos, mas que ele deve interpretar uma série de princípios básicos do Direito e,
mais amplamente, da justiça, para apoiar suas decisões sobre os eventuais casos controversos.
Para decidir, “Hércules” precisa construir uma teoria política completa que justifique a
Constituição como um todo, isto é, ele deve ter uma filosofia política capaz de explicitar o
lugar da justiça na sociedade. Deve, também, fazer uma teoria constitucional, ou seja,
estabelecer quais são os princípios e políticas que devem ser seguidos.440 No caso do sistema
anglo-americano, isso pode incluir a interpretação da common law, visto que o Direito é
fundamentalmente consuetudinário.
Apenas para ilustrar a proposta do autor, toma-se a questão do aborto, para a qual a
decisão deve levar em conta que o princípio da sacralidade da vida deve, realmente, ser
respeitado, mas ele não seria ferido se fosse concedido o direito de aborto nos casos de
deficiência severa na formação do feto. Essa decisão poderia ser fundamentada na
interpretação de um princípio constitucional que garante a autonomia que, nesse caso, se
sobreporia ao valor intrínseco da vida. Percebe-se, desse modo, como o Direito é uma arte
interpretativa, inclusive dos princípios fundamentais do senso moral.
Deve ser ressaltado que neste trabalho não se pretende dissertar sobre a teoria
dworkiniana, o que fugiria aos objetivos presentes neste estudo, 441 o que se deseja registrar é
que casos difíceis são “aqueles casos de direito para os quais não é possível encontrar uma
solução trivial, ou uma única solução, e que, portanto, deixam a comunidade jurídica
438
Ibidem, p. 105.
439
Ibidem, p. 127.
440
Ibidem.
441
Se percebe nos livros de Dworkin referências constantes a Herbert Hart e à sua obra, pelo que é
imprescindível o conhecimento dos trabalhos de ambos autores, pois se torna difícil avaliar a repercussão da obra
de Hart sem a crítica de Dworkin, ou mesmo a importância da teoria deste autor sem o prévio desenvolvimento
neopositivista daquele, ou seja, para que se possa ter a exata noção da discussão teórica acerca do direito travada
entre Hart e Dworkin é necessário analisar as obras desses autores e as diferentes formas de abordar os
questionamentos suscitados pelos debates travados. Não se pode prescindir de analisar de que forma os autores
respondem às críticas feitas aos seus posicionamentos, e isto, como dito, foge à proposição desta dissertação.
Talvez, em futuro próximo, se possa expandir a embrionária discussão que aqui se apresenta.
183
Ao longo deste estudo esses casos foram discutidos, como o uso do véu, a submissão,
as restrições ao matrimônio e a questão da mutilação genital feminina. Dessa forma, pinçam-
se somente dois desses casos – restrições ao matrimônio e mutilação genital feminina -,
aplicando o caso concreto na problemática da diversidade cultural face à universalidade dos
Direitos Humanos. Poder-se ia abordar outros casos difíceis, ou até mesmo acrescê-los, como
a prática da poligamia acorde aos escritos sagrados do Islã; as penas cruéis, desumanas e
degradantes, como a amputação do braço direito por roubo e a execução por apedrejamento da
mulher adúltera, mas se optou pelos dois que têm provocado na comunidade Ocidental maior
repúdio, um por demonstrar a total submissão e outro pelo crime contra a mulher.
a) Restrições ao matrimônio
A restrição do direito ao matrimônio na cultura islâmica encontra limitações em razão
de sexo, de religião e na prática de casamentos forçados (arranjados) e a face da
discriminação se revela tanto entre homens e mulheres quanto entre muçulmanos e não
muçulmanos. Isso porque a mulher muçulmana só pode contrair núpcias com um muçulmano,
ao passo que ao homem é permitido casar-se com uma não muçulmana, desde que ela
pertença a uma religião monoteísta (judaísmo, cristianismo, etc.). A ambos é vedado o
casamento com parceiros ateus ou politeístas.
Esse fato fere o disposto no artigo XVI da Declaração Universal dos Direitos
Humanos que, expressamente, afirma o direito ao casamento sem restrição de raça,
nacionalidade ou religião, verbis:
442
ARAÚJO, Nádia de. Direito internacional privado: teoria e prática brasileira. Rio de Janeiro: Renovar,
2003, p. 25.
443
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/
ddh_bib_inter_universal.htm >. Acesso em: 28 mai 2010.
444
BIELEFELDT, Heiner. Op. cit., p. 162.
184
Os homens são os protetores das mulheres, porque Deus dotou uns com mais (força)
do que as outras, e pelo seu sustento do seu pecúlio. As boas esposas são as devotas,
que guardam, na ausência (do marido), o segredo que Deus ordenou que fosse
guardado. Quanto àquelas, de quem suspeitais deslealdade, admoestai-as (na
primeira vez) abandonai os seus leitos (na segunda vez) e castigai-as (na terceira
vez); porém, se vos obedecerem, não procureis meios contra elas. Sabei que Deus é
Excelso, Magnânimo.445
15. Se bem que a maioria dos países informa que as constituições e leis nacionais
acatam a Convenção, os costumes, a tradição e a falta de cumprimento destas leis na
realidade violam a Convenção.
445
Alcorão. Op. cit.
446
Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002, Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Contra a Mulher. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/11cndh/site/pndh/sis_int/onu/
convencoes/Convencao%20sobre%20a%20Eliminacao%20de%20Todas%20as%20Formas%20de%20Discrimin
acao%20contra%20a%20Mulher.pdf>. Acesso em: 28 mai 2010.
185
A pessoa, no mundo islâmico, é vista como integrante da família e, como tal, não
poderá desagradá-la. Assim, a escolha dos nubentes deve agradar as famílias envolvidas,
entenda-se aos homens dessas famílias, pois à mulher cabe acatar o arranjo efetuado. Assim, a
imposição, ancorada em razões de sexo ou da religião como prática de casamentos forçados
viola, como dito, o artigo XVI da Declaração Universal. Afora isto, a restrição ao matrimônio
ou sua imposição pode ser considerada uma violação ao direito à intimidade e à autonomia
privada, na forma dos artigos 17.1 e 23.3 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
Art. 17.1 - Ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua
vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de
ofensas ilegais à sua honra e reputação. [...]
23.3 - Casamento algum será celebrado sem o consentimento livre e pleno dos
futuros esposos.448
Ora, não se pode negar que o direito de contrair núpcias de forma livre e plena se
constitui um dos elementos essenciais da vida privada do ser humano, assim como se entende
que “livre e pleno” dispostos no Pacto significam que o casamento não pode ser forçado e a
aprovação só deve advir daqueles que irão unir suas vidas e qualquer prática que vise
restringir tal direito representa ingerência arbitrária na vida privada.
447
General recommendation 21 Equality in marriage and family relations: 04/02/1994. Disponível em:
<http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/0/7030ccb2de3baae5c12563ee00648f1f?Opendocument>. Acesso em 28 mai
2010. Texto original traduzido pela mestranda: “15. While most countries report that national constitutions and
laws comply with the Convention, custom, tradition and failure to enforce these laws in reality contravene the
Convention. 16. A woman's right to choose a spouse and enter freely into marriage is central to her life and to
her dignity and equality as a human being. An examination of States parties' reports discloses that there are
countries which, on the basis of custom, religious beliefs or the ethnic origins of particular groups of people,
permit forced marriages or remarriages. Other countries allow a woman's marriage to be arranged for payment or
preferment and in others women's poverty forces them to marry foreign nationals for financial security. Subject
to reasonable restrictions based for example on a woman's youth or consanguinity with her partner, a woman's
right to choose when, if, and whom she will marry must be protected and enforced at law.”
448
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Legislação sobre DST e AIDS no Brasil. Op. cit.
186
Se jovens asiáticos estão felizes por seus pais escolherem ou os ajudarem a escolher
seus esposos, eles optaram por ser escolhidos ou co-escolhidos, e suas opções devem
ser respeitadas. Mesmo que eles não tenham feito tal opção conscientemente e estão
contentes em razão de uma rotina social em deixar a decisão para seus pais, eles
449
devem ter o mesmo direito que os demais de conduzir suas vidas pessoais.
Embora concordando em parte com esse teórico político,450 é forçoso lembrar que as
jovens são frutos de uma cultura onde a escolha, principalmente na cultura islâmica, não faz
parte do seu dia a dia. Exemplo disso é fornecido por Ali quando descreve situações ocorridas
na previdência social holandesa que abriga e ampara mulheres imigrantes (turcas,
marroquinas, chinesas, etc.). Os psicólogos, habituados a lidar com o individualismo de seus
pacientes, perguntam a essas mulheres: “o que você quer para você?” “O que você quer para
seus filhos?” “Que decisão gostaria de tomar para eles?”. As posturas e respostas para estas
indagações eram, segundo a autora: “Elas ficavam lá sentadas, quietas como um rato e davam
de ombros. “O que meu marido quiser”, diziam timidamente, ou “O que for da vontade de
Alá”. Algumas chegavam mesmo a dizer: “O que você achar que está certo”451
O grande problema é que essas mulheres não aprenderam a querer algo para si mesmo
(isso de geração a geração) e não articulavam respostas precisas porque “simplesmente não
sabiam.”452 A maioria dessas mulheres não têm instrução, como muitas que vivem no país de
origem. Aliás, conforme noticia Ali: “O Relatório das Nações Unidas sugere que a aquisição
sistemática de conhecimento não é valorizada nos países árabes islâmicos.” 453 Se por um lado
o Alcorão dita que o fiel jamais deve interromper sua busca pelo conhecimento, de outro ele
registra que Alá é onisciente e que todo o conhecimento provém das palavras do profeta
Maomé. Ora, se faz presente um choque de ensinamento, pois essas duas direções são
inconciliáveis. Nesse sentido:
449
PAREKH, Bhikhu. Rethinking multiculturalism: cultural diversity and political theory. New York:
Palgrave, 2000, p. 275. Texto original traduzido pela mestranda: “If young Asians are happy for their parents to
choose or help them choose their spouses, they have chosen to be chosen or co-chosen for, and their choices
should be respected. Even if they have made no such conscious choices and are content as matter of social
routine to leave such decisions to their parents, they should have the same right as others to run their personal
lives.”
450
Se os envolvidos são maiores de idade, com capacidade para discernir seu ato, crê-se total o direito, até
porque se propaga o direito de escolha do ser humano, o que se condena e a imposição a algo não desejado, ou
mesmo rejeitado, como alguns casos expressos na pesquisa de TOURAINE, Alain. Op. cit.
451
ALI, Ayaan Hirsi. Op. cit., p. 139.
452
Idem ibidem. Cabe ressaltar que muitas ocidentais, hoje, com todo aparato que lhe é posto à disposição,
também não saberiam responder e algumas delas, seguindo o “glamour” imposto pela mídia, responderia: ser
artista, modelo, jogadora de futebol.
