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Coleções e colecionadores:
a polissemia das práticas
Produção Editorial
I Graficci Comunicação e Design
M188
Coleções e colecionadores: a polissemia das práticas/ organização: Aline Montenegro
Magalhães, Rafael Zamorano Bezerra – Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2012.
312 p. : il.; 22,5 cm. – (Livros do Museu Histórico Nacional)
As opiniões e conceitos emitidos nesta publicação são de inteira responsabilidade de seus autores,
não refletindo necessariamente o pensamento do Museu Histórico Nacional.
É permitida a reprodução, desde que citada a fonte e para fins não comerciais.
Sumário
Apresentação COLEÇões: PARA ALÉM DA NOSTALGIA
Coleções e colecionadores: a polissemia das O problema da nostalgia nas coleções de
práticas porcelanas históricas
Vera Lúcia Bottrel Tostes Victorino Chermont de Miranda
página 7 página 74
A
nualmente, no mês de outubro celebra-se a abertura das primeiras galerias
de exposições do Museu Histórico Nacional para o público. Como parte
dessas comemorações realiza-se o Seminário Internacional do Museu
Histórico Nacional, que, desde 1997, convida pesquisadores, professores,
técnicos, estudantes e interessados a discutir sobre temas de relevância
para as áreas da história, da museologia e das ciências sociais em geral.
O ano de 2011 assinalou uma importante data. No dia 19 de abril, comemoramos os 10 anos
do tombamento do Conjunto Arquitetônico e das coleções do MHN. Uma ação preservacionista
tardia, certamente, mas repleta de significados que nos faz refletir sobre as condições e razões
que, em diferentes momentos, mobilizam a seleção de artefatos ou bens da natureza visando sua
permanência para a posteridade. São essas as questões presentes na formação e manutenção de
coleções, seja no âmbito público ou privado. Esse é a razão pela qual dedicamos o Seminário
Internacional de 2011 ao tema Coleções e colecionadores: a polissemia das práticas.
Como em iniciativas anteriores, contamos com a valiosa parceria do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB). Criado em 1838, o IHGB foi a primeira instituição voltada para
a produção historiográfica no Brasil, dotada de um espírito colecionista e que visava reunir os
testemunhos documentais e naturais representativos da nação. O IHGB foi a principal fonte
de inspiração para a construção do passado nas primeiras galerias do MHN e, desde então,
tem sido importante parceiro e interlocutor em diversos eventos do Museu. Registramos os
*
Museóloga, mestre em história pela USP. Diretora do Museu Histórico Nacional e professora da Escola de Museologia da Unirio.
O título do seminário organizado no Museu Histórico Nacional em 2011 e do livro que ora
introduzimos, contém em seu enunciado duas palavras chave para o entendimento da proposta de
debate que fomentamos ao longo do evento: polissemia e prática.
A noção de “prática”, recorrente nos estudos da chamada “história cultural”, é central na
sociologia de Pierre Bourdieu. Em debate organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Historia
Social da UFRJ, em 2002, Roger Chartier ao analisar os trabalhos de Bourdieu indica o que parece
ser para ele uma lição essencial do trabalho do sociólogo francês:
[...] sempre pensar as relações que podem estar visíveis nas formas de coexistência, de sociabilidade,
ou de relações entre indivíduos, ou ainda de relações mais abstratas, mais estruturais, que organizam
o campo — conceito essencial, nesse sentido — da produção estética, filosófica, cultural, num
momento e num lugar dados.1
*
Doutora em história pelo PPGHIS/UFRJ. Historiadora no Museu Histórico Nacional.
**
Doutorando em história no PPGHIS/UFRJ. Historiador no Museu Histórico Nacional.
1
CHARTIER, Roger. Bourdieu e a Historia. Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2002, pp. 139-182. p. 140.
2
Id. Ibid. p. 141
Assim, a noção de prática, quando usada para pensar a categoria “coleção” repele qualquer
visão universalista, ahistórica ou “naturalista” do ato de coletar. São recorrentes afirmações de
que as coleções são um fenômeno atemporal, inerentes à natureza humana, visto sua regularidade
ao longo dos anos e em diferentes culturas. Sendo assim, o fenômeno seria dotado de sentido
semelhante ao longo da trajetória humana.
Porém, o que propomos como tema do seminário foi justamente o contrário: pensar como o
ato de juntar peças, fragmentos, tesouros, curiosidades, apesar de recorrente em diversas culturas
e tempos, tem significado diverso, bem como diferentes razões práticas – usando novamente a
terminologia de Bourdieu.
Isso nos leva a nossa segunda palavra chave: polissemia, que implica pensar como atitudes
semelhantes, como a fruição estética, a relação com o passado e o ato de colecionar possuem
diferentes sentidos e significados, não sendo suficiente ao entendimento das coleções explicá-
las somente à luz de categorias únicas, como as noções de semióforo, nostalgia, colecionismo,
relíquia, museália, entre outras. Isso não significa que essas categorias não sejam válidas à reflexão
acadêmica sobre as coleções. São válidas, desde que observadas as diferentes semânticas do ato
de colecionar, visto que cada prática se insere em diferentes perspectivas. Assim “a ideia de um
pensamento relacional é a repulsa à projeção universal de categorias historicamente definidas”.3
Nesse sentido, as discussões que aconteceram durante os três dias do Seminário Internacional
mostraram como refletir sobre o tema “coleções” implica em pensar em práticas polissêmicas. Há
diversas razões que levam pessoas a formar coleções, assim como diversas tipologias e variados
desdobramentos dessa prática. Sendo assim, o resultado é um livro polissêmico, composto por
artigos escritos por diferentes profissionais que lidam com objetos em coleção: leiloeiros,
professores, colecionadores, museólogos, historiadores, antropólogos, gestores culturais, artistas,
arquitetos, entre outros.
O livro foi organizado tendo em vista dar conta das diferentes práticas colecionistas e
abordagens sobre o tema expostas durante o seminário. Sendo assim, o artigo que abre o livro,
escrito pela historiadora francesa Sabina Loriga nos faz refletir sobre como o próprio individuo
pode ser um item de coleção, quando a autora disserta sobre as diferentes formas de representação
do indivíduo na literatura.
Em seguida apresentamos estudos e memórias em “De colecionadores”. Isabel Lustosa
abre o dossiê com o estudo sobre a Alma de colecionador de Plínio Doyle, seguido da análise de
Carina Costa a respeito de Alfredo Ferreira Lage, fundador do Museu Mariano Procópio, e dos
3
Id. Ibid.
textos de Luciana Herman, Aline Montenegro e Miguel Ângelo de Azevedo, mais conhecido
como Nirez, que tratam de motivações individuas que mobilizaram a formação de coleções. O
primeiro aborda como o sociólogo Darcy Ribeiro preparou sua biblioteca para a posteridade,
o segundo dedica-se à análise sobre a hemeroteca que Gustavo Barroso constituiu sobre sua
trajetória na imprensa e o terceiro como o próprio autor, Nirez, formou e organizou sua coleção
tendo por base o sentimento nostálgico.
Outro conjunto de textos, intitulado “Coleções para além da nostalgia”, apresenta trabalhos
que usam as coleções como fonte de conhecimento. É aberto com a pesquisa realizada pelo
advogado e colecionador Victorino Chermont de Miranda sobre as louças brasonadas brasileiras e
sua importância como fonte para o estudo da história no século XIX e na primeira metade do XX.
Em seguida, o numismata português, António Trigueiros discorre sobre as insígnias luso-brasileiras
das antigas ordens militares, Maricí Magalhães apresenta a catalogação de parte da coleção de
numismática do MHN que deu origem a Sylloge Nummorum Graecorum Brasil I, importante
obra de numismática com reconhecimento internacional e Samuel Gorberg realiza um histórico
de cartões postais. Já o museólogo Márcio Rangel nos apresenta um artigo sobre a construção
de conhecimento em diferentes coleções museológicas, como o acervo do Museu da Cidade do
RJ, a Coleção Costa Lima e a Coleção de Instrumentos Científicos do Museu de Astronomia e
Ciências Afins. Fechando o dossiê temos os textos de Aline Lopes de Lacerda com uma reflexão
sobre a fotografia em diferentes contextos de preservação, e de Marcos Olender, com uma revisão
historiográfica das diferentes concepções e estudos sobre coleções.
O dossiê intitulado “Coleções e musealizações” é focado na relação entre objetos e sua
musealização, dando conta de diferentes aspectos do ato de musealizar, como a relação entre
arquitetura de museus e harmonia social em propostas urbanísticas e museológicas, tema tratado
pela arquiteta e professora Cêça Guimaraens. Já o museólogo Cícero Almeida nos trouxe um artigo
sobre as coleções museológicas e suas exposições em museus e o antropólogo João Pacheco, baseado
em sua vasta experiência com os índios Ticuna e sua luta pelo reconhecimento de suas terras e
afirmação de identidade, produziu um texto sobre a refundação do Museu Maguta, importante
ferramenta nesse processo de reconhecimento. A historiadora Alda Heizer e o estudante de ciências
biológicas Felipe de Araújo e Silva, trataram da relação entre ciência e coleção, e de como as
coleções de museus e jardim botânicos configuram-se hoje, como importantes fontes para o estudo,
bem como para recuperação da fauna e flora de áreas devastadas. A professora Lúcia Guimarães,
por sua vez, retomou o tema da memória e das coleções, fazendo um balanço sobre o conceito de
“lugares de memória” cunhado por Pierre Nora e sua relação com o colecionismo. Em seguida,
Rafael Zamorano Bezerra disserta sobre os dispositivos de valoração histórica presentes na criação
de objetos museológicos durante a formação das primeiras coleções do MHN. Os dois últimos
artigos, um escrito por Douglas Fasolato e outro por Ângela Gutierrez tratam das motivações e
contextos que levaram a constituição de importantes coleções: a Alfredo Lage, Amélia Machado
Cavalcanti de Albuquerque, Viscondessa de Cavalcanti e a do Instituto Cultural Flávio Gutierrez.
“Reflexões sobre coleções e mercado” traz dois textos. O primeiro “Colecionar no início do
século XXI” é assinado pelo antropólogo Roberto de Magalhães Veiga e apresenta uma análise sobre
leilões de arte e as diferentes flutuações de preço de obras de arte, numa realidade, segundo o autor,
marcada pela passagem de uma sociedade de produtores para uma sociedade de consumidores.
Magalhães propõe refletir sobre a polissemia das práticas de colecionar things-in-motion na atual
conjuntura capitalista globalizada e digitalizada da sociedade de consumidores, a partir de bens em
uma determinada situação em diferentes pontos de suas histórias de vida. Já o colecionador George
Kornis, nos apresenta uma perspectiva histórica do colecionismo de arte, dando conta da realidade
internacional – focando sua análise em importantes colecionadores como Andrew Mellon, John
Rockfeller e Peggy Guggenheim, mas também traçando um panorama da realidade brasileira,
numa análise que trabalhou com aspectos sociais, políticos e econômicos.
Fechando o livro apresentamos o artigo do historiador José Neves Bittencourt “Museus
e coleções extraordinários, seminários indispensáveis” que fez um balanço de diversos temas e
abordagens tratados ao longo dos três dias do Seminário Internacional.
Agradecemos enormemente a todos os colaboradores, professores, pesquisadores,
colecionadores, que duplamente nos ajudaram a realizar esse trabalho. Primeiro se disponibilizando
a proferir suas palestras no auditório do MHN e depois nos disponibilizando os artigos que compõem
esse livro. Agradecemos também aos professores Arno Wehling e Victorino Chermont de Miranda
e aos funcionários do IHGB, nossos parceiros na organização do Seminário Internacional. Por
fim, agradecemos à direção do MHN e a todos os funcionários que possibilitam a continuidade
e regularidade do Seminário Internacional e seu respectivo livro, ferramenta importante ao
desenvolvimento dos estudos sobre coleções, museus e patrimônios.
Do herói ao átomo*
Sabina Loriga**
I.
II.
na medida em que aconteceram. Ora, as almas só são mais ou menos ilustres segundo tenham
sentimentos mais ou menos grandes e nobres, ideias mais ou menos vivas e numerosas. Nisso, os
fatos são apenas causas ocasionais. Em alguma obscuridade em que eu tenha podido viver, se eu
pensei mais e melhor que os Reis, a história da minha alma é mais interessante que a deles.
Sem dúvida alguma, durante o século XIX e o século XX, a literatura adotou essa maneira de
ver. Desde então, ela abandonou os homens que “fazem a história” e começou a ser entremeada por
personagens “comuns”: do Fréderic Moreau de Flaubert ao homem do subterrâneo de Dostoievski,
do homem sem qualidades de Musil ao louco Moses Herzog de Saul Bellow.
Talvez, os efeitos desta democratização do espaço literário tenham sido mais profundos que o
previsto. Pouco a pouco, o grande homem compacto e coerente foi substituído por órfãos incertos
e frágeis que, longe de serem “mestres da situação” revelaram serem agregados acidentais e
contraditórios. Não existe mais um eu compacto e unitário capaz de abraçar, selecionar e unificar
o múltiplo numa perspectiva superior, portanto, de perceber o mundo na unidade da frase. Pelo
contrário, o indivíduo é constituído de uma “anarquia de átomos”, de uma multiplicidade de
pulsões psíquicas.1 Esta interrogação sobre as noções de personalidade, de intencionalidade e de
caráter também encorajou numerosos romancistas a voltarem seu olhar do momento da ação ao
que a precede, este inferno que adianta a ação e que impede de controlar a vida.2
Enfim, como escreve Virginia Wolf em 1924, em Mr. Bennett and Mrs. Brown, o indivíduo mudou:
[...] eu não quero dizer aqui que saímos um belo dia, como se sai num jardim para ver que uma
rosa floresceu ou que uma galinha botou um ovo. Não, a mudança não foi tão súbita, tão clara.
Entretanto, houve uma mudança e como não podemos melhor precisar, vamos datá-la do ano de
1910. [...] Todas as relações humanas foram mexidas: entre mestres e servos, entre marido e mulher,
entre pais e filhos. E, quando as relações humanas mudam, há, ao mesmo tempo, uma mudança na
religião, na conduta, na política e na literatura.3
Robert Musil compartilha a opinião de Virginia Wolf. Em 1922, ele escreve de maneira
polêmica, que, se um indivíduo mudou, é preciso mudar também a maneira de representá-lo:
1
Cf. MAGRIS, Claudio. L’anello di Clarisse. Grande stile e nichilismo nella letteratura moderna. Torino: Einaudi, 1984, tr. fr. L’anneau de
Clarisse. Grand style et nihilisme dans la littérature moderne. Paris: Esprit de péninsule, 2003.
2
Cf.: DEBENEDETTI, Giacomo, Commemoration provisoire du personnage-homme. Paris: Tour de Babel, 1992.
3
WOOLF, Virginia, Mr. Bennett and Mrs. Brown (1924), trad. fr. in L’art du roman. Paris: Editions du Seuil, 1991.
Eu me lembro muito bem da dissertação simpática de um poeta alemão representativo, na qual ele
se surpreendia de que o homem não fosse exatamente como o haviam representado, mas tão mau
quanto Dostoievski o tinha visto. Outros talvez possam se lembrar da importância atribuída nos
nossos sistemas de moral, ao caráter, ou seja, à exigência com a qual o homem permite contar com
ele, como uma constante, enquanto que uma moral matemática mais complicada não é somente
possível, mas provavelmente necessária.4
III.
A partir da reflexão literária, eu gostaria de colocar a seguinte questão: O que cabe à história?
Teria ela contribuído para esta revisão da noção de indivíduo e de suas capacidades? À primeira
vista, a resposta poderia ser negativa. Como já tive a possibilidade de mostrar, na segunda metade do
século XIX, podemos distinguir duas etapas principais. Convencidos de que a impessoalidade é um
critério de cientificidade, numerosos historiadores sociais buscaram apagar toda presença humana
atrás da noção anônima de força social. Por outro lado, os historiadores políticos continuaram
a cultivar a retórica da grandeza pessoal.5 Todavia, uma análise mais aprofundada mostra que a
paisagem historiográfica da época é menos dicotômica que o previsto e que certos historiadores
procuraram escapar dessa alternativa, propondo figuras individuais complexas, ambivalentes e
mais sensíveis. Com efeito, eu encontrei pelo menos cinco: o grande homem, o eu que aspira ao
você, a pessoa ética, o homem patológico e o homem partícula.
IV.
Comecemos pelo grande homem. Em maio de 1840, em Londres, Thomas Carlyle pronuncia
suas célebres conferências sobre o culto dos heróis. Ele fala da grandeza, de suas diferentes
manifestações e da maneira como ela foi acolhida nesse mundo. Ele explica que a ordem social se
baseia na identificação dos heróis e que o desígnio de cada época consiste em achar o verdadeiro
könning ou can-nig, o homem capaz, que pode e sabe, e de investi-lo dos símbolos do poder, de
elevá-los à dignidade real, de sorte que ele seja realmente capaz de governar. Concluindo, a história
universal se resume na biografia de grandes homens :
[...] segundo o que eu penso, a História universal, a História do que o homem realizou sobre
esta Terra, no fundo, não é outra coisa senão a História dos grandes homens que trabalharam
aqui embaixo. Eles foram os condutores dos homens, seus modelos, suas referências e, numa
4
MUSIL, Robert. Das hilflose Europa: drei Essays (1922), München, R. Piper und Verlag, 1961, tr. fr. L’Europe désemparée, in Essais,
conférences, critique, aphorismes, réflexions, textes choisis. Paris: Editions du Seuil, 1984.
5
LORIGA, Sabina. O pequeno X. Da biografia à historia. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
acepção mais abrangente do termo, os iniciadores de tudo o que a grande massa dos humanos
se esforçou em realizar ou esperar. Todos os gloriosos feitos que nós podemos contemplar no
mundo, são, propriamente ditos, os resultados materiais e exteriores, a realização prática e a
concretização do pensamento e da intelecção geradas no espírito e coração dos grandes homens
enviados a este mundo.6
Carlyle não se limita ainda, a celebrar a grandeza e o heroísmo, ele também precisa seus
traços principais. Nesse sentido, ele destaca Odin, Maomé, Dante, William Shakespeare, Martin
Luther, John Knox, Samuel Johnson, Jean-Jacques Rousseau, Robert Burns, Olivier Cromwel e
Napoleão Bonaparte. Através da reconstrução biográfica dessas onze individualidades, ele identifica
seis categorias fundamentais da evolução histórica: o herói enquanto divindade, profeta, poeta,
predicador, escritor e soberano. A escolha de figuras tão profundamente diferentes umas das outras
não tem nada de fortuito. Procedendo assim, Carlyle estabelece imediatamente, que o heroísmo
pode se revestir de diferentes formas, em função das circunstâncias (herói, profeta, poeta... São
muitos os nomes distintos que em tempos e lugares diferentes nós damos aos grandes homens),
mas que o caráter heroico resta um e é indivisível, e permanece sempre tal qual é, que as diferentes
formas de heróis, são todas, intrinsecamente, de uma mesma substância:
[...] no fundo o grande homem, tal como é forjado pela mão da Natureza, é sempre substancialmente
o mesmo: Odin, Luther,Johnson, Burns... Eu espero mostrar que todos são feitos originalmente do
mesmo pano e que, só a acolhida que eles encontram no mundo, e que determina a expressão de sua
grandeza, os torna tão radicalmente diferentes na aparência.7
De que pano os heróis são feitos? Carlyle não fornece jamais uma definição exaustiva, muito
menos coerente. Ao contrário, ele continua a deslizar de uma imagem a outra, num crescendo
visionário. Contudo, se nos detivermos aos exemplos concretos, e se ignorarmos o excesso de
ênfase estilístico, a força carismática do herói aparece drasticamente diminuída. Entre os grandes
homens citados por Carlyle, alguns poderiam certamente desencadear uma energia coletiva, mas
mal podemos imaginar Dante Alighieri ou Willian Shakespeare como líderes capazes de inflamar
as massas. Samuel Johnson, Jean-Jacques Rousseau ou Robert Burns, poderiam mesmo passar
por perdedores. Na realidade, de seu texto se destaca um único adjetivo: sincero. Os onze heróis
se distinguem, com efeito, por sua sinceridade. A sinceridade, para Carlyle, não é uma forma
de se conduzir, e não implica somente em não dizer mentiras. Antes de mais nada, ela designa a
clarividência, a que possui Dante, que sabe capturar a melodia escondida. O herói não se limita a
6
CARLYLE, Thomas, On Heroes, Hero-Worship, and the Heroic in History (1841). Londres: Oxford University Press, 1968, tr. fr. Les
héros, Maisonneuve et Larose, Éditions des Deux Mondes, 1998.
7
Id. Ibid.
representar o mundo, a reproduzir o que é visível. Ele o revela: ele encarna um ponto de unidade
secreta, o princípio organizador que dá uma forma essencial ao caos da vida - ein gestaltes Leben
como disse Goethe.
Essas argumentações parecem, à primeira vista, uma exaltação da individualidade. De fato, elas
são extremamente ambíguas. Alguns dos personagens do passado, que gozam de uma dignidade
pessoal têm bem pouco de humano: mais do que homens, são almas, verdadeiras aparições divinas.
Mesmo que a vida humana lhe pareça uma mistura do divino e do bestial (beast-godhood), Carlyle se
convence cada vez mais, que os aspectos corporais podem, ou melhor, devem ser descartados, para
exaltar o núcleo arquétipo do herói (Napoleão a Santa Helena é representado como um Prometeu
acorrentado). Por esta cuidadosa operação de limpeza, de eliminação de todo traço corporal, ele espera
penetrar “nesta região fundamental do espírito onde os pensamentos e os sentimentos não podem ser
confinados na muralha da personalidade”. Ele visa ultrapassar a lei individualidade, a fazer da biografia
“uma solução para purificar os olhos de todo egotismo”. O culto dos heróis está fundamentado na
renúncia do eu, no esquecimento da pessoa, para tender ao universal, ao ponto do espelho que reflete
o infinito. O paradoxo, apenas aparente, é lucidamente explicado por Ralph Emerson, quando ele
confessa admirar sobretudo o herói capaz de se anular.
Nos mesmos decênios, historiadores alemães vão além dos grandes homens e dos homens
que fazem a história. Para Wilhelm von Humboldt , o indivíduo aspira a um você quando ele age,
quando ele fala e mesmo quando ele pensa :
como o homem é um animal sociável – esse é o seu caráter distintivo – por que ele tem necessidade
de um outro, não para a procriação, ou uma vida baseada no hábito (como certas espécies animais)
mas por que ele se eleva até a consciência do Eu, e que o Eu sem o Você é um absurdo para seu
entendimento e sua sensibilidade, em sua individualidade (em seu Eu) se extrai, ao mesmo tempo,
a da sua sociedade (de seu Você).8
8
HUMBOLDT, Wilhelm von. Betrachtungen über die Weltgeschichte (1814). Gesammelte Schriften. hrsg. von Albert Leitzmann et al.,
Berlin: B. Behr, 1904, tome III, tr. fr. Considérations sur l’histoire mondiale. In: La tâche de l’historien. Lille: Presses Universitaires de
Lille, 1985.
que falam como ele dos que falam de forma diferente”.9 Assim, a consciência de si, a possibilidade
de se tornar sujeito, de usar de sua própria vontade, não se forma apesar da experiência social, mas
graças a ela: “como a força pura tem necessidade de um objeto sobre o qual ela possa se exercer,
e a forma simples , o pensamento puro, precisa de uma matéria onde possa durar marcando-a com
sua impressão, da mesma forma o homem tem necessidade de um mundo fora dele mesmo”.10
A reflexão de Humboldt foi depois aprofundada por Wilhelm Dilthey. Para ele também, o
indivíduo, este ser sensível, é também fundamentalmente social e sociável: não é a existência singular
e isolada que está compreendida no conceito de ego, não é uma substância impermeável, mas se
trata de “um conjunto que encerra em si, a cada vez, os sentimentos vitais dos outros indivíduos, da
sociedade e, mesmo, da natureza”. Mergulhada desde sempre num universo de relações, ligado à
mãe bem antes do nascimento, o indivíduo vive na dependência, no desejo incessante do outro: “[ele]
se mantém em uma contínua relação de trocas espirituais e assim completa sua própria vida graças à
vida do outro”. Sua existência só se realiza na coexistência - nos relacionamentos entre pais e filhos,
homens e mulheres , soberano e vassalos. Mas esta coexistência, ou esta comunidade (Gesellschaft),
não é somente formada desses mortais de carne e osso – pais, vizinhos de corredor, colegas de
trabalho - o que o jargão sociológico denominará o outro situacional e que provocam hoje tantos
comentários sobre a network analysis. Ela se nutre igualmente de figuras ideais, imaginárias, como
são Prometeu, Antígona, Hamlet, Fausto e Sancho Pança, Tartufo ou M. Pickwick. Figuras históricas
também: Luther, Frederico o Grande ou Goethe. Nesta perspectiva, o indivíduo é principalmente
visado como uma relação do eu com a história. É justamente porque ele está, também, intimamente
impregnado de relações que o eu não é uma entidade, uma essência, um dado originário, mas, muito
além disso, vida, energia, movimento. Daí a distinção que opera Dilthey entre a noção de identidade
(Indentität), que evoca uma estabilidade de conteúdos, e a de mesmice (Selbigkeit):
[...] a mesmice é a experiência mais íntima que o homem pode fazer de si mesmo. Desta mesmice
decorre o fato de que nós nos sentimos pessoas, de que nós podemos ter um caráter, de que nós
pensamos e agimos com coerência. Em contrapartida, não está, de forma alguma, incluído que, em
todas as modificações, perdura alguma coisa de semelhante a si mesmo.
O eu não fica, rigorosamente, idêntico a si mesmo, ele não cessa de mudar, e, entretanto, ele
se sente sempre ele mesmo e se reconhece no seu passado: “aquele que, no momento, faz um
julgamento sobre si mesmo é outro em relação àquele que agiria e, entretanto, ele se sabe como
sendo o mesmo”.
9
Id. Ibid.
10
Id. Ibid.
Ainda que estando profundamente, intimamente, impregnado pelos outros e pelo mundo
natural que o envolve, o indivíduo não vive em função dos estímulos exteriores. Ao contrário,
há um mundo em si, único, singular, inteiramente diferente de todos os outros, que age como um
todo. É “uma inteligência que pressente e que busca”. Encontra-se aí sem dúvida a razão maior
de dissensão entre as concepções de Dilthey e as da psicologia contemporânea (em particular
o associacionismo e o paralelismo psicofísico), habituada a raciocinar em termos de estímulos,
de reações, de fatores fisiológicos. Como ele escreveu em 1894, em suas Idées concernant une
psychologie descriptive et analytique, à força de decompor os fenômenos psíquicos, de reduzi-los a
unidades atômicas, regidos por leis mecânicas, a psicologia suscitou uma imagem excessivamente
desagregada do comportamento humano: “é impossível compor a vida mental com elementos
dados, impossível de construí-la por uma espécie de composição.”Em relação aos psicólogos
associacionistas, tais como Johann Friedrich Herbart e Herbert Spencer, e mesmo ao encontro
deles, Dilthey destaca o caráter holístico da psiquê. Ele destaca não mais os estados psicofísicos
particulares, mas a personalidade individual no seu todo e propõe como William James, que não
se leve em conta uma sensação, mas um eu que sente: “a vida psíquica é originalmente e em
toda parte, de suas formas mais elementares até as mais elevadas, uma unidade. Ela não é feita
de partes; ela não se compõe de elementos; ela não é um composto, ela não é um resultado da
colaboração de átomos sensíveis ou afetivos: ela é uma unidade primitiva e fundamental”.11
VI.
Passemos à terceira figura: a pessoa ética. Johann Gustav Droysen, o autor da Histoire d’
Alexandre Le Grand (1833) e da Histoire de l’ hellénisme (1836 – 43), acentua, por várias vezes, o
caráter antropomórfico de sua reflexão. Para ele, a história só existe na presença do ser humano, que
chega, através de seus tormentos, às suas escolhas. O que interessa a Droysen é justamente a forma
(Formgebung) individual. Nesse sentido, ele afirma que, se chamamos A ao gênio individual, quer
dizer tudo o que um homem é, possui e faz, então este A é formado por a + x, onde a contém tudo
o que lhe chega das circunstâncias externas, de seu lugar, de seu povo, de sua época, etc. e onde x
representa sua contribuição pessoal, obra de sua livre vontade. Diferente da planta e do animal, o
11
Cf.: DILTHEY, Wilhelm, Ideen über eine beschreibende und zergliedernde Psychologie (1894). In Gesammelte Schriften, Stuttgart/
Göttingen, Teubner/Vandenhoeck & Ruprecht, vol. V, tr. fr. Psychologie descriptive et analytique. In : Le monde de l’esprit. Paris:
Aubier, Ed. Montaigne, 1947. V. também, DILTHEY, Wilhelm, Leben und Erkennen. Ein Entwurf zur erkenntnistheoretischen Logik und
Kategorienlehre (1892-93 env.). In: Gesammelte Schriften, Stuttgart/Göttingen, Teubner/Vandenhoeck & Ruprecht, vol. XIX. e DILTHEY,
Wilhelm, Der Aufbau der geschichtlichen Welt in den Geisteswissenschaften (1910), in Gesammelte Schriften, Stuttgart/Göttingen, Teubner/
Vandenhoeck & Ruprecht, vol. VII, tr. fr. L’édification du monde historique dans les sciences de l’esprit. Paris: Editions du Cerf, 1988.
ser humano não é simplesmente um exemplar de sua espécie, porque está inscrita na sua essência
a capacidade de começar e de desviar: “ele constrói seu corpo físico segundo as leis da natureza,
[...] mas a parte mais tênue, seu corpo morfológico, ético, ele constrói a partir da essência que está
nele, ou melhor, que não está, mas que se torna e que quer, sem cessar, se tornar”. O destaque está
nas relações éticas. Por exemplo,
[...] as cores, o pincel, a tela usadas por Rafael, eram feitos de materiais que ele próprio não havia
criado; ele tinha aprendido com um ou outro pintor, desenhando e pintando, a utilizar esse material;
a representação da Virgem, dos santos, dos anjos, ele achava na tradição da Igreja; um monastério
lhe encomendara uma imagem contra uma justa retribuição; mas, nessa ocasião, a partir destas
condições materiais e técnicas, baseado em tais tradições e tais ideias nasceu a [Madonna] Sixtina,
segundo a fórmula A = a + x, o mérito retorna ao infinitamente pequeno x. E é sempre assim.12
Ainda que infinitamente pequeno, o x é fundamental porque é ele que dá à história seu
movimento: mesmo se as estatísticas indiquem que, em uma dada região, nascem numerosas
crianças ilegítimas, se na fórmula A = a + x o a compreende todos os momentos que explicam
como, em mil jovens, vinte, trinta ou mais, procriam fora do casamento [...], dessas vinte, trinta
faltosas, será difícil que pelo menos uma dentre elas se console com a ideia de que a lei estatística
“explica” seu caso: no remorso das noites passadas a chorar, algumas hão de convir, no mais íntimo
delas mesmas que, na fórmula A = a + x , o infinitamente pequeno x tem um peso desmedido, que
engloba todo o valor moral da pessoa humana, ou seja, seu inteiro e único valor.
Desejoso ele também, como Humboldt, de defender o direito de cada um criar. Droysen
sobrepõe os conceitos de ético e de histórico. Mas sobreposição não significa coincidência. Sendo
um prodigioso encadeamento de trabalhos, de situações, de interesses, de conflitos, o mundo ético
pode ser considerado segundo vários pontos de vista diferentes: técnico, prático, moral, etc... A
história o apreende no seu futuro, no seu progresso, no seu movimento: “ela concebe os fenômenos
do mundo ético segundo seu vir a ser; ela lhe propõe, mesmo que ainda presentes hic et nunc, o
olhar retrospectivo graças ao qual eles aprendem a se conhecer a si mesmos”.13
VII.
Enquanto isso, na Suíça, o historiador de arte Jacob Burckardt inventa o homem patológico.
Na sua polêmica contra a noção de progresso, a ilusão dos anos 1830 - 1848, ele se prende,
12
DROYSEN, Johann Gustav. Historik. Die Vorlesungen von 1857, hrgs. von P. Leyh, Stuttgart -Bad Canstatt, 1977.
13
Id. Ibid.
notadamente, à filosofia da história que ele julga doente de egotismo (ela visualiza nossa época
como sendo o fechamento de todos os tempos) e de cinismo (ela ignora o dilaceramento mudo
daqueles que foram feridos). E entre os historiadores, ele escolhe Ernest Renan que julga a Idade
Média baseado na humanidade e no progresso da civilização. Como Ranke, Burckhardt acredita
que cada época existiu, pelo menos no início, principalmente por si – mesma “mais que em
relação a nós.” Daí a necessidade de aceitar, como Herder recomendava, a natureza relativa do
julgamento histórico:
[...] Para muitas pessoas, os Gregos são bárbaros por que tinham escravos e por que exterminavam
seus adversários políticos. Os Romanos têm a mesma reputação, por causa das vidas humanas que
sacrificavam no circo e no anfiteatro. A Idade Média, por sua vez, é bárbara também, mas por razões
diferentes, que são as perseguições religiosas e os massacres de hereges. O uso desta palavra é, em
última análise, uma questão de sentimento pessoal: eu considero, de minha parte, como barbárie
colocar pássaros na gaiola.14
De qualquer forma, o aperfeiçoamento técnico não tem nada a ver com o progresso intelectual:
“ já que a divisão de trabalho se arrisca a diminuir ainda mais o campo do conhecimento individual,
[...] pode muito bem ser que a cultura tenha caído de costas, um dia, por ter dado em si mesma uma
rasteira “. E bem menos ainda com o progresso moral:
[...] porque o espírito não esperou anos para conhecer a plenitude! Quanto à investigação sobre os
‘moral progresses’ nós a deixamos, de bom grado, a Buckle que ingenuamente se surpreende de
não tê-lo constatado, porque o progresso moral não saberia se aplicar a um período, mas somente à
vida de um indivíduo. Já na Antiguidade, acontecia que um homem sacrificasse sua vida pelo outro,
nós não conseguimos fazer melhor nos dias de hoje .15
Ao contrário de Hegel, ou contra ele, Burckhardt considera que o sucesso histórico não guarda
em si nada de louvável ou de necessário: “o homem mais forte não é necessariamente o melhor.”
Às vezes, por razões misteriosas, o mal é compensado por qualquer coisa de vital (por exemplo,
uma terrível epidemia pode desencadear o crescimento da população).
Mas não é absolutamente verdade que o ato da destruição provoque necessariamente um
rejuvenescimento. “E os grandes destruidores da vida permaneçam um enigma para nós”: face a
Átila, a Gengis Khan e a Tamerlan, ficamos sem palavras. Em qualquer caso,quando até mesmo o
mal for ponderado por um bem, a compensação nunca poderá ser um reparação para os sofrimentos
sem fim que tenham sido infligidos: “qualquer vida individual real que é destruída prematuramente
14
BURCKHARDT, Jacob, Über das Studium der Geschichte, tr. fr. Considérations sur l’histoire du monde. Paris: Alcan, 1938.
15
Id. Ibid.
é insubstituível, até mesmo por uma outra existência igualmente bem sucedida.” Os hircanianos,
os arianos, os sogdianos, os gedrosianos e todos os outros povos conquistados por Alexandre, o
Grande, durante guerras sangrentas merecem nossa compaixão. Mas uma compaixão bem distante
da idealização: “pode também ser que, se tivesse resistido mais tempo, a parte derrotada não nos
pareceria mais merecedora de simpatia: um povo muito cedo aniquilado [...] produz o mesmo
efeito que homens de valor que morrem jovens”.
A história do espírito, reivindicada pela filosofia da história, que propõe uma representação
geral da evolução do mundo impregnada de otimismo, Burckhardt opõe a história do homem, uma
história concreta, enraizada na existência, carregada de contradições, de aporias, de paradoxos:
“nossa própria vida”. Para ele, como para Sören Kierkegaard, o centro permanente da história não é
o homem providencial da filosofia da história, nem mesmo esta impostura romântica que é o herói,
mas o homem mortal, sofrendo normalmente, o indivíduo independente, livre estando oprimido,
que sabe e reconhece sua dependência dos acontecimentos gerais do mundo: “o homem com suas
penas, suas ambições e suas obras, tal como foi, é e sempre será. Também nossas considerações
terão, numa certa medida, um caráter patológico”.
VIII.
políticos são inteiramente secundários. Por exemplo, nesse momento, se eu puder construir,
para minha satisfação, o estado mental de um jacobino, todo meu volume está pronto; mas é um
trabalho diabólico.16
Influenciado pelas pesquisas de Pierre – Jean Cabanis e de Jean – Etienne Esquirol sobre
os laços que unem o físico e o moral, Taine fica particularmente interessado pelas condições
materiais da psicologia individual, e quer aplicar à história moral os métodos da história natural.
O processo de compreensão biográfica lembra a dissecação de corpos. Ao eu sublime e infinito,
evocado pelos Românticos, se opõe uma pequena parcela, um produto, um surgimento, um
florescimento do Paléocène:
Acabei de reler Hugo, Vigny, Lamartine, Musset,Gautier, Sainte – Beuve , como autores da plêiade
poética de 1830. Como todas essas pessoas estavam enganadas! Que falsa ideia eles têm do homem
e da vida! [...] Como a educação científica e histórica muda de ponto de vista! Materialmente e
moralmente eu sou um átomo num infinito de extensão e tempo, um broto em um baobá, uma ponta
florida num pólipo prodigioso que ocupa o oceano inteiro, e de geração em geração emerge, deixando
seus incontáveis suportes e ramificações sob a onda : o que eu sou me aconteceu, e me acontece
pelo tronco, o galho grosso, o ramo, a haste da qual eu sou a extremidade; por um momento, eu
sou o surgimento, o florescimento de um mundo paleontológico submerso, da humanidade inferior
fóssil, de todas as sociedades sobrepostas que serviram de suporte à sociedade moderna, da França
de todos os séculos, do século XIX, de meu grupo, da minha família.
Nessa perspectiva, Taine insiste sobre a importância conceitual dos fatos minúsculos e das
anedotas, “as praerogative sententiarum, como dizia Bacon, autênticos fragmentos de vida, a partir
da mesma realidade”.
No início do século XX, algumas destas instituições foram retomadas pelos historiadores
prosopográficos. O primeiro deles, Sir Lewis Namier busca descobrir a verdade objetiva através
de uma sorte de pontilhismo. Como observou Isaiah Berlin, o historiador anglo – polonês tortura
história, “bombardeia seu corpo, reduz em fragmentos, depois o recompõe com uma rara capacidade
de imaginação e de síntese”.17 Seu empirismo tem qualquer coisa de profundamente inovador: de
acordo com as ideias revolucionárias dos filósofos do Círculo de Viena, que tinham estabelecido
o princípio de verificação como meio de lutar contra a indeterminação e a metafísica. Namier
“quer eliminar o elemento espiritual da história”. Ele desconfia da filosofia da história e até mesmo
da história das ideias, e está convencido de que, para explicar os fatos sociais é preciso explorar
detalhadamente as raízes do comportamento individual. Seu método de análise pontilhista prevê
16
TAINE, Hippolyte, Sa vie et sa correspondance. Paris: Hachette, 1902-1907, t. IV.
17
BERLIN, Isaiah, Personal Impressions. Londres: Hogarth Press, 1980.
a separação dos fenômenos sociais em uma miríade de existências particulares, que é preciso se
recompor sucessivamente em conjuntos mais vastos: o objetivo “é conhecer bem a vida de milhares
de indivíduos, um formigueiro na sua totalidade, vide as colunas de formigas se alongarem em
diferentes direções, compreenderem suas articulações e suas correlações, observarem cada formiga
e entretanto jamais esquecerem o formigueiro”.
IX.
importante que contrasta com uma visão naturalista baseada nos conceitos de origem, de pertinência
e de identidade (social, nacional, racial ou sexual). Ela nos convida a visualisar a diferença como
uma noção relacional: aqui não se trata mais de substância ou de determinação originária, mas
somente de experiências.
Naturalmente, a relação indivíduo-comunidade é enunciada sob formas diversas. Alguns
autores consideram o ser humano como uma soma de duas substâncias separadas: de um lado,
a dimensão individual, do outro a dimensão social. Outros preferem tramas mais profundas ou
imagens mais fluidas. Eles nos fazem compreender que o eu não é nem uma essência nem um
dado invariável, mas uma entidade frágil, que se desenvolve na relação com os outros. Segundo tal
concepção, tão pouco heroica e tão pouco narcisista, a biografia não é nunca uma forma de escrita
egotista. Ao contrário, ela é a ocasião de apreender a densidades social de uma vida.
Plínio Doyle deixou uma pequena autobiografia, Uma vida, publicada em 2001, pela Casa da
Palavra.1 Nela contou sua trajetória como advogado, sua história familiar, a maneira como constituiu
e organizou sua biblioteca e de como surgiu a confraria literária que se consagrou com o nome de
Sabadoyle. Antes de publicá-la, eu e Homero Senna o entrevistamos. A intenção era fazer um livro
que reunisse seus depoimentos ao texto que ele nos apresentava a cada um desses encontros. Mas a
versão editada que fiz das entrevistas, juntando com o texto do biografado, não agradou ao Plínio.
Ele preferia o seu próprio texto, apenas copidescado como, com a maior delicadeza, tentou me
explicar. No prefácio do mesmo livro, ele me faz os maiores elogios e justifica a minha saída do
projeto por conta dos meus muitos compromissos.
Não foi assim e hoje relendo o livro do Plínio para preparar essa comunicação, entendo o seu
sentimento. Creio que percebeu que aquele texto que eu estava elaborando não era dele, não seria
jamais escrito por ele. Se o publicasse, o livro não seria expressão do que fora o Plínio, das coisas
que gostava e das coisas que realmente queria dizer. Não quis que mexessem no texto dele, dando-
lhe talvez um tratamento supostamente mais elaborado porque isto seria trair o que ele sempre fora.
Plínio não era um escritor. Nunca se disse ser um nem mesmo tentou. Sua atuação no mundo
dos escritores, inclusive no Pen Club do Brasil foi sempre a de uma espécie de síndico do mundos
dos escritores, em geral pouco organizados e zelosos com seus manuscritos. Dentre os escritos
de próprio punho que Plínio deixou, constam alguns poucos artigos de natureza bibliográfia. Sua
maior obra escrita está nas notas espalhadas pelos muito milhares de livros e documentos que
*
Doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e Pesquisadora Titular da Fundação
Casa de Rui Barbosa.
1
DOYLE, Plínio. Uma vida. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001.
colecionou. Era um amante dos livros, um admirador dos homens e mulheres que os escreviam,
sendo ele mesmo o que era e que se orgulhava de ser: um colecionador. O que ele sempre quis e
conseguiu foi possuir, reunir, catalogar e conservar escritos de outros. De escritores, historiadores,
jornalistas e poetas que admirava, muitos dos quais se tornou amigo.
Inteligente, culto, esperto como todo bom advogado, Plínio nunca teve a pretensão de ser um
Drummond, um Santiago Dantas, um Afonso Arinos, amigos que lhe estimavam, respeitavam e
gostavam de sua boa conversa e da ótima companhia. Mas Plínio compreendeu a dimensão da obra
e do papel cultural daqueles amigos e se esforçou ao máximo para ser o guardião de sua memória,
conservando todos os pequenos escritos, cartas, bilhetes e dedicatórias em livros que conseguia,
não só os que lhe foram dados pelos próprios como os que obteve de outras pessoas.
Seu depoimento revela um homem feliz consigo mesmo e com o que realizou. Plínio tinha
orgulho de seu talento para a advocacia, para a administração e para a organização de arquivos
e bibliotecas. Também se orgulhava de sua rara habilidade para fazer amigos em todas as classes
sociais. Exemplo disto é que uma das coisas que ele ressalta como tendo sido extremamente útil na
sua vida de advogado foram as amizades que cultivou no Fórum em seus mais diversos escalões.
De fato, Plínio era cativante. Tinha delicadezas que estavam associadas ao seus tantos fazeres.
O primeiro telefonema que eu recebia no dia do meu aniversário era o do Plínio Doyle. E eu era
apenas uma escritora em começo de carreira. Quem não se comove com tanta delicadeza? Foi
assim que, ao lados dos livros, se tornou também um colecionador de amigos.
Foi assim que conquistou Carlos Drummond de Andrade que conheceu através do editor José
Olympio do qual foi advogado. Plínio encontrava sempre o poeta na livraria de José Olympio, que
era então um ponto de encontro de escritores. Mas só se aproximou de Drummond, conhecido por
sua discrição e reserva, quando, em 1957, deixou de presente para ele na livraria uma coleção das
crônicas que o poeta publicava no Correio da Manhã e que Plínio reunira, catalogara e encadernara.
E assim nasceu a amizade que se prolongaria até a morte de Drummond e que daria origem
ao Sabadoyle: reuniões que começaram no final de 1964, com as visitas que, nas tardes de sábado,
Carlos Drummond de Andrade fazia à sua casa na Rua Barão de Jaguaripe nº 62, em Ipanema, sob
o pretexto de consultar a rica biblioteca de Plínio. Ao Drummond juntou-se o amigo da vida inteira
Américo Jacobina Lacombe que lá foi para convidar o poeta a prefaciar o volume das poesias de
Rui Barbosa a ser incluído nas Obras Completas de Rui Barbosa. Convite que Drummond, depois
de examinar o volume declinou dizendo que, como se tratava de edição oficial, ele não poderia
dizer que as poesias eram ruins, mas também não poderia dizer que eram boas, porque na verdade
eram ruins. Lacombe prefaciou ele mesmo as poesias mas a conversa com o amigo Plínio e com o
poeta Drummond passou a ser um hábito das tardes de sábado.
Plínio conta em seu depoimento que, quando esteve no Brasil um representante da Academia,
que concede o Prêmio Nobel, para sondar sobre o nome de Drummond, reuniram-se em sua casa
Antônio Houaiss e Paulo Rónai para convencer o poeta a aceitar a possível indicação. Drummond
não queria ver o seu nome indicado e precisava ser convencido. Neste ano, 1966, a casa do Plínio
já tinha se tornado referência e os encontros de escritores, ali, aos sábados também. Aos primeiros,
foram se juntando Afonso Arinos, Aurélio Buarque de Holanda, Cândido Mota Filho, Ciro dos
Anjos, Homero Homem, Joaquim Inojosa, Luís Viana Filho, Mário da Silva Brito, Pedro Nava,
Peregrino Júnior, Raul Bopp, Wilson Martins, entre outros. A história do Sabadoyle já foi muito
bem contada por Homero Senna em Sabadoyle: histórias de uma confraria literária, livro reeditado
em 2000 pela casa da Palavra2 e que muito se beneficiou do livro de atas, inaugurado, em 1972,
pelo poeta Alphonsus de Guimaraes Filho.
Sendo o tema do seminário a coleção, gostaria de contar a história de Plínio e de como a
maneira com que foi constituindo a sua está associada a este mesmo temperamento prestativo,
cordial, apoiado em uma verdadeira mania de ordenar e de classificar e, naturalmente, como para
qualquer colecionador, em uma boa dose de obssessão.
Plínio era um carioca de classe média típico. Último dos noves filhos de um funcionário
público e de uma professora, nasceu em Vila Isabel, mas seus pais moraram quase sempre em
Botafogo, time do qual era torcedor entusiasmado. Depois da morte do pai, em 1930, mudou-se
para Niterói onde permaneu até alguns anos depois de casado. Mas antes do final da década de
1930, passaria a residir em Ipanema, onde se conservaria até morrer aos 96 anos de idade, em 26
de novembro de 2000.
Com o pai assistiu aos velórios de João do Rio e de Rui Barbosa no Centro da cidade. Com a
mãe, durante a Semana Santa, percorria todas as igrejas da Zona Sul. Já, durante os preparatórios,
faria uma das amizades que conservaria pela vida inteira: Américo Jacobina Lacombe que conheceu
em 1927. Juntos cursaram a Faculdade de Direito onde criaram um centro acadêmico que fez
historia: o CAJU, reunindo gente como Otávio de Faria, Santiago Dantas, Hélio Viana, Chermont
de Brito, Thiers Martins Moreira. Gente que também seguiria com ele pela vida afora. Ainda na
faculdade, começou a trabalhar no escritório de advogacia de seu professor Haroldo Valadão, com
o qual aprendeu de fato a advogar.
Depois, já com a carreira consolidada é que seu amigo Santiago Dantas o convidaria a trabalhar
com ele. Começara advogando junto ao setor de imóveis e com isto constituíra seu patrimônio mas
se orgulhava mesmo era das vezes em que atuara em assuntos relacionados aos direitos autorais.
Por indicação de Santiago Dantas, foi nomeado, em 1962, Procurador da Fazenda Nacional, em
2
SENNA, Homero. O Sabadoyle: histórias de uma confraria literária. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2000.
decreto assinado durante o curto regime do parlamentarismo, pelo Presidente João Goulart, o
Primeiro Ministro Tancredo Neves e o Ministro da Fazenda que era Walter Moreira Salles.
No depoimento de Plínio, uma coisa chama a atenção: o gosto que tinha pela organização
de bibliotecas, arquivos e documentos em geral. De sua passagem pelo Instituto dos Advogados,
a coisa que contava com mais orgulho era o fato de ter organizado a biblioteca. No escritório de
Santiago, se dedicaria a por ordem em toda a papelada. Organizaria a biblioteca e o arquivo de
Gilberto Amado, de cujo irmão Gilson se tornara amigo na Faculdade de Direito, amizade que se
estenderia a toda a família Amado, incluindo Donana, a matriarca.
Fez isto em 1966, ano em que, segundo Plínio, foi quase todos os sábados pela manhã à casa de
Gilberto Amado que ficava em Laranjeiras, na Rua General Glicério. Plínio separava livros e papéis
e ia consultando Gilberto sobre o destino que devia dar a eles. Fortaleceram-se assim os laços de
amizade entre os dois.
O que Gilberto Amado reconheceria na dedicatória que lhe fez em Eleição e Representação,
onde se lê:
Para meu Plínio Doyle, presença importantíssima na minha vida, companheiro do meu espírito
em viagens encantadoras pelos domínios da cultura, favorito de Donana, flor de humanismo,
gentilhomme de nascença, com o abraço de Gilberto Amado. Agosto de 1969.3
Entre os tantos papéis de Gilberto Amado, Plínio achou cerca de vinte cartas de Guimarães Rosa,
copiou-as e devolveu-as. Gilberto perdeu os originais em alguma viagem. Plínio fez de tudo para
descobrir onde aquelas cartas tinham ido parar. Ele nunca se conformava com esse tipo de perdas.
Conhecendo seu temperamento, a gente bem pode imaginar como deveria lembrar e sofrer
por esses tesouros desaparecidos. Em seu livro de memórias registra apenas o desaparecimento de
três livros de sua biblioteca. De dois tinha nítida lembrança de como tinham sumido. O terceiro foi
um mistério que deve tê-lo atormentado até os últimos dias. Wilson Martins, quando preparava a
História da Inteligência Brasileira, pedia muito livro emprestado, todos devolvidos, menos um: O
Canalha de Figueiredo Pimentel, que lhe fora oferecido por Américo Lacombe (entre muitos outros
que lhe ofereceu durante os 62 anos de boa amizade). Wilson Martins o levara, após um Sabadoyle,
em dia de muita chuva, ao descer do taxi, o livro caíra, sem que ele tivesse visto. Um outro, um
volume de poesias brasileiras que emprestou a Augusto Meyer e que este nunca se lembrou de
devolver e o terceiro que “sumira” mesmo fora a 1ª edição da Bagaceira, do José Américo, com
uma longa dedicatória do autor a Medeiros e Albuquerque e que lhe tinha sido oferecido pelo José
3
AMADO, Gilberto. Eleição e Representação. Rio de Janeiro: Sá e Cavalcanti Editores, 1969. Apud. DOYLE, Plínio. Uma vida… Op. cit.
p. 76. [nota dos editores]
Olympio. Foi depois disto, talvez, que Plínio adotou a prática de jamais emprestar seus livros. Eles
podiam ser vistos na casa dele mas dali não saíam.
Os livros também podiam voltar como foi o caso, não de perda mas de sofrida doação de
livro atendendo ao pedido da mulher de um amigo. Este, profundo conhecedor da obra do Eça
de Queirós, sempre que visitava o Plínio ficava namorando a Revista Moderna, especialmente
a edição em que pela primeira vez fora publicada a Ilustre Casa de Ramires. Por ocasião de um
aniversário de casamento, a mulher do dito amigo pediu ao Plínio que lhe vendesse o exemplar
dos desejos do marido pois queria lhe dar um presente especial. Plínio não hesitou e ofereceu,
de coração partido, é verdade, graciosamente a revista. Passados alguns anos, morre o amigo e
a viúva, que lhe pedira conselhos sobre o que fazer com os livros, aproveita para lhe devolver o
exemplar da Revista Moderna.
O primeiro impulso de Plínio no sentido da busca de livros raros se deu na juventude quando,
depois de ler uma crítica de Machado de Assis ao drama de José de Alencar, Mãe, saíra em busca
deste livro. Só o encontrou na Biblioteca Nacional, mas seguiu procurando até o final da vida e,
na época da publicação da autobiografia ainda suspirava por ele: soubera que seu grande rival,
José Mindlin tinha um exemplar publicado em 1862, por Paula Brito. Ele e Mindlin, como era do
caráter de ambos, competiam de forma bem-humorada para ver quem tinha mais raridades e nessas
brincadeiras em que um ligava para outro para provocar sobre alguma aquisição nova foram se
estreitando os laços de amizade.
Mindlin ligou uma vez para o Plínio para perguntar se ele conhecia um exemplar de livro de
Francisco Otaviano, Canto de Selma. O livro era raríssimo, fora publicado em torno de 1870, em
edição mínima – 7 exemplares. Pois bem, este livro era um dos poucos que o Mindlin tinha e que
o Plínio não tinha, mas que morria de vontade de ter. O sonho de Plínio era ter a primeira edição
de O Guarani do José de Alencar. Esta lhe foi oferecida uma vez por 2.700 dólares. Era muito
dinheiro e ele não pôde comprar. Mas, tempos depois o Mindlin a comprou na Europa em um
leilão. Outro objeto do desejo de Plínio era a primeira edição de A Moreninha. O Mindlin, sabedor
disto, mandou-lhe certa vez de presente a primeira edição de Iracema, oferecida num cartão bem-
humorado, o qual dizia: “Plínio, segue para você a primeira edição da “moreninha Iracema”.
Para Plínio, o colecionador de livros devia conhecer, gostar e cuidar deles. Conhecer o livro,
no entanto, da perspectiva do colecionador, não significava a leitura integral do conteúdo. Dizia
ele: “Nunca seria possível eu ter lido todos os livros de minha coleção, mas eu os ‘conhecia’
a todos”. No sentido editorial mesmo: da impressão; das diferenças entre uma edição e outra;
das erratas e da encadernação. Com isto Plínio se tornou também um conhecedor dos segredos
da história editorial deste país. O amor e a familiaridade de Plínio com sua coleção foram
percebidos por Raquel de Queiroz, em crônica de 1973, Os livros e seus amantes, em que ela
diz que Plínio
[...] conhece com tal amor cada uma das suas possessões, que basta você fazer leve referência a tal
ou qual edição de livro em que andou pensando, e ele vai de olhos fechados, bota a mão diretamente
em cima do volume citado e o entrega a você, com um sorriso.4
Cada livro tem uma história, e a história dos livros do Brasil (pois reuniu quase todos) está
nas notas de Plínio. O colecionador incansável guardava não só a memória de cada livro, de cada
revista, mas também a memória das dificuldades ou da situação inusitada em que se viu envolvido
para obtê-los. Um dia, lá pelos idos de 1950, uma chuva o surpreendeu no Centro, dentro de um
imaculado terno de linho branco. Correu e abrigou-se na Kosmos. Enquanto esperava, folheou
distraidamente a coleção encadernada de uma revista. Era O Espelho, revista de 1860, quase toda
escrita por Machado de Assis. Comprou no ato para depois constatar que a sua coleção, de 19
exemplares, era única, mais completa do que a da Biblioteca Nacional que tem apenas 18.
Plínio também tinha por princípio aceitar tudo que lhe ofereciam – o recorte, a carta, o livro,
a revista, etc. Mesmo que a coisa lhe parecesse sem valor, pois, segundo ele, a partir daí o doador
estimulado lhe traria outras coisas e, em meio a estas, uma talvez valesse a pena.
Eu nunca digo não a ninguém. Porque o meu pensamento é o seguinte: você me oferece uma caneta
e diz assim: ‘Pertenceu ao Guimarães Rosa.’ ‘Eu quero’. ‘Pertenceu ao Guimarães Rosa, foi ele que
me deu...’ Porque se eu recusar, pode ser que amanhã você tenha uma coisa melhor e diga assim:
‘Ah! o Plínio não quer’. ‘O Plínio não quis a caneta, agora eu tenho uma carta do Guimarães Rosa
aqui, mas não dou pra ele’. Então eu não recuso. Aceito tudo.
Um exemplo de como é importante guardar papéis velhos se deu com alguns que perteceram à
sua mãe, d. Seraphina Augusta Gonzaga. Professora municipal, nomeada por Decreto do Imperador
d. Pedro II, em 25 de fevereiro de 1880, d. Serafina foi transferida, no final do século XIX, da
escola que dirigia. Ao passar o cargo à sucessora, preparou uma relação de todo o material existente
na escola, inclusive dos livros. Em 1907, quando ela se jubilou fez idêntica relação do material em
uso na escola. As cópias dessas relações que ela guardou, Plínio entregou ao Arquivo Nacional,
dirigido então por Raul Lima. Tempos depois, uma professora da Bahia que pesquisava sobre
os livros didáticos usados no fim do Império e princípio da República se beneficiaria muito das
informações de D. Serafina.
Tinha por hábito comprar todos os fascículos avulsos de revistas que encontrasse nos “sebos”
amigos e teve boas surpresas graças a isto. Comprou uma coleção encadernada de O Fafazinho
4
QUEIROZ, Raquel de. Os livros e seus amantes. Jornal Última Hora, 11/03/1973.
(1904), revista do Viriato Corrêa, em que faltava o fascículo 5. Chegando em casa, entre os
exemplos avulsos, todas separados por pastas, encontrou o número cinco de O Fafazinho. Durante
18 anos, ele juntou 908 fascículos dominicais do Suplemento Literário de São Paulo, encadernando
a cada ano um volume. O mesmo fazendo com o Caderno de Sábado, do Correio do Povo de Porto
Alegre, com os seus 17 volumes, contendo 884 números, e também o Suplemento do Minas Gerais,
com cerca de 1.200 fascículos.
Para isto era preciso não só muita paciência mas também uma organização e uma disciplina
impecáveis. Sorte e paciência também lhe valeram quando, tendo sabido da venda da biblioteca de
Astrojildo Pereira para um livreiro de São Paulo, correu para lá. Tinha em mente comprar os três
volumes da obra Questões do Dia, coletânea de artigos contra José de Alencar que Astrogildo lhe
mostrara uma vez na casa da Rua do Bispo, onde morava. Plínio tinha apenas os dois primeiros.
Quando chegou na livraria paulistana, soube que a obra já tinha sido vendida. Mas, como ele
mesmo disse, de uma boa livraria não se sai às carreiras e nada tendo a fazer em São Paulo, ficou
vendo os livros. Pouco depois chegou um rapaz trazendo alguns que não tinham interessado ao
comprador e entre eles estavam os três volumes das Questões do Dia.
Um dos casos em que a sorte lhe foi fundamental resultou na compra dos dois volumes Viola
de Lereno, de Domingos Caldas Barbosa. Plínio encontrara em um sebo de Lisboa, o segundo
volume, por um preço especial. De volta ao Rio, na livraria Kosmos encontrou o primeiro e ficou
com a obra completa. Na mesma livraria de Lisboa, por puro acaso, também achou o segundo
e o terceiro volumes da revista Guanabara, de Araújo Porto Alegre, Gonçalves Dias e Joaquim
Manuel de Macedo.
Uma vez o livreiro Antonio Sant’Ana que administrava a livraria São José ligou para dizer-lhe
que havia comprado cerca de mil e oitocentos folhetos e livros pequenos de vários assuntos. Quando
Plínio pôde finalmente aparecer na livraria, dois ou três dias depois, soube, para sua decepção, que
tudo já tinha sido vendido. Para consolá-lo, seu Santana deixou que levasse um fascículo como
lembrança. Depois de vaculhar tudo, ele encontrou um pequeno livro Mazelas da Atualidade de
Mínino Severo que, sabia ser pseudonimo uma única vez adotado por Joaquim Manuel de Macedo,
obra raríssima. Comprou de Horácio Almeida, a primeira edição da História Geral do Brasil, de
Varnhagen, de 1854. Quando abriu um dos volumes, deparou-se com a dedicatória: “Ao meu velho
e prezado amigo Gonçalves Dias, F. A. Varnhagen”.
Sua fama de colecionador de papéis lhe valeria uma anedota literária. Durante um dos célebre
almoços em que José Olympio reunia seus amigos escritores e onde Plínio fez as amizades que
depois levou para o Sabadoyle. Alguém perguntou a Guimarães Rosa pelas Segundas Histórias, já
que depois da publicação de Primeiras Histórias ele tinha entregue a José Olympio os originais de
Terceiras Histórias. Ao que Guimarães Rosa respondeu: “vocês conhecem o Plínio Doyle que não
está satisfeito enquanto não tem um papel na mão para seu arquivo. Ele me pediu os originais das
Segundas Histórias para ler e agora não quer devolver porque já estão arquivados”. A dedicatória
do exemplar de Sagarana, que Rosa lhe ofereceu diz assim: “Plínio Doyle, todos os livros têm
também de ser um pouco seus - de você, que os ama, com argúcia e entendimento. Como seus são
a admiração e o afeto do Guimarães Rosa.”
De Carlos Sussekind, que costumava visitar na rua Gustavo Sampaio, no Leme, ganhou
algumas cartas do Machado de Assis a Salvador de Mendonça e uma grande preciosidade que são
os originais do Til, romance de José de Alencar. Conta Plínio que aqueles originais pertenciam a
Lúcio de Mendonça, que fora diretor do Jornal A Reforma, onde o Til fora publicado como folhetim.
José de Alencar ia toda tarde à redação do Jornal para escrever o capítulo do dia seguinte. Escrevia
e deixava o manuscrito por lá mesmo. Lúcio de Mendonça guardou os originais que ficaram com
o filho dele, Carlos Sussekind de Mendonça. Foram os primeiros originais importantes que Plínio
ganhou e que hoje compõem o acervo do Arquivo Museu de Literatura da FCRB.
Os originais de Canaã, do Graça Aranha lhe foram vendidos em um pacote fechado que trazia
escrito: “Documentos de Joaquim Nabuco”. O livreiro disse ao Plínio: “Eu vou vender a você,
mas não abri. Não sei o que tem aí dentro. Vou vender por tanto.” Plínio comprou e quando abriu
achou 150 cartas e cartões de Nabuco quase todos dirigidos ao Graça Aranha e os originais do
Canaã, escritos à mão. Os originais de dois dos livros de Cornélio Pena, lhe foram doados por
José Olympio. A estes foram depois se juntar seus arquivos doados pela viúva de Cornélio Pena ao
AMLB. Também no AMLB estão os originais de Moleque Ricardo e de Menino de Engenho. José
Lins do Rego os tinha dado a José Olympio e a Adalgiza Nery, respectivamente que os doaram
ao Plínio. Também ali estão os originais de Últimos Sonetos e Evocações de Cruz e Souza, que
chegaram ao Plínio junto com o arquivo de José Cândido de Andrade Murici, maior especialista
em Simbolismo de sua geração.
O Arquivo Museu de Literatura Brasileira (AMLB) da Fundação Casa de Rui Barbosa, que
abriga essas essas preciosidades, foi criado em 1972. A ideia de se criar uma entidade voltada
para a conservação de arquivos literários surgiu em conversa reservada com Carlos Drummond
de Andrade, durante um Sabadoyle. Inicialmente, Plínio tentou fazê-lo associado à Editora José
Olympio. Mas esta enfrentava, naquele momento, dificuldades financeiras e quando Américo
Jacobina Lacombe, presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, conheceu o projeto achou que
aquele fundo poderia ficar na própria Fundação. Assim foi que em 28 de dezembro de 1972, foi
criado o Arquivo Museu de Literatura, instalando-se no 3º andar do recém construído anexo da
Casa de Rui Barbosa.
O primeiro arquivo recebido foi o de Andrade Muricy. Depois foram chegando os arquivos
de Carlos Drummond de Andrade, Cornélio Pena, Ciro dos Anjos, Pedro Nava, Ribeiro Couto,
Lúcia Cardoso, Vinícius de Morais, José Olympio, José Geraldo Vieira, Francisco Ignácio
Peixoto, Gilberto Amado, Genolino Amado, Manuel Bandeira, Joaquim Inojosa, Clarice Lispector,
Raimundo Magalhães Júnior, Wilson Martins, Augusto Meyer, Hélio Peregrino, Tasso da Silveira,
além do riquíssimo arquivo do próprio Plínio Doyle. Em seu depoimento, Plínio narra como foi
que obteve papéis e outros objetos que pertenceram a Manuel Bandeira. Vale a pena conhecer a
história tal como ele a contou.
Nos últimos anos da vida, o Bandeira morava em Copacabana, em companhia de uma senhora, dona
Lourdes. Ela era a companheira dele. Quando ele morreu, eu estava uma tarde no José Olympio e
encontrei uma senhora, chamada dona Letícia, conversando sobre os direitos autorais do Bandeira.
A dona Letícia era sobrinha da dona Lourdes, era a sua herdeira testamentária. Dona Loudes ainda
não tinha morrido mas estava internada, muito doente e morreu logo depois. Conversando com
a dona Letícia eu lhe disse: ‘ dona Letícia, não tem nada lá do Bandeira pra mim, para Casa Rui
Barbosa?’ Ela disse: ‘Tem umas coisas lá, dr. Plínio. O sr. pode ir lá em casa ver’. Eu marquei:
‘Vou amanhã’. Cheguei lá, ela me disse logo: ‘Tem uma poltrona e a bengala. Eu dou para o sr.
Já estão dadas’. Mas eu vi uma mobília de sala de jantar, de jacarandá muito bonita e disse: ‘dona
Letícia, eu quero essa mobília’. ‘Ah, essa eu já vendi! Já foi vendida’. Então, eu calei a boca.
Mas vi também que um sofá grande, estava cheio de papéis, jornais, poeira, tudo misturado. E
eu perguntei: ‘dona Letícia, e esses papéis que estão aqui? O que é isso?’ ‘Ah, isso são papéis do
Bandeira e da Lourdes. Uns jornais. Não sei o que eu vou fazer com isso’. ‘Quer me dar esses
papéis? Eu vou no carro, apanho um saco pra guardar’. ‘Ah, pode levar doutor. É um prazer’.
Tudo em cima do sofá pra botar fora. Eu separei. Trouxe para a Casa. Joguei fora os jornais e
outras coisas. Separei 1300 documentos que estão lá na Casa Rui. É o arquivo do Bandeira. Tenho
1300 documentos do Bandeira na Casa Rui Barbosa. Foi assim. A mobília que ela disse que tinha
vendido, passados dois ou três dias, telefonou pra mim dizendo que a pessoa desistira. Aí eu disse:
‘Então, eu quero comprar, dona Letícia’. ‘Não! A você não vendo. A você eu dou, porque é para a
Casa de Rui Barbosa. Pode levar a mobília’. Mandei buscar a mobília. Não gastei um tostão. Está
lá na Casa Rui, com 8 cadeiras e uma mesa pequena.5
Assim que é que se justifica o nome Museu na sigla do AMLB. Ali estão, além dos móveis,
da casaca e da bengala que foram do Bandeira, alguns objetos que pertenceram a outros escritores.
Tem uma máquina de escrever que foi do Thiers; tem uma bengala que foi do Lúcio Cardoso; as
maravilhosas caixas de música de Cornélio Pena e outros tantos tesouros que, por interferência de
Pedro Nava, foram lhe dados pelo filho de Arthur Azevedo.
5
Depoimento inédito prestado a Isabel Lustosa e Homero Senna em 1996.
Na crônica que Raquel de Queiroz sobre Plínio e sua coleção, ela descreve com muito bom
humor a realidade dos que colecionam livros.
Na casa de quem gosta de livro, os livros crescem como vegetação daninha. Pelas mesas, pelos
consolos, pelas cômodas, até pelas gavetas, os livros se estendem e se amontoam como lianas
tropicais, depois de haverem enchido armários e estantes. E a casa inteira ressente da invasão dos
livros. Acaba sendo, para todos da família, como se os livros não fossem instrumentos de saber e
deleite, mas intrusos odiosos, que se devem combater como a uma praga. E há filhos que roubam
livros para dar de presente ou jogar. Há sogras que fazem fogueiras clandestinas num recanto de
quintal e queimam o que alegam ser papelada para rato e traça. Há maridos que empreendem uma
guerra surda contra o livro invasor, e falam na angústia de espaço, nas exigências da civilização que
inventou o apartamento, em razões de saúde (poeira, tinta, alergia); zombam da mania de acumular
livros, que não corresponde à capacidade de leitura do acumulante (‘Posso lhe provar por um
cálculo matemático que você nunca terá tempo para ler sequer 20% dos seus livros!’)6
Raquel diz que Plínio Doyle cortara o nó górdio das desavenças domésticas depois que “botou
casa para os livros, e os tem insolentemente teúdos e manteúdos, num belo apartamento, nas
vizinhanças da residência de sua família legítima. Ali a casa é só deles.”7 De fato, Plínio que, desde
1938, morava em uma casa na rua Barão de Jaguaripe, abrigava ali sua Biblioteca. Esta, no entanto,
crescera tanto que o levara a comprar um apartamento só para os livros, na mesma rua, número
74, 2º andar. Quando a biblioteca foi vendida para a Casa de Rui Barbosa tinha aproximadamente
25.000 volumes.
Raquel, talvez com certa ironia, comenta o fato de Plínio ter “exemplares de todas as edições
de tudo quanto é autor — sem contar as duplicatas”.8 E prossegue: “um vago folheto que Alencar
soltou há cem anos, outro que Coelho Neto publicou numa revista, conferência de Mário de que a
Revista Acadêmica tirou uma separata.”9 Para, no final, alfinetar:
Humildes autores que sempre se consideraram escritores menores e que nem na própria casa têm
a sua obra completa, descobrem-se de repente célebres, ali na biblioteca de Plínio Doyle, com
edições princeps, exemplares de todas as tiragens; livrinhos esquecidos (de alguns dos quais ele
talvez até se envergonhe) — originais encadernados, uma prateleira toda em sua homenagem!10
6
QUEIROZ, Raquel de. Os livros e seus amantes. Jornal Última Hora, 11/03/1973.
7
Id. Ibid.
8
Id. Ibid.
9
Id. Ibid.
10
Id. Ibid.
