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O ESCANDALO DA TRADUCAO* RESUMO: A partir de wma andlise de Les Chansons de Bilitis (1895), de Pierre Louys, uma suposta tradugao do “original” grego, Venuti discute os conceitos de tradugiio e ‘A tradugio escandaliza valores que hé tem- pos dominam a cultura literéria, principalmente em frane8s e inglés. E, como todo escandalo, mobiliza diversas fungdes policiadoras destina- ddas a impor os valores em questo. A tradugio é, antes de mais nada, uma ofen- sa.ao conceito dominante de autoria. Enquanto a autoria é definida como originalidade, auto- expresso num texto singular, a traduglo é de- rivada, nem auto-expressio, nem singular: imi ta outro texto. Dado 0 conceito reinante de au- toria, a traducio provoca o temor de inautenti- cidade, distorgdo, contaminagdo. No entanto, na ‘medida em que o tradutor precisa enfocar os constituintes lingiifsticos e culturais do texto es- trangeiro, a tradugdo também pode provocar 0 * ‘Tradugio de Stella E. O. again, ‘Professor da Temple University, Estados Unidos. 1 Para maiores detalles sobre esse pono, cf. meu atigo “Translation as Cultural Politics: Regimes of Domestcatic Lawrence Venuti** autoria e 0 papel da erudigao na definigao desses conceitos. UNITERMOS: Tradugdo; Autoria; Erudigéo. temor de que o autor estrangeiro néo seja origi- nal, mas derivado, essencialmente dependente de materiais pré-existentes. # parcialmente no intuito de vencer esses temores que a pratica da tradugio nas culturas francesa e inglesa tem almejado seu proprio encobrimento, a0 menos desde 0 século XVII, desde Nicolas Perrot D'Ablancourte John Dryden.' Na pratica, 0 fato da tradugo € apagado através da supressio das diferengas lingiifsticas e culturais do texto estrangeiro, assimilando-o aos valores dominan- tes na cultura da lingua-alvo, tornando-o reco- nhecfvel e, dessa forma, aparentemente ndo- traduzido. Com essa domesticagao 0 texto tra- duzido passa por original, uma expresso da in- tengo do autor estrangeiro. English”, Textual Practice 7:2, p. 208-223, 1993, Antoine Berman, "La traduction etlaletre, ou’ auberge du lointain’”, Les Tours de Babel: Essais sur la traduction, Mauvezin, Trans-Europ-Repress, 1985, p. 31-150. ‘TaaoTena, 3, 1996, p.99-122 12 Em segundo lugar, a tradugdo é uma ofensa contra um conceito ainda dominante de erudi- ‘¢do, baseado na suposigdo de autoria original. Enquanto essa erudigao busca assegurar a in- tengo do autor que constitui a originalidade, a tradugdo nao s6 se desvia dessa intengio, como asubstitui por outras: dirige-se aum piblico di- ferente numa lingua diferente. Em vez de permi- tir uma real compreensio do texto estrangeiro, a tradugo provoca o temor de errar, de ser amadoristico, oportunista. E, na medida em que co tradutor enfoca os constituintes lingifsticos e culturais do texto estrangeiro, a tradugdo pro- voca o temor de que a intengio do autor no possa controlar seu significado e funcionamen- to social. Sob o peso desses temores, a tradu- ao hd tempos vem sendo marginalizada no es- tudo literdrio, mesmo em nossa situagdo atual, ‘em que o influxo do pensamento pés-estrutura- lista decididamente contesta a teoria literdria e a critica orientada para o autor. Quer sejam humanistas ou p6s-estruturalistas, os estudiosos contempordneos tendem a pressupor que a tra- dugio ndo oferega uma compreensio real do texto estrangeiro nem uma contribuigao valiosa para o conhecimento da literatura, nacional ou estrangeira. Os efeitos dessa suposigao eviden- ciam-se na politica de contratagio, efetivagio € promogao nas instituigées académicas, bem como nas publicagées académicas. A traducio raramente é considerada uma forma de erudi- 0; ndo se constitui, atualmente, em qualifica- gio que pese na nomeagao para um cargo aca- démico numa determinada disciplina, campo ou rea; textos traduzidos raramente so objeto de pesquisa académica. O fato da tradugdo tende a ser ignorado até pelos estudiosos mais sofisti- cados que necessitam de textos traduzidos para suas atividades de pesquisa e docéncia, No intuito de explorar os pontos levantados pelo continuo escdindalo da traduco, gostaria ‘TeaoTeRM, 3, 1996, p.99-122 de discutir 0 embuste literdrio cometido pelo escritor francés Pierre Lous: uma colegio de poemas em prosa, em forma de livro, que ele intitulou Les Chansons de Bilitis (1895). Louys apresentou seu texto como uma tradugdo fran- cesa da poesia grega de Bilitis, uma mulher tida como contempordnea de Safo. No entan- to,a maioria de seus leitores sabia que nenhum dos poemas de Bilitis havia sobrevivido e que, na realidade, havia indicios de que ela propria nunca existira, quer no século VI a. C. ou em outro perfodo qualquer da Antigiiidade. Lous, descreveu seu projeto numa carta a um estu- dioso francés em 1898: “Les Chansons de Bi litis sont toutes apocryphes, & l'exception de sept ou huit, imitées de divers auteurs/ As can- Ges de Bilitis so todas apécrifas, excegao feita a sete ou oito, imitadas de diversos auto- res."