453
ALI, Ayaan Hirsi. Op. cit., p.50.
187
A maioria dos mulás diz aos muçulmanos perplexos com essas contradições que,
quando o Alcorão manda buscar o conhecimento, isso significa que devemos ler e
reler as escrituras até que, em virtude do empenho na leitura, os portões do
conhecimento se abram por si mesmos.454
É inútil querer oferecer uma imagem menos dramática da vida destas jovens
mulheres. Seria até mais justo agravar ainda mais esta imagem sublinhando ao
mesmo tempo a força, no mundo islâmico, das solidariedades de base e a brutalidade
freqüente dos irmãos em relação às próprias irmãs.457
Assim, não há como se pensar nestas mulher com os parâmetros ocidentais. Não dá
para falar em escolhas quando a ela isso foi negado na mais tenra infância. E mesmo quando
elas migram para outros países, raras são as que conseguem desvencilhar-se de seus passados,
sem contar os processos estigmatizantes que acabam vivenciando no país que as “acolheu.”
Nesse sentido, Touraine informa, com relação ao grupo de muçulmanas pesquisadas que
vivem na França:
Para elas é impossível escolher entre as duas culturas às quais pertencem, mas
impossível, sobretudo, viver inteiramente em uma delas. A única escolha possível
não é a melhor; ela é simplesmente a menos pior: ser simultaneamente muçulmanas
e francesas, aceitando ao mesmo tempo ser rejeitadas pela comunidade muçulmana
(e até mesmo pela família) e ser rejeitadas ou mantidas num destino inferior pela
sociedade francesa. A ambivalência se expressa desta forma: como não se pode
escolher entre estes dois lados opostos, somos constrangidas a viver de maneira não
satisfatória, até mesmo frustrante, simultaneamente nos dois lados.458
454
Idem ibidem.
455
Ibidem, p. 43-44.
456
TOURAINE, Alain. Op. cit., p. 139.
457
Idem ibidem. O que não se pode esquecer é que esse irmão é fruto da mesma cultura que aprisiona as
mulheres.
458
Ibidem, p. 145.
188
Ficai sossegadas em vossos lares e não atrai a atenção [...] E dize às mulheres
crentes que devem baixar o olhar e conservar a modéstia; que não ostentem sua
beleza e ornamentos, exceto o que (precisa normalmente) aparecer; que devem
ocultar o peito sob seus véus e não exibir sua beleza a não ser a seus maridos, aos
pais, aos pais de seus maridos, a seus filhos, aos filhos de seus maridos, a seus
irmãos, ou aos filhos dos seus irmãos, ou aos filhos de suas irmãs, ou às outras
mulheres, ou àqueles que sua mão direita possui (seus escravos), ou aos servos
homens livres de necessidades físicas, ou às crianças pequenas, que não têm noção
da vergonha do sexo. Ó, profeta! Dize a tuas mulheres e filhas, e às mulheres
crentes, que devem envergar seus trajes exteriores (quando fora de casa): isto é o que
mais convém, para que sejam conhecidas (como tais) e não sejam molestadas.459
Esse texto, além de evidenciar a supremacia masculina sobre a mulher, determina que
o corpo feminino deve ser mantido oculto, até porque a perda da virgindade significa para a
família que todas as mulheres que a integram são promíscuas, razão pela qual ela é punida
severamente pela própria família. As punições vão do insulto à expulsão, do confinamento ao
casamento forçado, seja com o causador do defloramento ou outro homem disposto a encobrir
a vergonha familiar, geralmente “homens pobres, débeis mentais, velhos, impotentes, ou tudo
isso ao mesmo tempo,460 ou até mesmo a morte, assassinatos que são cometidos, muitas
vezes, pelos próprios familiares. As Nações Unidas relatam que 5 mil jovens são mortas, a
cada ano, por esse motivo, conforme pesquisas realizadas por Ali.461
Devido ao apartheid de gênero pelo qual as mulheres são banidas da vida pública,
um homem muçulmano não dispõe de nenhum meio natural para conhecer uma
mulher por quem possa se apaixonar. Por essa razão, a escolha fica a cargo de sua
família, pois somente esta saberia onde encontrar uma virgem autêntica. Embora
muitas vezes nem sequer se conheçam, os recém-casados são obrigados a ter uma
relação sexual na noite de núpcias. Mesmo que a moça não queira e seu corpo se
feche de medo e repulsa, ela tem de fazê-lo. E ainda que o marido também não o
queira, deve provar sua virilidade e potência. Os convidados aguardam do lado de
fora, até que seja exigido um lençol sujo de sangue. Esta relação compulsória é de
459
ALI, Ayaan Hirsi. Op. cit., p. 44.
460
Ibidem, p. 41-42.
461
Ibidem.
189
A lista de Parekh teria que ser acrescida de alguns elementos para possível
admissibilidade da MGF, como, por exemplo: (1) ausência total de dano físico e psicológico
para o feto e para a mulher; (2) consentimento da mulher, que teria por requisito a
462
Ibidem, p. 45-46.
463
Segundo Fatou Sow, sociólogo, membro do Comitê Científico Global e professor de Sociologia na
Universidade de Sorbonne - Paris: “hoje, a maioria das ativistas africanas recusa o conceito de circuncisão
feminina”, em nome do respeito da integridade de seus corpos, de sua sexualidade e de sua fecundidade, pelos
homens e pela comunidade. Disponível em: <http://vsites.unb.br/ih/his/gefem/labrys5/textoscondensados/
sowbr.htm>. Acesso em 28 mai 2010.
464
Mutilação. OMS diz a médicos que não façam a circuncisão feminina. Jornal de Londrina. Disponível em:
<http://portal.rpc.com.br/jl/online/conteudo.phtml?tl=1&id=970949&tit=OMS-diz-a-medicos-que-nao-facam-a-
circuncisao-feminina>. Acesso em 28 mai 2010.
465
Texto original traduzido pela mestranda: “Unless female circumcision is shown to cause graver harm, there is
no obvious reason to treat it differently. All that society is entitled to insist upon is that it should be done by
qualified people under public supervision and medically acceptable conditions.” PAREKH, Bhikhu. Op.cit., p.
276.
190
maioridade e a plena consciência de seus atos, para decidir por livre e espontânea vontade
submeter sua genitália à mutilação; (3) conhecimento, por parte da mulher, de todas as
implicações decorrentes de seu ato; e (4) a circuncisão (termo utilizado somente para
acompanhar o exposto pelo autor, pois para estudo o termo válido é mutilação) teria que,
obrigatoriamente, ser realizada em clínicas especializadas, com recursos e materiais
adequados e supervisionadas por órgãos internacionais de saúde. Vale lembrar que este rol
que não é taxativo.
Alguns registros apontam, embora sem muita precisão, que há uma história por trás da
mutilação genital feminina. Conta-se que Abraão (ou Ibrahim, em árabe) casou com Sara, que
por ser estéril não lhe deu os esperados filhos. Dessa forma, sugeriu ao marido que tomasse
outra mulher, que pudesse lhe propiciar descendentes. Abraão escolheu Agar, a escrava
egípcia, que engravidou, recebendo de seu senhor muita atenção, o que despertou em Sara, ao
perceber o crescente interesse de Abraão por Agar, ciúmes. Voltando sua ira para a escrava,
Agar mutilou seu órgão sexual. Esse episódio, levado para as três religiões monoteístas
466
Na pesquisa se detectou que a MGF é realizada até em bebês, ao argumento de sentirem menos dor.
467
ALI, Ayaan Hirsi. Op. cit., p. 146.
468
Ibidem, p. 150.
191
A mutilação genital feminina pode ocorrer de três formas: (1) tradicional, que consiste
na remoção da ponta do clitóris; (2) a clitoridectomia, envolve a retirada do clitóris e parte dos
lábios vaginais e (3) a faraônica, remove todo o clitóris, os lábios vaginais e costura a vulva
de um lado a outro. Segundo os estudiosos, esta é a mais dolorosa das três:472
A maior parte dos países que executam a mutilação genital feminina o faz sem
nenhuma assepsia ou remédio que reduza a dor e os materiais utilizados para a mutilação vão
desde facas, giletes até cacos de vidro. O legado desse processo para a mulher é, fisicamente,
o tétano, infecções e dores. Na época do parto, o feto sofre, na maioria das vezes, pressões no
crânio e coluna. Mãe e filho padecem as consequências da mutilação. Psicologicamente, os
danos são geralmente irreversíveis, carregando a mulher para o resto de sua vida os traumas
dessa violência (efeitos psiquiátricos, psicossomáticos e psicossociais).474
Segundo Fran Hosken, estima-se que haja 115 milhões de mulheres no mundo que
sofreram mutilação genital feminina, sendo prática comum em 28 países africanos, com
469
BOUJOU, Jean-Marc. O holocausto silencioso das mulheres a quem continuam a extrair o clitóris.
Disponível em: <http://www.mulheres-ps20.ipp.pt/Mutilacao_Genital_Feminina.htm>. Acesso em 28 mai 2010.
470
Ver item 3.2 desta dissertação.
471
Por mais que o mundo ocidental veja a prática da MGF como originária do islamismo, na pesquisa não foi
encontrada nenhuma referência a ela no Alcorão, ou algum autor levantando tal prática ao Islã. Há uma pequena
menção, efetuada por Bodim de Moraes, de que haveria uma passagem ambígua no hadith, o que justificaria sua
imposição e, ao mesmo tempo, sua ausência em alguns países islâmicos. BODIN DE MORAES, Maria Celina.
Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
472
DINIZ, Débora. Valores universais e direitos culturais. In NOVAES, Regina. (Org.). Direitos humanos:
temas e perspectivas. Rio de Janeiro: Mauad, 2001
473
Ibidem, p. 59.
474
Ibidem.
192
costumes diferentes, variando de uma região para outra. A ablação do clitóris é a mais
praticada na África do oeste, ao passo que a infibulação (faraônica) o é em países como a
Somália, o Sudão, a Etiópia e o Egito. Mas a mutilação genital feminina não é privilégio
somente dessas regiões, pois outros países no mundo têm igualmente essas práticas, como o
Iêmen, a Indonésia, a Malásia, e outros, do subcontinente indiano. Isso acontece também em
certos países da Europa, da América do Norte e da Austrália, que abrigam comunidades
imigradas destas regiões. Na Europa, assim como nos Estados Unidos, filhas de imigrantes
são excisadas lá mesmo ou levadas aos seus países de origem para sê-lo.475
Beatriz Labate noticia que alguns grupos indígenas da Amazônia e do Peru também
praticam a mutilação genital feminina. Contudo, a autora não descreve as formas utilizadas
pelos índios amazônicos, descrevendo, com precisão, a prática realizada pelos Shipibos, povo
guerreiro da família Pano que vive na região do Ucayali no Peru. Segundo a autora, tão logo a
menina tem sua primeira menstruação deve submeter-se ao que ela nomina de “circuncisão
feminina. A autora informa, também, que por ocasião de uma viagem que fez a comunidade
procurou indagar a razão de tal prática, pois:
475
HOSKEN, Fran P. The hosken report : genital and sexual mutilation of females. Lexington, Mass,
Women's International: Network News, 1993.