De fato, o colecionismo do Plínio tinha essa peculiaridade: a busca por raridades que não
tinham necessariamente valor literário. São raridades justamente porque o autor ou autora tentara
por todos os meios fazer sumir com a obra indesejada. Ele tinha esse fetiche, o do livro com erro de
impressão ou produto de fase menos feliz de autor importante ou mesmo obra de autores menores.
Daí o caráter peculiar da organização de sua biblioteca. Por exemplo: um livro repetido de uma
mesma autora – ano, edição, editora, tudo parece igual. Mas não é. No papelucho que guardou
dentro do livro, Plínio explica: a autora não gostou de sua foto e exigiu do José Olympio que
rodasse novamente a capa com foto de seu agrado. Da edição com a capa rejeitada, José Olympio
guardou dois exemplares, um para si e outro para o Plínio, pois conhecia os critérios pelos quais o
amigo organizava sua biblioteca.
Da coleção constam três exemplares da primeira tiragem das Poesias Completas, de Machado
de Assis. do livreiro-editor H. Garnier, de 1901, Machado escreveu a seguinte Advertência. Impresso
em 1901 pela Garnier, em Paris, o livro, na Advertência, onde Machado se refere a um prefácio
de edição anterior em que a generosidade do prefaciador fora tanta que “lhe cegara o juízo” o e da
palavra cegara foi trocado por um a resultando num lamentável solecismo. A edição já estava na
rua quando Machado se apercebeu do erro. Do que ainda restara, parte o autor corrigiu de próprio
punho e outra teve a página trocada. Pois nos três exemplares reunidos por Plínio Doyle, um traz o
erro, o segundo está corrigido a mão e o terceiro é o da página trocada.
A Casa de Rui Barbosa deve muito a Plínio. O prestígio do Arquivo Museu de Literatura
Brasileira (AMLB) e da Biblioteca Plínio Doyle com sua imensa coleção de periódicos raros
e de literatura brasileira mostram como uma pequena paixão individual pode dar origem a um
vasto patrimônio cultural. Patrimônio que tem valor inestimável para a memória de nossas letras,
beneficiando não só a todos os brasileiros mas também aos pesquisadores de outros países que se
debruçam sobre nossa cultura.
Relendo sua autobriografia, constatamos a maneira como ele reune ali quase que como um
mesmo elemento as histórias de seus amigos e de seus livros às histórias contidas nos livros.
Percebemos assim que sua coleção é um produto de todas essas vivências reunidas em uma espécie
de bricolage na qual se reconhece o sorriso amável e generoso do colecionador.
* Historiadora. Professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV). Mestre em
Educação (UFJF), Mestre em Projetos Sociais e Bens Culturais (FGV) e Doutora em História Política e Bens Culturais (FGV).
1
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p.103.
família Lage, Alfredo cursou alguns anos de Medicina, mas não há documentos que comprovem
essa incursão. A despeito de ser bacharel, nunca exerceu a profissão, optando pelo caminho da
administração dos bens familiares e dos empreendimentos culturais.
Cabe ressaltar que, no tempo de faculdade, Alfredo teve colegas que se tornariam figuras
importantes, como Pedro Calmon. Na época, a produção das faculdades de Direito não se
restringia aos estudos das leis. Ao contrário, eram cenários de militância política - abolicionista
e republicana -, de produção e difusão literária e de interpretações do Brasil e de seu povo. Ao
Direito, era atribuída a responsabilidade de aceleração dos passos do país rumo à civilização e
à ordem. Ainda, de acordo com Lilia Schwarcz, “[...] confiantes em sua posição de missionários,
buscavam os juristas brasileiros cunhar para si próprios uma representação que os distinguisse dos
demais cientistas nacionais. Eram eles os ‘eleitos’ para dirigir os destinos da nação [...], mestres
nesse processo de civilização.”6
Uma importante influência no pensamento político republicano, presente na formação desses
bacharéis, foi o positivismo ou os positivismos, já que não era uma doutrina homogênea. Por meio
da leitura das obras de Augusto Comte, de Littré, de Spencer, entre outros, as ideias principais dessa
corrente foram sendo formuladas e organizadas no Brasil. Seu princípio básico advinha da Teoria dos
Três Estados, ou seja, três fases distintas de uma mesma trajetória evolutiva da história dos povos.
De acordo com essa teoria, a fórmula do progresso brasileiro estaria na instrução de seus cidadãos
e no povoamento de seu território, basicamente pela atração de imigrantes brancos e trabalhadores
qualificados. Nessa perspectiva, as ações de Mariano e Alfredo se complementam. Enquanto o pai
investiu na vinda de imigrantes alemães e italianos para a cidade, o filho dedicou-se à instrução
do povo por meio de um novo e valorizado vetor cultural: sua coleção transformada em museu.
Contudo, é arriscado simplificar o pensamento do colecionador, taxando-o de ‘positivista’, tendo em
vista as múltiplas matrizes que disputavam as interpretações sobre o Brasil naquele período.
Sem dúvida, é difícil demarcar o momento no qual o interesse pelo colecionismo nasceu em
Alfredo Ferreira Lage. Com a morte do pai, em 1872, a família se muda para Europa. Não se
sabe quando a família Lage retornou ao Brasil. Certo é que Maria Amália, mãe do colecionador,
contratou um imigrante português, Manoel Costa, para auxiliá-la na administração da Chácara
Mariano Procópio. Depois disso, muitas outras viagens selariam o gosto e o interesse dos Lage
pela cultura europeia: recibos de hotéis e aluguéis de apartamentos em várias capitais comprovam
a movimentação da família, embora Paris fosse sempre o local predileto.
É inegável também destacar que o processo de estruturação da coleção de Alfredo evidencia o
ecletismo do conjunto, remetendo ao modelo de construção dos primeiros museus da modernidade,
6
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil... Op. cit. p. 187.
O texto refere-se a Alfredo Ferreira Lage como “senhor” e “filho do saudoso” Mariano Procópio.
Curiosamente, não utiliza o termo “doutor” para designá-lo, conforme costume estabelecido em
7
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O templo e o fórum: reflexões sobre museus, antropologia e cultura. In: A invenção do patrimônio.
Rio de Janeiro: IPHAN, 1995.
8
A Villa foi a residência de veraneio construída a mando de Mariano Procópio Ferreira Lage no século XIX, transformada posteriormente
em museu.
9
Sem título. O Pharol. Juiz de Fora, 24 out.1914. Setor de Memória/BMMM. Fonte gentilmente cedida pela pesquisadora Ana Lúcia Fiorot.
relação aos bacharéis de direito. O jornalista reforça sua filiação, talvez, como forma de agregar
importância e reconhecimento tanto ao indivíduo como ao empreendimento. A transferência do
Rio é demarcada em dois momentos, sinalizando mais do que uma mudança geográfica, o grau de
pertencimento do novo morador à cidade de Juiz de Fora. O museu é apresentado como um projeto
antigo, embora o autor não circunscreva a origem da ideia.
É interessante notar a ideia de exposição presente – a de objetos dispostos convenientemente –
para dar início à montagem do Museu. Ademais, a colocação dos objetos na residência de Mariano
Procópio seria realizada sem a presença física do colecionador, o que evidencia que outra pessoa
foi responsável pela montagem inicial. A referência a “todos os objetos” demonstra, ao mesmo
tempo, a importância da transferência da coleção para Juiz de Fora e a concepção enciclopédica de
exibição, na qual a quantidade era fator decisivo para a visualização do prestígio da coleção, que
já era chamada de museu.
Em 1915, a casa e a coleção já recebiam visitas particulares, que eram documentadas pela
imprensa. No mesmo ano, o Museu era retratado no Álbum do Município de Juiz de Fora, escrito
por Albino Esteves10, com sete fotografias do então denominado Palacete do Comendador Mariano
Procópio e duas do Parque. A referência é feita ao Museu Ferreira Lage, “[...] ponto de magnífico
recreio espiritual”.11
Em breve descrição do acervo, o autor comenta a existência de seis coleções, a saber:
a de mineralogia e diversos ramos das Ciências Naturais; a de numismática; autógrafos e
gravuras; a de mobiliário e objetos históricos e antigos; e a de Belas Artes e cerâmica. As
fotografias mostram os interiores das salas da Villa, com sua função preservada e identificada,
com destaque para a sala de jantar e o escritório. A coleção de Alfredo aparecia nas paredes e
sobre o mobiliário, o que reforça a hipótese de que o início da transferência e da organização
tivesse começado no ano anterior.
O acervo de pintura brasileira do século XIX foi ampliado com aquisições e doações de
pintores. O vínculo de sua companheira, a pintora espanhola Maria Pardos, como aluna da Escola
Nacional de Belas Artes (RJ), foi decisivo para a aproximação e a consolidação das relações com
os principais artistas da época, como Rodolfo Amoedo, Belmiro de Almeida, Hipólito Caron e os
irmãos Bernardelli.
Após a inauguração do Museu, já em 1921, a pinacoteca recebeu a obra Tiradentes Supliciado,
quadro de 1893, de Pedro Américo, doado pela Câmara Municipal de Juiz de Fora12. A doação
10
Albino Esteves foi destacado jornalista de Juiz de Fora, responsável pela publicação do álbum do município em 1915.
11
ESTEVES, Albino (org). Álbum do Município de Juiz de Fora. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1915.
12
A tela, conhecida como “Tiradentes Esquartejado”, foi adquirida pela Câmara Municipal de Juiz de Fora e doada ao MMP em 1922. Ela
demonstra as boas relações entre o poder municipal e o MMP, bem como a centralidade de
Tiradentes como o grande herói da República.
Alfredo também se esmerou em reunir preciosidades e bens provenientes da Família Imperial,
principalmente, aqueles oriundos do Palácio Imperial de São Cristóvão, já que, durante a Primeira
República, eram organizados vários leilões, como já destacado, para a venda de bens, nos quais ele
adquiriu, direta ou indiretamente, muitas peças.
Uma importante aquisição foi, em 1926, a dos fardões da maioridade e do casamento de D.
Pedro II. Por tal feito, Pedro Calmon o parabenizou em carta: “Cumprimento atenciosamente
[...] para manifestar ao nobre amigo todo meu aplauso pelo seu belo gesto, adquirindo para o
grande Museu Mariano Procópio os fardões do imperador”13. Esse documento suscita questões
importantes para o entendimento do projeto de memória de Alfredo. Afinal, quais seriam seus elos
com os historiadores “profissionais”? Qual a inserção do Museu, naquele momento, em um projeto
de memória nacional, compartilhado por outras instituições, museais ou não?
As doações consideradas mais importantes foram anotadas nos relatórios administrativos da
instituição, apenas a partir de 1936, e seus doadores foram homenageados com nomes de salas, ao longo
da trajetória expográfica do Museu. Uma colaboradora, em especial, foi eternizada: a Viscondessa
de Cavalcanti14. Isso porque ela doou, dentre outros objetos, parte da coleção de numismática e
medalhões; livros raros, inclusive suas traduções em braille15; fotografias e documentos da nobreza;
minerais; objetos da História Antiga; uma coleção europeia de pinturas em miniaturas; uma tela de
Jean Fragonard16 e um precioso “objeto de memória” - seu leque, autografado e ilustrado por vários
artistas e personalidades do século XIX e XX, entre os quais figuravam d. Pedro II e Princesa Isabel,
Machado de Assis, Eça de Queirós, Santos Dumont e Getúlio Vargas.
Foi o aumento de sua coleção privada que levou Alfredo Lage a enfrentar um desafio,
igualmente vivenciado por outros colecionadores, em diferentes épocas e lugares. A coleção
teria sido concebida como parte de uma série de pinturas, que não chegou a ser concluída devido, principalmente, à pouca aceitação. De
acordo com Maraliz Christo (2005), o quadro ficou esquecido por mais de meio século no Museu, sendo divulgado a partir dos anos 70 em
enciclopédias e, principalmente, em livros didáticos.
13
Carta de Pedro Calmon a Alfredo Ferreira Lage, em 16 de junho de 1926. AH/MMP.
14
Amália Machado Cavalcanti de Albuquerque (1852-1946) era sobrinha de Maria Amália e conviveu intensamente com a família Lage.
Casou-se com Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, que foi agraciado com o título nobiliárquico de Visconde de Cavalcanti. Estudiosa
de numismática, editou o “Catálogo de Medalhas e Moedas brasileiras e estrangeiras”. Suas doações ao Museu foram contínuas até sua
morte.
Um dos livros traduzidos e doados ao Museu foi Por que me ufano do meu país, de Afonso Celso, publicado em 1900 e considerado um
15
tornava-se maior que o próprio colecionador, exigindo dele medidas para conservá-la além de sua
própria vida individual.
Nesse caso, a construção e a organização do MMP envolveram somas vultosas, além da busca
constante por sua legitimação e difusão. Em seu projeto original de instituição, Alfredo procurou
inscrevê-la em um conjunto maior de manifestações culturais e artísticas, com foco no período
imperial, entendido como o passado histórico da nação. A participação do colecionador como sócio
honorário no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), a partir de 1923, permitiu-lhe o
acesso e o diálogo com importantes intelectuais brasileiros, além de revestir seu projeto museal de
legitimidade intelectual no campo dos estudos histórico-geográficos.
Assim, Lage articulou o seu projeto de memória – pessoal e institucional, apoiando-se em
efemérides. A data de inauguração do Museu, 23 de junho de 1921, marcava as comemorações
do centenário de nascimento de Mariano Procópio, seu pai, consagrado na nova instituição.
Em 13 de maio de 1922, o Prédio Mariano Procópio, conhecido popularmente como “Anexo”,
foi inaugurado com o intuito original de abrigar a pinacoteca, data que remetia à Abolição, evento
capital no calendário festivo da República. A festa de 1922, ano das comemorações do Centenário da
Independência, contou com a presença dos vereadores, de deputados estaduais e de representantes
de alta patente militar. A solenidade incluiu ainda bênção das galerias, discurso de Max Fleiuss,
secretário perpétuo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHBG) e a inauguração dos bustos
da Princesa Isabel e do Conde D’Eu, ainda vivo.
O Jornal do Comércio do Rio de Janeiro publicou, no dia 25 de junho de 1922, o discurso
de Alfredo na ocasião, no qual aborda seu sentimento de colecionador e o desejo de tornar “seu”
Museu uma instituição pública. Em suas palavras, os museus “[...] são academias de práticos
ensinamentos. De fato, neles cabem as várias manifestações do gênero humano e, cuidadosamente
resguardadas, muitas delas, as históricas, por exemplo, aos vindouros, vão revelar fatos do passado,
registros públicos de obras memoráveis, glórias de um povo!” 17
A cerimônia, presidida pelo doutor Alfredo fora um sucesso, reunindo autoridades e símbolos
da abolição, da Igreja Católica, das artes e da ciência em um mesmo espaço, que, nesse momento
de sua existência, poderia ser caracterizado como “repositório do antigo regime”.
Conforme salienta Rogério Pinto (2008), Alfredo não sistematizou seu projeto e pensamento
em livros ou artigos. Proferiu alguns poucos discursos, que foram difundidos pela imprensa, o
que os sujeita às alterações inerentes ao processo de publicação de um jornal. Sua “obra”, porém,
pode ser conhecida por suas ações, principalmente pela instituição que criou e dirigiu em suas duas
primeiras décadas de existência.
17
Jornal do Commércio, Rio de Janeiro, 1922. Setor de Memória/BMMM.
Sua gestão no Museu, no período de 1936 a 1944, data de sua morte, foi realizada de forma
direta com o prefeito. Em suas correspondências administrativas, há solicitações de equipamentos
e benfeitorias, como telefone, extintores e colocação de paralelepípedos no acesso. Alguns
registros levam a refletir sobre os esforços para a manutenção do Museu, realizada, afora a verba
da prefeitura, por meio da venda de jabuticabas e do aluguel de barcos no lago do Parque. Alfredo
imaginou o Parque do Museu como área de lazer da população e previu, em seus relatórios, a
construção de pista de patinação, quadras de vôlei e piscinas18.
Mais uma vez, pode-se notar que a rede de sociabilidade de Alfredo foi acionada para
a construção de seu projeto administrativo, o que demonstra que o MMP não estava alheio às
experiências de outros museus, ao contrário. Além disso, organizar um acervo e expô-lo ao público
envolveu a construção de um discurso museográfico pertinente aos conceitos de ciência, história e
museus daquela época. Contudo, o seu primeiro regulamento foi aprovado pelo prefeito somente
em 1946, dois anos após o falecimento do diretor. Conforme Mário Chagas alerta:
[...] as instituições [...] apresentam um determinado discurso sobre a realidade. Compreender esse
discurso, composto de som e silêncio, de cheio e vazio, de presença e ausência, de lembrança e
esquecimento, implica a [preocupação] não apenas com o enunciado da fala e suas lacunas, mas
também a compreensão daquilo que faz falar, de quem fala e do lugar de onde se fala.19
Assim, toda coleção produz significados na medida em que os objetos que a compõem são
postos sob um arranjo, produzindo formas de interação. A esse respeito, Letícia Nedel sublinha
que “o sentido dos objetos está menos nas características intrínsecas do que nas ressignificações
operadas ao circularem pelo meio social [...]”.20
Nesse sentido, a formação dessa coleção já aponta indícios importantes sobre os critérios
de acumulação de Alfredo Lage, a saber: a busca por pinturas históricas nacionais e por objetos
do período monárquico, com destaque para os que pertencessem à Família Imperial Brasileira.
Para ele, a autenticidade das peças era absolutamente fundamental para o reforço da aura de sua
coleção. Alfredo também buscava colecionar “objetos-semióforos” que, segundo Pomian (1984),
são suportes materiais de ideias e pontes entre o mundo visível e invisível. Assim, não podem ser
18
LAGE, Alfredo Ferreira. Relatórios anuais do Museu Mariano Procópio. Pasta MMP/AFL 1.4. AH/MMP, 1936 a 1944.
19
CHAGAS, Mário. Memória e poder: focalizando as instituições museais. Interseções. Rio de Janeiro: UERJ, ano 3, n.2, p.5-23. jul./
dez.2001.p. 6.
NEDEL, Letícia Borges. Da coleção impossível ao espólio indesejado: memórias ocultas do Museu Júlio de Castilhos. Estudos Históricos.
20
analisados somente pela ótica do valor econômico, pois possuem potencial aurático, advindo da
posse, da raridade e da biografia do objeto.
Gisele Sanglard, ao estudar a trajetória dos Guinle, procura acuradamente discernir filantropia
de mecenato. Para a estudiosa, filantropia seria toda e qualquer ação que visasse a minorar o
sofrimento do pobre, seja de cunho religioso ou não. Já o mecenato envolveria o “pagamento de
um trabalho específico, o apoio deliberado à carreira de um determinado indivíduo e o apoio a uma
forma de expressão com base na crença em seu valor intrínseco”.21
Sanglard, ao analisar os caminhos da filantropia e do mecenato de Guilherme Guinle, no Rio
de Janeiro nos anos 1920-40, traça o perfil do chamado “homem da Belle Époque”, ao mesmo
tempo, um agente das transformações urbanas e da preservação do passado. Em um momento em
que os símbolos da modernidade são valorizados e os clubes de sociabilidade são reforçados e
ampliados, a autora afirma que Guinle intensificou suas ações de mecenato científico, fortalecendo
um novo projeto de nação calcado no higienismo, na urbanização e na educação do povo.22 Ao
evocar os estudos de Jeffrey Needell (1993) sobre a Belle Époque tropical, ela percebe a trajetória
de Guinle calcada em valores de uma nova elite republicana, em busca de sinais aristocráticos, ou
seja, de uma distinção social de tipo nobre.
E, de acordo com Needell (1993), esses ‘homens novos’ não possuíam laços familiares
tradicionais que tivessem lhes garantido riqueza e status. Assim, a riqueza formada recentemente,
apenas no final do Império e início da República, proporcionou a inserção desses homens na elite
do país, mas exigia-lhes estratégias que garantissem seu reconhecimento social e intelectual.
Cumpre destacar que a família Guinle enriqueceu no final do século XIX, principalmente
com o capital advindo da concessão do Porto de Santos, ocorrida em 1888, o que a enquadra
exatamente no perfil traçado por Needell. Já Alfredo Lage é um exemplar membro da elite
aristocrática, herdeiro de fortes vínculos sociais e políticos com a Família Imperial e com parte
da nobreza. Aliás, sua própria família foi nobilitalizada por D. Pedro II e participou de projetos
importantes de modernização no Império, como demonstrado anteriormente. Assim, mais do que
inventar uma tradição, conforme sugere Needell, Lage procurou fortalecê-la, em um momento
político conturbado, assegurando sua continuidade no tempo.
Seu desejo de colecionar objetos da nobreza, principalmente da família imperial, envolveu, da
mesma forma que a nova elite emergente, uma participação nos leilões e nos circuitos aquisitivos
do gênero. Mas não se deve esquecer que parte de sua coleção foi formada a partir dos laços de
21
SANGLARD, Gisele. Entre os salões e o laboratório. Guilherme Guinle, a saúde e a ciência no Rio de Janeiro, 1920-1490. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 2008. p. 24.
22
Id. Ibid.
sociabilidade pessoal com a própria nobreza. Como membro da ‘velha’ elite imperial, a família
Lage foi partícipe da política monárquica, sendo necessário, com a República, negociar interesses
e prestígio no contexto do novo regime, uma tarefa nada desprezível.
Nesse mesmo contexto e com esse objeto, Sanglard recupera com maestria a imagem
construída sobre Guilherme Guinle por intelectuais, a partir do inquérito publicado no O jornal, do
Rio de Janeiro, em 192723. As qualidades nele ressaltadas foram amor, patriotismo, humanitarismo,
altruísmo, dentre outras, além do desinteresse das doações, refletido na reduzida publicidade de
seus atos. Da mesma forma, procura ressaltar o caráter único e a exemplaridade de suas ações, com
destaque para uma postulação do que deveria ser a função social da riqueza, a saber: contribuir para
o desenvolvimento do país.
Contudo, a pesquisadora vai além dessa imagem projetada, destacando o traçado da virtude
do nacionalismo de Guinle e a relação implícita entre as ideias de generosidade e nobreza. Nesse
sentido, observa-se um deslizamento nos significados e origens do “ser nobre”, que, de qualidade
de nascimento herdada, passa a ser algo que se conquista com esforço e patriotismo. Assim, alguém
não “é” nobre; torna-se nobre. Ela ressalta ainda que as doações de Guinle foram realizadas em
vida, o que, de um lado, aumenta seu valor e, de outro, produz um controle sobre o que e para quem
doar, possibilitando negociações com o Estado e suas instituições culturais.24
Da mesma forma, Regina Abreu, em seu estudo sobre a doação do acervo Miguel Calmon ao
Museu Histórico Nacional, efetuada no mesmo ano de 1936, atenta para o esforço de imortalização
dos homens públicos por meio da exposição dos seus objetos em lugares consagrados da memória
nacional, o que reforçaria seu prestígio social, sua “nova” nobreza. Nesse caso, vinculado ao gesto
generoso da viúva Alice Porciúncula, havia uma explícita relação de troca. Em recompensa à
doação, Gustavo Barroso, então diretor do MHN, oferece associar a memória da família Calmon
a uma instituição canônica da história nacional, agora, uma história republicana construindo seu
passado monárquico.25
Interpretações sobre o ato de doar procuram desvendar o tipo de relações de troca nele
subjacentes. Pomian destaca que, a despeito do valor econômico das coleções, não é possível
analisá-las a partir da ótica do simples entesouramento. Os objetos, nos atos de colecionar e doar,
saem do circuito econômico e perdem o valor de uso, mas mantêm o valor de troca, num mercado
de bens simbólicos que atribui distinção a quem dele participa. De acordo com o autor, é
23
Dentre as 89 personalidades que participaram da redação do dossiê, destacam-se os médicos Carlos Chagas e Miguel Couto; os políticos
Wenceslau Braz, Getúlio Vargas e Afrânio de Melo e Franco; e, também, Dom Pedro de Orléans e Bragança (SANGLARD, Gisele. Entre
os salões e o laboratório... Op. cit.. p 95).
24
SANGLARD, Gisele. Entre os salões e o laboratório... Op. cit.
25
ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco: Lapa, 1996.
[...] fácil compreender então que a aquisição de semióforos, a compra de obras de arte, a
formação de bibliotecas ou de coleções, é uma das operações que, ao transformar a utilidade em
significado, permitem a quem tenha uma alta posição na hierarquia da riqueza ocupar uma posição
correspondente na do gosto ou do saber, sendo as peças da coleção [...] símbolos de pertença social,
senão de superioridade.26
O ato de colecionar e de doar envolve, portanto, a construção de uma estrada de mão dupla
entre dar e receber. Embora, aparentemente, a doação possa ser realizada sem estabelecimento
de contrapartidas explícitas, como no caso de Guinle, há sempre um retorno simbólico
ao doador que não pode ser depreciado. Como a literatura remarca, as doações possuem
“diferentes objetivos: a preservação da memória das famílias tradicionais, cujo papel e capital
social decaíram com o fim do Império [...]; ou a afirmação de uma imagem de ‘promotores’ e
‘protetores’ da cultura”.27 É preciso então destacar que Guilherme Guinle, aliás, como Alfredo
Lage, não possuía descendentes diretos.
Alfredo Lage é colecionador e doador do primeiro tipo, preocupado com a manutenção do
poder de sua família em um momento de crise financeira, o que impossibilitaria a manutenção de
sua coleção e do museu particular. A divulgação da intenção de doar o Museu ao município de Juiz
de Fora é realizada em diferentes etapas, o que denota um movimento de constante negociação
através do tempo.
Alfredo primeiro abriu sua coleção aos amigos; em seguida, franqueou-a à visitação do público,
em momento simbólico, nos anos de 1921/22. Mais de uma década depois, em 1934, a gestão
pública do Parque foi iniciada e só, em 1936, dois anos depois, a doação integral foi realizada28. Isso
porque Alfredo doou o Museu, o parque e a coleção em 29 de fevereiro de 1936, coincidentemente,
no mesmo ano em que a coleção Miguel Calmon foi doada ao MHN, como se viu.
As semelhanças dos processos são um forte indício da existência da circulação de ideias
e práticas entre os colecionadores do início do século XX. Entretanto, a doação de um museu
consolidado ao poder público, e não somente de uma coleção, foi rara no Brasil àquela época. Nos
dois casos, porém, a doação de acervo incluía a inseparabilidade dos bens e a denominação de
salas especiais em homenagem a familiares. O caráter privado das coleções também foi realçado:
POMIAN, Krzysztof. Coleção. In: ROMANO, Ruggiero (org.) Enciclopédia Einaudi. vol. 1 Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da
26
no caso da família Lage, com a continuidade administrativa e o usufruto de Alfredo sobre “seus”
bens; já no da família Calmon, pela cláusula que estabelecia que somente a viúva Alice poderia
selecionar e arrumar os objetos no MHN.29
O ato de doação ao município de Juiz de Fora aponta claramente para a tentativa de perpetuação
da memória da família Lage, reforçando sua inserção na elite econômica e cultural local, estadual
e nacional. A doação foi estimada em três mil contos de réis30, e, desse modo, Alfredo eternizava o
nome de seu pai na cidade que, como destacado, foi muito questionado enquanto viveu.
No entanto, a característica que mais aproxima as doações realizadas por Lage e Calmon
envolve a composição do acervo: a nobreza tem papel de destaque e a proximidade das famílias
com o poder imperial brasileiro é reiterada por meio dos objetos e documentos. Tradição, nobreza e
Império formavam a tríade que evocava, em ambas as instituições, um passado glorioso e nostálgico
do Brasil. É nessa chave que se pode compreender o MMP no cenário cultural nacional.
O ex-presidente do Conselho do MMP, Henrique José Hargreaves, aponta, em 1966, Alfredo
Ferreira Lage como “um egresso de la belle époque”, que somente teria exigido, no ato de doar, a
permanência de habitação na Villa e a direção do Museu:
Fidalgo de linhagem, depois de compor peça a peça esta magnífica obra de espírito, não se deixou
embriagar pela glória, nem quis sorver sozinho o sumo capitoso de seus frutos. Ao contrário, não
contente de repartir conosco um pouco do vinho de sua esplêndida cultura, terminou legando-nos
a própria vinha.31
Distante das reflexões sobre o poder do ato de doar, as palavras do conselheiro evidenciam
a imagem construída do doador, a memória enquadrada pela instituição e rememorada em suas
ações educativas e culturais. Contudo, o pretenso desapego precisa ser relativizado em busca da
percepção dos ganhos obtidos no ato que, sem dúvida, é singular.
Na escritura de doação, Alfredo fez uma série de exigências que garantiriam seu projeto de
memória. A reprodução do texto parece fazer sentido, na medida em que indica a tentativa de
controle da escrita do MMP, assim como sua gestão, a despeito da doação pública. Os artigos são
os seguintes:
PRIMEIRO: Inalienabilidade dos bens doados, móveis e imóveis; SEGUNDO: Perpetuidade da
denominação “Mariano Procópio” ao Museu e ao Parque; TERCEIRO: Perpetuidade dos fins do
Museu e do Parque, não podendo ser alterada a sua finalidade cultural; QUARTO: Perpetuidade das
29
ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil... Op. cit.
30
Termo de doação à municipalidade de Juiz de Fora (cópia). Departamento de Difusão Cultural/MAPRO. 1936.
31
HARGREAVES, Henrique J. Alfredo Lage. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Juiz de Fora, 1966. p.75.
denominações atuais dadas às salas do Museu, a saber: “D. Pedro II”, sala e galeria “Maria Amália”,
sala “Viscondessa de Cavalcanti”, sala “Maria Pardos”, sala “Agassis” e “sala Tiradentes”; QUINTO:
Proibição perpétua de serem retirados do Museu os objetos artísticos, históricos e científicos a ele
incorporados, os quais não poderão ser afastados das galerias e arquivos em que se encontram senão
para fins de organização interna do serviço administrativo. A distribuição dos quadros na “Galeria Maria
Amália”, conforme for deixada não deverá ser modificada, salvo caso de força maior, atendendo a que
essa distribuição obedeceu a um critério artístico; SEXTO: A administração do Museu e do Parque
ora doados será superintendida pela Prefeitura Municipal e exercida por um diretor e funcionários
nomeados pelo Prefeito, devendo a nomeação do diretor recair em um dos três nomes indicados pelo
“Conselho de Amigos do Museu Mariano Procópio”, que o doador institui para o fim de zelar pelo
cumprimento da presente escritura e cooperar pelo engrandecimento da instituição32.
Além disso, o termo previa que Alfredo Lage seria o diretor do Museu enquanto quisesse, com
dispensa de submeter suas contas ao exame do Conselho e com direito de usufruto dos bens doados
para o fim de conservar a sua habitação no imóvel. Em vários documentos administrativos, ele
assina como “diretor perpétuo do Museu”. Uma posição poderosa e generosa, pois, como Rogério
Pinto destaca, o colecionador não aceitou pagamento pelos serviços prestados como diretor e, “ao
morrer, ainda deixa recursos para a gestão imediata de seu Museu, além de ter assumido algumas
reformas no período pós 1936”.33
Apesar do autor não citar a fonte de tal informação, é possível pensar na probabilidade
dessa postura, dentro do panorama de ação intelectual da primeira metade do século XX, no
qual o engrandecimento da Pátria e a educação do povo eram um projeto abraçado por setores
significativos da elite cultural do país. Aliás, o recebimento de dinheiro para ações patrimoniais
envolvia, para muitos, dificuldades de ordem simbólica, conforme é possível perceber nos
relatórios anuais do Museu Histórico Nacional, especialmente a partir da implementação do
Curso de Museus. O diretor e os professores do curso realçavam que não recebiam nada por isso,
ou seja, participavam de forma heroica de um projeto maior calcado na preservação da tradição e
da memória nacional34. Tratava-se de um serviço doado à pátria.
Entretanto, é preciso assinalar que foi a doação que permitiu a sobrevivência física e simbólica
do Museu e das coleções, pois exigiam grandes gastos para sua manutenção, além de estarem em
péssimas condições de conservação, conforme atestam os primeiros relatórios administrativos dos
32
Termo de doação à municipalidade de Juiz de Fora (cópia). Departamento de Difusão Cultural/MAPRO. 1936.
PINTO, Rogério Rezende. Alfredo Ferreira Lage, suas coleções e a constituição do Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora-MG...
33
anos 1930/4035. Ademais, um corpo de funcionários públicos foi formado a partir da doação e
Alfredo garantiu a gestão de sua família sobre o patrimônio até 1980.
É importante ressaltar também os mecanismos de continuidade política de seu projeto de
memória. O termo de doação apresenta a listagem nominal dos primeiros trinta membros do
Conselho de Amigos, criado no próprio documento. Além disso, a renovação de membros seria
realizada pelo exclusivo expediente de indicação interna. O Conselho de Amigos foi, portanto,
o principal mecanismo de perpetuação de poder utilizado por Alfredo Lage frente ao desafio de
dar continuidade à sua ação museológica. Entre suas principais funções, estaria a indicação da
lista tríplice para a escolha do diretor e a aprovação dos relatórios da diretoria. Todos os diretores,
desde então, foram indicados pelo Conselho de Amigos e fizeram parte, inclusive, do próprio
Conselho, o que não é uma cláusula obrigatória. Muitos membros do Conselho original, por
suposto, já faleceram. Porém, o sistema de renovação é interno, o que sela, em um tenso processo
decisório, compromissos políticos e familiares entre tais conselheiros. Outro ponto importante é
a participação de sócios do IHGB, como o secretário Max Fleiuss e Manoel Cícero Pelegrino da
Silva, que exerceu a presidência no período 1938-39. Assim, ao mesmo tempo em que Alfredo
Lage, através do MMP, incorporava a elite da região mineira36, garantia sua relação com uma
instituição que conferia legitimidade à sua proposta intelectual: o IHGB.
É interessante notar que Alfredo Lage silenciou sua participação na exposição do Museu. Em
nenhum momento de sua gestão foi criada uma sala com seu nome ou em sua homenagem37.
Todo o prestígio foi atribuído ao seu pai, Mariano Procópio, perpetuado pelo nome da instituição.
Pinto observa, nesse sentido, o interesse de Alfredo em propagar a memória paterna e do Império
em detrimento de sua própria figura. O colecionador, nesse caso, estaria despreocupado com sua
imortalização? É claro que não. O “legado da vinha” de Alfredo Lage à cidade de Juiz de Fora foi
uma ação monumental em seu tempo (e mesmo na contemporaneidade), pela qual ele sabia que
seria lembrado.
35
LAGE, Alfredo. Relatórios administrativos. AH/Museu Mariano Procópio, 1936-1944.
A origem dos membros não privilegiou Juiz de Fora, e sim a região mineira. De acordo com o trabalho de Sutana (2007), metade dos
36
membros do Conselho nasceu fora da cidade, embora seja preciso destacar que muitos exerciam atividades políticas e religiosas na mesma.
37
Na gestão de Geralda Armond, havia um quarto na Villa denominado Alfredo Ferreira Lage, o que se manteve. Antes do fechamento do
Museu Mariano Procópio, em 2008, no hall de entrada do Museu, havia duas vitrines com objetos referentes à família Lage e somente um
busto do colecionador.
É possível considerar a construção de um arquivo pessoal como uma forma de escrita de si?
Em que medida essa aproximação é adequada aos princípios que embasam a teoria arquivística?
Há distinção entre o gesto de arquivamento e a prática de colecionamento? Essas são questões que
vão orientar nossa reflexão ao longo do texto. Para persegui-las, pode ser útil, inicialmente, discutir
a noção de “escrita de si” e apresentar o conceito de arquivo pessoal, contrapondo-o ao de coleção.
Após precisar esses conceitos, voltaremos às questões que conectam a construção do eu - temática
proposta pelos organizadores da mesa-redonda - aos arquivos pessoais, objeto sobre o qual venho
refletindo nos últimos anos. Em um segundo movimento, apresentaremos algumas características
do arquivo do antropólogo Darcy Ribeiro capazes de iluminar usos e representações de acervos
pessoais e, por fim, faremos um sobrevoo sobre as novas modalidades de arquivamento de si.
I. De maneira geral, sob a designação de “escrita de si” encontram-se textos de caráter
biográfico, tais como autobiografias, cartas, diários, memórias e testemunhos. Trata-se de escritos,
nos quais o indivíduo, assumindo o lugar de autor, tenta ordenar a própria vida e dotá-la de sentido,
objetivando com isso tanto o equacionamento de anseios individuais como a construção de uma
memória de acontecimentos e vivências pessoais, para si mesmo ou para os outros. A emergência do
gênero biográfico é comumente situada no século XVIII, no ocidente, momento no qual a inversão
da lógica tradicional de prevalência do grupo social sobre os seus membros já havia se consolidado.
Nesse contexto, o indivíduo passa a ser entendido como sujeito histórico dotado de uma identidade
singular e sua experiência pessoal ganha importância. Mais do que isso, o indivíduo passa a ser
visto como instância legítima de interpretação dos fatos e da sua própria existência.1
*
Doutora em Sociologia pelo IUPERJ, mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e graduada em História/UFRJ. Professora
e pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV).
1
A literatura que discute a emergência do indivíduo moderno, no campo das ciências sociais, é bastante vasta. Nesse trabalho, estou me
baseando em textos que tratam, precisamente, das dimensões da escrita e do arquivamento de si. Cf. GOMES, Angela de Castro. Escrita
de si, escrita da História: a título de prólogo. In:______. (Org.) Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 1994. p. 7-24.
ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 1998, vol. 11, n. 21, p. 9-34. CALLIGARIS, Contardo.
Verdades de autobiografias e diários íntimos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 1998, vol. 11, n. 21, p. 43-58.
A emergência da ideia moderna de indivíduo está na origem das práticas sociais associadas
ao que Michel Foucault designou de “cuidado de si”.2 Nelas se inserem tanto a produção de textos
autorreferenciais como a constituição de “memórias” pessoais por meio do colecionamento de
objetos ou da guarda de papéis. Com efeito, a produção de si no mundo ocidental moderno tem
como uma de suas marcas a conformação de uma relação específica, e altamente valorizada, entre
o indivíduo e seus documentos.3 É nessa perspectiva que se pode entender a constituição de um
arquivo pessoal como uma forma de construção do eu. Ao guardar documentos – cartas e diários,
mas também fotografias, cartões postais, registros do cotidiano, documentos profissionais, etc. – o
indivíduo constrói uma memória para si mesmo e, nesse sentido, constrói sua própria identidade.
Se aproximarmos o gesto de arquivamento (que inclui a seleção, a guarda e o ordenamento dos
registros) de um exercício memorial, se imaginarmos que o indivíduo guarda documentos para
construir uma narrativa que dê conta de sua existência, nesse caso, o arquivo pessoal pode ser
entendido como uma forma de “escrita de si”.
Mas essa aproximação não deve ser generalizada, pois a existência de um arquivo pessoal não
equivale, em todos os casos, a um exercício de construção do eu: a constituição de um arquivo
pode ser muito mais aleatória e indeterminada do que a produção de um texto autobiográfico. Além
disso, para entender a especificidade dos arquivos, pode ser útil recorrer à disciplina arquivística,
para a qual, inclusive, a associação entre arquivo pessoal e escrita de si suscita ressalvas, quando
não reações.
O Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística define arquivo como “conjunto de
documentos produzidos e acumulados por uma entidade coletiva, pública ou privada, pessoa ou
família, no desempenho de suas atividades, independentemente da natureza do suporte”.4 Ainda que
os indivíduos e as famílias sejam citados nessa definição, a literatura da área incorporou tardiamente
esse tipo de produtor de arquivo e seu lugar sempre foi periférico nos debates disciplinares.
A matriz pública marca o campo arquivístico, e não apenas no Brasil, tendência que se
explica pela própria história dos arquivos, designação originalmente utilizada para os documentos
produzidos e acumulados pelos órgãos da administração, cuja guarda deveria atender primeiramente
aos interesses desses órgãos, funcionando como prova de suas atividades e, secundariamente, aos
2
A ideia de um “cultivo de si” ou “cuidado de si” é desenvolvida por Foucault na obra História da sexualidade, cujo terceiro tomo tem como
título, precisamente, “Le souci de soi”. O cultivo de si, para o filósofo francês, corresponde a um conjunto de práticas por meio das quais o
indivíduo se constitui como “sujeito de desejo”. Entre essas práticas, também chamadas “técnicas de si”, se situa a “escrita de si”.
3
GOMES, Angela de Castro. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo... Op. cit. p 10.
4
ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística. Rio de Janeiro, 2005. p 27.
Ainda que haja menção às características dos papéis produzidos e recebidos por uma pessoa
física, o pertencimento à categoria dos arquivos privados prevalece em relação à especificidade
do arquivamento pessoal. Na sequência da definição citada, Belloto equipara os dois processos
de acumulação de documentos: “O fluxo e a organicidade são inerentes ao funcionamento e às
atividades da instituição ou à vida pessoal e profissional do titular do arquivo”.7
Se o desempenho de atividades profissionais por parte de um indivíduo pode, de alguma
forma, ser aproximado do desempenho de atividades por um órgão ou entidade, os critérios para a
acumulação dos documentos, no caso dos indivíduos, não obedecem a uma lógica burocrática, vale
dizer, não obedecem a regras pré-estabelecidas e formalizadas. As razões que operam na seleção
e guarda dos registros pessoais podem ser muito variadas e responder a motivações distintas. Na
verdade, um mesmo indivíduo pode ter critérios de guarda diferentes em relação a documentos que
digam respeito ao exercício de duas funções, mantendo os registros da atividade desempenhada em
um caso e não o fazendo em outro.
Além disso, reordenamentos e descartes - motivados por razões que variam de um balanço
sobre a própria vida a uma mudança de endereço - são comuns no universo dos arquivos pessoais.
5
O lugar periférico dos arquivos privados na produção intelectual e jurídica em torno dos arquivos é objeto de comentário por parte da
diretora do Arquivo Nacional da França, Martine de Boisdeffre: “O artigo L 211-4 do Código do patrimônio precisa que os arquivos
públicos são os documentos que procedem da atividade do Estado, das coletividades territoriais, dos estabelecimentos e das empresas
públicas [...]. Ao final do artigo L 211-5, os arquivos privados são todo o resto. Trata-se, logo, de uma definição por exclusão, se é que isso
é possível.” ASSOCIATION DES ARCHIVISTES FRANÇAIS (AAF). Actes du Colloque Action, Mémoire, Histoire: les archives des
hommes politiques contemporains. Paris, Editions Gallimard et AAF, 2007. p.17.
6
BELLOTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p. 256.
7
Id. Ibid. p. 257.
Entender esses arquivos como produto de processos contingentes implica entender que a
acumulação e a gestão documental operadas por cada indivíduo resultam, entre outros fatores, dos
perfis e projetos pessoais dos titulares, da relação específica que cada um deles estabelece com seus
documentos, bem como da ação de terceiros, no caso de haver familiares ou mesmo secretárias e
assessores engajados na gestão do papelório.8
O processo de acumulação remete, portanto, à intencionalidade que define o que deve ser
guardado - e como - e o que pode ser eliminado. Isso não significa que os documentos que integram
todos os arquivos pessoais sejam escolhidos caso a caso. Muitos arquivos são, de fato, produto do
acúmulo progressivo e contínuo dos registros de atividades desempenhadas pelo indivíduo, mas
nem sempre é assim.
A ideia de um conjunto orgânico de documentos, acumulados como resultado “natural” das
atividades desenvolvidas pela entidade produtora do acervo é constitutiva da noção geral de
arquivo e marca, por extensão, o olhar sobre os conjuntos documentais de natureza pessoal. É
exatamente esse caráter natural da produção e acumulação de registros que garante a “verdade”
do arquivo: os documentos são verdadeiros por serem produzidos naturalmente em decorrência
de determinada atividade ou do exercício de determinada função (e não, evidentemente, por seu
conteúdo corresponder à verdade dos fatos).9
Em relação a essa abordagem, a imagem de que os arquivos são um tipo de narrativa, que
os indivíduos constroem a respeito de si mesmos, voluntária e arbitrariamente, por meio da
seleção e do ordenamento de registros, corresponde a uma visão antiarquivística. O cerne dessa
incompatibilidade pode ser localizado na oposição entre a “naturalidade” e a “intencionalidade”. A
intencionalidade, segundo os ditames arquivísticos, remeteria à constituição das coleções, definidas
como artificiais e inorgânicas em contraste com os arquivos. O mesmo Dicionário Brasileiro de
Terminologia Arquivística aponta para esse atributo ao definir coleção: “conjunto de documentos
com características comuns, reunidos intencionalmente”.10
8
Não queremos dizer, com isso, que os arquivos institucionais, públicos e privados, não estejam sujeitos a interferências que fogem aos
padrões de guarda preconizados pela metodologia arquivística. Apenas, nesses casos, tais procedimentos serão vistos como impróprios ou
mesmo ilegais, dependendo da natureza da documentação.
9
A “naturalidade” é um dos atributos que caracterizam os documentos de arquivo, segundo a arquivista italiana Luciana Duranti: “diz respeito
à maneira como os documentos se acumulam no curso das transações de acordo com as necessidades da matéria em pauta” DURANTI,
Luciana.. Registros documentais contemporâneos como provas de ação. Estudos Históricos. CPDOC 20 anos. Rio de Janeiro, 1994, v.7,
n.13, jan./jun, p.49-64. p.51.
10
ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística... Op. cit. p. 52. Vale notar que essa definição difere
da clássica formulação de Pomian, que valoriza a separação, o colocar à parte, por um lado, e a exibição, por outro: “qualquer conjunto de
objetos naturais ou artificiais, mantidos temporária ou definitivamente fora do circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção
especial num local fechado preparado para esse fim, e expostos ao olhar do público.” POMIAN, Krzysztof. Coleção. In: Enciclopédia
Einaudi. Lisboa, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1984. p. 51-86. p.53.
Em que pese a defesa de uma abordagem arquivística para os arquivos pessoais, ou seja,
ainda que a arquivologia pretenda trazer para o seu campo de atuação o tratamento técnico desse
tipo de acervo, de maneira geral, a disciplina pouco investiu nas especificidades que marcam a
constituição dos conjuntos documentais de natureza pessoal.11 Uma exceção seria o artigo Evidence
of me..., de Sue McKemmish, um dos primeiros trabalhos a se debruçar sobre os gestos pessoais
de arquivamento. A arquivista australiana aproxima a constituição de um arquivo pessoal de “um
tipo de testemunho” que alguns indivíduos se veriam compelidos a prestar em relação as suas
vidas, tanto no sentido de preservar a memória de experiências vividas, como no de constituir sua
identidade pessoal por meio do arquivamento.12
O texto sugere conexões interessantes, aproximando a produção de arquivos pessoais de
práticas de constituição do self. McKemmish afirma que diários íntimos e cartas pessoais fornecem
um tipo de “prova de si” e propõe que diferentes gêneros documentais presentes em arquivos
pessoais fornecem diferentes tipos de “prova” em relação a seus titulares. Assim, por exemplo,
a correspondência pessoal acumulada por um indivíduo ao longo da vida forneceria informações
sobre os missivistas, mas, sobretudo, constituiria “prova” das relações existentes entre eles.
O trabalho da pesquisadora Priscila Fraiz também merece menção, pelas conexões que
estabelece entre arquivo e escrita de si.13 Fraiz aproximou o arquivo privado do ministro Gustavo
Capanema do gênero autobiográfico, ao demonstrar como, neste caso, o arquivo tomara o lugar
da autobiografia jamais escrita. Vários documentos de autoria do próprio Capanema, encontrados
em meio à documentação doada por sua viúva à Fundação Getulio Vargas, contém planos de
classificação para o arquivo, deixando entrever esquemas que visavam a produção de um livro de
memórias, não levado a termo. A intenção memorial e narrativa depositada no arquivo pelo próprio
titular foi percebida por meio da análise de documentos que o integram.
Se, por um lado, é interessante pensar o arquivamento como uma forma de escrita de si, por
outro, nem todo processo de arquivamento pode ser associado a uma motivação memorial, como
veremos no caso do arquivo Darcy Ribeiro. Buscar essa motivação em todos os arquivos pessoais
seria um equívoco. Mais do que isso, buscar a motivação memorial em todos os documentos
guardados pelo indivíduo equivaleria a dotar de um significado único, de diferentes gestos,
operados em diferentes momentos, por razões distintas – gestos que remetem a motivações legais,
probatórias, profissionais, afetivas.
Para uma discussão sobre o tratamento dado aos arquivos pessoais pela arquivologia, cf. HEYMANN, Luciana. O indivíduo fora do lugar.
11
Revista do Arquivo Público Mineiro. História e Arquivística. Belo Horizonte, ano XLV, n. 2, p. 40-57, jul-dez, 2009.
12
MCKEMMISH, Sue. Evidence of me... Archives and Manuscripts, Camberra, 1996, v. 24, n. 1, p. 28-45.
13
FRAIZ, Priscila. A dimensão autobiográfica dos arquivos pessoais: o arquivo de Gustavo Capanema. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
1998, v. 11, n. 21, p. 59-87.
15
Essas informações nos foram prestadas por Claudia Zarvos, segunda esposa de Darcy, e por Paulo Ribeiro, seu sobrinho, no período em
que eu pesquisava para minha tese de doutorado.
16
No arquivo pessoal do antropólogo, no dossiê sobre a Fundação Darcy Ribeiro (DR id 1995.02.16), constam ao menos duas listagens
de livros “para a Biblioteca Darcy Ribeiro”, uma com 112 títulos – a maioria relativa à história do Brasil - e outra bem maior, com alguns
milhares de volumes, incluindo algumas coleções, como a Brasiliana, Documentos Brasileiros e Reconquista do Brasil.
17
Trecho de um documento intitulado “FUNDAR”, sem data, que integra, igualmente, o dossiê sobre a Fundação Darcy Ribeiro.
Outra faceta do projeto memorial de Darcy são seus livros autobiogáficos, escrita de si
por excelência. A percepção da finitude e o temor do esquecimento são objetos de reflexão em
Testemunho, publicado em 1990, em Confissões, que Darcy escreveu em 1996 e não chegou a
ver publicado, e no romance Migo, de 1988, descrito por ele como um “romance confessional,
em que me mostro e me escondo”.18 No seu último exercício autobriográfico, Confissões, embora
se defina como “homem de ação”, Darcy lamenta não ser reconhecido como intelectual e homem
de ideias: “Temo muito ser recordado no futuro mais por meus empreendimentos que por minhas
ideias, o que será uma injustiça”.19 Talvez, por isso, sua biblioteca ganhou destaque no momento
em que ele organizava o acervo que ficaria depositado na FUNDAR, à disposição de pesquisadores
interessados na sua trajetória e atuação.
Já o arquivo, para Darcy, tinha função meramente instrumental, de repositório de versões,
projetos e anotações ao qual ele recorria quando necessitava retomar um assunto ou um tema sobre
o qual já se debruçara. Sobretudo nos últimos anos de vida, quando a urgência na realização das
suas “utopias” aumentou, o arquivo pareceu ganhar importância como instrumento de trabalho
capaz de municiá-lo para novos empreendimentos.
Os contornos e ordenamentos desse arquivo nunca foram produtos da reflexão e da subjetividade
de Darcy. Sua primeira mulher, Berta Gleizer Ribeiro, com quem foi casado de 1948 a 1975,
foi responsável pela gestão da documentação durante esse período. A partir da separação e da
volta de Darcy do exílio, secretárias particulares assumiram a tarefa de organizar a papelada que
circulava na residência e, posteriormente, nos gabinetes do titular. As interferências de Berta e
dessas secretárias eram bastante perceptíveis no momento em que a documentação começou a ser
identificada, já na FUNDAR.
A relação do titular com seus papéis explica o fato de o arquivo não fazer parte, em um
primeiro momento, do patrimônio que Darcy imaginou legar à sua fundação. Para ele, o arquivo
era ferramenta, não tinha dimensão biográfica. O arquivo só assumiu lugar de destaque no projeto
institucional, de fato, após a sua morte, quando os herdeiros desse projeto se deram conta do interesse
despertado pelo acervo, do seu potencial para atrair tanto financiamento quanto pesquisadores para
a instituição.
À pergunta “é possível considerar a construção de um arquivo pessoal como uma forma
de escrita de si?” responderíamos, portanto, com um cauteloso “depende”. Se a escrita de si se
define como uma produção reflexiva do sujeito, como exercício de construção do eu, diríamos que
não é possível responder à pergunta sem proceder ao levantamento da história do arquivo, sem
18
RIBEIRO, Darcy. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.515.
19
Id. Ibid. p. 521.
20
BAUMAN, Zygmunt. 2001. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
Apresentação
Minha avó guarda as cartas e dá-me todos os envelopes. Agora, sim posso começar uma boa
coleção de selos, [...] Guardo meus preciosos selos numa caixinha de papelão e meto-a no bolso,
a fim de mostrá-los no recreio do Colégio ao Paulo e ao Samuel, embasbacando-os e fazendo
negócio com eles.2
Observa-se nos escritos de Barroso, o que Pierre Bourdieu definiu como “A ilusão biográfica”3,
pois está implícita a busca de sentido entre o passado e o presente, levando o autor/biografado a
organizar sua vida de acordo com o momento em que vive quando escreve. Bourdieu aborda a questão
da tendência à construção de um perfil único, homogêneo e linear nos relatos. Barroso investiu na
construção de uma imagem, mas não se deteve aos livros de memória.
Coração de menino, juntamente com outros dois volumes de memórias, Liceu do Ceará (1940)
e Consulado da China (1941), constitui apenas uma parte das produções de si de Gustavo Barroso,
certamente mais conhecida, escritos autobiográficos por excelência. Pois esse intelectual cearense
utilizou outros espaços, bem como diferenciados suportes na construção de um perfil próprio para
legar à posteridade. Entre os espaços, tem-se o Museu Histórico Nacional por ele dirigido por
35 anos onde deixou registradas suas ações preservacionistas no acervo, por meio de doações e,
especialmente, no principal veículo de divulgação das atividades institucionais, os Anais do Museu
Histórico Nacional. No que tange aos suportes, é possível citar a imprensa em âmbito nacional, por
onde circularam diversos artigos autorreferenciais, e a grande coleção de recortes de periódicos que
organizou e que, a partir de agora, será nosso objeto de análise no presente artigo.
1909 a 1911, por exemplo, foi o livro de atas da república de estudantes “Consulado da China”.
Os manuscritos da “Ata nº 2 da Sessão extraordinária realizada em 07 de agosto de 1909” foram
ocultados para sempre com a cola e os papéis impressos dos recortes pacientemente selecionados e
organizados mais as páginas da encadernação por Barroso.5 Entretanto, seu conteúdo foi reproduzido
e difundido no terceiro volume de memórias do escritor, Consulado da China.6
Os álbuns são organizados em ordem cronológica e, em muitos deles, há numeração das
páginas, num esforço de construir uma narrativa dos acontecimentos a partir do estabelecimento
de uma sequência das notícias selecionadas. Acima de cada recorte, Barroso escreveu à mão o
nome do jornal que o publicou, a cidade e a data da publicação. Há indícios de que Barroso teria
iniciado a organização de seu arquivo em finais da década de cinquenta, pois, entre as páginas
dos cadernos, foram encontrados fragmentos de uma agenda de 1957, onde o autor escreveu o
que deveria buscar para compor sua hemeroteca: “Copiar ‘As festas do Diário do Estado’ em
homenagem ao dr. G. Barroso”.7 Provavelmente, tratava-se de uma reportagem a ser colhida para
sua coleção. Entretanto, d. Nair de Morais Carvalho, museóloga e braço direito do colecionador
no Museu Histórico Nacional, que deu prosseguimento à coleção, afirma que Barroso já fazia esse
trabalho muito antes da década de 1950 e que foi ele próprio quem a ensinou a fazer os álbuns de
recortes. É possível que ele sempre tenha se preocupado em colher as notícias e crônicas publicadas
e que posteriormente tenha se dedicado a organizá-las de forma sistemática e sequencial. Trabalho
que parece ter realizado nas décadas de 1940 e 1950.
O segundo grupo da coleção conta 33 maços de recortes soltos, ganhou novo formato e não foi
mais realizado pelas mãos do colecionador. O trabalho de recolher recortes de periódicos relacionados
a Barroso passou a ser feito por empresas especializadas em clipping, que apenas enviava notícias
e artigos colados em folhas avulsas, tamanho padrão A5, com a sua logo no cabeçalho e o nome
de Barroso sublinhado com lápis vermelho na matéria selecionada. Essa metodologia de seleção
das matérias de jornais e revistas, focada apenas no nome da pessoa, fez com que se acumulasse
na coleção de Barroso reportagens onde seu nome saíra de forma equivocada. Foi o que aconteceu,
por exemplo, com uma notícia sobre a peça de teatro Dominó, publicada na Gazeta de Notícias,
em que atribuiu a autoria da obra a Gustavo Barroso e a Paulo Magalhães. O recorte foi recolhido
pela empresa Lux Jornal, vindo o nome de Barroso sublinhado com lápis vermelho. Com o mesmo
instrumento de escrita alguém escreveu ao lado um ponto de interrogação e uma observação: “Deve
ser Ari Barroso!” Na folha seguinte há um recorte da Tribuna da Imprensa, colado no papel da
5
BARROSO, Gustavo. Gb03 1909-1911. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
6
BARROSO, Gustavo. O Consulado da China. Fortaleza: Casa de José de Alencar, 2000. p. 194.
7
BARROSO, Gustavo. Gb05. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
mesma empresa, onde a dúvida foi esclarecida à lápis: a parceria de Paulo Magalhães na escrita da
peça teatral “É de Gastão Barroso”.8
Da mesma maneira que recortes de periódicos foram agregados a esta parte da coleção pela
combinação de equívocos da imprensa com a terceirização dos serviços de recolhimento, outros
podem ter ficado de fora por terem sido assinadas com pseudônimos ou terem o seu nome ocultado
de alguma forma. Este grupo contém maços relativos ao período de 1940 a 1966, extrapolando o
tempo de vida de Barroso.
O arquivo se estendeu até 1973, graças ao trabalho de Nair de Morais Carvalho, que continuou
recolhendo e guardando tudo de e sobre Barroso que saía na imprensa. Seu trabalho deu origem ao
terceiro grupo da coleção de recortes. Seus álbuns abarcam o período de 1942 a 1973 e somam 40.
São mais organizados do que os do próprio Barroso. Todos são numerados, contendo um recorte
por página. Alguns possuem índice.
Colecionar recortes parecia ser uma prática comum entre os homens letrados. O ministro da
Educação e Saúde, Gustavo Capanema, em seu arquivamento de si, guardava álbuns de recortes
junto às correspondências e outros documentos que serviriam ao seu projeto autobiográfico.9 Já
Pedro Nava relatou em seu Baú de ossos:
Tudo isto intimidade que está comprovada na curiosa coleção de recortes e de retratos de meu Pai –
uma daquelas miscelâneas bem do seu tempo e das quais possuo a sua, a de minha mãe, as de meu
tio Antonio Salles. Curiosos repositórios para estudo de uma personalidade, onde ainda surpreendo,
por parte de meu Pai [...]10
O sr. Antonio Carlos manifestou-se favoravelmente ao projeto de lei que estatui providência
no sentido de obstar que afluam às nossas plagas, terminada a conflagração europeia, os mutilados
e os miseráveis, que hão de pulular no Velho Mundo. [...] A simpatia com que o líder da Câmara
recebeu o projeto do sr. Gustavo Barroso, solicitando à comissão de justiça o seu rápido andamento,
e as manifestações feitas por S. Ex. ao externar essa simpatia, foram traduzidas não só como a
solidariedade do governo às providências sugeridas, mas ainda foram recebidas com a significação
de que o governo tomava a si a responsabilidade do projeto [...].11
O talentoso Deputado pelo Ceará, Sr. Gustavo Barroso [...] apresentou um projeto de lei, que não
sabemos como coadunar-se possa com a nossa Constituição. [...] Ora o número dez do artigo em
que, na nossa Constituição, se faz a declaração dos direitos diz, insofismavelmente, que ‘em tempo
de paz, qualquer pode entrar no território nacional ou dele sair [...]’ Bastaria esse parágrafo do artigo
72 do nosso pacto fundamental para que arrefecido ficasse o entusiasmo que o projeto provocou
[...] O próprio autor do projeto reconhece a sua impraticabilidade, quando, no artigo seguinte,
estabelece uma série de exceções que valem por outras tantas portas abertas à livre entrada e que
servem para demonstrar que difícil será uma execução equitativa da lei em projeto.12
Por essas citações é possível perceber que Barroso não se preocupava apenas em construir uma
imagem positiva, como se não houvesse oposições às suas ideias e ações. Talvez fosse propósito do
escritor fazer um balanço geral entre elogios e críticas que saíram na imprensa, de modo a identificar
onde estaria sendo incompreendido ou injustiçado. Olhando por outro prisma, seu arquivamento
de si poderia estar mais preocupado com a quantidade de notícias e produções publicadas do que
propriamente com o conteúdo do que foi publicado. Também é possível que houvesse o interesse
em identificar o espaço que ocupou na mídia impressa ao longo de sua vida. Quanto maior o
espaço maior seria medida a sua importância, a sua distinção... Caso consideremos este olhar para
a coleção, veremos que Barroso deveria se orgulhar por ter produzido um arquivamento de si tão
volumoso, de ter ocupado espaço significativo nas diferentes mídias impressas de várias partes do
país e do exterior, pois sua produção e seu prestígio aparecem na imprensa de países como México,
Venezuela, Portugal e Alemanha.
Não há comentários escritos sobre o que estava sendo guardado. Era como se os recortes
pudessem falar por si sobre uma trajetória individual. Teria ele a intenção de deixar um arquivo
completo de si para ser consultado após a sua morte, talvez com vistas à escrita de uma biografia?
Ou estaria passando o tempo organizando e revivendo um pretérito em manchetes? Acreditamos
que entre seus objetivos estavam as duas possibilidades, que merecem ser mais aprofundadas
11
A soberania em ação. O País. 26 set. 1916.
12
A Câmara em revista. Jornal do Brasil. 8 out.1916.
13
BARROSO. Gustavo. Os buscapés. In: Liceu do Ceará.. Fortaleza: Casa de José de Alencar, 2000. p. 57-60. ___. Aprendiz de Cenógrafo.
In: Consulado da China. Op. cit.p. 128-9
14
GRAZZIOTIN, Francine. Imprensa: considerações para seu uso como fonte histórica. Disponível em: <www.semina.clio.pro.br/4-1-2006/
Francine%20Grazziotin.pdf>. Último acesso em 15 ago. 2007.
15
WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
Harold Weinrich,16 em seu estudo sobre o esquecimento, analisa como essa parte constitutiva
da memória se apresenta nas obras de diversos autores da literatura mundial. Ao interpretar a
Divina Comédia de Dante Alighieri, Weinrich identifica a escuridão do inferno dantesco com
o esquecimento. Nessa perspectiva, o esquecimento é visto como castigo dado aos mortos que,
em vida, tinham se esquecido de Deus. Assim, os mortos pecadores suplicam aos vivos que se
lembrem deles e as lembranças cheguem a Deus em forma de oração, e que, assim, Deus se
compadeça diminuindo o sofrimento daqueles que se encontram nas sombras do esquecimento.
Para Gustavo Barroso, o esquecimento também parecia um castigo e, certamente, foi contra
o esquecimento que produziu uma escrita de si em diferentes suportes, sem falar na coleção de
objetos familiares que passaram a integrar o acervo do Museu Histórico Nacional. Através da carta
citada abaixo é possível compreender como Barroso se relacionava com o esquecimento e a falta
de reconhecimento pelas suas obras:
O Ceará não se lembra mais de mim. O oficialismo honra-me com o seu desdém, com a sua antipatia.
Somente Matos Peixoto, quando Presidente do Estado, me penhorou com as suas homenagens [...]
À Pátria tudo se deve dar. À Pátria nada se deve pedir, nem mesmo a compreensão [...] Tenho
absoluta certeza que um dia, quando se apagarem com o tempo as paixões de caráter pessoal e
político, ser-me-á feita a devida justiça.17
16
WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
17
Apud. GIRÃO, Rimundo. Minha saudade de Gustavo Barroso. In: Revista da Academia Cearense de Letras. N. 47, 1987/1988. p. 34.
criação do Museu Histórico Nacional (1922), a condução do Curso de Museus, a partir de finais de
1932, e a iniciativa pioneira de inspeção dos monumentos nacionais.
Quanto à hemeroteca, chama atenção o fato de ter se estendido por um período de 14 anos após
a morte do autor/biografado. São notícias sobre homenagens póstumas, comentários sobre obras
do escritor e referências a iniciativas suas, como o Museu Histórico Nacional e o Curso de Museu,
por ele dirigidos até o final de sua vida.
Essa característica da coleção nos leva a refletir sobre sua potencialidade como fonte para
outros estudos além da produção autorreferencial de Gustavo Barroso. Uma possibilidade de
exploração da hemeroteca é para a reflexão e análise da presença do Museu Histórico Nacional na
imprensa. É muito presente a referência a essa instituição nos recortes ao longo de todo o período
de 66 anos. Integra a coleção toda a cobertura sobre a criação, em 1922, com críticas, comentários
e notícias a respeito; reportagens sobre as atividades realizadas ao longo do tempo, bem como
informes sobre a política institucional durante o período barroseano e após ele.
Ao lançarmos esse olhar para a hemeroteca, pensamos em propor um projeto de pesquisa
sobre a imagem que a coleção de recortes permite construir sobre o Museu Histórico Nacional na
imprensa. Que tipo de perfil institucional é produzido a partir da seleção e preservação de matérias
publicadas em periódicos ao longo de mais de meio século de atividades contínuas (1922-1973).
A realização dessa pesquisa pode contribuir para a historiografia sobre a instituição que vem
se desenvolvendo nos últimos anos18. É mais uma possibilidade de produção do conhecimento a
respeito do Museu Histórico Nacional que, em 2012, completa nove décadas de existência.
Para se ter uma ideia, nos primeiros 38 volumes da coleção, sendo os 26 produzidos pelo
próprio Barroso e os 10 formados por recortes de empresas de clippings, foram encontrados 157
recortes diretamente relacionados com o Museu Histórico Nacional. Nos cadernos confeccionados
por d. Nair de Moraes Carvalho a presença do MHN na imprensa permanece.
Acreditamos que, com o desenvolvimento da pesquisa sobre o Museu Histórico Nacional, a
partir do colecionamento de si de Gustavo Barroso, poderemos enfrentar duas questões. A primeira
seria: em que medida seu primeiro diretor atrelou a instituição ao seu perfil pessoal? A segunda,
já se remete à imagem institucional que conseguiu construir a partir do que recolheu na imprensa.
18
Cf.: ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, história e estratégia de consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco/Lapa,
1996; BITTENCOURT, José Neves. Cada coisa em seu lugar. Ensaio de interpretação do discurso de um museu de história. Anais do
Museu Paulista: História e Cultura Material. Vol. 8/9. São Paulo, Museu Paulista, 2000-2001. p.151-174; CHAGAS, Mário de Souza.
Imaginação Museal: museu, memória e poder em Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. Rio de Janeiro: Ibram/Garamond,
2009; MAGALHÃES, Aline Montenegro. Culto da saudade na Casa do Brasil: Gustavo Barroso e o Museu Histórico Nacional (1922-
1959). Fortaleza: Museu do Ceará, Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2006; OLIVEIRA, Ana Cristina Audebert Ramos de. O
conservadorismo a serviço da memória: tradição, museu e patrimônio no pensamento de Gustavo Barroso. Dissertação (Mestrado em
História). Rio de Janeiro: PUC, 2003; SANTOS, Myrian Sepúlveda. A escrita do passado em museus históricos. Rio de Janeiro: Garamond,
MinC, Iphan, Demu, 2006.
Esses questionamentos são apenas passos iniciais a serem dados em um universo documental
com inúmeras outras possibilidades de construção do conhecimento. Vale destacar os projetos em
desenvolvimento no Núcleo de Preservação e Memória da Museologia – NUMUS, da Escola de
Museologia da Unirio, sob a coordenação do Professor Ivan Coelho de Sá, contribuindo para o
estudo do Curso de Museus que funcionou no Museu Histórico Nacional entre 1932, quando foi
criado, e 1979, quando foi transferido para a Unirio.19
Por isso, pretende-se criar condições de indexação, digitalização e disseminação de informações
sobre essa coleção, de modo que se torne mais acessível ao público e seja objeto de outras reflexões.
19
Fruto das pesquisas desenvolvidas pelo NUMUS são as obras: COELHO de SÁ, Ivan e SIQUEIRA, Graciele Karine. Curso de
Museus – MHN, 1932-1978: alunos, graduando e atuação profissional. Rio de Janeiro: Escola de Museologia da Unirio, 2007; CRUZ,
Henrique de Vasconcelos. Do horizonte do passado ao horizonte do futuro... 75 anos da Escola de Museologia da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Escola de Museologia da Unirio, 2007; PITAGUARY, Geraldo. A lembrança de Ouro Preto
continua sempre comigo. Memórias de um aluno da primeira excursão do Curso de Museus – MHN em 1945. Rio de Janeiro: Escola de
Museologia da Unirio, 2006.
Dentre os trabalhos apresentados neste importante encontro, vimos na primeira Mesa Redonda o
título “Há nostalgia nas coleções?”, que acho, acabará sendo respondido por todos nós que aqui falamos.
As coleções que formam o Arquivo Nirez, por exemplo, creio que vêm todas de momentos
nostálgicos e explico:
Quando tinha eu cinco anos de idade meu pai recebeu de um amigo, em troca de um trabalho
artístico que fez, um retrato a óleo sobre tela, um mirafone (tipo de gramofone) com cerca de
120 discos antigos que deveriam ter pertencido a um colecionador, pois eram peças de grande
importância, como o primeiro disco de vários artistas, dentre eles Francisco Alves e Vicente
Celestino. Corria o ano de 1939 e os discos eram, das décadas de 1900, 1910 e 1920. Mas meu pai
comprou vários discos de época, os grande sucessos de Orlando Silva, Sílvio Caldas, Francisco
Alves, Dircinha Batista, sucessos carnavalescos de 1940, etc.
Aquele mirafone passou a ser meu brinquedo e eu decorei cada disco, fixando na memória seu
aspecto a ponto de até hoje ao ouvir a música, me vem à memória como era o aspecto do disco, a
cor do rótulo, até onde vinha a gravação, etc.
Aos 20 anos, em 1954, ganhei de um amigo um pick-up (toca-discos), e passei a adquirir discos
no comércio, que ainda vendia 78 rpms. Imediatamente procurei os discos do tempo do gramofone
e evidentemente não encontrei os mais antigos, mas os de 1939 que meu pai adquirira, sim, ainda
havia no comércio reedições deles. Mas eu procurava esses discos unicamente pelo saudosismo?
Não! É que a música de pós-guerra no Brasil, até aquele ano em que eu começava a adquirir discos,
não me agradava. Eram boleros, rumbas, congas, beguines, e muitos foxes americanos. Eu não
gostava da música de minha época.