*? Esse embuste € notével por desmistifi- car os valores culturais dominantes, nao ape- nas da recepedo académica da literatura gre- ga clissica e da poesia de Safo em particular, ‘mas também 0s conceitos de autoria e de es- tudos histéricos que ainda hoje prevalecem. Por um lado, Les Chansons de Bilitis expuseram as méltiplas condigdes da autoria, levantando ‘a questio da originalidade; por outro, expuse- ram os diversos valores que subsidiam 0 co- nhecimento, levantando a questo da verdade histérica. © embuste de Lous representa transgressdes em diversos niveis, algumas das quais escapam ao seu controle ~ como 0 uso que dele faco neste ensaio. E, 0 ponto mais importante para meus objetivos, o poder trans- gressor de seu embuste, deriva principalmen- te do fato de simular (e, por vezes ser) uma tradugao. * Todas as tradugties dos textos franceses foram feitas a partir das tradugdes em inglés de Venu. 2 “Lettre un Eri”, Les Chansons de Bilts, Jean-Paul Goujon (ed), Paris, Gallimard, 1990, p. 318, Apresentando-se, deliberadamente, como tradutor em vez. de autor, Louys dirigiu a aten- fio de seus leitores para o material cultural que servi de fonte para a produgio de seu texto. Isso, sem duivida, foi feito para dar a Bilitis um ar de autenticidade, mas também implicava que Louis nfo era um autor auténtico. Os primei- 108 criticos favordveis, a maioria dos quais sa- bia ou percebia que Bilitis era ficgdo, inclina- ram-se a considerar os escritos de Louys como derivados, um “délicieux pastiche"; e, mesmo quando reconheceram explicitamente sua au- {oria, no adefiniram como auto-expressio, mas como erudig&o, embora moldada na linguagem emocionalmente evocativa da poesia “L érudition, le détail technique de reconstitution ne belssent jamais ici/A erudigdo, o detalhe téc- nico da reconstrug&o nunca ofendem aqui,” ¢s- ‘ereveu 0 critico do Mercure de France, porque “M. Pierre Louys est tout & fait un podte: sa forme savante qui génait I’émotion a soudain pu Penserrer/O st. Pierre Lous é um poeta ple- no: sua forma erudita que refreia a emogio con- segue, de repente, abarcé-la. ” © embuste de Lonjs obscureceu as distingbes entre tradugio, autoria e erudico. No momento em que o lei- tor percebeu que Bilitis fora inventada e que o texto de Lous derivava de inimeras fontes Ii terdrias e hist6ricas, a autoria foi redefinida como pesquisa histérica que toma a forma de imitago literéria compardvel & tradugio, Inicialmente, Louys pretendia publicar seu texto com detalhadas notas eruditas identifi- 3. Camille Maueaic resenha de Les Chansons de Bilis, Mercure de France, avril 1895, p. 104-105 (105).0 tex- to de Louys foi deserito como um “délicieux pastiche” ‘na resenha publicada em Echo de Paris, citada em HP. Clive, Pierre Loui (1870-1925): A Biography, Oxford, Clarendon Press, 1978, p. 111. cando suas fontes. Optou por omitir essas notas, ‘mas elas sobrevivem e revelam com bastante clareza sua intengéo de abalar a questio da autoria, Uma delas diz que “Une mauvaise variante de cette idylle est attribuée & Hedylus dans l’Antologie Palatine (V. 199)/Uma ma variante desse idflio é atribufda a Hédilo na Antologia Grega.” O texto francés descrito 6, portanto, a imitagdo que Lous faz do poema de Hédilo e nao sua tradugio de um “idilio” de Bilitis que, por acaso, foi mal imitado por Hédilo. ‘A nota sustenta 0 embuste visando a, numa s6 tacada, estabelecer a existéncia de Bilitis na hist6ria literéria e conferira sua poesia um lugar no cAnone da literatura classica. Ela implicitamente caracterizada como poetisa de destaque, digna de ser imitada por poetas posteriores e menores como Hédilo (ativo no século ITT A. C.). Lous assume a mesma postura em seu ensaio biogrifico sobre Bilitis, em que observa que outro poeta grego, Filodemo, “I’apillée deux fois/apropriou-se dela. {sua poesia] duas vezes.”* Para qualquer leitor ciente da ficgo, esses comentérios deixam transparecer ironias complexas: indicam que a autoria de Louys depende de sua produgio de um texto derivado, uma adaptagao ou tradugio parcial, sugerindo, ao mesmo tempo,de forma arditosa , que ele € 0 autor de poemas eléssicos imitados por poetas cldssicos posteriores ou, em outras palavras, que ele préprio € um poeta cléssico, As pseudo-atribuigdes permitem que Lous destitua Hédilo ¢ Filodemo como autores de poemas preservados na Antologia Grega. ‘Aqui a autoria envolve uma concorréncia com um poeta candnico, um jogo de primazia poética, 4 "Notes explicativesinédites”, Les Chansons de Bilitis, ed. Goujon, p. 218. 5 "Vie de Bilitis", Les Chansons de Bits, ed. Goujon, p.3137 G5) 13 ‘TrapTenx, 3, 1996, p.99-122 14 em que 0 texto daquele poeta é imitado através de uma adaptagdo ou tradugo (ou plagiado: “pillée”). A construgiio dessa autoria é, além do mais, machista. Lous é 0 autor de seu texto em vir- tude de sua concorréncia com outros poetas masculinos ¢ a arena em que competem é representacdo da sexualidade feminina.