476
LABATE, Beatriz Caiuby. Mutilação genital feminina aqui do lado. Planeta Sagrado: Povos Indígenas.
02/02/2005. Disponível em <http://terramistica.com.br/index.php?add=Artigos&file=article&sid=55&ch=6>.
Acesso em 28 mai 2010
477
Ibidem.
193
Henry Steiner e Philip Alston noticiam que a Associação de Mulheres Africanas para a
Pesquisa e o Desenvolvimento – AAWORD, organização não-governamental com sede em
Dakar, Senegal, expressou o mesmo repúdio: “AAWORD, [...] condenando firmemente a
mutilação genital e todas as demais práticas – tradicionais ou moderna - que oprimem a
mulher. 480 Ainda que exprimindo tal posição, a associação deixa patente que o assunto diz
respeito às mulheres africanas e que sem a ativa participação delas nenhuma mudança poderá
ser vislumbrada.
478
Ibidem.
479
As recomendações elaboradas pelo Comitê podem ser encontradas no site da Division for the Advancement
of Women. Department of Economic and Social Afairs. Convention on the Elimination of all forms of
Discrimination Against Women. Disponível em: <http://www.un.org/womenwatch/daw/cedaw/
recommendations/index.html>. Acesso em 28 mai 2010.
480
Texto original traduzido pela mestranda: “AAWORD, (...), firmly condemns genital mutilation and all other
practices – traditional or modern – which oppress women and justify exploiting them economically or socially,
as a serious violation of the fundamental rights of women”.STEINER, Henry, ALSTON, Philip. International
human rights in context. 2. ed. New York: Oxford University Press, 2000, p. 419
194
podemos estender o nosso apoio a comunidades em todo o mundo a fim de que estas
possam enveredar pela eliminação de todas as práticas de MGF/E no espaço de uma
geração e tornar realidade os compromissos internacionais.481
481
Grupo de Trabalho de Doadores contra a Mutilação Genital Feminina/Excisão. Plataforma de Ação para a
Eliminação da Mutilação Genital Feminina/Excisão (MGF/E). Uma questão de igualdade de gênero.
Disponível em: <http://www.fgm-cdonor.org/publications/dwg_platform_action_portuguese.pdf>. Acesso em 28
mai 2010.
482
Ibidem.
483
Disponível em: <http://www.un.org/documents/scres.htm>. Acesso em 29 mai 2010.
195
Apesar de todos esses esforços, a mutilação genital feminina ainda se faz presente em
muitos países e dela não são conhecidos qualquer benefício para a saúde, muito ao contrário,
pois é voz corrente, e estudos médicos assim comprovam, que ela é dolorosa e traumática e
interfere com o funcionamento natural do corpo, tendo consequências nefastas, haja vista que
196
pode levar à morte por infecção ou hemorragia, assim como a mortalidade, no caso de parto,
ao neonatal.
No campo dos Direitos Humanos, é inegável que a mutilação genital feminina propaga
a desigualdade de gênero, além de se constituir em um forte instrumento de descriminação
contra a mulher. Ela viola vários direitos, como o direito à saúde, segurança, integridade física
e liberdade. Afora isso, evidencia tratamento cruel, desumano e degradante. A esses se soma a
afronta à Declaração Universal dos Direitos das Crianças, quando realizada em infantes,
aliado ao fato que põe em causa o direito à vida, quando dela resulta morte.
Após as abordagens relatadas neste tópico, é possível observar uma colisão entre
Direitos Humanos, embate expresso pela contraposição entre o direito à autonomia privada,
consubstanciado no direito à particularidade cultural, e o interesse da comunidade
internacional em erradicar determinadas práticas contrárias às normas internacionais de
Direitos Humanos, o que leva à indagação de como superar essa tensão? Talvez, ao menos
para ver iluminado o impasse, a tarefa possa ser enfrentada à luz das propostas de diálogo
intercultural anteriormente apresentadas.
197
CONCLUSÃO
Nós vos pedimos com insistência nunca digam - isso é natural diante dos
acontecimentos de cada dia numa época em que reina a confusão em que corre o
sangue em que ordena-se a desordem em que o arbítrio tem força de lei em que a
humanidade se desumaniza Não digam, nunca - isso é natural".
Bertold Brecht
Ao término desta dissertação, a qual teve por objetivo o estudo dos Direitos Humanos ,
delimitado pelos Direitos Humanos Internacional sob o escopo da cultura islâmica frente às
relações de gênero, fica a certeza que o debate do tema proposto propiciou a reflexão de que
em uma sociedade global, composta por diferentes grupos sociais, com experiências de
formação divergentes e, às vezes, até antagônicas, culturas e identidade totalmente ímpares,
os DH fixam-se como tema indispensável para o debate dos rumos que a humanidade
pretende tomar, seja aderindo a um universalismo cosmopolita, seja reforçando as identidades
e cultura local.
Humanos, seja no campo interno quanto internacional, que necessita de um consenso mundial
em relação ao tema.
Portanto, conclui-se que compreender a diversidade de culturas tão diferentes entre si,
como a cultura islâmica e a ocidental, é o caminho inicial para a integração, o que implica um
exercício de compreensão e de respeito às identidades e diferenças, única possibilidade viável
de construção de um diálogo internacional.
uma imensa variedade cultural entre as inúmeras sociedades que se encontram espalhadas
pelo Globo Terrestre e, por conseguinte, todas as espécies de costumes locais precisariam ser
reputados válidos. Não seria correto eleger um reduzido número de modelos culturais, que
seriam tidos como padrões universais e, fulcrados neles, passar a avaliar e a estigmatizar
todos os outros que com eles não se coadunassem. A dignidade humana continuaria sendo um
relevante princípio a ser preservado, mas, ao contrário dos universalistas, muitas vezes
rotulados como defensores das ideologias ocidentais, e que procuram oferecer guarida a esta
dignidade por intermédio de uma mentalidade voltada para os direitos individuais, a doutrina
relativista tem-se utilizado mais de uma abordagem coletiva de proteção a esta mesma
dignidade, através de interações com a própria sociedade, que policia as ações dos indivíduos.
Este é o motivo porque severos controles comportamentais pela comunidade são permitidos.
Não obstante a polêmica, a conclusão que se chega é que a Declaração Universal dos
Direitos Humanos deve ser imposta como um código de atuação e de conduta para os Estados
integrantes da comunidade internacional, em razão de consagrar o reconhecimento universal
dos Direitos Humanos pelos Estados, razão pela qual as culturas não podem ser vistas como
antagônicas e excludentes, devendo ser buscados lugares comuns entre elas. Diálogo e
respeito parecem ser as palavras certas para o momento, e para o futuro, sendo a dignidade
humana um critério possível para orientar todas as culturas, pois transcendem todos os valores
e se moldam perfeitamente aos dois imperativos interculturais propostos por Boaventura de
Souza Santos: a do círculo mais amplo de reciprocidade dentro de uma cultura e do direito de
sermos iguais quando a diferença nos inferioriza e diferentes quando a igualdade nos
descaracteriza.
daqueles que têm estado nas margens, nos flancos; através dos olhos daqueles do
Sul, no Sul e daqueles do Sul, no Norte; através dos olhos das mulheres."484
Mulheres que a pesquisa deixou falar, pois relegadas ao âmbito da casa e da criação
dos filhos, enquanto os homens saíam para o mundo do trabalho, do poder, da guerra e do
conhecimento. Conclui-se que as representações sociais, por isso, basearam-se na
domesticação das mulheres a partir da biologização485 da sua identidade, justificando sua
exclusão e permitindo ao mesmo tempo ao homem usufruir do espaço público a elas vedado.
Ao homem foi legado o mundo do domínio público, correspondendo às mulheres o mundo do
privado, onde se desenvolveu a submissão e a inferiorização em relação ao homem.
A pesquisa revelou uma das mais exuberantes culturas erguidas durante o primeiro
milênio, a civilização islâmica, que legou à humanidade valiosas conquistas em vários ramos
do saber: na Medicina, através de centenas de tratados, em que sistematizaram todo o
conhecimento médico produzido até então, na Física, Química, Psicologia, Filosofia,
Literatura, entre outras áreas. A álgebra é uma ciência tipicamente árabe. Traduções e
comentários das obras de Platão e Aristóteles, feitas pelos eruditos muçulmanos da época,
foram responsáveis, em boa medida, pela preservação da filosofia grega durante a Idade
Média. Todavia, apesar de todo esse esplendor científico, e as possibilidades de reflexão e de
inspiração que ela oferece, a cultura árabe permanece praticamente desconhecida do ocidente,
que a vê somente nos exemplos de radicalismos e intolerância, motivo pelo qual se conclui
que é necessário eliminar esse persistente desconhecimento da rica tradição islâmica entre os
ocidentais.
484
Corinne Kum ar-D'Souza. O vento do sul: em direção a novas cosmologias em CLADEM - Comitê Latino-
americano para a Defesa dos Direitos da Mulher. São Paulo, novembro, 1993.
485
Entendida como explicação das desigualdades construídas socialmente, a partir das características físicas dos
indivíduos, ou seja, por sua identidade de gênero ou pertencimento a um determinado grupo racial-étnico.
Definições da Web. Glossário. Disponível em: <http://www.clarocurtas.com.br/versao-2008/paginas/
glossario.jsp>. Acesso em 15 jul 2010.
201
Com relação à submissão da mulher islâmica, deve ser lembrado que a juventude está
procurando formas de abolir uma construção milenar, até porque a globalização e as
necessidades que ela imprime ao próprio processo fazem com que homens e mulheres
esclarecidos busquem novas alternativas. A mulher islâmica, hoje, é fruto de um processo
cultural que somente a educação pode derrubar e não a simples comparação entre mulheres
ocidentais e orientais, pois cada uma carrega o seu fardo de construções históricas de
dominação.
Isto posto, a conclusão que se chega ao final desta dissertação é que as normas
internacionais de Direitos Humanos, sobretudo a Carta Internacional de Direitos, não foram
acordadas (e grande parte ainda não são) com a participação de toda a humanidade, o que
reflete uma opção valorativa específica. Isto acarreta um desafio à legitimidade do paradigma
contemporâneo da teoria e prática dos Direitos Humanos, pois constantemente em confronto
com as particularidades cultural, conforme se evidenciou neste estudo.
invocado tanto por pessoas oprimidas em Estados autoritários como por Estados autoritários
contra povos oprimidos, sob a justificativa de intervenção humanitária.”486
486
FRANCISCO, Rachel Herdy de Barros. Diálogo intercultural dos direitos humanos. Disponível em:
<http://www.dhdi.free.fr/recherches/droithomme/memoires/Rachelmemoir.pdf>. Acesso em 14 jul 2010.