*
Escritor, jornalista e pesquisador. Diretor do Museu da Imagem e do Som do Ceará e proprietário do Arquivo Nirez, de músicas, fotografias,
informações. Para os que tiverem interesse, nossos contatos são: Rua Professor João Bosco, 560 - Rodolfo Teófilo, Fortaleza, Ceará.
Telefones (85) 3281-6949 ou (85) 9982-6439 e o e-mail é nirez@terra.com.br.
Vale a pena aqui fazer uma citação em tom de homenagem a Luiz Gonzaga, que com o seu
baião, criado juntamente com Humberto Teixeira, foi a única resistência a essa invasão de músicas
norte-americanas que tomou conta do país.
Foi assim que comecei a comprar discos antigos e quando as reedições se esgotaram, procurei
casas de famílias que guardavam discos adquiridos anteriormente e, assim, minha coleção, pouco
a pouco foi crescendo em quantidade e em importância.
Paralelamente tive que adquirir livros e revistas que me reportassem ao assunto, como
biografias de artistas, cantores, compositores, músicos e nasceu uma biblioteca especializada no
assunto, com obras raríssimas.
Foi a maneira que encontrei de saber quem eram o Baiano, o Cadete, o Mário, o Geraldo,
todos da fase mecânica do disco, que foi de 1902 a 1926 e outros já da fase elétrica, a partir de
1927, que eram: Gastão Formenti, Elisa Coelho, Albênzio Perrone, Luperce Miranda, Rogério
Guimarães, Aracy Côrtes, Laís Arêda, Ary Kerner, Joubert de Carvalho, Sain-Clair Senna e
muitos outros.
Mas as fotografias dessas pessoas também eram importantes e nasceu, paralelamente, a coleção
de fotografias de pessoas, de estúdios de gravação, grandes orquestras, conjuntos, cantores, locais
de apresentações, grupos de artistas, etc.
Ao procurar essas fotografias fui encontrando outras nas mesmas fontes, como postais antigos
de minha cidade, etc.
Quando já tinha muitas fotos antigas de Fortaleza, tornei-me também fotógrafo e passei a
fotografar os mesmos locais das fotos antigas na minha época, fazendo a comparação das alterações
de época, desaparecimento de casas, prédios, praças, monumentos, resultando na publicação de um
livro intitulado: Fortaleza ontem e hoje, financiado pela Prefeitura Municipal em 1991.
Também, como resultado da discoteca e da biblioteca, publiquei, através da Secretaria de
Cultura do meu Estado, um livro biográfico do compositor cearense Lauro Maia - nunca antes
biografado - que lançou nacionalmente o ritmo balanceio e por este motivo intitulei o livro de O
Balanceio de Lauro Maia.
Passei então a colaborar com trabalhos diversos sobre a música popular brasileira. Em vários
livros podem ser encontradas referências a meu nome dentre as fontes de informação, além de
verbetes que produzi para a Enciclopédia da Música Brasileira, da Art Editora, de São Paulo e
também minha colaboração no site do Dicionário Cravo Albin.
Como eu, desde criança, gostava de colecionar caixas de fósforos, carteiras de cigarros, rótulos
de bebidas, alimentos, perfumaria, minhas coleções foram crescendo e hoje só não sou filatelista
nem numismata, mas tudo o que se imaginar eu coleciono.
Tenho discos, fotos, revistas, livros, máquinas fotográficas, aparelhos de rádio, fonógrafos,
gramofones, vitrolas, filmadoras, projetores cinematográficos de várias bitolas, estampas Eucalol,
álbuns de figurinhas, rótulos de medicamentos, cigarros, biscoitos, bomboms, chocolates, tecidos,
sabonetes, etc.
Tenho, ainda, revistas raras, como: a Kosmos, O Cruzeiro - desde o número um, Manchete, A
Maçã Para Todos, Leitura para todos, Alterosa, Vamos Ler, Carioca, A Cigarra, A Noite Ilustrada
- desde o primeiro número - quando ainda era Suplemento de A Noite, Revista do Rádio, Revista
do Disco, Eu Sei Tudo, Pelo Mundo, Revista da Semana, Pan, O Malho, Careta, Fon Fon, A Luva,
Cinearte, Scena Muda, Cinemim, a coleção completa da revista Fono-Arte, Revista da Música
Brasileira, Revista do Folclore, Excelsior, Almanaques diversos, até aqueles de farmácia.
No setor de quadrinhos tenho as revistas Mirim, Suplemento Juvenil, Gibi, O Globo Juvenil,
O Guri, O Tico-Tico, edições do Correio Universal, como: O Fantasma Voador, Bill - o Agente
Secreto X-9, Jim das Selvas, No Século XXX, Flash Gordon, Tim e Tok, Detetive, Grande Hotel,
Xuxá, Mister X, etc.
Mas há um detalhe, todas as minhas coleções são de artigos brasileiros.
Minha coleção de discos 78rpm é toda de discos nacionais. São 22 mil discos nacionais,
constituindo-se a maior discoteca particular do país.
Minhas coleções não são simples peças contemplativas. A de discos de 78rpm tem um catálogo
que julgo da maior importância. Tenho, por exemplo, o fichário por assunto, no qual se pode
localizar quais os discos que versam sobre qualquer assunto. E deu origem também ao trabalho
Discografia Brasileira em 78rpm – 1902-1964, de minha autoria com mais três parceiros, Grácio
Barbalho, de Natal, RN, Alcino Santos, de Taubaté, SP e Jairo Severiano, cearense radicado aqui
no Rio de Janeiro.
A Discografia tem uma história interessante: Quando eu comecei a colecionar discos, fiquei
curioso em saber quais os que me faltavam e olhava um disco que tinha a numeração 33.782,
por exemplo e outro que era o 33.784 e ficava pensando o que seria o 33.783? Comprei, então,
vários cadernos grossos e fiz a ordem numérica para cada gravadora e fui anotando o repertório
dos discos que eu tinha nos números correspondentes. Era um caderno para a Victor, outro
para a Odeon, outro para a Columbia, Parlophon, etc. Depois recorri às capas de discos onde
vinham propagandas de outros discos, muitos dos quais eu não possuía e fui preenchendo-os.
Das capas passei para revistas, jornais, referências em livros e assim fui preenchendo meus
catálogos. Chegou-me de Natal, RN, um colecionador, o dr. Gácio Barbalho, que trazia um
trabalho idêntico e nós passamos a trocar informações pelo correio. Em 1970, chega à minha
casa um vendedor viajante chamado Alcino Santos, também, com um trabalho idêntico ao
nosso e logo se incorporou à equipe, passando a ser composta pelos três mosqueteiros do disco.
Mas como os de Alexandre Dumas eram na verdade quatro, poucos anos depois me apareceu o
Dartagnan. Por correspondência, me escreveu o Jairo Severiano, que vinha fazendo o mesmo
trabalho, só que mais completo, com os autores, as datas de lançamento, etc. Foi o coroamento
do nosso trabalho.
Para todo lugar onde eu ia levava esse trabalho debaixo do braço e foi no Encontro de
Pesquisadores de Curitiba que eu encontrei a “olheira” da Funarte Maria Alice Saines de Castro
para quem eu mostre o trabalho e ela ficou fascinada. No mesmo ano, fui participar de um seminário
em Brasília e lá estava ela, que me perguntou pelo trabalho e eu disse: - Está aqui, e mostrei. Ela
então me disse que eu aguardasse que ela iria à Fortaleza para assinar o contrato para publicação
do trabalho. Não acreditei mas concordei. Até que Paulo Tapajós foi me visitar, em 1980, e chegou
à minha casa acompanhado por ela, que levava o contrato. Como eu era funcionário federal do
Departamento Nacional de Obras Contra as Secas - DNOCS, no regime de tempo integral, não
pude assinar o contrato e então ela foi à Natal e o contrato foi assinado pelo dr. Grácio Barbalho,
que era médico autônomo.
Essa discografia foi publicada em 1981 pela Funarte, em convênio com a Xerox do Brasil
e foi premiada como a melhor obra daquele ano, conquistando o Prêmio Almirante, com direito
a diploma de pergaminho que os outros autores me enviaram o original, ficando com cópias. A
discografia foi recentemente atualizada por mim e vai ser lançada em um site da Funarte. É um
trabalho conhecido internacionalmente.
Em 1963, eu achando que tinha uma grande discoteca – tinha apenas pouco mais de 1.500
discos – passei a apresentar um programa de rádio chamado “Arquivo de Cera”, parodiando o
“Museu de Cera” do Heber de Boscoli. Este programa ainda está no ar, constituindo-se o mais
antigo do rádio cearense. É um programa de pesquisa, focando em um assunto a cada semana.
No quarto centenário da morte de Camões, em 1980, o escritor e pesquisador cearense Edigar
de Alencar, radicado no Rio de Janeiro há mais de 50 anos resolveu fazer um trabalho sobre Camões
e a música brasileira e foi até o pesquisador Almirante saber se ele sabia algo a respeito da citação
do vate português em nossa música e Almirante lhe disse que não conhecia nenhuma música sobre
o assunto. Já desiludido, foi até Jairo Severiano e este lhe deu meu endereço e, então, ele me
escreveu, Eu lhe disse que conhecia uma música de autoria de Alberto Ribeiro e que foi gravada
em 1936, por Lamartine Babo e, vejam só, uma marcha intitulada “As Armas E Os Barões”, que fez
parte do filme “Alô, Alô, Carnaval”, cujos versos diziam: “As armas e os barões assinalados / Vieram
assistir o carnaval / Cantando espalharei por toda parte / Que o nosso estandarte / Vai ser Seu
Cabral”. O Edigar ficou pasmado e foi até o Almirante mostrar minha carta e em seguida publicou
no jornal O Dia, uma crônica sobre meu trabalho sob o título “Um Museu Fonográfico”. A partir
desse trabalho, é que comecei a ficar conhecido.
Todas as minhas coleções me deram conhecimento de vários assuntos sobre os quais estou
sempre proferindo palestras, tanto em meu Estado natal, como no resto do País. Eu participei do
primeiro encontro de Pesquisadores da Música Popular Brasileira realizado em Curitiba-PR, em
fevereiro de 1975, onde tive a oportunidade de conhecer pessoalmente grandes pesquisadores como
Lúcio Rangel, Sérgio Cabral, Ary Vasconcelos, João Luiz Ferrete, Ariowaldo Pires - o Capitão
Furtado, Jota Efegê, José Ramos Tinhorão, Aramis Millarch, Ricardo Cravo Albim, Marcus Pereira,
Alceu Schwab, Paulo Tapajós e outros mais regionais. Foi no trabalho publicado por Edigar de
Alencar que o organizador do Encontro encontrou meu nome.
Participei ainda de mais seis desses encontros, todos aqui no Rio de Janeiro, sempre ao lado
dos meus parceiros da Discografia, Grácio Barbalho, Alcino Santos e Jairo Severiano.
Em 1994, fui contemplado com o Prêmio Rodrigo de Melo Franco de Andrade, recebido por
mim, no Palácio da Cultura, na Cinelândia.
Em 2005, o Arquivo Nirez entrou com um projeto junto ao Ministério da Cultura para digitalizar
os 22 mil discos de cera 78rpm, ou sejam: 44 mil músicas. Com o patrocínio da Petrobrás, o
projeto foi contemplado e montamos um estúdio, onde tivemos todo o acervo digitalizado. Por
exigência do contrato de digitalização do projeto “Meio Século de MPB – Disco de Cera”, tivemos
que colocar no ar o site www.projetodiscodeceranirez.com.br , onde entre outras coisas está a
relação de todos os discos que temos em nosso acervo, com todas as informações, título, gênero,
autoria, interpretação, acompanhamento, gravadora, número do disco, data de gravação e data do
lançamento do disco.
Está em preparo, também, através do Ministério da Cultura e patrocinado pela Petrobras, novo
site, este, do Arquivo Nirez, que trará várias pesquisas, entre elas discografias, fotografias, músicas,
dois programas de rádio, além do Calendário da música e a cronologia dos acontecimentos. Deverá
entrar no ar até dezembro próximo.
Vale a pena lembrar que uma coleção só é interessante quando, ou possui peças dos primórdios,
como fonógrafos, primeiros projetores, primeiras câmaras, ou quando trazem peças de época um
pouco anterior à contemporânea, porque as pessoas se lembram, conviveram com elas. Não adianta
ter peças de 100 anos, pois ninguém vai se lembrar delas. Tenho 77 anos de idade e muitas coisas
com as quais convivi, os visitantes do Arquivo Nirez não conhecem, pois eles são muito novos.
O tema desta mesa propõe uma questão que perpassa as mais diversas reflexões e debates
sobre a formação das coleções e dos próprios museus, como lugares de memória.
Afinal, quem fala em coleção fala em vestígios do passado, não para recuperar o tempo, que
não volta, mas para, a partir de um conjunto de objetos, resgatar o que neles transcende a própria
materialidade. Vale dizer, a significação que passaram a ter, em determinado momento, não mais
em razão de sua destinação primitiva, mas do valor que adquiriram como objetos de rememoração
de usos, fatos ou pessoas e, como tais, dignos de serem recolhidos, contemplados e preservados,
seja por particulares, enquanto coleções, seja pelo estado, quando patrimonializados.
Sérgio Rouanet, secundando Walter Benjamin, o disse de forma lapidar: “sob o olhar amoroso
do colecionador, as coisas perdem o seu valor de troca e se libertam do ônus de serem úteis” para
tornarem-se uma forma de “rememoração prática” da história, pelo poder que tem as coleções de
recuperar o longe temporal de cada objeto, trazendo-o para perto de nós.1
Assente tal premissa, vamos à indagação que ora nos interpela: qual a motivação de uma
coleção? Creio que a própria polissemia das práticas afasta, a priori, uma única resposta.
A nostalgia, enquanto apego ao passado, é, sem dúvida, uma delas, máxime em tempos de
transformação acelerada.
*
Nascido no Rio de Janeiro em 1943. Advogado. Membro titular e 1º vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e
seu representante no Conselho Nacional de Política Cultural, do MinC, e no Conselho Estadual de Tombamento. Membro da Academia
Brasileira de Arte, do PEN Clube do Brasil, do Colégio Brasileiro de Genealogia e da Associação de Cartofilia do Rio de Janeiro. Autor,
entre outros, de A memória paraense no cartão-postal (1900-1930), Como levantar sua própria genealogia, Louça histórica (em coautoria
com Sylvia Athaíde), Iconografia e bibliografia dos titulares do Império, ora no 9º volume, e da introdução do álbum Belém da Saudade: a
memória da Belém do início do século nos cartões-postais.
1
ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 70-75.
Mas, hoje, no caso de uma coleção de porcelanas históricas, será exatamente isto? Parece-
me que não. Em 1º lugar, porque a ideia de nostalgia, na acepção que comumente se usa e subjaz
à proposta deste Seminário, traz ínsita uma nota de recordação pessoal, de envolvimento, e até
mesmo de saudade de tempos, lugares ou situações vividas, que, no caso de tal coleção, tenho
para mim não mais existir, embora certamente haja inspirado as coleções que se formaram nos
anos seguintes à proclamação da República, numa compreensível reação ao trauma causado
pelos leilões do Paço, como assinalado por Alcindo Sodré, em artigo no Anuário do Museu
Imperial.2 E, em 2º lugar, porque a natureza dos objetos que compõem tal universo prescinde
de tal cogitação. Refiro-me à carga de informação histórica neles presente, diferenciando-os de
tantos mais, e ao próprio prazer de colecionar, enquanto sinônimo de fruição estética. Pomian,
alías, já cogitara de tais motivações em seu ensaio. Uma e outra participam da lógica de reunir
para preservar.3
O que vem a ser uma tal coleção?
Um conjunto de peças personalizadas dos
serviços de porcelana, de figuras de destaque,
da chamada nobreza brasileira, também
conhecida, embora mais restritivamente,
como louça brasonada. Embora, lato
sensu, abranja também as louças coroadas,
monogramadas e até mesmo “mudas”
(Figura I) de titulares, dos serviços de D.
João VI, da Casa Imperial e dos fidalgos
portugueses que aqui serviram.
O termo histórico entra aqui - importa
dizer - não em razão de as peças haverem
tido um uso propriamente histórico, mas
para assinalar seu pertencimento a figuras
daquele período. Ou, para usarmos de uma
expressão de Malinowsky, por haverem
pertencido a alguém que as “tocou de Figura I
2
SODRÉ, Alcindo. Louças imperiais. Anuário do Museu Imperial. Petrópolis, v. 4, 1943, p. 178. No mesmo sentido, ver PENALVA, Gastão,
Porcelanas da Casa de Bragança, na mesma publicação, v. 3, 1942, p. 117-118.
3
POMIAN, K. Coleção, p. 51-86. In: Enciclopédia Einaudi, v. 1 – Memória-História. Portugal: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004, p. 53.
imortalidade.”4 Tal transmudação, como ele bem sublinhou, não anula a história presente em
cada objeto, ao revés, a reconstitui para além da mera existência das coisas, em novas relações
diretamente voltadas para a reminiscência.5
Neste particular, vale lembrar que, já em 1949-1950, quando da campanha de fundos para a
restauração de Ouro Preto, diversas pessoas, não colecionadoras, já as possuiam como verdadeiros
semióforos e e as ofereceram para serem vendidas em hasta pública, como documentado por Juliana
Sorgine em recente pesquisa publicada pelo IPHAN.6
Mas tais peças, como disse, para além da aura de que se revestem, quase como relíquias,
e do estereótipo de objeto da elite, que as aparta da identidade social do homem médio,
contem uma carga de informação histórica que, não poucas vezes, tem passado despercebida
a colecionadores, antiquários e até mesmo museus, mas que, para mim, se constitui na razão
primeira de seu colecionamento.
Thierry Bonnot assinala que as coisas, como as pessoas, possuem vidas sociais, que, no
caso daquelas, começam como simples mercadoria, destinada à circulação, passando depois
por sucessivas singularizações, que, esvaziando-as de sua funcionalidade, as transformam,
primeiramente, em objetos de conservação, posteriormente em objetos de colecionamento e, em
certos casos até, de patrimonialização.7
A louça brasonada, de certa forma, passa à margem da primeira fase, pois, ao assumir os
sinais personalizadores de seus titulares, subtrai-se à demanda do mercado. É ainda um objeto
de uso, mas já vincado de significação. E é como tal que, dentro do universo restrito a que se
destina (o da família do titular), é transmitido às gerações seguintes, já sem serventia prática,
como simples objeto de rememoração, e, a partir daí, ou vira “refugo da sociedade”, para usar da
expresão de Philipp Blom,8 como tantas coisas mais tornadas obsoletas (ou relegadas à condição
de desperdícios, como diria Pomian),9 ou vai ter às coleções e museus.
Como tantas mais, tal coleção enfrenta, entretanto, o permanente desafio da autenticidade
de suas peças, especialmente nas louças monogramadas, em face do recorrente problema
das falsas atribuições, que, na espécie, são o equivalente das falsificações que afetam outros
4
DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 109.
5
ROUANET, Sergio Paulo. As razões do Iluminismo ... Op. cit., p. 71.
6
SORGINE, Juliana. Salvemos Ouro Preto: a campanha em benefício de Ouro Preto, 1949-1950. Rio de Janeiro: IPHAN, COPEDOC, 2008, p. 78-83.
7
BONNOT, Thierry. La vie des objets: d’ustensiles banals à objets de collection. Paris: Maison des Sciences de l´homme, 2002, p- 4-5;
10-11; 146; 219-221 et al.
8
BLOM, Philipp. Ter e manter: uma história íntima de colecionadores e coleções. Rio de Janeiro: Record, 2003. Tradução de Berilo Vargas, p. 191.
9
POMIAN, Krzysztof. Coleção... Op. cit., p. 76.
10
BLOM, Philip. Ter e manter:... Op. cit., p. 193. A mais recente dessas indevidas atribuições é a do serviço do “Barão de Santa Teresinha”,
apregoada em leilão no Rio de Janeiro, pois nem o título existiu, nem a santa estava nos altares no reinado de D. Pedro II. Ver ainda ATHAYDE,
Sylvia Menezes de, MIRANDA, Victorino Chermont de. Louça histórica. Salvador: Museu de Arte da Bahia, 2000, p. 26, nota 90.
11
CHAGAS, Mário. Museália. Rio de Janeiro: JC Editora, 1996, p. 40-47.
12
MENEZES, Paulo Braga de. Luis Aleixo Boulanger, o escrivão dos brasões. Mensário do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, a. 1, nº 12,
1970, p. 27-28.
13
CORRÊA, Luiz Felipe de Seixas. O Barão do Rio Branco: missão em Berlim, 1901-1902. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão,
2009, p. 49-52.
e Rio Branco, por sinal, como outros tantos,14 inobstante não disporem das honras de grandeza
em seus títulos, tiveram serviços assinalados com a coroa condal, supostamente designativa aos
olhos leigos daquelas honras, o que, ainda que abstraída a intencionalidade de tal opção, mostra o
alcance de tais sinais.15
Em segundo lugar, pelo que essas mesmas peças representaram em termos de etiqueta. Ou de
um estilo de vida, talvez meramente episódico, como anotou Josué Montello,16 em artigo sobre o
livro de Jenny Dreyfuss,17 mas, sem dúvida, indicativo de uma elevada aspiração social. Newton
Carneiro, em seu A louça da Companhia das Índias no Brasil, deixou registradas as importações de
amarrados das Índias, com as encomendas dos fidalgos portugueses e dos primeiros titulares ligados
ao Brasil.18 Pedro Calmon, no seu livro Espírito da Sociedade Brasileira, chegou a falar numa
14
É o caso dos serviços dos barões de Campo Grande, Ipanema (prato octogonal), Itapicuru de Cima, Pojuca e também dos viscondes de
Araruama e Vergueiro e dos barões de Atalaia, Itacuruçá, Jequiá, (2º) Pati do Alferes, (2º) Rio das Contas, e dos viscondes de Araruama,
Paraguaçu, (2º) Pelotas, Porto Seguro e Ubá, que, inobstante possuírem ditas honras de grandeza no seu grau, não podiam fazer uso do
coronel de conde, já que isto não se incluía entre as prerrogativas das referidas honras.
15
Tal prática, ao que tudo indica, provinha do fato de o Almanack Laemmert havê-la adotado em suas listagens, induzindo ao erro o escrivão
dos Brasões e Armas de Nobreza e Fidalguia, Ernesto Aleixo Boulanger, a ponto de a 3ª Diretoria da Secretaria de Estado dos Negócios
do Império sentir-se obrigada a formalmente adverti-lo, em ofício de 7 de agosto de 1888, da irregularidade de tal proceder (TOSTES,
Vera Lucia Bottrel. Títulos e brasões, sinais da nobreza. Rio de Janeiro e São Paulo: a Autora, 1996, p. 126-127). Em igual equívoco
incidiram, via de regra, os barões de Vasconcellos e Smith Vasconcellos em seu Arquivo nobiliárquico brasileiro, mas não no tocante aos
barões do Penedo, Pojuca e Rio Branco e viscondes de Itapicuru de Cima, Paraguaçu e Vergueiro, que, no particular, tiveram seus coronéis
corretamente reproduzidos.
16
MONTELLO, Josué. A louça da aristocracia. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1 mar. 1983, p. 11.
17
DREYFUSS, Jenny. A louça da aristocracia no Brasil. Rio de Janeiro, Monteiro Soares, 1982.
18
CARNEIRO, Newton. A louça da Companhia das Índias no Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1943, p. 19.
19
CALMON, Pedro. Espírito da Sociedade Brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935, p. 63.
20
PINHO, Wanderley. Salões e Damas do Segundo Reinado. 4 ed. São Paulo: Livraria Martins, 1970.
BOULANGER, Luiz Aleixo. Armorial brasiliense. Coleção do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ver também VASCONCELLOS,
21
Barão de, SMITH VASCONCELLOS, Barão de. Arquivo nobiliárquico brasileiro. Imprimérie de La Concorde, 1918.
22
Elmo – parte mais nobre das armas, assenta sobre o bordo superior do escudo, olhando à direita, aberto ou fechado conforme a antiguidade
da linhagem, podendo a sua parte inferior ficar sobre o campo do mesmo (MATTOS, Armando de. Manual de Heráldica portuguesa. Porto:
Livraria Fernando Machado, s.d., p. 56-57). Possuem-no os serviços dos marquês de Paraná (monogramado), conde de Passé, viscondes do
Cruzeiro, Jurumirim, Nioaque e Paraguaçu e os dos barões do Rio Bonito, Valença e Vera Cruz.
23
Virol – penacho de plumas assentado sobre o elmo, ao invés do paquife. É tambem chamado de cercino ou rolete (MATTOS, Armando de.
Manual de Heráldica portuguesa... Op. cit., p. 57-58). O único serviço localizado com tal ornato é o do barão de Valença.
24
Timbre – peça nobre geralmente colocada sobre o coronel ou elmo, constituída por animais naturais ou quiméricos ou outras figuras
tiradas, via de regra, do primeiro quartel das armas, embora, no rigor heráldico, devesse sê-lo sob aqueles (MATTOS, Armando de. Manual
de Heráldica portuguesa... Op. cit., p. 62-63). Ver os serviços dos marquêses de Abrantes, São João Marcos e Valença, condes de Passé e
São Clemente, viscondes de Campo Alegre, Figueiredo, Jequitinhonha e Paraguaçu e barões do Catete, Morenos, Penedo, Quartim, (3º) Rio
Bonito, São Fidelis, Tibagi e Vera Cruz.
Figura V
paquife,25 tenentes,26 suportes,27 divisas,28 tarja,29 pavilhão30 e coronéis31 a ornarem os escudos
(Figuras VI e VII).
Permitem também acompanhar, ao longo do século XIX, o deslocamento do gosto do mercado
brasileiro pelas porcelanas orientais para as de manufaturas europeias, especialmente francesas,32
25
Paquife – constituído por tiras ou lambrequins, formando braços sobre os lados do escudo a partir do elmo ou do coronel, desenhado
livremente pelo heraldista (MATTOS, Armando de. Manual de Heráldica portuguesa... Op. cit., p. 58). Podem ser vistos nos serviços do
conde de São Clemente, viscondes de Figueiredo, Paraguaçu e Vargem Alegre e barões de Quartim, (3º) Rio Bonito, São Fidelis e Tibagi.
26
Tenentes – figuras antropormóficas (humanas ou celestes) que amparam o escudo lateralmente (MATTOS, Armando de. Manual de
Heráldica portuguesa... Op. cit., p. 63). Ver serviço do visconde de Jequitinhonha (lado esquerdo do escudo).
27
Suportes – figuras zoomórficas que suportam as armas (MATTOS, Armando de. Manual de Heráldica portuguesa... Op. cit., p. 64). Ver
serviços do conde de Itamarati, visconde de Jequitinhonha (lado direito do escudo) e barão de Miranda.
28
Legendas - frases em latim, português ou outras línguas, fora do escudo, em tiras ou filacteras, também chamadas de tensões (MATTOS,
Armando de. Manual de Heráldica portuguesa... Op. cit., p. 67). Ver serviços dos viscondes de Figueiredo, Jequitinhonha, Nioaque e
Vargem Alegre e barões de Miranda e Penedo.
29
Tarja – Espécie de moldura sobre a qual se assentavam as armas. Também chamada de cartela ou cartão, excluindo, quando existente, o
paquife (MATTOS, Armando de. Manual de Heráldica portuguesa... Op. cit., p. 66). O único serviço, que se conhece, a apresentá-lo é o do
conde de Passé.
30
Pavilhão – manto, composto de chapéu e cortinas, privativo do rei, príncipes e grandes do império, conselheiros de Estado, pares do reino
e grão-cruzes (MATTOS, Armando de. Manual de Heráldica portuguesa... Op. cit., p. 66). Dos serviços conhecidos no Brasil, citam-se os
das chamadas louças “Mão e Cetro”, “P grande” e “P pequeno”, de D. Pedro II, e o do discutido exemplar da manufatura de Haviland, em
azul e dourado, existente nas coleções do IHGB e do Museu Imperial (SODRÉ, Alcindo. Op. cit., entre p. 184-185).
31
Coronel – aro de ouro carregado de pedrarias sobre o escudo e revestido, em sua parte superior, de ornatos designando o grau nobiliárquico: fio
de pérolas enleando o aro, ficando visíveis só três voltas, em banda e equidistantes (barão); aro rematado por quatro hastes ou pontas de ouro que
sustentam quatro pérolas grandes, das quais visíveis três (visconde); aro rematado por dezesseis hastes de ouro sustentando suas pérolas, sendo nove
aparentes (conde); quatro florões, sendo três aparentes, separados por três hastes de ouro peroladas (marquês); oito florões, sendo visíveis cinco
(duques) e coronel de duque fechado por seis diademas perolados, visíveis cinco, encimados por um globo com cruz (rei/imperador) (MATTOS,
Armando de. Manual de Heráldica portuguesa... Op. cit., p. 59-61). Os dois duques brasileiros (Santa Cruz e Caxias), assim como a duquesa de
Goiás, não deixaram serviços armoriados, Já o duque de Saxe usou, nos seus, a coroa imperial, assim como a princesa Isabel. As coroas de D. João
VI. D. Pedro I e D. Pedro II, seguiram a descrição acima, mas apresentam diferenças de formato, assim como a usada no serviço de D. Amélia.
32
Para se ter uma ideia de tal preferência, basta ter presente que dos 322 serviços personalizados da nobreza brasileira até hoje localizados,
apenas 18 são em Companhia das Índias contra 145 de porcelana francesa, 15 de manufaturas inglesas, 4 da Alemanha, 1 de Portugal e 119
de marcas não identificadas, mas certamente europeias, além de 20 outras ainda por precisar.
Figura VI
Figura VII
revelando, por assim dizer, a estética de uma época, no que Gilberto Freyre, em crônica no Diário
de Pernambuco, chegou a ver “uma das afirmações do imperialismo europeu em suas relações com
áreas semicoloniais como o Brasil.”33
Importa não deixar sem registro, a propósito, dois fatores que, sem dúvida, subjazem a
tal mudança de comportamento, que já Brancante apontara em estudo pioneiro: a liberdade de
comércio que se estabelecera a partir da vinda da Corte, abrindo o mercado brasileiro às manufaturas
europeias, com novos padrões de decoração e a própria diminuição da produção de cerâmica da
China, em razão da concorrência que a Inglaterra lhes passou a fazer, sobretudo depois de 1834,
quando cessaram as atividades comerciais de sua Companhia das Índias Orientais.34
33
FREYRE, Gilberto. Louça da China no Brasil antigo. Recife, 14 set. 1951.
34
BRANCANTE, Eldino da Fonseca. O Brasil e a louça das Índias. São Paulo: E. Pocai, 1950, p. 192-197.
Figura XI
Figura XII
Há muitos anos, vi, pela primeira vez, tais louças profusamente expostas no Museu Imperial de
Petrópolis, proporcionando um panorama sem igual da estética de uma época. Nasceu ali, talvez, a
remota inspiração para o colecionamento a que depois me lançaria, assim como a percepção, que,
depois, veria confirmada na observação de Miriam Sepúlveda dos Santos, de que, também sob
esse aspecto, “um prato isolado não oferece o mesmo número de informações que um prato junto
a tantos outros […]. Ele sozinho perde, enquanto documento”.36
36
SANTOS, Mirian Sepúlveda dos. História, Tempo e Memória: um estudo sobre museus a partir da observação feita no Museu Imperial e
no Museu Histórico Nacional, Apud. ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil.
Rio de Janeiro: Rocco: Lapa, 1996, p. 209.
Tais aspectos, penso, podem, num discurso patrimonial que não se pretende acadêmico,
explicar a primeira das motivações acima apontada. Mas a ela somou-se também, no meu caso,
e creio que de outros colecionadores, a do prazer estético na contemplação de suas peças como
elemento de decoração.
E, se lançarmos um olhar, para meados do século passado, veremos que essa deve ter
sido também a motivação de proprietários de conhecidos salões cariocas, colecionadores
latu senso de antiguidades, que tinham tais peças como itens de decoração, fosse em
paredes, fosse em nichos e vitrines, em meio a telas, bronzes, jarrões, marfins, prataria,
cristais, móveis e tapeçarias.
Catálogos como os das coleções Bastos Dias,37 Djalma da Fonseca Hermes,38 Ignacio
Areal, 39 Maurell Lobo, 40 Sérgio Silva, 41 C. B. Moura, 42 Antenor Rezende, 43 Simoens
da Silva44 e outros mais comprovam tal assertiva. Nenhum deles era exclusivamente
colecionador de porcelanas históricas. Eram, sim, colecionadores de antiguidades, com um
olhar atento a tudo que lhes falasse à sensibilidade e pudesse ser utilizado como ornamento
de suas casas. 45
O que levava a isso? Sem dúvida, a singularidade e beleza de tais peças, numa profusão de
esmaltes, formas e temas a atestar a criatividade e o requinte de manufaturas e decoradores, fossem
de mãos anônimas, como nos serviços de Companhia das Índias, fossem no mais translúcido caolim,
num verdadeiro caleidoscópio de flores, frutas, paisagens e cenas românticas. Pedro Calmon, por
elas fascinado, celebrou, num de seus prefácios, os “bonzos sonolentos” e “as donzelas saídas das
37
CATÁLOGO do importante leilão de objetos de arte dos mais notáveis que se tem realizado nesta capital e raramente oferecidos à venda,
que constituem a primorosa e rara coleção que pertencem ao conhecido e competente colecionador Sr. Bernardino Bastos Dias, recentemente
falecido. Leiloeiro Virgílio. Rio de Janeiro: A. Giannini & Cia., 1929.
38
CATÁLOGO do leilão da mais preciosa collecção de objectos históricos e de arte, formada pelo conhecido e illustre collecionador dr.
Djalma da Fonseca Hermes. Leiloeiro Paula Affonso. Rio de Janeiro: [s.n.], 1941.
39
CATÁLOGO da coleção Areal reunida pelo snr. Francisco Ignacio Areal. Affonso Nunes Leiloeiro, Rio de Janeiro: [s.n.], 1948.
40
LEILÃO: rara coleção Ary Maurell Lobo. Ernani Leiloeiro. Rio de Janeiro: Jornal do Commercio, 1949.
41
COLEÇÃO Sérgio Silva: catálogo. Ernani Leiloeiro. Rio de Janeiro: [s.n.], 1949.
42
IMPORTANTÍSSIMO leilão da coleção C. B. Moura de objetos de arte. Ernani Leiloeiro. Rio de Janeiro: Jornal do Commercio, 1949.
43
CATÁLOGO dos objetos de arte, porcelanas, prataria, quadros, marfins, cristais, peças de porcelana brazonada do 1º. e 2º. Império do
Brasil, opalinas e mobiliário que faziam parte da notável coleção de arte do dr. Antenor Rezende para vender no leilão que terá início em
13 de julho de 1953 no Palacete da Avenida Osvaldo Cruz, n. 86, Rio de Janeiro. Giannini Leiloeiro. [Rio de Janeiro: Lito-Tipo Guanabara,
1953].
44
LEILÃO judicial Espólio dr. Antonio Carlos Simoens da Silva. Ernani Leiloeiro. Rio de Janeiro: [s.n.], 1957.
45
PONTUAL, Maurício. Sebastião Loures: uma coleção bem brasileira. Vida das Artes, Rio de Janeiro/ São Paulo, a. 1, nº 2, jul. 1975, p. 4-10.
tampas de charão” da louça da baronesa de Alenquer, para viverem, escreveu ele, “nos pratos de
servir, a glória irônica da sua nostalgia e de seu romance […]”.46
Mas também – e por que não ? – o desejo de construção de uma identidade, como aqui bem
pontuou Dominique Poulot, no Seminário dos 80 anos do MHN, pois “partilhar o mesmo consumo
significa dar testemunho de um pertencer”.47
Em conclusão: tenho para mim que a especificidade desse tipo de coleção reside no binômio
histórico e estético, demandando de quem a ela se dedique sensibilidade para ambos. Isto talvez
explique que, passado um primeiro momento, onde tais peças eram vistas mais como objetos de
arte a atrairem um determinado tipo de colecionador, digamos leigo em matéria de conhecimento
histórico, hajam elas migrado para um círculo mais estreito de apreciadores, voltados para a carga
memorativa que encerram. Alheios, ou à margem da vida social, estes últimos, por mais paradoxal
que seja, desfazem-se de suas coleções, quando delas cansam ou porque a tanto os premiu a
necessidade, sem que os próprios museus, muitas vezes, se deem conta de que nelas há ainda muita
coisa que não chegou a seus acervos.48
É para os museus, entretanto, que devem confluir coleções como essas, vocacionados que
são para receber e preservar os objetos direta ou indiretamente ligados à memória nacional e dos
diversos segmentos que o compõem.
Escreveu Pomian:
Saídos do invisível, é para lá que devem voltar. Mas o invisível ao qual estão destinados não é
o mesmo de onde são originários. Situa-se algures no tempo. Opõe-se ao passado, ao escondido
e ao longínquo que não pode ser representado por objeto algum. Esse invisível que não se deixa
atingir senão na e através da linguagem é o futuro. Ao colocar objetos nos museus expõem-se-os
ao olhar não só do presente mas também das gerações futuras, como dantes se expunham outros
ao dos deuses.49
46
BRANCANTE, Eldino da Fonseca. O Brasil e a louça das Índias... Op. cit., p. 5.
47
POULOT, Dominique. Nação, museu e acervo. In: BITTENCOURT, José Neves. BENCHETRIT, Sarah Fassa, TOSTES, Vera Lucia
Bottrel (orgs.). História representada: o dilema dos Museus. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2003, p. 31.
48
O mais triste desses exemplos é o da coleção Jorge Getúlio Veiga, que incorporou o segmento de Companhia das Índias da de José Miguel
Monteiro Soares, e acabou, em grande parte, vendida em Londres.
49
POMIAN, Krzysztof. Coleção... Op. cit., p. 84.
*
António Forjaz Pacheco Trigueiros é engenheiro químico, foi diretor técnico da Casa da Moeda de Lisboa e autor de toda a legislação
monetária portuguesa publicada desde 1986 até à introdução do Euro. Nessa qualidade, foi distinguido em 1992, em Basileia, Suíça, com
o Prémio Europeu de Numismática – Vreneli, pela sua contribuição pessoal para a valorização cultural e histórica da moderna indústria da
moeda, um galardão atribuído pela primeira vez a um dirigente de uma casa de moeda. É autor de uma vasta obra de investigação histórica
que cobre os campos da Numismática, da História Monetária, da Notafilia, da Medalhística e da Emblemática Portuguesas, cujos trabalhos
estão publicados no editor digital www.estudosdenumismatica.org, uma organização sem fins lucrativos por si, criado em 2010, como
contribuição para o acesso livre e universal ao conhecimento nas ciências e humanidades
1
Portal da Câmara dos Deputados – Coleção das Leis do Império do Brasil, Decretos, Cartas Régias e Alvarás de 1822 (publicação
digitalizada): decreto do príncipe regente de 18 de Setembro (“Dá ao Brasil um Escudo de Armas”); decreto imperial de 1 de Dezembro
(“Manda substituir pela Coroa Imperial a Coroa Real que se acha sobreposta, no escudo das Armas”)
Assim, é natural supor que o desenho dessa coroa imperial seja também atribuído a Debret,
por sua própria inspiração ou por influência de outros, neste caso, do ministro José Bonifácio de
Andrada e Silva. E terá sido desse seu desenho original que ourives fluminenses fabricaram a peça
de joalharia de ouro e diamantes, que serviu no cerimonial da sagração e aclamação, muito embora
se notem inúmeras diferenças entre a peça lavrada e o desenho, naturalmente motivadas pelas
exigências industriais da manufatura de ouro e da cravação dos diamantes.
No espólio do pintor, conservado no Museu Castro Maya, no Rio de Janeiro, existem os esboços
aguarelados originais, do escudo de armas, da bandeira imperial, da coroa imperial e do cetro, que
seriam depois reproduzidos nas estampas do tomo III da Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil
(estampas 9 e 10: insígnias reais e imperiais; estampa 29: bandeiras imperiais), publicadas em Paris
em 1839. Na descrição que fez acompanhar as estampas, Debret assinalou as características da
coroa imperial de d. Pedro I:
[...] A coroa imperial, de arcos fechados, tem uma forma elíptica de grande proporção. A sua base
é decorada com escudos das armas do Brasil, alternados com florões. O ponto de encontro dos
seus arcos é enriquecido com uma esfera celestial encimada por uma cruz pátea de quatro faces.
Em cada um de seus ramos figura uma palma fina e longa, que se eleva a partir do centro de cada
escudo. Esta coroa é de ouro maciço, e os lados das palmas, o centro dos escudos, o círculo do
zodíaco na esfera celeste, e a cruz pátea são guarnecidos de diamantes da melhor escolha. O seu
valor é estimado em cerca de 80.000 cruzados (221,000 francos). Um gorro de veludo verde reveste
o interior da coroa. 2
Representações tridimensionais dessa primeira coroa imperial figuram nas insígnias das
Ordens Honoríficas do Cruzeiro, de d. Pedro I Fundador do Império do Brasil, e da Rosa, bem
como, em insígnias brasileiras das antigas Ordens Militares portuguesas de Cristo e de S. Bento de
Avis, atribuídas no primeiro Reinado.
Este desenho da coroa imperial brasileira distingue-a claramente das restantes coroas
imperiais europeias que a antecederam, e que poderiam ter servido de modelo. Anteriormente
a 1822, eram bem conhecidas as coroas imperiais do Sacro Império Romano-Germânico e
do império dos Habsburgo da Áustria que lhe sucedeu em 1815, da coroação de Napoleão
Bonaparte, e do império da Rússia, esta última criada à semelhança dos usos ocidentais em
2
DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil [...] (v. III). São Paulo: Brasiliana USP, acervo digital, p. 138 (PL. 10): «La
couronne impériale, à branches fermées, est d’une forme elliptique et de grosse proportion. Sa base est garnie d’écussons aux armes du
Brésil, alternés avec des fleurons. Le point de réunion de ses branches est enrichi d’une sphère céleste découpée à jour et surmontée d’une
croix pattée à quatre faces. Chacune de ses branches ligure une palme mince et longue, qui s’élève du centre de chaque écusson. Ce-tte
couronne est d’or massif, et les côtes des palmes, le milieu des fleurons, le cercle du zodiaque de la sphère céleste, et la croix pattée sont
de diamants du plus beau choix. Leur valeur est estimée à peu près 80,000 cruzados (221,000 francs). Une coiffe de velours vert, garnit
l’intérieur de la couronne.». Tradução do autor.
1 - Jean-Baptiste Debret.
À direita, pormenor da pintura Coroação de D. Pedro I, de 1828, do acervo do Palácio Itamaraty
em Brasília. Em cima e embaixo, aguarelas originais da coroa e da bandeira imperiais, de
1822, do espólio do pintor no Museu Castro Maya do Rio de Janeiro (fotógrafo Horst Merkel)
1762, por Catarina II, passando desde então a guarnecer as insígnias das Ordens imperiais de S.
André, de Sta. Ana e da Águia Negra.
É importante notar que todas elas, com exceção da efémera coroa do imperador dos franceses,
eram coroas-mitra abertas ao centro, inspiradas nas antigas coroas do Sacro Império Romano, com
as cúspides posicionadas lateralmente sobre a região temporal da cabeça (as mitras episcopais
modernas têm as cúspides posicionadas sobre a testa e a nuca), com um grande arco central,
estendendo-se da parte dianteira do diadema para a parte traseira. Entre os retratos conhecidos dos
imperadores germânicos, acessíveis por consulta na internet, reproduzem-se os de Frederico III
(1415-1493), com uma coroa de grandes arcos fechados; de Maximiliano I (1459-1519), com uma
bens privados. A tudo isso somava-se uma real ameaça de tomada de poder pelos revolucionários
comunistas, que estiveram na origem de um dos maiores êxodos de portugueses para o Brasil,
como refugiados políticos.
A 23 de Abril de 1975, a maior herdade murada de Portugal, Quinta da Torre Bela, na região
de Manique, no Ribatejo, propriedade da família dos duques de Lafões (Bragança), é ocupada
por trabalhadores agrícolas sem trabalho nem terra, e por agitadores políticos. Estavam presentes
oficiais das forças armadas, que nada fizeram. O momento da ocupação é captado em filme por
um realizador de cinema alemão, Thomas Harlan, que permanece na herdade durante oito meses a
filmar os acontecimentos. No exterior da herdade, junto à berma da estrada, tendas improvisadas
vendem ao desbarato as ricas porcelanas da China da casa de Lafões.
Em Lisboa, no Palácio do Grilo, na zona do Beato, residência tradicional dos Lafões, o duque
d. Lopo de Bragança pressente a ameaça que paira sobre a sua família, aparentada com a casa real
portuguesa e alvo preferencial do PREC (Processo Revolucionário em Curso) decide, então, vender
grande parte do espólio documental e artístico acumulado durante séculos por uma das mais ricas
casas senhoriais do antigo regime. Não está sozinho nessa decisão, pois que, no mesmo ano de 1975,
outros herdeiros de grandes famílias, bem como centenas de outras famílias, começam a vender
tudo o que têm de valor, apartamentos, prédios, mobiliário, joias, pratas, moedas, refugiando-se
depois no Brasil.
Um dos negociantes que foram chamados em 1975 ao palácio do Grilo foi o antiquário
de origem alemã, Rainer Daehnhardt, residente em Belas, que comprou um enorme espólio de
mobiliário, pratas e marfins, além da totalidade do arquivo documental da casa Lafões, documentos
esses que foi vendendo ao longo de vários anos. Desse enorme acervo fazia parte o arquivo pessoal
do abade Correia da Serra (1751-1823), um dos fundadores da Academia das Ciências de Lisboa,
juntamente com o 2.º duque de Lafões, o qual seria depois vendido em 1994 à Fundação Luso-
Americana para ao Desenvolvimento e por esta doado em 1997 ao Arquivo Nacional da Torre do
Tombo em Lisboa.3
O mesmo antiquário levou a cabo, nos anos de 1989 e 1990, vários leilões das suas imensas
colecções, que deram brado na época. Logo no texto introdutório ao catálogo do primeiro leilão,
“Portugal-Brasil I”, de Novembro de 1989, Rainer Daehnhardt dá conta do imenso espólio que
adquiriu de várias grandes casas senhoriais:
3
A história custodial deste arquivo está acessível em: < http://digitarq.dgarq.gov.pt/?ID=4207246 >
[...] Tendo adquirido diversos arquivos das mais nobres famílias portuguesas e conjuntos de
documentos e obras de arte ligados a personagens de relevo comecei a ter acesso a informações
altamente reveladoras sobre páginas quase desconhecidas ou pelo menos pouco estudadas da
história conjunta destas duas nações (Portugal e Brasil).
O arquivo dos Duques de Lafões, do Abade Correa da Serra (fundador da Real Academia das
Ciências), de Dom Manuel de Portugal e Castro (filho de um dos Vice-Reis do Brasil e ele mesmo
Capitão-General das Minas Gerais, Governador da Madeira e último Vice-Rei da Índia Portuguesa),
dos Marialvas, dos Palmelas, dos Saldanhas, da família imperial brasileira e até do Almirante Gago
Coutinho, ofereceram-me conhecimentos que merecem chegar ao público em geral.4
Apareceram então à venda nesse leilão, pela primeira vez, algumas das mais raras e
desconhecidas condecorações e insígnias das antigas ordens militares portuguesas, como as da
Real Ordem da Torre e Espada de 1808, de fábrica portuguesa. Uma delas, no entanto, cativou
a curiosidade geral, sendo descrita nesse catálogo como uma peça de excepcional raridade e
indiscutível importância histórica:
Lote 500 // A mais Alta Condecoração Portuguesa jamais Existente, 1826 – A Banda das Três
Ordens, somente pode ser utilizada pelo Rei ou Chefe de Estado […] Houve porém, um curto
espaço de meses em que d. João VI era Imperador Titular do Brasil e Rei de Portugal (desde o fim
de 1825 até 1826, data da sua morte). Para esta ocasião, mandou-se fazer esta nova condecoração,
que em vez da coroa real portuguesa, leva a coroa imperial. Só houveram duas personagens que a
podem ter utilizado: Dom João VI, nos últimos meses da sua vida, e Dom Pedro I do Brasil, durante
o curto espaço de tempo em que houve a dúvida se juntaria ou não a Coroa Imperial Brasileira à
Coroa Real Portuguesa. […]. O pendente, de grandes dimensões (7,5 cm de largura para 14,5 cm
de altura) e peso, é uma obra-prima de trabalho de ourivesaria. Tudo em prata esculpida a cinzel e
dourada a fogo, coberta por excelentes trabalhos de esmaltagem. 5
A argumentação exposta por Rainer Daehnhardt na extensa descrição desta magnífica insígnia
parecia verosímil, pois era a primeira vez que se via uma Banda das Três Ordens Militares de
Cristo, Avis e Santiago pendente de uma grande coroa imperial, com forro esmaltado. Noutro leilão
posterior, de Outubro de 1990, o mesmo antiquário levou à praça outra insígnia da mesma época,
também de prata dourada e com as mesmas dimensões, mas da Banda das Duas Ordens Militares
de Cristo e de Avis, pendente de uma grande coroa real, sem forro esmaltado, que foi atribuída
como tendo pertencido ao infante Dom Miguel de Bragança, irmão de d. Pedro I do Brasil. 6
4
DAEHNHARDT, R. D. Portugal-Brasil I. Lisboa: Silva´s, Novembro de 1989, p.9. Introdução ao catálogo do leilão.
5
Id, p. 132-133. Descrição lote 500 e fotografia.
6
DAEHNHARDT, R. D. Lvsitania. Lisboa: Numisma, Março de 1990, p. 174-175. Descrição do lote 1053
7
O autor acabaria por adquirir, em 1992, todo o remanescente do acervo de condecorações portuguesas existente na posse do antiquário
Rainer D., no total de várias dezenas, entre as quais estavam outras Bandas das Três Ordens e das Duas Ordens, com coroa imperial e com
coroa real, variantes de fabrico da insígnia leiloada em 1989. Anos depois seriam adquiridos noutro antiquário de Lisboa, os inventários
manuscritos de que se fala neste texto.
No seu gênero, os inventários oitocentistas da casa dos duques de Cadaval são as mais
importantes fontes coevas existentes sobre as insígnias das antigas Ordens Militares portuguesas.
Todos eles fizeram parte de livros encadernados, onde as folhas foram arrancadas, sendo conhecidos
os seguintes:
1. Inventário de 1809: Cadaval Anno Domini 1809 – Rol das Condecorações e crachás de maior
valor devido a suas pedrarias (2 fólios, frente e verso, 146x203 mm)
2. Inventário de 1810: Cadaval Inv. n.º 240 livro 4 folhas 18 e 19 A.D. 1810 – Rol das Condecorações
( 2 fólios, verso em branco, 180x260 mm)
3. Inventário de 1815: Cadaval Inventário n.º 248 livro 5 folhas 4, 5 e 6 A.D. 1815 – Rol de
Condecorações (3 fólios, frente e verso, 145x202 mm)
4. Inventário de 1820: Cadaval livro 2 Inventário n.º 249 Anno Domini 1820 folhas 34 a 36 – Rol
de Condecorações; Cadaval Inventário Adicional Anno Domini 1820 – Rol das Condecorações
enviadas para reparação (4 fólios frente e verso, 450x34 mm)
5. Inventário de 1836: Casa Cadaval Livro 8 Inventário n.º 380 Anno Domini 1836 – Rol de
Condecorações (livro encadernado, com o lacre da casa de Cadaval na capa, 3 fólios preenchidos
frente e verso e os restantes em branco, 210x312 mm)
Da sua leitura infere-se a existência de inventários semelhantes de 1801 e 1803, bem como
de 1809 para condecorações sem pedrarias, os quais não são conhecidos. Por outra fonte sabe-se
da existência de um inventário mais tardio, de 1848, que também se desconhece. É muito possível
que os livros onde estariam registados os inventários (8 livros contendo 380 inventários, até ao
ano de 1836) ainda se encontrem no grande arquivo documental da casa de Cadaval, também
ele vendido em bloco para um negociante do Porto em 2001, mas imediatamente recuperado por
Hubert Guerrand-Hermès, casado com a duquesa Roslinda Hermès-Cadaval, filha primogénita do
primeiro casamento do 10º duque, e que desde então aguarda instalação, classificação e abertura à
investigação acadêmica. 8
Além destes, existem também inventários oitocentistas da casa dos duques de Lafões, ainda
na posse de seus descendentes, incluindo um livro encadernado com as armas ducais de prata
aplicadas na capa. As peças neles descritas, condecorações muito antigas das ilustres casas que
antecederam os Lafões ou que neles foram integradas (Sousas, Marialvas, Arronches, Vimioso,
8
Conforme reportagem publicada na revista Única. Lisboa: Expresso, 15 de Agosto de 2008, pp. 41-44
Soure), incluindo as próprias insígnias pessoais dos vários duques, bem como, porcelanas e pratas,
são igualmente importantes, mas não estão relacionadas com o assunto desta comunicação.
São destes inventários da casa de Cadaval as descrições de insígnias portadoras de coroas
imperiais e reais, que interessam para este nosso estudo e que transcrevemos:
de 1815, já que figuram no inventário desse ano, outras terão ficado na Corte no Rio de Janeiro e
regressado anteriormente a 1820, como aliás indica o inventário desse ano. Pendentes deste tipo
existem atualmente em coleções particulares portuguesas (incluindo a coleção do autor), uns com
coroa real, outros com coroa imperial, forradas ou não, de grandes dimensões. Quanto ao pendente
leiloado em 1989 (lote 500), terá sido vendido para uma coleção brasileira.
É particularmente singular a referência, no inventário de 1820, à uma Grã-Cruz das Três
Ordens com coroa imperial, portadora de uma etiqueta, como tendo sido a medalha pendente da
banda das Três Ordens Militares que d. João VI usou no dia da sua aclamação no Rio de Janeiro (6
de Fevereiro de 1818). O que a torna tão especial é a clara referência a uma coroa imperial, quando
nesses inventários existem outras insígnias do mesmo tipo pendentes de coroa real, que podiam ter
sido usados pelo soberano nessa ocasião tão emblemática.
D. João VI, imperador e rei em 1818?
Uma coroa imperial portuguesa?9
Sonho ou realidade?
governo no Brasil, vir a ser aclamado Imperador, quando chegasse a hora de suceder à rainha
d. Maria I.
Imperador do Ocidente, como muitos anos antes sugerira o embaixador D. Luís da Cunha? Ou
Imperador do Brasil, como era voz corrente na época?
E o que, em 1812, teve assim de especial ou os anos anteriores?
A consulta à correspondência trocada entre a Corte no Rio de Janeiro e os Governadores do
Reino em Lisboa, nada produz de especial sobre este tema em 1812, mas algo aparece de insólito
em 1810: por aviso de 21 de Novembro, pede-se o envio de “uma cópia do Auto de Levantamento
e mais Ordens pela Aclamação da Rainha d. Maria I e demais papéis referentes ao cerimonial que
se costuma praticar em semelhante ocasião”, o que foi respondido de Lisboa a 27 de Fevereiro
de 1811, tendo a documentação sido recebida no Rio de Janeiro a 29 de Maio (1ª via) e a 14 de
Junho (2ª via). 10
Teria a rainha passado tão mal em 1810 que logo se fizeram preparativos para a sua sucessão
eminente? A vida de d. Maria I desde que enlouqueceu é um grande mistério, e desde que chegou ao
Rio de Janeiro que muito pouco se sabe dos anos que lá viveu, das crises que certamente terá tido,
daqueles momentos em que a doença pressagiava a morte. Nenhum historiador achou interessante
investigar esses anos, a história da Rainha Fidelíssima termina invariavelmente no ano de 1792,
quando o príncipe d. João assume a regência.
Mas a correspondência oficial da Corte com Lisboa não deixa de ser um sinal, não se
pede a documentação toda respeitante ao cerimonial de aclamação dos senhores Reis de
Portugal sem um motivo muito forte, o da preparação de uma nova aclamação real. Desde
então, até ao passamento da rainha em Março de 1816, nunca mais se voltou a falar sobre
este assunto.
Terá sido na sequência desses preparativos cautelares que se mandaram fazer em Lisboa as
insígnias da Banda das Três Ordens Militares, com coroas real e imperial? Se são protótipos ou
ensaios, como tudo indica que são, pelas variantes de fabrico conhecidas, então destinavam-se à
apreciação e escolha superior, as insígnias rejeitadas foram devolvidas para Lisboa, outras terão
ficado no Rio de Janeiro, onde foram vistas e apreciadas por cortesãos, políticos e artistas, como
José Bonifácio e Debret.
Mas não é só a grande Banda das Três Ordens Militares, distintivo da chefia do Estado, que
está em causa: veja-se que no inventário de 1820 também existiam hábitos, insígnias de cavaleiros
das Ordens de Cristo e de Avis com coroa imperial. Ou seja, é toda uma emblemática decorativa
10
ANTT, Ministério do Reino, Registo de ordens expedidas pelo Príncipe Regente aos governadores do Reino. Ministério do Reino, livro
380, fol. 411 e 412 (29 de Maio e 14 de Junho de 1811).
Tudo o que existe, de concreto, são as próprias insígnias e os inventários que as descrevem,
que pela primeira vez são mostrados em público e parcialmente transcritos nesta comunicação.
Quanto ao ambiente social e político dessa época, são bem conhecidos os fundamentos
de que teria existido na Corte do Rio de Janeiro a ideia da criação de um império Portugal
– Brasil, mesmo antes da elevação do Brasil a Reino em 1815, um tema que já foi tratado
em profundidade.12
12
A ideia do Brasil Império anterior a 1822 foi tratada por vários autores, como o clássico de Oliveira Lima. Cf. LIMA, O. D. João VI
no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, 3.ª ed. pp. 44-45; 66-69; 338-340; ou o recente estudo de Patrick Wilcken. Cf. WILCKEN, P.
Império à deriva. Porto: Civilização Editora, 2004, pp.96-97. Entre os que consultamos via internet: POLETTI, R. R. de B. Elementos para
um conceito Jurídico de Império. Brasília: Faculdade de Direito de Brasília, 2007, pp.209-217. Tese de doutoramento; OLIVEIRA, E. R. de.
A ideia de Império e a fundação da Monarquia Constitucional no Brasil (Portugal-Brasil, 1772-1824). Rio de Janeiro: Tempo, n.º 18, 2005,
pp. 43-63; Id., O império da lei: ensaio sobre o cerimonial de sagração de d. Pedro I (1822). Rio de Janeiro: Tempo, nº 26, 2007, pp. 133-159.
Neste último, o autor refere a insígnia da Banda das Três Ordens com coroa imperial da nossa coleção, que figurou na exposição D. João VI
e o Seu Tempo. Lisboa: CNCDP, 1998, catálogo p. 235.
Não conseguimos consultar outra referência que julgamos importante, LYRA, M. de L. V. A utopia do poderoso Império – Portugal e Brasil:
bastidores da política, 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994.
13
MARESCHAL, Barão de. Correspondência do Barão Wenzel de Mareschal (1821-1822). Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Rio de Janeiro, tomo 80, 1916, p. 113-114. Ofício de 19 de Outubro de 1822, n. 32, letra B: «Continuant à parler sur cet sujet, il dit
[…] que leur position étoit entièrement différente, qu´ils se regardoient comme sortant de l´Etat de Nature et que le titre d´Empereur n´était
pris que comme désignant le chef d´un vaste Empire; que si le Roi venait ici, la maniére dont il y seroit reçut et traité prouverait hautement
quels étoient les sentiments de son fils; -- que la faute qu´il (le Roi) avoit faite, étoit de ne point prendre en 1816 le titre d´Empereur du Brésil
et Roi de Portugal au lieu de créer un Royaume uni illusoire [...]» Tradução do autor.
Para este nosso estudo, interessa especialmente associar a existência das insígnias pendentes
de coroa imperial com um relato coevo sobre a ideia do império, tendo d. João VI como Rei e
Imperador. E o relator é alguém insuspeito, o embaixador da Áustria no Rio de Janeiro em 1822,
numa carta enviada para o príncipe de Metternich em Viena, em Outubro desse ano tão especial
da independência do Brasil e poucos dias após a sagração de d. Pedro I. Nessa correspondência,
o barão de Mareschal dá conta de uma conversa tida com o ministro do Reino e dos Negócios
Estrangeiros, José Bonifácio de Andrada e Silva, onde fora bordada a questão da aceitação imediata
e sem restrições por d. Pedro do título de Imperador:
[...] Continuando a falar sobre este assunto, ele disse [...] que a posição deles [Brasil] era inteiramente
diferente [da Europa], que eles se consideravam como saindo do Estado da Natureza e que o título
de Imperador era tomado como designando o chefe de um vasto Império; que se o rei viesse aqui,
a maneira como seria recebido e tratado provaria altamente quais eram os sentimentos de seu filho;
- que o erro que ele [o Rei] tinha feito, foi o de não ter tomado em 1816 o título de Imperador do
Brasil e Rei de Portugal, em vez de ter criado um Reino Unido ilusório.13
Sonho ou realidade?
Perante esta clara afirmação daquele que foi um conselheiro do soberano português, antes de
ser a grande figura política por detrás da Independência do Brasil, levanta-se a questão: será que d.
João VI podia ter optado por tomar aquele título imperial e real?
A resposta é agora dada por estas insígnias pendentes, umas de coroa imperial, outras de coroa
real, fabricadas em Lisboa em 1812 e enviadas para o Rio de Janeiro: sim, podia, se tivesse havido
vontade política para tal, a mudança emblemática estava ensaiada, a coroa imperial portuguesa
ornava o distintivo da chefia do Estado desse vasto e poderoso império a criar.
Podia ter feito, mas não o fez, optou pela coroa real do Reino Unido de Portugal, Brasil e
Algarves, e a história tomou um outro curso, que todos nós sabemos qual foi.
Por razões que se desconhecem, o sonho de ser sagrado Imperador do Brasil, que estas insígnias
documentam e revelam, nunca se concretizou em tempo oportuno enquanto a corte permaneceu
no Rio de Janeiro. O sonho imperial de d. João VI seria concretizado pelo seu primogénito, na
fundação do Império do Brasil e na transformação do modelo de uma coroa imperial portuguesa,
na primeira coroa imperial brasileira.
Nessa hora de mudança de regime, nova emblemática tinha que ser inventada: as cores do
laço nacional, doravante ouro e verde; e a bandeira nacional, na qual figurava ao centro o escudo
de armas coroado, inicialmente com uma coroa real, depois com uma coroa imperial de desenho
inovador, cuja autoria tem sido atribuída ao pintor francês Jean-Baptiste Debret.
O que desde agora sabemos não corresponder à verdade dos fatos históricos.
Debret terá visto, apreciado e até copiado o desenho das novas insígnias fabricadas em Lisboa
e enviadas para apreciação do príncipe regente d. João. O seu autor permanece anônimo, terá sido
um artesão do Arsenal Real do Exército, ou um ourives a quem se entregou um desenho para ele
materializar no metal, como ainda hoje se pratica.
Debret registou a novidade, nunca antes se tinha visto uma coroa imperial como aquela, de
oito semiarcos perolados fechados que, em vez de se unirem ao centro num plano horizontal,
ou abatido, como nas coroas reais da Europa, erguiam-se altivos num elegante formato ogival
lanceolado, como janela de catedral, unindo-se depois bem lá no alto num globo crucífero, em que
a cruz cimeira tinha o recorte de uma cruz pátea.
Debret registou a novidade e transformou esse projeto de uma coroa imperial portuguesa na
realidade da primeira coroa imperial brasileira, rigorosamente igual no modelo estrutural (que ele
chamou de forma elíptica), diferente apenas nos emblemas do diadema (brasão imperial) e no
globo crucífero, agora uma esfera armilar, também ela encimada por uma cruz pátea, a cruz da
Ordem de Cristo.
Desse seu desenho de 1822 vieram depois os artífices e os ourives, brasileiros e franceses,
fabricar as coroas donde pendem as insígnias das Imperiais Ordem do Cruzeiro, da Ordem de
d. Pedro I e da Ordem da Rosa, atribuídas durante o Primeiro Reinado (1822-1831), de que se
reproduzem alguns exemplos dos graus honoríficos mais elevados, que são em si mesmos notáveis
obras de ourivesaria. A comparação emblemática entre as duas coroas imperiais é inevitável, como
se pode apreciar nas ilustrações anexas, de duas insígnias totalmente distintas: a coroa portuguesa,
fabricada em Lisboa em 1812, para uma Banda das Três Ordens Militares; e a coroa brasileira,
fabricada em Paris cerca de 1823-1828, para uma grã-cruz da Imperial Ordem do Cruzeiro.
A primeira parte deste trabalho refere-se à apresentação de um perfil do volume de minha autoria,
intitulado Sylloge Nummorum Graecorum Brasil, Volume I, lançado recentemente pelo Museu
Histórico Nacional.1 Seu título significa literalmente “coletânea ou coleção de moedas gregas”, a
primeira no seu gênero publicado na América Latina e cujos exemplares vinham sendo conservados
há quase 100 anos pelo Departamento de Numismática do Museu Histórico Nacional (MHN). Tais
volumes, que doravante chamaremos SNGs, são catálogos de caráter internacional, publicados
pelos maiores museus do mundo que possuem grandes coleções numismáticas, sempre com o
aval, chancela e anuência do Conselho Internacional de Numismática. Esta instituição reconheceu
a importância histórica e patrimonial da coleção brasileira de moedas gregas (ou “séries gregas”)
e provinciais romanas, e elevou-a à categoria de SNG ou Sylloge, como importante documento
*
Docente de Arqueologia e Epigrafia Clássica do Laboratório de História Antiga, Instituto de História (IH) da UFRJ. No Brasil, possui
Doutorado em História Comparada pelo PPGHC / UFRJ; na Itália, obteve Láurea de Doutor em Arqueologia e Epigrafia Clássica pela
Universidade de Nápoles “L’Orientale”, e aperfeiçoamento em Bens Culturais e Arqueológicos pela Universidade de Nápoles “Suor Orsola
Benincasa”. Foi assistente da cátedra de Epigrafia e História Romana na Universidade de Nápoles, docente de Arqueologia de Campo junto
à Seção Didática da Superintendência Arqueológica de Pompeia, e assistente da Direção e da Seção Arqueológica do Museu Correale di
Terranova em Sorrento.
1
Agradeço à direção do MHN na pessoa da Profª Vera Lúcia Bottrel Tostes, e aos membros da Comissão Organizadora, Aline Montenegro,
Eliane Ferreira e Rafael Zamorano pelo convite a participar deste Seminário e desta publicação. Sou ainda grata à Drª Ângela Cardoso
Guedes, assistente da Direção do MHN, que com maestria coordenou a mesa.
ou fonte primária de consulta e pesquisa (diremos até fundamental) para estudiosos, docentes e
estudantes de Antiguidade, no Brasil e no exterior. Destaco também que, atualmente, pouco mais
de 50 coleções numismáticas de museus de todas as nações contam com esse reconhecimento e
divulgação internacional: enfim, não é apenas um bem cultural somente brasileiro, mas também
um patrimônio da humanidade.2
A nossa coleção nacional abrange, originariamente, mais de 1.900 peças, das quais apresentei,
no volume somente 1.750, pois foram retiradas as não gregas (erroneamente catalogadas), as
falsas, as ilegíveis em fotografia, etc. Engloba amoedações de três continentes (Europa, Ásia e
África), num arco de tempo que vai desde o final do séc.VII a.C. até o final do séc.III d.C.: isto
é, cerca de 900 anos de História Antiga. Além das moedas “gregas” propriamente ditas, a nossa
“SNG Brasil I” inclui ainda cunhagens produzidas por todas as culturas que interagiram com
gregos e de suas amoedações tiraram inspiração, e moedas das províncias romanas, abrangendo
geograficamente um território que vai desde a Costa Atlântica da Europa até o noroeste da Índia
e o norte da África (Fig. 1).
Fig. 1 – Mapa geral da bacia do Mar Mediterrâneo e do Mar Negro, com colônias gregas.
2
TOSTES, V. L. B. Coleção de numismática do Museu Histórico Nacional: reconhecimento internacional’. In: MAGALHÃES, Marací
Martins. Sylloge Nummorum Graecorum. Brasil I. Museu Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2011. pp. 7-8.
3
BRAGA, C. A. Antonio Pedro de Andrade (1839-1921). Revista Numismática. Sociedade Numismática Brasileira, a. I, n. 3, 3º trimestre,
1933, pp. 46-48. p. 47. MAGALHÃES, M.M. Sylloge Nummorum Graecorum. ... Op. cit. p. 24.
4
POLIANO, L.M., A Numismática no Museu Histórico Nacional. Revista Numismática, nº XIV, 1-4, 1946, pp. 9-32. VIEIRA, R.M.L. Uma
grande coleção de moedas do Museu Histórico Nacional? Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 27, 1995, pp. 91-111.
5
Por exemplo, na ficha correspondente aos nn. 13 e 108, da nossa SNG Brasil, há anotações de que as moedas foram adquiridas por meio de
troca com Joseph Gaillard em 1853, em Lisboa; no n. 120, diz-se que foi uma “dádiva do dr. Constantino Aimano” de Lisboa, em 1853; no
n. 158, “dádiva de Francisco Rafael da Paz Furtado de Houlé”, em Lisboa, 1861, no n. 221, vinha escrito “trazida da Rússia em 1859 pelo
Conselheiro de Estado A.B. de Koehne”, e assim por diante.
Fig. 5 – Uma página aberta da “Sylloge Nummorum Graecorum Brasil I”, na Seção II – Ásia
e Tabela 93).
consentiria afirmar nem mesmo que determinadas peças sejam mais “expressivas”, pois todas,
sem exceção, são de suma importância para os nossos conhecimentos de História social, política,
econômica e religiosa das sociedades que bateram tais moedas e delas fizeram uso.
Catálogo
- A apresentação das peças segue a ordem geográfica do volume “Sylloge Nummorum
Graecorum Brasil I”, já mencionado, e não a ordem cronológica ou tipológica das moedas.
- As moedas não são apresentadas em escala, de modo a facilitar a visão dos mais detalhados
relevos e legendas (as medidas e os pesos são fornecidos nas fichas).
- Fotos de Cleber José das Neves, Enéas de Loretto, Laetitia Le Corre, Oscar Henrique Liberal
(ordem alfabética).
Abreviaturas e símbolos:
A/ = anverso;
A.C. = antes de Cristo;
C. = cerca de;
c.l. = contorno linear;
c.p. = contorno perolado;
dir. = direita;
esq. = esquerda;
gr. = gramas;
mm. = milímetros;
n. = número;
R/ = reverso;
Reg. = registro;
séc. = século;
[ABC] = integração de lacuna da legenda;
[?] = proposta de integração fundamentada na legenda de outra peça.
Massalia, ao sul da França (atual Marselha), foi colônia dos Fócios da costa da Jônia na Ásia
Menor, assim como Hyele/Elea na costa itálica.7 Fundada em torno de 600 a.C., suas moedas
com tipos Ártemis/Leão, trazidos do Oriente grego, e inspiradas na mesma iconografia da colônia
co-irmã Hyele/Elea ; começaram a ser cunhadas por volta de 375 a.C. e perduraram até o I séc.