* A fic~ ‘glo de Louys concentra-se, quase que exclu- sivamente, na experiéncia sexual de Bilitis. Na biografia que constréi explicitamente no pre~ fécio e, de forma mais indireta, nos poemas, sua vida divide-se em trés momentos, cada um ligado a um lugar especffico ¢ a uma forma especifica de atividade sexual. Primeiro, pas- sa uma adolescéncia precoce na Panfilia, onde sente um prazer masturbador montando em troncos de drvores, é violentada por um pastor de ovelhas e tem uma filha que abandona. Vi- aja entio para Mitilene, onde € seduzida por Safo, envolvendo-se a seguir em diversos ca- sos de caréter lésbico, inclusive numa relacdo que dura dez anos com uma garota que a aban- dona. Finalmente, vai para Chipre, onde se tor- nna uma cortesa consagrada a Afrodite até que a idade a obrigue a abandonar a prostituigio. Nos textos individuais que sustentam essa nar- rativa biografica, Louys novamente compete ‘com poetas clissicos em sua representagio do feminino como objeto da dominagao sexual masculina, O poema “Conversa”, inclufdo nos “Epigrammes dans I’ile de Chypre”, incorpo- ra suas tradugdes parciais de dois poemas gre~ gos ~ um de Filodemo, outro anénimo - em que um homem negocia com uma prostituta pelos seus servigos (Antologia Grega, V. 46 e 101). Louys também optou por adaptar um 6 Essa leitura inspirase em Eve Kosofsky Sedgwick, Benween Men: English Literature and Male Homosocial Desire, New York, Columbia University Press, 1985 ‘TravTeRM, 3, 1996, p.99-122 poema de Hédilo em que uma virgem é violen- tada durante 0 sono: (Olvog ai nponéoeis karcécipioav ‘Ayhaovieny ‘Bédia. col Epwg ABU 6 Nicayéy inp Tatra vieos kal pahaxst. poor’ ve al pahoeal. poorav évbupara. pirpar ‘nvov Kal oxuhyv Tov 737¢ paprépia (Vinho brindes levaram Aglaonice ao sono, ambos engenhosos, mais 0 doce amor de Nicagoras. Colocou diante de Cipris este cheiro ainda pingando por tudo, os imidos despojos do desejo virginal. Suas sandélias e 0 suave tecido que envolvia seus seios séo prova do sono dela e da violéncia dele entao.)" ‘A versio de Lous, intitulada “Le Sommeil in- terrompu” (“Sono Interrompido”), registra 0 momento crucial da vida de Bil olentada pelo pastor: Toute seule je m’étais endormie, comme une perdrix dans la bruyere. Le vent léger, le bruit des eaux, la douceur de la nuit m’avaient retenue la. Je me suis endormie, imprudente, et je ime suis réveillé en criant, et j’ai luité, 7 Otexto de Hédilo 6 citado apartrda The Greek Antho- logy, ed.ctrad. W.R. Paton, Cambridge, Mass. Harvard University Press, 1956-1960. A tradugio inglesa é mi- nha, Sou gratoa George Economou da Universidade de (Oklahoma por esclarecer minhas divides quantoo texto greg. Paton oferece a seguinte versio em prosa: "Vie rho ebrindes traigaeiras e o doce amor de Nicagoras Tevaram Aglaonice ao sono; e aqui ela dedicou a Cipris (0s despojos de seu amor virginal ainda rescendendo por toda parte, suas sandélias e 0 suave tecido que susten- tavam seu peito estemunhas de seu sono e da violén- ciadeleentto”. et j'ai pleuré; mais déja il était trop tard. Ex que peuvent les mains d'une enfant? I ne me quitta pas. Au contraire, plus tendrement dans ses bras, il me serra contre lui et je ne vis plus au monde ni la terre ni les arbres mais seulement la lueur de ses yeux. A toi, Kypris victorieuse, je consacre ces offrandes encore mouillées de rosée, vestiges des douleurs de la vierge, témoin de mon sommeil et de ma résistance.* (Totalmente s6 eu estava adormecen- do, como uma perdiz na urze. O vento suave, 0 som das dguas, a dogura da noite me mantinham ali. Adormeci, imprudente, e despertei com um grito, ¢ lutei, e chorei: mas jé era tarde, Além do mais, que podem as méos de uma crianga? Ele ndo me deixou. Ao contrdrio, seus bragos apertaram-me com maior ter- nura contra si e nada mais vi no mun- do, nem terra nem drvores, apenas o brilko de seus olhos. A ti, vitorioso KYPRIS, consagro es- sas oferendas ainda timidas de orva- Iho, vestigios das dores da virgem, tes- temunhas de meu sono e de minha re- sisténcia.) ‘A concorréncia litersria de Louys com Hédilo resulta em desvios que exageram a imagem 8 “Le SommeilInterrompu" Les Chansons de Bilis, Goujon, p. 74 da fémea como objeto de desejo sexual, submissa a0 macho. Talvez a alteragiio mais significativa de Lous seja a da persona, que passa de terceira para primeira pessoa. O po- ema de Hédilo questiona os motivos de Nica- goras, indicando que seu “vinho e brindes” so enganadores, no intuito de fazer adormecer Aglaonice, tornando-a, assim, vulnerdvel a sua “violencia”. O poema de Louys, em oposigao, apresenta a vitima culpando a si mesma: Bilitis sugere que, como ave de caca (“perdrix”), seré naturalmente perseguida pelos homens, de modo que é “imprudente” dormir sozinha e a0 ar livre. Bilitis