203
implica que a categoria dos direitos culturais deva ser alçada ao mesmo patamar de
preocupação e proteção dos direitos e liberdades individuais.
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226
APÊNDICES
227
CRONOLOGIA
• Origens (570-632)
570: nasce, em Meca, o profeta Maomé
595: Maomé se casa com Khadija
611: o profeta começa a receber a revelação do Corão
622: Maomé e seus seguidores migram para Medina; começa o calendário islâmico
630: os discípulos do profeta conquistam Meca e Maomé retorna à sua terra
632: Maomé morre
GLOSSÁRIO ÁRABE487
487
Adaptado do livro de Karen Armstrong, O Islã e ampliado com várias fontes.
230
MAPAS
GRÁFICOS
TABELAS
ANEXO I
PREÂMBULO
Artigo 2°
Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente
Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de
religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento
236
ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no
estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa,
seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação
de soberania.
Artigo 3°
Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Artigo 4°
Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos,
sob todas as formas, são proibidos.
Artigo 5°
Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes.
Artigo 6°
Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento, em todos os lugares, da sua
personalidade jurídica.
Artigo 7°
Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei. Todos têm
direito a proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e
contra qualquer incitamento a tal discriminação.
Artigo 8°
Toda a pessoa direito a recurso efetivo para as jurisdições nacionais competentes contra os
atos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei.
Artigo 9°
Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado.
Artigo 10°
Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja eqüitativa e
publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e
obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida.
Artigo 11°
1. Toda a pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade
fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias
necessárias de defesa lhe sejam asseguradas.
2. Ninguém será condenado por ações ou omissões que, no momento da sua prática, não
constituíam ato delituoso à face do direito interno ou internacional. Do mesmo modo, não será
infligida pena mais grave do que a que era aplicável no momento em que o acto delituoso foi
cometido.
Artigo 12°
Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio
237
ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou
ataques toda a pessoa tem direito a proteção da lei.
Artigo 13°
1. Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de
um Estado.
2. Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o
direito de regressar ao seu país.
Artigo 14°
1. Toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo em
outros países.
2. Este direito não pode, porém, ser invocado no caso de processo realmente existente por
crime de direito comum ou por atividades contrárias aos fins e aos princípios das Nações
Unidas.
Artigo 15°
1. Todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade.
2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar
de nacionalidade.
Artigo 16°
1. A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família,
sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião. Durante o casamento e na altura da
sua dissolução, ambos têm direitos iguais.
2. O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento dos futuros
esposos.
3. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e
do Estado.
Artigo 17°
1. Toda a pessoa, individual ou coletiva, tem direito à propriedade.
2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade.
Artigo 18°
Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito
implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de
manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em
privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.
Artigo 19°
Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de
não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração
de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão.
Artigo 20°
1. Toda a pessoa tem direito à liberdade de reunião e de associação pacíficas.
2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.
Artigo 21°
1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direção dos negócios, públicos do seu país,
quer diretamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos.
238
2. Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu
país.
3. A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos: e deve exprimir-se
através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto
secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto.
Artigo 22°
Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode
legitimamente exigir a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis,
graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os
recursos de cada país.
Artigo 23°
1. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições eqüitativas e
satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual.
3. Quem trabalha tem direito a uma remuneração eqüitativa e satisfatória, que lhe permita e à
sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por
todos os outros meios de proteção social.
4. Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em
sindicatos para defesa dos seus interesses.
Artigo 24°
Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres, especialmente, a uma limitação razoável
da duração do trabalho e as férias periódicas pagas.
Artigo 25°
1. Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a
saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à
assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança
no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de
meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.
2. A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças,
nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozam da mesma proteção social.
Artigo 26°
1. Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a
correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino
técnico e profissional dever ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar
aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito.
2. A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos
do Homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a
amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o
desenvolvimento das atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz.
3. Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos.
Artigo 27°
1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de
fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam.
2. Todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção
científica, literária ou artística da sua autoria.
239
Artigo 28°
Toda a pessoa tem direito a que reine, no plano social e no plano internacional, uma ordem
capaz de tornar plenamente efetivos os direitos e as liberdades enunciadas na presente
Declaração.
Artigo 29°
1. O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e
pleno desenvolvimento da sua personalidade. No exercício deste direito e no gozo destas
liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista
exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e
2. liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e
do bem-estar numa sociedade democrática.
3. Em caso algum estes direitos e liberdades poderão ser exercidos contrariamente e aos fins e
aos princípios das Nações Unidas.
Artigo 30°
Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de maneira a envolver para
qualquer Estado, agrupamento ou indivíduo o direito de se entregar a alguma atividade ou de
praticar algum ato destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados.
240
ANEXO II
PREÂMBULO
a) o direito de recorrer aos tribunais nacionais competentes contra qualquer ato que viole os
direitos fundamentais que lhe são reconhecidos e garantidos pelas convenções, leis,
regulamentos e costumes em vigor;
b) o direito de presunção de inocência até que a sua culpabilidade seja reconhecida por um
tribunal competente;
c) o direito de defesa, incluindo o de ser assistido por um defensor de sua livre escolha;
d) o direito de ser julgado em um prazo razoável por um tribunal imparcial.
2. Ninguém pode ser condenado por uma ação ou omissão que não constituía, no momento
em que foi cometida, uma infração legalmente punível. Nenhuma pena pode ser prescrita se
não estiver prevista no momento em que a infração foi cometida. A pena é pessoal e pode
atingir apenas o delinqüente.
Artigo 8º
A liberdade de consciência, a profissão e a prática livre da religião são garantidas. Sob reserva
da ordem pública, ninguém pode ser objeto de medidas de constrangimento que visem
restringir a manifestação dessas liberdades.
Artigo 9º
1. Toda pessoa tem direito à informação.
2. Toda pessoa tem direito de exprimir e de difundir as suas opiniões no quadro das leis e dos
regulamentos.
Artigo 10º
1. Toda pessoa tem direito de constituir, livremente, com outras pessoas, associações, sob
reserva de se conformar às regras prescritas na lei.
2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação sob reserva da obrigação de
solidariedade prevista no artigo 29º.
Artigo 11º
Toda pessoa tem direito de se reunir livremente com outras pessoas. Este direito exerce-se sob
a única reserva das restrições necessárias estabelecidas pelas leis e regulamentos,
nomeadamente no interesse da segurança nacional, da segurança de outrem, da saúde, da
moral ou dos direitos e liberdades das pessoas.
Artigo 12º
1. Toda pessoa tem o direito de circular livremente e de escolher a sua residência no interior
de um Estado, sob reserva de se conformar às regras prescritas na lei.
2. Toda pessoa tem o direito de sair de qualquer país, incluindo o seu, e de regressar ao seu
país. Este direito só pode ser objeto de restrições previstas na lei, necessárias à proteção da
segurança nacional, da ordem, da saúde ou da moralidade públicas.
3. Toda pessoa tem o direito, em caso de perseguição, de buscar e de obter asilo em território
estrangeiro, em conformidade com a lei de cada país e as convenções internacionais.
4. O estrangeiro legalmente admitido no território de um Estado Parte na presente Carta só
poderá ser expulso em virtude de uma decisão legal.
5. A expulsão coletiva de estrangeiros é proibida. A expulsão coletiva é aquela que visa
globalmente grupos nacionais, raciais, étnicos ou religiosos.
Artigo 13º
1. Todos os cidadãos têm direito de participar livremente na direção dos assuntos públicos do
seu país, quer diretamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos, isso
em conformidade com as regras prescritas na lei.
2. Todos os cidadãos têm, igualmente, direito de acesso às funções públicas do seu país.
243
3. Toda pessoa tem o direito de usar os bens e serviços públicos em estrita igualdade de todos
perante a lei.
Artigo 14º
O direito de propriedade é garantido, só podendo ser afetado por necessidade pública ou no
interesse geral da coletividade, em conformidade com as disposições de normas legais
apropriadas.
Artigo 15º
Toda pessoa tem direito de trabalhar em condições eqüitativas e satisfatórias e de perceber um
salário igual por um trabalho igual.
Artigo 16º
1. Toda pessoa tem direito ao gozo do melhor estado de saúde física e mental que for capaz de
atingir.
2. Os Estados Partes na presente Carta comprometem-se a tomar as medidas necessárias para
proteger a saúde das suas populações e para assegurar-lhes assistência médica em caso de
doença.
Artigo 17º
1. Toda pessoa tem direito à educação.
2. Toda pessoa pode tomar parte livremente na vida cultural da comunidade.
3. A promoção e a proteção da moral e dos valores tradicionais reconhecidos pela comunidade
constituem um dever do Estado no quadro da salvaguarda dos direitos humanos.
Artigo 18º
1. A família é o elemento natural e a base da sociedade. Ela tem que ser protegida pelo
Estado, que deve zelar pela sua saúde física e moral.
2. O Estado tem a obrigação de assistir a família na sua missão de guardiã da moral e dos
valores tradicionais reconhecidos pela comunidade.
3. O Estado tem o dever de zelar pela eliminação de toda a discriminação contra a mulher e de
assegurar a proteção dos direitos da mulher e da criança tais como estipulados nas declarações
e convenções internacionais.
4. As pessoas idosas ou incapacitadas têm igualmente direito a medidas específicas de
proteção que correspondem às suas necessidades físicas ou morais.
Artigo 19º
Todos os povos são iguais, gozam da mesma dignidade e têm os mesmos direitos. Nada pode
justificar a dominação de um povo por outro.
Artigo 20º
1. Todo povo tem direito à existência. Todo povo tem um direito imprescritível e inalienável à
autodeterminação. Ele determina livremente o seu estatuto político e assegura o seu
desenvolvimento econômico e social segundo a via que livremente escolheu.
2. Os povos colonizados ou oprimidos têm o direito de se libertar do seu estado de dominação
recorrendo a todos os meios reconhecidos pela comunidade internacional.
3. Todos os povos têm direito à assistência dos Estados Partes na presente Carta, na sua luta
de libertação contra a dominação estrangeira, quer seja esta de ordem política, econômica ou
cultural.
Artigo 21º
1. Os povos têm a livre disposição das suas riquezas e dos seus recursos naturais. Este direito
244
exerce-se no interesse exclusivo das populações. Em nenhum caso o povo pode ser privado
deste direito.
2. Em caso de espoliação, o povo espoliado tem direito à legítima recuperação dos seus bens,
assim como a uma indenização adequada.
