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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Disciplina: PRI5001 – Questões normativas nas Relações Internacionais: estudos teóricos e

empíricos sobre a governança global

Trabalho Final

Aluno: Pedro Henrique Aquino de Freitas

NUSP: 6907005

A GOVERNANÇA GLOBAL E A CRESCENTE INTERDEPENDÊNCIA ENTRE O

SISTEMA INTERNACIONAL E A ESFERA DOMÉSTICA

1. INTRODUÇÃO: AS RELAÇÕES ENTRE A GOVERNANÇA GLOBAL E A ESFERA

DOMÉSTICA

Este trabalho tem o objetivo de discutir a relação entre a governança global e a esfera

doméstica, tema de fundamental importância para a disciplina de relações internacionais e para

os estudos sobre a governança global. Para enfrentar este debate, é necessário retomar alguns

conceitos e localizá-los na literatura da área.

De acordo com Herz (2002, p. 10), o conceito de soberania demarca a relação entre o

estudo da ciência política e o das relações internacionais, visto que possui um componente

interno, a ideia de uma autoridade político-legal suprema sobre uma comunidade política

territorialmente definida, e um componente externo, a ideia de ausência de autoridade. Esta


dupla noção de ausência e presença de soberania (cf. Knutsen, 1992) domina as relações

internacionais e os problemas decorrentes da disciplina.

Assim, a literatura costuma distinguir a esfera doméstica, “onde a política com alguma

base ética e alguma noção de comunidade sobrevive”, e a internacional, “onde as relações

variam entre a anarquia e a cooperação utilitária” (Herz, 2002). Ademais, a tensão entre a esfera

doméstica e o nível internacional na área de relações internacionais pode ser observada por

interpretações antagônicas no que diz respeito às definições e aos papeis desempenhados por

regimes e organizações internacionais.

Os defensores do liberalismo institucional afirmam que mesmo democracias bem

estabelecidas podem beneficiar-se do processo de multilateralismo embasado na governança

global. Em contraposição ao realismo, entendem pela interdependência complexa que há um

intercâmbio positivo entre canais múltiplos transnacionais através dos quais as diversas nações

e estados interagem (cf. Nye; Keohane, 1977). Neste aspecto, verifica-se uma posição oposta

àquela que afirma as organizações internacionais debilitam a democracia doméstica e

interferem negativamente em questões nacionais.

Por outro lado, autores como Dahl (1999) enfatizarão o lado nefasto da governança

global, ressaltando seu caráter burocrático, o distanciamento das instituições democráticas em

âmbito nacional e a falta de participação dos cidadãos comuns. Deste modo, se soma a discussão

sobre a democracia e a legitimidade na governança global, tornando questionável a governança

global do ponto de vista do caráter democrático das instituições internacionais.

De forma bastante resumida e simplificada, estes são pontos centrais para uma

introdução ao debate na disciplina sobre qual é a relação entre a governança global e a esfera

doméstica, que acreditamos ser de crescente interdependência. A partir daqui, discutiremos esta

interdependência entre os dois níveis e os principais desafios nesta interação.


2. A CRESCENTE INTERDEPENDÊNCIA ENTRE OS NÍVEIS INTERNACIONAL E

DOMÉSTICO

A governança é entendida como uma forma de administrar áreas diversas das relações

internacionais como o comércio, as finanças, as relações políticas, o meio ambiente e os direitos

humanos e é a somatória de várias maneiras pelas quais os indivíduos administram os assuntos,

em um processo contínuo pelo qual interesses conflitantes podem ou não ser acomodados via

esforços e tentativas de cooperação (cf. Alves, 2015). Para Alves, trata-se, assim, de um projeto

político que busca a solução conjunta de problemas coletivos através de princípios, normas e

regras que podem ordenar a vida social internacional

A mudança na ordem global com a dissolução da União Soviética e a percepção de

novos fenômenos nas relações internacionais apontaram a partir dos anos 1990 com mais

veemência o papel e a importância de novos atores que passaram a influenciar diretamente a

atuação dos Estados. Verificam-se novas leituras que analisam o sistema internacional a partir

de diferentes níveis interligados, diversas formas de governança e diferentes locais de

autoridade, inexistindo hierarquia clara entre os níveis e os canais. Mello (2010) ressalta que a

governança no contexto pós-guerra fria teve por objetivo a edificação de um modelo de

organização da vida política internacional universal.

Autores como Kaul, Grunberg e Stern (2009) apontam a necessidade de desenvolver

arranjos e mecanismos para o provimento de soluções conjuntas para os problemas não restritos

às fronteiras nacionais. Assim, um modelo de governança global teria como primordial o

provimento de bens públicos globais, a inserção de atores não-governamentais e a criação de

accountability para garantir a ordem na atuação das organizações internacionais e dos Estados

em relação a questões de interesse público no âmbito internacional.