endossa uma representagio patriarcal de si mesma como objeto de desejo, ciente de ser desejada, mas também ciente de sua impoténcia diante da agressaéo masculina. Lous enfatiza sua aquiescéncia ao omitir a referéncia “violencia” masculina em Hédilo, focalizando, ao invés, a “resisténcia” ferninina finalmente vencida. Bilitis apresenta-se como dona de uma fraqueza infantil (“Ies mains d'une enfant”), presa nos bragos do pastor, encanta- da pelo olhar que nela fixou (“la lueur de ses yeux”). A autoria de Louys, derivada e machista, é estabelecida por uma adaptagao que supera a imagem da dominacao sexual masculina em Hédilo, ndo apenas através do exagero dessa imagem, mas também atribuin- do-aa uma poetisa que, na realidade, a confir- ma. A ficgdo da tradugdo novamente aponta para as condigdes da autoria de Lous, apesar de faz8-lo com um resultado que ele talvez ido tenha previsto: para criar a aparéncia de ter traduzido um poeta clissico auténtico, foi levado a acrescentar notas que, simultanea- mente, identificam suas fontes e revelam sua identidade autoral como uma construgéo machista Podemos ainda estender essa leitura obser- vando que Lous imaginou seu piblico como us ‘TrapTeRMs, 3, 1996, p.99-122 116 essencialmente masculino, literérioe boémio, um ‘grupo seleto que rejeitava os valores burgueses na arte ¢ na moralidade. Em carta escrita a seu irmao Georgesem 1895, Lous confidenciou que “Je voudrais beaucoup avoir un public féminin/ Gostaria muito de ter um piblico feminino”, mas isso the parecia improvvel pois “les femmes n’ont que la pudeur des mots/as mulheres 56 tém pudor as palavras”, tio preocupadas com a respeitabilidade a ponto de serem hipécritas: “Je crois bien que si la préface de Bilitis la représentait comme un monstre de perversité, pas une des dames que je connais n'avouerait avoir Iu Je volume/Acredito sinceramente que se 0 preficio de Bilitis a apresentasse como um ‘monstro de perversidade, nenhuma das mulhe- res que conheco admitiria ter lido 0 volume”. A concorréncia literdria que estabeleceu a au- toria de Lous’ foi realizada diante de outros es- critores masculinos, conhecidos como André Gide e Stéphane Mallarmé que sabiam do em- buste ¢ elogiavam seus escritos. E a concor- réncia inclufa poetas franceses canonizados como Baudelaire: Les Fleurs du Mal (1856) ligava Safo ao lesbianismo em poemas que pro- vocaram 0 censor do governo (principalmente “Lesbos” e “Femmes damnées”}®, enquanto Le Spleen de Paris (1869) desenvolvia uma prosa oética capaz. de incorporar diversos géneros, narrativos, liricos e draméticos. Louis, no en- tanto, aprimorou o poema em prosa poliforme de Baudelaire, reduzindo-o a um texto de qua- tro estrofes e suas representagdes da atividade sexual superaram as de Baudelaire, nfo ape~ nas por evitarem qualquer julgamento moral, mas 9 “Extraits de Lettres Inéites de Piere Lous & Georges Louis”, 29 mars 1895, Les Chansons de Biltis, ed Goujon, p. 314. 10Joan Delean discute representagio que Baudelaire faz de Safo em Fictions of Sappho 1546-1937, Chicago: University of Chicago Press, 1989, p. 271-273 ‘TeavTERM, 3, 1996, p.99-122 por constitufrem uma forma de pomnografia que excitava os leitores masculinos. Henri de Régnier, que publicou um artigo elogioso sobre 0 texto de Lous no Mercure de France, es- creveu-lhe que “La lecture de Bilitis m’a jeté dans des transports érotiques que je vais satisfaire aux dépens de honneur de mon mari ordinaire [sic leitura de Bilitis levou-me a ar- rebatamentos erdticos que satisfago a0 custo de minha honra de marido normal”.!* O que Les Chansons de Bilitis expressava cera propria sexualidade de Lous, bem como a de seus leitores masculinos; e sua forma de ex- pressio demonstra que sua sexualidade também era derivada, que seu desejo niio era inerente e sim culturalmente construido. Isso é confirmado pela dimensao autobiogréfica do texto. Louys escreveul a maior parte durante 1894, quando fez ‘uma curta visita & Algéria ¢ teve um caso com ‘Meryem bent Ali, uma garota de dezesseis anos iapelas suas iniciais na dedicat6ria a primei- ra edi¢io. Meryem pertencia a tribo Oulad Nail, ‘em que era costume as jovens recorrerem pros- tituigdo para garantirem seu dote."? Foram apre- sentados por Gide, a quem Lous enviou uma reveladora descrigao da joven: “elleest Indienne. Amérique, et par moments Vierge Marie, et encore courtisane tyrienne, sous ses bijoux qui sont les mémes que ceux des tombeaux antiques! éuma {ndia da América e, em certos momentos, a Virgem Maria, em outros uma prostituta de Tiro, sob as j6ias que s4o as mesmas encontradas em ‘wimulos antigos”. 11 Heari de Régnier, 16 décembre 1894, in “Lettres”, Les Chansons de Bilts, ed. Goujon, p. 329. 12Paraorelacionamento de Lous com Meryem bent Ali, vide Cve, Pierre Loujs, p. 102-106, e Lous, Journal de Meryem, ed. Jean-Paul Goujon, Pars, Librairie A.- G, Nizet, 1992. 