3. A livre disposição das riquezas e dos recursos naturais exerce-se sem prejuízo da obrigação
de promover uma cooperação econômica internacional baseada no respeito mútuo, na troca
eqüitativa e nos princípios do direito internacional.
4. Os Estados Partes na presente Carta comprometem-se, tanto individual como
coletivamente, a exercer o direito de livre disposição das suas riquezas e dos seus recursos
naturais com vistas a reforçar a unidade e a solidariedade africanas.
5. Os Estados Partes na presente Carta comprometem-se a eliminar todas as formas de
exploração econômica e estrangeira, nomeadamente a que é praticada por monopólios
internacionais, a fim de permitir que a população de cada país se beneficie plenamente das
vantagens provenientes dos seus recursos nacionais.
Artigo 22º
1. Todos os povos têm direito ao seu desenvolvimento econômico, social e cultural, no estrito
respeito da sua liberdade e da sua identidade, e ao gozo igual do patrimônio comum da
humanidade.
2. Os Estados têm o dever, separadamente ou em cooperação, de assegurar o exercício do
direito ao desenvolvimento.
Artigo 23º
1. Os povos têm direito à paz e à segurança, tanto no plano nacional como no plano
internacional. O princípio da solidariedade e das relações amistosas implicitamente afirmado
na Carta da Organização das Nações Unidas e reafirmado na Carta da Organização da
Unidade Africana deve dirigir as relações entre os Estados.
2. Com o fim de reforçar a paz, a solidariedade e as relações amistosas, os Estados Partes na
presente Carta comprometem-se a proibir:
a) que uma pessoa gozando do direito de asilo nos termos do artigo 12º da presente Carta
empreenda uma atividade subversiva contra o seu país de origem ou contra qualquer outro
Estado Parte na presente Carta;
b) que os seus territórios sejam utilizados como base de partida de atividades subversivas ou
terroristas dirigidas contra o povo de qualquer outro Estado Parte na presente Carta.
Artigo 24º
Todos os povos têm direito a um meio ambiente geral satisfatório, propício ao seu
desenvolvimento.
Artigo 25º
Os Estados Partes na presente Carta têm o dever de promover e assegurar, pelo ensino, a
educação e a difusão, o respeito dos direitos e das liberdades contidos na presente Carta, e de
tomar medidas para que essas liberdades e esses direitos sejam compreendidos, assim como as
obrigações e deveres correspondentes.
Artigo 26º
Os Estados Partes na presente Carta têm o dever de garantir a independência dos tribunais e
de permitir o estabelecimento e o aperfeiçoamento de instituições nacionais apropriadas
encarregadas da promoção e da proteção dos direitos e liberdades garantidos pela presente
Carta.
245
Capítulo II
DOS DEVERES
Artigo 27º
1. Cada indivíduo tem deveres para com a família e a sociedade, para com o Estado e outras
coletividades legalmente reconhecidas, e para com a comunidade internacional.
2. Os direitos e as liberdades de cada pessoa exercem-se no respeito dos direitos de outrem, da
segurança coletiva, da moral e do interesse comum.
Artigo 28º
Cada indivíduo tem o dever de respeitar e de considerar os seus semelhantes sem nenhuma
discriminação e de manter com eles relações que permitam promover, salvaguardar e reforçar
o respeito e a tolerância recíprocos.
Artigo 29º
O indivíduo tem ainda o dever:
1. De preservar o desenvolvimento harmonioso da família e de atuar em favor da sua coesão e
respeito; de respeitar a todo momento os seus pais, de os alimentar e de os assistir em caso de
necessidade.
2. De servir a sua comunidade nacional pondo as suas capacidades físicas e intelectuais a seu
serviço.
3. De não comprometer a segurança do Estado de que é nacional ou residente.
4. De preservar e reforçar a solidariedade social e nacional, particularmente quando esta é
ameaçada.
5. De preservar e reforçar a independência nacional e a integridade territorial da pátria e, de
uma maneira geral, de contribuir para a defesa do seu país, nas condições fixadas pela lei.
6. De trabalhar, na medida das suas capacidades e possibilidades, e de desobrigar-se das
contribuições fixadas pela lei para a salvaguarda dos interesses fundamentais da sociedade.
7. De zelar, nas suas relações com a sociedade, pela preservação e reforço dos valores
culturais africanos positivos, em um espírito de tolerância, de diálogo e de concertação e, de
uma maneira geral, de contribuir para a promoção da saúde moral da sociedade.
8. De contribuir com as suas melhores capacidades, a todo momento e em todos os níveis,
para a promoção e realização da Unidade Africana.
PARTE II
DAS MEDIDAS DE SALVAGUARDA
Capítulo I
DA COMPOSIÇÃO E DA ORGANIZAÇÃO DA COMISSÃO AFRICANA DOS
DIREITOS HUMANOS E DOS POVOS
Artigo 30º
É criada junto à Organização da Unidade Africana uma Comissão Africana dos Direitos
Humanos e dos Povos, doravante denominada "a Comissão", encarregada de promover os
direitos humanos e dos povos e de assegurar a respectiva proteção na África.
Artigo 31º
1. A Comissão é composta por onze membros que devem ser escolhidos entre personalidades
africanas que gozem da mais alta consideração, conhecidas pela sua alta moralidade, sua
integridade e sua imparcialidade, e que possuam competência em matéria dos direitos
humanos e dos povos, devendo ser reconhecido um interesse particular na participação de
pessoas possuidoras de experiência em matéria de direito.
2. Os membros da Comissão exercem funções a título pessoal.
246
Artigo 32º
A Comissão não pode ter mais de um natural de cada Estado.
Artigo 33º
Os membros da Comissão são eleitos por escrutínio secreto pela Conferência dos Chefes de
Estado e de Governo, de uma lista de pessoas apresentadas para esse efeito pelos Estados
Partes na presente Carta.
Artigo 34º
Cada Estado Parte na presente Carta pode apresentar, no máximo, dois candidatos. Os
candidatos devem ter a nacionalidade de um dos Estados Partes na presente Carta. Quando um
Estado apresenta dois candidatos, um deles não pode ser nacional desse mesmo Estado.
Artigo 35º
1. O Secretário-Geral da Organização da Unidade Africana convida os Estados Partes na
presente Carta a proceder, em um prazo de pelo menos quatro meses antes das eleições, à
apresentação dos candidatos à Comissão.
2. O Secretário-Geral da Organização da Unidade Africana estabelece a lista alfabética das
pessoas assim apresentadas e comunica-a, pelo menos um mês antes das eleições, aos Chefes
de Estado e de Governo.
Artigo 36º
Os membros da Comissão são eleitos para um período de seis anos, renovável. Todavia, o
mandato de quatro dos membros eleitos quando da primeira eleição cessa ao cabo de dois
anos, e o mandato de três outros ao cabo de quatro anos.
Artigo 37º
Imediatamente após a primeira eleição, os nomes dos membros referidos no artigo 36º são
sorteados pelo Presidente da Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da OUA.
Artigo 38º
Após a sua eleição, os membros da Comissão fazem a declaração solene de bem e fielmente
exercerem as suas funções, com toda a imparcialidade.
Artigo 39º
1. Em caso de morte ou de demissão de um membro da Comissão, o Presidente da Comissão
informa imediatamente o Secretário-Geral da OUA, que declara o lugar vago a partir da data
da morte ou da data em que a demissão produz efeito.
2. Se, por opinião unânime dos outros membros da Comissão, um membro cessou de exercer
as suas funções em razão de alguma causa que não seja uma ausência de caráter temporário,
ou se se acha incapacitado de continuar a exercê-las, o Presidente da Comissão informa o
Secretário-Geral da Organização da Unidade Africana que declara então o lugar vago.
3. Em cada um dos casos acima previstos a Conferência dos Chefes de Estado e de Governo
procede à substituição do membro cujo lugar se acha vago para a parte do mandato que falta
perfazer, salvo se essa parte é inferior a seis meses.
Artigo 40º
Todo membro da Comissão conserva o seu mandato até a data de entrada em funções do seu
sucessor.
Artigo 41º
O Secretário-Geral da OUA designa um secretário da Comissão e fornece ainda o pessoal e os
247
meios e serviços necessários ao exercício efetivo das funções atribuídas à Comissão. A OUA
cobre os custos desse pessoal e desses meios e serviços.
Artigo 42º
1. A Comissão elege o seu Presidente e o seu Vice-Presidente por um período de dois anos,
renovável.
2. A Comissão estabelece o seu regimento interno.
3. O quorum é constituído por sete membros.
4. Em caso de empate de votos no decurso das votações, o voto do presidente é
preponderante.
5. O Secretário-Geral da OUA pode assistir as reuniões da Comissão, mas não participa nas
deliberações e nas votações, podendo todavia ser convidado pelo Presidente da Comissão a
usar da palavra.
Artigo 43º
Os membros da Comissão, no exercício das suas funções, gozam dos privilégios e imunidades
diplomáticos previstos pela Convenção sobre privilégios e imunidades da Organização da
Unidade Africana.
Artigo 44º
Os emolumentos e prestações dos membros da Comissão estão previstos no orçamento
ordinário da Organização da Unidade Africana.
Capítulo II
DAS COMPETÊNCIAS DA COMISSÃO
Artigo 45º
A Comissão tem por missão:
1. Promover os direitos humanos e dos povos e nomeadamente:
a) Reunir documentação, fazer estudos e pesquisas sobre problemas africanos no domínio dos
direitos humanos e dos povos, organizar informações, encorajar os organismos nacionais e
locais que se ocupam dos direitos humanos e, se necessário, dar pareceres ou fazer
recomendações aos governos;
b) Formular e elaborar, com vistas a servir de base à adoção de textos legislativos pelos
governos africanos, princípios e regras que permitam resolver os problemas jurídicos relativos
ao gozo dos direitos humanos e dos povos e das liberdades fundamentais;
c) Cooperar com as outras instituições africanas ou internacionais que se dedicam à promoção
e à proteção dos direitos humanos e dos povos;
2. Assegurar a proteção dos direitos humanos e dos povos nas condições fixadas pela presente
Carta.
3. Intepretar qualquer disposição da presente Carta a pedido de um Estado Parte, de uma
instituição da Organização da Unidade Africana ou de uma organização africana reconhecida
pela Organização da Unidade Africana.
4. Executar quaisquer outras tarefas que lhe sejam eventualmente confiadas pela Conferência
dos Chefes de Estado e de Governo.
Capítulo III
DO PROCESSO DA COMISSÃO
Artigo 46º
A Comissão pode recorrer a qualquer método de investigação apropriado; pode,
248
Artigo 54º
A Comissão submete a cada uma das sessões ordinárias da Conferência dos Chefes de Estado
e de Governo um relatório sobre as suas atividades.