6
Cf. SNG ANS 387; SNG Cop. 802; SNG Del. 88 (variante de monograma); SNG Fitz. 14-16 ou 17 (variante de R/).
7
Sobre as colônias fócias e sua amoedação no Ocidente, MOREL, J.P. Archéologie phocéene et monayage phocéen: qualques elements
pour una confrontation. In: La monetazione dei Focei in Occidente. Atti dell’XI Convegno del Centro Internazionale di Studi Numismatici
(Napoli, 25-27 ottobre 1996), Roma 2002, pp. 27-42.
a.C. O étnico em Grego aparece abreviado pela metade no R/, enquanto no exergo aparecerão as
abreviaturas de nomes de oficinas, artesãos ou de magistrados secundários. O mesmo acontecerá
no A/, onde surgirão monogramas à dir. da deusa, provavelmente de magistrados epônimos.
8
Cf. SNG ANS 320; SNG Ashm. 97; SNG Cop. 425; SNG Mün. 244; CANTILENA-GIOVE-RUBINO s. 41 (prata I-A).
9
MAGALHÃES, M. M. Le monete della Campania nella collezione del Museo Storico Nazionale di Rio de Janeiro. Oebalus. Studi sulla
Campania nell’Antichità, n. 2, 2007, pp. 7-47.
10
Nome do rio que escorria nas imediações do centro urbano de Neapolis, identificado com Acheloos.
11
Cf. SNG ANS 567-578; SNG Ashm. 166-169; SNG Cop. 576; SNG Del. 176; SNG Fitz. 197-202; SNG Mün. 394-401; RUTTER p. 180.
IV; CANTILENA 150-151; HNI 619.
12
PAGANO, M. Considerazioni sulle monete in area campano-sannitica: Phisteli, i Fenserni, Hyria-Irnum. In: Campani. Contributi alla
conoscenza della storia, archeologia, numismatica e vita quitodiana dei popoli dell’Italia, vol. II, Napoli 2010. p. 89-100.
13
MAGALHÃES, M. M. Le monete della Campania nella collezione del Museo Storico Nazionale di Rio de Janeiro... Op. cit. pp. 7-47.
14
SNG ANS 1220-1224; SNG Ashm. 393-394; SNG Cop. 930; SNG Del. 245; SNG Mün. 694; VLASTO-RAVEL 904-906; HNI 1040.
15
Sobre a história da colônia e o período, MAGALHÃES, M. M. Taras/Tarentum: os tipos “Cavaleiro/Herói sobre Delfim” nas moedas do
Museu Histórico Nacional. Boletim da Sociedade Numismática Brasileira, n. 63, 2010, pp. 32-50.
SNG ANS 828-844; SNG Ashm. 842, 844-846; SNG Cop. 1388; SNG Del. 360; SNG Fitz. 569-572; SNG Mil. 326; SNG Mün. 1154;
16
20
SNG ANS 1012-1013; SNG Cop. 56; SNG Del. 532; SNG Mün. 82-83.
21
SNG ANS 1211-1217; SNG Cop. 160; SNG Del. 534; SNG Evel. 456-457; SNG Mün. 394-399.
R/ KAMAPINAION, dos lados; Athena com elmo ático, em pé à esq., apoiando-se em lança;
a seus pés, escudo; atrás, égide com serpentes.
C. 460-430 a.C.
Camarina foi subcolônia de Syracusae (estabelecida por Archias de Corinthus), fundada em
599-598 a.C., e este exemplar pertence a seu primeiro período de cunhagem, que se caracteriza pelo
emprego da unidade ponderal chamada litra, peso tipicamente magno-grego e siciliota, equivalente
a 1/5 da dracma ateniense (= gr. 4,37)22, ou seja, exatamente 0,87 gramas. Vemos aqui um exemplo
da leveza e da delicadeza da cunhagem de uma Nike (Vitória) em voo com cisne (dedicado a
Apollon) no A/, sincretismo entre Nike e a ninfa Kamarina, epônima desta fundação colonial. No
R/, é observamos a figura que parece retratar uma estátua da principal divindade citadina, Athena
in armis (lança, escudo, égide com serpentes) e elmo atiço cristado, tendo ao redor o étnico em
Grego por extenso.
dentre os quais se destaca os tipos Cavaleiro sobre quadriga coroada por Vitória (Nike) em voo no
A/, enquanto no R/ aparece a cabeça da ninfa Arethusa, circundada por delfins, iconografia que será
a mais significativa de sua produção.25 A fonte homônima, que surgia na sua ilha de Ortygia, seria
a expressão da própria divindade, assim transformada por Ártemis para fugir à perseguição do rio
Alpheus de Olympia, que por ela se apaixonara (segundo uma das versões). A riqueza de detalhes
e a beleza dos tipos comprovam a perícia dos artistas e das oficinas gregas ou siciliotas locais. O
perfil e o penteado da figura feminina de reverso, típico das ninfas retratadas neste período em outros
centros gregos, bem como o S do étnico (por extenso em Grego), nos fornecem a datação da peça.
deusa grega Persephone (filha de Deméter e esposa de Hades) e a fenícia (e depois púnica) Tanit,
deusa lunar protetora da cidade de Carthago, aqui coroada por espigas e circundada por delfins.
Outros estudiosos28 querem ver na figura feminina uma inspiração da ninfa Arethusa siracusana,
mostrada na ficha anterior (Fig. 13 a-b), tendo ainda em vista a graciosidade da técnica empregada
pela oficina siciliota. Outras características iconográficas frequentes nas moedas cartaginesas são
incontestavelmente o cavalo e a palmeira com frutos29, tão significativos para estes povos.
32
SNG Cop. 517; SNG Del. 1535-1539; SNG Hart-Black. 814-816; SNG Leip. 914; SNG Manc. 1000; SNG Mün. 562; SEAR GC 2600.
33
LAGO, L.A.C. A Moeda Metálica em perspectiva histórica: notas em torno de uma exposição. 1ª Parte: de cerca de 600 a.C. ao Séc. XV
d.C. Texto para Discussão n. 481. Rio de Janeiro 2004., p. 13.
34
KRAAY, C.M. Archaic and Classical Greek Coins... Op. cit. p. 44.
35
SNG Aul. 1829-1834; SNG Keck 211. Todas as outras referências apresentam variantes de nomes de magistrados: SNG Cop. 214-239;
SNG Del. 2598-2599; SNG Hart-Black. 971; SNG Manc. 1205; GROSE-McCLEAN 8067-8077; FORRER-WEBER 5838-5841; SEAR
GC 4371-4373.
36
ARSLAN, E. La numismatica. In: CRACCO RUGGINI, L. (a cura di). Storia antica. Come leggere le fonti. Bologna, 1996. pp. 245-299.
LAGO, L.A.C. A Moeda Metálica em perspectiva histórica... Op. cit. p. 12.
37
KRAAY, C.M. Archaic and Classical Greek Coins... Op. cit. p. 256.
Fig. 18 a-b: Sylloge n. 1272 – ASIA MINOR – LYDIA – Sardis (AR. Meio Stater ou Siglos).
AR. Meio Stater ou Siglos; mm. 11,4-17,6; gr. 5,20. Reg. 1924.1293.1.38
A/ Protome de leão à esq. e de touro à dir., afrontados.
R/ Punção dividida em dois quadrados.
Metade do VI séc. a.C. – época de Croesus (561-545 a.C.) ou primeiros reis persas.
Esta moeda, ainda praticamente um glóbulo ovalado, é um dos mais antigos exemplares de
nossa coleção, e provém do principado de Sardis na região chamada Lydia, sempre na costa
microasiática. Muito provavelmente foi cunhada entre 561-545 a.C., sob o reinado de Croesus
(ou Kroisos)39, cuja riqueza era proverbial. No A/ vemos o leão e o touro afrontados, símbolos de
poder, mas que também podem ser considerados elementos figurativos míticos na Ásia Menor,
onde o touro e o leão, embora rivais, também sejam complementares no céu, simbolizando Sol e
Lua. Por outro lado, a dupla leão-touro pode ser uma alusão à liga natural denominada electrum e
à sua separação em dois metais: ouro (leão, solar) e prata (touro, lunar)40, fartamente encontrada
nos leitos dos rios regionais. No R/, encontramos ainda a técnica incusa (baixo relevo), ou seja,
um encavo profundo, dividido em dois quadrados irregulares, resultado da fixação da peça à
punção.41 De qualquer modo a análise técnica e estilística de tais peças cunhadas sob Croesus,
resultou na conclusão de que foram todas confeccionadas por uma única casa da moeda.
38
SNG Aar. 798; SNG Cop. 456; SNG Del. 2795 (démi-créseide); SNG Manc. 1288; GROSE-McCLEAN 8637-8639; FORRER-WEBER
6774 (Babylonic standard); CARRADICE-PRICE Pl. 1, 15; HOWGEGO 28; LE RIDER Pl. V, 7 e 9; SEAR GC 3420.
LAGO, L.A.C. A coleção do Museu Histórico Nacional e a História da Moeda Metálica: as seções grega e provincial romana’. In:
39
42
SNG Cop. 44 (triobol); SNG Del. 3051 (triobole); Sear GC 7759 (hemidrachm); SVORONOS pr. VIII, 17.
43
MØRKHOM, O. Early Hellenistic Coinage. From the Accession of Alexander to the Peace of Apamea (336-188 b.C.)... Op. cit. p. 63-67
e 188 e fig. 101.
44
Id. Ibid. p. 63.
45
SNG Cop. 523-524; MP-MANN 562-566 (Numidia); ALEXANDROPOULOS 29 (cunhada em Utica); SEAR GC 6607.
46
ASINS-ALONSO-MORÁN-MIÑON, sub voce “denario”.
47
DION CASSIO, História de Roma, XLI, 41.3-5.
Agradeço a presença das sras e srs que comparecem a este seminário, interessados em
colecionismo. Fui encarregado de abordar o tema “O cartão-postal antigo: do nascimento até
tornar-se importante como registro histórico”, o que farei de forma resumida, pois o tema é muito
vasto e extrapola o tempo que me foi alocado.
O conceito de cartão-postal antigo refere-se a cartões-postais editados até a década de 1930.
O cartão-postal nasceu em 1º de outubro de 1869, sancionado pelas autoridades postais do
Império Austro-Húngaro, baseado na ideia do dr. Emanuel Hermann, com as medidas de 85x122mm,
*
Engenheiro civil, atualmente dedica-se às atividades ligadas à preservação da memória, tais como a administração do seu acervo de livros e
revistas tendo em foco a história do Brasil e, em particular, a da cidade do Rio de Janeiro. Exerce na Acarj - Associação de Cartofilia do Rio
de Janeiro, o cargo de Vice-Presidente. É autor de Estampas Eucalol, um registro de toda a coleção das famosas estampas que foram alvo de
intenso colecionismo durante as décadas de 1930 a 1960; A propaganda no Brasil através do cartão-postal, um levantamento repleto de raros
exemplares; Mercados no Rio de Janeiro: 1834 – 1962, em co-autoria com Sergio A. Fridman, sobre a história do abastecimento de gêneros
alimentícios na cidade do Rio de Janeiro e em co-autoria com Alberto Cohen, Rio de Janeiro – O cotidiano carioca no início do século XX
e A Elite Carioca e os fatos mundanos no Rio de Janeiro: 1920 - 1945.
cartões-postais.
A emissão do cartão-postal era monopólio governamental e sua circulação restrita ao país
emissor. Só no Congresso e Tratado Internacional Postal, ocorrido em 1º de julho de 1875, foi
estabelecida a internacionalização do cartão-postal, sendo autorizada a sua circulação entre os
países membros da União Postal Geral, que em 1878 teve seu nome alterado para União Postal
Universal - UPU.
O Brasil, que tão rapidamente havia implantado o selo, tendo sido o segundo país do mundo a
adotá-lo, em 1843, demorou 11 (onze) anos para instituir o cartão-postal, o que veio a ocorrer em
1880, editando cartões-postais com os valores de 20, 50 e 80 réis.
A partir de 1872, foram surgindo em diferentes países alterações na legislação permitindo a
circulação de cartões-postais editados por empresas particulares, o que ocorreu no Brasil em 1899.
A evolução das técnicas de impressão que conduziram à produção de cartões-postais fotográficos
e de cromolitografia, aliados à competitividade existente entre os editores, ocasionou um enorme
impulso na produção de cartões-postais, que surgiram com ilustrações das mais variadas, porém
estas continuavam a ocupar parcialmente o anverso, que era a face destinada à mensagem. Até 1894,
a grande maioria dos cartões-postais era monocromática, mas o atrativo da cor, possibilitado pela
cromolitografia, alargou o horizonte dos editores. São deste período os belos e coloridos cartões-
postais denominados de GRUSS AUS que significa LEMBRANÇA DE. Esta ideia, iniciada na
Alemanha e Áustria, foi copiada pelas importantes cidades do mundo, que passaram a ter seus
cartões Gruss Aus na língua do país, Souvenir de..., Ricordi de..., Lembrança de... e assim por diante.
Chamo a atenção para a exiguidade do espaço destinado no anverso para o texto, pois até então o
reverso era destinado só para o endereço
A Exposição de Paris de 1889 proporcionou enorme divulgação ao cartão-postal. A maior
atração da Exposição era a Torre Eiffel, recém-inaugurada, e a Societé de la Tour Eiffel desenvolveu
a ideia de editar cartão-postal que pudesse ser comprado e postado na própria torre. Havia duas
caixas de coleta no primeiro pavimento da torre, duas no segundo pavimento e uma no terceiro.
O desenhista e gravador Léon-Charles Libonis foi encarregado de criar o desenho que ilustrou os
cartões, que ficaram famosos e conhecidos sob o nome de “Libonis”. Outra atração era a venda na
Torre de pequenos balões com gás. O interessado preenchia o cartão-postal com o seu endereço,
colocava o selo e o prendia ao balão com um cartão contendo a mensagem: “Pede-se a quem
encontrar este cartão indicar o dia, hora e lugar, postando-o na seção dos Correios mais próxima”.
Estima-se que tenham sido vendidos, durante a Exposição, cerca de 294.000 cartões-postais.
Em novembro de 1899, a Inglaterra permitiu que as medidas do cartão-postal fossem alteradas
para 9x14mm, que seguem basicamente a proporção áurea, também chamada de número de ouro,
presente na natureza e no corpo humano. Esta proporção que arredondada a três casas decimais
tem o valor de 1.618, é denotada pela letra grega phi, em homenagem ao escultor Phideas, que
a teria utilizado para conceber o Parthenon. O umbigo divide a altura do corpo humano em dois
segmentos que estão na razão do número de ouro, e Leonardo da Vinci o utilizou no célebre desenho
O Homem de Vetrúvio.
Litografia que nos mostra um balão com cartão-postal Anverso e reverso de um cartão-postal “Libonis” que foi postado
sendo solto na Torre Eiffel. no 2º andar da Torre Eiffel em 10 de outubro de 1889.
Nos dois primeiros decênios do século XX, conhecidos como a “Idade de Ouro” do cartão-
postal, a procura de postais no Brasil acompanhou o crescente ocorrido em outros países. No
sexênio 1907/1912, segundo as estatísticas oficiais, os Correios coletaram, em todo o Brasil, 57
milhões de postais. Somente no ano de 1909, circularam cerca de 15 milhões de postais para uma
população ao redor de 20 milhões de habitantes.
1
EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Semente, 1984, p. 275
A diversidade dos assuntos que serviram de ilustração para o cartão-postal, na França, constitui
hoje uma fonte importante em pesquisas sobre o cotidiano nas primeiras décadas do século passado.
É tanta a variedade, que permite ao colecionador focar sua coleção em determinado tema. No
Brasil, não tivemos tanta diversificação. A Casa Staffa editou uma série de Petit Métiers (Pequenas
Profissões), o editor A. Ribeiro editou série com bandas de música, mas a grande maioria dos
cartões-postais aqui editados que interessam para o registro histórico são os geográficos.
A boa impressão do cartão-postal na época contrastava com a pobre qualidade de impressão
do jornal e maioria das revistas. Com exceção das fotos do Augusto Malta, muito pouco mais se
tem do Rio Antigo dos primeiros decênios do século passado, além das imagens em cartão-postal,
amparadas na evolução que ocorreu no campo da fotografia.
Estima-se que existam cerca de 9.000 cartões-postais com imagens da cidade do Rio de Janeiro
até a década de 1930, e muitas delas são únicas, só encontradas no cartão-postal.
Para encerrar, selecionei alguns cartões-postais cujas imagens nos remetem a um Rio de
Janeiro que não existe mais.
1. Introdução
O ato de colecionar realça os modos como os diversos fatos e experiências são selecionados,
reunidos, retirados de suas ocorrências temporais originais, e como eles recebem valor duradouro
em um novo arranjo. Coletar, pelo menos no ocidente, onde geralmente se pensa no tempo como
linear e irreversível, pressupõe resgatar fenômenos da decadência ou perda histórica inevitáveis. A
coleção teoricamente contém o que merece ser guardado, lembrado e entesourado. Para Huyssen1
(1997, p. 123), no mundo moderno os museus são instituições pragmáticas que colecionam,
salvam e preservam aquilo que foi lançado aos “estragos” da modernização. De acordo com Maria
Cecília Londres Fonseca2 (1997, p. 11), a formação de coleções históricas e artísticas nacionais é
uma prática característica dos Estados Modernos que através de determinados agentes, recrutados
*
O presente artigo é o resultado de minha fala no Seminário Internacional Coleções e Colecionadores: a polissemia das práticas, realizado em
2011, no Museu Histórico Nacional. Para o referido evento, organizei uma apresentação que permitisse abordar as três coleções relacionadas
à minha trajetória profissional e acadêmica. A pesquisa relacionada ao acervo do Museu Histórico da Cidade do Rio Janeiro é fruto de
minha dissertação de mestrado no Programa de Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO; a Coleção
Entomológica Costa Lima é o resultado de minha tese de doutoramento no Programa de História da Ciência da Fundação Oswaldo Cruz
– COC/FIOCRUZ e atualmente desenvolvo como pesquisador adjunto do Museu de Astronomia e Ciências Afins, a análise da Coleção de
Instrumentos Científicos do referido Museu - MAST
**
Doutor em História das Ciências pela Fundação Oswaldo Cruz/COC. Pesquisador do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST),
Professor Adjunto da Escola de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e do Programa de Pós-
Graduação em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST).
1
HUYSSEN, Andréas. Memória do Modernismo. Editora UFRJ. Rio de Janeiro. 1997.
2
FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. UFRJ/IPHAN.
Rio de Janeiro, 1997.
O desejo de criar um museu que representasse a Cidade do Rio de Janeiro, a capital da recém
criada República, surge no final do século XIX. Em 22 de abril de 1891, o Intendente Municipal
Alfredo Piragibe apresentou requerimento ao Presidente do Conselho Municipal, pedindo que se
remetessem as peças do Senado da Câmara e da Câmara Municipal para a constituição de um museu.
Durante o inicio do século XX, é possível encontrar diversas decretos e requerimentos, solicitando
que todos os objetos considerados de valor histórico para o Distrito Federal, fossem guardados em
seus respectivos departamentos para, no futuro, serem enviados para um museu. Posteriormente,
com base no Decreto n° 1641, de 13 de outubro de 1914, que em seu Art. 1º determinava:
Conservar em boa guarda, devidamente catalogada, todos os documentos históricos,
administrativos, fotografias e plantas que interessem ao estudo do território, e ainda ter
devidamente resguardadas todas as peças de numismática, livros raros e objetos de grande valia
para o estudo da história da Cidade.
3
Esta análise se encontra no ensaio “Pequena história da fotografia”. Ver BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 7. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1994. p. 100-113.
O Prefeito Antônio Prado Júnior, pelo Decreto n° 3201, de 16 de janeiro de 1930, determinou
que se providenciasse “Sobre a melhor conservação de objetos que interessam à História da
Cidade do Rio de Janeiro” e deliberou que todos os objetos existentes em outras Diretorias fossem
recolhidos pela Diretoria de Estatística e Arquivo, com funcionários designados para conservarem
e catalogarem o acervo histórico da Cidade. Mas somente em 11 de julho de 1934, através do
Decreto nº 4989 - Art. 2º, o prefeito Pedro Ernesto cria definitivamente o Museu Histórico da
Cidade:4 “A essa Diretoria [de Estatística e Arquivo] competem todos os serviços atribuídos às
ditas Diretorias, por leis, decretos e regulamentos, e mais a manutenção do Museu Histórico da
Cidade [grifo do autor], criado pelo presente Decreto”.
A partir deste momento, a Cidade passa a ter uma instituição que tem por missão “preservar
sua história”, um espaço de (re)significação de sua identidade. Ao dirigirmos nosso olhar para
este museu citadino, estamos simultaneamente analisando o processo de urbanização da cidade
do Rio de Janeiro, cidade-símbolo, que abrigou a capital do Império e a capital da República,
desempenhando o papel de “vitrine para a civilização tantas vezes intentada”.5
Essa dimensão simbólica nos remete para a possibilidade de discutirmos o Rio como o lugar
onde o processo civilizatório se desenvolveu e tomou corpo, o laboratório do Brasil, na perspectiva
da contínua invenção de uma nova civilidade. Foi exatamente por se constituir como laboratório,
que a cidade foi objeto de tantas construções e tantas destruições. Lugar onde, muitas vezes foi
necessário destruir para refazer espaços reais e simbólicos, criando vazios e possibilidades de
novas identidades.
Ao analisarmos a formação do acervo, através das transformações urbanas, passamos a ter como
objeto os vários projetos civilizatórios que atravessaram a história do país. Implica também em lidar
com a memória construída pelos agentes mais diversos, em especial o Estado Nacional, uma vez que
o próprio projeto de construção da nação tem o Rio de Janeiro como marco fundamental.
Em relação à cidade, é necessário destacar que os bens que foram retirados do espaço urbano
e foram fazer parte do acervo do museu, tiveram os seus valores estético, de uso, decorativo ou
4
Junto com o Museu Histórico da Cidade, é criado o Museu Central Escolar. Ambas as instituições funcionaram, durante muitos anos, no
mesmo prédio, até a extinção do Museu Escolar no governo Lacerda. Desde sua criação até os dias atuais, o museu passou por três sedes, para
em 1948 ser instalado, definitivamente no Parque da Cidade: 1ª sede: Paço Municipal, que foi em 1943 para a abertura da Avenida Presidente
Vargas; 2ª sede: Parque da Cidade, ocupava algumas salas do prédio principal do parque, adquirido pelo prefeito Henrique Dodsworyh para a
realização de recepções; 3ª sede - Prédio da Prefeitura na Praça Cardeal Arcoverde até seu retorno definitivo para o Parque da Cidade em 1948.
5
Segundo Sevcenko, “o projeto político-administrativo de Rodrigues Alves, tinha por objetivo modernizar e transformar a cidade do Rio
de Janeiro. Para tal concebeu um plano em três dimensões: modernização do porto, saneamento da cidade e a reforma urbana”. Além da
reforma Pereira Passos, podemos citar o desmonte do Morro do Castelo, a abertura da Presidente Vargas, a derrubada do Palácio Monroe e
a construção do metrô. SEVCENKO, Nicolau (org.) O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. In: História da Vida
Privada no Brasil, Vol. 3. Companhia das Letras. São Paulo, 1998. p. 7-48. p. 22.
Para Huyssem7, no mundo moderno os museus são instituições pragmáticas que colecionam,
salvam e preservam aquilo que foi lançado aos “estragos” da modernização. Mas, ao se fazer isso,
o passado inevitavelmente seria construído à luz do discurso do presente e a partir dos interesses
presentes. Fundamentalmente dialético, o museu serve tanto como um lugar do passado, quanto um
lugar de possíveis “ressurreições”, embora mediadas e contaminadas pelos olhos do espectador.
Dentro desta perspectiva,
[...] no mundo moderno nada escapa da lógica da musealização. Os museus parecem preencher
uma necessidade antropologicamente arraigada às condições modernas: pois é ele que permite
aos modernos negociarem e articularem uma relação com o transitório e com a morte, incluída a
nossa própria.8
Estes elementos que a nova ordem urbana descartou da vida cotidiana da cidade passaram
a compor o acervo do museu: telhas, pedras de encanamentos, bicas de fontes, placas de ruas,
letreiros, esculturas de praças, chafarizes etc, transformam-se em indícios de um outro tempo e de
uma outra concepção de espaço.11 Para Jara Casco,
[...] os espaços de memória são feitos de intensidades que não parecem estar ameaçadas,
interrompem o movimento, provocam desaceleração, convidam para uma suspensão do tempo
que avança. Os lugares de memória nas cidades podem ser vistos como hiatos na trama urbana
densa e veloz, espaços de desaceleração e convivência, contraponto das áreas em transformação,
dobras que recriam os territórios em suas multiplicidades espaciais e temporais. São lugares onde
o pensamento se depara com uma necessária hesitação enquanto anseia por encontrar soluções
novas e criativas para enfrentar os problemas da cidade. 12
Apoiados nestas questões, poderíamos dizer que os museus seriam esses lugares de memória
por excelência, pois eles coletam, preservam e expõem os elementos que estão sendo pressionados
pelo tempo. Nestes lugares, a relação com o tempo é completamente diferente. Estes elementos,
que em sua trajetória passaram a ser denominados patrimônio, possuem uma enorme sobrevida, o
que no “mundo extramuros” seria impossível.
Protegidos do “tempo e da perda”, estes objetos passam por um processo de (re)significação.
Através dos procedimentos museológicos de preservação, documentação e exposição, são
submetidos a uma nova ordem, ou seja, passam a desempenhar o papel de semióforos13, objetos
que, retirados de seu contexto e recolhidos, não pelo valor de uso, mas por seus significados,
perderam utilidade, passando a representar o invisível.
Assim como o conhecimento científico não pode refletir a vida, tampouco a restauração, a
museografia ou a divulgação mais contextualizada e didática conseguirão abolir a distância entre realidade
e representação. Toda operação científica ou pedagógica sobre o patrimônio é uma metalinguagem, não
faz falar as coisas, mas fala de e sobre elas. No entender de Alberto Cirese: “[...] para incluir a vida, o
museu deve transcendê-la, com sua própria linguagem e em sua própria dimensão, criando outra vida
com suas próprias leis, ainda que sejam homólogas e também diferentes daquelas da vida real”.14
História: a problemática dos lugares. Revista do Programa de Estudos e Pós Graduação em História. PUC, nº 10. São Paulo, 1993. p. 7-28.
11
RANGEL, Marcio Ferreira. A Formação do Acervo do Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro: Caos e Memória. Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-graduação em Memória Social e Documento da Universidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2000. p. 76.
CASCO, Ana Carmen Amorin Jara. Cartografia dos discursos de memória: uma investigação nômade sobre o patrimônio. Dissertação de
12
Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996. p. 113.
13
POMIAM, Krzysztof. Coleção. In Enciclopédia Einaudi, vol. 1 Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984. p. 51-86.
14
CIRESE, Alberto M. Ensayos sobre las cuturas subalternas. Cuadernos de la Casa Chata 24. México, 1979. p. 50.
Os museus devem tratar os objetos, os ofícios e os costumes de tal modo que, mais que exibí-
los, tornem inteligíveis as relações entre eles, proponham hipóteses sobre o que significam para as
pessoas que hoje os veem e evocam. Mesmo considerando que toda coleção é a representação de uma
determinada parcela da realidade, e neste sentido caracteriza-se como um fragmento, verificamos
que a fragmentação existente nas coleções que formaram o acervo do MHCRJ colocou-se como
um obstáculo na formulação de sua exposição permanente.
Entre as várias reformulações museográficas do museu, desejamos destacar o projeto de
Gustavo Barroso.15 Em 1944, Barroso foi convidado pelo Secretário de Educação, do então Distrito
Federal, Coronel Jonas Correia, para criar o regulamento do Museu Histórico da Cidade do Rio de
Janeiro (MHCRJ). Além de estruturar toda a parte administrativa e técnica, Barroso propõe para
a exposição permanente, uma cronologia histórica que abrangesse desde a fundação da cidade,
no século XVI, até a República no século XX.16 Esta concepção refletia o modelo museográfico
adotado no Museu Histórico Nacional (MHN). Segundo Mário Chagas:
Barroso concebeu o Museu Histórico Nacional, pelo menos nos seus primórdios, como uma
espécie de museu histórico militar brasileiro que se inspirava, entre outros, no modelo francês do
complexo Museu dos Inválidos, onde estão presentes: a sugestão de um pátio de canhões, o túmulo
de Napoleão e a invenção de tradições ancoradas em feitos heroicos, armas, uniformes militares,
bandeiras e sobejos de guerras.17
15
Nasceu em Fortaleza em 1888 e morreu no Rio de Janeiro em 1959. Fundou e dirigiu durantes anos o Museu Histórico Nacional. De
acordo com Mário de Souza Chagas (2003) “para Gustavo Barroso o Museu é um grande livro de granito aberto aos estudiosos, perpetuando
ensinamentos patrióticos, grande livro aberto da história de nosso passado, relicário precioso de objetos que nos permitem remontar a outras
épocas e que para ser lido exige imaginação e doçura”.
16
Nos chama a atenção que esta proposta realizada por Gustavo Barroso, tenha sido adotada pelo museu em sua última grande reforma, que
ocorre na década de 90 do século XX. Como não possuía em suas coleções elementos de todos os períodos históricos da cidade, optaram por
reproduções de desenhos, pinturas e fotografias de outras coleções. Esta exposição utilizou poucos objetos do acervo do museu.
17
CHAGAS, Mário de Souza. Imaginação Museal: Museu, Memória e Poder em Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. Tese
de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro, 2003. p. 89.
Carlos Chagas e outros importantes pesquisadores.18 A Coleção Costa Lima existente no IOC é
uma coleção fechada, isto é, após a morte do entomólogo, nenhum outro exemplar é adicionado
a essa coleção. Ela representa a história de vida do cientista. Lá, são encontrados os exemplares
que utilizou para os seus estudos e aqueles que serviram somente para material de comparação.
A análise da Coleção Costa Lima nos faz compreender a infraestrutura básica de suporte para
o desenvolvimento dos estudos entomológicos. A coleção é um rico e diversificado banco de
materiais (espécimes ou exemplares) preservados, associados a dados biológicos e geográficos,
ferramentas imprescindíveis para o trabalho dos taxonomistas e apoio indispensável para muitas
outras áreas do conhecimento. Os exemplares atestam a riqueza biológica das diversas regiões
de onde são oriundos, certificam a denominação para um grupo de organismos e constituem a
base de informação para análises de distribuição geográfica, diversidade morfológica, relações de
parentesco e evolução das espécies, além de guardar conceitos morfológicos e taxonômicos e a
maneira como esses conceitos estão sendo modificados no decorrer do tempo.
No processo de formação do acervo, podemos encontrar os diferentes momentos da carreira
de Costa Lima, observando a coleção como uma biografia, como um livro que contivesse o
resumo de suas pesquisas, sua metodologia de trabalho e sua rede de relações. Em sua trajetória,
é possível identificar o seu interesse pela entomologia médica, área de atuação inicial de sua
carreira, que volta a emergir no episódio da vacina contra a febre amarela, ou acompanharmos o
seu interesse crescente pelo campo da entomologia agrícola, que se transforma em sua principal
atividade. Um outro dado que nos chama a atenção é o grande número de exemplares que têm sua
origem em diferentes coletores, o que nos remete a um perfil interessante de nosso personagem:
Costa Lima era um cientista de gabinete, ou seja, não ia ao campo coletar material para a
sua coleção. Uma parte considerável de seu acervo foi obtida através das diversas Inspetorias
Agrícolas que enviavam insetos que estavam atacando plantações de diferentes partes do país.
Para estabelecer os procedimentos de combate, necessitavam da identificação exata da praga.
Podemos, ainda, citar o material obtido através de suas relações pessoais com cientistas que
eram seus contemporâneos e mantinham uma relação de proximidade: Gregório Bondar, Frei
Thomaz de Borgmeier, Adolph Hempel, Adolph Ducke, Adolpho Lutz, José Pinto da Fonseca,
Lauro Travassos, Howard etc.
18
O Departamento de Entomologia do Instituto Oswaldo Cruz perdeu todos os seus pesquisadores, cassados pela Revolução de 1964, e
todos os alunos e estagiários abandonaram o Instituto. O Departamento de Entomologia, que ocupava o 2o andar do Pavilhão Mourisco,
foi “despejado”, juntamente com a Coleção Entomológica com mais de um milhão de exemplares, para um prédio abandonado, o antigo
Hospital do Instituto Oswaldo Cruz. A mudança foi tumultuada, perderam-se várias gavetas e centenas de exemplares. Este episódio ficou
conhecido como o “Massacre de Manguinhos”. Em 1986, em uma nova mudança, a Coleção Entomológica voltou para o 2o andar do
Pavilhão Mourisco, agora ocupando várias salas, pois as antigas instalações de ferro que ocupavam toda a altura de uma das salas (três
andares) foram jogadas fora (JURBERG, J. & SANTOS, C. P. Entomol. Vect. 11 (1): 19-58, 2004).
Entre estes pesquisadores, existia uma intensa troca de material entomológico, solicitações
de identificação de exemplares, sendo necessário, em alguns casos, estabelecer comparações com
os já depositados e identificados nas coleções. A qualidade de uma coleção entomológica também
estava vinculada ao número de pesquisadores que trabalharam com seu material, descrevendo
e identificando determinadas espécies. Neste processo de construção, ao mesmo tempo em que
solicitava aos seus pares exemplares que estivessem faltando em sua coleção, enviava material
de seu acervo para ser identificado ou confirmado por determinados especialistas. Todos estes
procedimentos de solicitação e identificação, que faziam parte de seu cotidiano, podem ser
acompanhados através de sua vasta correspondência.
Ainda na análise da formação da coleção, não podemos deixar de mencionar Carlos Alberto
Campos Seabra, peça fundamental na trajetória de Costa Lima. Filho de Demócrito Seabra,
industrial do ramo de tecidos, um dos fundadores da Academia Brasileira de Ciências e amigo íntimo
de Costa Lima, Campos Seabra conviveu com Costa Lima desde criança. Este convívio o levou
a se interessar pelo universo entomológico. Ainda quando criança, no período da administração
de Carlos Chagas (1917-1934), frequentava o laboratório de Costa Lima no Instituto Oswaldo
Cruz, experiência esta que, no nosso entender, o levou a trabalhar como entomólogo por um breve
período de sua vida. Durante a Segunda Guerra Mundial, formou-se em medicina e, mesmo sem
fazer parte do quadro de funcionários, começou a trabalhar como assistente de Costa Lima.
Apesar de seu interesse pela entomologia, esta não era a sua atividade principal. Herdeiro de
uma grande fortuna, transformou-se em um executivo do ramo financeiro, tendo a entomologia
se tornado um hobby. Sua atuação junto a Costa Lima foi de suma importância para a qualidade
da coleção deste pesquisador. Como citamos anteriormente, por ser um cientista de gabinete, sua
coleção só podia ser aumentada através do material remetido por outros pesquisadores ou por
coletores contratados. Neste sentido, podemos afirmar que, em grande parte, a riqueza de sua
coleção se deve ao seu amigo e mecenas Carlos Alberto Campos Seabra, que financiava, com sua
fortuna pessoal, diversos coletores que traziam exemplares para a Coleção Costa Lima e para a sua
coleção particular.
Apesar de seu desejo e preocupação constante com o enriquecimento de sua coleção e de
seu apoio incondicional ao amigo Costa Lima, Campos Seabra também desempenhou um outro
importante papel de mecenas. Em 1952, adquiriu a Coleção Zikán, com cerca de 150 mil insetos,
oriundos principalmente do Parque Nacional de Itatiaia, enviada para o Instituto Oswaldo Cruz
com o seu auxílio e o do Conselho Nacional de Pesquisa.
Sobre o apoio de Carlos Alberto Campos Seabra à entomologia brasileira, podemos afirmar que
sua atuação como mecenas desse importante campo do saber esteve voltada para o financiamento
de diversos entomologistas e coletores profissionais. Mas a sua mais importante ação nessa área
foi a atenção dirigida a Costa Lima, personagem que desde sua infância estabeleceu uma relação
de muita proximidade com ele, permeada pela admiração que seu pai possuía pelo cientista. Um
outro ponto que merece destaque é que Campos Seabra não participou deste universo apenas
como patrocinador, mas foi membro ativo dele, realizando pesquisas no campo da entomologia e
formando, no decorrer dos anos, uma importante coleção.19
Na lógica do mecenato científico, no qual o relacionamento pessoal e o respeito mútuo têm
papel relevante, podemos compreender o apoio do banqueiro carioca à Seção de Entomologia
do IOC, onde Costa Lima desenvolvia suas pesquisas. Segundo Sanglard20, em uma relação de
mecenato, há sempre uma proximidade entre protetores e protegidos, sem que isto necessariamente
estabeleça uma relação de subordinação entre o mecenas e seu protegido. Existe, neste mecanismo,
um respeito mútuo, um compartilhamento de interesses, como podemos verificar entre Costa Lima
e Campos Seabra.
Todas estas coleções possuem, além de um patrimônio natural imensurável, um patrimônio
histórico riquíssimo para a sistemática, traduzido no que chamamos tipos. A riqueza da Coleção
Costa Lima se deve aos diversos tipos ou espécimes-tipo que a compõem. Estes são exemplares
nos quais a primeira descrição do inseto foi feita. É a peça chave de qualquer acervo, pois é a prova
concreta e conservada da existência de um inseto com determinadas características que lhe são
peculiares. Cada tipo representa o exemplar utilizado para a descrição das características daquele
grupo. O tipo, ou holótipo, por determinação do Código Internacional de Nomenclatura Zoológica,
é o exemplar que serviu de base à descrição original de uma espécie, e ao qual o nome latinizado
está perpetuamente ligado, sendo a principal fonte de consulta, sempre que pairem dúvidas sobre a
validade ou identificação da espécie. Os holótipos são considerados Patrimônio da Ciência, sob a
guarda das instituições científicas, que têm o dever de mantê-los, conservá-los e torná-los acessíveis
a todos os pesquisadores interessados.
Um outro dado de relevância na Coleção é a sua relação direta com a produção teórica de
Costa Lima. Quase todos os exemplares descridos nas suas obras estão no acervo. Somente na sua
obra Catálogo de insectos que vivem em plantas do Brasil estão mencionadas 1.749 espécies de
insetos que atacam plantas do Brasil, registrando-se os vegetais atacados e assinalada a distribuição
geográfica de cada um desses parasitos. Já em sua obra Insectos do Brasil, para descrever todos os
19
A coleção formada por Campos Seabra rapidamente tornou-se referência para todos os entomólogos do Brasil. Vários cientistas
hospedavam-se em sua casa e pesquisavam em seu acervo. Doou sua coleção para o Museu Nacional do Rio de Janeiro.
20
SANGLARD, Gisele. Entre os salões e o laboratório: filantropia, mecenato e práticas científicas no Rio de Janeiro, 1920-1940. Tese
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História das Ciências da Casa de Oswaldo Cruz: PPHC/COC/Fiocruz. Orientador: Jaime
Larry Benchimol. Rio de Janeiro, 2005. p. 77.
exemplares desta publicação, além de se apoiar em sua própria coleção, parte considerável de sua
análise foi realizada nas coleções entomológicas do Instituto Oswaldo Cruz, que foram formadas
por material que vinha sendo reunido por outros pesquisadores.
Com a destruição do meio ambiente, as coleções científicas acabaram por transformar-se em
centros de documentação de interesse mundial. Dentro desta perspectiva, as informações acumuladas
em seu interior devem ser encaradas como base para a construção de uma parcela expressiva do
conhecimento acerca da diversidade mundial. Tal situação despertou uma grande preocupação com
o acondicionamento e conservação deste patrimônio, que por sua grande importância deve estar em
condições adequadas de preservação.
A Coleção Costa Lima, formada por aproximadamente 35.000 exemplares, abrangendo todas
as ordens de insetos, constitui-se em um importante registro da existência de espécies no tempo
e espaço, é repositório dos espécimes tipo essenciais para a identificação precisa dos insetos de
interesse agrícola. Ao mesmo tempo é documento da fauna entomológica de áreas perturbadas,
empobrecidas ou em vias de desaparecimento, tornando-se indispensável nas pesquisas em
sistemática e evolução, em estudos de biodiversidade. Em suma, é um acervo insubstituível
cuja preservação não pode ser descuidada nem interrompida. Desejamos, ainda, ressaltar que,
associada às coleções científicas, existe uma ampla documentação produzida pelos pesquisadores
que as montaram e estudaram. São cadernetas de campo, correspondências, fotografias, mapas,
manuscritos, relatórios, separatas e ilustrações que constituem fontes de inestimável importância
para o estudo da história das atividades científicas relacionadas à formação desses acervos. Tanto
as coleções como a documentação a ela associada encerram informações fundamentais para o
entendimento de questões biológicas, históricas e sociais.
[...] dotar o país de uma instituição nos moldes dos museus de ciência há muito existentes no
exterior: Palais de la Découverte, de Paris; Science Museum, de Londres; o complexo museológico
do Smithsonian Institution; os museus de ciência da Índia, reunidos sob o National Council of
Science Museums e o Singapore Science Center.21
Neste mesmo ano, com a colaboração da Superintendência de Museus do Estado do Rio de Janeiro,
o Arquivo Nacional, o Programa de Engenharia Metalúrgica da COPPE/UFRJ e o Núcleo de História
da Ciência e da Tecnologia, do Departamento de História da Universidade de São Paulo, o grupo
(PMAC) realizou as seguintes atividades: exposição comemorativa do Centenário da Passagem de
Vênus (1882-1982) e a Mesa Redonda Preservação da Cultura Científica Nacional.22 Esta mesa tinha
por objetivo discutir os caminhos a serem adotados na preservação do patrimônio científico nacional,
tendo neste momento como foco o patrimônio sobre a guarda do Observatório Nacional.
No ano seguinte, em 1983, um grupo de intelectuais preocupados com a preservação “dos
marcos históricos que testemunham a vocação criadora da inteligência brasileira nos domínios da
ciência”, solicita o tombamento “[...] do sítio onde se acha localizado o Observatório Nacional,
Rio de Janeiro, assim como de todo o acervo histórico daquela tradicional instituição de pesquisa,
que inclui documentos, instrumentos e um conjunto de edificações datado do início do século”.23
Entre eles destacamos: Carlos Drummond de Andrade, Oscar Niemeyer, Franklin de Oliveira,
Nelson Werneck Sodré, Roberto Marinho, Mário Novelo, Mário Schenberg, Josué Monteiro, Plínio
Doyle, Antônio Houaiss, Francisco de Assis Barbosa, Austragésilo de Athayde, Afrânio Coutinho,
Lyra Tavares, Orígenes Lessa, Cyro dos Anjos, Carlos Chagas, Shozo Motoyama, Luis Pinguelli
Rosa, Fernanda de Camargo A. Moro e Crodowaldo Pavan.
Deve-se ressaltar que os bens que vieram a fazer parte do acervo perderam o seu valor estético,
de uso, decorativo e econômico e passaram a apresentar, valor histórico, valor de documento.
Segundo K. Pomian, qualquer conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos temporária
ou definitivamente fora do circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção especial
num local fechado preparado para esse fim, e expostos ao olhar público, pode fazer parte de uma
21
Projeto Memória da Astronomia e Ciências Afins no Brasil. Museu de Ciência: proposta de criação. Rio de Janeiro, ago. 1983. Cópia
[Arquivo MAST].
22
Participaram desta mesa: Carlos Chagas Filho (Instituto de Biofísica da UFRJ); Crodowaldo Pavan (Presidente SBPC); Fernanda de C.
Almeida Moro (Superintendência de Museus da FUNARJ); George Cerqueira Leite Zarur (Programa de Museus e Coleções Científicas do
CNPq); Lício da Silva (Departamento de Astrofísica do Observatório Nacional); Mário Schenberg (Instituto de Física da USP); Maurício
Mattos Peixoto (Presidente da Academia Brasileira de Ciências); José Leite Lopes (Físico Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas - CBPF);
Luiz Muniz Barreto (Diretor do Observatório Nacional); Ronaldo R. de Freitas Mourão (Projeto Memória do Observatório Nacional); Shozo
Motoyama (Núcleo de História da Ciência e da Tecnologia da USP) e Simão Mathias (Instituto de Química da USP).
23
Arquivo MAST, 1983.
coleção.24 Para Jean Baudrillard25, o objeto puro, privado de função ou abstraído de seu uso, toma
um estatuto estritamente subjetivo: torna-se objeto de coleção. Cessa de ser tapete, mesa, bússola,
teodolito, luneta ou sextante para se tornar objeto. O ato de colecionar realça os modos como
os diversos fatos e experiências são selecionados, reunidos, retirados de suas lógicas temporais
originais, e como eles recebem um valor duradouro num novo arranjo.26 A criação e a trajetória
do Museu de Astronomia e Ciências Afins está relacionada ao desejo/discurso de preservação de
“um patrimônio” em risco. Neste sentido o processo de criação do MAST é o resultado direto do
medo da perda.
24
POMIAM, Krzysztof. Coleção... Op. cit. p. 53.
25
BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. Editora Perspectiva, Coleção Debates. São Paulo, 1993. p. 94.
26
RANGEL, Marcio Ferreira. A Formação do Acervo do Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro... Op. cit. p. 78.
27
TEODOLITOS: Instrumento utilizado para medir ângulos horizontais e verticais; LUNETAS: Instrumento utilizado em observações
celestes; SEXTANTE: Instrumento utilizado para medir distâncias angulares. Empregado na navegação astronômica para medir a altura de
um corpo celeste. Pode ser utilizado em terra com o auxílio de um horizonte artificial.
28
Na década de 80, podemos citar a criação das seguintes instituições: Museu Dinâmico de Campinas; Espaço Ciência Viva no Rio de
Janeiro; Estação Ciência de São Paulo; Estação Ciência da Paraíba, entre outros.
[...] longe de caracterizar-se como depósito de peças antigas, expostas estaticamente, o Museu deve
buscar sempre arrojadas soluções estéticas e pedagógicas de modo a motivar o público visitante,
estimulando-o intelectualmente para participar ativamente nas demonstrações dos fenômenos
naturais básicos e dos encadeamentos do pensamento científico.29
Neste trecho podemos verificar a ênfase dada aos museus que adotavam os aspectos
“interativos” em suas exposições e a crítica às instituições museológicas denominadas tradicionais
na sua forma de comunicação. A proposta de museu efetivada optou por uma instituição de caráter
híbrido, ou seja, adotou uma linguagem expositiva de centro de ciência e o acervo ficou localizado
em uma reserva técnica visitável. Tal medida evidenciou a dificuldade da instituição em trabalhar
com este conjunto de instrumentos que esteve diretamente relacionado com os argumentos de
criação do Museu. No decorrer dos anos, em diferentes momentos de crise institucional, o acervo
de instrumentos científicos30 foi um dos elementos argumentativos de defesa da instituição.
Conclusão
O ato de colecionar realça os modos como os diversos fatos e experiências são selecionados,
reunidos, retirados de suas ocorrências temporais originais, e como eles recebem um valor
duradouro em um novo arranjo. Apesar destes tranformações ocorridas, estas coleções continuam
repletas de sinais e indícios que nos permitem elaborar mapas conceituais.
Para a confecção destes mapas, adotamos o paradigma indiciário.31 Os indícios, essas pistas
perseguidas por historiadores, museólogos, detetives, psicanalistas, podem apontar para as
particularidades. De acordo com Carlo Ginzburg, se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas
– sinais, indícios – que permitem decifrá-la. Ao aplicarmos este modelo na análise das coleções,
para compreender a formação destes acervos, podemos vislumbrar o caminho percorrido por estes
objetos e espécimes através de décadas. Neste mapeamento podemos encontrar, hábitos, costumes,
marcos de um período que agora só existe enquanto representação. É evidente que este mapa é
complexo e de difícil leitura, pois existem diversos tipos de interpretações para elementos das mais
variadas tipologias e origens.32
29
Arquivo MAST 1983.
30
Junto com o acervo de instrumentos científicos, o acervo histórico do arquivo do MAST também era apontado com uma das razões para
a permanência da instituição.
31
Paradigma indiciário é aqui entendido como um método de investigação que nos permite, através de indícios, traçar a trajetória da
formação do acervo do Museu Histórico da Cidade. Segundo Cláudia Heynemann ( 1995, p. 20), o paradigma indiciário ou semiótico é um
modelo epistemológico, surgido no século XIX
32
Para Ginzburg, essa ideia, que constitui o ponto essencial do paradigma indiciário ou semiótico, penetrou nos mais variados âmbitos
Apesar de possuir este forte laço com o nosso passado, as coleções possuem um laço de
igual intensidade com o futuro, quando consideramos as possíveis reestruturações conceituais
que podem ocasionar. No processo de construção do patrimônio33, deve-se compreender o vasto
conjunto de bens materiais e simbólicos produzidos ou utilizados ao longo do trajeto da produção
e difusão do conhecimento. Mais do que nos remeter ao passado, a preservação deste patrimônio
simultaneamente nos remete para o futuro, alimentando-nos com indícios, materiais ou não, que
nos auxiliam no estabelecimento de diretrizes para as nossas ações.
No mundo contemporâneo, além das coleções científicas se colocarem como fonte crucial de
informação para diferentes campos do saber, elas também se transformaram em herança cultural,
em testemunho de nossa história. Por maior valor intrínseco que possuam os objetos de uma
coleção, estes só passam a adquirir status e expressão de herança cultural, depois de estudados e
tornados acessíveis à coletividade. Foi com este olhar que estruturei este artigo, considerando estas
coleções patrimônio cultural, testemunhos da expanção da sociedade brasileira em seu território.
cognoscitivos, modelando profundamente as ciências humanas. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história.
Companhia das Letras. São Paulo, 1989. p. 177.
33
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Unesp, 2001. p. 11.
Integrantes dos chamados bens materiais de valor cultural e histórico em nossa sociedade,
os documentos fotográficos considerados de valor permanente vêm constituindo conjuntos
documentais consideráveis nas instituições de guarda de acervos. Arquivos, museus, bibliotecas e
centros de documentação possuem fotografias em seus acervos e sobre elas aplicam suas teorias e
métodos de tratamento visando ao seu amplo acesso pelo público. É sobre esse tipo de registro, sua
constituição como “documento de valor permanente” e sua apropriação como item de tratamento
técnico por cada área profissional envolvida com ele, que incide o foco desse artigo.
Os documentos fotográficos estão presentes nas várias instituições de guarda, não pertencendo
a nenhuma delas por alguma característica que lhes seria intrínseca. Não são documentos
tipicamente arquivísticos, embora integrem arquivos de qualquer tipo a partir do aparecimento e
difusão da fotografia, ainda no século XIX; não são itens característicos de bibliotecas, embora em
sua origem tenham sido depositados nessas instituições como outras formas de representação visual
(como estampas, por exemplo); não são objetos específicos da museologia, embora guardem com
ela estreita vinculação desde os primeiros processos fotográficos cujo resultado era a constituição
de verdadeiras imagens-objetos, como os daguerreótipos, e também pela produção de coleções
etnográficas constituídas a partir do farto uso da fotografia pelos estudos antropológicos, ainda no
séc. XIX. Isso nos leva a concluir que não é o tipo documental nem o suporte dos responsáveis por
determinarem sua condição de bem patrimonial de um tipo de instituição específica, mas, como bem
marca Bellotto,1 é a função pela qual o documento é criado e seu próprio destino de armazenamento
os elementos que ajudam a definir seu lugar nesses vários espaços e, consequentemente, o enfoque
e tipo de tratamento que lhes é conferido.
*
Professora do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal Fluminense.
1
BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 36.
2
FRAIZ, Priscila Moraes Varella. Coleções em arquivos, museus e bibliotecas: uma abordagem arquivística. Tese (doutorado). Programa de
Pós-graduação em História Social. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. P. 13. 2005.
autorreferentes, imagens de “alguma coisa”, sem conexão clara com a entidade produtora e
responsável pela existência do conjunto, não sendo percebidas enquanto portadoras de um vínculo
arquivístico3, que as remetem a outros documentos e, em última instância, as ligam ao próprio titular
do arquivo (pessoa física ou jurídica), o responsável pela produção e acumulação da documentação.
Essa visão fica evidente quando verificamos o predomínio da regra metodológica de separar os
documentos iconográficos do restante do acervo (composto também por documentos manuscritos,
datilografados, impressos, etc) para fins de tratamento técnico-específico. Esta regra, que tem
justificativa do ponto de vista da aplicação de procedimentos de conservação diferenciados, estende-
se à própria organização do material iconográfico, que recebe arranjo e descrição independentes
dos aplicados ao restante do arquivo, ocasionando uma perda dos significados daquelas imagens no
contexto da produção arquivística do conjunto. A busca pelo conhecimento desse contexto deveria
ser o foco principal do trabalho em arquivos, independente da espécie documental que se tenha em
mãos. Sublinhamos a definição de Fraiz sobre o contexto de produção documental e as vantagens
de ser entendido e preservado como informação sobre o conjunto documental:
O contexto de produção [dos documentos] deve levar em conta o momento de seu aparecimento/
surgimento, as finalidades pelas quais foram criados como prova e evidência de atos e ações, e o
processo de sua transformação de um valor utilitário-originário para um valor utilitário-posterior –
histórico, cultural, social ou mesmo econômico (valor de mercado).4
Podemos apontar pelo menos duas visões em relação às imagens fotográficas que colaboram
para essa situação: a crença de que as imagens são fundamentalmente obras artísticas ou criações
pessoais, de um lado, e o caráter de registro objetivo socialmente atribuído à imagem obtida pelo
dispositivo fotográfico, devido à capacidade que tem de registrar com alto grau de semelhança a
aparência das coisas e de estar conectado a esse referente pela natureza indicial desse tipo de signo
visual.5 Acrescida a essas visões socialmente construídas e compartilhadas, soma-se a hegemonia
da comunicação verbal que, culturalmente, marcou nossa sociedade. Os documentos textuais são os
3
O conceito de vínculo arquivístico (no original, archival bond), é muito caro à teoria clássica arquivística. Significa que os arquivos são
necessariamente compostos por documentos e suas complexas relações. Por essa razão, esse vínculo torna-se componente essencial do
arquivo. Ele é a relação que liga cada documento do arquivo ao documento antecedente e subsequente, bem como a todos que tiveram
participação numa mesma atividade. O vínculo é originário (nasce com o documento), necessário (presente em cada um deles) e determinado
(caracterizado pela finalidade do arquivo). Ver a esse respeito: MACNEIL, Heather. Creating and maintaining trustworthy records in
eletronic systems: archival diplomatic methods. In: Trusting records: legal, historical and diplomatic perspectives. Dordrecht/Boston/
London: Kluwer Academic Publishers, 2000, p. 86-112. (The Archivist’s Library, 1).
4
FRAIZ, Priscila Moraes Varella. Coleções em arquivos, museus e bibliotecas: uma abordagem arquivística... Op. cit. p. 13.
5
Sobre a natureza indicial do signo fotográfico, conferir DUBOIS, Philipe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1994.
6
Um trabalho seminal que discute a pertinência da aplicação da crítica diplomática aos documentos contemporâneos encontra-se em
DURANTI, Luciana. Diplomática: usos nuevos para una antigua ciencia. Carmona: S&C, 1996.
tipo de “escritura” (pela ótica e pela química), sobre um suporte (papel, filme, outros), que
veicula um registro, uma prova (no sentido, sobretudo, de uma ação documental e não de uma
prova factual). No ambiente dos arquivos, pode guardar estreitas relações de significação com
todo o conjunto a ela associado por origem.7
Contudo, por não compartilham dos mesmos elementos de forma documental presentes nos
documentos textuais, a autenticidade dos documentos fotográficos em arquivos só pode ser melhor
verificada quando associada a seu contexto funcional (de produção) e não mais à supervalorização
de seu conteúdo informativo. Para construir uma abordagem teórico-metodológica da fotografia
como documento de arquivo, é necessário deslocar a questão sobre se a foto cumpre requisitos
formais que a dotaria do caráter de documento tradicional de arquivo em direção à problematização
das práticas de produção e acumulação desses registros nas diversas áreas de atividade humana.
Imagens são produzidas em formas documentais específicas que, dependendo do contexto
de produção, apontam para significados que ajudam a entender a finalidade de sua existência
como documento. Só este aspecto é capaz de dotar a imagem de seu caráter de documento de um
arquivo. Só o contexto de produção é capaz de restituir ou evidenciar os vínculos que a imagem
possui com o resto da documentação do qual faz parte e, o mais importante, os vínculos que
compartilha com a entidade criadora do arquivo. Segundo Schwartz, fotografias, ou mesmo filmes,
não são feitos isoladamente, sem conexão com políticas governamentais, ideologias corporativas,
culturas institucionais. Embora possam veicular conteúdos os mais diversificados, os documentos
imagéticos de arquivo são criados por uma vontade, para um objetivo, por meio da transmissão
de uma mensagem, visando alcançar um público ou destinatário, assim como qualquer documento
textual mais tradicional8. O tratamento isolado não ajuda à compreensão de seu valor probatório
como documento, na medida em que foca preferencialmente no seu valor informacional – o
fato visual. A dupla articulação desses valores – probatório e informacional – é que transforma
imagens descontextualizadas em documentos de arquivo. Uma organização sensível aos aspectos
de contexto de produção somada a uma identificação dos conteúdos das imagens assegura um
tratamento arquivístico de qualidade aos documentos fotográficos. Fora desse quadro, tem-se um
tratamento de coleção, onde a organização física segue o padrão que o conteúdo das imagens dita,
quase sempre em séries temáticas.
7
Uma abordagem diplomática em torno dos documentos fotográficos pode ser encontrada em SCHWARTZ, Joan M. We make our tools and
our tools make us: lessons from photographs for the practice, politics and poetics of Diplomatics. Archivaria. The Journal of the Association
of Canadian Archivists, n. 40, p. 40-74, fall 1995.
8
SCHWARTZ, Joan M. We make our tools and our tools make us: lessons from photographs for the practice, politics and poetics of
Diplomatics… Op. cit. p. 42.
9
Denomina-se fundo de arquivo o conjunto de documentos de uma mesma proveniência. Arquivo Nacional (Brasil). Dicionário brasileiro
de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
10
FRAIZ, Priscila Moraes Varella. Coleções em arquivos, museus e bibliotecas: uma abordagem arquivística... Op. cit. p. 20.
reunião de itens a partir de critérios diversos, embasados nos atributos desses itens (gênero,
natureza, compartilhando uma característica em comum, etc), na forma com que foram reunidos
(seletiva, arbitrária, aleatória, organizada), nas finalidades de sua formação (por instrução, por
prazer, por utilidade, por gosto, para estudos, interesses diversos – artístico, histórico, estético,
etc). De qualquer forma, nos parece que, em oposição a um fundo de arquivo, as coleções
adquirem a conotação muito mais de testemunho ou registro ou referência de um passado
ou de um presente do que a de terem sido criados primeiramente como instrumento de uma
ação de documentar – seja um evento institucional, seja uma reunião familiar. Muitas vezes
essas configurações são difíceis de serem percebidas. Por isso mesmo vale o aporte teórico e o
investimento metodológico em relação a esse assunto, principalmente para a arquivística.
Vale observar que coleções também são construídas por uma vontade de colecionamento
por parte de um indivíduo, um grupo, uma instituição. Nesse sentido, as coleções, formações
documentais diferentes dos arquivos, também possuem seus contextos próprios de produção.
Como a natureza dessas formações documentais é bem distinta, os contextos de formação também
o são, e as informações provenientes do levantamento desses contextos têm propósitos distintos
para se compreender um arquivo ou uma coleção de documentos. Se defendemos a necessidade
de haver um investimento na pesquisa sobre o contexto de produção de documentos fotográficos
em arquivos, sublinhamos que também é importante a presença desse movimento em direção às
inúmeras coleções fotográficas que restam depositadas nas várias instituições de guarda de acervos,
muitas das quais não apresentam nenhuma informação mais substancial sobre a sua origem. A esse
respeito, ver o interessante trabalho de Carvalho e Lima.11
Finalmente, chamamos a atenção para um aspecto poucas vezes debatido: pensar metodologias
adequadas para o trabalho com documentos fotográficos do passado é forma de procurar dar
ao trabalho com esse tipo de documentação uma consistência que se refletirá nos acervos e na
qualidade da informação extraída deles e, consequentemente, nos resultados das pesquisas nas
quais esses documentos serão usados. Cabe aos que lidam com a organização desses materiais
nas diversas instituições terem a consciência de que esse trabalho – o de organizar documentos
antigos, apartados das suas funções originais e dispersos pelo tempo, longe de ser objetivo ou
apenas técnico, é, ao contrário, instância mediadora entre, de um a lado, registros do passado – às
vezes caoticamente acumulados – e, de outro, as “fontes” disponibilizadas para a pesquisa, que
apresentam lógica e produzem sentido na forma como são tratadas.
11
CARVALHO, Vânia Carneiro de; LIMA, Solange Ferraz de. Fotografias como objeto de coleção e de conhecimento. Anais do Museu
Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 32, 2000, p. 15-34.
Ítalo Calvino, em artigo intitulado de “Coleção de areia”, descreve-nos uma estranha coleção:
a de pequenos frascos nos quais a sua autora guarda amostras de areia dos diversos lugares por
onde viajou ao redor do mundo. Nestes vidrinhos encontramos, narra o escritor, “a areia cinzenta
do Balaton, a areia alvíssima do golfo do Sião, a vermelha que o curso do Gâmbia deposita pelo
Senegal abaixo”1, etc.
Esta coleção, porém, é apenas uma da exposição “de coleções estranhas” que Calvino
havia visto, em Paris, e onde encontrou, também, “coleções de chocalhos de vacas, de jogos
de tômbola, de tampas de garrafa, de apitos de terracota, de tíquetes ferroviários, de piões, de
invólucros de rolos de papel higiênico”2, de máscaras antigas (onde ressalta as máscaras contra
gases), entre outras.
Mas, mesmo compondo, segundo o próprio Calvino, a vitrine “menos chamativa”, foi aquela
coleção que mais lhe chamou a atenção sendo, para ele, “a mais misteriosa, a que parecia ter mais
coisas a dizer, mesmo através do opaco silêncio aprisionado no vidro das ampolas”.3
E Calvino se indaga porque isto teria lhe atraído,
*
Arquiteto e Mestre em História Social pela UFJF. Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA. Professor do Departamento de História
da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Presidente do Conselho Municipal de Cultura de Juiz de Fora, Membro suplente da área do
Patrimônio Material do Conselho Nacional de Políticas Culturais (CNPC), Membro do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio
Cultural de Juiz de Fora (COMPPAC) e Presidente do IAB-JF.
1
CALVINO, Ítalo. Coleção de areia. In: _____. Coleção de areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 11.
2
Id. Ibid. p. 11.
3
Id. Ibid. p. 11.
Tem-se a impressão de que essa amostragem da Waste Land universal esteja para nos revelar alguma
coisa importante: uma descrição do mundo? Um diário secreto do colecionador? Ou um oráculo
sobre mim, que estou a escrutar nessas ampulhetas imóveis minha hora de chegada?4
Nos deteremos, por ora, nesta última imagem, a da ampulheta. Sobre ela já falava Violette
Morin, em seu fundamental artigo sobre “O objeto biográfico”. Neste texto, de 1968, Violette
aborda dois tipos de objetos, os cosmocêntricos, universais, e aqueles biocêntricos, biográficos,
particulares, que envelhecem com a gente. Além disso, fala-nos como, com a globalização, objetos
que eram particulares, pertencentes a uma cultura específica ou a um determinado período histórico,
se universalizam. Como o que acontece, por exemplo, com as ampulhetas “esses formosos objetos,
agora inúteis. [Que] Estão por todos os lados, de todos os tamanhos e cores”.5 Objetos que formam,
inclusive, coleções. Pois bem, embora presentes em frascos que não possuem, certamente, a forma
típica de uma ampulheta é nelas que Calvino pensa quando os vê. Frascos de vidro, com areia
dentro e, mais importante, diversos tipos de areia, com diversas cores, texturas e formatos que
dizem respeito a uma diversidade de mundos visitados por sua colecionadora que, com sua coleta,
torna mais pessoal as suas lembranças, como se pudesse, com isso, trazer consigo um pouco destes
lugares que habitam a sua memória.
Mas se Calvino se fascina com esta coleção em particular, ela, e todas as outras, também
trazem para ele o sentimento de distanciamento. Sentimento próprio de quem observa as coleções
(pelo menos aquelas que não foram organizadas por ele) e para quem, no caso em questão, esse
“florilégio de areias” aparecia como “um cemitério de paisagens reduzidas a deserto, de desertos
sobre os quais não sopra mais o vento”.6 Mas distanciamento que, diz o escritor italiano, é próprio
da autora da coleção, pois,
[...] quem teve a constância de levar adiante por anos essa coleção sabia o que estava fazendo,
sabia aonde queria chegar: talvez justamente distanciar de si o barulho das sensações deformantes
e agressivas, o vento confuso do vivido, e ter afinal para si a substância arenosa de todas as coisas,
tocar a estrutura silicosa da existência.7
Pois as coleções colocam os objetos distantes de suas funções originais embora indicando-nos,
esquematicamente, quais seriam estas. Perdem a sua “memória inata” e são instalados em locais de
4
Id. Ibid. p. 12
5
MORIN, Violette. L’objet biographique. Communications, 13, 1969, pp. 131-139. Disponível em: <http://www.persee.fr/web/revues/
home/prescript/article/comm_0588-8018_1969_num_13_1_1189> Acesso em: 20 de ago. 2012.
6
Id. Ibid. p. 15
7
Id. Ibid.
celebração de alguma história. As coleções tornam-se efetivamente “lugares de memória” porque são
criadas, seguindo o raciocínio desenvolvido por Pierre Nora, através de uma operação histórica. Ou como
diz Nora no início do seu incômodo texto “Entre Memória e História: a problemática dos lugares”:
O arrancar do que ainda sobrou de vivido no calor da tradição, no mutismo do costume, na
repetição do ancestral, sob o impulso de um sentimento histórico profundo. A ascensão
à consciência de si mesmo sob o signo do terminado, o fim de alguma coisa desde sempre
começada. Fala-se tanto da memória porque ela não existe mais. [...] Há locais da memória
porque não há mais meios da memória.8
A preocupação com a memória, com a sua conservação, com a preservação daqueles meios de
expressão material e imaterial que a consolidam só se pode dar, portanto, em uma sociedade que
tem a sensação de a ver escapar definitivamente. Só uma sociedade como esta cria os “lugares da
memória”, ou seja, a abriga em locais específicos para ser sacralizada, como as citadas coleções.
Pois a memória e a história, afirma Nora,
[...] longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõe uma à outra. A memória é a
vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta
à dialética da lembrança e do esquecimento [...]. A história é a reconstrução sempre problemática
e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no
eterno presente.9
Estas afirmações de Nora são, por sua vez, um desdobramento daquilo que Maurice Halbwachs
já afirmava na década de 1940, ou seja, que “a história começa somente no ponto onde acaba a
tradição, momento em que se apaga ou decompõe a memória social”.10
Ou ainda, de forma mais dura: “É que a história, com efeito, assemelha-se a um cemitério onde
o espaço é medido e onde é preciso, a cada instante, achar lugar para novas sepulturas”.11
Esta imagem de Halbwachs nos remete àquela de Calvino, para quem a coleção de areia
aparece como um “cemitério de paisagens”. A história, também, assemelha-se a uma coleção ou a
um conjunto de coleções.
Este distanciamento, sentido por Calvino, em relação aos componentes de uma coleção é, pois,
responsabilidade da operação histórica que retira o objeto do seu contexto usual para colocá-lo em
um esquema histórico-didático.
8
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, n. 10, dez. 1981, p. 7.
9
Id. Ibid. p. 9.
10
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Centauro, 2004, p. 85.
11
Id. Ibid. p. 59.
Esta mudança de condição já havia sido percebida por Benjamin em seus manuscritos.
Diz ele:
É decisivo na arte de colecionar que o objeto seja desligado de todas as suas funções primitivas,
a fim de travar a relação mais íntima que se pode imaginar com aquilo que lhe é semelhante. Esta
relação é diametralmente oposta à utilidade e situa-se sob a categoria singular da completude. O
que é esta completude. É uma grandiosa tentativa de superar o caráter totalmente irracional de sua
mera existência através da integração em um sistema histórico novo, criado especialmente para este
fim: a coleção.12
Em outra parte deste seu texto, Benjamin observa o que move o trabalho do colecionador:
Talvez o motivo mais recôndito do colecionador possa ser circunscrito da seguinte forma: ele
empreende a luta contra a dispersão. O grande colecionador é tocado bem na origem pela confusão,
pela dispersão em que se encontram as coisas no mundo. [...] O colecionador [...] reúne as coisas
que são afins; consegue, deste modo, informar a respeito das coisas através de suas afinidades ou
de sua sucessão no tempo.13
Esta imagem do colecionador faz-nos voltar, mais uma vez, a uma outra imagem benjaminiana,
aquela do Anjo da História, personagem principal do nono aforismo do seu texto “Sobre o conceito
de História”.
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-
se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas
abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós
vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente
ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar
os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que
ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele
vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos
de progresso.14
O colecionador tenta realizar, de certa forma, esta operação que o Anjo da História não consegue.
Operação presente não só nas pequenas coleções individuais, mas também, em escalas bem maiores,
12
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte/São Paulo: UFMG/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 239.
13
Id. Ibid. p. 245.
14
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In:_____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994., p. 226.
na montagem dos acervos destas instituições públicas características da Modernidade15 que são os
museus, “lugares de memória” e de reconstruções históricas por definição. Instituições onde este
“distanciamento” dos objetos não se dá, muitas vezes, pela mão de um único colecionador, mas
pelo próprio processo histórico que provocou o aparecimento das mesmas, processo histórico este
que assume essa função para si.