3 Louys, Carta a André Gide, 10 de agosto de 1894, daem Clive, Pierre Lows, p. 106 O desejo de Louys por Meryem foi determi- nado por diversos cédigos culturais: era uma fascinagao romantica com o estrangeiro, uma paixio pelo antigo, ao mesmo tempo bo&miae orientalista. Sua carta a Gide baseia-se num esterestipo racista e machista da mulher norte- africana. Conforme observou Edward Said, “nos escritos de viajantes e romancistas” como Flaubert e Louis, "as mulheres [orientais] so geralmente as criaturas da fantasia masculina de poder. Elas expressam uma sensualidade ili- mitada, séo ligeiramente estipidas e, acima de tudo, condescendentes”."" A experiéneia de Louyjs com Meryem pode ser detectada em vé- rios poemas, mas resultou também nos temas orientalistas recorrentes ao longo de seu aparato cerudito, Sua biografia ficticia de Bilitisatribui-the ‘um pai grego ¢ uma mie fenfcia; comenta 0 po- ceiaintitulado “Les Bijoux”(“As J6ias") comum olhar no presente: “Il est remarquable qu’d Vépoque actuelle, ce systéme de bijoux a &é conservé sans aucun chagement pat les Oulad Nail/ surpreendente que nos tempos atuais esse sistema de jéias tenha sido preservado sem qual- quer alteragdio pelos Oulad Naif”."’ O que Lougs. exprimiu em Les Chansons de Bilitis era, em parte, seu desejo por Meryem, seniio sua pro- miscuidade heterossexual como um todo, mas esse desejo jé era uma tradugdo de suas leituras em literatura grega classica. Em 1894 escreveu a seu itmio Georges que “j'ai écrit vingt pidces nouvelles, en grande partie inspirées par des souvenirs d’ Algérie of j'ai pu vivre toute V’Anthologie pendant un mois/Escrevi vinte no- vvas pegas, em grande parte inspiradas pelas lem- 14 Edward Said, Orientalism, New York, Pantheon, 1978, 1p. 207-208. Clive discute os muitos casos amorosos de ‘Loujs, inclusive seus relacionamentos com mulheres norte-aftcanas, em Pierre Lous, passim, 15"*Notesexplicativesinédites", Les Chansons de Bilts, p. 223, brangas da Algéria onde consegui viver toda a Antologia Grega em um mes”. u Obscurecendo a distingdo entre tradugio autoria, o embuste de Lous inevitavelmente contestou 0 corpo de conhecimentos que defi- nia verdade hist6rica como prova de originali- dade autoral. Les Chansons de Bilitis € uma elaborada parédia de uma tradugdo erudita, na qual nao s6 inventou um texto cléssico de um poeta grego, como também uma edigtio moder- na de um professor alemdo cujo nome, “G. Heim”, é um trocaditho com a palavra alema para “secreto” ou “misterioso”, geheim, Nos poemas em si, Lous dedicou uma atengio eru- dita aos detalhes. Por exemplo, usou uma grafia arcaica para Safo (“Psappha”), bem como di- versas palavras gregas especificamente relaci- onadas & cultura classica, como “Héraios”, més do calendério grego consagrado a Hera, ou “métépion”, um perfume origindrio do Egito. Eabiografia de Bilitis, conforme salientou Joan Delean, “situa-se nos intersticios da erudigéo sobre Safo. Lous mescla Bilitis & vida de Psappha como sua rival pelo amor de uma das jovens efetivamente citadas por Safo, Mnasidi ca” (p. 277), Em sua correspondéncia Louys admitiu ser ‘sua intengo desbancar 0 conceito predominante de erudigo. Enviou uma c6pia de seu texto a ‘umestudioso cléssico exatamente para engand- 16"Extraits de Lettres Inéites de Piere Louys Georges. Louis”, 7 septembre 1894, p, 311. Embora a identidade autoral de Lous possa ser descrita como machista e heterossexusl, Let Chansons de Bilitis, ind assim, servis deinspirasdo para as abordagens lsbicas de Saf por parte de Natalie Clifford Bamey e René Vivien vide Delean, Fictions of Sappho, p. 279-280. 17 ‘TeapTina, 3, 1996, p. 99-122 us To. Quando o estudioso respondeu que os poe- mas de Bilitis “ne sont pas pour moi des inconnus/ndo me so desconhecidos”, Louys atribuiu esse engano & suposigdo de que pes- quisa hist6rica oferece acesso direto & verda- de ou até possibilita uma identificagao total com culturas passadas. Classificou 0 raciocinio do estudioso como um silogismo impossivel “Comme archéologue et comme athénien, je dois connaitre tout ce que est grec. Or Bilitis est un auteur grec. Done je dois connattre Bilitis/Como arqueslogo eateniense, devo co- mhecer tudo 0 que € grego. Ora, Bilitis é um autor grego. Portanto, devo conhecer Bilitis” (@nfase de Loujs)."” Dessa forma, Louys su- geria que, a semelhanga de sua traducio fal- sa, a erudigdo estd baseada na invengio hist6- rica que, no entanto, pode passar por verdade por compartilhar a autoridade cultural de que gozam as _instituigdes académicas (archéologue”). Ao mesmo tempo, Lous demonstrou que a tradugdo pode ser uma for- ma de erudigao histérica, que pode constit ‘uma invengo erudita de um texto cléssico para olleitor moderno mas que, ao contrério da mai- oF parte da erudigdo, no esconde seu status de invengio ou sua diferenga histérica em re- ago a um texto cléssico. Assim descreve Loujs seu projeto ao irméo: “tout en évitant les anachronismes trop grossiers, je ne perdrai pas de temps & ménager une impossible vraisem blance/embora evitando anacronismos demasiado grosseiros, nao perderei tempo ten- tando alcangar uma verossimithanga impossf- vel”. Lougs esperava que seus leitores per- cebessem nao estar apresentando poemas an- 17 “Let surla Mystfication de Bilitis" Les Chansons de Biltis, ed. Goujon, p. 320, 322. 