II- Das outras comunicações
Artigo 55º
1. Antes de cada sessão, o secretário da Comissão estabelece a lista das comunicações que não
emanam dos Estados Partes na presente Carta e comunica-a aos membros da Comissão, os
quais podem querer tomar conhecimento das correspondentes comunicações e submetê-las à
Comissão.
2. A Comissão apreciará essas comunicações a pedido da maioria absoluta dos seus membros.
Artigo 56º
As comunicações referidas no artigo 55º, recebidas na Comissão e relativas aos direitos
humanos e dos povos, devem necessariamente, para ser examinadas, preencher as condições
seguintes:
1. Indicar a identidade do seu autor, mesmo que este solicite à Comissão manutenção de
anonimato.
2. Ser compatíveis com a Carta da Organização da Unidade Africana ou com a presente Carta.
3. Não conter termos ultrajantes ou insultuosos para com o Estado impugnado, as suas
instituições ou a Organização da Unidade Africana.
4. Não se limitar exclusivamente a reunir notícias difundidas por meios de comunicação de
massa.
5. Ser posteriores ao esgotamento dos recursos internos, se existirem, a menos que seja
manifesto para a Comissão que o processo relativo a esses recursos se prolonga de modo
anormal.
6. Ser introduzidas num prazo razoável, a partir do esgotamento dos recursos internos ou da
data marcada pela Comissão para abertura do prazo da admissibilidade perante a própria
Comissão.
7. Não dizer respeito a casos que tenham sido resolvidos em conformidade com os princípios
da Carta das Nações Unidas, da Carta da Organização da Unidade Africana ou com as
disposições da presente Carta.
Artigo 57º
Antes de qualquer exame quanto ao mérito, qualquer comunicação deve ser levada ao
conhecimento do Estado interessado por intermédio do Presidente da Comissão.
Artigo 58º
1. Quando, no seguimento de uma deliberação da Comissão, resulta que uma ou várias
comunicações relatam situações particulares que parecem revelar a existência de um conjunto
de violações graves ou maciças dos direitos humanos e dos povos, a Comissão chama a
atenção da Conferência dos Chefes de Estado e de Governo sobre essas situações.
2. A Conferência dos Chefes de Estado e de Governo pode então solicitar à Comissão que
proceda, quanto a essas situações, a um estudo aprofundado e que a informe através de um
relatório pormenorizado, contendo as suas conclusões e recomendações.
3. Em caso de urgência devidamente constatada, a Comissão informa o Presidente da
Conferência dos Chefes de Estado e de Governo que poderá solicitar um estudo aprofundado.
Artigo 59º
1. Todas as medidas tomadas no quadro do presente capítulo manter-se-ão confidenciais até
que a Conferência dos Chefes de Estado e de Governo decida diferentemente.
250
Capítulo IV
DOS PRINCÍPIOS APLICÁVEIS
Artigo 60º
A Comissão inspira-se no direito internacional relativo aos direitos humanos e dos povos,
nomeadamente nas disposições dos diversos instrumentos africanos relativos aos direitos
humanos e dos povos, nas disposições da Carta das Nações Unidas, da Carta da Organização
da Unidade Africana, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, nas disposições dos
outros instrumentos adotados pelas Nações Unidas e pelos países africanos no domínio dos
direitos humanos e dos povos, assim como nas disposições de diversos instrumentos adotados
no seio das agências especializadas das Nações Unidas de que são membros as Partes na
presente Carta.
Artigo 61º
A Comissão toma também em consideração, como meios auxiliares de determinação das
regras de direito, as outras convenções internacionais, quer gerais, quer especiais, que
estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos Estados membros da Organização da
Unidade Africana, as práticas africanas conformes às normas internacionais relativas aos
direitos humanos e dos povos, os costumes geralmente aceitos como constituindo o direito, os
princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações africanas, assim como a jurisprudência
e a doutrina.
Artigo 62º
Cada Estado compromete-se a apresentar, de dois em dois anos, contados da data da entrada
em vigor da presente Carta, um relatório sobre as medidas, de ordem legislativa ou outra,
tomadas com vistas a efetivar os direitos e as liberdades reconhecidos e garantidos pela
presente Carta.
Artigo 63º
1. A presente Carta ficará aberta à assinatura, ratificação ou adesão dos Estados membros da
Organização da Unidade Africana.
2. A presente Carta entrará em vigor três meses depois da recepção pelo Secretário-Geral dos
instrumentos de ratificação ou de adesão da maioria absoluta dos Estados membros da
Organização da Unidade Africana.
PARTE III
DISPOSIÇÕES DIVERSAS
Artigo 64º
1. Quando da entrada em vigor da presente Carta, proceder-se-á à eleição dos membros da
Comissão nas condições fixadas pelas disposições dos artigos pertinentes da presente Carta.
2. O Secretário-Geral da Organização da Unidade Africana convocará a primeira reunião da
Comissão na sede da Organização. Depois, a Comissão será convocada pelo seu Presidente
sempre que necessário e pelo menos uma vez por ano.
251
Artigo 65º
Para cada um dos Estados que ratificar a presente Carta ou que a ela aderir depois da sua
entrada em vigor, esta mesma Carta produzirá efeito três meses depois da data do depósito por
esse Estado do seu instrumento de ratificação ou de adesão.
Artigo 66º
Protocolos ou acordos particulares poderão completar, em caso de necessidade, as disposições
da presente Carta.
Artigo 67º
O Secretário-Geral da Organização da Unidade Africana informará os Estados membros da
Organização da Unidade Africana do depósito de cada instrumento de ratificação ou de
adesão.
Artigo 68º
A presente Carta pode ser emendada ou revista se um Estado Parte enviar, para esse efeito,
um pedido escrito ao Secretário-Geral da Organização da Unidade Africana. A Conferência
dos Chefes de Estado e de Governo só aprecia o projeto de emenda depois de todos os
Estados Partes terem sido devidamente informados e da Comissão ter dado o seu parecer a
pedido do Estado proponente. A emenda deve ser aprovada pela maioria absoluta dos Estados
Partes. Ela entra em vigor para cada Estado que a tenha aceito em conformidade com as suas
regras constitucionais três meses depois da notificação dessa aceitação ao Secretário-Geral da
Organização da Unidade Africana
252
ANEXO III
ÍNDICE:
I Direito à Vida
II Direito à Liberdade
III Direito à Igualdade e Proibição de Discriminação Ilícita
IV Direito à Justiça
V Direito a um Julgamento Justo
VI Direito à Proteção contra o Abuso de Poder
VII Direito à Proteção contra a Tortura
VIII Direito à Proteção da Honra e da Reputação
IX Direito ao Asilo
X Direito das Minorias
XI Direito e Obrigação de Participação na Condução e Direção da Coisa Pública
XII Direito à Liberdade de Crença, Pensamento e Expressão
XIII Direito à Liberdade de Religião
XIV Direito à Livre Associação
XV A Ordem Econômica e os Direitos dela decorrentes
XVI Direito à Proteção da Propriedade
XVII Condição e Dignidade dos Trabalhadores
XVIII Direito à Seguridade Social
XIX Direito de Constituir Família e Assuntos Correlatos
XX Direitos das Mulheres Casadas
XXI Direito à Educação
XXII Direito à Privacidade
XXIII Direito à Liberdade de Movimento e de Moradia
Esta é uma declaração para a humanidade, uma orientação e instrução para aqueles que
temem a Deus. (Alcorão Sagrado, Al-Imran 3:138) (Alcorão Sagrado, Al-Imran 3:138)
PREFÁCIO:
Há quatorze séculos atrás, o Islam concedeu à humanidade um código ideal de direitos
humanos. Esses direitos têm por objetivo conferir honra e dignidade à humanidade,
eliminando a exploração, a opressão e a injustiça.
253
Os direitos humanos no Islam estão firmemente enraizados na crença de que Deus, e somente
Ele, é o Legislador e a Fonte de todos os direitos humanos. Em razão de sua origem divina,
nenhum governante, governo, assembléia ou autoridade pode reduzir ou violar, sob qualquer
hipótese, os direitos humanos conferidos por Deus, assim como não podem ser cedidos.
Os direitos humanos no Islam são parte integrante de toda a ordem islâmica e se impõem
sobre todos os governantes e órgãos da sociedade muçulmana, com o objetivo de
implementar, na letra e no espírito, dentro da estrutura daquela ordem.
Infelizmente os direitos humanos estão sendo esmagados impunemente em muitos países do
mundo, inclusive em alguns países muçulmanos. Tais violações são objeto de grande
preocupação e estão despertando cada vez mais a consciência das pessoas em todo o mundo.
Espero sinceramente que esta Declaração dos Direitos Humanos seja um poderoso estímulo
aos muçulmanos para que se mantenham firmes e defendam decidida e corajosamente os
direitos conferidos a todos por Deus.
Esta Declaração dos Direitos Humanos é o segundo documento fundamental proclamado
pelo Conselho Islâmico para marcar o início do 15° século da Era Islâmica, sendo o primeiro
a Declaração Islâmica Universal, proclamada na Conferência Internacional sobre o Profeta
Muhammad (que a Paz e a Bênção de Deus estejam sobre ele), e sua Mensagem, ocorrida em
Londres, no período de 12 a 15 de abril de 1980.
A Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos baseia-se no Alcorão e na Sunnah e
foi compilada por eminentes estudiosos, juristas e representantes muçulmanos dos
movimentos e pensamento islâmicos. Que Deus os recompense por seus esforços e que nos
guie na senda reta.