Tal questão, da necessidade política da criação de coleções e/ou da localização e de um
gerenciamento institucional destas é suscitada, de forma radical, durante a Revolução Francesa
quando, como relata Choay e Brefe, se torna necessário se deter no debate da preservação de todos
aqueles bens culturais legados pelo Antigo Regime. A solução apontada, no que concerne aos bens
culturais móveis, foi exatamente a criação de museus. Diz Brefe:
Num mundo que rompe com a antiga ordem da sociedade – expressando essa ruptura através de
uma nova forma de conceber o tempo – o destino dos bens herdados do Antigo Regime, sejam
eles da igreja, dos emigrados ou da monarquia, põe-se como problema central, sobretudo porque
o imaginário ao qual eles remetem é visto como uma afronta direta ao novo contexto social e ao
‘cidadão regenerado’. Desta forma, as medidas e ‘desmedidas’ tomadas em relação a este patrimônio
refletem essencialmente as dúvidas e dificuldades em gerir um conjunto de obras e de monumentos
que perderam suas antigas funções e suas relações com o antigo universo político e social.16
Para se tomar conhecimento e gerenciar estes objetos que, através do próprio processo histórico
“perderam suas antigas funções”, o governo revolucionário francês propõe a Instruction sur la
manière d’inventorier et de conserver, dans toute l’éntendue de la République, tous les objets
qui peuvent servir aux arts, aux sciences et à l’enseignement, cujo principal redator é o médico e
cientista “especialista em anatomia do cérebro e um dos criadores da anatomia comparada”, Félix
Vicq d’Azyr, que, segundo Choay, “transpôs para o domínio dos monumentos históricos tanto a
terminologia como os métodos descritivo e taxionômico que o celebrizaram em sua disciplina”.17
Este inventário diz, Brefe, torna-se um efetivo “programa político completo quanto à gestão dos bens
15
Modernidade aqui entendida, “como acontecimento histórico que se inicia em meados do século XVIII e que consiste em ‘uma das
dimensões características e essenciais da prática burguesa de efetivação do seu projeto político-social’” In: OLENDER, Marcos. Ornamento,
ponto e nó: da urdidura pantaleônica às tramas arquitetônicas de Raphael Arcuri. Juiz de Fora: EDUFJF e FUNALFA, 2011, p. 19. E a
citação presente na citada transcrição é de: OLENDER, Marcos. No Livro do Futuro: das primeiras tentativas de exposições industriais
no Império do Brasil no século XIX à sua primeira participação em uma exposição universal e internacional: Londres, 1862. Dissertação
(mestrado) – IFCS-UFRJ, Rio de Janeiro, 1992, pp. 69 e70.
16
BREFE, Ana Cláudia Fonseca. Os primórdios do museu: da elaboração conceitual à instituição pública. Projeto História, São Paulo, n.17,
nov.1998, p.305.
17
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade/Editora UNESP, 2001, p. 115.
culturais”18, programa este de finalidade pedagógica que dá a estes bens “uma nova abrangência”,
bens estes entendidos, pelo próprio documento, como “lições do passado, fortemente impressas”
que, através da sua identificação, “possam ser recolhidas pelo nosso século que saberá transmiti-
las, com as páginas novas, para a lembrança da posteridade”.19
Mas, esse movimento de recolhimento de objetos de épocas que, mais ou menos próximas,
já se apresentam, pelo contexto histórico, tão distantes, localizadas no passado, logo se torna,
também, aquele, da coleta de objetos do presente, atendendo a uma dupla sensação de, por um
lado, a necessidade de perpetuá-los como documentos/monumentos deste novo período histórico
e, por outro, pela assombração provocada com a aceleração da própria história, preocupando-se em
preservá-los antes que esta nova época apague seus rastros.
Época esta onde se está processando uma distinção entre uma dimensão pública e uma
privada da vida social e onde a construção desta dimensão pública se realiza exatamente
“apagando os rastros” particulares em sua esfera de atuação. Apertado por este movimento,
pela ameaça do progresso e da sua tradução estética e tecnológica, do próprio redesenho da
sociedade que ele ajuda decisivamente a projetar, promover e construir, o burguês responde
com a produção dos seus interiores domésticos como descrito por Benjamin em seu texto “Paris,
capital do século XIX”. Transfigurando as coisas dispostas neste espaço, o burguês transfigura-
se, ele próprio, em colecionador.
O interior da residência é o refúgio da arte. O colecionador é o verdadeiro habitante desse interior.
Assume o papel de transfigurador das coisas. Recai-lhe a tarefa de Sísifo de, pela sua posse, retirar
das coisas o seu caráter de mercadorias. No lugar do valor de uso, empresta-lhe tão somente um
valor afetivo. O colecionador sonha não só estar num mundo longínquo ou pretérito, mas também
num mundo melhor, em que os homens estejam tão despojados daquilo que necessitam quanto
no cotidiano, estando as coisas, contudo, liberadas da obrigação de serem úteis.O interior não é
apenas o universo do homem privado, mas também o seu estojo. Habitar significa deixar rastros.
No interior eles são acentuados.20
Mas este burguês-colecionador traz, para dentro da sua trincheira de intimidade doméstica, os
seus desejos e vontades de assenhoramento do mundo em suas dimensões temporais e espaciais,
pois, como diz Benjamin, “o verdadeiro método de tornar as coisas presentes é representá-las em
nosso espaço (e não nos representar no espaço delas). [...] Não somos nós que nos transportamos
18
BREFE, Ana Cláudia Fonseca. Op. cit., p.310.
19
Id. Ibid. p. 310.
20
BENJAMIN, Walter. Paris, Capital do Século XIX. In: KOTHE, Flavio R. Walter Benjamin – Sociologia. São Paulo: Ática, 1985, p. 38.
para dentro delas, elas é que adentram a nossa vida”21. O burguês abriga, portanto, dentro da sua
casa, no descanso do seu lar, os seus desejos e vontades mais próprios, pacificando-os, traduzindo-
os nas coisas dispostas de forma organizada.
Agora, esta vontade de organizar as coisas, de mostrá-las esquematizadas perante a
aparente dispersão provocada pela tempestade do progresso e sua ameaça constante de apagar
rastros, de “impessoalização”, não se dá, somente, no campo do privado, mas transborda para
a dimensão pública. Torna-se, cada vez mais, necessário, também, construir lugares públicos
onde possa se demonstrar, de forma pacífica, os movimentos e embates existentes na construção
deste novo mundo globalizado, do qual o burguês tanto se orgulha. Lugares que podem ser,
inclusive, chamados de “lugares de memória”, de uma memória que está se construindo
concomitantemente à ameaça cotidiana da sua dissolução. Lugares aonde esta nova sociedade
se apresenta, se difunde, se populariza, enquanto se constrói: as exposições industriais, que
logo se tornam nacionais e, depois, internacionais. Lugares públicos de pacificação, não à toa
intitulados, também, de “arenas pacíficas do progresso”. Verdadeiras coleções, mais ou menos
efêmeras, da Modernidade.
A própria indústria, de certa forma, já nasce dentro deste movimento. Na mesma época de seu
surgimento é fundada na Inglaterra, em 1754, a Royal Society for the Encouragement of Arts, Manufactures
and Commerce criada, segundo seus estatutos, para “levantar fundos para com eles estimular todos os
tipos de artes e indústrias”. Como informo em minha dissertação de mestrado:
Esses estímulos consistiam na oferta de prêmios dados aos melhores trabalhos apresentados
nas suas competições anuais. Já em 1756, esses trabalhos premiados passaram a ser expostos,
tornando-se tais eventos as primeiras exposições públicas inglesas, nas quais o forte ainda eram
as chamadas polite arts e projetos de arquitetura; mas como tal premiação abrangia, também, a
área conhecida como das indústrias, é possível [...] a existência de alguns artefatos ou máquinas
industriais nestas primeiras mostras. O certo é que, em 1760, a Society decide que, a partir de então,
todas as máquinas, ou seus modelos, que ganhassem algum prêmio em competições futuras seriam
compradas pela instituição.22
Estas peças adquiridas pela Royal Society foram expostas, em abril e maio de 1761, naquela
que é considerada a primeira exposição industrial e que deu origem, também, a um museu,
ou seja, a coleção de máquinas e modelos adquiridas nos concursos provoca o aparecimento
de uma exposição que, por sua vez, suscita o aparecimento daquele que podemos considerar
o primeiro museu industrial. Tal instituição teria seu correlato brasileiro, o Conservatório
21
BENJAMIN, Walter. Op. cit., 2006, p. 240.
22
OLENDER, Marcos. Op. cit, 1992, p. 66.
delas). [...] Não somos nós que nos transportamos para dentro delas, elas é que adentram a
nossa vida”.27
Como afirma, ainda, Knauss, acerca especificamente das coleções artísticas, “[...] é como se
a experiência da criação artística da pintura ultrapassasse a dimensão do artista e se afirmasse
também como obra do colecionador. As identidades de artista e de colecionador se produzem na
sua confluência e entrelaçamento.”28
E esta confluência se daria privilegiadamente, nos Salões de Belas Artes, como aponta
Maraliz Christo e, no caso em questão, naqueles salões que faziam parte das exposições nacionais
e internacionais.29 Cabe aqui ressaltar, como faz Maraliz, a importância específica de um destes
eventos, a Exposição Universal e Internacional de 1889, em Paris, da qual o Visconde de Cavalcanti
foi designado como Comissário-Geral da representação brasileira.
Vários souvenirs desta exposição, por sinal, tornam-se parte das coleções cultivadas pela
Viscondessa deixadas, como herança, ao Museu idealizado e produzido por outro grande
colecionador, seu primo-irmão Alfredo Ferreira Lage. Nestas, podemos notar algumas medalhas
comemorativas na coleção de numismática; algumas pinturas em miniatura de artistas premiados
nesta ou em outras exposições (como a de 1900, também em Paris), algumas publicações, bem
como algumas das assinaturas existentes naquele que, certamente, é o objeto mais curioso que
ela legou para a instituição: o seu leque, recheado de desenhos e assinaturas de personalidades
da política e das artes, como Machado de Assis, Santos Dumont e o Barão de Coubertin. Como
informa Maraliz:
[...] vários dos artistas presentes no leque lá estavam [na Exposição de 1889], como expositores
ou jurados: Carolus Duran, Charles Olivier de Penne, Jean Béraud, Jules Worms, Salvador
Sanchez-Barbudo Morales, Léon Bonnat. Pintor muito solicitado pela elite francesa, Bonnat
retratou o próprio visconde no leque, em 1891. Dois anos antes, já havia feito o retrato a óleo da
viscondessa de Cavalcanti, posteriormente doado por ela ao Museu Nacional de Belas Artes.30
Para concluir, cabe ressaltar, nestas confluências entre estes diversos (e aparentados) “lugares
da memória” que são as coleções, os museus e as exposições, a própria história da criação, no Rio
de Janeiro, do Museu Histórico Nacional, fundado em 02 de agosto de 1922, em duas salas de uma
antiga edificação na Ponta do Calabouço, que estava sendo radicalmente reformada e ampliada
27
BENJAMIN, Walter. Op. cit., 2006, p. 240.
28
KNAUSS, Paulo. Op. cit., 2001. p. 31.
29
CHRISTO, Maraliz. Memórias de um leque. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, n. 44, mai 2009. Disponível em:
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/perspectiva/memorias-de-um-leque.
30
Id. Ibid.
para abrigar, a partir de 07 de setembro daquele mesmo ano, o “Pavilhão das Grandes Indústrias”
da Exposição Internacional de 1922. A importância da instituição foi marcada, informa Regina
Abreu, pela presença do Presidente da República, Epitácio Pessoa que “presidiu a solenidade de
fundação, demonstrando o interesse do governo federal pela criação de um ‘lugar da memória’
para a nação brasileira”.31
A criação deste museu, aponta ainda Regina Abreu,
[...] representou uma continuidade da própria Exposição do Centenário e de tudo aquilo que ela
representava. [...] No contexto das exposições universais, a história nacional representava um
componente altamente valorizado. Os países que promoviam as mostras geralmente elegiam e
celebravam efemérides de suas respectivas histórias nacionais. Não eram poucos os intelectuais
que, nesse período, atribuíam à história o papel de pedagoga da nacionalidade. Acreditavam que o
grau de cultura e coesão nacional de um povo podia ser medido pela intensidade do culto a datas
históricas e vultos notáveis. 32
A escolha, portanto, do citado pavilhão para ser ocupado, definitivamente, por um “lugar
da memória nacional”, que servia, como afirma Abreu no citado texto, “para resgatar o passado
como constitutivo básico da nacionalidade”, reforça decisivamente não só a confluência mas,
principalmente, a proximidade significativa e as inter-relações necessárias entre os museus, as
exposições da indústria e das belas artes e as coleções, como “lugares de memória” e, a partir disso,
como locais de efetivação da própria Modernidade.
ABREU, Regina. História de uma coleção: Miguel Calmon e o Museu Histórico Nacional. Anais do Museu Paulista. História e Cultura
31
Introdução
De maneira mais objetiva, hoje em dia, a articulação da Arquitetura com a Museologia e o
Patrimônio é tema central para os estudiosos destes campos disciplinares. Portanto, na perspectiva
de que as teorias e os sistemas formais arquitetônicos e urbanísticos recentes expressaram os
desejos de harmonia social das sociedades humanas, os tópicos tratados neste artigo se referem aos
modos com os quais o urbanismo e a arquitetura envolveram a museologia às ações de proteção do
patrimônio das cidades.
Para discorrer sobre tal articulação considero que são complementares as categorias de análise
dessas disciplinas, pois ambas abrangem o campo da ação social. Nesse sentido, o artigo apresenta
algumas das principais bases conceituais e historiográficas dos processos de democratização da cultura
observados nesses campos do conhecimento e também agrega alguns apontamentos sobre textos e
experiências que tratam das formas de proteção de espaços patrimoniais.
Quando o foco das análises é a importância do uso da cultura para a constituição das
identidades,1 os aspectos formalistas e os lugares físicos onde estão instalados os museus tradicionais
e comunitários são pontos a observar com particular atenção. Tal registro decorre, dentre outros de
igual relevância, do fato de que a década de 1980 foi, de maneira explícita em inúmeros autores,
*
Arquiteta e professora associada da UFRJ; pós-doutora em American and Museum Studies; mestre em Teorias da Comunicação e da
Cultura; doutora em Planejamento Urbano e Regional e doutoranda em Museologia; pesquisadora do CNPq; líder do Grupo de Estudos de
Arquitetura de Museus da UFRJ; coordenadora do Docomomo-Rio; e vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil - RJ. Dentre as
suas principais publicações, encontram-se: Lucio Costa, um certo arquiteto em incerto e secular roteiro; Museus & Cidades e Paradoxos
entrelaçados: as torres para o futuro e a tradição nacional; e a coletânea de artigos Arquitetura e Movimento Moderno.
1
Os usos da cultura são objeto das reflexões de George Yúdice em A conveniência da Cultura (UFMG, 2004) e dos recentes artigos de Flora
Kaplan e Elizabeth Crooke publicados em A Companion to Museum Studies (Macdonald, S. Wiley-Blackwell, 2011).
Destaca-se assim que, estejam os mitos e atos de criação e de harmonia ou desarmonia social
lembrados ou esquecidos, há que, sempre, expor os princípios, conflitos e as contradições que
os motivaram, e, portanto, os transformaram. E, em termos etimológicos e políticos, harmonia
significaria ajuste e beleza, o que pressupõe reconhecimento e pacto. Nesse sentido, as ações e as
coisas das culturas significariam e refletiriam simultaneamente a harmonia e a desarmonia social,
traduzindo e sintetizando ainda a integração entre tradição e modernidade.
Para compreender a abrangência do embate entre a inércia das estruturas do passado (tradição)
e o dinamismo da modernidade − situação ambígua que delimitaria a atividade patrimonial,
observa-se que Cristina Bruno, ao citar Waldísia Rússio Guarnieri, entende que a musealização
pressupõe ou implica em preservar.
Desse modo, essa autora considera que a preservação é uma ação museológica, a qual
aproxima objetos e homens, e revitaliza o fato cultural. Afirma, então, C. Bruno que: “a
preservação proporciona a construção de uma memória que permite o reconhecimento de
características próprias, ou seja, a identificação. E a identidade cultural é algo extremamente
ligado à autodefinição, à soberania, ao fortalecimento de uma consciência histórica”.4
Observa-se em consequência, que a historicidade é atributo da memória em processo; e que
a história poderia ser o modo de limitar ou impulsionar tal movimento. Museificar seria ‘fazer’ a
história de maneira cristalizada. Então, por outro prisma, musealizar seria garantir a historicidade
das coisas e dos lugares. E identificar, portanto, significaria reconhecer, afirmativa e positivamente,
as diferenças do que está estabelecido na escrita da história.
Por outro lado, verifica-se que os componentes físicos são as coisas mais apreendidas visual, direta
e imageticamente, tornando-se, portanto, coisas melhor configuráveis em processos de musealização.
Admite-se, ainda, que a primeira acepção do que é moderno excluíria o reconhecimento das
diferenças e, portanto, as coisas modernas não possuíriam historicidade. Em tal acepção, o que
é antigo seria aquilo que teria história; e o que é moderno seria o que é dinâmico, radical e
originalmente novo.
Entretanto, os elementos formais seriam os que melhor contribuíriam para a formação do
espaço social e para a percepção das ideias e das ações de natureza pública. Nessa perspectiva, a
associação dos sentidos de harmonia social às ações de musealização do espaço urbano poderia
ser delimitada apenas na dimensão e na escala física dos lugares e paisagens.
No entanto, importante seria relembrar ainda as categorias que dizem respeito à imaterialidade
das formas físicas e à valorização hierárquica dos espaços, as quais dizem respeito a preexistências
espaciais e temporais, cujas naturezas são muitas e de ordem variada.
4
BRUNO, C. Disponível em: <http://tercud.ulusofona.pt/publicacoes/1997/BrunoC_Text.pdf> Acesso em: 22 de Jul. 2010.
Por tudo isso, quando as arquiteturas das cidades são observadas na atualidade, as abordagens
analíticas abrangem, de modo impositivo, a articulação das preexistências físico-espaciais e o
reconhecimento da maneira mútua com que estas reforçam os sentidos das construções antigas e
influenciam os significados das novas.
5
Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. In: Isabelle Cury (org.). CARTAS Patrimoniais. Rio de Janeiro, Iphan/
MinC. 2004, p. 373.
6
Disponível em: <http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia>.
Figura 1
Logotipo do Museu de Favela
Fonte: Grupo de Estudos de Arquitetura
de Museus
Figura 2 Figura 3
Réplica de barraco em palafita. Museu de Arquitetura de Frankfurt.
Exposição permanente do Museu Exposição permanente.
da Maré, Rio de Janeiro, 2010. Projeto do arquiteto Oswald Mathias
Fonte: Grupo de Estudos de Ungers, 1979.
Arquitetura de Museus. Fonte: Grupo de Estudos de Arquitetura
de Museus.
8
GUIMARAENS, C. Arquitetura, Patrimônio e Museologia. ANAIS do I ENANPARQ. Rio de Janeiro: PROURB, 2010, p. 11.
O sentido da musealização ampla do espaço urbano foi também observado nessa reunião
de Atenas, quando foi afirmado o respeito ao “caráter e à fisionomia das cidades, sobretudo nas
vizinhanças dos monumentos antigos, cuja proximidade deve ser objeto de cuidados especiais.”9
Na segunda Carta de Atenas, a do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM)
de 1933, a cidade e a região tornam-se o foco de análises conjunturais de ordem conceitual e prática
no sentido do projeto e da gestão urbana. Portanto, esse documento ainda é referência seminal para
a teoria e a prática do planejamento moderno e contemporâneo.
Ao relacionar as mudanças e o dinamismo das cidades, a Carta de 1933 registrava que:
À medida que o tempo passa, os valores indubitavelmente se inscrevem no patrimônio de um
grupo, seja ele cidade, país ou humanidade; a vetustez, não obstante, atinge um dia todo o conjunto
de construções ou de caminhos. A morte atinge tanto as obras quanto os seres. Quem fará a
discriminação entre aquilo que deve subsistir e aquilo que deve desaparecer? O espírito da cidade
formou-se no decorrer dos anos; simples construções adquiriram um valor eterno, na medida em
que simbolizam a alma coletiva [...].10
9
Carta de Atenas. Escritório internacional dos museus. In: CARTAS Patrimoniais... Op. cit., p. 14.
10
Carta de Atenas. CIAM – Congresso internacional de arquitetura moderna – 1933. In: CARTAS Patrimoniais... Op. cit., p. 25-26.
11
Id. Ibid. p. 42.
Tal amplitude de definição poderia sugerir a musealização e a museificação das áreas urbanas
históricas. Assim, a prevenção às ameaças aos arredores e aos entornos dos monumentos, cidades,
zonas e bairros patrimoniais, em face de construções novas, configurou um dos principais temas
dessa Conferência.
Então, visava-se reforçar a necessidade de “harmonizar a preservação do patrimônio
cultural com as transformações exigidas pelo desenvolvimento social e econômico”. Portanto, o
reconhecimento do sentido de preservação do espaço urbano e a proteção do entorno e do caráter
deste espaço tornaram-se condições essenciais “em qualquer plano de urbanização.”13
Verifica-se, de pronto, que o espaço patrimonial seria passível de musealização, quaisquer que
fossem as finalidades e os adjetivos apostos a este espaço.
Décadas mais tarde verifica-se a ênfase na revisão dos conceitos e a inclusão do vocábulo
“lugares”. Essa ênfase teria o objetivo de demonstrar a forte relação do sentido do “imaterial” com
os espaços físicos e as formas urbanas e arquitetônicas.14
Portanto, poder-se-ia supor que tal relação também seria um meio imprescindível para definir
e consolidar a patrimonialização e a consequente musealização dos lugares onde os valores e os
campos do sentido imaterial manifestam-se. Assim, celebrações, práticas sociais, rituais e atos
festivos, ao lado de outras atividades, técnicas e expressões orais, artísticas e tradicionais estariam
interdependentes do espaço físico e, portanto, induzindo à musealização e à institucionalização dos
“lugares de memória”.
12
Recomendação sobre a conservação dos bens culturais ameaçados pela execução de obras públicas ou privadas. Conferência Geral da
UNESCO – 15ª sessão. In: CARTAS Patrimoniais... Op. cit., p. 126.
13
Id. Ibid. p. 133.
14
Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. In: CARTAS Patrimoniais... Op. cit., p. 373-374.
Para tanto, os patrimônios de cultura seriam enfocados sob a ótica da comunicação de massas.
Assim, as ações de gerenciamento da informação privilegiariam, de modo virtual e real, recortes
patrimoniais específicos; impulsionariam a formação de museus “em rede”; e os novos “lugares de
memória” seriam configurados em função dos territórios, dos ambientes e dos problemas sociais
das populações.
Conforme já aqui observado, os patrimônios gerados nesses processos constituíriam os
museus de cidade e de favela, os ecomuseus e os percursos ou roteiros culturais. Em tal contexto,
encontrava-se reforçada a ideia de que as ressignificações de objetos e sujeitos transformariam as
cidades, os museus e as exposições em lugares de interação social em nível global. E, na dimensão
espaço-temporal, as tradições e as perspectivas de passado estariam radicalmente deslocadas.
A democratização dos museus transcorreria, portanto, em desdobramentos de espaços sociais
e físicos difusos, o que permitiria novos recortes analíticos e diálogos expressivos da diversidade
sociológica destas instituições.
Finalmente, nesse universo de novas configurações e trocas simbólicas, os espaços museológicos
estariam a jogar um dos papéis protagonistas. Procurava-se reafirmar, dessa maneira, que territórios
e espaços patrimoniais edificados se constituíriam na base das ações que priorizariam as formas de
comunicação com os diferentes tipos de públicos. No entanto, registrava-se também que a criação
dos lugares de memória de grupos sociais até hoje excluídos estaria a exigir novos padrões e
indicadores de validação, leitura e gestão de bens e acervos de naturezas várias.
Para ampliar os horizontes dos processos de gestão democrática ressaltava-se que seria
necessário agregar outros olhares perceptivos. Além dos diagnósticos de avaliação que desvendariam
não apenas os fatos físicos, mas também os mitos existentes, o uso franco das novas técnicas e a
aplicação de métodos de gestão alternativos, abertos e flexíveis demandariam ampla participação
dos diferentes grupos sociais.
As parcerias, então, estabeleceram a proclamada “inclusão social”. Essa condição foi produzida
em simultaneidade com ações globais e comunitárias com a finalidade de gerar perspectivas de
autofinanciamento e reciprocidade funcional entre as instituições preservacionistas.
Por outro lado, a espetacularização do espaço urbano por meio da promoção da morfologia
singular dos edifícios de museus, também, é representativa das ideias que acirram a relação entre
história e cidadania para agregar idealmente, no cotidiano dos cidadãos, a condição museal das
cidades e a excelência pedagógica dos lugares originais.
Desse ponto de vista, a requalificação efetiva de áreas centrais das cidades resultaria de
ações que devolveriam aos habitantes e aos usuários o sentido de urbanidade e historicidade. Para
compreender tal condição, recorre-se a F. Choay, autora que, em A alegoria do patrimônio, analisa
as diferentes formas de tratamento aos monumentos e malhas urbanas das cidades antigas, com
base nas teses que constituíram o urbanismo moderno.15
Choay afirma que a noção do patrimônio urbano foi gerada na “contramão” dos processos de
modernização das cidades. E, segundo essa autora, as ideias e as contradições dos processos de
destruição das cidades pré-industriais e da configuração funcionalista do urbanismo moderno, a
partir de 1860 e até meados do século XX, resultaram da “batalha” entre história e historicidade.16
Ou, em outras palavras, entre a inércia e o dinamismo.
Nesse contexto dialógico de ações reflexivas e práticas, surgiram as figuras de cidade
denominadas por Choay “memorial, histórica e historial”, as quais são representativas das ideias de
John Ruskin, William Morris, Camilo Sitte, Violet-le-Duc e Gustavo Giovannoni, inquestionáveis
pais fundadores das teorias do patrimônio urbano moderno.17
John Ruskin e William Morris, considerados entre os mais importantes pais fundadores
das teorias do restauro, eram socialistas preocupados com os aspectos econômico-sociais da
industrialização em face do declínio das manufaturas. Portanto, são até hoje, também, referenciados
e reverenciados na condição de serem os primeiros a promover, não só a proteção dos monumentos
isolados, mas a manutenção de bairros e cidades antigas da Europa e do Oriente Médio.
Para esses personagens da história moderna, ajustadas ou negadas as escalas físicas do edifício,
da cidade e do território, e revistos os equívocos de interpretação, a conservação das estruturas
tradicionais e modestas, a permanência da beleza urbana concebida pelos mestres antigos e a função
hermenêutica do uso dos diferentes tipos arquitetônicos e sistemas espaciais antecedentes seriam
fatos indutores da harmonia formal perfeitamente aplicáveis nas metropóles contemporâneas.18
Porém, a haussmanização de Paris é o fato que poderia ser considerado uma operação excepcional
em que o entendimento da história e os conflitos resultantes deste conduziram a museificação
e a musealização do espaço urbano. Por outro lado, observam-se as críticas e contradições que
a destruição da malha urbana medieval da cidade-luz provocaram, as quais foram refutadas por
Haussmann (1809-1891) com a seguinte afirmação:
15
CHOAY, F. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade, UNESP, 2006.
16
Id. Ibid. p. 180.
17
Id. Ibid. p. 141-142.
18
Tais conjunções podem ser verificadas nas influências das teorias urbanísticas de Gustavo Giovannoni (1873-1943) observadas na Carta
de Atenas de 1931 e nas contribuições e participação dele para o desenvolvimento e consolidação das formas de definição e atribuição de
valor de uso museológico aos conjuntos urbanos antigos.
Mas, boa gente.[…], cite pelo menos um monumento antigo digno de interesse, um edifício precioso
para a arte, curioso por suas lembranças, que minha administração tenha destruído, ou de o maior
valor e que ela se tenha ocupado senão para desobstruir e dar-lhe a mais bela perspectiva possível.19
A expografia urbanística de que Haussmann se valeu para consolidar e defender suas ideias era
decorrente da visão pinturesca e estética da cidade. Tal ótica, marcadamente arraigada ao longo dos
tempos, estabelecia mise-en-scènes singulares, as quais sempre valorizariam o “novo” em oposição
ao antigo, e, ouso dizer, vice-versa.
No século XX, tal atitude serviu de álibi para inúmeras radicalizações e operações “bota-
abaixo” em muitas cidades do Ocidente.20 No entanto, a integração com a natureza física e a
constituição da nova sociedade urbana também foram objetivos fundamentais dos projetos de
arquitetura e teses do urbanismo moderno.
Assim, a cidade ideal, ou a segunda natureza, seria o lugar da síntese das artes e o universo das
máquinas onde os homens e as coisas novas e incansavelmente originais estariam harmonizados,
pois eram impensados e daí excluídos os conflitos e as restrições à mobilidade física e social e ao
convívio comunitário.21
Em tais espaços de “futuros”, as relações tridimensionais expressivas do conceito e do respeito
moderno estabeleciam-se declaradamente face aos desejos de arte e história na condição de
patrimônios dos grupos sociais historicamente hegemônicos.
Denota-se, portanto, que as coisas do passado estavam contidas de maneira constante nas
propostas modernistas. Tal presença ocorria na perspectiva de futuro, pois a representação da ideia
de passado em espaços novos imprimia originalidade e garantia a perenidade da ética modernista.
Ao incluir o passado no princípio da realidade, a arquitetura moderna, racional, abstrata e
neutra por excelência, parecia articular substratos, estruturas e significados do lugar e da paisagem.
Assim, a tendência modernista que associa o uso das formas geométricas puras e atemporais à
ambiência existente, geraria tipologias ajustáveis e harmônicas ao espírito dos lugares.22
19
HAUSSMAN, apud CHOAY, Op. cit, p.175.
20
Referências singulares dessas premissas foram aplicadas, entre 1900 e 1940, em planos urbanísticos para o Rio de Janeiro pelos urbanistas
e arquitetos Francisco Pereira Passos, Alfred Agache, Saboia Ribeiro e Afonso Eduardo Reidy.
21
A proposta para a cidade mundial, a qual se agrega a metáfora da espiral no esquema do museu do Crescimento Ilimitado, idealizados por
Le Corbusier, são produtos marcantes das primeiras atitudes éticas do Movimento Moderno; portanto, são legítimas referências morfológicas
representativas das teses utópicas deste movimento.
22
MONTANER. J. M. Sistemas arquitectónicos contemporáneos. Madrid, Editorial Gustavo Gili, 2008, p. 116.
Porém, a figura da cidade histórica ou museal foi representada na cidade antiga entendida
na condição de “objeto raro, frágil, precioso para a arte e para a história e que, como as obras
conservadas nos museus, deve ser colocada fora do circuito da vida.”23
Assim consideradas, as estruturas antigas ameaçadas seriam conservadas musealmente.
Entretanto, a cidade histórica tornou-se a cidade museificada, pois, face às transformações urbanas
aceleradas, o ‘congelamento’ induziu a estetização das diferenças para harmonizar e transcrever
idealmente apenas as histórias míticas e as grandes narrativas.
Do ponto de vista de Choay, a cidade histórica e a conservação museal das estruturas urbanas
foram renegadas pelos CIAMs (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna). Observa-se,
portanto, que Le Corbusier, ao idealizar Paris no Plano Voisin, em 1925, à maneira de Haussmann,
apesar de dissolver a malha urbanística dos velhos bairros e aumentar consideravelmente o gabarito
dos edifícios, conservaria alguns monumentos.
Entretanto, ainda segundo Choay, a manutenção da Notre Dame, do Arco do Triunfo e da
Torre Eiffel no Plano Voisin de Corbu, também seria uma espécie de “inventário que já anunciava
a concepção midiática dos monumentos antigos.”24
Então, as escolhas dos lugares de memória, enfim patrimonializados, seriam fundamentadas na
História, disciplina que registraria os fatos, as visões de mundo e os produtos da cultura de modo
estético e ideológico.
Nessa perspectiva, a cidade histórica estaria enquadrada em trama rígida e estática. Assim,
seria justo depreender que a cidade museal seria o lugar da museificação e do congelamento da
história, hoje ato impensável.
Dentre os exemplos de formas de representação da cidade museal no Rio de Janeiro encontram-
se as propostas em que o arquiteto Afonso Eduardo Reidy reproduziu, com base no Plano Agache,
as ideias haussmanianas e corbusianas.25
Ao elaborar projetos urbanísticos para renovar radicalmente as áreas dos morros de Santo
Antônio e do Castelo no final da década de 1940, Reidy apropriou-se das recomendações
morfológicas de Alfred Agache e Saboia Ribeiro, idealizadas nas décadas de 1920 e 1930, as quais
também seguiam as propostas que preservavam os monumentos históricos.
Desse modo, Reidy manteve em seus planos para a modernização do Centro do Rio, as estruturas
coloniais do convento de Santo Antônio e do Aqueduto dos Arcos e as ambiências neoclássicas do
23
CHOAY, Op. cit., p. 191.
24
Id. Ibid. p. 194.
25
GUIMARAENS, C. A arquitetura de museus no Movimento Moderno. In: Anais do DOCOMOMO-Nacional. Niterói: Editora da UFF.
2006, p. 8.
Figura 4
Projeto para a Esplanada de Santo Antônio de
Afonso Eduardo Reidy, Rio de Janeiro. 1948.
À direita, acima, o convento de Santo Antônio;
abaixo, o Passeio Público; no centro, o museu
com o esquema de crescimento ilimitado; à
esquerda, abaixo e em diagonal, os Arcos da
Lapa.
Fonte: Arquivo Núcleo de Pesquisa e
Documentação, UFRJ/FAU.
Passeio Público e da Santa Casa de Misericórdia. Além de emoldurar tais monumentos com novas
estruturas urbanas e edifícios funcionalistas, Reidy incluiu em sua proposta para a Esplanada de
Santo Antônio um museu, cuja arquitetura é uma réplica do Museu do Conhecimento Ilimitado,
modelo idealizado por Le Corbusier.
O plano corbusiano de Saint Dié parece ter sido a inspiração direta do arquiteto carioca Afonso
Eduardo Reidy tanto para a urbanização da Esplanada resultante do desmanche do morro de Santo
Antônio quanto para a arquitetura do museu que adicionou a este seu projeto.
Pois no projeto do mestre modernista é possível que, em 1946, o arquiteto utilizou o modelo de
museu do crescimento ilimitado no projeto do novo cuore de Saint Dié, destacando a importância
das instituições museais em espaços urbanos projetados no movimento modernista.26
Mas, ainda no sentido da influência e da aplicação dos padrões tipológicos anunciadores do
futuro utópico, há também que registrar as propostas para a Cidade Universitária da Universidade
do Brasil de Le Corbusier e da equipe liderada por Lucio Costa. Em tais propostas, a morfologia e a
situação dos edifícios dos museus universitários intencionariam conferir a esses edifícios referências
monumentais modernas, diferenciando-os de outras construções do conjunto.
Embora destinados na maioria das vezes às elites, os museus de arte moderna e contemporânea
podem ser exemplos expressivos de harmonização da arquitetura aos contextos. Desse modo, a
26
O modelo de Museu do Crescimento Ilimitado foi também utilizado por Le Corbusier no projeto do Museu de Arte Moderna de Paris em
1931.
27
GUIMARAENS, C. RELATÓRIO de Investigação para Júri Prévio. Curso de Doutorado em Museologia. Lisboa: Universidade Lusófona
de Humanidades e Tecnologia, abril de 2011, p. 77-78. Orientador: professor Mário C. Moutinho. (mimeo).
Figura 5
Centro Cívico de Saint-Dié de Le Corbusier,
França. 1946.
Fonte: Arquivo Núcleo de Pesquisa e
Documentação, UFRJ/FAU.
Figura 7
Figura 6 Plano para a Universidade do Brasil de Lucio Costa e
Plano para a Cidade Universitária no Brasil de Le equipe, Rio de Janeiro, 1937.
Corbusier, 1936. À direita, no alto, o Museu Nacional, antigo Paço
À direita e ao centro, o museu projetado com o esquema Imperial; e logo abaixo, o museu universitário concebido
do crescimento ilimitado. em esquema de planta quadrada e pátios interiores.
Fonte: Arquivo Núcleo de Pesquisa e Documentação, Fonte: Arquivo Núcleo de Pesquisa e Documentação,
UFRJ/FAU. UFRJ/FAU.
Figura 8
Acácio Gil Borsói, MAM do Recife,1954.
Fonte: Grupo de Estudos de Arquitetura de Museus
Figura 9
Afonso Eduardo Reidy, MAM-Rio,1958
Foto C. Guimaraens, 2007.
Figura 10
Lina Bo Bardi, MASP, 1958.
Fonte: Arquivo Núcleo de Pesquisa e Documentação, UFRJ/FAU.
Assim, a topografia também contribui para a situação ‘em pedestal’ do MASP. Tal situação
coloca a arquitetura no lugar de arte pública e imprime ao edifício a condição de uma escultura, o
que o transforma em um objeto urbano musealizado.
Observa-se, finalmente, que a fusão da cultura popular com a cultura da elite reforça o fato de
que, não importando a natureza e os significados originais, o fazer estético modernista foi associado
à utilidade ética da arte, tanto no campo arquitetural quanto no domínio museal e expográfico de
amplo alcance social.28
Figura 11
Painel e peças representativas da negritude brasileira da exposição “A
ventura republicana”.
Museu da República, Rio de Janeiro, 1996.
Foto C. Guimaraens.
Nesse sentido, observa-se que, no ano de 1996, Gisela Magalhães, nas exposições “Fala
Getúlio” e “A Ventura Republicana”, radicalizou suas propostas expositivas no Museu da República
para deslocar de maneira total os mitos do país, da casa histórica e do presidente Getúlio Vargas,
personagem e morador mais ilustre do Palácio do Catete.
GUIMARAENS, C. O patrimônio cultural no campo museográfico modernista brasileiro. In: Actas do I Seminário de Investigação em
28
Museologia dos Países de Língua Portuguesa e Espanhola. Porto: Universidade do Porto, 2010. Volume 2.
Para tanto, a exposição que ela criou aventurou-se na ironia e no quase deboche da instituição
museológica ao ampliar, aos limites inimagináveis para a época, a crítica à alienação institucional
e às artes decorativas e menores.
Do ponto de vista das pesquisas de gênero no campo museológico, denota-se que as realizações
das arquitetas Lina Bo Bardi e Gisela Magalhães demonstraram que a prática profissional delas
teve o objetivo de concretizar a plena função socializante da arte. Elas estabeleceram, assim, um
discurso didático e uma hermenêutica muito consciente das contradições político-institucionais dos
seus tempos.
De maneira muito própria elas fizeram os objetos patrimoniais brasileiros discursarem
as próprias verdades originadas em muitas raízes, histórias e sujeitos. A linguagem que as
identifica, resulta, portanto, da integração criativa dos produtos e técnicas populares à sofisticada
técnica industrial.
Considerações inconclusas
Dessa maneira, reafirma-se que há uma possível articulação entre Museologia, Arquitetura e
Patrimônio. Pois, enfim, verifica-se que o fascínio da invenção da beleza e a retórica da estética
ainda produzem a harmonia das diferenças em muitos corações e mentes.
29
CARTAS Patrimoniais... Op. cit., p. 371.
30
Id. Ibid. p. 372.
31
Id. Ibid. p. 373.
32
Id. Ibid. p. 373-374.
DEFOURNY, V. Apresentação. In: Castro, M. L. Viveiros de, e Fonseca, M. C. Londres. Patrimônio imaterial no Brasil. Brasília,
33
Para entender o universo das coleções devemos, antes de mais nada, entender os colecionadores.
O colecionador não é tão somente o indivíduo que coleciona; é ele quem “inventa” a coleção.
Os objetos que formam uma coleção não existem em estado latente; precisam ser escolhidos,
classificados e “possuídos”. Coleção e colecionador dialogam permanentemente, e se confundem,
imersos em uma mesma lógica.
O desejo pela posse e a tendência pela classificação estão entre os fatores psicológicos
primitivos apontados pelo psicanalista francês Henri Codet como indissociáveis ao comportamento
de um colecionador, aliados a uma necessidade de superação.6 No domínio privado de uma coleção
imperam, essencialmente, as idiossincrasias do colecionador, como uma espécie de jogo passional:
“passar em revista as diferentes espécies de colecionadores equivaleria fazer uma lista de todos os
complexos humanos”, completa Rheims.7
Para alguns indivíduos, pode-se admitir que exista um natural gosto pela coleção, ou mesmo um
impulso primitivo colecionista. Começa na infância, como forma de reconhecimento e domínio do
mundo exterior, e se estende por toda a vida. Pode ser reflexo de situações pontuais, de emoções, ou
mesmo de distúrbios. O ato de colecionar pode estar relacionado à sexualidade, a partir dos conflitos
do período de latência entre a pré-puberdade e a puberdade, estacionando logo após, e sendo retomado
a partir dos quarenta anos: “a coleção aparece como uma compensação poderosa por ocasião das fases
críticas da evolução sexual”, segundo Baudrillard.8 São comuns as coleções organizadas por pessoas
solteiras ou casais sem filhos, que chamam suas peças de “filhos”: “[...] é um entretenimento saudável
para os esposos que querem evitar uma vida conjugal monótona. [...] Devido a um certo temor
instintivo, os colecionadores apaixonados preferem o celibato. [...] Se o solteiro chega a casar-se,
elege preferencialmente uma esposa cúmplice de sua paixão”.9
A maturidade de uma coleção coincide, portanto, com a maturidade do colecionador. Nenhuma
coleção está completa sem que seu proprietário admita que a busca por novos objetos comece a se
esgotar – ainda que nenhum colecionador esteja satisfeito com a coleção que tem –, assim como
admita também sua própria finitude. Em sua fase madura, a coleção está próxima de um “ponto
final”. Surgem, então, novos problemas, que não são apenas a classificação e a posse. A coleção
deve extrapolar o território particular do seu colecionador para ser admirada por um conjunto maior
de pessoas, como sua extensão material e espiritual. Se a coleção permaneceu escondida, agora é a
hora de pensar em sua revelação.
6
RHEIMS, Maurice. La curiosa vida de los objetos… Op. cit. p.57.
7
Id. Ibid. p. 41.
8
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos... Op. cit. p. 95.
9
RHEIMS, Maurice. La curiosa vida de los objetos… Op. cit. p. 31.
Mesmo que não seja o ponto de partida de uma coleção, a revelação/exibição é etapa inseparável
da prática de colecionar. Mas esta revelação não pode ser feita a qualquer preço; uma “verdadeira”
coleção não pode ser exposta ao olhar daqueles que não a legitimem, que não a valorizem, pois que
suas peças perderiam o encanto, o mistério e mesmo a raridade. Aqui começa o desejo pelo museu.
Nenhum outro lugar será igualmente digno de acolher o fruto do esforço de um colecionador. A
satisfação que uma coleção causa em seu proprietário poderá provocar um campo de tensão, caso
não esteja resolvida a sobrevivência dos objetos. O museu e seu caráter “permanente” tornam-se
uma solução para quem busca “salvar” os objetos de sua natural destruição.
No complexo mundo dos impulsos que explicam o colecionismo, um raramente é revelado de
forma explícita, mas está estreitamente ligado ao desejo de museu: o de construção da posteridade do
colecionador. Os objetos de uma coleção são os elementos materiais que permitirão a permanência
física de quem os reuniu, para além de sua morte, especialmente se preservados num “repositório”
da imortalidade. Nenhuma homenagem póstuma poderia ser melhor do que ter a coleção guardada
em um museu, pois que permitirá ao colecionador ser também autor de uma “obra”, que deixa
legado à posteridade. Sua obra/coleção garantirá o reconhecimento perene de sua inteligência, de
seu bom gosto, de sua riqueza e de sua generosidade.
O hábito de colecionar – enquanto prática de reunião e de atribuição de novos significados
aos objetos oriundos da natureza ou fabricados pelo Homem – e a atividade dos museus sempre
estiveram intimamente relacionados. Para Danièle Giraudy e Henri Bouilhet, o museu “surge a
partir da coleção, seja ela de origem religiosa ou profana”.10 Aurora León concorda que a prática
colecionista e os museus estão indissoluvelmente ligados, como decorrência de um fenômeno
tipicamente ideológico, cuja função principal é a de impor “juízos estéticos”.11 Pomian traça
paralelos entre as coleções particulares e os museus, apontando uma diferença importante; enquanto
a coleção particular, na maior parte dos casos, se dispersa após a morte de quem a formou, o museu
“sobrevive aos seus fundadores”.12
Ainda para Pomian, os objetos colecionados têm a função de se oferecerem ao olhar:
[...] nos museus e nas grandes coleções particulares levantam-se ou arranjam-se paredes para aí
dispor as obras. Quanto aos colecionadores mais modestos, mandam construir vitrines, preparam
álbuns ou libertam, de uma maneira ou de outra, locais onde seja possível dispor os objetos. Tudo
se passa como se não houvesse outra finalidade do que acumular os objetos para expô-los ao olhar.13
10
GIRAUDY, Daniele & BOUILHET, Henri. O museu e a vida. Tradução de Jeanne France Filiatre Ferreira da Silva. Rio de Janeiro:
Fundação Nacional Pró-Memória; Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro RS; Belo Horizonte: UFMG, 1990. p. 19.
11
LEÓN, Aurora. El museo: teoria, práxis e utopia. Madrid: Cátedra, 1982. p. 15.
12
POMIAN, Krzysztof. Coleção... Op. cit. p. 82.
13
Id. Ibid. p. 51.
16
RHEIMS, Maurice. La curiosa vida de los objetos… Op. cit. p. 48.
17
“Semióforos, objetos que não têm utilidade [...], representam o invisível, são dotados de um significado, não sendo manipulados, mas
expostos ao olhar”. POMIAN, Krzysztof. Coleção... Op. cit. p. 71.
18
Id. Ibid. p. 76.
22
Disponível em: <http://it.wikipedia.org/wiki/Museo_Gustave_Moreau> Acesso em: 8 fev. 2012.
23
MUSÉE Gustave Moreau. Peintures, cartons, aquarelles, etc. exposés dans les galeries du Musée Gustave Moreau. Paris: Rèunion dês
musées nationaux, 1990. p. 8.
movimento modernista no país, com fortes rupturas no campo das artes em geral. Estava claro
no projeto de Gustavo Barroso, criador e primeiro diretor do Museu Histórico Nacional, que a
história do Brasil era devedora do papel exercido por suas elites, especialmente daqueles que
fundaram política e administrativamente a nação. As relações costuradas com os descendentes
diretos das elites políticas e econômicas do império reforçaram o papel da instituição como espaço
privilegiado de troca. Assim, diversos colecionadores e herdeiros de figuras representativas do
mundo político imperial se aproximaram do Museu, na expectativa de usar suas salas como
extensão de suas heranças e coleções particulares. Gustavo Barroso demonstrou bastante
habilidade na consolidação dessas relações, fator que contribui para o enriquecimento do acervo
do Museu em seus primeiros anos de funcionamento.
Uma das primeiras doações particulares foi a de Guilherme Guinle, feita no ano de criação
do Museu Histórico Nacional. Filho de Eduardo Pallasim Guinle, fundador da Companhia Docas
de Santos, Guilherme Guinle formou uma coleção com os mais expressivos conjuntos de moedas
e de selos postais brasileiros, especialmente no período em que presidiu a Companhia Docas de
Santos. Sua atuação como empresário bem-sucedido o levou a ocupar cargos públicos de relevância,
como a vice-presidência do Conselho Técnico de Economia e Finanças do Ministério da Fazenda,
a Comissão Executiva do Plano Siderúrgico Nacional e a presidência da Companhia Siderúrgica
Nacional (CSN) Guilherme Guinle doou inicialmente 720 peças de numismática brasileira ao Museu
Histórico Nacional e, em 1924, um conjunto de 119 condecorações. Suas doações se consumaram
em 1925, quando resolveu tomar uma iniciativa até então inédita em museus brasileiros: “pôs à
disposição dos técnicos do Museu Histórico sua valiosa coleção para que fossem escolhidos todos
os exemplares que pudessem completar o conjunto numismático de moedas do Brasil”.27 Naquele
momento, acrescentou mais 2.310 peças, incluindo algumas barras de ouro do período colonial: “por
seu desprendimento e espírito de cooperação à cultura, o dr. Guilherme Guinle foi, sem dúvida, um
dos nomes mais significativos da história da numismática no Brasil”.28
Outra iniciativa de seu mecenato foi também bastante simbólica: mandou construir o mobiliário
de abrigo das coleções e o doou igualmente ao Museu, para que as peças pudessem ser expostas
de maneira correta e à altura de seu primeiro colecionador, que foram instaladas em sala que foi
batizada com seu nome.
Outra importante doação ao Museu Histórico Nacional foi efetivada em 1936. Trata-se da já
citada coleção de Miguel Calmon Du Pin e Almeida, doada através de sua viúva, poucos anos após
27
LUDOLF, Dulce Cardozo. A numismática portuguesa continental no Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro: Museu Histórico
Nacional/Associação dos Amigos do MHN/IPHAN, 2006. p. 12.
28
Id. Ibid.
sua morte. Uma extensa análise sobre esta doação foi realizada pela antropóloga Regina Abreu, em
sua dissertação de mestrado (1990), especialmente focando os processos simbólicos envolvidos
no ato de doação, entre a direção e membros do Museu e a viúva de Miguel Calmon, naquilo que
chamou de “a fabricação do imortal”.
Trata-se, na verdade, de um dos mais importantes conjuntos de acervo doados ao Museu,
formado tanto por objetos de arte adquiridos ao longo da vida do casal quanto de documentos
relacionados à vida pública de Miguel Calmon, que estavam reunidos na residência da Rua São
Clemente, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro. Miguel Calmon havia ocupado cargos públicos
importantes no início da República; foi ministro de Viação e Obras Públicas, da Agricultura,
Indústria e Comércio, além de deputado federal e senador. Casou-se com Alice da Porciúncula,
e não teve filhos. Diferentemente de outros colecionadores, Miguel Calmon não teria deixado
nenhuma recomendação explícita quanto à doação de seu acervo a qualquer museu, ainda que
tenha guardado com bastante cuidado seus objetos e documentos pessoais e de trabalho. Coube
à viúva, neste caso, a iniciativa de transformação da coleção particular em coleção de caráter
público, com as garantias dadas pelo diretor do Museu de que as peças mereceriam atenção
especial da instituição, sob condições bastante claras, definidas pela doadora.
As cláusulas acertadas no acordo de doação da coleção estabeleciam, dentre outras questões,
que a arrumação inicial ficaria sob os cuidados da doadora e os objetos formariam uma coleção
única e indissolúvel, além do compromisso de que a sala onde deveriam ser expostos os objetos
chamar-se-ia “sempre” Sala Miguel Calmon. A sala foi reformada sob a responsabilidade de Alice
da Porciúncula, que não mediu recursos para obter o resultado desejado, assessorada pelo mordomo
Jean, repetindo, assim, o mesmo gesto de alguns anos antes tomado sob a iniciativa de Guilherme
Guinle, ao construir também sua própria sala. Mais uma vez selava-se a aliança entre o Museu,
espaço do “arbítrio das admirações”, e o colecionador, que assim construía a sua imortalidade. A
coleção sobreviveria ao colecionador.
Segundo Regina Abreu, “a análise do material doado remete diretamente a um certo lugar
atribuído ao Império e à nobreza brasileira no processo de formação da nacionalidade.”29 Para a
antropóloga, a doação garantiu a continuidade de um grupo social mais amplo, “o clã dos Calmon
e o clã dos Porciúncula, [que] durante toda a vida havia colecionado objetos representativos de
um extenso sistema de alianças efetuadas ao longo de gerações.”30
Também criado nos primeiros anos da década de 1920, o Museu Mariano Procópio, na cidade
de Juiz de Fora, é mais um exemplo de coleção particular transformada em museu no Brasil,
29
ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil... Op. cit. p. 33.
30
Id. Ibid. p. 34.
31
MUSEU Mariano Procópio. São Paulo: Banco Safra, 2006. p. 13.
32
Id. Ibid. p. 14.
Há que se destacar uma importante doação feita ao Museu Mariano Procópio pela Viscondessa
de Cavalcanti, Amália Machado Cavalcanti de Albuquerque. Especialista em numismática
brasileira, a Viscondessa publicou no Rio de Janeiro, o “Catálogo das Medalhas Brasileiras e das
Estrangeiras Referentes ao Brasil”, em 1889, ainda hoje uma obra de referência. Ao Museu doou,
além da coleção de moedas e medalhas, livros, fotografias e documentos relacionados à nobreza
brasileira, obras de arte, além de uma peça especialmente devotada à memória de personalidades:
um leque, de madeira e papel, com 102 cm de abertura por 35 cm de raio, contendo mensagens
escritas por personalidades brasileiras e estrangeiras durante um período de 55 anos, como Dom
Pedro II (o primeiro a assinar, em 1890), a Princesa Isabel, Carlos Gomes, Alberto Santos Dumont,
Alexandre Dumas Filho, Machado de Assis, Eça de Queiroz, Getúlio Vargas e outros. A Viscondessa
assinou seu leque em 1945, um ano antes de sua morte. Especialmente para abrigar a coleção, o
Museu criou a Sala da Viscondessa de Cavalcanti. Mais uma vez se repetia o rito da perpetuação do
doador através da denominação da própria sala onde se encontram os objetos doados, uma espécie
de “museu dentro do museu”.
Assim como Alfredo Laje, Raymundo Ottoni de Castro Maya começou a sensibilizar-se pelo
gosto colecionista a partir da arte europeia, influenciado pelo seu pai, que comprou os primeiros
objetos que formariam a futura coleção quando ainda vivia na França. A fase da revelação/exibição
de sua coleção começou antes mesmo de criar seu próprio museu, pois Castro Maya recebia
amigos e visitantes em sua casa, geralmente aos domingos, para mostrar seus objetos colecionados.
O “amadurecimento” da coleção se deu com a criação formal da Fundação Castro Maya e,
posteriormente, através da doação das propriedades e suas coleções à Fundação, pouco antes de
falecer. As duas residências doadas à Fundação formaram dois museus distintos, inicialmente de
caráter privado, mas incorporado ao Estado quando surgiram as dificuldades de manutenção: a
Chácara do Céu, e o Museu do Açude, ambos na cidade do Rio de Janeiro.
Importante comerciante do ramo açucareiro e contemporâneo de Raymundo Ottoni de Castro
Maya, o soteropolitano Carlos Costa Pinto acumulou uma extensa coleção ao longo de sua vida, de
gosto eclético, composta por móveis, joias, porcelanas, cristais, marfins, pinturas e, especialmente,
prataria de procedência portuguesa. Ao lado da esposa, Margarida de Carvalho Costa Pinto, cuidou
de arranjar a coleção em sua casa de forma a conviver permanentemente com as peças adquiridas,
e deixar a residência “pronta” para transformar no museu que acalentava desde muito. Assim como
na história de Edouard André e Nélie Jacquemart, a criação do museu sonhado por Costa Pinto foi
efetivada através da dedicação de sua esposa, especialmente após o seu falecimento, em 1946. O
Museu Carlos Costa Pinto foi aberto ao público em 1969, em casa mandada construir por Margarida
especialmente para o conjunto das peças colecionadas. O Museu é mantido desde sua abertura com
que surgiram nos anos de 1990, também contribuíram e estimularam essas iniciativas. Outra
forma comum de relação entre colecionadores privados e museus são as cessões de peças por
comodato temporário, onde o colecionador mantém a propriedade de suas peças, apesar de
abrigá-las em museus existentes, em geral públicos.
Exemplo desse comportamento nas relações entre colecionadores e museus pode ser
visto na trajetória das irmãs Eva e Ema Klabin, filhas de um casal de imigrantes lituanos,
nascidas, respectivamente, em 1903 e 1907. Eva Klabin iniciou sua coleção no início dos
anos de 1940, comprando peças em viagens realizadas à Europa e aos Estados Unidos. Em
1952, adquiriu uma casa na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, onde pôde dispor de
espaço adequado para abrigar suas peças. Desde o início interessou-se pela arte proveniente
da Antiguidade e da Europa do fim do período medieval e início do Renascimento. Ema
Gordon Klabin, além do gosto pela arte europeia em geral, incluiu em sua coleção obras de
pintores modernistas brasileiros.
Eva Klabin criou, em 1990, um ano antes de seu falecimento, uma fundação, que teria, dentre
suas finalidades, a de manter um museu que abrigasse sua coleção, instalado na casa da Lagoa,
onde viveu os últimos anos de sua vida. Eva teve tempo de construir o ambiente museal que
desejava em sua casa, cujo roteiro conduziria os futuros visitantes a conhecer a evolução da
arte ocidental, intercalado dos cenários de sua vida pessoal, como o quarto e a sala de jantar.
Ema, como a irmã e tantos outros colecionadores, investiu também na construção de uma casa
para abrigar a coleção que crescia rapidamente, na Rua Portugal, Jardim Europa (São Paulo) e
alguns anos antes de falecer (1994) deu início a um inventário de toda a sua coleção, como passo
preliminar para prepará-la para o olhar público.
A trajetória de vida de Eva e Ema Klabin tem elementos bastante característicos do universo
colecionista já apresentado. Criadas em ambiente sofisticado, com disponibilidade financeira
suficiente para a aquisição de obras de arte de elevado valor comercial, passaram parte de suas
vidas na Europa e nos Estados Unidos, onde conheceram grandes museus e galerias de arte.
Com o crescimento das coleções, encomendaram casas para o abrigo das peças, cenários da
espetacularização das coleções. Assim como aos casais Alice e Miguel Calmon, Jacquemart e
André, e Margarida e Carlos Costa Pinto, Eva e Ema Klabin não tiveram filhos. No catálogo
publicado por ocasião da exposição “Universos Sensíveis: as coleções de Eva e Ema Klabin”,
ocorrida em 2004 nas cidades de São Paulo (Pinacoteca do Estado) e Rio de Janeiro (Museu
Nacional de Belas Artes), podemos verificar a reiteração do aspecto de construção da posteridade
do colecionador. No texto sobre Eva Klabin, é ressaltado o aspecto da generosidade do legado:
“a Fundação nasceu do desejo da colecionadora [...] de legar o precioso acervo reunido ao
37
UNIVERSOS Sensíveis. As coleções de Eva e Ema Klabin. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura/Pinacoteca; Rio de Janeiro:
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Museu Nacional de Belas Artes; 2004. p. 25.
38
Id. Ibid. p 62.
39
Disponível em: http://www.icfg.org.br/pt/angela.asp. Acesso em: 8 fev. 2012.
sua coleção, que são acrescentadas ao conjunto preservado no Museu. A exibição do acervo é feita
através de exposições temáticas, no museu ou fora deste.
No caso da Coleção João Sattamini, acrescentamos um outro dado: a prefeitura de Niterói
construiu um museu especialmente para abrigá-la, o Museu de Arte Contemporânea de Niterói,
cujo projeto arquitetônico foi confiado a Oscar Niemeyer. Uma nova relação de troca estava
estabelecida, diferente daquelas que marcaram o cenário da Museologia brasileira entre os anos de
1930 e de 1960: o colecionador disponibiliza o conjunto de sua coleção, sem doá-la definitivamente,
e o museu público criado exclusivamente para abrigá-la investe em sua manutenção e exibição.
Sattamini iniciou sua coleção quando morava em Milão, em 1966, cujo acervo também inclui
importante conjunto de artistas nacionais.
Jacques Van de Beuque e Lucien Filkenstein, nascidos na França, e que adotaram o Brasil
como residência definitiva, também criaram seus próprios museus a partir de coleções de arte. O
interessante nos dois casos é que os objetos colecionados por ambos privilegiaram as expressões
artísticas genuinamente brasileiras; Jacques adquiriu peças de arte popular de diversas regiões do
país, e Lucien a pintura naïf (primitiva ou ingênua, como também é conhecida), inicialmente de
artistas brasileiros, se estendendo mais tarde para artistas de variadas nacionalidades.
Após guardar sua coleção por 20 anos em sua própria residência, Jacques Van de Beuque
construiu um novo imóvel onde pudesse expor as peças, na zona oeste do Rio de Janeiro,
conhecido por Museu Casa do Pontal, aberto ao público em 1992. O próprio colecionador
projetou os espaços de exposição e criou os roteiros temáticos. Lucien adquiriu uma casa no
bairro do Cosme Velho, também da cidade do Rio de Janeiro, e abriu ao público o Museu
Internacional de Arte Naïf em 1995.
Os museus chegam ao século XXI como territórios simbólicos privilegiados. Para Andreas
Huyssen, especialista em temas ligados à pós-modernidade e à globalização, passaram de “bode
expiatório a menina dos olhos da família das instituições culturais”.40 Ainda para Huyssen, a
transformação do museu na contemporaneidade teria causado impacto profundo da política
de “exibir e ver”, influenciando as práticas estéticas da atualidade, através da construção de
espetáculos e superproduções de grande sucesso de público. Não é sem razão que cada vez
mais os proprietários de coleções – sobretudo de arte – orbitam ao redor dos museus e de sua
popularidade. A velocidade da consagração dos objetos de uma coleção e, portanto, do seu
proprietário, são infinitamente maiores hoje em dia, devido à intensa circulação da informação.
Mas também o risco de volatilização ou de efemeridade de uma coleção é igualmente maior
40
HUYSSEN, Andreas. Escapando da Amnésia. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, MEC, 1994, no. 23. p. 35.
e, mais uma vez, o museu continua servindo para superar o perigo da dispersão, conforme
assinalou Pomian.
Um repertório mais completo sobre as relações entre colecionadores particulares e museus no
Brasil ainda merece aprofundamentos, visto a contribuição que fornecerá para conhecer a própria
trajetória dos museus e de suas coleções em nosso país. Se não existem mais as salas dedicadas
aos colecionadores em museus públicos, ou os conjuntos que permanecem indissoluvelmente
reunidos em exposições, como forma de aliança entre o público e o privado, as relações de troca
continuam forte. As iniciativas de criação de museus privados no Brasil têm recebido grande aporte
financeiro do Estado, através de uma série de mecanismos de renúncia fiscal, apoio direto a projetos
específicos, benfeitorias, etc. As trocas hoje não são mais efetuadas entre gestores dos museus e
colecionadores, mas diretamente com os poderes públicos, através do sistema legal existente de
apoio cultural. O “empreendedorismo museológico” não significa, portanto, que os colecionadores
privados estão assumindo integralmente as iniciativas de criação dos museus, sem “cobrarem” a
parte do Estado.
O “desejo” de museu continua na ordem do dia por parte dos colecionadores. Talvez em razão
da chamada “angústia metafísica” a que se referia Rheims, ou para permitir a própria transcendência
à morte através da exposição dos objetos “ao olhar”, como assinalou Pomian, ou porque os museus
detêm, cada vez mais, uma espécie de “autoridade pedagógica”, pois que abrigam os objetos que
são “dignos de serem admirados e degustados”, segundo Baudrillard. Ou talvez pela soma de todas
essas questões.
*
Doutor em Antropologia Social e Professor Titular da UFRJ.
1
A expressão “regime de memória” é utilizada por Johannes Fabian para referir-se a uma arquitetura de memória, internamente estruturada
e limitada, que tornaria possível a alguém contar histórias sobre o passado. Cf. FABIAN, Johannes. Anthropology with na attitud: critical
essays. Stanford University Press, 2001.
O lugar que lhes cabe, nessa interação simulada e controlada, é o mesmo desde os antigos
gabinetes de curiosidades, despertando interesse nos visitantes – constituem “troféus de guerra” da
expansão colonial, amostras concretas de homens e coletividades “exóticas” que foram levadas de
vencida pelo avanço da civilização ocidental, mediatizadas através do capitalismo e do cristianismo.
O visitante olha o intimidador machado de guerra de um chefe tribal como quem passeia entre as
preciosidades de um antiquário, certo de que tudo aquilo apenas se reporta ao passado. Se ainda
vivo estiver o descendente de quem o portou será já um nativo “pacificado”, ocidentalizado e
cristão. O indígena que o museu apresenta ao visitante é pura reminiscência, desfrute sensorial ou
estético, evocação de horror ou de piedade, mas não tem nada a ver com a sua contemporaneidade
nem com qualquer perspectiva de futuro de que participe.
Nas últimas décadas, sob o influxo do multiculturalismo e em um momento em que as agências
da chamada cooperação internacional preconizam formas de desenvolvimento que preveem a
participação e a utilização de saberes indígenas, apareceram muitos museus que se reivindicam
como indígenas, baseando-se em critérios muito distintos.
Que formas e funções um museu deve assumir para que possa ser descrito como algo
efetivamente indígena? Esta é a questão que buscaremos responder neste trabalho, tomando como
foco o Museu Maguta, localizado na cidade de Benjamin Constant, Amazonas, criado pelos índios
Ticunas em 1991, exatamente duas décadas atrás.2
2
Dada a ausência de fontes sobre a história mais recente dos Ticunas, abrangendo os eventos da década de 1970 até hoje, teremos que em
alguns momentos suprir tal lacuna descrevendo fatos e personagens não diretamente referidos ao Museu Maguta, mas que precisam ser de
conhecimento do leitor para lhe permitir uma indispensável contextualização.
3
As fontes bibliográficas aqui utilizadas são OLIVEIRA, João Pacheco de. O Nosso Governo: os Ticunas e o regime tutelar, São Paulo/
Brasília, Marco Zero/CNPq, 1987; _____. Ensaios de Antropologia Histórica, Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 1999; _____. Os Ticunas
hoje. Manaus: UFAM, 2001.
pela localidade onde estava o mais forte seringal da região. Desta feita, porém, em virtude de uma
presença bem mais acentuada de organismos federais na região, os “patrões” não dispuseram de
meios políticos para reverter ou paralisar completamente as ações indigenistas.
Em 1980, o capitão da aldeia de Vendaval, Pedro Inácio Pinheiro (“Ngematucu”), convidou
todos os chefes de comunidades para uma assembleia geral do povo Ticuna, indicando que a pauta
seria constituída pela definição das terras de que necessitavam e por ações de proteção da língua
e, implicitamente, da cultura Ticuna. Durante a visita preliminar às aldeias para a distribuição
dos “convites”,6 foram surgindo os primeiros mapas (parciais) de cada localidade, resultado das
discussões com as lideranças locais. O sobrinho de Pedro Inácio, que o acompanhara para ajudar
nos cuidados com o motor, era também um habilidoso desenhista e durante as conversas começou a
traçar as terras de cada aldeia em folhas de papel colocadas sobre uma prancheta que o antropólogo
levava consigo. Ao final dessa longa viagem em canoa, resultou um conjunto de desenhos que,
na primeira reunião dos capitães, realizada em Campo Alegre, em 01-11-1980, foram juntados
e consolidados, resultando na primeira planta de delimitação das terras Ticunas. Uma comissão
de três capitães7 foi formada e ficou encarregada de viajar à Brasília e entregar ao presidente da
FUNAI a proposta dos Ticunas, o que ocorreu em janeiro seguinte. Uma notícia sobre a primeira
assembleia de capitães, assim como o mapa ali desenhado, foi organizada pelas lideranças do
CGTT e distribuído nas aldeias sob o formato de um pequeno jornal, intitulado Maguta8 (cuja capa
reproduzia em um desenho o episódio mítico da criação dos primeiros homens por Dyoi). Este foi
o primeiro de uma série de 33 jornais Maguta, que rodados nos mimeógrafos das escolas indígenas,
circularam por cerca de 13 anos, sempre com a mesma forma e finalidade, enquanto veículo de
informação entre os capitães e colaboradores do CGTT, seguindo-se a cada assembleia, comitiva à
Brasília ou conflito ocorrido na área.
Tais episódios marcaram o início da mobilização dos Ticunas pela demarcação de suas terras
tanto no plano local quanto ao nível nacional.
6
Os convites eram pequenos pedaços de papéis, onde se podia ler, datilografado, no alto a palavra “convite”, na linha abaixo “primeira
reunião geral dos capitães Ticunas”, seguida abaixo pela indicação de local (o nome da aldeia) e a data do evento. Cabe observar que a
instituição do “convite” não é estranha aos costumes Ticunas, ocorrendo frequentemente por ocasião das chamadas “festas de moça nova”
(“worecu”), quando o tio paterno e o pai desta visitam os parentes e amigos, e tocando uma buzina especial, fazem oralmente o convite para
o ritual. Nimuendaju já observava nos anos 40 ocorrer a utilização de bilhetes e cartas com a mesma finalidade de avisos.
7
Composta por Pedro Inácio Pinheiro, capitão de Vendaval, Adércio Custódio, capitão de Campo Alegre, e José Demétrio, capitão de Feijoal.
8
Eram assim chamados os primeiros homens, pescados com vara por Dyoi no igarapé Evare. Literalmente significa conjunto de pessoas
pescadas com vara. Não correspondia estritamente a uma autodenominação, pois segundo os mitos estes homens ainda eram imortais
(propriedade que irão perder posteriormente, tornando-os assim iguais aos Ticunas atuais). É importante notar porém que os líderes do
CGTT o utilizam dessa forma, recuperando a grandeza de seus antepassados e aplicando-a a um projeto político contemporâneo.
A mobilização dos Ticunas pela demarcação de suas terras é um processo que se estende por
toda a década de 80. Implica tanto em muitas ações locais e no extremo aguçamento dos conflitos
entre os índios e os invasores de suas terras, quanto em eventos ocorridos fora da região (comitivas,
reuniões com autoridades, entrevistas com imprensa, etc). A minha intenção aqui não é fazer um
registro etnográfico acurado deste processo, mas apenas indicar algumas de suas características
com vistas a contribuir para a compreensão das condições de criação do Museu Maguta e do seu
verdadeiro significado político.
Um grupo de trabalho da FUNAI foi enviado ao Alto Solimões para visitar as áreas Ticunas e
produzir uma proposta de delimitação de suas terras. Viajando pela região na companhia de alguns
principais líderes indígenas e apoiando a sua argumentação antropológica em uma dissertação
de mestrado então recente9, o GT elaborou uma proposta muito semelhante àquela encaminhada
pela comitiva indígena. Os dirigentes da FUNAI, no entanto, não deram andamento ao relatório
baseando-se na justificativa de que a sistemática de definição de terras seria futuramente modificada
pelo governo e o processo teria que ser totalmente revisado. Em 1983, o decreto 88.118 veio
mudar a instância de decisão quanto à criação de terras indígenas.10 Um segundo GT foi formado
pela FUNAI, apresentando outra proposta de delimitação, que implicava contudo apenas em uma
pequena redução da proposta anterior. Somente no final de 1984, às vésperas da Nova República,
a FUNAI veio a tomar uma decisão final, apoiada em uma comissão de especialistas por ela
convocada.
Na segunda reunião de capitães, realizada em Belém do Solimões, em 1982, foi criado o
Comando Geral da Tribo Ticuna (CGTT) e escolhida sua diretoria, presidida pelo então capitão
da aldeia de Vendaval. No plano local, os indígenas, já após a passagem do primeiro GT, tomaram
a delimitação como realizada, retirando os invasores fixados dentro destes limites e proibindo
as incursões de madeireiros e pescadores dentro de suas terras e lagos. Duros enfrentamentos
9
OLIVEIRA, João Pacheco de. As facções e a ordem política em uma reserva Ticuna, [dissertacao, mestrado] Universidade de Brasília, 1977,
315 pgs. Embora se tratasse de um estudo localizado, os dois capítulos iniciais, atingindo quase 100 pgs, traçavam um amplo panorama da
distribuição da população indígena no Alto Solimões, fornecendo um histórico das relações interétnicas, apresentando dados demográficos,
descrição da formação das principais aldeias, com mapas e genealogias, além de descrever o deslocamento de famílias entre as diferentes
aldeias e igarapés.
10
A partir deste decreto a decisão – antes de ser remetida ao nível ministerial e a Presidência da República - não caberia apenas ao Presidente
da FUNAI, mas a um grupo técnico integrado por representantes da FUNAI, do Ministério do Interior e do Conselho de Segurança Nacional.