18 “Extrits de Lettres Indites de Pierre Louys & Georges Louis” avtil 1894, Les Chansons de Blitis,ed. Goujon, p.3il ‘TaapTenM, 3, 1996, p.99-122 tigos, mas derivagdes modernas. E seus leito- res 0 satisfizeram: 0 critico do Gil Blas obser- vou, com certa incerteza, que “Si c’est une tra- duction véritable, ce doit étre une traduction assez libre, car, tant que s’évoque esprit grec, ces potmes paraissent imprégnés aussi quelque peu d’esprit moderne. /Se for realmente uma tradugio, deve ser uma tradugio bastante i- vre pois, embora evoquem o espitito grego, esses poemas também parecem um pouco imbufdos do espfrito moderno”."O embuste de Louys deixa claro que tanto a erudigfo quanto a tradugio siio necessariamente anacrénicas: por mais fundamentadas que sejam em pk quisa, suas representagdes do passado prova- velmente possuem “une impossible vraisemblance” pois so motivadas por valo- res culturais presentes. ‘A questiio evidenciou-se de forma draméti- ca devido a uma conseqiléncia inesperada: em 1896 o influente estudioso classico, Ulrich von Wilamo-witz-Moellendorff, publicou uma rese- nha extremamente negativa de Les Chansons de Bilitis Wilamowitz. detectou o embuste, Notou que o esforgo de Louys em criar uma ‘aparéncia de autenticidade era aprendido (“In gewissem Sine ist auch P. L. ein Classicist/ Em certo sentido, P. L. até € um classico” [p, 65}) ¢ julgou alguns dos textos imitagées con- vincentes da literatura cléssica (“Fast das ganze letzte Buch der Bilitis wirde sich in hellenistische Epigramme iibersetzen lassen/Quase todo o i 19Paul Ginsty,resenha de Les Chansons de Bilts, Gil Blas, 5 janvier 1895, citado em Clive, Pierre Lows, ML 20UKrich von Wilamowitz-Moellendorff, Anzeige von *PL., Les chansons de Bilis traduites du Gree pout la premitte fois, Paris 1895”. Getinger Gelehrte Anzeigen 1896, ceproduzido em Wilamowitz, Sappho und Simonides: Untersuchungen iber griechische Lyrker, Berlin, Weidman, 1913, p, 63-78, timo livro de Bilitis poderia ser traduzido em epigramas helenfsticos”[p.68]). Culpou, porém, Louis por erros fatuais e anacronismos: wenn er so viel tut, um im Detail antik iu scheinen, so fordert er die Kritik des Sachkenners heraus, der ihm dann doch sagen muf dap es im Altertum in Asien keine Kamele gab, da Hasen keine Opfertiere sind, daB ‘Lippen rot wie Kupfer, Nase blauschwarz wie Eisen, Augen schwarz wie Silber”, drei ganz unantike Vergleiche sind. (P. 64) (quando se esforga tanto para parecer antigo em cada detathe, desafia a crti- ca do especialista que se sente obriga- do a dizer-the que na Asia antiga ndo havia camelos, que os coelhos no eram animais de sacrificio, que “labi- os vermelhos como cobre, nariz azul- negro como ferro, olhos pretos como rata” so comparacdes absolutamen- te ndo-antigas.) Para Wilamowitz, somente a erudigo era capaz de descobrir a verdade histérica e o fazia por meio de uma identificagao criativa coma “indivi- dualidade” autorial, expressa de forma singular no texto: wird emsige Beobachtung mancherlei ermitteln; aber in Lyrik vollends ist die Individualitdt die hauptsache, und sie apt sich auf diesem Wege nimmermehr zuriickgewinnen. In solchen Fallen kann das beste nur durch nachs- chaffende poetische Intuition geleistet werden: Welckers Macht beruht darauf, dap er die Gottesgabe dieser Phantasie besap. (P. 70) (observagao diligente revelard muito; ‘mas na poesia a individualidade é 0 que ‘mais importa, e jamais poderd ser recu- perada pelo método [de Louis]. Nesses ‘casos, os melhores resultados s6 podem ser aleancados pela intuigéo poética imitativa: a forga de Welcker reside no dom divino dessa imaginacao.) Nesse trecho incrivelmente revelador, Wilamo- witz indicava a necessidade de cuidadosa pes- quisa (“observacao diligente”), mas confessava {que a erudigio vai além do registro histérico por depender da “intui¢do postica” do estudioso. O que impede essa intuigdo de ser apenas uma in- ‘vengiio modema é aparentemente a omnisciéncia “divina’, a habilidade do estudioso em transcen- der seu momento histérico na busca da intengo do autor antigo, Aos textos de Lous falta essa transcendéncia pois continham muitos detalhes reconhecidamente modernos, dirigidos a um pi- blico modemo: Wilamowitz chamou-os de “leere Bruchstiicke [..], mehr oder minder schief itbersetzt und damit dem Publicurn imponiren will/ fragmentos insipidos [..J, raduzidos de forma ‘mais ou menos desigual, a fim de impressionar 0 paiblico” (p. 69). No entanto, o embuste de Lous era to for- temente transgressivo que forgou