Paris, 21 dhul qaidah, 1401- Salem Azzam 19 de setembro de 1981 – Secretaria Geral
"Ó humanos, em verdade, Nós vos criamos de macho e fêmea e vos dividimos em povos
e tribos para reconhecerdes uns aos outros. Sabei que o mais honrado, dentre vós, ante
Deus,é o mais temente.Sabei que Deus é Sapientíssimo e está bem inteirado." (Alcorão
Sagrado, Al Hujjurat 49:13) (Alcorão Sagrado, Al Hujjurat 49:13)
INTRODUÇÃO:
CONSIDERANDO que a antiga aspiração humana por uma ordem mundial mais justa, onde
as pessoas possam viver, crescer e prosperar num ambiente livre do medo, da opressão, da
exploração e da privação, ainda não foi alcançada;
CONSIDERANDO que a Divina Misericórdia para com a humanidade, revelada na
concessão de uma subsistência econômica superabundante, está sendo desperdiçada ou
injustamente negada aos habitantes da terra;
CONSIDERANDO que Alá (Deus) deu à humanidade, através de Suas revelações no
Sagrado Alcorão e na Sunnah de Seu Abençoado Profeta Muhammad, uma estrutura moral e
legal permanente para estabelecer e regulamentar as instituições e relações humanas;
CONSIDERANDO que os direitos humanos decretados pela Lei Divina objetivam conferir
dignidade e honra à humanidade e que foram elaborados para eliminar a opressão e a
injustiça;
254
CONSIDERANDO que em razão de sua fonte e sanção Divinas tais direitos não podem ser
diminuídos, abolidos ou desrespeitados pelas autoridades, assembléias e outras instituições,
nem podem ser cedidos ou alienados;
Por conseguinte, nós, como muçulmanos, que acreditamos:
a. em Deus, o Misericordioso e Clemente, o Criador, o Sustentador, o Soberano, o Único Guia
da humanidade e a Fonte de todas as leis;
b. na vice-gerência (khilafah) do homem, que foi criado para satisfazer a Vontade de Deus na
terra;
c. na sabedoria da orientação Divina trazida por Seus Profetas, cuja missão atingiu seu ápice
na mensagem Divina final, que foi transmitida pelo Profeta Maomé (que a Paz e a Benção de
Deus estejam sobre ele), a toda a humanidade;
d. que a razão por si só, sem a luz da revelação de Deus não pode ser um guia certo nas
questões do ser humano nem pode fornecer o alimento espiritual para a alma humana e,
sabendo que os ensinamentos do Islãm representam a quintessência da orientação Divina em
sua forma mais perfeita e acabada,sentimo-nos na obrigação de lembrar ao ser humano de sua
condição e dignidade elevadas outorgadas a ele por Deus;
e. que a mensagem do Islam é para toda a humanidade;
f. que de acordo com os termos do nosso primeiro pacto com Deus, nossos deveres e
obrigações têm prioridade sobre nossos direitos, e que cada um de nós está obrigado a
divulgar os ensinamentos do Islam pela palavra, atos e, na verdade, por todos os meios
nobres, e torná-los efetivos não só em nossa vida em particular, mas também na sociedade a
que pertencemos;
g. em nossa obrigação em estabelecer uma ordem islâmica:
1. onde todos os seres humanos sejam iguais e que ninguém goze de privilégios ou sofra
prejuízo ou discriminação em razão de raça, cor, sexo, origem ou língua;
2. onde todos os seres humanos nasçam livres;
3. onde a escravidão e o trabalho forçado sejam abolidos;
4. onde as condições sejam estabelecidas de tal forma que a instituição da família seja
preservada, protegida e honrada como a base de toda a vida social;
5. onde os governantes e governados sejam submissos e iguais perante a Lei;
6. onde a obediência seja prestada somente àqueles mandamentos que estejam em
consonância com a Lei;
7. onde todo o poder mundano seja considerado como uma obrigação sagrada a ser exercido
dentro dos limites prescritos pela Lei e nos termos aprovados por ela e com o devido respeito
às prioridades fixadas nela;
8. onde todas os recursos econômicos sejam tratados como bênçãos divinas outorgadas à
humanidade, para usufruto de todos, de acordo com as normas e os valores estabelecidos no
Alcorão e na Sunnah;
9. onde todas as questões públicas sejam determinadas e conduzidas, e a autoridade para
administrá-las seja exercida após consulta mútua (shura) entre os fiéis qualificados para
contribuir na decisão, a qual deverá estar em conformidade com a Lei e o bem público;
10. onde todos cumpram suas obrigações na medida de sua capacidade e que sejam
responsáveis por seus atos pro rata;
11. onde, na eventualidade da infringência a seus direitos, todos tenham asseguradas as
medidas corretivas adequadas, de acordo com a Lei;
12. onde ninguém seja privado dos direitos assegurados pela Lei, exceto por sua autoridade e
nos casos previstos por ela;
13. onde todo o indivíduo tenha o direito de promover ação legal contra aquele que comete
um crime contra a sociedade, como um todo, ou contra qualquer de seus membros;
255
14. onde todo empenho seja feito para a. assegurar que a humanidade se liberte de qualquer
tipo de exploração,injustiça e opressão;
b. garantir a todos seguridade, dignidade e liberdade nos termos estabelecidos e pelos meios
aprovados, e dentro dos limites previstos em lei.
Assim, como servos de Deus e como membros da Fraternidade Universal do Islam, no início
do século XV da Era Islâmica, afirmamos nosso compromisso de defender os seguintes
direitos invioláveis e inalienáveis, que consideramos ordenados pelo Islam:
I – Direito à Vida
a. A vida humana é sagrada e inviolável e todo esforço deverá ser feito para protegê-la. Em
especial, ninguém será exposto a danos ou à morte, a não ser sob a autoridade da Lei.
b. Assim como durante a vida, também depois da morte a santidade do corpo da pessoa será
inviolável. É obrigação dos fiéis providenciar para que o corpo do morto seja tratado com a
devida solenidade.
II – Direito à Liberdade
a. O homem nasce livre. Seu direito à liberdade não deve ser violado, exceto sob a autoridade
da Lei, após o devido processo.
b. Todo o indivíduo e todos os povos têm o direito inalienável à liberdade em todas as suas
formas, física, cultural, econômica e política – e terá o direito de lutar por todos os meios
disponíveis contra qualquer infringência a este direito ou a anulação dele; e todo indivíduo ou
povo oprimido tem o direito legítimo de apoiar outros indivíduos e/ou povos nesta luta.
III – Direito à Igualdade e Proibição Contra a Discriminação Ilícita
a. Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito a oportunidades iguais e proteção da
Lei.
b. Todas as pessoas têm direito a salário igual para trabalho igual.
c. A ninguém será negada a oportunidade de trabalhar ou será discriminado de qualquer
forma, ou exposto a risco físico maior, em razão de crença religiosa, cor, raça, origem, sexo
ou língua.
IV – Direito à Justiça
a. Toda a pessoa tem o direito de ser tratada de acordo com a Lei e somente na conformidade
dela.
b. Toda a pessoa tem não só o direito mas também a obrigação de protestar contra injustiça,
de recorrer a soluções prevista em Lei, com relação a qualquer dano pessoal ou perda
injustificada; para a auto-defesa contra quaisquer ataques contra ela e para obter apreciação
perante um tribunal jurídico independente em qualquer disputa com as autoridades públicas
ou outra pessoa qualquer.
c. É direito e obrigação de todos defender os direitos de qualquer pessoa e da comunidade em
geral (hisbah).
d. Ninguém será discriminado por buscar defender seus direitos públicos e privados.
e. É direito e obrigação de todo muçulmano recusar-se a obedecer a qualquer ordem que seja
contrária à Lei, não importa de onde ela venha.
V – Direito a Julgamento Justo
a. Ninguém será considerado culpado de ofensa e sujeito à punição, exceto após a prova de
sua culpa perante um tribunal jurídico independente.
b. Ninguém será considerado culpado, senão após um julgamento justo e depois que tenha
sido dada ampla oportunidade de defesa.
c. A punição será estabelecida de acordo com a Lei, na medida da gravidade da ofensa e
levadas em conta as circunstâncias sob as quais ela aconteceu.
256
d. Nenhum ato será considerado crime, a menos que esteja estipulado como tal, nos termos da
Lei.
e. Todo indivíduo é responsável por seus atos. A responsabilidade por um crime não pode ser
estendida a outros membros da família ou grupo, que, de outra maneira, não estejam direta ou
indiretamente envolvidos no cometimento do crime em questão.
VI – Direito de Proteção Contra o Abuso de Poder
Toda a pessoa tem o direito de proteção contra embaraços promovidos pelas instituições
oficiais. Ela não é responsável por prestar contas de si, exceto quando para fazer a defesa de
acusações que pesam contra ela ou onde ela se ache em uma situação em que a suspeita de seu
envolvimento em um crime seja razoavelmente levantada.
VII – Direito a Proteção Contra a Tortura
Ninguém será submetido à tortura de corpo e de mente, ou aviltado, ou ameaçado de dano
contra si ou contra qualquer parente ou ente querido, ou será forçado a confessar o
cometimento de um crime ou forçado a consentir com um ato que seja prejudicial a seus
interesses.
VIII – Direito à Proteção da Honra e da Reputação
Toda a pessoa tem o direito de proteger sua honra e reputação contra calúnias, ataques sem
fundamento ou tentativas deliberadas de difamação e chantagem.
IX – Direito de Asilo
a. Toda pessoa perseguida ou oprimida tem o direito de buscar refúgio e asilo. Este direito é
garantido a todo ser humano, independente de raça, religião, cor ou sexo.
b. Al Masjid Al Haram (A Casa Sagrada de Alá) em Makkah é um santuário para todos os
muçulmanos.
X- Direitos das Minorias
a. O princípio alcorânico "não há compulsão na religião" deve governar os direitos religiosos
das minorias não muçulmanas.
b. Em um país muçulmano, as minorias religiosas, no que se refere às suas questões civis e
pessoais, terão o direito de escolher serem regidas pela Lei Islâmica ou por suas próprias leis.
XI - Direito e Obrigação de Participação na Condução e Direção da Coisa Pública
a. Sujeito à lei, todo indivíduo na comunidade (Ummah) tem o direito de assumir um cargo
público.
b. O processo de consulta livre (Shura) é a base da relação administrativa entre o governo e o
seu povo. De acordo com esse princípio, as pessoas também têm o direito de escolher e
exonerar seus governantes.
XII – Direito de Liberdade de Crença, Pensamento e Expressão
a. Toda a pessoa tem o direito de expressar seus pensamentos e crenças desde que permaneça
dentro dos limites estabelecidos pela Lei. Ninguém, no entanto, terá autorização para
disseminar a discórdia ou circular notícias que afrontem a decência pública ou entregar-se à
calúnia ou lançar a difamação sobre outras pessoas.
b. A busca do conhecimento e da verdade não só é um direito de todo muçulmano como
também uma obrigação.
c. É direito e dever de todo muçulmano protestar e lutar (dentro dos limites estabelecidos em
Lei) contra a opressão, ainda que implique em desafiar a mais alta autoridade do estado.
d. Não haverá qualquer obstáculo para a propagação de informação, desde que não prejudique
a segurança da sociedade ou do estado e que esteja dentro dos limites impostos pela Lei.
257
b. Cada um dos parceiros no casamento tem direito ao respeito e consideração por parte do
outro.
c. Todo marido é obrigado a manter sua esposa e filhos, de acordo com suas possibilidades.
d. Toda criança tem o direito de ser mantida e educada convenientemente por seus pais, sendo
proibido o trabalho de crianças novas ou que qualquer ônus seja colocado sobre elas, que
possam interromper ou prejudicar seu desenvolvimento natural.
e. Se por alguma razão seus pais estiverem impossibilitados de cumprir com suas obrigações
para com a criança, torna-se responsabilidade da comunidade a satisfação dessas obrigações
às custas do poder público.
f. Toda pessoa tem direito ao apoio material, assim como ao cuidado e proteção de sua família
durante a infância, na velhice ou na incapacidade. Os pais têm direito ao apoio material, assim
como ao cuidado e proteção de seus filhos.
g. A maternidade tem direito a respeito especial, cuidado e assistência por parte da família e
dos órgãos públicos da comunidade (Ummah).
h. Na família, homens e mulheres devem compartilhar suas obrigações e responsabilidades, de
acordo com o sexo, dotes naturais, talentos e inclinações, sem perder de vista as
responsabilidades comuns para com os filhos e parentes.
i. Ninguém deverá se casar contra sua vontade, nem perder ou sofrer diminuição de sua
personalidade legal por conta do casamento.