O critério para a definição dos limites de uma terra indígena não seriam mais apenas a ocupação imemorial pelos indígenas, mas também
considerando outros fatores (como os interesses do desenvolvimento e da segurança nacional) e respeitando os direitos resultantes da
“situação atual” (isto é, das propriedades, posses e benfeitorias dos não indígenas). Cf. OLIVEIRA, João Pacheco de. Demarcação e
reafirmação étnica. Saberes, rotinas e poderes coloniais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contracapa, 1998.
ocorreram nas localidades de Cajari, Acaratuba e Ourique, onde motores e malhadeiras chegaram
a ser apreendidos pelos índios. Em represália, várias lideranças foram ameaçadas, feridas por
terceiros em circunstâncias não esclarecidas e outras inclusive presas nas delegacias de polícia de
São Paulo de Olivença e de Tabatinga.11
Um conflito de maior gravidade ocorreu no domingo do carnaval de 1985, quando o então
presidente da FUNAI, Nelson Marabuto, visitou a aldeia de Umariaçu e, com a presença do
comandante da guarnição de fronteiras (CF-SOL), comunicou aos líderes indígenas ali reunidos
que a FUNAI havia concluído os seus estudos de delimitação e que a proposta de criação das áreas
ticunas já havia sido oficialmente encaminhada às instâncias superiores do governo. A reunião
terminou festivamente pois, além das notícias trazidas, era a primeira vez que um presidente da
FUNAI visitava as aldeias Ticunas.
O barco que conduzia as lideranças de retorno às aldeias pernoitou em Benjamin Constant,
onde, pela madrugada, a prisão de um indígena e seu espancamento público, pela PM, acabaram
conduzindo a um enfrentamento aberto entre o destacamento policial e os parentes da vítima. O
saldo final foram doze indígenas baleados e dois PMs feridos, num conflito que só não adquiriu
proporções maiores devido à rápida intervenção de agentes da Polícia Federal (que integravam a
comitiva do presidente da FUNAI) e a presença de militares do CF-SOL.
O fato, porém, deixou evidente a forte reação de comerciantes, madeireiros, pescadores e das
autoridades locais quanto à possibilidade de demarcação de terras para os Ticunas, algo que até
então fora objeto de descrédito e de pilhérias (enquanto política pública) e de ameaças e retaliações
(no que tange as relações concretas com os indígenas). Com vistas a chamar atenção para a riqueza
do patrimônio cultural dos Ticunas, pesquisadores do Museu Nacional, através de um pequeno
projeto do Ministério da Cultura, vieram a editar em 1985, o mito de origem deste povo em
português e em sua própria língua. O livro, intitulado Toru Duu Ugu (“Nosso povo”), envolveu
jovens professores Ticunas12, que realizaram a transcrição e tradução dos longos mitos contados
por velhos narradores, o texto sendo ilustrado com desenhos feitos por indígenas. Em uma fala
forte, colocada na contra-capa, os dirigentes do CGTT, Pedro Inácio Pinheiro e Adércio Custódio,
respectivamente presidente e vice-presidente, anunciavam que naquele livro estava registrada a
“história verdadeira” do povo Ticuna, comparando-o à importância da bíblia e associando-o à luta
pelo seu “território tradicional”.
Dada à fraqueza e omissão da FUNAI, os indígenas por diversas vezes buscaram apoio em entidades como a OAB, em comissões do
11
Emílio Marques (Campo Alegre), Miguel Firmino (Campo Alegre) e José Tenazor (Belém do Solimões).
do Conselho de Segurança Nacional. A estratégia definida pelos líderes foi de que, na interação
com os representantes do governo, todos falariam somente o seu próprio idioma, enfatizando sua
condição de monolíngues, deixando apenas ao capitão-geral e ao secretário do CGTT a tarefa de
traduzir suas respostas. Levado num sobrevoo aos altos igarapés Pedro Inácio indicou que as casas
e ocupações indígenas chegavam até próximo da fronteira, ali iniciando-se o território sagrado do
Evare, local de criação dos Ticunas, ainda hoje habitado pelos imortais. As reuniões de capitães
foram intensificadas de maneira a evitar fissuras na unidade existente entre os líderes das muitas
comunidades locais.
Com a finalidade de “fortalecer a presença dos organismos públicos na faixa de fronteira”
(uma das finalidades básicas do Projeto Calha Norte), a FUNAI-Tabatinga em 1986 recebeu
80 vagas de professores para as escolas indígenas. Em reunião, ocorrida no Paranã do Ribeiro,
capitães e professores criaram a Organização Geral dos Professores Ticunas Bilíngues (OGPTB),
cuja diretoria, coordenada por Nino Fernandes, passou a intermediar a contratação dos novos
professores. Em muitos encontros posteriores, os indígenas vieram coletivamente a definir as
finalidades e a metodologia de ação dos professores indígenas contratados, estabelecendo um
parâmetro do que deveriam ser as escolas Ticuna, dirigidas por eles mesmos e sem a intervenção
de professores brancos. Ao invés de fragmentar a unidade dos indígenas e criar interesses e
vozes dissidentes, a contratação ampla de monitores bilíngues contribuiu para uma rápida
consolidação da OGPTB, que estabeleceu uma agenda propositiva e deu sentido positivo à
atuação dos novos servidores.16
Alguns anos depois da criação da OGPTB, foi fundada a OSPTAS, ambas claramente referidas
ao CGTT, de cujas assembleias sua diretoria e principais lideranças participavam regularmente. Em
1990, iniciou-se no Peru uma epidemia de cólera que logo alastrou-se para o Brasil, atingindo Manaus
e outras capitais. As autoridades alertaram para o enorme risco sofrido por populações ribeirinhas
e urbanas marginalizadas do sistema de saúde, enfatizando especialmente a vulnerabilidade das
populações indígenas. Com a orientação técnica e o apoio financeiro da entidade Medecins Sans
Frontières, o CDPAS veio montar um esquema de vigilância e atendimento primário nas aldeias
mediante monitores indígenas para isso treinados, com a rápida transferência de casos confirmados
de cólera para hospitais em cidades próximas (BC, TBT e SPO). O sistema de rádios e barcos
utilizados na proteção das terras foi ampliado e incorporado a essas novas finalidades. Destas
16
Sobre a formação e trajetória da OGPTB, cf. BENDAZZOLI, Sirlene. Políticas públicas de educação escolar indígena e a formação de
professores Ticunas no Alto Solimões/AM, [Tese de doutoramento] Faculdade de Educação, USP, São Paulo, 2011. Para uma inserção dos
processos educativos nas estratégias e projetos de jovens Ticuna, cf. PALADINO. Mariana. Estudar e experimentar na cidade: trajetórias
sociais, escolarização e experiência urbana entre ‘jovens’ indígenas Ticuna, Amazonas. [Tese de doutoramento] Antropologia Social,
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro, 2006.
iniciativas resultou a criação da Organização de Saúde do Povo Ticuna do Alto Solimões (OSPTAS),
que na década seguinte se constituiria na base para o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI)
do Alto Solimões.
Apesar de delimitadas, as 4 terras indígenas continuavam invadidas por madeireiros e
posseiros perante a omissão da FUNAI-Tabatinga e até mesmo o estímulo tácito da prefeitura de
Benjamin Constant. Os líderes indígenas no entanto continuavam a pedir providências da FUNAI-
Brasília e da Polícia Federal. Em 25 de março de 1988, a retransmissora da Rádio Nacional em
Tabatinga começou a divulgar um aviso da FUNAI para que os posseiros residentes naquelas áreas
comparecessem à sua sede local munidos de documentos para receber as indenizações a que tinham
direito por benfeitorias existentes naquelas 4 áreas. Na segunda-feira, 28, houve tumulto e muita
briga na sede da FUNAI pois muitos posseiros não concordaram com os cálculos de indenização e
faziam ameaças aos funcionários.
A reação mais silenciosa e terrível porém ocorreu no igarapé do Capacete, onde um antigo
“patrão” tivera que retirar apressadamente centenas de toras de madeira cortadas no alto igarapé.
Numa vendetta de sangue, contando com a cumplicidade de comerciantes e de políticos locais,
cerca de 20 de seus empregados atacaram indígenas que seguiam em procissão, numa celebração
religiosa no Capacete. Lá estavam homens, mulheres, velhos e crianças. Foram mortas 10 pessoas
e 23 feridas à bala, no que ficou conhecido pela imprensa nacional como o Massacre do Capacete.
Tomadas de surpresa, as lideranças do CGTT acorreram ao Centro Maguta, onde conseguiram barco
para visitar o local, começando na volta a atender as vítimas, divulgar notícias para a imprensa e
exigir providências da FUNAI e Polícia Federal.
As únicas imagens dos mortos foram tomadas por uma dessas lideranças, Pedro Mendes
Gabriel, que com uma filmadora conseguiu captar as cenas do velório de duas das vítimas. Um
número do jornal Maguta, baseado no relato do professor indígena Santo Cruz Clemente Mariano
sobre as violências que havia presenciado. Apresentava também a lista das vítimas, incluindo
crianças e velhos, conferida com as pessoas das comunidades.
Embora a FUNAI de Tabatinga confirmasse as mortes, o presidente da FUNAI e a
superintendência de Manaus negaram durante vários dias o ocorrido, atribuindo-o a informações
distorcidas fornecidas por antropólogos e pelo CIMI. Três professores Ticunas foram sumariamente
demitidos.17 A Polícia Federal no dia seguinte esteve no local, encontrando somente 4 corpos (os
demais foram atirados no rio Solimões) e realizando a prisão dos atacantes (que ainda estavam nas
imediações e fortemente armados).
17
Eram Nino Fernandes, Alírio Mendes de Moraes e José Tenazor, todos bem mais tarde reintegrados pela FUNAI local.
Apesar das reações nacionais e internacionais, em menos de 30 dias todos os acusados estavam
outra vez soltos, respondendo em liberdade ao processo (apenas julgado mais de 10 depois). Um
destes, identificado pelos indígenas como um dos mais violentos, chegou até a eleger-se vereador.
Os três anos que se seguiram foram bastante difíceis para os indígenas. As famílias das 4
comunidades declaradas e desintrusadas puderam enfim tomar posse de suas terras, mas o preço a
pagar foi muito alto. O acirramento do antagonismo com os regionais chegou a um nível extremo.18
Uma caravana de índios evangélicos vindos do Peru para uma celebração na igreja batista de Nova
Filadélfia foram proibidos de desembarcar pela PM e mandados de volta. Neste quadro de paranoia
dos regionais e das autoridades locais o CGTT evitou promover novas reuniões de capitães.
Outras ações importantes para os indígenas estavam em andamento neste período e tiveram
continuidade . Em 1987, o Centro Maguta recebera o apoio de duas agências filantrópicas – a ICCO,
da Holanda e a OXFAM/Brasil – para os seus projetos, saindo de sua antiga sede e adquirindo
um terreno, onde edificou ao fundo um amplo escritório e alojamento em madeira, em que eram
realizadas as reuniões menores do CGTT e da OGPTB. Uma entidade italiana, Amigos da Terra,
financiou a instalação de quinze radiotransmissores, distribuídos pelo CGTT entre as aldeias mais
ameaçadas por invasores, sendo todo o sistema operado exclusivamente por lideranças indígenas e
tendo sua unidade central em Benjamin Constant, na sede do Centro Maguta, onde Nino Fernandes
mantinha-se em contato diário com o capitão-geral e os capitães do CGTT. Uma canoa de alumínio
de 40 HP e um motor de centro complementavam assim um programa de proteção e vigilância das
terras indígenas controlado pelos dirigentes do CGTT.
Se a prevenção de invasões funcionava com relativa eficácia, a hostilidade contra os
indígenas em Benjamin Constant ia cada vez mais crescendo, necessitando de mecanismos
eficientes de reversão. Lançando mão de seus recursos o CDPAS veio a construir na parte da
frente de seu terreno uma casa de alvenaria destinada a abrigar um museu da cultura Ticuna.
Como a animosidade de alguns moradores de BC, agravada com os acontecimentos do igarapé
do Capacete, inviabilizasse a abertura deste museu, foi inaugurada neste prédio, ainda em 1988,
uma biblioteca que dispunha de livros, revistas e xerox com uma ampla documentação sobre
os Ticunas e a região do Alto Solimões. Muito lentamente professores e estudantes de escolas
do ensino médio de BC começaram a vencer seus preconceitos e temores, vindo a realizar suas
18
Por várias vezes ocorreram denúncias de que os Ticunas teriam envenenado a estação de tratamento de águas de BC e que teriam colocado
vidro moído nos paneiros de farinha que vendiam no mercado local.
19
Especialmente NIMUENDAJU, Curt. The Tukuna. Berkeley & Los Angeles: The University of California Press, 1952 e OLIVEIRA,
Roberto Cardoso de. O índio e o mundo dos brancos. São Paulo: Livraria Pioneira, 1964.
indígena em visita a Brasília, o presidente da FUNAI deixou claro que, dado ao vulto dessa
demarcação, não contava com recursos orçamentários que lhe permitissem executá-la. Os líderes
indígenas exigiram como prova da veracidade disso que os estudos para demarcação lhes fossem
entregues, o que de fato ocorreu. Durante a Conferência do Rio (ECO-92) dirigentes do CGTT
e do CDPAS conseguiram fazer chegar ao primeiro-ministro austríaco o projeto de demarcação
das terras Ticunas, solicitando o seu apoio a esta medida concreta de proteção aos indígenas da
Amazônia e ao meio ambiente. O governo austríaco aceitou subsidiar o projeto, anunciando
publicamente isto ainda na ECO-92.
Uma complicada engenharia institucional foi tecida, com um convênio trilateral, envolvendo
uma agência austríaca de cooperação internacional, o VIDC; o CDPAS, que iria ocupar-se de todas
as atividades relativas à demarcação, isto incluindo a licitação e escolha de uma empresa executora,
a fiscalização e acompanhamento das obras, o pagamento e a prestação de contas; e a FUNAI,
que se encarregaria apenas de verificar a correção dos procedimentos técnicos e de preparar o
decreto de homologação das demarcações. Assumir todas as responsabilidades legais - financeiras,
contratuais, civis e penais – para a demarcação física de quase 1 milhão de hectares das terras
Ticunas, num projeto que montava a meio milhão de dólares, foi um desafio imenso para o CDPAS,
realizado graças à contratação temporária de quadros técnicos.
O que cabe destacar aqui especialmente é a condução política local do processo, toda ela
feita em completa sintonia com os dirigentes do CGTT e os capitães das aldeias envolvidas na
demarcação. Uma comissão de 30 capitães Ticunas foi formada, visitando sistematicamente as
picadas e derrubadas, fiscalizando os rumos dos trabalhos de demarcação. Duas reuniões de capitães
foram realizadas, com a presença da empresa contratada e de técnicos da diretoria fundiária da
FUNAI-Brasília, para esclarecimento de todas as questões relacionadas à demarcação. Extensa
documentação em fotos e vídeos foi feita sobre a demarcação Ticuna. Em novembro de 1993, toda
a área afinal demarcada foi percorrida pelos dirigentes do CGTT e do CDPAS, sendo celebrada
festivamente nas aldeias esta importante vitória dos indígenas.
O contexto pós-demarcação
Observando o funcionamento do CGTT durante o seu período mais ativo de existência é possível
notar que ele foi concebido pelos Ticunas segundo o modelo de um parlamento indígena, tendo como
modalidade de operacionalização as assembléias de “capitães” 20 das aldeias, convocados segundo
20
Tratava-se de cargos não remunerados e de livre escolha das comunidades, que eram preenchidos por pessoas com uma coesa parentela e
dotes de liderança (conduta exemplar, prestígio reconhecido, capacidade de convencimento e retórica de líder).
as necessidades colocados por cada conjuntura. Embora fossem eleitas “diretorias”21 que variavam
refletindo a importância política das comunidades e seu grau de compromisso com as tarefas do
CGTT, a referência maior era o seu presidente, Pedro Inácio Pinheiro, chamado sintomaticamente
de “capitão geral” e sempre re-eleito por aclamação. O seu mandato era primordialmente lutar
pela demarcação das terras, exercendo uma liderança carismática e quase messiânica, o que não
conflitava de modo algum com o poder local dos capitães, que constituíam a autoridade máxima
nas atividades de rotina de cada comunidade.
Um objetivo secundário mas sempre presente nas reuniões do CGTT22 era a luta pela
valorização da cultura Ticuna. Isto era bastante claramente sinalizado em cada assembleia
realizada nas aldeias, que sempre que possível era acompanhada pela celebração paralela de
um ritual de iniciação feminina (“worecu”), que é a maior celebração da cultura Ticuna. Alguns
capitães vinculados às igrejas evangélicas preferiam apenas acompanhar e assistir o ritual, pois
por sua religião eram proibidos de ingerir bebidas fortes (caiçuma e pajauaru), dançar e realizar
“brincadeiras com espíritos” (dança com os “mascarados”). Aceitavam, porém, o ritual, pois viam
a importância emblemática que tinha para os convidados externos (os seus aliados brancos). Foi,
aliás, isto que embasou e justificou a posterior formação de um museu Ticuna, que logo passou a
ter bastante visibilidade, além de pessoas das comunidades recebendo regularmente estudantes de
BC, visitantes colombianos e turistas estrangeiros.
Como mesmo depois de concluída a demarcação ainda restavam algumas pequenas situações,
locais a serem resolvidas23, o CGTT ainda manteve durante mais alguns anos a sua importância
e a sua função agregadora. Mas novas forças começavam a configurar-se, delineando projetos
alternativos de incorporação dos Ticunas à vida regional e a novos esquemas administrativos. O que
fazia afluir com mais força as rivalidades entre aldeias e entre conjuntos de aldeias de um mesmo
município, as fortes diferenças nas orientações religiosas, as formações corporativas específicas.
Foram surgindo progressivamente outras organizações indígenas, como a OMITAS (de
pastores evangélicos), a FOCIT (também iniciada por lideranças evangélicas, mas que acabou por
21
Procedimento aliás com o qual os Ticunas já estavam bastante familiarizados, pois eram comuns na organização religiosa de cada
comunidade vinculada ao movimento da Santa Cruz, cuja atuação se estruturava mediante irmandades locais.
22
Cabe destacar que o CGTT foi a primeira organização indígena de escala local a funcionar no Brasil. A ênfase no respeito às peculiaridades
de cada comunidade local, assumindo o caráter de uma federação, está expressa no termo “geral”, usado também em outras associações
criadas entre os Ticunas. A caracterização dos povos indígenas como “tribos”, fortemente criticada por antropólogos e pelo movimento
indígena já naquele período, explicita a sua interlocução local – tratava-se de afirmar sua autonomia e especificidade face aos sertanistas
da FUNAI, cuja atuação se estendia também às “tribos do (rio) Javari”. A sigla, no entanto, fazia lembrar curiosamente uma entidade pan-
sindical, a Confederação Geral dos Trabalhadores, proibida pelo governo militar e que fora bastante mencionada pela mídia.
23
Foi o caso de três comunidades mais afastadas, localizadas no rio Içá e nos municípios de Amaturá e São Paulo de Olivença, além da
regularização fundiária da comunidade de Lauro Sodré e da antiga reserva de Umariaçu.
reunir capitães dissidentes do CGTT, além de admitir professores, pastores e vereadores indígenas),
associações de mulheres de diferentes terras indígenas e organizações municipais (como a das
comunidades indígenas do município de São Paulo de Olivença).
À medida que todas estas áreas de atuação se diversificavam, foram surgindo orientações
divergentes, disputas por liderança e controle de verbas de projetos. Dois fatos ocorridos em 1992
indicavam isto. O primeiro foi a eleição da nova diretoria do CDPAS24, o segundo a concessão
de licença remunerada para um indígena que trabalhava no CDPAS e concorria ao cargo de
vereador25. A oposição entre capitães e indígenas que, por razões diversas, eram contratados para
atuar nos projetos regulares do CDPAS, chamados pelos capitães de “funcionários”, era uma força
centrípeta latente.
Com a demarcação já concluída as agências que antes apoiavam as atividades do CDPAS
tenderam a reduzir seus financiamentos, o que exigia uma diminuição sensível no quadro de
pessoas contratadas. O fato foi visto com grande preocupação pela diretoria do CDPAS, que por
sua importância levou o assunto a uma reunião do CGTT. No debate surgiram algumas críticas
aos “funcionários”. Ao final, os capitães autorizaram a diretoria a discutir com as agências a
possibilidade de uma redução - lenta e progressiva - de quadros.
A reação de assessores e da diretoria da OGPTB - que no momento contavam com fontes de
financiamento próprias e sem controle direto do CGTT ou do CDPAS, possuindo também um amplo
centro de treinamento, recém construído em Nova Filadéfia – foi muito forte e desproporcional.
Retiraram-se de imediato do espaço físico do Centro Maguta, dali levando todas as coisas que
24
Em uma reunião de capitães ocorrida no Centro Maguta, em 1992, João Pacheco, como presidente daquela entidade, anunciou a decisão
da equipe de pesquisadores de abandonar todos os postos de direção do CDPAS, que deveriam ser escolhidos pelos próprios indígenas
em votação a ser feita naquela ocasião. Os pesquisadores permaneceriam apenas na condição de “assessores” de projetos específicos. No
último dia da reunião formalizaram-se duas chapas, uma refletindo o consenso da maioria e liderada por Pedro Inácio, outra integrada por
indígenas que trabalhavam no CDPAS. Surpreendido com a inusitada disputa e a alegada maior escolaridade dos seus oponentes, Pedro
Inácio ameaçou retirar sua candidatura se João Pacheco não viesse a integrá-la como vice-presidente, justificando isto pela “necessidade
de assinatura de muitos papéis”. Vencedora com ampla maioria (cerca de ¾ dos votantes), a nova diretoria – com a “cabeça” e a maioria
indígena - foi empossada e bastante festejada.
25
Esta solicitação foi apresentada por Constantino Ramos Lopes, que era no momento encarregado da biblioteca do CDPAS e de atender a
eventuais visitantes do museu, sendo bastante criticada por Pedro Inácio e por outros capitães, que viam nisso sinal de pouco compromisso
com as tarefas coletivas e com as consequências públicas das ações realizadas. Ao final, considerando-se a situação legal – a existência
de carteira assinada pelo CDPAS como empregador e uma orientação clara da justiça eleitoral – a licença foi concedida, sendo colocado
temporariamente outro jovem indígena nas tarefas da biblioteca. Como Constantino não conseguiu eleger-se, ao retornar passou a ocupar-se
apenas da recepção aos visitantes do museu.
consideravam suas e transportando-as para a sua nova sede. Além dos materiais didáticos,
arquivos e mobiliário que guardavam no CDPAS, foram também removidos todos os livros da
biblioteca. Segundo o relato de alguns capitães o acervo do museu só não teve a mesma sorte
devido a sua intervenção. A partir deste ano, 1996, houve uma completa ruptura política entre as
duas organizações, que não mantiveram mais atividades nem projetos comuns, operando em locais
e contextos distintos.
O impacto desta ruptura sobre as duas organizações Ticunas foi muito distinto, em um caso
agudo e desestruturante, no outro bastante mediatizado mas com repercussões estruturais e crônicas.
Os funcionários indígenas e não indígenas do CDPAS – inclusive os que estavam vinculados a
projetos em andamento da OGPTB - ingressaram com ações na justiça do trabalho que montavam a
um valor bastante elevado. Na cidade especulava-se sobre a iminência da penhora e venda do prédio
e de todo o patrimônio móvel. Em novas negociações da diretoria do CDPAS com a ICCO esta
agência concordou em colaborar financeiramente com a resolução do problema, devendo contudo
encerrar o seu apoio aos projetos da entidade. Foi enviado à região um advogado especializado em
causas trabalhistas que conseguiu fazer acordo com cada um dos litigantes, pagando de imediato
os novos valores consensuados e quitando em caráter definitivo as dívidas gravadas em nome de
Pedro Inácio e da diretoria do Centro Maguta.
Por outro lado tal afastamento implicou no fortalecimento de uma tendência corporativa e
despolitizante na OGPTB, cujos integrantes já mantinham relações empregatícias com a FUNAI e
os municípios e sofriam naturalmente um controle e avaliação por parte destes organismos.26 Sem
a presença do CGTT nos cursos e assembleias de professores, os materiais didáticos produzidos
e as autoafirmações identitárias passaram a estar somente referidos à cultura tradicional e ao
passado mítico, sem qualquer referência às mobilizações políticas das duas últimas décadas e as
instituições, fatos e personagens políticos aí surgidos.27 A articulação local entre professores e
capitães, fundamental para a defesa da terra e para o desenvolvimento de projetos comunitários,
também enfraqueceu-se, não sendo poucos os casos em que professores se apresentavam como
lideranças concorrentes com os capitães, o cargo de professor servindo como trampolim para
concorrer a vereador ou obter outros empregos assalariados no município.
26
As orientações das secretarias municipais e estaduais de educação por muito tempo conflitaram com a perspectiva de uma educação
diferenciada para os indígenas, cujas escolas eram frequentemente invadidas por material didático inapropriado, distribuído de forma
impositiva.
27
Um incidente grotesco ocorreu na visita de Pedro Inácio e Adércio Custódio, respectivamente presidente e vice-presidente do CGTT, à
aldeia de Betânia. Ao ouvir os líderes falarem em “demarcação de terras”, o diretor da escola e os seus professores perguntaram do que
se tratava, pois jamais haviam ouvido tal expressão. Também não sabiam do CGTT, nem das mobilizações recentes, julgando tratar-se de
“projetos do INCRA”. Os capitães relataram muitas vezes com revolta este episódio e perguntavam ao final – o que este professor indígena
vai ensinar aos seus alunos?
Embora nos circuitos vinculados a OGPTB a informação que circulava era de que o museu
estaria fechado e abandonado, não era isto que ocorria de fato. Ao contrário na perspectiva dos
capitães, a saída da OGPTB e dos antigos funcionários indígenas implicava na obrigação do CGTT
em afinal assumir a responsabilidade total pelo Centro Maguta, ainda que isto ocorresse em um
momento em que a entidade estava totalmente sem recursos. Foi estabelecida uma alternância entre
os capitães para manter aberta a sede e o museu, cada um devendo permanecer ali por algumas
semanas, levando para Benjamin Constant sua família e todos os mantimentos necessários. Pedro
Inácio e sua família, entre outros capitães, estiveram por diversas vezes em Benjamin Constant,
“cuidando do museu”. Muitos meses mais tarde um destes capitães, Silvio, da comunidade do
Paranã do Ribeiro, solicitou e obteve autorização do presidente do CGTT para ali fixar-se em caráter
permanente. Alguns anos mais tarde, com a sua morte, outro capitão da mesma área, Paulino, veio
a ocupar o mesmo alojamento de madeira, onde ate hoje reside com sua família.
Importante notar que ambos pertenciam a rede de aliados mais próximos do capitão-geral
Pedro Inacio, sendo também igualmente reconhecidos por sua força espiritual e por conhecimentos
religiosos da tradição Ticuna. Do ponto de vista dos indígenas o exercício da curadoria das peças
exigia não só um conhecimento aprofundado dos seus usos e significados, mas também uma
capacidade especial de lidar com os espíritos de seus “donos”.
Por outro lado há muitos anos Nino Fernandes frequenta cotidianamente o Centro Maguta,
onde operava o rádio, atendia aos indígenas de passagem por BC, preparava documentos e por
telefone se contatava com outras organizações indígenas (como a COIAB). Mesmo após a saída da
OGPTB, isto continuou a ocorrer como antes, sendo mais tarde indicado pelo CGTT para a função
de Diretor do Museu Maguta, que ainda ocupa atualmente.28
Para a população de Benjamin Constant, o museu passou a ter uma utilidade muito
limitada. Sem a biblioteca, que não foi reativada em outro local e parece ter tido seu acervo
perdido, as visitas de estudantes e professores das escolas municipais tornaram-se raras. Mas os
visitantes colombianos, geralmente acompanhados por guias turísticos, nunca deixaram de vir
visitar o museu. A renda proveniente dos ingressos é contudo insuficiente para manter em dia o
pagamento de contas correntes (luz, água, telefone, impostos), cujos serviços por diversas vezes
foram interrompidos. A partir de 1998, um projeto de pesquisa do Museu Nacional colaborou na
recuperação do prédio e das exposições, treinando alguns jovens indígenas em informática e em
28
Depois de recontratado pela FUNAI Nino atuou durante muitos anos como professor e diretor da escola indígena em Nova Filadélfia,
progressivamente concentrando suas atividades no Centro Maguta, sem que os administradores locais da FUNAI interviessem nisso.
técnicas de guarda e conservação de peças (o que lhes permitiu fazer algumas intervenções novas
na exposição anterior).
Um projeto de apoio ao Museu Maguta, subsidiado pelo PDPI29 e coordenado por Nino
Fernandes, realizou alguns consertos e adaptações no prédio de alvenaria, instalando ventiladores
e computadores, possibilitando a construção de uma sala de informática (climatizada) e de uma
sala para reuniões, bem como fazendo erguer na entrada do terreno um amplo escritório para a
AMIT-Associacão das Mulheres Indígenas Ticunas, no qual se procedia a venda de artesanato, com
a finalidade de assegurar a sustentabilidade do museu.
De 2002 a 2006, foi criado o Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Solimões e sua
coordenação foi entregue ao CGTT, sendo indicado Nino Fernandes para atuar na função de gestor.
Dado à monta dos recursos e tarefas alocadas ao CGTT, a sede do DSEI não veio a funcionar no
Museu Maguta, mas sim em outro prédio alugado e preparado especificamente para isto. Uma
avaliação mais aprofundada do impacto dos DSEIs e de sua extinção no empoderamento dos povos
indígenas ainda esta para ser feita, existindo porém alguns subsídios propiciados por pesquisadores
que colaboraram com este processo entre os Ticunas.30 O encerramento das atividades do DSEI
no Alto Solimões, como em outras áreas do país, deixou pendências fiscais e administrativas
que vieram a incidir sobre o CGTT, tornando inviável a requisição de projetos em seu nome. A
tendência atual e de que o espaço físico e as instalações do antigo Centro Maguta venham a operar
primordialmente com uma pauta de atividades culturais, associadas as instituições desta área e
venham a utilizar mais especificamente o nome de Museu Maguta.
Considerações finais
limitações de meios e uma urgência ditada por um padrão de convivência interétnica marcado pela
intensificação do conflito.
A formação de um museu com objetos da cultura material Ticuna em Benjamin Constant não
foi obra de um artista indígena e não expressa uma museografia puramente autóctone (embora ali
sejam exibidos com grande destaque padrões gráficos e artesanais próprios). Correspondeu a uma
mimesis de arranjos expositivos e montagens vistas em instituições de referência nacional,31 tendo
como objetivo final contribuir com os objetivos políticos que levaram a fundação do CGTT – a
conquista da terra e o respeito à cultura Ticuna.
A associação entre estes dois objetivos (território étnico e tradição cultural) foi estabelecida
de maneira orgânica e emblemática desde a criação do CGTT através de atos simbólicos que
significaram uma profunda ruptura com um “regime de memória” que considera a diferença
cultural como uma marca de subalternidade, algo a ser escondido e logo que possível superado.
Ao tentar fazer coincidir as assembleias com processos rituais, ao instituir a língua Ticuna como
meio oficial de comunicação neste contexto político crucial, ao chamar de “Maguta” o veículo
de informação escrita da entidade, ao reproduzir na capa de cada jornal o episódio central de sua
criação – por todos estes atos simbólicos tradição e política foram tecidas como uma peça única,
como algo indissociável.
Os líderes e intelectuais indígenas que formataram o CGTT recusaram não apenas a ideologia
regional do “caboclismo”, mas também a sua presumida superação pela via de uma identificação
primária com esquemas cognitivos oferecidos pelas religiões ditas universais. Ao se assumirem
enquanto “maguta” em suas iniciativas políticas e mais tarde virem a chamar de “maguta” o seu
museu, eles criaram uma relação nova com o passado, valorizando-o e trazendo-o para junto de si
na construção de seus projetos de futuro.
É porque a sua função, forma e necessidade foi algo internalizado e plenamente compartilhado
pela liderança indígena que os capitães se mobilizaram para preservá-lo, insistindo em mantê-lo em
funcionamento mesmo sem verbas e pessoal para isso. Foi isto que propiciou a sua refundação e
que o torna hoje um espaço livre em que os indígenas podem exercer a sua criatividade, dialogando
uns com os outros, buscando caminhos nas polarizações entre as gerações, as diferentes orientações
religiosas e as alternativas econômicas e de formas de cidadania concretamente oferecidas. Ou
seja, continuar a enfrentar os seus desafios contemporâneos.
31
Esta mimesis e seus jogos adaptativos certamente estão muito distantes dos grandes museus coloniais europeus e das estratégias expositivas
que eles elaboraram para o público ao qual se destinam. Ao contrário a museografia do Maguta dialogava com o uso dado aos indígenas
no contexto museológico nacional – menos que objetos de arte ou de exotismo, eram pensados segundo a divisa “um museu contra o
preconceito”, cunhada por Darcy Ribeiro para o antigo Museu do Índio. Apesar de sua inquestionável utilidade política, elas continuam a
estar apoiadas em representações indianistas e no paternalismo indigenista, e não deixam de produzir uma visão culturalista e passadista
sobre os indígenas.
Este artigo apresenta uma proposta de reflexão sobre coleções em jardins botânicos, museus
e centros de pesquisa e documentação. O tema tem ocupado um lugar central em análises que
consideram tais instituições e a formação de suas coleções em sua trajetória histórica, sem perder
de vista os projetos institucionais e sua relação com os debates teóricos travados em cada época.
Serão apresentados dois exemplos de coleções em espaços distintos que se organizam e se
mantêm como objeto de proteção − uma coleção de pinturas históricas e outra resultante da viagem
de um naturalista ao Brasil, no início do século XIX. As coleções foram analisadas tendo como
foco numa espécie de evidência da perda.
*
Alda Heizer. Historiadora. Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro. aldaheizer@jbrj.gov.br. Agradeço aos organizadores
do seminário, especialmente aos historiadores Aline Montenegro e ao Rafael Zamorano, a oportunidade de participar de tal evento no MHN,
local em que iniciei minha trajetória como pesquisadora no final da década de 1980. Naquele momento, o Museu estava sob a direção de
Solange Godoy, ainda vinculado à Pró-memória.
**
Felipe de Araújo e Silva. Estudante de Ciências Biológicas da UFRJ. Trabalha como bolsista PIBIC no projeto sobre o naturalista Auguste
de Saint Hilaire - Reflora/Edital CNPq 2011 (Alda Heizer, Loraly Kury [pesquisadoras]; Manuela Pereira de Sousa Sobral [Pibic], Marcely
Rezende da Silva e Aline Cerqueira [ATP-A]). fel.feijo@gmail.com
1
ALBERTI, Samuel J. J. M. Objects and the museum. Focus-ISIS, v. 96, p. 559-571, 2005. p. 567.
Em 2010, a National Gallery de Londres abriu suas portas para a exposição Painting
History. Delaroche and Lady Jane Grey. Nela, foram apresentadas as pinturas feitas pelo
francês Paul Delaroche, no século XIX, sobre uma temática cara aos ingleses: a condenação
e morte de Jane Grey.
Um dos mais famosos quadros de Delaroche (1797-1859), Le Supplice de Jeanne Grey, de
1833, estava presente e atraiu milhares de visitantes ansiosos para ver as representações de uma
velha história sobre uma jovem, que, no século XVI e com 19 anos, assumiu o trono inglês, por
nove dias sem ter sido coroada. Condenada e decapitada, posteriormente foi personagem de livros,
peças de teatro e exposta em museus como vítima de um espetáculo. O local de sua morte é parada
turística obrigatória.
A tragédia de Jane Grey está gravada em pratos de suvenir, comprados pelos turistas, mas a
dramaticidade da morte da sobrinha neta de Henrique VIII, quando em exposição, ganha contornos
que nos interessam em particular.
Por certo o que se expõe é a interpretação possível do acontecimento Jane Grey, mas é
também memória e história. Como afirma o medievalista francês Georges Duby, “[...] não se pode
reintroduzir no presente a totalidade de uma duração. Sabemos hoje isso, enquanto no século XIX
se sonhava com uma restituição integral.”2
Sem dúvida, construiu-se um mito em torno da figura de Jane Grey, seu aniversário, as
condições de sua vida, seu relacionamento com o pai, a intolerância sob todos os aspectos
a que foi submetida e que fizeram dela uma heroína envolta em uma tragédia de tempos em
tempos reatualizada.
Segundo o catálogo da exposição, o visitante estaria diante de uma heroica narrativa pintada.
A explicação não deixa a menor dúvida sobre a relevância do evento. “In the first 30 years of
the National Gallery’s existence, Paul Delaroche was the most successful artist in Europe!” Uma
justificativa, sem dúvida, para o sucesso de um francês na Inglaterra, a certa distância do continente.
Note-se que o quadro da execução de Lady Jane Grey também faz parte do acervo da National
Gallery e foi redescoberto em 1973 – estava enrolado desde 1928, quando houve uma inundação e,
por sorte, permaneceu seco, mas esquecido.
O escritor francês Stendhal, em uma crítica ao trabalho de Delaroche em Death of Elizabeth
(1827-1828), diz que não existia nada falsamente dramático ali e que quem via o quadro se
sentia fazendo parte daquele terrível espetáculo. Ele acreditava que Delaroche havia quebrado
os clichês do neoclacissismo e inaugurado uma maneira nova e revigorante de trazer o público
2
DUBY, Georges & LARDREAU, Guy.Um nominalismo bem temperado. In:_____. Diálogos sobre a Nova História. Lisboa: Publicações
Dom Quixote, 1989. p.40.
para dentro de seu espetáculo em forma de pintura, em que o espectador é testemunha do que
acontece na tela.3
Segundo Stephen Bann pelo menos por duas geracões Delaroche foi o pintor mais conhecido
dos ingleses e com coleções expostas em diversas instituições inglesas.4 Em tempos vitorianos,
as pessoas consideradas “respeitáveis” podiam ter acesso a incríveis exposições como a de
Bridgewaterhouse.
Quando o quadro de Lady Jane Grey chegou à Inglaterra, em 1902, Londres foi considerada o
segundo melhor lugar para se estudar arte no mundo, logo após Paris.
Em uma noite de maio de 1941, durante uma blitz, a Bridgewaterhouse foi bombardeada
pelos alemães e teve seu acervo consideravelmente danificado sendo necessário remover algumas
pinturas para a Escócia para um longo e exaustivo processo de restauração.
Assim, a exposição citada trazia, entre outras questões, a importância da restauração e
recuperação de um acervo valioso para o país, uma coleção que ficou ameaçada de destruição e
desaparecimento.
O outro exemplo citado no artigo aqui analisado é o do francês, contemporâneo de Paul
Delaroche, o naturalista Auguste de Saint-Hilaire. Ele tem sua coleção de impressões de viagem ao
Brasil entre 1816 e 1822 depositada no Museu de História Natural de Paris. Personagem bastante
conhecido, teve seus relatos publicados em português em diferentes edições. Saint-Hilaire veio
ao Brasil com um objetivo autoproclamado: servir à pátria e à ciência − seu objetivo era formar
coleções de plantas.5
O resultado da viagem ao Brasil tornou-se o passaporte para sua entrada na Academia de
Ciências de Paris. Ele afirmava não ser um coletor e que o que lhe interessava era a utilidade das
plantas e como os habitantes locais as usavam com diferentes propósitos.
Interessa-nos particularmente compreender a coleta e formação das coleções de Saint-Hilaire
levando-se em consideração as circunstâncias nas quais ele estava desenvolvendo o seu trabalho
de naturalista. Para isso, outros documentos são importantes para que possamos confrontá-los
e inferirmos sobre as marcas da tradição científica do naturalista, presentes na forma como ele
coletou, registrou e formou tais coleções.
Localizamos, então, nosso trabalho num quadro de estudos que privilegiam o lugar do fazer
científico: o campo – analisando suas práticas – os catálogos, diários, relatos, desenhos, exsicatas,
3
BANN, Stephen. The victim as spectacle: Paul Delaroche’s ‘Lady Grey’ and Mademoiselle Anaïs. In: Painting History. Delaroche & Lady
Jane Grey. Londres: National Gallery Company, 2010. p. 35-44. p. 39.
4
Id. Ibid. p. 35.
5
KURY, Lorelay. Auguste de Saint-Hilaire, viajante exemplar. Intellèctus (Uerj), Rio de Janeiro, v. Ano 2, n. 3, p. 1-11, 2003.
que trazem as marcas de quem os produziu. As viagens aqui são vistas como práticas culturais e a
formação das coleções também.6
Além disso, analisarmos a circulação dos objetos, das coleções, das pessoas, informações e teorias,
torna possível pensar a especificidades das coleções depositadas em jardins botânicos e museus.
Trata-se de descrições de locais e de coletas que também possuem uma história.
Humboldt combinó de manera magistral el saber de su tempo: la cartografia, laminería, la estadística,
la geología, la botánica y la historia natural. Si Humboldt representa La condensación, del saber de
1800, el aspecto decisivo de su relación com América reside, probablemente, en desarrollo de una
nueva manera de procesar los datos allí recopilados.7
Um simples agrupamento de objetos não define uma coleção, pois é preciso delimitar o que os
diferencia. Um dos critérios para definir o status de uma coleção é a própria preocupação por parte
dos especialistas em proteger, reconhecendo nessa coleção um valor cultural. Elas respondem a
intenções precisas e bem definidas.8
No caso da coleção em estudo, depositada no herbário do Museu de História Natural de Paris,
ela detém um acervo valioso para o Brasil, pois contém coleta, classificação e identificação de
plantas hoje ameaçadas de desaparecimento.
Por que nos interessa estudar o naturalista e o resultado de sua viagem ao Brasil no início do
XIX? Mais do que isso: em que ele pode nos ajudar a pensar o passado e o presente?
Nosso objeto de pesquisa no Jardim Botânico, um velho conhecido de todos nós, Auguste de
Saint-Hilaire ganhou interesse e uma nova dimensão dentro de uma proposta diferente de reflexão.
O interesse de nosso trabalho incide sobre as informações contidas nos registros do naturalista
sobre o Brasil de 1816 a 1822.
O que se pretende é identificar nas cadernetas de campo, relatos, memórias, correspondências
e exsicatas informações sobre a flora do Brasil do século XVIII, XIX e XX.
Mais do que identificar, pretende-se cruzar informações contidas nos diferentes registros de
viagem para que seja possível alimentar um banco de informações que possam ser acessadas de
qualquer lugar sobre a biodiversidade e, com isso, contribuirmos para a eficácia de implementação
de políticas públicas mais contundentes.
6
LOPES, Maria Margaret. Viajando pelo campo e pelas coleções: aspectos de uma controvérsia Paleontológica. História, Ciênciase
Saúde [online], 2001, v. 8, suplemento, p.881-897. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S0104-59702001000500005>. Acesso em: 14 de ago. 2012.
7
PODGORNY, Irina. Catálogos, gestos y edifícios para La prehistoria. In: _____. El Sendero del tempo y de las causas acidentales. Los
espacios de La prehistoria en la Argentina, 1850-1910. Rosario: Prohistoria edicionies, 2009. (colección Historia de la Ciencia). p.77.
8 HEIZER, Alda. Museu de ciências: lugares de cultura. Revista da SBHC, Rio de Janeiro, v.4, n.1, p. 55-61, janeiro-junho de 2006. p. 59.
Podemos afirmar que as coleções em jardins botânicos e museus têm ocupado um lugar central
em análises que consideram tais instituições e a formação de suas coleções levando em conta sua
trajetória histórica, sem perder de vista os projetos institucionais e sua relação com os debates
teóricos levados a termo em cada época.
A coleção dos cerca de 20 mil tipos botânicos coletados por Auguste de Saint-Hilaire tornou-se
referência para o conhecimento europeu do século XIX sobre a flora tropical, e mais especificamente
brasileira, tanto por sua vasta riqueza em espécimes conhecidos e novos, quanto pela sua amplitude
geográfica (sendo o material localizado de sete províncias brasileiras e a Cisplatina, atual Uruguai),
e até hoje expressa uma parcela importante da diversidade vegetal da Mata Atlântica em diversos
níveis da taxonomia botânica. A essa coleção somaram-se, na época, as muitas publicações
sobre a viagem, descrita com seus trajetos, e sobre quadros biogeográficos, fitossociológicos,
farmacológicos, e outras áreas do conhecimento relacionadas pelo naturalista à flora brasileira.
No entanto, essas publicações, atualmente conhecidas tanto do Brasil quanto na França, não
têm sido utilizadas como objeto de análise voltada diretamente para a coleção das plantas coletadas
e identificadas, e como fontes de revisão dessas espécies e de mapeamento da sua distribuição no
século XIX, de maneira que os dois materiais, a coleção e as publicações, afastaram-se, como se
tratassem de duas obras isoladas.
Busca-se9 uma reaproximação dos relatos de viagem publicados e a coleção guardada pelo
Museu de História Natural de Paris. Foram analisados os manuscritos feitos pelo naturalista
durante sua viagem, partindo-se da hipótese de que tais documentos serviram de base tanto para a
construção da coleção como para disseminar as informações por meio das publicações.
Os manuscritos, disponibilizados pelo site Herbário Virtual de Saint-Hilaire, um projeto do
Cria compreendem dez cadernos contendo catálogos organizados por letras e números de acordo
10
com os trajetos e as localidades, listados por ordem de coleta com cada espécime amostrado,
identificado e descrito morfologicamente. Não se caracterizam, portanto, como diários de viagem
ou cadernos de anotações, por conterem em si não descrições de fatos ou imagens, mas apenas da
vegetação coletada.
9
Trata-se de parte do trabalho desenvolvido pelo bolsista no Jardim Botânico do Rio de Janeiro e está inserido no projeto Reflora/Edital
CNPq 2011 (Alda Heizer, Loraly Kury [pesquisadoras]; Manuela Sobral [Pibic], Marcely Rezende da Silva e Aline Cerqueira [ATP-A]).
10
Projeto “Herbário virtual Auguste de Saint-Hilaire”, Cria (Centro de Referência de Informações Ambientais). Disponível em: <http://hvsh.
cria.org.br> Acesso em: 14 de ago. 2012.
O catálogo manuscrito lido e analisado mais a fundo foi o A1, condizente à chegada e primeira
estada de Saint-Hilaire no Rio de Janeiro, em 1816, e seu subsequente trajeto até Ubá, sul de Minas
Gerais. Paralelamente, consultaram-se as publicações (em francês e português) equivalentes a esse
trajeto, que correspondem ao primeiro capítulo da “Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e
Minas Gerais” (edição traduzida de 1938, disponibilizada pela Biblioteca Mindlin Brasiliana)11 ou,
em francês, Voyage dans les provinces de Rio de Janeiro et Minas Geraes (disponível através da
enciclopédia virtual francesa Gallica).12
O manuscrito A1 lista 756 coletas, agrupadas entre o Rio de Janeiro e Ubá – com o respectivo
retorno, e identificadas tanto por táxons (classe, família, gênero e, por vezes, até espécie) como
por nomes vulgares (como do ingá, provavelmente indicado por algum mateiro que acompanhava
Saint-Hilaire em seu trajeto) e generalizações (arbustos e árvores não identificados, cogumelos,
samambaias, etc.).
Figura 1: trecho do manuscrito em que se averiguam locais de coleta nos pântanos (marais) e, abaixo, bosques
montanhosos (bois montagneux), ambos no atual bairro de Botafogo, nos números 27 e 28, respectivamente.
Na citação dos locais de coleta, muitas cercanias são hoje bairros da cidade do Rio de Janeiro
− Botafogo (Figura 1), Glória, São Cristóvão, Engenho Novo, etc. − ou localidades de municípios
próximos, como São João de Meriti, Duque de Caxias e Nova Iguaçu, muitos dos quais, atualmente,
sequer apresentam vegetação secundária. Isso só explicita a importância da relação entre as espécies
coletadas e o seu mapeamento por meio de documentos originais, com potencial de recuperação da
mata primária e trabalhos de conservação ambiental.
Outro ponto analisado no manuscrito compete à questão da taxonomia utilizada por Auguste
de Saint-Hilaire, tendo sido ele autor de quase 7.500 espécies novas, cujos holótipos, ou seja,
representantes coletados para a primeira descrição original dessas espécies, pertencem à citada
coleção conservada pelo Museu Nacional de Paris.
11
A Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin é um órgão da pró-reitoria da Cultura e extensão universitária da Universidade de São Paulo
(USP) e disponibiliza seu acervo bibliográfico e documental por meio do endereço <www.brasiliana.usp.br>. Acesso em: 12 de ago. 2012.
12
Gallica, Bibliothèque Numérique. Diponível em: <www.gallica.bnf.fr> Acesso em: 12 de ago. 2012.
A relação direta entre a identificação manuscrita e a publicada nas exsicatas ainda está sendo
elucidada, mas já foi possível, da análise paralela entre o manuscrito e as publicações, estabelecer
uma relação direta da flora descrita morfologicamente e ecologicamente, nas respectivas obras.
Não fica claro, pela citação dos locais de coleta do manuscrito, o trajeto exato a ser paralelizado
com o dos relatos publicados. No entanto, a citação pontual de determinadas plantas específicas
permitiu a dita relação com as duas obras. O ingá, embora esta seja uma denominação vulgar
e, portanto, pouco específica do ponto de vista científico, foi citado uma única vez no catálogo
(Figura 2) e descrito brevemente no relato como a seguir: “Entre os arbustos que o marginam [rio
Itú] é impossível deixar de notar os ingás de longos estames; uma borraginácea cujas flores alvas
reunidas em cima assemelham-se às da nossa campainha [...]”.
Figura 2: Na coleta número 513, vê-se a referência ao Ingá (marcado com vermelho).
com uma verdadeira abordagem biogeográfica da vegetação de Minas Gerais estão também,
por sua vez, desenvolvidas no livro Tableau géographique de la végétation primitive dans la
province de Minas Geraes (Quadro geográfico da vegetação primitiva da província de Minas
de Gerais, de 1830).
Mas em relação a todo o restante, se faz necessário um remapeamento dessa flora em locais
hoje totalmente antrópicos, principalmente no atual quadro de discussão sobre políticas ambientais
conservacionistas.
Conclusão
No mesmo ano em que a Tate Galery expunha Paul Delaroche recuperado, o Brasil iniciava um
projeto de “repatriamento” das coleções que estão em diferentes herbários, mais especificamente o
Kew Garden e no MHN Paris, envolvendo diferentes pesquisadores de instituições no Brasil.
Um dos desafios que estamos enfrentando é trabalhar com pesquisadores da área de botânica
e história.
Em artigo publicado em 2010, a historiadora Lucia Lippi de Oliveira ressaltou o quanto seria
importante pensar em salvar a pátria, a língua e a civilização, enfim cuidar de algo que se encontra
em perigo e que padece o risco de desaparecer, pois este potencial fez e faz arte da cultura brasileira.
À historiadora interessa um aspecto que para nós pode ser interessante: refletir como em diferentes
momentos os projetos de salvação tomaram contornos distintos.
Isso reforça a importância da escolha do que é preciso preservar, salvar, proteger em relação
aos projetos das viagens, da formação de herbários, das coleções e projetos de nação.
É certo que o material resultante das viagens de naturalistas ocupa os acervos dos herbários,
dos museus, estão expostos em exposições, registrados em catálogos, em cadernetas de campo,
em arquivos documentais e servem como fonte para pesquisadores de diferentes áreas do saber. A
análise proposta está inserida num quadro teórico que compreende os registros de viagem em sua
trajetória não linear, do campo ao herbário.13
13
HEIZER, Alda. Jean Massart e a criação das reserves naturelles na Bélgica na primeira década do século XX. In: Cad. Pesq. Cdhis,
Uberlândia, v.24, n.1, jan./jun.2011. HEIZER, Alda e LOPES, Maria Margaret. Bondplan, Saint-Hilaire e o Megatherium nas coleções de
cartas de Dámaso Antonio Larrañaga (1771-1848). In: Colecionismo, práticas de campo e representações. Campina Grande: EDUEPB,
2011b. KURY, Lorelay. Les instructions de voyage dans les expeditions scientifiques françaises (1750-1830). Revue d’histoire des sciences,
t. 15, 1. Centre International de synthèse, Puf, Janvier-Mars, 1998. KURY, Lorelai. As artes da imitação nas viagens científicas do século
XIX. In: VERGARA, Moema de Resende & ALMEIDA, Marta de. Ciência, História e historiografia. Rio de Janeiro: Mast, 2008, p. 321-
334. LOPES, Maria Margaret.Viajando pelo campo e pelas coleções: aspectos de uma controvérsia paleontológica... Op. cit. PODGORNY,
Irina. Catálogos, gestos y edifícios para La prehistoria... Op. cit.
No caso específico de nossas reflexões sobre as coleções do herbário que contêm dados sobre
a biodiversidade brasileira, corroboramos com o que Michel Vän Praet, ao escrever sobre museus
e patrimônio das ciências naturais em França em publicação portuguesa também de 2010.
As coleções de ciências naturais devem ser analisadas como elementos patrimoniais, mas
também como poderosos instrumentos da investigação atual. Este aspecto distingue-as de outras
coleções científicas e deve ser central a sua valorização, quer no que diz respeito à comunicação, à
história da ciência, quer à investigação nas áreas das ciências da vida e da terra.14
Tanto a coleção de pinturas exposta pela National Galery, mencionada no início de nossa
apresentação, como a coleção do Museu de História Natural de Paris e a viagem de Saint-Hilaire ao
Brasil podem ser estudadas em suas circunstâncias e analisadas a partir da ameaça de sua destruição
e desaparecimento como as justificativas acima mencionadas, mas, principalmente, devem ser
pensadas enquanto experiências históricas distintas e parte de projetos ideológico-pedagógicos.
Scarano em artigo intitulado “As perspectivas das ciências da biodiversidade no Brasil”,
afirma que vivemos uma espécie de paradoxo. De fato: “A temática da biodiversidade no Brasil
alcançou um ponto crítico onde, por um lado, a ciência da biodiversidade aumenta em quantidade
e em qualidade, enquanto que por outro, a destruição de hábitats nos grandes biomas brasileiros se
mantém em taxas alarmantes”.15
14
VAN PRÄET, Michel. Museus e Patrimônio. Das Ciências Naturais em França. Dossiê Museus de Ciência. Lisboa: Instituto dos Museus
e da Conservação - Palácio Nacional da Ajuda,2010.p.186-197. p. 188.
15
SCARANO, Fabio Rubio. Perspectivas das ciências da biodiversidade no Brasil. Sci. Agric. (Piracicaba, Braz.), v. 64, n. 4, p. 439-447,
July/August, 2007. p.439.
Agradeço ao Museu Histórico Nacional o convite para participar desse Simpósio Internacional,
cujos resultados, sem dúvida, deverão trazer importantes avanços ao debate sobre a prática
colecionista e sua patrimonialização. Minha contribuição, neste sentido, talvez venha a ser a mais
modesta, uma vez que são breves reflexões de uma historiadora sobre a relação entre o ato de
colecionar e a gênese dos lugares da memória.
Tenho plena consciência de que é tempo de tomar uma decisão sobre o futuro das minhas obras
de arte. Posso dizer sem exagero que as considero como “filhas” e que seu bem estar é uma das
minhas preocupações que me dominam. Representam cinquenta ou sessenta anos da minha vida, ao
longo dos quais as reuni, por vezes com inúmeras dificuldades, mas sempre guiado pelo meu gosto
pessoal. É certo que, como todos os colecionadores, procurei aconselhar-me, mas sinto que elas são
minhas de alma e coração (Calouste Goubelkian)
O fragmento de discurso aqui transcrito encontra-se gravado em uma placa de bronze, afixada no
alto de uma das paredes do saguão, que dá acesso ao Museu da Fundação Calouste Goulbenkian, em
Lisboa. Está datado de 10 de fevereiro de 1953. Idoso e adoentado, o empresário armênio Calouste
Goulbenkian mostrava-se receoso do destino que poderia ser dado após a sua morte, ao extraordinário
conjunto de obras de arte, que acumulara em vida. Homem de grande sensibilidade temia que o fabuloso
acervo viesse a se fragmentar, perdendo assim o sentido de coleção. Como forma de informação, cabe
assinalar que naquele mesmo ano de 1953, Calouste fez testamento criando uma fundação que tomaria
o seu nome, com fins artísticos, educativos e científicos. Tornou-a herdeira de parte da sua fortuna, bem
como determinou o seu estabelecimento em Portugal - país que o acolhera durante a Segunda Grande
Guerra, onde se fixou e veio a falecer em 1955. Expressou, também, o desejo de que sua coleção de
obras de arte permanecesse reunida e exposta em um mesmo local.
*
Professora Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisadora do CNPq, dos Programas PROCIÊNCIA (UERJ), Cientista
do Nosso Estado (FAPERJ) e PRONEX FAPERJ/CNPq “Dimensões e Fronteiras do Estado Brasileiro no século XIX”. Sócia Titular do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
O ato de colecionar é tão antigo quanto o próprio homem. Constitui um esforço para ordenar a
realidade dispersa. Sabe-se que entre os povos primitivos era comum amealhar conchas, sementes
secas, armas, joias, ornamentos, além de outros pequenos utensílios, ainda hoje encontrados
próximos a sepulturas, em escavações arqueológicas. O costume de inumar os defuntos com os
respectivos pertences deveria propiciar aos colecionadores de antanho, manter agregados seus
objetos de estimação, que os acompanhariam em outras vidas.1 Peças, por certo, pelas quais
nutriam tanto afeto, quanto o conjunto de raridades que o empresário Goubelkian preocupara-se
em preservar.
Talvez, o mesmo se possa afirmar de certos indivíduos, entre os séculos XVI e XVIII, cujo
fascínio e o interesse intelectual pelo mundo material, os instigou a recolher uma pletora de objetos
de experimentação, de observação e de estudo, formando o que hoje em dia de um modo geral
denomina-se de “gabinetes de curiosidades”.2 É bem verdade, que por essa época, na Grã-Bretanha,
paralelos aos locais eruditos floresceram cafés e casas de entretenimento, onde também se exibiam
raridades ao público em geral, proporcionando diversão e instrução.3
De qualquer sorte, nos exemplos aqui abordados, o centro das coleções são os próprios
colecionadores. Eles as reuniram segundo percepções subjetivas, estimulados por razões estéticas
e interesses particulares. Portanto, num primeiro momento, constituíam memórias individuais.
Calouste Goubenkian, por sinal, deixa isto claro, ao assinalar que suas escolhas foram sempre
guiadas pelo gosto pessoal.
Uma coleção, qualquer que seja a sua natureza, define-se segundo critérios de
pertencimento e de continuidade, o que lhe confere um caráter artificial. Tal como um “lugar
de memória”, no sentido em que a expressão foi cunhada por Pierre Nora, para designar um
espaço físico ou simbólico, criado com o propósito de garantir a sobrevivência de fragmentos
do passado.4
Contudo, creio que é preciso situar cronologicamente o conceito formulado por Nora. Ele surge
nos anos 1980, fruto de uma constatação que inquietava o historiador: o desvanecimento rápido que
a memória nacional francesa vinha experimentando, em virtude dos processos de homogeneização
cultural. Entre 1978 e 1981, no seminário que dirigia, na Escola de Altos Estudos, ele propôs aos
1
POMIAN, Kzrysztof. Coleção. In: ROMANO, Ruggiero (dir.). Enciclopédia Einaudi. v. 1. Memória – História. Lisboa: Imprensa Nacional
– Casa da Moeda, 1984, p.55-56.
2
LUGLI, Adalgisa. Naturalia et Mirabilia: les cabinets de curiosités em Europe. Paris: Adam Biro, 1998, p. 31.
3
BARBUY, Heloisa. A comunicação em museus e exposições em perspectiva histórica. In: MAGALHÃES, Aline Montenegro, BEZERRA,
Rafael Zamorano & BENCHEDRIT, Sarah Fassa (org.). Museus e comunicação: exposições como objeto de estudo. Rio de Janeiro: Museu
Histórico Nacional, 2010, p. 122.
4
NORA, Pierre. Entre mémoire et histoire. In: ____ (dir.). Les lieux de mémoire. – v. 1 La Republique. Paris: Gallimard, 1984, p. XXIV.
alunos que realizassem um inventário dos lugares, onde se encarnava, por assim dizer, a memória
nacional. O exercício acadêmico consistia em identificar os lugares que pela vontade dos homens
ou pelo trabalho dos séculos permaneceram como indícios mais vivos daquela memória, na qual
se salientavam, entre outros símbolos, os monumentos, as festas, os emblemas, as celebrações, os
dicionários e, naturalmente, os museus.
Com efeito. Tributários dos gabinetes de curiosidades e das galerias científicas, os
museus de história floresceram no século XIX. No mundo ocidental, a implantação desses
espaços coletivos abertos à visitação pública, voltados para a conservação de obras de arte e
de vestígios de tempos remotos, encontra-se intimamente ligada ao processo de consolidação
dos estados nacionais.
Ora, o conceito de Estado-nação se baseia em uma ficção, a da homogeneidade: um povo,
uma raça, um território, um governo. A multiplicação dos museus responde, pois, a uma demanda
específica: à necessidade de fixar as raízes da nação, tecendo uma trama de continuidades, de modo
a provê-la de um passado único e coerente. Buscava-se, assim, despertar na população o sentimento
de pertencimento ao que Benedict Anderson denomina de “comunidade política imaginada”,
que inventa e ao mesmo tempo mascara o passado, que se pretende representar por meio de um
conjunto de manifestações culturais ou de objetos simbólicos escolhidos de maneira não arbitrária,
com o propósito de estimular os indivíduos a partilharem elementos comuns5. Na esteira desse
raciocínio, os museus passam a desempenhar uma função semelhante à das igrejas. Transformam-
se em recintos, nos quais os integrantes de uma sociedade podem comungar na celebração de
um mesmo culto, uma espécie de homenagem, que a nação presta a si mesma, ao enaltecer o seu
passado sob todos os aspectos.6
Lugares de memória são simples e ambíguos, naturais e artificiais, abertos às experiências
mais sensíveis e ao mesmo tempo alvos de complexas elaborações abstratas. São lugares nos três
sentidos do termo: material, simbólico e funcional, porém, simultaneamente de graus diversos.
Mesmo um ambiente de aparência apenas material só vem a constituir um lugar de memória
quando a imaginação o investe de uma aura simbólica.7 Visto por este prisma, o museu é um
lugar de memória destinado a expor peças de maneira sistemática, cujo propósito é preservar os
fragmentos materiais das lembranças de um povo, de uma cidade, de uma nação, em diferentes
momentos da sua historia.
5
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Tradução de Denise Bottman.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p 31-32.
6
MÉLONIO, Françoise. Naissance et affirmation d’une culture nationale. La France de 1815 à 1880. Paris: Éditions du Seuil, 2001, p.163.
7
NORA, Pierre. Entre mémoire et histoire. Op. cit., p. XXXIV.
8
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice Editora Revista dos Tribunais, 1990. Ver, também, JOUTARD, Philippe.
Mémoire collective. In: BURGUIÈRE, Alain (org.) Dictionnaire des Sciences Historiques. Paris: PUF, 1986, p. 448..
9
Segundo François Hartog, “regimes de historicidade” constituem as diferentes maneiras com que a sociedade ocidental se relaciona com o
tempo, articulando o passado, o presente e o futuro. HARTOG, François. Regimes d’historicité. Presentisme et expériences du temps. Paris:
Éditions du Seuil, 2003, p. 26-28.
10
Cf. MAGALHÃES, Aline & TOSTES, Vera Lucia Bottrel. Museus e representações da nação no pós-colonialismo. Reflexões sobre os
passados construídos no Museu Nacional. In: CHAGAS, Mario de Souza, BEZERRA, Rafael Zamorano & BENCHETRIT, Sarah F. (org.).
A democratização da Memória: a Função Social dos Museus Ibero-Americanos. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2008, p. 136.
com uma questão bastante complexa: diante da miscelânea de peças advindas de memórias
individuais, como identificar o que é simbólico da memória coletiva de uma época ou de um
determinado grupo social?
No encaminhamento dessa questão, recorro, mais uma vez, às reflexões de Pierre Nora. Para
o historiador, construir a memória coletiva pressupõe organizar um “[...] vertiginoso estoque de
material, de tudo que é impossível guardar na lembrança, [um] repertório insondável daquilo que
poderíamos ter necessidade de recordar”14.
No caso dos museus, compor tal estoque de materiais pressupõe, em primeiro lugar, definir
uma política de recolha, elencando temas/assuntos a serem privilegiados nas respectivas coleções.
Quanto à necessidade de recordar, ela será orientada pelas condições com as quais os grupos sociais
dialogam com as respectivas circunstâncias históricas, avaliam suas experiências em relação ao
passado e projetam expectativas a respeito do futuro15.
Na era do efêmero, a memória parece dissipar-se com a rapidez de um piscar de olhos. Aos
museus cabe, pois, avivar as lembranças do passado, de modo a transmitir a cultura e a reaproximar
as gerações, reatando, enfim, os fios da continuidade do tempo, ainda que de maneira artificial.
Afinal, os museus são, por excelência, lugares de memória.
14
Id. Ibid. p. XXVI
15
Cf. KOSELECK, Reinhart. Futuro passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RJ, 2006, p. 16.
Em 2011, foi amplamente divulgada na mídia a notícia da identificação dos restos mortais
de Domingos Vidal Barbosa, João Dias Mota e José Resende Costa, três envolvidos no episódio
da Inconfidência Mineira que morreram em degredo em Guiné Bissau. O Instituto Brasileiro de
Museus (Ibram), órgão responsável pela política nacional dos museus e gestão das instituições
museais federais brasileiras, noticiou o ocorrido em sua página da Internet.1
Nas informações reportadas pelo instituto, constam que os três homens foram enterrados em
urnas por uma comunidade “indígena” na Vila de Cacheu. Em 1932, os despojos foram exumados
a pedido do cônsul brasileiro em Dakar, sendo, na época, identificados como dos três inconfidentes.
A identificação baseou-se no relato de uma “indígena” que lembrava, conforme seus pais e avós
contavam, que naquele local estavam enterrados três brasileiros degredados. Em 1936, os restos
mortais chegaram ao Rio de Janeiro e ficaram sob a guarda do arquivo histórico do Itamaraty.
Ainda naquele ano, Getúlio Vargas baixou um decreto que visava o repatriamento dos
despojos dos inconfidentes mortos nos degredos de Portugal e África, sendo, na ocasião, enviadas
ao Brasil 13 urnas cinerárias com restos mortais de outros inconfidentes. Tais restos estão no
Panteão dos Inconfidentes, criado em 1942 e localizado no Museu da Inconfidência em Ouro
Preto, Minas Gerais.
*
Doutorando em história no PPGHIS/UFRJ. Historiador no Museu Histórico Nacional.
1
Cf. <http://www.museus.gov.br/noticias/ossadas-de-inconfidentes-sao-identificadas/> Acesso em: 19 de mar. 2012.
Porém, as ossadas dos degredados exumados em Vila de Cacheu não tiveram o mesmo
destino e permaneceram nos arquivos do Itamaraty, até que em 1992 foram enviadas ao Museu
da Inconfidência, cujo diretor, Rui Mourão, as recusou devido à incerta autenticidade. As ossadas
ficaram, então, guardadas na Igreja de Santo Antônio Dias.
De acordo com o texto publicado no site do Ibram, Mourão solicitou colaboração ao programa
de Pós-Graduação em Odontologia Legal e Deontologia da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) para confirmar a identidade das ossadas. Uma equipe, chefiada pelo professor Eduardo
Daruge, realizou um minucioso trabalho de pesquisa no material, cujo resultado foi a identificação
de três indivíduos com grande diferença de idade entre si. Essas diferenças foram confrontadas
com “fontes históricas” e coincidiram com as idades estimadas dos três inconfidentes degredados
em Guiné Bissau.
A identificação foi noticiada em tom patriótico pelos meios de comunicação, sendo adjetivada
como “uma importante descoberta histórica”.
Pelo feito, o professor Durege recebeu uma honraria – a medalha Tiradentes – no feriado
nacional de Tiradentes, durante uma cerimônia que alojou os restos mortais no Panteão dos
Inconfidentes. Estiveram presentes nessa cerimônia autoridades políticas como a presidenta Dilma
Roussef, a ministra da Cultura, Ana de Hollanda, o governador do estado, Antônio Anastasia, e o
ex-governador e então senador de Minas Gerais Aécio Neves.
Os restos mortais dos três inconfidentes tiveram sua trajetória – da exumação à musealização –
marcada por elementos de autoridade. O primeiro é o testemunho da ‘indígena’ que indica, a partir
da memória dos pais, o local de sepultamento de três brasileiros degredados. O cônsul brasileiro
providenciou a exumação e o envio dos despojos ao Brasil, que ficaram no Itamaraty. Até que,
em 1992, foram enviados ao museu, cujo diretor as recusou. A sagração dos restos mortais foi,
finalmente, concluída quando entrou em jogo o resultado da pesquisa dos cientistas da Unicamp que,
somado à “confiabilidade” das fontes históricas consultadas, provavelmente a “Sentença da Alçada”
que condenou os inconfidentes, sacralizou os restos mortais como relíquias da nação. A presença de
chefes de estado no cerimonial e as honrarias distribuídas deram lastro e seriedade à descoberta e os
restos mortais foram, enfim, consagrados no Panteão dos Inconfidentes num ritual cívico e sagrado.
No campo museológico, a certificação da autenticidade é comumente outorgada aos indivíduos
detentores de saberes específicos: eruditos, antiquários, técnicos dos órgãos de fiscalização,
conservadores de museus, antropólogos, numismatas, historiadores da arte, cientistas, entre outros.
Sendo fragmento de uma “memória arquivada”, o objeto museológico é caracterizado pelas
disputas e pelos fenômenos inerentes à memória social. Corresponde, portanto, ao resultado da
vitória e da derrota de diferentes discursos e práticas sociais, que definem não somente que tipo
a sacred person. It is often necessary that it be identified by a tag or authentic. Sometimes it is even
a tertiary relic for brandeum, an object that has touched a relic and now carries the transferred,
one might almost say “contagious” virus. Material from sites in the Holy Land – dust, oil or water
– was collected avidly and called “blessings” or eulogiae; perhaps at first more appropriately
define as the stuff of holy souvenirs rather than relics, it gradually assumed the more sacred status
as the objects come to circulate in the medieval West.9
9
HAHN, Cynthia. What do the Reliquaries do for Relics? Numem, 57, ano 2010. p. 284-316. p. 290. Grifos da autora
10
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP. Processo: 11/29, 1929.
11
MAGALHÃES, Aline Montenegro. Culto da saudade na Casa do Brasil. Gustavo Barroso e o Museu Histórico Nacional. Ceará: Museu
do Ceará, 2006. p. 76.