Wilamowitz. a revelar os valores modernos que norteavam sua erudig&o. Isso fica evidente, em primeiro ugar, na referencia a Friedrich Gottlieb Welcker, filélogo do inicio do século XIX. A critica de ‘Wilamowitz arespeito de Lous tinha como base a tradigioalema do conhecimento sobre Safo, em especial a vistio de Welcker de que Safo no era homosexual. Wilamowitz afirmou que “nit voller Zuversicht bekenne ich mich zu dem. Glauben, da8 Welcker Sappho von einem herrschenden Vorurteil befreit hat/Em plena con- fianga, rendo-me & convicgao de que Welcker 9 ‘TrapTeRm, 3, 1996, p.99-122 120 livrou Safo de um preconceito corrente”; ela era “eine vornehme Frau, Gattin und Mutterfurna robe mulher, esposa e mie”(pp. 71, 73). A lei- tura que Welcker faz de Safo ndo era, sem dtivi- dda, uma intuigdo que fugia as contingéncias do momento: conforme DeJean argumentou, “na época da Restauragio Francesa e num perfodo de crescente nacionalismo alemdo, Welcker pos- ‘tulou uma figagdo essencial entre beleza fisica ina, militarismo e patriotismo, deum lado, tidade de Safo, de outro” (p. 205). A Safo de Welcker era uma invengdo claramente ale- ‘ma: funcionava num “programa nacionalista de virtude cfvica” como uma profeessora que prepa- rava virgens para 0 casamento e a produgao de “novos cidadaos” (Delean, pp. 218, 219). Na resenha de Wilamowitz, uns oitenta anos mais tarde, o nacionalismo sobreviveu, no apenas em. sua extenuante negagio da homossexualidade de Safo ~ a maior parte da resenha é dedicada a essa questo ~, mas também em algumas afir- mages bastante explicitas de seus preconcei- tos, Sua homofobia tinha ligaco com uma cren- a na superioridade cultural alema: “In Deutschland briisten sich die Kreise, die mit der ‘Tendenz der Bilitis sympathisiren, meist mit ihrer Bildungslosigkeit/Na Alemanha, os cftculos que simpatizam com as tendéncias de Bilitis geral- ‘mente vangloriam-se de sua falta de cultura” (p. 68). E 0 orientalismo de Lous provocou uma reagdo anti-semita numa nota de rodapé em que Wilamowitz tece comentérios sobre 0 nome “Bilis”: Offenbar ist das der syrische Name der Aphrodite, den ich meist Beltis geschrieben finde. Vor den Semiten hat der Verfasser jenen unberechtigten Respect, der wissenschaftlich langst itberwunden immer noch hie und da ‘grassiert. Er lapt sie in Pamphylien sich ‘TraoTeRM, 3, 1996, p.99-122 mit den Hellenen mischen, fabelt von rhythmes difficiles de la tradition sémitique und versichert, dafdie Sprache seiner Bilitis eine Masse phoenikischer Vocabeln enthalte. Lauter Undinge. Aber Mr. Louys has auch die aphroditegleiche Schonheit seines Romanes aus Galilaea stammen lassen und zu ihren Ehren erotische Sticke des Alten Testamentes herangezogen. Er wird wohl fir die Semiten eine angeborene Vorliebe haben. (P. 64) (Aparentemente esse é 0 nome strio de Afrodite, que em geral encontro grafado como Beltis. O autor demons- tra um respeito impréprio para com os Semitas que, embora jé superado ci- entificamente, ainda grassa cé e ld. Ele 05 mistura aos helenos em Panfilia, conta fibulas sobre rhythmes difficiles de la tradition sémitique, e assegura- nos que a lingua de sua Bilitis contém inimeras palavras fenicias. Tudo toli- ce. Mas o sr. Louys também faz a bela Protagonista de seu romance, bela como Afrodite, (Aphrodite, publicado em 1896] ter origem na Galiléia e, em honra a ela, refere-se a trechos erdti- cos do Velho Testamento. Ele deve ter uma preferéncia inata pelos Semitas.) © embuste de Lous representou uma séria ameaga a enudigao cléssica porque sua repre- sentago da cultura grega antiga desafiou os valores nacionalistas e racistas presentes na recepedo alema da poesia de Safo. Wilamowitz sentiu-se obrigado a resenhar Les Chansons de Bilitis a fim de reafirmar a imagem da casta Safo de Welcker. Lamentou que “er auBerhalb Deutschlands nicht so vollkommen triumphirt, wie bei uns/fora da Alemanha [Welcker] nfo triunfou tanto quanto entre nés” (p. 71)" ml © embuste de Louys desencadeia uma reconsideragio a respeito das disting&es atual- mente feitas entre tradug%o, autoria e erudigao, ‘A tradugéo pode ser considerada uma forma de autoria, mas uma autoria agora redefinida como derivada, nio inerente. A autoria ndo é sui generis; escrever depende de material cul tural pré-existente, selecionado pelo autor, di posto em ordem de prioridade re-escrito (ou elaborado) de acordo com determinados valo- res. Louis deixou isso claro numa carta a seu jrmio as vésperas da segunda edigio de Les Chansons de Bilitis: Je crois justement que Voriginalité du livre vient de ce que la question pudeur n'est jamais posée. En particulier, je crois que la seconde partie semblera tres nouvelle. Jusqu-ici, les lesbiennes étaient toujours représentées comme des femmes fatales (Balzac, Musset, Baudelaire, Rops) ou vicieuses (Zola, Mendes, et auprés deux cent autres moindres). Méme Mile de Maupin, qui 21 Wiliam M, Calder I notaa “deseontianga”que Wilamo- witz tem dos franceses em “Ecce Homo: The ‘Auibiographical in Wilamowitz’s Scholarly Writings", in Wilamowite Nach 50 Jahren, ed, Caer, Helmut Fashar fe Theodor Lindken, Darmstadt, Wissenschaftiche Buchgesellschaft, 1985, pp. 80-110 (86-87). Em Fictions ‘of Sappho, Delean demonstra que “as duas modems ttadigoes da especulago em tomo de Safo - a solenidade filolégicaalemae o sensacionalismo sex francés- pare- ccem to contrérios a ponto de serem mutuamente ‘exchudentes”(. 