XX – Direitos das Mulheres Casadas
Toda mulher casada tem direito a:
a. morar na casa em que seu marido mora;
b. receber os meios necessários para a manutenção de um padrão de vida que não seja inferior
ao de seu marido e, em caso de divórcio, receber, durante o período legal de espera (iddah), os
meios de subsistência compatíveis com os recursos do marido, para si e para os filhos que
amamenta ou que cuida, independente de sua própria condição financeira, ganhos ou
propriedades que possua;
c. procurar e obter a dissolução do casamento (khul’a), na conformidade da Lei. Este direito é
cumulativo com o direito de buscar o divórcio através das cortes;
d. herdar de seu marido, pais, filhos e outros parentes, de acordo com a Lei;
e. segredo absoluto de seu marido, ou ex-marido se divorciada, com relação a qualquer
informação que ele possa ter obtido sobre ela, e cuja revelação resulte em prejuízo a seus
interesses. Idêntica responsabilidade cabe a ela, em relação ao marido ou ao ex-marido.
XXI – Direito à Educação
a. Toda pessoa tem direito a receber educação de acordo com suas habilidades naturais.
b. Toda pessoa tem direito de escolher livremente profissão e carreira e de oportunidade para
o pleno desenvolvimento de suas inclinações naturais.
XXII – Direito à Privacidade
Toda pessoa tem direito à proteção de sua privacidade.
XXIII – Direito de Liberdade de Movimento e de Moradia
a. Considerando o fato de que o Mundo do Islam é verdadeiramente a Ummah Islâmica, todo
muçulmano terá o direito de se mover livremente dentro e fora de qualquer país muçulmano.
b. Ninguém será forçado a deixar o país de sua residência ou ser arbitrariamente deportado
sem o recurso do devido processo legal.
Notas Explicativas:
259
1. Na Declaração dos Direitos Humanos acima, a menos que o contexto propicie de outra
forma: Na Declaração dos Direitos Humanos acima, a menos que o contexto propicie de outra
forma:
a. o termo "pessoa" refere-se tanto ao homem quanto à mulher.
b. O termo "Lei" significa a Chari’ah, ou seja, a totalidade de suas normas provém do Alcorão
e da Sunnah e de quaisquer outras leis que tenham sido baseadas nessas duas fontes, através
de métodos considerados válidos pela jurisprudência islâmica.
2. Cada um dos direitos humanos enunciados nesta declaração traz uma obrigação
correspondente. Cada um dos direitos humanos enunciados nesta declaração traz uma
obrigação correspondente.
3. No exercício e gozo dos direitos citados acima, toda pessoa se sujeitará apenas aos limites
da lei, assim como por ela se obriga a assegurar o devido reconhecimento e respeito pelos
direitos e liberdade dos outros, e de satisfazer as justas exigências de moralidade, ordem
pública e bem-estar geral da Comunidade (Ummah). No exercício e gozo dos direitos citados
acima, toda pessoa se sujeitará apenas aos limites da lei, assim como por ela se obriga a
assegurar o devido reconhecimento e respeito pelos direitos e liberdade dos outros, e de
satisfazer as justas exigências de moralidade, ordem pública e bem-estar geral da Comunidade
(Ummah).
O texto árabe desta Declaração é o original.
Glossário dos termos árabes:
SUNNAH
– O exemplo e o modo de vida do Profeta Muhammad (que a Paz e a Bênção de Deus estejam
sobre ele), compreendendo tudo o que ele disse ou concordou.
KHALIFAH – A vice-gerência do homem na terra, ou o sucessor do Profeta, transliterado
para Califado.
HISBAH - Vigilância Pública, uma instituição do estado islâmico que está autorizado a
observar e a facilitar a satisfação das normas corretas do comportamento público. "Hisbah"
consiste na vigilância pública e é uma oportunidade para que as pessoas procurem se corrigir.
MA'ROOF – Boa ação.
MUNKAR – Ato repreensível.
ZAKAH – O imposto "purificador" sobre a riqueza, um dos cinco pilares do Islam e que
é compulsório aos muçulmanos.
'IDDAH – O período de espera da mulher viúva ou divorciada, durante o qual ela não pode se
casar de novo.
KHUL'A – Divórcio obtido por solicitação da mulher.
UMMAH ISLAMIA – Comunidade Muçulmana Mundial.
CHARI'AH – Lei Islâmica.
REFERÊNCIAS:
Nota: Os algarismos romanos referem-se a tópicos do texto. Os algarismos arábicos referem-
se ao Capítulo e Versículo do Alcorão, por exemplo, 5:32 significa Capítulo 5, versículo 32.
I 1 Alcorão Al-Maidah 5:32
2 Hadith narrado por Muslim, Abu Daud,Tirmidhi, Nasai
260
ANEXO IV
Tendo em vista que Deus é o Senhor Único e Absoluto dos homens e do universo, que Ele é o
Senhor Soberano, o Sustentador e Provedor, o Misericordioso, e que Suas bênçãos alcançam a
todos os seres; tendo em vista que Ele concedeu a todoser humano dignidade humana e honra,
e soprou nele Seu Espírito, temos que, unidos a Ele e através d'Ele, e afora seus outros
atributos humanos, os homens são iguais, em essência, e não pode existir qualquer diferença
tangível entre eles por conta de suas diferenças casuais, como nacionalidade, cor ou raça.
Todo ser humano, portanto, está ligado a todos os outros e todos compõem uma comunidade
de irmãos em completa submissão ao mais misericordioso Senhor do Universo. Nesta sublime
atmosfera, a confissão islâmica da unicidade de Deus permanece dominante e central e
necessariamente implica no conceito da unicidade e fraternidade da humanidade.
Embora um estado islâmico possa ser estabelecido em qualquer parte da terra, o Islam não
busca restringir os direitos humanos ou os privilégios aos limites de seu próprio estado. O
Islam decretou alguns direitos universais fundamentais para a humanidade como um todo, que
devem ser observados e respeitados em qualquer circunstância, estando a pessoa dentro do
território do estado islâmico ou fora dele, na paz e na guerra. O Alcorão claramente
estabelece:
"Ó fiéis, sede perserverantes na causa de Deus e prestai testemunho, a bem da justiça;
que o ódio aos demais não vos impulsione a serdes injustos com eles. Sede justos, porque
isto está mais próximo da piedade, e temei a Deus." (5:8)
O sangue humano é sagrado em qualquer hipótese e não pode ser derramado sem uma
justificativa. E aquele que violar a santidade do sangue humano, matando um ser humano sem
justificativa, o Alcorão equipara este crime à morte de toda a humanidade.
"Por isso, prescrevemos aos israelitas que quem matar uma pessoa, sem que esta tenha
cometido homicídio ou semeado a corrupção na terra, será considerado como se tivesse
assassinado toda a humanidade." (5:32)
Não é permitido oprimir as mulheres, as crianças, os idosos, os doentes e feridos. A honra e
castidade das mulheres devem ser respeitadas sob qualquer circunstância. O faminto deve ser
alimentado, o despido vestido e o ferido ou doente tratado, não importando se pertencem à
comunidade islâmica ou se se contam entre seus inimigos.
Quando falamos em direitos humanos no Islam, na verdade isto quer dizer que tais direitos
foram concedidos por Deus; eles não foram concedidos por qualquer rei ou assembléia
legislativa. Os direitos que são concedidos por reis ou assembléias legislativas também podem
ser retirados da mesma forma que foram conferidos. O mesmo se dá com os direitos
admitidos e reconhecidos pelos ditadores. Eles concedem direitos quando lhes agradam e os
retiram quando desejam; também violam direitos quando querem. Mas, uma vez que os
direitos humanos no Islam foram conferidos por Deus, ninguém ou nada neste mundo tem o
poder ou a autoridade para fazer qualquer modificação nos direitos que foram concedidos por
Deus. Ninguém tem o direito de aboli-los ou anulá-los. E nem foram conferidos só no papel,
para serem exibidos e que cessam quando o show acaba. Também não são conceitos que não
impliquem em sanções.
264
6. Liberdade de Expressão:
• O Islam concede o direito de liberdade de pensamento e expressão a todos os cidadãos do
estado islâmico, sob a condição de que deve ser usado para a propagação da virtude e da
verdade e não para espalhar o mal ou a iniquidade. O conceito islâmico de liberdade de
expressão é muito superior ao conceito que prevalece no ocidente. O Islam não permite, sob
qualquer hipótese, que o mal e a iniquidade sejam propagados. Também, ninguém tem o
direito de usar uma linguagem ofensiva ou abusiva a título de crítica. Os muçulmanos
costumavam indagar do Profeta se um determinado assunto era uma injunção divina que tinha
sido revelada a ele. Se ele respondesse que não, os muçulmanos, então, expressavam
livremente sua opinião a respeito.
7. Liberdade de Associação:
• O Islam também concedeu às pessoas o direito de se associarem livremente e de formarem
partidos ou organizações. Este direito também está sujeito a certas regras gerais.
8. Liberdade de Consciência e Crença:
• O Islam estabeleceu a seguinte injunção, inteiramente diferente das sociedades totalitárias,
que privam os indivíduos de suas liberdades: "Não há compulsão em matéria de fé."
(2:256). Na verdade, esta exaltação indevida da autoridade do estado, curiosamente postula
uma série de obrigações, de servidão por parte do homem. Durante muito tempo a escravidão
significou o controle total do homem pelo homem - agora que este tipo de escravidão foi
abolido legalmente, as sociedades totalitárias impuseram, em seu lugar, um tipo de controle
sobre os indivíduos.
9. Proteção dos Sentimentos Religiosos:
• Juntamente com a liberdade de crença e liberdade de consciência, o Islam concedeu o
direito ao indivíduo de que seus sentimentos religiosos serão respeitados e que nada será dito
ou feito que possa usurpar esse direito.
10. Proteção contra o Encarceramento Arbitrário:
• O Islam também reconhece o direito de o indivíduo não ser detido e preso pelos crimes de
outros. O Alcorão decretou este princípio muito claramente: "Nenhum pecador arcará com
culpa alheia." (35:18)
11. Direito às Necessidades Básicas da Vida:
• O Islam reconhece o direito do necessitado a ajuda e assistência: "E há em seus bens uma
parte para o mendigo e o desafortunado." (51:19)
12. Igualdade Perante a Lei:
• No Islam, todos os cidadãos têm o direito à igualdade total e absoluta perante a lei.