Espada do Generalíssimo Deodoro - O dr. João Severiano da Fonseca certifica que a espada de 2º
uniforme de Oficial General, que ofertei a meu primo o Coronel Pedro Paulo da Fonseca Galvão,
“é a mesma que foi de uso do meu irmão o Generalíssimo Deodoro, até o fim da sua vida. 31 de
agosto de 1897” [Assinado por João Severiano da Fonseca com firma reconhecida]12
12
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. DICOP. Processo: 15/24, 1924. [grifo nosso]
13
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP. Processo: 15/24, 1924. [Grifo nosso]
14
HAHN, Cynthia. What do the Reliquaries do for Relics?... Op. Cit. p. 297.
Hahn sublinha que o vínculo entre a santidade e o martírio de Cristo através do pedaço da cruz
é essencial para a manutenção do sentido da relíquia. Tal como as relíquias históricas – fenômeno
bem mais recente e localizado na modernidade – as relíquias cristas eram valoradas através das
histórias que as acompanhavam, muitas vezes legitimadas por cartas que as acompanhavam e
escritas por pessoas com autoridade religiosa, tal como Paulinus de Nola.
Voltando às relíquias históricas, temos o caso dos objetos relacionados à Inconfidência
Mineira, episódio que legitima várias relíquias do MHN. Particularmente interessante é a doação
do estojo com “instrumentos de Tiradentes” doados pela Embaixatriz Julia da Fonseca de Sarti
ao MHN em 1955. Tal como nos outros casos, além da carta do doador ao diretor do MHN, os
objetos vieram acompanhados de uma documentação probatória. Os instrumentos foram doados,
em 1855, a Herculano José da Rocha Maia por um parente de Tiradentes. Rocha Maia os entregou
a Fausto Magalhães Maya que, por sua vez, os deu de presente, em 1901, ao Marechal Pedro Paulo
da Fonseca Galvão, pai da doadora Embaixatriz Lia Sarti que, em 9 de março de 1955, doou os
instrumentos de Tiradentes ao MHN.
Exmo. Sr. Gustavo Barroso,
Impossibilitada de comparecer pessoalmente, encarreguei meu neto Pedro Paulo de entregar a V.
Ex. os ferros de Tiradentes, que foram doados ao meu pai, o Marechal Pedro Paulo da Fonseca
Galvão por pessoa da família do glorioso mártir da nossa independência. Junto vão os documentos
comprobatórios da veracidade dos mesmos.
Aproveito esta oportunidade para reiterar a V. Ex. os protestos da minha alta estima e consideração,
Julia da Fonseca de Sarti.15
15
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, PROCESSO 01/55.[Grifo nosso]
16
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, PROCESSO 01/55. [Grifo nosso]
Outro tema que rendeu relíquias ao acervo do MHN foi o culto dos grandes heróis e das
batalhas da Guerra do Paraguai. Para Barroso, este episódio militar foi o último ato da “epopeia
bandeirante que constituiu a pátria brasileira [...] o último episódio da grande epopeia escrita por
todos os quadrantes da terra brasileira por nossos antepassados”.18
O acervo relativo ao conflito é composto por objetos diversos: troféus de guerra, fragmentos de
embarcações, como a roda do leme da Fragata Amazonas, armas paraguaias retiradas do campo de
batalha, objetos pessoais de veteranos e utilizados nas campanhas, pinturas de história, fotografias,
projéteis de canhões, figuras de proa, entre outros. Uma boa quantidade desses objetos é oriunda
de transferências de instituições como o Museu Naval e o Colégio Militar. Outra parte é formada
por doações de familiares ou particulares, como no caso das coleções de relativas aos veteranos
da guerra. Há um número significativo de veteranos da guerra representados e evocados no MHN,
bem como de objetos relacionados às batalhas canonizadas na historiografia militar, especialmente
a batalha de Tuiuti, Humaitá, Avaí, Passagem do Chaco e Passagem de Humaitá. No entanto, o
culto a Osório e a Caxias marcou presença na museogafia do MHN que já teve uma sala intitulada
Osório e outra Caxias.
17
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, PROCESSO 01/55.
18
BARROSO, Gustavo. História militar do Brasil. São Paulo: Brasiliana, 1935. p. 211.
Dentre os objetos ofertados, três chamam atenção: uma caixinha de vidro com esquirolas,
dentes e fragmentos de bala, provenientes do ferimento, do maxilar inferior, do general Osório
quando comandava a batalha do Avaí, lança e poncho perfurado de balas na ocasião do combate da
passagem do Riachuelo. A doação não menciona em que situação e nem como esses objetos foram
conservados, porém as relíquias foram valorizadas durante anos no MHN, até que em 1983 foram
transferidas juntamente com diversos objetos da coleção Osório ao Exército e estão hoje na Casa
de Osório, localizada no centro do Rio de Janeiro.
A doação de Manoela Osório deu origem à sala Osório, primeira a receber o nome de
‘personagem histórico’ no MHN. A sala, nas palavras de Barroso,
[...] é uma das mais ricas do MHN pelo valor das relíquias do Grande Soldado nela expostas: suas
armas, seus retratos, seu poncho transpassado pelas balas paraguaias e até os próprios dentes e
fragmentos de ossos extraídos no profundo ferimento recebido em Avaí. Logo no início do MHN, a
família Osório, compreendendo o alto significado patriótico da instituição [...] se apressou em por a
disposição do diretor do museu as preciosas recordações do vencedor de Tuiuti [...].20
Nos anos 1930, Pedro de Veiga Ornellas, secretário de gabinete do MHN de 1922 até o final
dos anos 1940, descrevia em artigos publicados na imprensa, e posteriormente reunidos em livro, as
relíquias da pátria conservadas no MHN. Seu texto sobre a Sala Osório destaca entre as principais
relíquias os dentes do velho general, a lança e o poncho perfurado por balas.
De conformidade com a norma adotada em artigos anteriores publicados na imprensa local, sobre
as numerosas relíquias da Pátria existentes no Museu Histórico Nacional, descrevemos hoje,
as que ornamentam e sublimam de modo icástico a sala denominada ‘Osório’ evocativa de um
passado indelével e glorioso que reflete a epopéia de uma raça e o legítimo orgulho de um povo
amante de suas tradições. Queremos objetivar aqui nestes perfunctórios traços, os feitos heroicos do
19
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP. processo 03/23. [Grifo nosso]
20
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, processo 05/29.
ínclito brasileiro que se chamou Manoel Luis Osório, o inolvidável Marquês de Herval, o invicto
general que na defesa do Brasil contra o Paraguai, cristalizou o exército nacional, exemplificando
a disciplina, o patriotismo e a civilização do nosso país naquele memorável período marcante da
nossa história, da nossa independência e da nossa soberania perante as nações do orbe terráqueo
[...] Assim, pois, com este simples esquema sobre a personalidade incomum de militar em apreço,
passemos a enumerar sem hipérboles e sem apanaforas, as alfaias consideradas relíquias que lhe
pertenceram e que atualmente entesouram o patrimônio nacional, zelosamente agasalhadas no
gazophylaceo que é o Museu Histórico Nacional, na parte referente a Sala Osório. Estojo de cristal
contendo esquirola do maxilar, dentes e fragmentos de bala provenientes do ferimento que
recebeu no rosto o general Osório, quando comandava, ao terminar a celebre batalha do Avaí,
lança usada pelo mesmo General na campanha do Paraguai; poncho com orificios produzidos
por balas, que o bravo guerreiro vestia em combate do reconhecimento de Humaitá [...].21
Semelhantemente a sala Osório, a de Caxias, em 1955, contava com objetos diversos relativos
à guerra. Logo a entrada havia um busto em mármore do patrono da sala, a espada de d. Pedro II
usada em Uruguaiana e vários objetos de Caxias, do Conde de Porto Alegre, Visconde de Santa
Tereza, além de “troféus de guerra, bandeiras imperais que tremularam em muitas batalhas”.
21
ORNELLAS, Pedro. Relíquias da Pátria. Rio de Janeiro: 1944. [grifo nosso]
22
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL, DICOP, processo 11/30.
Considerações finais
A autenticidade histórica é definida a partir de critérios que são, em muitos casos, conflitantes
entre si, pois correspondem a disputas políticas características dos processos de construção de
memória e história. As relíquias da nação são a principal forma de evocação das tradições nacionais,
cabendo à autoridade sua manutenção e continuidade.
A criação de “relíquias da nação” relaciona-se, assim, à auctoritas do especialista, do
nome próprio, do autor e da tradição historiográfica que define o repertório e a canonização de
acontecimentos. O museu, além de corroborar com essas construções é também o local de afirmação
e produção de crença, onde essas inúmeras referências são cristalizadas, e exibidas na presença
dos objetos. Porém, o reconhecimento das relíquias só se completa com a audiência necessária.
O objeto relíquia precisa ser preparado para exibição, dentro de vitrines, iluminação e legendas.
No caso das relíquias cristãs, os relicários assumem essa função de guardar as relíquias e prepará-
las para a audiência, mesmo que na maioria das vezes os relicários escondam o que habita em
seu interior. Em última instância é a atenção da audiência que confirma sua autenticação e valor,
pois sem alguma forma de reconhecimento, as relíquias – sejam religiosas ou históricas – são
meramente fragmentos, restos de um passado.
*
Diretor-superintendente da Fundação Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora, MG.
1
Aberto à visitação pública, em 1915 e inaugurado oficialmente em 23 de junho de 1921, por ocasião do centenário de nascimento de seu
patrono, o comendador Mariano Procópio Ferreira Lage (1821/1872).
2
O Museu Mariano Procópio. São Paulo: Banco Safra, 2006.
3
Id. Ibid.
4
Nascida a 07.11.1853, e batizada a 14.01.1854, Matriz da Glória, Candelária, fls. 227, Rio de Janeiro, RJ. Processo de Habilitação de
casamento, 1871, 80.487.
e histórica. Na realidade, trata-se de parte de uma das mais relevantes coleções, que ainda está
sendo mapeada, pois se encontra distribuída em diversos museus, instituições culturais e coleções
particulares, no Brasil e na Europa. No caso da Viscondessa, ainda não se sabe em que momento
ela despertou para o colecionismo.
Importante destacar que ambas as coleções foram iniciadas como privadas, tornando-se
públicas por vontade dos colecionadores. Assim, o gesto se engrandeceu e ganhou foro de memória
e de permanecimento.5
Vínculo e afeto
É preciso destacar que Alfredo Ferreira Lage e Viscondessa de Cavalcanti são primos e em
duplicidade. O pai do primeiro, Mariano Procópio Ferreira Lage (1821/1872), era irmão de Mariana
de Assis Barbosa Machado (1832/?), mãe da segunda, enquanto a mãe daquele, Maria Amália
(1835/1914), é irmã de Constantino Machado Coelho (1821/1855), pai da Viscondessa.6
Mais do que esse parentesco em duplicidade, os colecionadores possuíam um forte e perene
vínculo de afeto e admiração, além de singularidades em suas trajetórias de vida. Ambos ficaram
órfãos de pai muito cedo: a Viscondessa de Cavalcanti com um ano e cinco meses de idade e
Alfredo Ferreira Lage aos sete anos.
forte relação com os Barbosa Lage pode ser verificada até na escolha dos nomes que integraram
inicialmente o Conselho de Amigos do Museu Mariano Procópio, instituído por Alfredo Ferreira
Lage para zelar e fazer cumprir as cláusulas da escritura de doação da instituição ao município de
Juiz de Fora.8
Alfredo dedicou parte de sua vida à memória do pai, evitando que este fosse vítima do processo
de esquecimento. É natural que tenha sido influenciado pelo gosto do pai, Mariano Procópio, pois
este fora colecionador, tendo recebido excelente educação, apesar de não ter formação superior. Este
era mineiro de Barbacena, mas se mudou para o Rio de Janeiro com os pais, ainda na adolescência,
e viveu na freguesia de Santana.9 Após o casamento e até a morte, residiu no bairro da Glória.
Influência maior na formação de Alfredo Ferreira Lage coube a sua mãe, Maria Amália, sua
principal incentivadora, que, ao ficar viúva, em 1872, mudou-se para a Europa com os dois filhos,
proporcionando-lhes esmerada educação, com destaque para as artes e a história. Além de pianista,
era pintora, tendo sido aluna do pintor Bernardo Hay (1864/1931).
Outra importante e efetiva influência recebida por Alfredo Ferreira Lage foi a de sua companheira
e fiel colaboradora, a pintora espanhola Maria Pardos (1867?/1928). Ela era discípula de Rodolfo
Amoedo e participou da Exposição Geral de Belas-Artes, organizada pela Escola Nacional de
Belas Artes, no Rio de Janeiro, entre os anos de 1913 e 1918, apresentando o total de vinte e quatro
(24) obras.10 A Coleção Maria Pardos encontra-se sob a guarda do Museu Mariano Procópio.
No caso da Viscondessa de Cavalcanti, além da influência dos tios Mariano Procópio e Maria
Amália, que eram seus padrinhos de batismo, teve como padrasto o seu tio paterno, Manoel Machado
Coelho Júnior (1833/1878), fotógrafo amador, cujo trabalho foi destacado pelo naturalista Louis
Agassiz durante sua viagem a Minas Gerais.11
Mesmo tendo falecido muito jovem, Constantino Machado Coelho, pai da Viscondessa, pode
ter despertado interesses culturais nos filhos. Ele aparece entre os subscritores de obras publicadas,
entre elas “Plutarco brasileiro”.12 Constantino Machado Coelho foi educado na Alemanha e se
achava em Hamburgo em 1838,13 por ocasião do inventário de sua mãe, Luíza Maria da Conceição,
8
Cartório do 1º Ofício da Comarca de Juiz de Fora, Livro 18-A, fls. 168, em 29 de fevereiro de 1936.
9
Arquivo da Cúria Metropolitana Rio de Janeiro, RJ, Processo de habilitação matrimonial nº 34.173 – 1850.
10
LEVY, C R M, Carlos Roberto Maciel. Exposições Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes: período monárquico
1840-1884 catálogo de artistas e obras. Edições Pinakotheke, Rio de Janeiro, 1990. 320p.
11
AGASSIZ, Jean Louis Rudolphe, 1807-1873; Agassiz, Elizabeth Cabot Cary, 1822-1907. Voyage au Brésil. Paris: Librairie de L. Hachette
et Cie., 1869. 532p.
12
SILVA, J. M. Pereira da. Plutarco Brasileiro II. Rio de Janeiro. Laemmert, 1847. 271p.
13
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Formal de partilha do inventário de Luíza Maria Machado. Família Soares Sampaio. Lata 818.
Pasta 7.
casada que fora com o Comendador Manoel Machado Coelho, que também tinha interesse pela
arte e foi retratado por Barandier em 1859.
O tio dos colecionadores, o conselheiro José Machado Coelho de Castro, além da atuação
como presidente do Banco do Brasil e outros cargos de importância e influência política no Império,
teve vivência cultural. Quando era estudante da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco,
São Paulo, em 1846, sob a liderança do escritor José de Alencar, foi um dos fundadores da revista
semanal Ensaios Literários.14
Do marido, Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, com quem se casou em 1871, a
Viscondessa recebeu todos os incentivos possíveis, desde as relações sociais, culturais e políticas,
como o gosto pelas artes e o colecionismo, sendo ele também pintor.
A Europa
14
ALENCAR, José. Como e por que sou romancista. Typ. G. de Leusinger & Filhos. 1893. Rio de Janeiro. P.35 - 76p.
PINTO, Rogério Rezende. Para encantar aos olhos, a mente e ao coração. In Doce França – Recortes da vida privada na coleção do Museu
15
Influência
Não há nenhuma dúvida do carisma e do poder de sedução que a Viscondessa de Cavalcanti
exerceu ao longo de sua vida, tanto pela beleza, charme, como pelo conhecimento em suas mais
variadas vertentes. Essa influência parece que também se exercia em relação ao primo e ao
colecionismo, como mostra uma correspondência de Maria Amália à sobrinha, enviada a Paris em
1º de janeiro de 1905: “Alfredo espera ansioso o que lhe promete”.18
É indiscutível o gosto das famílias Ferreira Lage e Machado Coelho pela fotografia a partir de
meados do século XIX. Alfredo Ferreira Lage foi um entusiasta desta arte, aprimorando-se a tal
ponto de participar de exposições internacionais, inclusive na França, receber premiações e presidir
o Photo Club do Rio de Janeiro. O resultado efetivo é a coleção de fotografias existente no Museu
Mariano Procópio, atualmente com cerca de 35 mil itens. Primo de Alfredo, Alberto Sampaio foi
outro importante fotógrafo amador no Brasil.
ABIB, João Gualberto. Viscondessa de Cavalcanti – Mãe da Numismática Brasileira. Sociedade Numismática Brasileira, São Paulo. 2010.
17
Os interesses de Alfredo Ferreira Lage se ampliam na última década do século XIX. Além de
ser eleito vereador pela Câmara Municipal de Juiz de Fora, dedica-se ao jornalismo e assume o
cargo de diretor-secretário do jornal O Pharol, bem como se torna sócio proprietário do Teatro Juiz
de Fora, cujo nome passa a ser Teatro Novelli, que funcionou até 1901, ano da morte de seu irmão,
Frederico Ferreira Lage.
O óbito da Viscondessa de Cavalcanti revela que seus dois filhos já eram falecidos em 1946.23
Stella Cavalcanti de Albuquerque, nascida em 1872, em Paris, onde provavelmente faleceu e onde
se casou, em 24.10.1895, com o Valentine Emanuel Patrick Mac Swiney, primeiro Marquês Mac
Swiney de Mashanaglass, do qual se divorciou em 191024.
Também já era falecido o filho Fernando Velho Cavalcanti de Albuquerque (1873/?),25
engenheiro formado pela Escola Politécnica, 1899.
Essas perdas podem ter influenciado a Viscondessa a iniciar o processo de dispersão de sua
eclética e abrangente coleção, a partir do final da década de 20 até a sua morte. Além do acervo sob
a guarda do Museu Mariano Procópio, outra parte encontra-se em diversas instituições culturais,
como o Museu Histórico Nacional,26 o Museu Nacional de Belas Artes27 e o Museu Nacional, além
de obras inéditas e manuscritas, como o Dicionário Biográfico Brasileiro, no Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, e Esclavage au Brésil, no Instituto de France.28
BASTOS, Wilson de Lima. Mariano Procópio Ferreira Lage - Sua vida. Sua Obra. Sua descendência. Sua Genealogia. Juiz de Fora. 2ª
22
As coleções
29
COSTA, Ligia Martins. De Museologia, arte e política de patrimônio. Pesquisa: Clara Emília Monteiro de Barros. Rio de Janeiro: Iphan.
2002. 388p.
*
Empresária e empreendedora cultural. Fundadora e presidente do Instituto Cultural Flávio Gutierrez. É vice-presidente do Conselho de
Administração do grupo Andrade Gutierrez. Seus principais projetos culturais são: o Museu do Oratório e o Museu de Artes e Ofícios,
instituições criadas com a doação de duas coleções particulares ao patrimônio público.
Para viabilizar a doação e a criação dos museus de forma segura e satisfatória, criou-se o
Instituto Cultural Flávio Gutierrez, sediado em Belo Horizonte, e que vem funcionando, com
sucesso, desde 1998.
O Instituto Cultural Flávio Gutierrez foi criado com a missão de desenvolver o trabalho de
preservação, difusão e valorização do patrimônio cultural brasileiro, com foco na implantação e
gerenciamento de espaços museológicos.
O primeiro empreendimento do Instituto Cultural Flávio Gutierrez foi o Museu do Oratório,
criado ainda em 1998.
É um museu único no mundo, situado em Ouro Preto. Seu acervo reúne 162 oratórios e 300
imagens dos séculos XVII ao XX, dos mais variados estilos e materiais.
A experiência foi tão bem sucedida que, alguns anos mais tarde, em 2002, criou-se um segundo
museu, desta vez em Belo Horizonte. O Museu de Artes e Ofícios, instalado nos prédios restaurados
da antiga Estação Central, retrata o universo do trabalho pré-industrial no Brasil. São mais de 2.400
peças, entre objetos, utensílios, ferramentas e máquinas rudimentares, datados dos séculos XVIII
ao XX. Todo este acervo também foi doado ao IPHAN.
Atualmente, trabalha-se na criação de um terceiro museu, na cidade de Tiradentes. Trata-se
do Museu de Sant’Ana, que deve ser implantado a partir da doação de uma expressiva coleção
particular de imagens da mãe Virgem Maria, uma das mais belas iconografias da fé católica. São
270 peças datadas dos séculos XVII ao XIX, originárias de várias regiões do Brasil.
Além da gestão dos dois museus, o Instituto empreende ações nas áreas educativa, editorial,
social, de pesquisa e de consultoria museológica, além de projetos de extensão cultural nas áreas
de música e literatura.
Entre os projetos, destaca-se o Valor Social, um programa de responsabilidade social. Seu
objetivo é capacitar jovens em situação de vulnerabilidade social para atuar como assistentes de
restauração, abrindo-lhes um horizonte profissional numa área em que há grande carência de mão
de obra qualificada.
Desde a sua criação, o Instituto Cultural Flávio Gutierrez tem enfrentado, cotidianamente, o
desafio da sustentabilidade dos museus que gerencia.
A principal estratégia para fazer frente às inúmeras demandas que se apresentam é, antes de
tudo, garantir uma administração compacta, sem desperdícios ou sobreposições de competências,
permitindo que todas as atribuições técnicas e administrativas dos museus sejam executadas de
forma eficiente e econômica.
Não se trata de simplesmente abrir as portas dos museus, mas manter um padrão de
funcionamento que possa destacá-los entre os demais museus do país e do exterior e que atenda às
exigências da museologia contemporânea.
Somente um atendimento de qualidade pode fazer com que o público retorne para uma
segunda ou terceira visita. E esta é uma das metas principais: aumentar a visitação do público local
e regional. O turista e o aluno são visitantes importantes e que representam uma fatia expressiva do
público, mas o grande desafio é o aumento da visitação espontânea.
Trabalha-se dentro de um planejamento que garante primeiro a manutenção dos espaços, de
seu corpo funcional e de suas atividades técnicas e que incentiva a busca de apoio institucional para
o desenvolvimento de atividades específicas como exposições temporárias e atividades culturais.
Os museus do ICFG operam numa parceria público – privada seja por ocuparem prédios
públicos cedidos em comodato ao ICFG, como é o caso do Museu de Artes e Ofícios, cujos prédios
são de propriedade da CBTU, seja por abrigarem acervos de propriedade federal, já que os acervos
dos museus foram doados integralmente ao IPHAN quando foram criados.
O mesmo modelo deverá ser aplicado ao futuro Museu de Sant’Ana, em Tiradentes, cujo
prédio é da Universidade Federal de Minas Gerais.
A manutenção e os serviços museológicos, educativos e administrativos dos museus são
garantidos, em grande parte, por planos anuais aprovados na forma de projetos culturais nas leis de
incentivo federal e estadual. O esforço de captação de recursos incentivados é grande, permanente
e cada vez mais difícil.
Entre as dificuldades, está a concorrência com os próprios museus estatais, que vão buscar
recursos substantivos nos mecanismos de incentivo e muitas vezes nos editais de apoio para ações
de infraestrutura que seriam de responsabilidade direta da administração pública, supridas por
recursos orçamentários.
Por isso, o Instituto Cultural Flávio Gutierrez busca, constantemente, ações que possibilitem a
entrada de recursos, preservando o acervo e o funcionamento dos museus. Outro ponto importante
é observar a necessidade, cada vez maior, de realizar atividades gratuitas que possam atrair públicos
diferentes e que permitam o acesso das mais diversas camadas da população.
No caso especifico do Museu de Artes de Ofícios, um museu dedicado ao universo do trabalho,
é importante notar que o seu público-alvo prioritário é o trabalhador e seus familiares. A geração
de receitas alternativas, como: loja, café, venda de produtos e publicações e taxas de admissão,
precisa levar em consideração a natureza do público prioritário, entre o qual podem ser incluídos
os estudantes de escolas públicas e participantes de projetos sociais.
Os recursos próprios que fortalecem o orçamento do museu são indicadores de sua
sustentabilidade, e se apresentam como fator importante também quando se busca algum patrocínio,
pois, é prova de que a instituição está em busca de um equilíbrio que permita seu funcionamento
seja por receita, seja por acesso a patrocínios através das leis de incentivos.
*
Para o Dep. de Comunicação Social da PUC-Rio, penhor de gratidão.
**
Antropólogo, Prof. Adjunto da PUC-Rio.
1
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008;
LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007;
HOBSBAWM, Eric J. O novo século: entrevista a Antonio Polito. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.78.
esclarecedora nas práticas sociais de diferentes agentes – é recorrermos à leitura da discussão sobre
mercadorias e políticas de valor proposta por Appadurai (l986). Segundo ele é necessário termos
em mente que:
Even if our own approach to things is conditioned necessarily by the view that things have no
meanings apart from those that human transactions, attributions, and motivations endow them
with, the anthropological problem is that this formal truth does not illuminate the concrete,
historical circulation of things. For that we have to follow the things themselves, for their meanings
are inscribed in their forms, their uses, their trajectories. It is only through the analysis of these
trajectories that we can interpret the human transactions and calculations that enliven things.
Thus, even though from a theoretical point of view human actors encode things with significance,
from a methodological point of view it is the things-in-motion that illuminate their human and
social context.2
Ora, para este autor, coisas em movimento são bens em uma determinada situação, o que pode
caracterizar vários tipos de artefatos em diferentes pontos de suas vidas sociais, ou seja, como
numa certa fase de suas carreiras, num particular contexto, eles são candidatos a esta ou àquela
classificação. Perceber o potencial que os objetos têm para entrarem e saírem de determinadas
categorias é relacionar a biografia cultural de bens específicos com a história social de uma
classe ou tipo de coisa. Por conseguinte, deve-se examinar a trajetória total de um artefato da sua
produção ao consumo, passando pela troca/distribuição - o que também implica ter em mente
divergências de valoração, disputas, etc. (vide a tensão path/diversion) - numa circulação que pode
implicar no cruzar fronteiras culturais/sistemas de significado. Em relação a esta última questão,
Appadurai (l986) adota o termo regime de valor, “consistent with both very high and very low
sharing of standards by the parties to a particular commodity exchange”, em consonância com sua
concepção ampla de mercadoria, entendida como uma situação na vida social de uma coisa na qual
“its exchangeability (past, present or future) for some other thing is its socially relevant feature.”3
No bojo de sua proposta, o autor ressalta ser a demanda uma função de uma variedade de
práticas e classificações sociais, as quais incluem as intervenções de poderosos mediadores e
formadores de gosto, e não uma mera resposta a “desejos”, “necessidades” e/ou “manipulações”. O
consumo (e a demanda que o torna possível) significa também receber e enviar mensagens. Assim,
o autor nos remete a uma concepção mais adequada de “necessidade” ou “uso”. Ao trabalharmos
com o recorte dos bens de luxo e da sua correlata expertise, destacando-os do quadro geral das
2
APPADURAI, Arjun. Introduction: commodities and the politics of value. In: The social life of things: commodities in cultural perspective.
Cambridge: Cambridge University Press, 1986, p. 5 (grifo do autor).
3
Id. Ibid., pp. 13, 15, 16-29, 34 (grifo do autor).
coleções (não nos cabe nos limite deste texto discutir como eles podem pautá-lo) seguiremos a
análise de Appadurai, que os considera
[...] goods whose principal use is rethorical and social, goods that are simply incarnated signs.
The necessity to which they respond is fundamentally political. Better still, since most luxury goods
are used (though in special ways and at special cost), it might make more sense to regard luxury
as a special ‘register’ of consumption (by analogy to the linguistic model) than to regard them as
a special class of things.4
Torna-se igualmente importante lembrar que este autor salienta o papel dos serviços nas
complexas sociedades capitalistas, afinal “knowledge about commodities is itself increasingly
commoditized”. São sociedades nas quais “a traffic in criteria concerning things develops” e “buying
and sellings of expertise […] become widespread”. Portanto, qualquer discussão sobre polissemia
das práticas no universo das coleções é avaliar bens e serviços, artefatos e connoisseurship.5
Na elucidação das histórias de vida dos objetos, isto é, sua dimensão processual, leilões e
feiras de arte são arenas sociais por excelência, intra e entre unidades culturais, espaços sociais
privilegiados, “tournaments of value”, que possibilitam legitimamente relacionar a candidatura a
mercadoria de uma coisa à fase de mercadoria de sua carreira. Eles podem acentuar a dimensão
de mercadoria de uma obra de arte de uma forma que seria julgada profundamente inadequada em
outros contextos. Na interseção de fatores culturais, sociais e temporais, sobretudo os leilões são
exemplos dos contextos nos quais é possível reunir atores de diferentes sistemas culturais, que
compartilham apenas um nível mínimo de entendimento (do ponto de vista conceitual) dos bens
em questão e concordam apenas com os termos do negócio.6
A polissemia das práticas não diz necessariamente respeito a distintos agentes sociais que
dominando códigos simbólicos diversos se apropriam, sincrônica e diacronicamente, de objetos
para dotá-los de um determinado sentido. Os artefatos têm biografia atribulada, as múltiplas
4
Id. Ibid., pp. 29, 31, 38 (grifo do autor).
5
Id. Ibid., p. 54 (grifo do autor).
6
Id. Ibid., pp. 15, 21; Exemplos de leilões de novembro de 2011 são elucidativos. Na venda de Impressionistas e Arte Moderna da Sotheby’s,
o Boston Museum of Fine Arts, entre outras obras, colocou também à venda o Monet “Antibes, le fort”, de 1888, quadro de destaque na
exposição “Monet e o Mediterrâneo”, 1997-1998, que foi do Kimbell Art Museum, Texas, ao Brooklyn Museum of Art e apurou 9. 6 milhões
de dólares, possivelmente para pagar aquisições recentes ou capitalizar-se para as próximas. O leilão da Christie’s de Arte Medieval ilustra
também a interdependência mercado/museu. Este pregão chamou a atenção pela qualidade das peças, fora do mercado há mais de 100
anos, pelo número de lotes (apenas 24) e pelo fato de 7 obras já adquiridas dos comitentes pela Direction des Musées de France, compra
intermediada pela Christie’s em nome de seus clientes, por um montante não revelado, serem apresentadas na exposição que antecipa
a arrematação, junto com as peças a serem apregoadas. VOGEL, Carol “Sotheby’s Strong Sale Revives Art Market in One Night”. The
New York Times, 02.11.2011. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2011/11/03/arts/design/sothebys-art-auction-totals-nearly-200-
million.html?ref=arts>. Acesso em 03.11.2011; MELIKIAN, Souren. “Glamorous History Drives Divine Surprise”. The New York Times,
18.11.2011. Disponível em: <http://www.nytimews.com/2011/11/19/arts/19iht-Melikian19.html?ref=arts>. Acesso em 18.11.2011.
funções e inúmeros papéis que desempenham podem se dar em um contexto cultural razoavelmente
homogêneo para indivíduos que, movidos simultaneamente por necessidades e prioridades distintas,
complementares ou não, se apropriam deles, vide as baixelas de prata do universo curial europeu
no século XVIII. Questões estéticas, históricas, funcionais e de gosto individual se manifestam, no
que nunca deixou de ser, no ancien régime, uma reserva a ser enviada a La Monnaie em épocas de
problemas econômicos (por exemplo, os decorrentes das onerosas guerras nas quais os Bourbon se
envolveram desde o último quartel do século XVII) .
Entre outros, Rheims nos lembra que da Renascença a meados do século XVIII, “où l’orfèvrerie
atteint des sommets qui resteront inégalés”, pintores da importância de Hans Holbein e Albrecht
Durer criaram objetos para as mesas dos abonados pela fortuna. Ele coloca Thomas Germain,
seu filho François-Thomas e Juste-Aurèle Messonnier no mesmo plano que Benvenuto Cellini e
Wenzel Jamnitzer e sua família. Os artistas seus contemporâneos expressavam esta consideração nos
retratos, o de Wenzel Jamnitzer feito por Nicholas Neufchatel, c.1562, e o de Thomas Germain e de
sua esposa Anne-Denise Gauchelet de autoria de Nicolas de Largillière, 1736, e em ambas as obras
os retratados são apresentados “surrounded by tokens of his prosperity and accomplishments”.7
Thomas Germain, que D. Luis da Cunha recomenda a D. João V, pois o considerava “o mais
hábil ourives real da época, tanto do ponto de vista técnico como no desenho”8 era arquiteto, sendo
responsável pelos planos, desenhos e orientação da obra de igreja de São Luís do Louvre, onde foi
enterrado. Juste-Aurèle Meissonnier assinava suas obras como arquiteto e incluía, em numerosos
documentos, as qualificações de arquiteto, pintor e escultor.9
A partir de 1726, D. João V e a corte portuguesa recorriam, com frequência, às oficinas francesas,
sobremodo à de Thomas Germain, em detrimento das inglesas, para sua prataria civil. Estes artefatos
eram expostos em móveis de aparato e tinham seu uso ritual rigorosamente codificado, sendo os ditames
de Versailles observados por seus aliados e adversários.10 Após a tragédia lisboeta, D. José I, para repor
7
RHEIMS, Maurice. Pour l’amour de l’art... Éditons Gallimard, 1984, p. 169; Sotheby’s Concise Encyclopedia of Silver. London: Conran
Octopus, 1993, pp. 57, 62-63, 69-71.
8
OREY, Maria Leonor Sampayo Borges Souza d’. A baixela da coroa portuguesa. Edições Inapa, 1990, pp. 18,21, 25.
9
OREY, Maria Leonor. A baixela… Op.cit.; Sotheby’s The Thyssen Meissonnier Tureen made for the 2nd Duke of Kingston. New York,
Wednesday, May 13, 1998, p. 41.
10
Para o seu catálogo de venda The Hanover Cistern and Fountain, a Christie’s, em seu histórico das peças, ressalta que: “The custom of
arranging such pieces to form a display during a formal banquet grew out of the medieval practice of placing silver to be used for serving
wine on trestle tables on the side of the room. As noble and royal life became less itinerant during the seventeenth century, the buffet became
a permanent arrangement which in some German courts became enormous (the one in the Berlin Schloss, which has miraculously survived
in almost original form since the end of the seventeenth century, is some twenty-three feet high). The food at a banquet continued to be the
main focus of attention on the dining table itself and was highly decorated, leaving little room for plate, making a buffet essential for the
elaborate and costly displays of silver so necessary to signify the status of the host at the time”. Christie’s, New York, The Hanover Cistern
and Fountain, Monday, 20 October 1997, p. 24. OREY, Maria Leonor. A baixela... op. cit., pp. 49-52, argumenta que com a adoção do
a baixela dos Bragança, encomenda quatro cobertas ou serviços a François-Thomas Germain. Com a
falência deste último, em 1765, o maior serviço, o quarto, nunca foi completado, embora entre 1766 e
1778 ele ainda entregue algumas peças das encomendas portuguesas.
Este quarto serviço incluía “uma corbeilha destinada a ornamentar toda a mesa “com suas
guarniçoens a roda com figuras de relevo nela como de debuxo”, isto é, conforme o desenho
que acompanhava a encomenda. A figura do centro representava o rei D. José I em majestade,
transmitindo as suas ordens à Arquitetura e às Artes personificadas, para a reconstrução da cidade,
com vários edifícios em fase de levantamento e outros atributos alegóricos. Uma das cabeceiras
de mesa figurava a América oferecendo ao monarca as suas produções e outra “a conquista da
América por Pedro Álvares Cabral com varias figuras de americanos como de debuxo”.11 Ora, as
principais peças do serviço, a começar pelo centro de mesa, não passaram da fase de modelo.
O que a correspondência do embaixador D. Vicente de Souza Coutinho nos revela? Em carta
de 28.10.1765, ele declara a seu destinatário:
A fábrica do Plató [centro de mesa] he imença, e jamais pode ser de algum uso. Todos aquelles
que tinham esta casta de ornamentos de mesa, os tem mandado fundir pois hoje se estima que o
plató, não incubra as pessoas que ficão defronte, e além disso, se varia todos os dias a decoração,
conforme a habilidade do Copeiro.
Ao que o guarda-joias responde em 14.04.1778: “Pelo que pertence aos Modellos do quarto
serviço a Raynha N. Snra não quer acabar tal obra, que na verdade he, como V. Exa diz, redícula
e monstruoza”12
serviço à la française, com as alterações daí decorrentes, veio a necessidade de baixelas homogêneas e com maior número de peças, além dos
bufetes de aparato, credências ou escaparates serem gradualmente transformados em locais de pura exibição da prataria sem função prática.
11
OREY, Maria Leonor. A baixela... op. cit., p. 29 (grifo da autora).
Id. Ibid.,pp. 35, 38 (grifo da autora). Não custa lembrar que o projeto inicial de Meissonnier para o duque de Kingston incluía também
12
um imponente centro de mesa e que “From the engraving of the two tureens and the centerpiece, it is possible to see that Meissonnier was
working with an overall triangular structure in mind. The tureens are the visual supporting elements for the crowning figures of the surtout,
Se muito pouco sobrou da prataria francesa civil e religiosa do século XVIII e a baixela
Germain é um dos orgulhos do patrimônio lusitano, nem por isso ela deixou de ser utilizada em
Portugal nas recepções dadas pelo regime republicano. Com o desaparecimento de várias peças,
foram executadas cópias das de maior uso, prosseguindo então o conjunto sua carreira de serviço
de mesa das grandes festas e cerimônias públicas do governo. Apenas em 1926, o Museu Nacional
de Arte Antiga conseguiu finalmente uns 300 objetos da baixela Germain para seu acervo, os
demais continuaram sua carreira de bens utilitários de luxo nos atos oficiais realizados no Palácio
da Ajuda.14
Nos termos de Appadurai (1986), na rica e atribulada trajetória dos artefatos – “things-in-
motion” - o desempenho de múltiplas funções e papéis (semióforo, mercadoria, obra de arte, peça
de coleção, relíquia de um passado histórico, objeto de culto religioso, reserva monetária, caução,
penhor de amizade e de alianças político-ideológicas, sinal diacrítico de uma identidade, aplicação
financeira, etc.) e a transitoriedade deles são constantes possibilidades a nos desafiar e seduzir.
A polissemia simbólica fica igualmente clara na disputa por outras criações do século XVIII,
as de procedência dos ateliers imperiais dos Qing para o relógio d’água do Yuanmingyuan, tal
como ocorreu no leilão Saint Laurent/Bergé em fevereiro de 2009. No caso, a própria definição da
leitura correta de seu significado estava tão no centro do embate público quanto os próprios bens.
Economia, política e cultura evidenciavam com nitidez suas prioridades e o virtuosismo semiótico
em exercício na contenda.15
in which, form, shape and detail are combined with exceptional craftsmanship”. Contudo, este centro de mesa, cujos desenhos chegaram até
nós e apresentam variações nas figuras que encimam a peça, a despeito de sua importância para a estética do conjunto, também nunca foi
executado, vide Sotheby’s The Thyssen Meissonier tureen..., op. cit., pp. 39-42.
13
VEIGA, Roberto de Magalhães. D. João VI e o circuito de bens de luxo na América Portuguesa: ruptura ou intensificação? In: D. João VI
e o oitocentismo. Rio de Janeiro: Contra Capa/Faperj, 2011, pp. 155-189, p.164.
14
OREY, Maria Leonor. A baixela..., op. cit.,p. 47. Para o caso de joias, VEIGA, Roberto de Magalhães. “A ‘autenticidade’ e seus usos”.
ALCEU: Revista de Comunicação, Cultura e Política, v. 4 ,n. 7, jul./dez 2003. Rio de Janeiro: PUC, Dep. de Comunicação Social, pp. 115-
140.
15
VEIGA, Roberto de Magalhães. Mauss, Saint Laurent e os chineses. ALCEU: Revista de Comunicação, Cultura e Política, v.11, n.21, jul./
dez. 2010. Rio de Janeiro: PUC, Dep. de Comunicação Social, pp. 162-185.
Em resumo, disputas para obter a restituição de artefatos que Itália, Grécia, Peru, Turquia,
Índia, China e outros estados nacionais consideram ilegalmente obtidos e/ou retirados de seus
territórios vêm transformando a questão da procedência num problema tão espinhoso e relevante
quanto o da autenticidade de obras e objetos de arte. O campo da arqueologia é uma das arenas
por excelência de contínuo enfrentamento entre as partes interessadas. As mais variadas formas
de pressão para restituição de peças – do recurso aos tribunais, nem que seja para marcar posição
em uma demonstração exemplar de defesa de seu patrimônio e ganhar a opinião pública, à recusa
de empréstimo de artefatos fundamentais e de colaboração científica para exposições temporárias
importantes – tornaram-se cada dia mais corriqueiras. Museus do porte do Metropolitan e do Getty
são arguidos a respeito da origem obscura ou francamente questionável de peças de seus acervos,
a começar pelas oriundas de doações de colecionadores particulares, vide os casos Shelby White/
Leon Levy, Marion True, etc. As constatações de que não há sociedades monoculturais e de que
soluções de continuidade não podem ser ignoradas sofrem as mais diversas apropriações, a serviço
dos interesses mais contrastantes. No mundo globalizado, da pós-modernidade, da fragmentação,
do multiculturalismo, do questionamento de concepções de identidades baseadas em referências
tradicionais de pertencimento nacional, classista, etc. Os leitores mais apressados de Frederic
Jameson e de Jean-François Lyotard não podem deixar de se dar conta do quão viscerais a
apropriação e a guarda da cultura material revelaram-se.16
16
Neste universo cheio de ambiguidades e de zonas de penumbra, Renfrew (2009) considerou oportuno explicitar “I regret any implied
personal criticism of the Fleischmans, just as I do that of Shelby White and Leon Levy in the discussion below. I have been introduced to
the later and found them delightful to meet, and with a real enthusiasm for the pieces in their collection. I have also had the pleasure of
meeting Barbara Fleischman. But I seriously doubt whether they or the Fleischman fully understood the consequences of their actions
in purchasing unprovenanced antiquities, or the condoning of looting which such purchase must in some senses entail. It is their advisors
whom I would single out for criticism. First of course the professional dealers. But even more so the scholars who have encouraged them
in their collecting activities and those who have accorded them facilities to put their collections on public display.” RENFREW, Colin.
Loot, legitimacy and ownership: the ethical crisis in Archaeology. London: Duckworth, 2009, p. 30. Da perspectiva dos museus, um bom
ponto de partida é Cuno, James. Who owns antiquity?: museums and the battle over our ancient heritage. Princenton: Princenton University
Press, 2008. A disputa pelo templo khmer do século XI, na fronteira entre Camboja e Tailândia, que os cambojanos denominam Preah Vihear
e os seus rivais tailandeses Khao Phra Viharn, faz parte de um imbróglio de reivindicações territoriais, política doméstica e turismo. Seu
dossier é formado por um centenário mapa colonial francês, uma decisão de 1962 da Corte Internacional de Justiça a favor do Camboja e a
decisão de 2008 da Unesco de incluir o templo no Patrimônio Mundial. Em fevereiro de 2011, o conflito militar pelo controle desta região
de fronteira cobrou seu preço em mortos, feridos e danos culturais. O embate prosseguiu em junho em Paris. “C’est La première fois, depuis
sa création, em 1972, de la Convention du Patrimoine mondial de l’Unesco qu’un tel clash survient. La première fois qu’un pays dénonce
cette Convention, adoptée par 187 pays,[...]. A La stupéfaction générale, samedi 25 juin, la Thailande a claqué la porte du Comité du
Patrimoine mondial, réuni à Paris jusqu’au 29 juin pour sa 35ª. session, alors que l’examen des candidatures au classement du Patrimoine
mondial était en cours. Dès lundi 27 juin, Irina Bukova, directrice générale de l’Unesco, exprime ‘ses profonds regrets après la déclaration
du ministre thailandais Suwit Khunkitti de son intention de dénoncer la Convention du patrimoine […]. Et souligne que le patrimoine ne
doit pas être un enjeu de conflit mais un outil de dialogue et de réconciliation’ On en est loin.” EVIN, Florence. Un temple khmer objet
d’un clash à l’Unesco. Le Monde, 28.06.2011. Disponível em: <http://www.lemonde.fr/culture/article/2011/06/28/un-temple-khmer-objet-
d-un-clash-a-l-unesco_1542031_3246.html>. Acesso em 28/06/2011; MYDANS, Seth. ”Camdodians Are Evacuated in Temple Feud With
Thais”. The New York Times, 07.02.2011. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2011/02/08/world/asia/08thailand.html?ref=world>;
_____. Pause in Fighting Over Temple Between Thailand and Cambodia. The New York Times, 08.02.2011. Disponível em: <htpp://www.
nytimes.com/2011/02/09/world/asia/09iht-cambo09.html?ref=world>. Ambos acesso em 08.02.2011.
17
MOTE, F. W. China in the age of Columbus. In: Circa 1492: art in the age of exploration. (Edit. Jay A. Levenson). Washington: New Haven
and London: National Gallery of Art/Yale University Press, 1991, pp. 337-350, pp. 348-350; PIRAZZOLI-t’SERSTEVENS, Michèle. 1.
Évolution générale, 2. Archéologie e 17. Le connoisseur chinois (In “Arts”, pp. 27-104). In: Dictionnaire de la Civilisation Chinoise. Paris:
Encyclopaedia Universalis & Albin Michel, 1998, pp.34-37, 37-40, 100-102.
18
Id. Ibid.
A casa de leilões tratou logo de fazer bonito, ao promover a exposição “Trans-Realism”, pouco
mais de um ano após a celeuma gerada pela oferta dos bronzes Qing na venda Saint Laurent/Bergé.
Para esta mostra a casa de leilões pagou o transporte das peças, publicou o catálogo e bancou as
despesas de viagem da equipe chinesa. Sob a curadoria de Fan Dian, diretor do Museu Nacional de
19
BARBOZA, David. Christie’s and China: An Artful Diplomacy. The New York Times, 19.11.2010. Disponível em: <http://www.nytimes.
com/2010/11/20/arts/design/20realism.html?ref=christies>. Acesso em 04.03.2011.
Arte da China, e Pan Qing, curador do Museu Nacional da China, foram selecionados 29 trabalhos
de 17 artistas que o governo chinês sentia serem “mais representativos”. O resultado, segundo o
The New York Times, foi:
Two months ago, during Asian Art Week, Christie’s auction house invited hundreds of wealthy
collectors, scholars and art patrons to its New York headquarter in Rockefeller Center for what it
described as a special exhibition and symposium about the rise of Chinese contemporary art. But
the 29 works in the show were not produced by the politically focused Chinese artists who have
helped Christie’s earn millions of dollars at auction over the past five years. Instead, the group –
mostly realist painters whose work had been ignored by collectors and curators outside the country
– was selected by a Chinese government-appointed panel. And none of the pieces were being sold
at auction.20
É óbvio que as críticas não se fizeram esperar, na linha que esta postura “alters the role of the
auction house and could undermine its credibility with collectors”, “is clearly a political move” e
que “Christie’s has bowed under pressure from a government that often tries to silence critics and
artists it dislikes”, por exemplo Liu Xiaobo e Ai Wei Wei. Mas outras leituras foram feitas, como
a de Melissa Chiu, diretora do Asia Society and Museum em Nova Iorque, ao declarar que “This
would be unthinkable for a museum” e arrematou “But as a business, this is acceptable. Most people
accept that Christie’s is first and foremost a business. And Christie’s is clearly trying to forge a
relationship with the government”. Tang Jing, do Centro de Intercâmbio Cultural Internacional do
Ministério da Cultura reconheceu que “Christie’s offered us an opportunity to ‘spend their money
and do our favorite things”, fala completada por Lu Jun, diretor do mesmo centro, ao ressaltar que
“And we didn’t spend any money. All our costs were covered by Christie’s”.21
A hora dos museus já havia soado em dezembro de 2009, uma vez que “China’s ‘treasure
hunting team” foi inspecionar o Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque e “James C.Y.Watt,
the patrician head of Asian art, braced for a confrontation.” Ao longo de duas semanas, os oito
membros da delegação cultural chinesa, que os americanos acreditavam serem integrantes do
departamento de propaganda do museu do palácio de verão e da mídia chinesa, percorreram
uma dúzia de instituições americanas. Eles estavam em busca de objetos do Yuanmingyuan,
que teriam sido pilhados ao longo dos 3 dias de destruição do palácio de verão dos Qing, pelas
tropas anglo-francesas em 1860, “a crucial event epitomizing China’s fall from greatness”.
No Metropolitan, filmados por uma equipe da televisão chinesa, os membros desta delegação
indagaram a procedência de artefatos expostos e, no caso específico de uma coleção de jades,
20
Id. Ibid.
21
Id. Ibid.
pediram a documentação comprobatória da aquisição legal destes bens. Súbito, sem nenhuma
descoberta sensacional, o clima se desanuviou e a tensão foi esvaziada. Os chineses se deram
por satisfeitos, sorriram para uma fotografia em grupo e partiram. “That wasn’t so bad after all”,
ponderou James C.Y. Watt.22
Na visão do The New York Times, a busca pelas relíquias do Yuanmingyuan, nos museus
americanos, revelou-se um show político de relações públicas para a audiência chinesa, com
magros resultados práticos. Para o jornal, tratava-se de uma estratégia diversionista, jogando com
a carta do nacionalismo, a fim de escamotear, para a população chinesa, tensões e contradições
entre a ideologia marxista e a lógica das forças do mercado. Como bateram em porta errada,
receberam dos experts que encontraram em seu périplo a indicação de que a maior parte das peças
remanescentes do palácio de verão estava nas mãos de particulares, incluindo colecionadores em
Hong Kong, Taiwan e na China continental “The best thing would be to look through the catalogs
of Sotheby’s and Christie’s’, said Mr. Watt of the Metropolitan Museum.”23
Contudo, mais uma questão foi levantada nesta reportagem. Do ponto de vista do patrimônio,
há uma clara inconsistência entre o discurso oficial de repatriar as relíquias chinesas, de um lado,
e o tratamento dispensado a prédios históricos, sítios arqueológicos e à proteção de relíquias
registradas (23.600 das quais o governo admite terem sido roubadas ou negociadas ilegalmente
nos últimos anos) de outro. Esta corda é particularmente sensível, em função das reiteradas críticas
à arqueologia chinesa.24
No início da segunda década do século XXI, em seus artigos sobre os leilões da Christie’s e
da Sotheby’s, os críticos consideram que “The glamour culture of our times is radically altering
the art market. In every field, criteria unrelated to aesthetics define works as ultimate trophies for
which bidders are prepared to pay prices beyond all expectations.” Por exemplo, na sua venda
“The Exceptional Sale”, de 07.07.2011, a Christie’s apregoava 4 jarrões de porcelana chinesa, 130
cm de altura, de cerca de 1815, ornamentados com bronze dourado no estilo império de acordo
com o padrão estético ocidental de apropriação destas peças. A sua procedência era documentada
apenas no século XX. Pertenceu ao 8º duque de Buccleuch e 10º duque de Queensbery, sendo
vendidos pela Christie’s, em 05.07.1973, ano da morte do duque, por 7.000 libras. Na venda de
2011, a Christie’s especulou sobre as residências aristocráticas nas quais os jarrões teriam sido um
22
JACOBS, Andrew. China Hunts for Art Treasure in U.S. Museums. The New York Times, 16.12.2009. Disponível em: <http://www.
nytimes.com/2009/12/17/world/asia/17china.html?hpw>. Acesso em 17.12.2009.
23
Id. Ibid.
24
Id. Ibid.; PIRAZZOLI-t’SERSTEVENS, Michèle. 1.Évolution générale... op. cit.; TONG, Enzheng. Thirty years of Chinese archaeology.
In: Nationalism, politics ant the practice of archaeology (edited by Philip L. Kohl & Fawcett, Clare). Cambridge: Cambridge University
Press, 1995, pp. 177-197.
adorno, e na base do “almost certainly acquired”, chegaram ao século XVIII. Para os críticos eram
hipóteses aventadas que não podiam ser comprovadas, mas para os “caçadores de troféus”...25
Pasmos, os connoisseurs assistiram à arrematação, pois “when it comes to trophy hunting, you
can’t beat China right now. Christie’s had taken care to reproduce a photograph of the four vases
without mounts (almost, two vases actually retain slim gilt bronze rings at the rim) ‘showing the
porcelain was not cut or drilled when embellished with ormolu”. Completando o relato,
One vase had a hairline crack to the body. But the new billionaires aren’t that picky. The set brought
almost £8 million, more than seven times the estimate courtesy of Wynn Macau Ltd. Steve Wynn, the
Las Vegas casino tycoon who is the chairman of Wynn resorts, let it be known that he was ‘delighted
to be able to return these extraordinary examples of Chinese culture to the People’s Republic of
China and place them on display in the city of Macau.26
POGREBIN, Robin. China New Cultural Revolution: A Surge in Art Collecting. The New York Times, 06.09.2001. Disponível em: <http://
28
Para o articulista, “Their simples approach could be called the vacuum cleaner technique. They
gobble up everything unless they are confronted with exceptionally stiff resistance or extremely
complex issues related to cultural history and more generally to connoisseurship”29
Desta forma, o cruzamento da marca imperial com a procedência de coleção ocidental (ou
japonesa) torna-se decisivo. Pouco importa se agora são apenas peças remanescentes de coleções
já consideravelmente esvaziadas por anteriores doações a museus e/ou vendas e que a procedência
imperial seja discutível. São fases da carreira passada dos bens que indelevelmente imprimem
desejabilidade aos objetos. Esta “volta ao lar” significa também levar em conta a dimensão regional
do patriotismo chinês, mais uma força que os impele nas disputas públicas. Compram-se e vendem-
se diferenças, ideias e valores sob a forma de símbolos.30
Por último, uma releitura em particular tem que ser mencionada: a dos bronzes arqueológicos.
Ela é uma profunda reorientação nas concepções e atitudes tradicionais dos chineses. Há uma
notável ruptura com a relação anterior dos chineses com os ancestrais e a morte. Praticamente,
até o final do século XX, pesava o anátema sobre a prática dos que colecionavam, legalmente
ou não, bronzes antigos obtidos em escavações que abriam – para os chineses práticas sacrílegas
que violavam – túmulos considerados sítios arqueológicos. Sem entrarmos na discussão dos
bronzes antigos colecionados pelos Song, nos nossos dias estas peças eram encaminhadas para os
ocidentais e japoneses. Hong Kong e Taiwan foram as pontas-de-lança na mudança de mentalidade
e de atitude, quando coleções chinesas passaram a incorporar estes bronzes. Agora, a China vê esta
prática se estender pelo seu território.31
Mas qual a conjuntura econômica, política e social, na virada do século XX para o XXI,
das reivindicações chinesas e, por ilação, de toda e qualquer prática de colecionar? A segunda
metade do século XX foi marcada por uma série de transformações nos processos de circulação e
apropriação de obras e objetos de arte, antiguidades e peças históricas, relíquias culturais e artefatos
outros incorporados na lógica das coleções. Portanto, a sua demanda, função de uma variedade de
práticas e classificações sociais, recebendo e enviando mensagens, e o consumo daí decorrente
são construídos coletivamente num mundo bastante específico, um particular contexto para, numa
determinada fase de suas carreiras, objetos serem candidatos a novas, variadas, sobrepostas e,
eventualmente, problemáticas classificações.
29
MELIKIAN, Souren. Returned to the Homeland, 19.06.2011. Disponível em: <http://www.sartinfo.com/news/story/37900/returned-to-
the-homeland>. Acesso em 30.07.2011.
30
Id. Ibid.; MELIKIAN, Souren. Chinese Nationalism Fervor Trumps Basic Facts. The New York Times. 26.05.2011. Disponível em: <http://
www.nytimes.com/2011/05/27/arts/27iht-artmelik27.html?_r=1&ref=arts>. Acesso em 30.07.2011; _____. The Irresistible Surge of China,
01.12.2009. Disponível em: <http://www.artinfo.com/news/story/33337/the-iresistible-surge-of-china>. Acesso em 30.07.2011.
31
Id. Ibid. Este é um bom exemplo de “enclaved commodities”, “terminal” commodities e politics of enclaving na discussão de “diversion”,
ver APPADURAI, Arjun. Introduction: commodities... Op. cit., pp. 22-29.
Em primeiro lugar, a definição do que seja arte está mais do que nunca sob fogo cruzado.
Novas realizações desautorizam os antigos enquadramentos estéticos e a própria concepção
de história da arte enfrenta críticas cerradas. Neste mundo globalizado e de sua arte “glocal”,
as novas tecnologias de comunicação e informação são vetores que possibilitam um tremendo
impacto social no mundo da arte. Lidamos agora com: a bricolagem virtual e a prática do mash
up; a propriedade intelectual – que está no centro das guerras comerciais globais, que tem no
copyright o nervo da pauta de exportações, vide as pressões das marcas ocidentais sobre a
China – sendo contínua e reiteradamente desafiada ou negada; a pirataria digital às turras com as
leituras tradicionais de “autenticidade”, “talento” e “criatividade”; a redefinição do público e do
privado numa sociedade confessional em rede, de recomodificação constante do consumidor e do
fetichismo da subjetividade, na qual esta última é feita de opções de compra, ao mesmo tempo em
que o amadorismo mais rasteiro torna-se critério de “verdade” (a ignorância transformada numa
espécie de ideologia), invade a esfera virtual e, qual um tsunami, varre o universo profissional dos
produtores de bens culturais (e dos investimentos feitos para sua qualificação).32
Em seguida, o mercado secundário (e, em especial, a esfera dos leilões) adquiriu nesta época
uma importância central para a circulação e apropriação de obras e objetos de arte, orquestrando
demanda e consumo, e deixou seus aliados/rivais compradores e vendedores profissionais do
mercado primário num segundo plano no mercado de arte. Se, na história de vida dos objetos,
as hastas públicas têm legitimidade social para acentuar a dimensão de mercadoria de uma
obra ou um objeto de arte, de uma forma que seria julgada inadequada em outros contextos, em
suas negociações públicas ou ao intermediar vendas em privado, as principais casas de leilão
tornaram-se hegemônicas na captação de peças e passaram a exercer um papel decisivo nos
complexos mecanismos de formação de preço destes bens transmutados em lotes. Os grandes
pregões públicos se transformaram na mediação por excelência para a formação, alteração e
dispersão das coleções de arte e para as carreiras e importância de colecionadores. A disputa das
maiores casas pela liderança do mercado de arte globalizado levou a uma política de avaliações,
garantias e reservas que inflacionou os preços destes bens, além de ocasionar outros tantos
problemas e desdobramentos de conhecimento público.33
32
BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify, 2006; VEIGA, Roberto de Magalhães.
Mercado de arte: novas e velhas questões. In: BOLAÑO, César, GOLIN Cida, e BRITTOS, Valério. Economia da Arte e da Cultura.
São Paulo/São Leopoldo/Porto Alegre/ São Cristóvão: Itaú Cultural/Cepos-Unisinos/PPGCPM/UFRGS/Obscom/UFS, 2010, pp.102- 118.
Também disponível em <http://www.itaucultural.org.br/bcodemidias/001719.pdf>; CANCLINI, Néstor García. A globalização imaginada.
São Paulo: Editora Iluminuras Ltda., 2003; THORNTON, Sarah. Sete dias no mundo da arte: Bastidores, tramas e intrigas de um mercado
milionário. Rio de Janeiro: Agir, 2010.
33
APPADURAI, Arjun. Introduction: commodities... Op. cit., p.15; WATSON, Peter. Sotheby’s: The Inside Story. (Revised version of London
edition). New York: Randon House, 1998 (versão atenuada da edição inglesa _____. Sotheby’s: The Inside Story. London: Bloomsbury,
É neste contexto que “things-in-motion”, ao ultrapassarem a marca dos 100 milhões de dólares,
reforçam o argumento de que, num universo de excelência e exclusão feito o da arte, o leilão e a
feira de arte, “tournaments of value”, numa lógica contrária à das habituais operações comerciais,
instituem uma comunidade concreta de troca entre pares privilegiados, que assim se definem pela
disputa agonística de um acervo restrito de signos, uma casta superior que se separa de todas as
outras, não apenas pelo seu poder de compra, mas pelo ato coletivo suntuário de produção e troca
de signos de valor.34
Nem bem o mercado havia acabado de digerir os 135 milhões de dólares pagos pelo herdeiro
da empresa de cosméticos Estée Lauder, Ronald S. Lauder, pelo Gustav Klimt “Retrato de Adele
Bloch-Bauer”, duas novas vendas privadas de quadros da coleção do bilionário – fortuna estimada
em 5 bilhões de dólares – da indústria de entretenimento David Geffen provocaram nova comoção
global. Colecionador há décadas, o ex-sócio de Steven Spielberg, em quatro vendas particulares,
teria levantado 421 milhões de dólares, especulava-se que para adquirir o The Los Angeles Times.
Seu Jackson Pollock “No. 5, 1948” teria sido vendido por 140 milhões de dólares e Tobias Meyer,
da Sotheby’s, tido como o intermediário do negócio. A outra obra vendida foi o de Kooning
“Woman III”, em transação mediada pelo marchand Larry Gagosian, por 137,5 milhões de dólares.
O comprador deste de Kooning foi o bilionário de fundos hedge Steven A. Cohen que, a partir do
início do século XXI, tornou-se um colecionador tão voraz quanto o tubarão de Damien Hirst “The
Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living”, sua primeira ruidosa aquisição,
por 8 milhões de dólares. Exemplo da nova subcategoria de colecionadores, os quais, em menos
de dez anos, assumem o primeiro plano no mundo da arte, cortejados por leiloeiros e marchands, a
meteórica ascensão de Cohen também fala alto sobre a reorganização do poder em Wall Street, os
fundos hedge como origem das nababescas fortunas atuais. Para compartilhar seu prazer estético
com os 99%, a mostra “Women: A Loan Exhibition from the Collection of Steven and Alexandra
Cohen” ocorreu, de 2 a 14 de abril de 2009, no 10º andar da Sotheby’s, em Nova Iorque. Comentou-
se que o conjunto de obras de Munch, Picasso, de Kooning, Warhol, Cézanne e de outros artistas
desta exposição de sua coleção privada valeria algo em torno de 450 milhões de dólares.35
1997); LACEY, Robert. Sotheby’s – Bidding for Class. London: Little, Brown and Company, 1998; MANSON, Christopher. The Art of the
Steal: Inside the Sotheby’s-Christie’s Auction House Scandal. New York: G. P. Putnam’s Sons, 2004.
34
Ver uma retomada do argumento de Baudrillard em APPADURAI, Arjun. Introduction: commodities... Op. cit., pp. 15, 21; THORNTON,
Sarah. Sete Dias..., op. cit., pp. 14, 51.
35
VOGEL, Carol. A Pollock Is Sold Possibly for a Record Price. The New York Times, 02.11.2006. Disponível em: <http://www.nytimes.
com/2006/11/02/arts/design/02drip.html>. Acesso em 02.09.2011. ____. Landmark De Kooning Crowns Collection. The New York Times,
18.11.2006. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2006/11/18/arts/design/18pain.html. Acesso em 02.09.2011>; ROBINSON, Walter.
Romance of Capital. Disponível em: <http://www.artnet.com/magazineus/features/robinson/robinson4-13-09.asp>. Acesso em 02.09.2011.
Esta alta vertiginosa dos preços públicos e dos negociados em privado – mas que vazam e
mesmo não confirmados, ao fazerem o caminho de praxe, são boatos não inocentes, que geram
expectativas e interferências – mesmo com a notória discrepância entre preço real e preço
publicitário36 cria condições ideais para a órbita de seus dois principais satélites, um legal e o
outro ilegal.
Expectativas descabidas, prognósticos comprometidos, especulações audaciosas e
manipulações de preços e do mercado não são práticas exatamente desconhecidas no mundo da
arte, na esteira de avaliações mais consistentes e fidedignas sobre alta de preços. Quando Charles
Le Bun morreu, Luís XIV dizia a quem pudesse ouvi-lo, em Versailles, que era hora de comprar
as obras do seu pintor favorito, cuja cotação subiria. No universo dos leilões, a competição
acirrada e/ou tensão financeira tem um poderosíssimo ingrediente. As casas de leilão dizem
que se “conquista” uma obra. Segundo Philippe Ségalot, que já foi dos quadros da Christie’s
e hoje é um dos donos de uma importante consultoria de arte, “comprar é um ato machista e
extremamente prazeroso” e admite “uma sensação de conquista sexual”. Keith Tyson, vencedor
do prêmio Turner 2002, arremata: “O leilão é contagioso. Você sente a excitação do capitalismo
e assume uma postura de ‘macho poderoso.”37
Estas analogias com desempenho sexual de “macho alfa” reforçam o interesse numa “arte
blue-ship” (e troféu para quem compra guiado mais pelos ouvidos do que pelos olhos), na compra
de opções futuras do significado cultural de uma obra, da arte como investimento sério, patrimônio
sólido e/ou estoque para colecionadores, investidores e/ou açambarcadores (um mesmo indivíduo
pode desempenhar simultaneamente os três papéis, sendo um deles o dominante num dado
contexto). De acordo com um colecionador:
Os novos colecionadores, que ganharam dinheiro em fundos de investimento, estão muito
conscientes das alternativas para o seu dinheiro. O retorno do dinheiro hoje é tão baixo que investir
em arte não parece uma ideia idiota. Por isso, o mercado de arte está tão forte, porque há poucas
opções melhores.38
Talvez também por isso o leilão de novembro de 2011 de Arte Contemporânea da Sotheby’s
tenha totalizado 315.8 milhões de dólares, dos 73 lotes oferecidos apenas 11 não despertando
36
“Por exemplo: Charles Saatchi manipulou a opinião e ganhou manchetes para trabalhos de artistas que ele possui, inflacionando os preços
em milhões. Quando ele vendeu The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living, de Damien Hirst (também conhecida
como ‘o tubarão’) um ‘porta-voz do Sr. Saatchi’ disse que ele tinha recebido uma oferta de 12 milhões de dólares, quando na verdade o
negócio tinha sido fechado por apenas oito milhões.” THORNTON, Sarah. Sete dias..., op. cit., p. 107.
37
THORNTON, Sarah. Sete dias..., op. cit., pp. 17, 48, 53.
38
THORNTON, Sarah. Sete dias..., op. cit., pp. 17, 36. 53, 97.
interesse. Para a articulista, esta é a questão do primeiro parágrafo da sua matéria sobre este pregão.
A terceira melhor venda de Arte Contemporânea da Sotheby’s, sendo ainda a melhor a de maio de
2008, pode significar que “Despite (or perhaps because of) the stock market’s nearly 400-point
plunge, on Wednesday night collectors raced to put their available cash – and lots of it – into art.”39
Não custa relembrar que a família Nahmad, baseada em Mônaco, que, no segundo semestre de
2011, teve, pela primeira vez na sua história, uma exposição do conjunto de 125 obras-primas de
sua coleção particular no Kunsthaus em Zurique, já possuiu “20% de todos os Picassos do mundo
em mãos de particulares” e hoje compra maciçamente arte contemporânea “sempre renovando o
estoque antigo”. E como esquecer os Mugrabi e seus Warhols, estoque estimado entre 600 e 800
obras?40 Há, de fato, um significativo aumento do número de bilionários e de pessoas que estocam
arte, vista como aplicação financeira dotada de liquidez e ganhos muito sedutores na atual conjuntura
capitalista. O importante é portanto não perder de vista as diferenças em relação a um Mazarino,
um Choiseul, um Vollard e outros tantos colecionadores e/ou comerciantes/acumuladores e suas
intenções e práticas.
O mundo do crime não ficaria indiferente a esta subida vertiginosa de preços de arte,
antiguidades e outros objetos de coleção, sendo que o roubo “condemned in most human societies,
is the humblest form of diversion of commodities from preordained paths”. De acordo com The
Association for Research into Crimes against Art-ARCA – que trabalha com informações de
Interpol, FBI, Scotland Yard, Carabinieri, etc. – estes crimes, que são vistos pelo senso comum
como sem vítimas, desde os anos 1960, em sua maioria, são praticados por ou em benefício de
sindicatos internacionais do crime organizado. “They either use stolen art for resale, or to barter
on a closed black market for an equivalent value of goods or services. Individually instigated art
crimes are rare, and art crimes perpetrated for private collectors are rarest of all”.41
Estima-se, por baixo, que este seja um negócio de 6 bilhões de dólares por ano, e a dúvida é
se o crime contra a arte ocupa o terceiro ou o quarto lugar no ranking dos crimes transnacionais,
atrás de drogas, armas e, talvez, lavagem de dinheiro. A Itália, que tem boas estatísticas de
roubo e cujo esquadrão de 300 Carabinieri, em tempo integral, para artes e antiguidades, é um
exemplo no combate ao crime nesta área, tem registrados 845.838 roubos de arte desde 1969.
Acredita-se que o número mínimo de roubos de arte mundiais comunicados a cada ano seja
39
VOGEL, Carol. As Stocks Fall Art Surges at a $315.8 Million Sale. The New York Times, 09.11.2011. Disponível em: <http://www.
nytimes.com/2011/11/10/arts/sothebys-contemporary-art-sale-totals-316-million.html?src=me&ref=arts>. Acesso em 11.11.2011.
40
THORNTON, Sarah. Sete dias... Op. cit., pp. 40, 46.
41
APPADURAI, Arjun. Introduction: commodities... Op. cit., p.26; ARCA-Art Crime Facts. Disponível em: <http://www.artcrime.info/
facts.htm. Acesso em 27.09.2011>; RENFREW, Colin. Loot..., op. cit.; WITTMAN, Robert K. Infiltrado: a história real de um agente do
FBI à caça de obras de arte roubadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
50.000, sendo só na Itália aproximadamente 20.000 por ano. Para os colecionadores particulares
o cenário é aterrador, pois:
Roubos a museus podem produzir manchetes mas representam apenas um décimo dos crimes contra
a arte. Estatísticas apresentadas pelo Art Loss Register em Courmayeur revelaram que 52% de
todas as obras furtadas são retiradas de casas e organizações particulares, com pouca ou nenhuma
publicidade, 10% são roubadas de galerias, e 8% de igrejas. A maior parte do restante é levada de
sítios arqueológicos.42
WITTMAN, Robert K. Infiltrado..., Op. cit., p. 24. Courmayeur, Itália, sediou a Conferência Internacional sobre Crime Organizado em
42
1. Introdução
A bibliografia brasileira sobre o tema do colecionismo em arte tem se revelado - ao menos até
o presente - muito limitada. Esse fato contrasta muito fortemente com a produção internacional
sobre o assunto. As implicações dessa fragilidade bibliográfica nacional não são poucas nem
de pequena magnitude. Afinal, elas limitam em muito as nossas reflexões em torno de temas de
importância capital no Brasil contemporâneo. Esses temas são as relações público-privadas no
âmbito dos museus, as instituições privadas na formação e difusão de acervos e coleções e, ainda,
a importância das pessoas físicas na formação de coleções aptas a se converterem em acervos
públicos em um contexto no qual o Estado não opera de modo claro e consistente uma política de
aquisições de obras de arte.
Nesse sentido, cabe destacar que o presente texto, nascido de um convite para discutir esse
tema em oportuno e corajoso seminário promovido pelo Museu Histórico Nacional, pretende
*
O presente texto deriva de pesquisa sobre mercado de arte desenvolvida em conjunto com Fábio Sá Earp. Foram consultadas, entre outras,
as seguintes referências bibliográficas: BLOM, Phillip. Ter e manter. RJ: Record, 2003; BUCK, Louisa e GREER, Judith. Owning art.