200). n'a rien de satanique, n'est pourtant pas une femme ordinaire. C'est la premibre fois [...] qu’on écrit une idylle sur ce sujer-la. (Acredito que a originalidade do livro provenha precisamente do fato de ja- mais se colocar a questéo do pudor. Em particular, acredito que a segunda parte venha a parecer bastante nova. ‘Aié agora, as lésbicas sempre foram representadas como mulheres fatais (Balzac, Musset, Baudelaire, Rops) ou viciosas (Zola, Mendés e mais uma centena de escritores menores). Até Mile de Maupin, que absolutamente ndo é saténica, também ndo é uma mulher comum, Esta é a primeira vez [..] que se escreve um idilio sobre esse t6pico.) Lous acreditava que seu texto derivado o tor- ‘ava um autor original, mas apenas no sentido de que transformava representagées anteriores dahomossexualidade feminina e as forjava num. ‘género diferente (“une idylle”). Desse ponto de vista, 0 que distingue a tradugdo da assim cha- ‘mada composigo original é principalmente a proximidade da relagdio mimética com o outro texto: a tradugio é governada pelo objetivo da imitagao, enquanto a composigio é relativamente livre para cultivar uma relago mais variavel com. ‘material cultural que assimila. A tradugdo também pode ser considerada ‘uma forma de erudigfio. Tanto a tradugo quanto acrudigdio dependem de pesquisa hist6rica para sua representagio de um texto arcaico ou es- trangeiro, mas nenhuma das duas consegue pro- 22"Extrats de Lettres Inéites de Pierre Louys & Georges ‘Louis", 22 décembre 1897, Les Chansons de Bilis, ed. Goujon, p. 317. 11 ‘TravTenw, 3, 1996, p. 99-122 122 duzir uma representago completamente ade- quada da intengao do autor, Pelo contrario, tan- to a tradugio quanto a erudigéo respondem a valores contempordneos, domésticos que, ne- cessariamente, suplementam essa intengo: na realidade (re)inventam o texto para um ptiblico cultural especffico que difere daquele a que se destinava inicialmente, Assim, Mallarmé escre- veu a Lous que Un charme si exquis de ce livre, & la lecture, est de se rendre compte que le grec idéal, qu'on croit entendre derriére, est précisément le texte lu en votre langue.” (Um dos charmes de ler esse livro é perceber que o ideal grego, que tem-se a impressao de ouvir ao fundo, é preci- samente 0 texto lido na sua lingua.) Mallarmé, apesar de ciente da ficgio, ainda assim sentiu prazer em let os poemas de Louys como tradugdo (“entendre derriére”), mas uma traducao tao bem-sucedida que destitufa os tex- tos gregos. Desse ponto de vista, o que distin- gue a tradugdo da erudigdo € principalmente a necessidade de uma relacdo performativa com © outro texto: a tradugdo deve encenar sua re- presentagiio na sua propria lingua, enquanto a cerudigdo goza a liberdade, de forma relativa, de apresentar sua representagdo sob a forma de comentirios. 23. Stéphane Mallarmé, 31 janvier 1898, in “Lettres”, Les Chansons de Bilis, ed. Goujon, . 331. ‘TravTena, 3, 1996, p.99-122 Finalmente, os varios determinantes cultu- rais ¢ sociais que influenciam qualquer escrito sugerem que 0s textos traduzidos merecem a atengio dos estudiosos tanto quanto os textos estrangeiros que traduzem. O estudo de tradu- ‘goes &, na realidade, uma forma de erudigao hist6rica pois obriga o estudioso a enfrentar 0 problema da diferenga histérica na cambiante recepgao de um texto estrangeiro. A tradugdo, com sua dupla lealdade ao texto estrangeiro e & cultura doméstica, é um lembrete de que ne- rnhum ato de interpretago pode ser definitivo para cada publico cultural, que a interpretacio € sempre local e transitéria, mesmo quando abrigada em instituigdes sociais com a aparen- te tigidez do meio académico. Talvez.o que seja mais escandaloso a respeito da tradugao seja 0 fato de ela atravessar fronteiras institucionais: a tradugao no s6 exige pesquisa para se movi- ‘mentar entre fnguas, culturas e disciplinas, mas obriga o estudioso a considerar piiblicos leito- res que vaio além dos meios académicos — por exemplo, aesmagadora maiotia dos leitores em Imgua inglesa que necessitam de tradugdes por- que o estudo de Iinguas estrangeiras entrou em declinio na medida em que o inglés alcangou dominio global. No momento, os estudos da tra- ducdo abrangem uma érea de pesquisa que ex- pie, de modo desconfortavel, as limitagdes do ‘conhecimento dispontvel em Ifngua inglesa—e da prépria ingua inglesa.

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