London: Cultureshock Media, 2006; CABANNE, Pierre. Les grands collectionneurs. Paris: Les éditions de l’ amateur, 2004; FREY, Bruno.
Arts and economics. Berlin: Springer, 2003; GRAW, Isabelle. High Price- art between the market and the celebrity culture. Berlin: Sternberg
Press, 2009; LINDERMAN, Adam. Collecting contemporary. London: Taschen, 2006; PANZA, Giuseppe. Memoires of a collector. New
York: Abbeville Press, 2007; STOURTON, James. Great collectors of our time. London: Scala Publ., 2007; WEST, Paige. The art of buying
art. New York: Harper Collins, 2007.
**
Bacharel, mestre e doutor em economia. Professor adjunto do Instituto de Medicina Social da UERJ; pesquisador associado do grupo de
pesquisa em economia do entretenimento da UFRJ; professor da Escola de Artes Visuais/Parque Lage; Membro da diretoria da Associação
de Amigos do Paço Imperial/RJ; curador e autor de diversos textos sobre arte;colecionador de arte.
Traçar, em breve perspectiva histórica, uma história do colecionismo de arte requer desde
logo algumas delimitações. Começamos por considerar aqui apenas a secular tradição ocidental,
que teve sua gênese localizada na Europa e na era moderna. Assim, a história do colecionismo de
arte teve seu início no contexto de uma transição socioeconômica e política específica: operara-se
a passagem de uma ordem feudal crescentemente desarticulada e fragilizada para uma emergente
e vigorosa ordem capitalista. Nessa transição ampliara-se a escala do excedente econômico,
formaram-se classes sociais polarizadas, concentrara-se o poder político - o que conduziu à
formação de Estados Nacionais, processara-se uma revolução cognitiva tanto no campo científico-
tecnológico quanto no campo artístico que, sintomaticamente, foi denominada de Renascimento
e, ainda, quebrara-se a hegemonia absoluta da Igreja Católica Apostólica Romana no campo
do cristianismo. Tratava-se de uma intensa e grande transformação material e não material. No
quadro dessa transição é importante destacar que o colecionismo de arte no Ocidente é, desde a
sua origem, uma expressão de um processo de mudança com essas características.
Formaram-se e desenvolveram-se durante séculos as coleções papais, reais, nobres e burguesas.
Todas as coleções, apesar das suas distintas origens e funções, foram expressões de uma escala
ampliada de riqueza, de seu entesouramento concentrado em classes sociais portadoras de poder
político e, também, de um sistema de valores ideológicos e culturais produtores de processos de
legitimação da nova ordem social.
Vale destacar no entanto que, a despeito desse lastro comum, as coleções de arte assumiram
contornos diferenciados. Essa diferença está associada às diferentes escalas de inserção no sistema
internacional de hegemonia econômica e política, ao distinto grau de desenvolvimento das
burguesias nacionais e, também, ao desenvolvimento de um amplo espectro de valores culturais.
Nesse quadro não pode ser desconsiderada a constituição histórica dos espaços públicos e privados
nem muito menos a geração das suas crescentes inter- relações.
As coleções de arte, de um ponto de vista histórico, desenvolveram-se nas interseções dos
espaços públicos e privados. A formação dos museus no século XIX – especialmente os de arte - foi
especialmente fruto da expansão de distintos impérios coloniais europeus. Esses museus formaram,
a partir da pilhagem colonial, importantes coleções que foram desde logo assumidas como
patrimônio público dos impérios coloniais, muito embora essa coleta tenha também abastecido
o comércio internacional de obras de arte e, por essa via, consolidado algumas coleções privadas
de variada envergadura. No entanto, vale lembrar que, no século XIX e mesmo no começo do
século passado, os museus de arte beneficiaram-se também do sistema acadêmico de formação e
desenvolvimento de artistas plásticos. Nesse sistema, as coleções tiveram um papel de importância
crucial: atuaram enquanto vetores na fixação de cânones da produção acadêmica e, paralelamente,
enquanto padrão formador do gosto e do consumo de arte no quadro de uma economia e de uma
sociedade que avançavam na direção de uma escala de massa.
A modernidade na história da arte está referida à passagem do século XIX (e da sua produção
acadêmica) para o século XX (e seu crescente engajamento com o modernismo). Nesse momento,
a economia capitalista plenamente instalada após duas revoluções industriais assumira a produção
e o consumo em escala de massa enquanto a sociedade, por sua vez, assumira a metrópole enquanto
lócus privilegiado da cultura urbano-industrial.
As coleções de arte, então dominantemente privadas e crescentemente orientadas para a
modernidade, começavam a amadurecer uma concepção moderna de museus de arte que só veio a
se consolidar quando da afirmação dos EUA como potencia hegemônica do capitalismo avançado
ao final da primeira metade do século XX. Nesse contexto, o eixo hegemônico desloca-se da Europa
para a nova potencia americana: a capital cultural do mundo deixa de ser Paris e Nova York passa
a assumir essa posição central. O capitalismo mais uma vez mudara. O mundo também mudara e,
nesse sentido, as coleções de arte foram também vetores de um processo de mudança
O mercado de arte norte-americano tornou-se dominante. Seus sólidos e dinâmicos colecionadores
configuraram e realizaram os museus de arte moderna que seriam, a partir dos anos 1950, exportados
para a Europa e mesmo para países periféricos entre os quais o Brasil. Vale registrar que o Brasil
só constituiu museus de arte moderna quase três décadas depois da realização da Semana de Arte
Moderna de 1922. Um museu de arte moderna no Rio de Janeiro e outro idêntico em São Paulo: ambos
construídos em bases privadas, em moldes norte-americanos e orientados para promover a inserção
de nosso acanhado mercado de arte no mercado mundial. O tripé composto pelo MAM/RJ, MAM/SP
e Bienal de São Paulo desloca finalmente a produção e o consumo de arte no Brasil do academicismo
para o campo da arte moderna. E mais: essas instituições fortemente fundadas no colecionismo privado
favoreceram a gênese e o desenvolvimento de coleções de arte moderna no país.
A crise que eclodiu na economia mundial, em 1929, decretou a morte da economia cafeeira
no Brasil e esta, por sua vez, liquidou a possibilidade de permanência no poder das chamadas
No Brasil, o chamado milagre econômico (1968-1973), com suas altas taxas de crescimento
do produto, da renda, do consumo e do endividamento, alimentou sonhos de potência mundial
que também acabaram por se esgotar. Nesse período, em paralelo ao dinamismo econômico, o
país conheceu os chamados anos de chumbo dos governos militares no poder desde 1964: amplas
medidas repressivas e um contínuo afastamento de um regime democrático caracterizaram esse
momento da história brasileira. Na segunda metade dos anos 1970, ignorando a envergadura
das mudanças em curso, o II Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1979) tentou retomar o
crescimento com foco no desenvolvimento da indústria de bens intermediários e de capital e na
exportação de bens primários não tradicionais. O fracasso econômico desse projeto abriu caminhos
para uma progressiva liberalização política na década de 1980.
O mercado de arte brasileiro experimentou no período do chamado milagre econômico - e,
em particular, no início dos anos 1970 - um intenso crescimento de caráter especulativo, dado o
grande fluxo de recursos originários da contínua elevação das cotações na bolsa de valores. Essa
especulação teve fim em 1971, ou seja, antes mesmo do esgotamento do nosso frágil milagre.
O mercado de arte brasileiro experimentou então uma notável desaceleração ao longo de toda a
década de 1970. No entanto, vale chamar a atenção para a renovação da nossa produção em artes
plásticas nessa década - que só foi percebida por poucos colecionadores brasileiros - em meio a um
quadro efetivamente adverso para a expressão artístico-cultural.
Nos anos 1980, o mundo conheceu uma ampla transformação. Ela foi tecnológica: a informática
produzida e consumida em escala de massa se fez presente em praticamente todos os domínios do
conhecimento e da vida material; as biotecnologias agregaram novos campos de conhecimento e
introduziram inovações diversificadas; a robótica e as nanotecnologias geraram possibilidades de
intervenção até então inimagináveis; os novos materiais trouxeram novas fronteiras de produção
material. Essa transformação foi também econômica: a produção e o consumo de bens e serviços
incorporaram amplas inovações e assumiram uma escala planetária; os fluxos financeiros se
intensificaram, ganharam mobilidade e os mercados financeiros passaram a operar em uma escala
global; a maior competição pela conquista de mercados e de matrizes tecnológicas assumiu uma
dimensão de prioridade para o conjunto de agentes econômicos; o trabalho assumiu uma crescente
imaterialidade e o conhecimento ganhou centralidade na construção de economias pós-industriais.
A transformação em pauta foi também uma transformação política e ideológica: a hegemonia
mundial deixou de estar centrada em uma disputa bipolar entre os EUA e a URSS dado que a
queda do Muro de Berlim deu materialidade à fragilidade da experiência soviética que acabou por
findar; os Estados Nacionais, com autonomia limitada, passaram a se organizar em blocos o que
acabou por gerar na década seguinte o Tratado de Maastrich (1992) e sua expressão maior - a União
financeiros, do mundo publicitário e do star system assumem expressão mundial. As feiras de arte,
operando em escala global, ganham centralidade nesse quadro: intensificou-se a competição e a
produção em arte contemporânea finalmente tornou-se o vetor dinâmico do mercado de arte.
Na década de 1990, o Brasil se defrontou com dois graves problemas: o enfrentamento da
persistente presença da hiperinflação que só seria vencida após o êxito do Plano Real (1994) e a
necessária consolidação da nossa experiência democrática após três governos, no mínimo, muito
discutíveis - José Sarney, Ferndo Collor de Melo e Itamar Franco. A retomada do crescimento
econômico só se deu após a estabilização da moeda e, mesmo assim, em bases bastante limitadas.
A experiência do crescimento econômico em um quadro de estabilidade da moeda só ocorreu, de
fato, na década seguinte. A experiência democrática se afirmou ainda nos anos 1990, mas ela se
consolida, de fato, na década seguinte. Noutros termos, são relativamente recentes no Brasil as
experiências de crescimento econômico com estabilidade monetária e de consolidação democrática
assentada na governabilidade. Nesse contexto, apesar de um crescimento discreto, o mercado de
arte no Brasil concentrou-se em São Paulo, e em algumas poucas galerias voltadas para a arte
contemporânea, orientadas para o mercado externo, em particular privilegiando a participação em
feiras europeias e norte-americanas. Essas galerias também iriam voltar-se para a formação de
clientelas egressas fundamentalmente do setor financeiro, imobiliário e exportador de commodities.
Seguindo as tendências internacionais, novos colecionadores afirmaram-se com ênfase na produção
contemporânea, em particular para segmentos específicos como, por exemplo, o de fotografia que
começava a emergir no mercado de arte do país.
No século XXI, o processo de globalização estava plenamente instalado. A relocalização da
produção favoreceu a emergência do bloco denominado BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China).
A economia mundial retornava a uma hegemonia bipolar: EUA e China. A órbita financeira do
sistema capitalista hipertrofiada, embora tenha experimentado um intenso dinamismo, contribuiu
decisivamente para ampliar a instabilidade da economia mundial: naufragaram em crises desde a
minúscula Islândia até os EUA passando por dois milagres econômicos europeus - como a Irlanda
e a Espanha - e ainda pelo Japão. Países europeus endividados como a Grécia, Portugal, Espanha
e Itália passam a depender do perdão de dívidas e de recursos tanto do FMI quanto da própria
Comunidade Europeia - leia-se da Alemanha e da França - para poder cumprir seus compromissos
financeiros. Nesse contexto de crise o mercado de arte, fortemente concentrado no mercado anglo-
saxão, assume um forte caráter especulativo centrado nas operações de um número restrito de
grandes galerias operando especialmente em feiras internacionais de arte. O mercado de arte
brasileiro - embora periférico - também assumiu, no século XXI, um caráter especulativo e opera
desde os últimos anos sob um notável aquecimento de seus preços. Central ou periférico, o mercado
de arte é hoje um mercado de risco que opera em um mundo instável e sua clientela - egressa,
sobretudo, do mercado financeiro - não pode desconhecer a volatilidade de seus ativos. Os novos
colecionadores que vem formando coleções desde os anos 1980/1990 encontram-se agora diante
de um duplo desafio: defender seus ativos nesse contexto adverso e selecionar cuidadosamente a
incorporação de novos ativos. Não é um desafio insignificante e não cabe apresentar prognósticos.
Temos uma única convicção: os colecionadores continuarão a ser agentes de processos de mudança.
Conhecer esses agentes assume nesse sentido um caráter prioritário em meio a uma conjuntura de
crise e de mudança.
Vejamos agora o perfil de alguns desses colecionadores. Começaremos pelo perfil de apenas
alguns colecionadores norte-americanos: Andrew Mellon, John Rockfeller e Peggy Guggenheim.
Andrew Mellon (1835 -1937) foi um industrial atuante na produção de aço, de navios, de petróleo e
na construção civil. Além de industrial, foi banqueiro. Atuou ainda na vida pública dos EUA tendo
ocupado, entre outros cargos, a secretária do tesouro desse país. Portanto, ele teve atuação tanto
no campo privado quanto no campo público. No entanto, teve ainda uma trajetória no campo do
mecenato: criou, em Pittsburgh, a Universidade Carnegie –Mellon e, também, construiu e doou a
importante coleção da National Gallery of Art localizada em Washington D.C.
Em um momento crucial da história econômica e política dos EUA, Mellon conjugou seu
diversificado talento empresarial com uma presença na vida pública de seu país, além de ter atuado
como mecenas no campo da educação superior e do colecionismo. Sua coleção de arte foi de
grande envergadura e, além do mais, representou um caso exemplar de conversão de um patrimônio
privado em bem público.
Apesar de importante, Mellon não se constituiu como um caso isolado. John D. Rockfeller
(1839-1937) foi também um empresário atuante na produção de petrolífera que adotou a filantropia
como campo de atuação. Criou a Fundação Rockfeller que, entre outros papéis, teve uma atuação
decisiva no financiamento da Reforma Flexner, que revolucionou a pesquisa e o ensino médico nos
EUA e no conjunto do mundo ocidental. Não satisfeito, esse protestante que pagava dízimo à Igreja
Batista e tinha hábitos pessoais extremamente modestos atuou para transformar a Universidade
de Chicago em uma das maiores potencias universitárias de seu país. Um de seus descendentes,
Nelson Rockfeller, banqueiro e patrono das artes, foi criador do Museu de Arte Moderna de Nova
Iorque (MOMA) - modelo para a criação dos museus de arte moderna do Rio de Janeiro e de São
Paulo - até hoje referência mundial nessa especialidade.
Mellon e Rockfeller possuem vários elementos comuns nas suas biografias. Já Peggy
Guggenheim (1898-1979) é, nessa perspectiva, um caso distinto na história do colecionismo norte-
americano. Embora sobrinha de Solomon Guggenheim - fundador do Guggenheim Museum -
Peggy era parte de um ramo relativamente pobre dessa importante família norte-americana. Em
1919, após herdar um montante equivalente a vinte milhões de dólares nos termos atuais, transferiu-
se para a Europa e, em Paris, tornou-se anfitriã do grand monde artístico e literário. Ela assumiu
um pequeno mecenato composto por mesadas dirigidas a artistas cubistas e surrealistas e iniciou
uma coleção de obras de arte adquiridas frequentemente após duríssimas negociações. Peggy
Guggenheim começava então a construir uma conexão entre a Europa e os EUA no campo das
artes plásticas. Inaugurou, em 1938, uma galeria de arte em Londres, que fechou suas portas, com
grande prejuízo, após menos de um ano de atividade. Essa experiência desastrosa não a impediu
de abrir em Nova York a galeria The Art of This Century (1942-1947). Junto com o MOMA, essa
galeria apresentou as vanguardas europeias aos norte–americanos que passaram então a dispor
de conhecimentos sobre cubismo, surrealismo e mesmo arte cinética. Por outro lado, foi essa a
galeria que lançou o expressionismo abstrato norte-americano no mundo: ali realizou-se a primeira
exposição de Jackson Pollock, nome decisivo na construção de uma identidade internacional para
a arte norte-americana. Após essas duas importantes iniciativas, Peggy Guggenheim expôs, em
1948, sua coleção privada de arte na Bienal de Veneza. O conteúdo dessa mostra foi apresentar arte
moderna europeia e norte-americana em pé de igualdade e esse fato, hoje aparentemente banal,
provocou uma ampla e intensa reação. No ano seguinte, Peggy abriu na cidade de Veneza, na
Itália, seu próprio museu. Vinte anos depois de criado, esse museu foi doado à Fundação Solomon
Guggenheim com a condição irrevogável de sua permanência em Veneza. Esse fato consolidou o
vínculo entre a arte moderna europeia e norte-americana construído, de modo muito especial, por
Peggy Guggenheim ao longo de cinco décadas de empenho.
O breve perfil desses três colecionadores norte-americanos nos permite registrar a existência,
nos EUA, de uma tradição secular de conversão de coleções privadas em acervos museológicos,
além de uma tradição secular de construção de instituições de arte e de educação fundadas na
filantropia e no mecenato, e ainda um contínuo engajamento das elites econômicas e intelectuais
desse país no desenvolvimento de instituições educacionais e artístico-culturais. Cabe aqui
destacar que essas instituições dão lastro ao mercado de arte operante no país, assim como esse
mercado interage continuamente com os museus, universidades, bibliotecas, centros de pesquisa e
documentação e outras organizações atuantes no campo da educação e cultura.
É preciso ter claro que o avanço da pesquisa sobre esses agentes de mudança social, econômica
e cultural reveste-se de uma importância capital especialmente no Brasil, país de experiência
mas esse fato não pode obscurecer sua grande audácia: abriu em 1985 a Saatchi Gallery, um
importante centro cultural da Londres contemporânea, além de 15 anos depois tê-la doado ao
governo britânico, acompanhado de uma doação adicional de 200 obras de arte contemporânea
- avaliadas em 37 milhões de dólares norte-americanos - para coleções públicas britânicas. Essa
mesma audácia o levou a patrocinar os Young British Artists e a promover, via prêmios, a atual
produção em arte. Saatchi é hoje um colecionador extremamente conhecido internacionalmente,
e sua atuação tem sido importante para o desenvolvimento da arte contemporânea e mesmo do
mercado de arte mundial.
O breve perfil desses três colecionadores europeus nos permite observar a consolidação, do pós-
guerra até o presente, de uma relação entre colecionadores europeus e um mercado de arte operante
sob hegemonia do mundo anglo-saxão. Além disso, houve uma reorientação dos colecionadores
privados europeus para a construção e/ou desenvolvimento de instituições públicas de arte que,
tal como no caso norte-americano, acabaram por lastrear o mercado de arte que hoje interage
continuamente com os museus, universidades, bibliotecas, centros de pesquisa e documentação
e outras organizações atuantes no campo cultural. Portanto, não custa repetir que é importante -
especialmente no Brasil - ampliar a pesquisa sobre o universo dos colecionadores enquanto agentes
de mudança social, econômica e cultural, pois esse conhecimento deve alimentar qualquer projeto
de futuro que considere relevante o campo da produção artístico-cultural.
O colecionismo de arte no Brasil tem um caráter tardio e limitado: inicia-se no século XIX com
a vinda da corte portuguesa para o país - e nela deve ser destacada a presença do Conde da Barca
então proprietário da primeira coleção de arte instalada no país - e com a criação da Academia
Imperial de Belas Artes.
A transição para o século XX trouxe, no Brasil, o modernismo e a primeira coleção de arte
moderna - a de Yolanda Penteado - formada nos anos 1920. Portanto, a experiência brasileira no
tocante ao colecionismo de arte ainda não completou um século.
No entanto, essa experiência relativamente recente está associada a alguns colecionadores
marcantes de diferentes épocas e escalas: Cicilo Matarazzo, Assis Chateaubriand, Gilberto
Chateaubriand, João Satamini, Sérgio Fadel, Adolfo Lerner e Bernardo Paz. Acrescente-se a esses
nomes, um conjunto de empresários, banqueiros, diplomatas, profissionais liberais e mesmo um
professor universitário tais como Roger Wright, José Olimpio Pereira, Joaquim Paiva, João Carlos
de Figueiredo Ferraz, Oswaldo Correia da Costa e o próprio autor do presente texto. Considerando
que esses colecionadores estão fortemente concentrados no eixo Rio de Janeiro/São Paulo, é mais
do que desejável que esse universo seja ampliado em bases mais inclusivas. Todavia esse não é o
único fator a ser mudado no panorama do colecionismo de arte no Brasil.
Os desafios a serem enfrentados não são poucos nem pequenos. No entanto, no limite do
presente texto, vamos nos ater a apenas dois desses desafios: promover a ampliação do registro de
obras de arte e do acesso à informação nesse domínio, e promover uma articulação institucional
entre colecionadores (e suas coleções) com a rede de museus, centros culturais, universidades e o
mercado de arte.
No tocante ao primeiro aspecto, cabe assinalar que o avanço da tecnologia digital favorece
a expansão dos processos de digitalização de coleções. A digitalização amplia, através do uso da
internet, a escala do acesso o qual deixaria de ser apenas presencial. A digitalização ampliará não
só o público, mas também a comunicação entre as instituições atuantes no campo artístico-cultural.
Em relação ao segundo desafio, vale notar que a digitalização contribui também para uma
melhor gestão dos acervos e para uma maior articulação de uma rede de instituições culturais
voltadas para o desenvolvimento de coleções bem como de exposições e publicações (eletrônicas
ou não) delas derivadas. Cabe ainda mencionar que essa maior articulação institucional irá envolver
- por meio de formas de cooperação tais como comodatos, convênios, contratos e outras novas
formas de desenvolvimento de iniciativas comuns - não apenas a rede museológica, mas também a
universidade, os centros de pesquisa especializados e mesmo o mercado de arte. A essa renovada e
expandida rede de instituições artístico-culturais deverá corresponder, no Brasil dos próximos anos,
um processo de desconcentração das coleções no território nacional liderado pelo desenvolvimento
de coleções privadas de caráter nacional e/ou regional.
O enfrentamento no Brasil desses dois grandes desafios deverá finalmente conduzir à
construção, em bases sustentáveis, de uma maior circulação nacional e internacional das
coleções já existentes e mesmo daquelas que deverão emergir no futuro próximo. Aqui,
considerando a escala das dificuldades relativas à superação desses desafios no Brasil,
pensamos que a máxima gramsciana do pessimismo na análise em contraste com o otimismo
na ação nos será de grande valia.
5. Considerações finais
O seminário que gerou esse texto e sua publicação não pode deixar de ter desdobramentos
futuros. Essa iniciativa favorece o desenvolvimento da pesquisa, da reflexão e do debate. A
iniciativa em pauta poderá favorecer também o desenvolvimento do ensino seja ele realizado na
Por apresentação
refazer tudo. O texto que se segue guarda as linhas mestras da palestra, ou seja, a ordenação de
alguns problemas surgidos durante o seminário e que me pareceram (salvo, claro, melhor juízo),
relevantes. O formato foi modificado de modo evidenciar tais problemas e, ao mesmo tempo,
tornar a leitura menos trabalhosa e quem sabe, mais agradável. O título que, no calor da hora dei
para a palestra, continuou me soando adequado, de modo que resolvi mantê-lo – antes de mais
nada, como homenagem ao Museu Histórico Nacional e às equipes que, ao longo de quase noventa
anos, o povoaram e contribuíram, de modo operoso e solidário, para fazer dele o que é.
Desde que as coleções são básicas para a existência de museus e galerias, segue-se que, sem elas,
os museus não poderiam existir.2
A relação entre museus e coleções parece evidente. Afinal, quando se fala em “museu”, se
pensa imediatamente em um agrupamento de objetos reunidos segundo lógica, desde o princípio,
perceptível: são objetos “de museu”, por isso estão lá, expostos em ambiente de reverência (pelo
menos é assim que as pessoas pensam, por menos que gostemos nós, os profissionais do campo...).
Mas, dentre as diversas definições construídas para a instituição, é possível, seria possível
apresenta-la como “coleção de coleções”? Acho que sim, pois todo museu começa com a
institucionalização de uma atitude colecionista, atitude que parece habitar todos os membros
da humanidade. A teórica Anna Gregorová, quando busca apresentar o objeto da Museologia,
o define como “uma relação específica do homem com a realidade, em todos os contextos nos
quais tal realidade se manifestou – e ainda se manifesta concretamente.”3 Essa relação é específica
porque se manifesta através do museu, e, segundo Gregorová, se expressa na necessidade de
preservar e proteger o passado e a tradição, o que ela chama de “sentido da história”.4 Essa
característica inaugura um impulso para a formação intencional e sistemática de coleções, ou
seja, na reunião de objetos selecionados segundo uma lógica qualquer, com a finalidade de
documentar a transformação da natureza por interferência humana, e a trajetória das sociedades.
Essas reuniões de objetos, ao alcançar certo volume, fazem com que essa relação específica com
2
FENTON, Alexander. Collections research: local, national and international perspectives. In: THOMPSON, John M. A. Manual of
curatorship: A guide to museum practice. Oxford: Butterworth-Heinemann, 2ª ed., 1992.
3
GREGOROVÁ, Anna. Museology – science or just practical museum work? Contribuction. MuWop - Museological Working Papers,
1(1980):19-21. Estocolmo: Statens historiska museum, 1980. p. 19. Disponiível em: <http://network.icom.museum/fileadmin/user_upload/
minisites/icofom/pdf/MuWoP%201%20(1980)%20Eng.pdf> Acesso em 10 de outubro de 2011.
4
Id. Ibid.
a realidade – a relação mediada pelo museu – tomar uma forma institucional, que reflete a própria
noção de museu.
A questão acima parece alcançar a definição usual adotada pelo ICOM. Trata-se de formulação
cuja funcionalidade e eficácia são evidentes, qualidades que residem não apenas em sua objetividade,
mas talvez principalmente, em sua abrangência, capaz de abarcar toda e qualquer instituição
museal, bem como oferecer um norte para todas as que pretendam se constituir como tal. Vejamos:
Os museus são instituições permanentes, sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu
desenvolvimento, abertas ao público, que adquirem, preservam, pesquisam, comunicam e expõem,
para fins de estudo, educação e lazer, os testemunhos materiais e imateriais dos povos de seus
ambientes.5
No curto texto, é possível observar que se esconde a noção de coleção, quando o redator
aponta a aquisição, preservação e pesquisa de testemunhos. São os atos de vontade que não apenas
formam uma coleção, mas abrem a possibilidade de sua expansão e desdobramento – a pesquisa e
a comunicação.
Entretanto, definição por definição, fico com aquela publicada na página do Sistema Brasileiro
de Museus. De modo agradavelmente poético, definiu o redator que
Os museus são casas que guardam e apresentam sonhos, sentimentos, pensamentos e intuições que
ganham corpo através de imagens, cores, sons e formas. Os museus são pontes, portas e janelas
que ligam e desligam mundos, tempos, culturas e pessoas diferentes. Os museus são conceitos e
práticas em metamorfose.6
Agrada-me, sobretudo, o uso da palavra “metamorfose”, ou seja, “mudança”. Mas não uma
simples mudança, mas uma mudança completa de forma, natureza ou de estrutura. Assim está bem:
o exame da trajetória histórica dessa instituição, desde suas origens até nossa contemporaneidade, a
mostra em constante metamorfose. De seu surgimento, os museus talvez tenham guardado apenas
o nome, vocábulo derivado da palavra grega mouseîon, o “templo das Musas”, o lugar onde essas
divindades residem.
Não é este o espaço para polemizar sobre quando, exatamente surgem os museus. Não concordo
com a formulação usual, que lança a origem na Biblioteca de Alexandria, embora a Biblioteca seja,
ao que parece, frequentemente confundida com o Museu:
5
Cf. BRASIL, Superintendência de Museus de Minas Gerais [SUM-MG]. Código de Ética do ICOM para Museus: versão lusófona. Belo
Horizonte: SUM-MG, 2009. p. 29.
6
BRASIL, Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM). Sistema Brasileiro de Museus. Aba: O que é museu. Disponível em: <http://www.
museus.gov.br/sbm/oqueemuseu_apresentacao.htm> Acesso em 10 de outubro de 2011.
O que quer que houvesse nos palácios do bairro real devia ser vagamente conhecido no exterior. Por
exemplo, sabia-se que lá devia estar também o ‘Museu’, arrolado pela alcoviteira de Cós entre as
maravilhas de Alexandria, talvez ignorando o que seria ele. Lá se encontravam preciosas coleções
de livros de propriedade do rei, os ‘livros régios’, como os chamava Aristeu, um escritor judeu com
uma certa familiaridade com o palácio e a biblioteca.7
Mas as coleções, ao que parece, já estavam lá. Entretanto, se, como quer Gregorová, o
mero impulso de juntar coisas, o impulso para o colecionismo, possa vir a formar uma coleção,
decididamente não forma um museu – pelo menos não um museu como os que temos hoje em dia.
“Coleções reais” podem até ter sido uma das origens de nossos museus, mas não eram museus, na
exata acepção da palavra.
Prefiro defender a posição de que os museus de nosso tempo têm sua origem nos “gabinetes
de curiosidades”. Acho esse marco de origem mais sedutor, por posicionar os museus na
mesma linha de origem da ciência moderna. O que pretendo apontar é que, desde que Francis
Bacon defendeu, em 1594, que os naturalistas selecionassem e incluíssem, num “gabinete
suficientemente vasto”, coisas estranhas, engenhosas, singulares, oportunas, viventes ou não, a
reflexão em torno do homem e da natureza é fortemente dependente da formação de coleções.8
Essa dependência ainda pode ser remetida ao ambiente intelectual do Humanismo e ao conceito
de que o homem poderia ser entendido através de suas criações, e a natureza, através do estudo
sistemático de suas manifestações.9
Outro ponto que deveremos ter em foco, nessa reflexão sobre a relação entre coleções e museus,
é o fato de que, nessas instituições, as coleções são de natureza diversa daquelas formadas em
outros ambientes, por exemplo, domésticos ou devocionais. Vale dizer: nem todo ajuntamento de
objetos pode ser caracterizado como “coleção”. Ainda que coleções domésticas sejam ordenadas
por uma lógica, mesmo que esta seja a contiguidade entre os itens, a diferença reside no ambiente
intelectual que as contém, mas não somente nele. Eu mesmo, ainda que sem me considerar
“colecionador”, faço um ajuntamento de vinte ou trinta pequenas casas de barro cozido e pintado
(como aquelas feitas no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais), e de dezenas de miniaturas de
animais, e considero ambos como “coleções”. Nunca tentei ordenar ou classificar os itens, mas sei
muito bem qual a lógica que orienta as “aquisições”.
7
CANFORA, Luciano. A biblioteca desaparecida: histórias da Bibiloteca de Alexandria. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 19.
8
Sobre o assunto, cf. BITTENCOURT, José Neves. Gabinetes de Curiosidades e Museus: sobre tradição e rompimento. Anais do Museu
Histórico Nacional (vol. 28, 1996). p. 7-19. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 1996. p. 10-11.
9
Cf. GRAFTON, Anthony. New worlds, ancient texts: The Power of tradition and the shock of Discovery. New York: Harvard Univ. Press,
1992. p. 220-222.
A questão seria, então, encontrar uma definição que seja abrangente, mas não o suficiente para
abarcar toda e qualquer reunião de objetos. Uma definição de coleção amplamente aceita – “reunião
relativamente ordenada de itens naturais ou artificiais, mantidos temporária ou definitivamente fora
do circuito das atividades econômicas, sujeitos a proteção especial num local fechado, ou pelo menos
preparado”10 – serve tanto para coleções reunidas em museus quanto para coleções particulares,
e também para arquivos e bibliotecas. Não caem na definição que estamos examinando objetos
juntados ao acaso (por exemplo, as preciosidades contidas em um tesouro escondido ou os artefatos
encontrados em um sítio arqueológico) ou aqueles cuja reunião que têm uma função utilitária (por
exemplo, uma baixela doméstica, a série de discos fonográficos ou CDs formada em casa por
um apreciador de música ou os documentos civis de alguém). Feita essa advertência, podemos
estabelecer definitivamente que o interesse aqui é por coleções de museus. Todas as outras reuniões
de objetos, como aquelas brevemente citadas antes, ficam excluídas de nosso escopo.
As coleções de museus têm características que não podem deixar de ser observadas. Sejam
elas constituídas de artefatos (itens feitos pelo homem) ou de espécimes (itens retirados de todas as
esferas da natureza), o processo de formação de coleções museais só pode ser entendido no contexto
das características culturais das sociedades que as reuniram. Não apresentarei as restrições que faço
sobre a separação entre “artefatos” e “espécimes”, tributária da organização dos museus vigente no
século 1911 e que, em épocas recentes, tem sido deixada de lado pelos especialistas. Na atualidade,
os estudiosos do assunto tendem a considerar tudo quanto é incorporado às coleções (e a coleção,
ela mesma) como artefato, o que faz sentido, já que artefatos são criações humanas, inclusive
certas manipulações diretas de itens naturais ou da própria natureza.12 Entretanto, independente
do partido que se tome, e de que coleção se considere, estas são representativas de um “estoque
Cf. POMIAN, Krzystof. Colecção. In: ROMANO, Ruggiero (dir.) Enciclopédia Einaudi (1. Memória/História). Lisboa: Imp. Nacional/
10
Opto por usar “de forma indireta” porque, em si mesmos, os itens de uma coleção não contém
mais do que dados físico-químicos (os materiais de que são compostos e suas características
estruturais) e morfológicos (os dados de forma e dimensões) – por sinal, artefato algum, dentro
ou fora de um museu, tem mais do que esses dados. O restante do que se possa retirar de um
artefato, tenha ele o tamanho ou a complexidade que tiver (um alfinete ou uma espaçonave, um
animal empalhado ou uma amostra mineral), são elementos de sentido que lhe são justapostos
pelo processo histórico – pela “vida do objeto”, como se diz em alguns museus. E é interessante
observar que a própria formação da coleção é, ela mesma, um elemento de sentido. Pensando a
coleção como cimentada por alguma lógica – no caso da definição que temos incorporado, estarem
os artefatos expostos ao olhar, ainda que esse olhar seja um olhar “em potencial”. O autor em
questão reflete sobre as coleções de objetos funerários para criar esse conceito. Não importa que
os artefatos reunidos cheguem a ser “fisicamente destruídos, partidos ou queimados”, continuam,
segundo o mesmo autor, existindo “espectadores virtuais”, papel que assumem os mortos ou os
deuses aos quais são destinadas as oferendas.13 De toda maneira, caberia discutir se tais objetos
realmente constituiriam, na origem, uma coleção ou um agrupamento de objetos. Possivelmente a
mobília funerária dos faraós egípcios tenha sido posta dentro das câmaras mortuárias por nenhum
outro motivo que não dar conforto ao morto em sua próxima vida – exatamente a mesma função
que cumpriam quando ele estava vivo. Abordá-los como coleção é uma interpretação possível,
dentre outras – é mais um sentido atribuído aos objetos. “Interpretar” não é atributo exclusivo dos
museus: colecionadores privados também o fazem. “Os visitantes de minha casa [...] podem contar
aos outros que eu coleciono belas artes, artesanato, arte religiosa hispânica, arte tribal, cerâmica,
escultura, arte popular, e assim por diante. Mas eu digo a eles que coleciono ‘arte’.”14 Sandy
13
Cf. POMIAN, Krzystof. Colecção... Op. cit. p. 62-64.
14
BESSER, Sandy. How do I collect. The L with the Norm. In: ICE, Joyce (ed.). On collecting: From private to public, featuring folk and tribal
art from Diane and Sandy Besser Collection. Santa Fe/Seattle: Museum of International Folk Art/Univ. of Washington Press, 2009. p. 16.
Besser, um grande colecionador norte-americano de “arte popular e tribal” (pelo menos segundo
a interpretação do Museu de Arte Popular Internacional, da cidade de Santa Fé, Novo México),
interpreta seus artefatos como objetos “de arte”, sem adjetivos. Muito não caberiam, de modo
estrito, na categoria de objetos artísticos: adagas cerimoniais, joias, bodoques, máscaras, keris (um
tipo de espada ou adaga javanesa-indonésia, com funções religiosas, cerimoniais e defensivas),
quebra-nozes, dentre outros. Certamente muitos desses artefatos (ou todos eles) reuniam diversas
funções, o que explica a qualidade e complexidade da fatura, mas sua classificação como “objetos
de arte” depende de uma categoria por excelência ocidental – “arte”. Pode-se admitir que se trata
de uma interpretação do mundo e da vida que se agrega ao artefato e o distingue diante de outros.
Mas não importa, pelo menos não para o colecionador. Ele atribui um novo sentido e o justapõem
ao artefato, que se torna distinto não apenas dentro de sua categoria, mas aos olhos do colecionador.
Por outro lado, é impossível não pensar que “colecionar” implica em certo nível de obsessão.
Em certo grau, talvez não sabida – como minha mania de juntar casinhas de barro, figurinhas de
animais e outras coisas pequenas. Não sei grande coisa sobre cerâmica do Vale do Jequitinhonha
ou sobre animais – também não sei exatamente porque gosto de juntar essas coisas. Isso talvez
me faça cair na definição de William Davies King. Este professor de Teatro na Universidade da
Califórnia-Santa Bárbara define “colecionar” como “possuir qualquer coisa em quantidade, por
razões além da pura necessidade”.15 Seu pequeno livro é uma interessante abordagem do assunto,
apesar de ter, à primeira vista, pouca serventia para profissionais de museus ou para colecionadores
do tipo que chamo “avançados”. Segundo King, o impulso de colecionar começa na infância,
por razões próprias à esta fase da vida, e se desenvolve conforme o pequeno ser humano segue
em direção à vida adulta. Conforme tal necessidade ensina a acumular, categorizar e relacionar
um objeto aos outros e parece remeter-se diretamente a alguma necessidade fundamental que se
encontra instalada no âmago da psique. Segundo o autor, “O impulso colecionador amplamente
compartilhado vem, em parte, de um vazio que sentimos, e em parte de um vazio que muitos de nós
sentimos na mais rica e materialista das sociedades [os EUA] e em parte de um vazio que sentimos
em nossas histórias pessoais”.16
O livro todo gira em torno dessa hipótese, que se aproxima de forma transversal, daquela ideia de
Anna Gregoravá sobre o “impulso de colecionar”, como forma de conservar o passado e a tradição.
Talvez tenha relação com o advento e consolidação de uma sociedade – a sociedade ocidental
contemporânea – na qual a memória se planta, cada vez mais, sobre suportes externos. Lembrar deixou
de ser, aparentemente, uma preocupação, pois nossa memória está cada vez mais seguramente fixada
15
KING, William D. Collections of nothing. Chicago: Univ. of Chicago Press, 2008. p. 7.
16 Id. Ibid. p. 34.
em artefatos que, na falta de melhor designativo, chamarei de “equipamentos memoriais”. E não falo
apenas dos agora arquiconhecidos “lugares de memória”, “os lugares onde a memória se cristaliza e se
refugia”,17 e que atraem nossa curiosidade por estarmos todos conscientes da separação entre presente e
passado e do esfacelamento da memória. Três décadas atrás, quando esse conceito começou a transitar,
referia-se a museus, monumentos, o “patrimônio”, seja material ou imaterial, comemorações, arquivos
pessoais, e por aí vai. Mas há quase três décadas as pessoas precisavam ir a Paris para visitar o Museu
do Louvre, ou, pelo menos, ao Rio de Janeiro, para visitar o Museu Histórico Nacional. Compravam
um catálogo ou colocavam na mala os folhetos que a instituição eventualmente distribuísse; reuniam
cartões postais, tiravam fotografias e juntavam tudo às suas memórias pessoais. Estas seriam exibidas
de vez em quando, aos familiares e a alguns amigos desafortunados, até que fossem finalmente
esquecidas no fundo de algum armário. Anos depois, talvez uns poucos dentre esses ajuntamentos
acabassem num arquivo público ou museu, dependendo de quem o tivesse “originado” (no jargão dos
especialistas, quem, seja pessoa ou instituição, “deu origem” ao ajuntamento).
Hoje em dia, não: esse eventual visitante, principalmente se tiver entre quinze e trinta anos
de idade, certamente colocará tudo, passados alguns dias, num blogue, ou imediatamente, no
Facebook18. Trinta anos atrás, essas coisas não existiam; passados trinta anos, os próprios museus,
arquivos e bibliotecas (que alguns ainda chamam “instituições de memória”...) têm seus blogues e
estão no Facebook. Tornava-se realidade o sonho de Vannevar Bush: o memex.19 Ou melhorou, pois
Bush imaginava algo do tamanho de uma escrivaninha, que poderia ser facilmente transportado de
Cf. NORA, Pierre. Entre memória e história – A problemática dos lugares. Projeto História (n° 10 – dez. 1993) 7-29. p. 7 (trad. de Yara
17
Aun Khoury).
18
Partindo do pressuposto que este texto talvez possa vir a ser lido dentro de duas ou três décadas, cumprirei o papel de “chover no molhado”
e explicar, resumidamente, o que todo mundo sabe: do que se trata o Facebook (uns dez ou quinze anos atrás, todo mundo sabia o que era
Netscape, Altavista e “disquete de três e meia” – hoje em dia...). Trata-se de um site de rede social. Criado em 2004, pelo então estudante de
graduação Mark Zuckerberg, é uma plataforma de acesso livre e gratuito cujos ganhos (astronômicos) derivam do alto trânsito de indivíduos
que se a ela se associam (“conectam”, como se diz agora) e passam a frequentá-la em termos mais ou menos estáveis. Usando mecanismos
de busca incorporados à plataforma e de uso relativamente simples, os membros podem localizar-se uns aos outros instantaneamente e
tornar-se “amigos”, através de um convite. A questão é que essa “amizade” depende de que ambos estejam associados ao site. A estes, a
plataforma oferece certa quantidade de espaço que permite divulgar, de modo descomplicado, pequenas mensagens, fotos e textos, que
serão compartilhados instantaneamente por toda a lista de “amigos”. Também oferece games, pequenos programas utilitários denominados
apps (“aplicativos”) que cumprem funções limitadas dentro da plataforma e, é lógico, publicidade. O nome Facebook deriva de um tipo
de livrinho com nomes e pequenas fotos, distribuído nos EUA entre calouros de faculdade, que permite a estes conhecer os colegas. Em
dezembro de 2011, calculava-se que o Facebook tivesse por volta de 800 milhões de usuários, em todo o mundo.
19
Matemático, pesquisador do Instituto de Tecnologia de Massachusets (MIT), assessor científico da presidência dos EUA durante a Segunda
Guerra Mundial. A máquina denominada memex, que jamais saiu do plano conceitual, era uma espécie de arquivo pessoal transportável,
baseado na tecnologia do microfilme. Proposta entre 1938 e 1940, é considerada por alguns especialistas como antecipação da computação
pessoal, algo como um notebook avant-la-lettre. (cf. BITTENCOURT, José Neves. Por uma crítica iluminista da informação pura. In:
BITTENCOURT, J. N., GRANATO, M., BENCHETRIT, S. F. Museus, ciência e tecnologia. Livro do Seminário Internacional. Rio de
Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2006. p. 17.)
um lado para outro com o auxílio de um caminhão de mudanças. Seus sonhos não chegavam a um
delírio semelhante à Internet.
Com o avassalador advento das Tecnologias da Informação e da Comunicação, as memórias
pessoais estão se tornando, pelo menos em parte, “virtuais”, o que significa, para o senso comum,
“sem substância” (embora, para a Filosofia, signifique outra coisa). Frequentemente, eu observo
famílias em visita à cidade de Ouro Preto: o casal, entre trinta e quarenta anos, e duas ou três
crianças, a maiorzinha com uns doze ou treze. Essas visitas são, em geral, orientadas por um
“programa”: chega-se ao centro (a Praça Tiradentes), dá-se uma passeada em torno, para ver as
fachadas de dois ou três andares, visita-se o Museu da Inconfidência, alguma das magníficas
igrejas próximas, almoça-se num dos restaurantes da vizinhança, compra-se alguns objetos de
pedra sabão. Calculo que, ao longo desse trajeto, sejam tomadas umas vinte fotografias digitais,
geralmente com a câmara do próprio telefone celular. Dependendo do tipo de aparelho, as fotos
são enviadas imediatamente para o Facebook. Fico imaginando o que é feito desses objetos – das
fotos. Sem uma materialidade objetivamente perceptível, é provável que fiquem armazenados em
algum computador, ou talvez passados para mídias removíveis – CDs ou flash drives –, quando não
são deixados na própria Internet. Fotografias sobre suporte papel também não são tão mobilizadas,
depois de certo tempo, e é esta possivelmente, uma das razões que faz sobreviver tantas delas.
Não é preciso ir muito longe para concluir que essas “memórias virtuais” constituem um volume
oceânico de material que expressa, de modo fiel, a sociedade que o originou. Ignoro se já existem
estudos sobre a persistência desse material (incluo dentre essas também os blogues e outros conteúdos
das “redes sociais”, cuja interarticulação não se pode deixar de considerar) e sobre se vale à pena fazer
sobre ele alguma seleção. Entretanto, desconfio que, pelo menos por enquanto, não seja questão que
chegue a preocupar as equipes de museus e arquivos. Até onde sei, os museus ainda adquirem, quase
que exclusivamente, artefatos “convencionais”. Geralmente, o suporte virtual ainda é visto associado
a um artefato “físico”, mas não se cogita abrir mão deste último, no que tange à extroversão e muito
menos à conservação. Nunca ouvi falar em qualquer discussão que sugerisse fechar uma exposição,
digamos, “convencional” e passar a extroversão de duplos digitais do patrimônio preservado – por
mais vantagens que se possa cogitar de tal mudança de curso. Por ora, a ideia parece ser criar espaços
de divulgação e discussão do patrimônio na rede mundial de computadores, bem como duplos digitais
que possam ser parcialmente disponibilizados e comercializados através da Internet.20
Essas questões parecem superficiais, mas apontam para problemas do tipo “da sociedade” e
20
Para uma discussão deste tema, cf. ROCHA, Amara Silva de Souza. Museus, práticas culturais e subjetividade contemporânea. In:
BITTENCOURT, J. N., GRANATO, M., BENCHETRIT, S. F. Museus, ciência e tecnologia... Op. cit. p. 81-92. DODEBEI, Vera. Museu
e memória virtual – Como garantir o Patrimônio? Id. p. 73-80; MENESES, Ulpiano T. B. de. Os museus na era do virtual. Id. p. 51-70;
SCHEINER, Tereza Cristina. Políticas e diretrizes da Museologia e do Patrimônio na atualidade. Id. p. 33-48.
“para a” sociedade. “Da sociedade” porque além de estamos diante de algo como um esgarçamento
da memória, tanto individual como coletiva e social, estamos também diante de fatores que remetem
aos suportes. Mas também é uma ordem de questões “para a” sociedade: a aquisição de acervos
ainda é a base para a formação de coleções, e, ao que parece, estamos diante de uma ampliação
exponencial do que pode ser eventualmente merecedor do tratamento de “patrimônio” e, pior,
ainda sem procedimentos adequados.
Um dos textos a que me remeto, ao redigir este, aponta, como possibilidade de lidar com a
questão acima, para “pares conceituais”, ideia que a autora desenvolveu a partir das leituras que
o filósofo francês Giles Deleuze fez de um texto de Henri Bergson; um dos pares seria “material-
virtual”, como forma de estabelecer uma contiguidade fértil entre matéria e virtualidade.21 Segundo
esse texto, material e virtual ao contrário do que se costuma a dizer, não seriam “opostos inférteis”,
mas mantém uma tensão criativa provocada pelo movimento, que estabelece a possibilidade de troca
entre os dois estados. O seguimento do texto remete-se a uma discussão sobre três modalidades
de trocas entre virtual e material, que poderiam ser encontradas nos museus, categorizados como
“museus concretos” e “museus virtuais”. Essa discussão está fora de meu escopo. No entanto, é
interessante pensar também sobre a “virtualidade” dos museus com base nas possibilidades dos
museus ditos “concretos”...
[...] que fazem transitar as informações produzidas pelos discursos de seus objetos em suas salas de
exposição e que estendem a circulação destas de modo referencial por seus portais virtuais. Essa
categoria de museus pode ser relacionada à mídia eletrônica.22
De fato: ações museais que colocam artefatos na Internet apenas juntam a outra mídia aquelas
já existentes: exposições, inventários e catálogos, ações educativas. Entretanto, o que significaria
pensar um museu “não concreto”? De acordo com o texto referido, seria o museu que construísse
uma versão de si mesmo adaptada ao “meio digital”23. É curioso o fato de que a autora, experiente
pensadora dessas problemáticas, não tenha percebido que seu raciocínio “deleuziano-bergsoniano”
a estava empurrando para uma armadilha: uma versão “nova” do museu, adaptada ao meio digital
ainda é mídia da coisa real, mesmo que “inserida no domínio das memórias documentárias
digitalizadas ou bancos de dados eletrônicos”.
fato”, em que o visitante conseguirá interagir com o museu para além da observação – seria este o
“museu que se insere no domínio da criação, da memória virtual.”24
Não me parece justo dizer que, para o usuário, a experiência museal se limita à observação.
No mínimo, o que se pode dizer é que se trata de experiência multissensorial, e que os artefatos
expostos atuam como gatilhos de memórias individuais que, tributárias de vivências sociais,
conectam o visitante a múltiplos níveis de sentido. Mas essa experiência só é possível porque os
artefatos estão reunidos lá. Ou seja: o que se esconde atrás dessa problemática ainda é a formação
de coleções e a materialidade que decorre dessa ação. Passar direto pela materialidade do meio
virtual é o caminho mais curto para novos problemas. O meio eletrônico, seja lá de que maneira se
expresse, mantém as tais características morfológicas e propriedades físico-químicas que têm todos
os outros artefatos. O problema, então, não está no tipo de artefato com que lidamos – nunca esteve.
O problema está no tratamento que ele receberá como objeto museológico.
Portanto, minha crítica, bastante superficial, incide sobre o problema de que virtual e real, no
caso da relação entre artefatos e memória, tem um ponto de cruzamento: a materialidade. Não é
possível ignorar a materialidade do artefato, visto que sobre ela ancora-se o sentido. Volto ao texto
em questão. Aponta a autora, agora baseada na relação que o teórico cultural esloveno Slavoj Žižek
estabelece entre real e ficção:
Nos museus, realidade e ficção se misturam para construir as memórias. Assim como as lembranças
podem ser ficcionais no âmbito da memória individual [...] podem também o ser na construção da
memória coletiva. A memória como processo pode ser entendida como virtual, quer dizer, uma rede
de informações potenciais que, por estar em constante desordem, permite a recuperação sempre
singular de um acontecimento.25
24
Id. Ibid. p. 78.
25
DODEBEI, Vera. Museu e memória virtual... In: BITTENCOURT, J. N., GRANATO, M., BENCHETRIT, S. F. Museus, ciência e
tecnologia... Op. cit.p. 75.
26
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. O museu e o problema do conhecimento. In: Seminário sobre Museus-Casas. Anais do IV
Seminário sobre Museus Casa: Pesquisa e documentação. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2002. p. 23
Neste ponto, caberia observar que as coleções, situadas no início da trajetória do artefato
no museu (que alguns teóricos chamam de “segunda vida”), talvez devam ser também pensadas
como “espaços de ficção”. O primeiro passo do artefato em sua nova trajetória será a incorporação
a uma coleção – a coleção museal, que podemos entender como o primeiro espaço de ficção em
um museu.
É tempo agora de voltar ao tema que me trouxe a este ponto: um espaço de discussão sobre
coleções, criado durante alguns dias em um museu. Espaço que talvez possamos entender como
mais um espaço de ficção, na medida em que nele buscamos designar e incorporar figuras que nos
permitam, como especialistas e como ficcionistas, dar conta da complexidade do próprio espaço.
Nessa direção, não pude deixar de recorrer às instigantes formulações do filósofo franco
búlgaro Tzvetan Todorov. Em 2002, surgiu em nossa língua, um volume intitulado “Memória
do mal, tentação do bem”27, que tinha como subtítulo “indagações sobre o século XX”. Neste
livro, o destacado pensador tentava entender os regimes totalitários, fascismo e comunismo,
definidos por ele como característicos do século 20. Muito completa, a reflexão de Todorov
alcança, a certa altura, a questão, que ele chama de “perigo”, do “domínio completo sobre a
memória”. Diz o filósofo: “[...] as tiranias do século XX, tendo compreendido que a conquista
das terras e dos homens passa pela conquista da informação e da comunicação, sistematizaram seu
domínio sobre a memória e tentaram controlá-la até no que ela tem de mais recôndito”.28
Se as tiranias travam, como diz Todorov, uma guerra contra a memória, por outro lado podemos
afirmar que a memória é um campo de luta perene, no qual se degladiam poderes, não apenas tirânicos:
afinal, o acesso à memória é uma das grandes conquistas que pode fazer um povo. E o filósofo mostra-
se preocupado com o “estatuto da memória” nas sociedades democráticas. Suas preocupações sobre
tal estatuto passam pela constatação do consumo desenfreado de informações, pelo apartamento
com relação às tradições e às obras do passado, enfim, pelo empobrecimento espiritual – o que nos
condenaria a esquecer. Segundo Todorov, este é um perigo que ronda os estados democráticos.
Perigo que conhecemos bem, pois não podemos nunca deixar de ter em conta que os museus
são, por excelência, espaços dessa luta.
27
TODOROV, Tzvetan. Memória do mal, tentação do bem. Indagações sobre o século XX. São Paulo: ARX, 2002. Tradução de Joana
Angéloca D’Ávila.
28
Id. Ibid.. p. 136.
Todorov aponta o fato de que a única forma de lutar contra o esquecimento é, em primeiro
lugar, admitir que não podemos escolher entre lembrar e esquecer. Em primeiro lugar, restam no
presente apenas pequena parte dos traços do passado; em segundo lugar, a escolha da parte restante
não é uma decisão voluntária, mas do acaso e de pulsões inconscientes.29 Todorov afirma que
“reviver o passado”, o cruzamento entre a escolha “de” lembrar e a seleção “do que” lembrar, é
pressuposto do exercício da liberdade. Mas também afirma que tal exercício implica em trabalho
sistemático de várias etapas. Ele as sistematiza em número de três: um, o “estabelecimento dos
fatos”, dois, a “construção do sentido” e, três, o “aproveitamento”.30
Chega a ser surpreendente como as proposições de Todorov aproximam-se daquelas que todos
entenderíamos como o trabalho museal. O “estabelecimento dos fatos” consiste no recolhimento de
testemunhos minimamente confiáveis, ou seja, que possam não ser considerados meras falsificações
ou, como diz o filósofo, “fabulações”. Acontecimentos que possam ter alguma veracidade. No caso
dos museus, artefatos que possam se remeter, de alguma forma, à sociedade que lhes deu origem. E
como a noção de artefato é, como já foi apontado, extremamente ampla, é possível estendê-la para
além dos objetos que nos cercam, no mundo.
Os testemunhos da cultura material podem ser considerados como extremamente confiáveis.
Em épocas recentes, sua interpretação tem se tornado uma preocupação bastante presente entre os
cientistas, principalmente a partir do momento em que a interdisciplinaridade trouxe os recursos
exploratórios das ciências ditas “duras” (fisica, química, biologia, entre outras) para o campo
das ciências humanas. As coleções museológicas tiveram importante papel nessa aproximação:
elas representam a cultura material armazenada desde o passado, e a base de sentido sobre a qual
é elaborado o discurso dos museus. Eles podem ser entendidos, tanto individualmente quanto
em seu conjunto, como aquilo que Todorov chama “verdade de adequação”,31 a correspondência
exata entre o discurso do presente e os fatos do passado. Podemos, nesta direção, pensar que, vista
pelo viés museal, a “verdade de adequação” alinha-se à questão da autenticidade, que, segundo
um texto clássico...
[...] não pressupõe necessariamente AUTENTICIDADE no sentido tradicional e restrito, mas a
VERACIDADE, a FIDEDIGNIDADE do documento ou testemunho. Quando musealizamos
objetos e artefatos (aqui incluídos os caminhos, as casa e as cidades, entre outros e a paisagem
com a qual o Homem se relaciona) com as preocupações de documentalidade e de fidelidade,
procuramos passar informações à comunidade; ora a informação pressupõe conhecimento
29
cf. TODOROV, Tzvetan, Op. cit. p. 141-142.
30
Id. Ibid. p. 142-151.
31
Id. Ibid. p. 144.
32
GUARNIERI, Waldisa Russio. Conceito de cultura e sua interrelação com o patrimônio cultural e a preservação. Cadernos Museológicos,
(n.3, 1990). Rio de Janeiro: SPHAN-Pró Memória, 1990. p. 7. (Grifos da autoria.)
33
TODOROV, Tzvetan, Op. cit. p. 144.
34
Cf. CANNON-BROOKES, Peter. The nature of musem collections. In: THOMPSON, John M. A. (ed.) Manual of curatorship: A guide to
museum practice. Oxford: Butterworth-Heinemann, 2ª ed., 1992. p. 501.
o século 19, uma manifestação de nacionalismo”.35 Essa abordagem faz pensar que, nessa direção,
as sociedades “colecionistas” acabam se tornando sociedades “colecionadas”: ao colecionar, a
sociedade “colecionista” também se representa.
A própria coleção, vista pelo viés acima, é uma representação, que se expressa na ideia de
“acervo”: uma coleção, só que de coleções. O acervo de um museu não para de ser construído, é um
corpo em perene expansão, é uma história que não encontra seu final. Não para de se expandir ainda
que deixe de se ampliar, fisicamente. Porque, ainda que por algum motivo, não tenha expandidas
suas coleções, continuará gerando informações e tendo sentidos justapostos sobre sua materialidade.
Assim, o acervo, a “coleção de coleções”, é também parte do discurso do museu, ainda que não seja
mobilizado para as exposições. Este órgão da instituição museal pode ser entendido como formador
daquilo que Todorov denomina “verdade de elucidação”.36 aquela que permite apreender o sentido
de um acontecimento, quer dizer, permite entender o acontecimento, situá-lo numa linha. Neste
momento, pode-se considerar que o acervo transmutou-se num conjunto de sentido, não apenas
para a sociedade, mas para o próprio museu. É a terceira etapa, das três apontadas por Todorov, e
que ele denomina com um termo “um tanto irreverente”: “aproveitamento”.37
Imagino que os seminários do Museu Histórico Nacional possam ser relacionados como a
etapa de “aproveitamento” do conjunto formado pelo acervo preservado. Pois o “aproveitamento’
é a instrumentalização da vida do passado no presente, com vistas a objetivos atuais. Segundo
Todorov, assim o fazem as pessoas privadas e os políticos. Não seria inexato acrescentar que
também as instituições.
Os “Seminários do Museu Histórico Nacional” têm se consolidado, no Rio de Janeiro e no Brasil,
ao longo de mais de dez anos, como um dos mais importantes espaços de reflexão sobre museus.
Uma de suas principais características é ocorrer em um espaço museológico. Não é meu objetivo
pensar, especificamente, sobre a trajetória do evento.38 O surgimento do evento foi uma iniciativa
institucional, que podemos associar a um percurso anterior, que se iniciou em 1984, com a decisão
de governo de modernizar, tanto quanto possível, algumas das principais instituições museais
ligadas ao governo federal. No caso do MHN, essa decisão consolidou-se no chamado “Processo
de Revitalização”, instituído em 1984 e que se estendeu ao longo dos quatro anos seguintes. Este
35
Id. Ibid.
36
TODOROV, Tzvetan, Op. cit. p. 145.
37
Id. Ibid. p. 149.
38
Sobre as origens dos Seminários do Museu Histórico Nacional, cf. BITTENCOURT, José Neves. Uma experiência em processo. In:
BITTENCOURT, J. N., BENCHETRIT, S. F., TOSTES, V. L. B. História representada: o dilema dos museus. Rio de Janeiro, Museu
Histórico Nacional, p. 7-24.
Mas os Seminários também podem ser entendidos como um momento em que o MHN
utiliza o passado. Trata-se, mais uma vez, da formulação de Todorov, que, em minha opinião,
aplica-se perfeitamente à vida das instituições museais e, em particular, à do Museu que abordo.
Diz o filósofo:
O trabalho do historiador é inconcebível sem uma referência a valores. São estes que lhe ditam sua
conduta: se ele formula certas perguntas, se delimita certos temas, é por julgá-los úteis, importantes,
exigindo até mesmo um exame urgente. A seguir, em função de seu objetivo, ele seleciona, entre
todos os dados que lhe vêm de arquivos, depoimentos e obras, aqueles que lhe parecem mais
reveladores, e os agencia depois numa ordem que considera propícia à sua demonstração. Por fim,
e embora sua ‘moralidade’ não seja tão explícita quanto a do fabulista, ele sugere o ensinamento
que se pode extrair desse fragmento de história.39
[a] memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente [...] Porque é efetiva
e mágica, não se acomoda a detalhes que a confortam, ela se alimenta de lembranças vagas ...
particulares ou simbólicas , sensível a todas as transferências, cenas, censura ou projeções. A
memória instala a lembrança no sagrado [...] A memória emerge de um grupo que ela une [...].40
A crítica, independente de qual seja, incide, ao fim e ao cabo, sobre a memória da instituição e
tem como resultado gerar tensões. E as tensões serão, em algum momento, um dos temas dos agentes
envolvidos com os museus – talvez o maior dentre todos os temas. A “iniciativa comemorial”
talvez se explique como forma de diluir a tensão. Diluir criativamente.
Por uma derradeira vez recorro a Todorov: a vida do passado no presente é guiada sobretudo
pelo interesse.41 A comemoração gera um discurso que é voltado para o espaço público. Todorov
parece discordar da possibilidade de existirem memórias externas ao indivíduo, do tipo chamado
“memória coletiva”. Segundo ele, “a memória coletiva não é uma memória, mas um discurso que
evolui no espaço público. Esse discurso reflete a imagem que uma sociedade ou grupo dentro da
sociedade querem dar de si mesmos.”42 Não vejo incompatibilidade entre as formulação de Todorov
e aquelas que visam definir “memória coletiva”,43 uma memória que guarda o que de importante
fica, do passado, no vivido dos grupos e que se alimenta da energia que a faz circular entre os
diversos indivíduos. Imagino que se possa dizer que é, exatamente, a vida do passado no presente
e no espaço público, visto que memórias coletivas não podem, por definição serem recônditas.
Aquilo que Todorov define como “comemoração” parece coincidir com os “lugares de memória”,
e, de fato, ele cita exemplos que já foram relacionados e estudados na obra monumental organizada
por Pierre Nora, nos anos 1980: escola, meios de comunicação, filmes históricos, reuniões de ex-
combatentes e as próprias comemorações. São fatos ligados por excelência ao espaço público. Os
museus e suas coleções, bem como o patrimônio, também são extensivamente abordados na obra
organizada por Nora. Mas essas “iniciativas memoriais” tomadas pelos museus (e também por
outras instituições de caráter público), por trazer a crítica ao espaço público, acabam diluindo a
tensão nela contida, e possibilitando a gestação do futuro.
Vale aqui apontar que o eminente historiador Arno Wehling, no encerramento do Seminário,
estabeleceu que as coleções museais se tornam tema para museológos e outros documentalistas, bem
40
NORA, Pierre. Entre memória e história... Op. cit. p. 9.
41
Id. Ibid. p. 154.
42
Id. Ibid. p. 155.
43
Para esclarecimentos sobre o tema, cf. LE GOFF, Jacques. Memória. In: ROMANO, Ruggiero (dir.) Enciclopédia Einaudi (Vol. 1 –
Memória-História. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1ª ed., 1983. p. 11-50; NORA, Pierre. Entre memória e história... Op. cit.;
FINLEY,Moses I. Usos y abusos de la história . Barcelona: Grijalbo, 1977. cap. 1.
como para historiadores e outros cientistas sociais. Fez esta observação definitiva diante de, talvez,
uma centena de especialistas, que haviam passado os três dias anteriores discutindo questões relativas
às coleções e, por conseguinte, aos museus. Essas pessoas, das mesas de conferências ou da plateia,
emitiam opiniões que não raro, entravam em choque. A começar pela tentativa, sempre problemática,
de definir “coleção”. Não devem ter sido poucas as vezes em que muitos dos presentes – como eu – se
perguntaram se a noção de coleção que operamos contribuí para aperfeiçoar e potencializar o trabalho
nos museus. O que ficou claro é que as definições atravessam diversas possibilidades, conformadas pela
Filosofia, pela História, pela Arquivística, pela Ciência da Informação, pelas Ciências Sociais. Vimos
que para o “agente social colecionador”, ou seja, aqueles agentes que formam coleções, com maior ou
menor alcance, a definição parece ser mais tranqüila – e isso ficou patente nas palestras sobre Plínio
Doyle, cartofilia, porcelana, condecorações. Ficou evidente que tais agentes sociais colecionadores
formam e acumulam um conhecimento sobre o passado que talvez faça falta às instituições
museais. A tranquilidade, entretanto, escondia quantum não pequeno de tensão: o colecionismo se
profissionalizou, foi outro aspecto que ficou evidente. A coleção, como produto de um ato de vontade,
tornou-se uma atividade que cria não apenas esboços biográficos, mas projetos culturais e políticos.
Os colecionadores, antes aliados incondicionais dos museus, tornam-se agora concorrentes, capazes
de competir pelo acesso a fundos financiadores, com agilidade maior que as instituições públicas.
Também foi exposto como novas formas de coleção precisam ser abordadas, como única forma que
tem o museu de trazer para seu interior – e para seu discurso – categorias sociais que outras conjunturas
ignoraram ou colocaram em segundo plano. O próprio MHN tem tentado dar conta desse problema,
elegendo novos atores: minorias étnicas, crianças, mulheres; a classe média, representada por artefatos
do cotidiano e de tecnologia; trabalhadores, expressos por suas ferramentas. Essas escolhas sempre
serão problemáticas, pois por vezes são feitas devido à proximidade de especialistas ou grupos
de especialistas, em detrimento de outros agentes sociais, que não têm “interessados” nas equipes
institucionais ou nos especialistas colaboradores. No futuro, talvez apareça algum, por ouro lado; no
futuro, talvez algum especialista ensine o MHN a colecionar, por exemplo, artefatos virtuais. Afinal
foi durante o Seminário Internacional de 2006 que foi levantada a discussão que me levou às reflexões
desfiadas páginas atrás.
Enfim, as tensões que circulam pelo campo museal emergem nesses eventos, mas com um
resultado interessante: saímos todos de eventos como os Seminários do Museu Histórico Nacional
convencidos de que, por maiores que sejam os problemas, a instituição continua atual e, sobretudo,
necessária. Parece-me ser o resultado último da “iniciativa comemorial”: a expressão das tensões
e das diferenças no espaço público acaba por energizar a instituição e permite que a mesma renove
seu discurso e evite as armadilhas da memória.
44
cf. TODOROV, Tzvetan, Op. cit. p. 154-155.
Seminário Internacional
“Coleções e colecionadores: a polissemia das práticas”
Dias 3, 4 e 5 de outubro de 2011
Promovido pelo Museu Histórico Nacional (MHN)/IBRAM, em parceria com o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB), o Seminário Internacional 2011 visa estimular reflexões e debates sobre a formação de
coleções, seus usos, suas valorações, os agentes envolvidos na prática colecionista e sua patrimonialização.
Procura compreender em que medida a reunião de acervos, numa perspectiva particular e individualizante, ao
ser preservada e disponibilizada em instituições públicas, em galerias de arte e em exposições, agrega valores
e sentidos que contribuem para a construção de gostos, memórias coletivas e identidades culturais. Como se
estabelece a ponte entre a privacidade do ato de colecionar e a consagração de patrimônios coletivos? Qual é o
papel dos colecionadores, pesquisadores, artistas e comerciantes na formação das coleções? Estas são algumas
questões a serem pensadas ao longo dos três dias de evento.
3 de outubro
9h – Inscrições gratuitas e credenciamento no local.
9h30 - Sessão de abertura
Mário Chagas – Diretor do Departamento de Processos Museais do Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM
Aline Montenegro Magalhães – Coordenadora do Seminário Internacional do Museu Histórico Nacional - MHN
Arno Wehling – Presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB
10h – Conferência de abertura: “A alma de colecionador: Plínio Doyle entre amigos e livros”
Conferencista: Isabel Lustosa – Fundação Casa de Rui Barbosa
Debatedora: Sarah Fassa Benchetrit – MHN
11h – Mesa-redonda: “Há nostalgia nas coleções?”
Marta Luzie Oliveira Frecheiras – UFOP
Carina Martins Costa – UFJF
Victorino Coutinho Chermont de Miranda – IHGB
Coordenadora: Vera Mangas - Museu da República
14h – Mesa-redonda: “Da circulação à evocação: coleções numismáticas”
António Forjaz Pacheco Trigueiros – Editor do site Estudos de Numismática
Marici Magalhães – Instituto de História da UFRJ
4 de outubro
10h – Conferência: “Coleções, colecionadores e exposições.”
Conferencista: Roberto de Magalhães Veiga – PUC-Rio
Debatedora: Cêça Guimaraens – Proarq-UFRJ
11h – Mesa-redonda: “Coleções e colecionadores no circuito das artes e das antiguidades”
Samuel Gorberg – Associação de Cartofilia do Rio de Janeiro
Pedro Corrêa do Lago – IHGB
George Kornis – Uerj.
Coordenadora: Bia Corrêa do Lago
14h – Mesa-redonda: “Coleções: entre o público e o privado”
Douglas Fazolatto – Museu Mariano Procópio
Ângela Gutierrez – Instituto Cultural Flávio Gutierrez
Rafael Zamorano Bezerra – MHN
Coordenador: João Maurício de Araújo Pinho - IHGB
15h30 – Mesa-redonda: “Coleções e a construção do conhecimento”
João Pacheco de Oliveira Filho – Museu Nacional - UFRJ
Márcio Rangel – Mast/Unirio
Alda Heizer – Instituto de Pesquisa Jardim Botânico do Rio de Janeiro
Coordenador: Marcus Granato – Mast/Unirio
5 de outubro
10h - Conferência: “Sujeitos históricos: do herói ao átomo”
Conferencista – Sabina Loriga – École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris
Debatedora: Adriana Barreto - UFRRJ
Locais do evento:
Dias 3, 4 e 5 (Conferência e Mesa Redonda da manhã):
Museu Histórico Nacional
Praça Marechal Âncora, s/n.
Próximo à Praça XV - Centro
20021-200 – Rio de Janeiro – RJ
Dia 5 (Mesa redonda da tarde e Conferência de Encerramento):
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB
Av. Augusto Severo, nº 8, 9º/13º andar – Glória
20021-040 - Rio de Janeiro - RJ
Este livro, Coleções e colecionadores: a polissemia das práticas, foi composto e impresso para o Museu Histórico Nacional na
_______________, no _____________, com tipologias Times New Roman e Futura.