Rosenau (1995) traz uma definição de governança global como um sistema de regras,

níveis de atividade humana, a busca de objetivos e repercussões internacionais. No entanto,


aponta que ainda não alcançamos um arranjo global para coordenar a ação dos Estados e prover

estes bens públicos globais. Por outro lado, Sposito (2014) observa que os Estados delegam

poder às organizações internacionais para que atuem em problemas que transcendem a

jurisdição nacional, o que traz benefícios mútuos no desenvolvimento de políticas eficientes e

no cumprimento das regras.

Cortell e Davis (1996) sustentam que as organizações internacionais podem influenciar

a política doméstica através da institucionalização de leis internacionais. Isto ocorre pela

mudança dos valores de atores domésticos, a incorporação de procedimentos utilizados nas

instituições internacionais, a evocação de regra internacional para apoiar interesses na esfera

doméstica e a incorporação de leis internacionais na Constituição nacional. Assim ocorre uma

coordenação de regras, normas e leis internacionais junto às instâncias domésticas, resultando

em um relevante outcome político.

Os autores verificam, então, que existem dois componentes que determinam como a

estrutura doméstica pode ser influente no modo como a ação dos atores evocam leis ou normas

internacionais para apoiar seus interesses. São eles o modelo de tomada de decisões do Estado

e o padrão de relações entre o Estado e sociedade, no sentido de que quanto mais aberto o

modelo de tomada de decisões e mais próxima a relação entre Estado e sociedade, maiores as

chances de participação pública na esfera doméstica e, consequentemente, maiores as

informações e canais de aproximação às organizações internacionais (Cortell e Davis, 1996).

Ainda no nível estatal, observam que a desigualdade entre os Estados determina o modo

como cada um influencia o sistema internacional e é influenciado por ele: os Estados fracos são

pressionados internacionalmente pela coerção das potências e das organizações internacionais

e pelos atores domésticos ligados aos interesses transnacionais. Por outro lado, as potências

definem a agenda, influenciam de forma assimétrica as negociações internacionais e, como as


regras são formadas de acordo com suas preferências, possuem menores custos para adaptar-se

aos modelos propostos (Hurrell e Woods, 1995).

Anos depois, Drezner (2003) elenca hipóteses para as quais as instituições

internacionais podem ter importância sobre o outcome das políticas domésticas. Entre elas, está

o caso em que os policymakers utilizam as organizações internacionais para relegar

comprometimento e credibilidade e embasar a defesa da internalização de normas

internacionais. Ademais, as interações repetidas entre as instituições internacionais e as

instituições domésticas podem aumentar chances de ratificar normas internacionais nas

instituições internas, harmonizando as regras nacionais, facilitando o entendimento e a

cooperação.

Ademais, Rosenau (1997) ressalta que as organizações internacionais podem promover

os valores democráticos através de cláusulas que exijam a seus membros a manutenção de

regimes democráticos como um Estado membro, um cenário otimista para um círculo virtuoso

de democracia, paz, interdependência e fortalecimento das organizações internacionais. Para

Keohane, Macedo e Moravcsik (2009), a governança internacional e a democracia na esfera

doméstica são realidades complementares, pois ambas asseguram os bens públicos e os bens

coletivos em plano interno e externo aos atores sociais.

3. OS DESAFIOS NA INTERAÇÃO ENTRE OS NÍVEIS E COMO ENFRENTÁ-LOS.

Conforme já foi mencionado nas seções anteriores, são apontados como desafios

relevantes a serem enfrentados nesta interação: a participação, pois a cooperação internacional

ainda é primordialmente intergovernamental; o incentivo, pois a persuasão moral é insuficiente

para incentivar os países a cooperar em prol dos bens públicos globais; uma questão

jurisdicional, pois o desenvolvimento de políticas ainda é essencialmente nacional (cf. Kaul,

Grunberg e Stern, 1999).


Dingwerth e Pattberg (2006) recuperam a definição de Rosenau sobre governança global

e afirmam que são necessários arranjos para que a autoridade seja exercida em um sistema com

vários níveis interativos sem hierarquia clara e a partir de esferas de autoridade independentes

da soberania estatal.

Autores como Sposito (2014) defendem que a interação entre os níveis por meio de

regras formais e delimitadas por estruturas rígidas pode ajudar a superar os desafios elencados

pela literatura. Em nível estatal, os Estados nacionais são os principais atores das relações

internacionais, representam os indivíduos na arena internacional, delegam poder e devem

defender os interesses gerais dos indivíduos; em nível supra-estatal, buscam-se as soluções para

os problemas transnacionais e o provimento dos bens públicos globais.

O autor pondera, no entanto, que a assimetria de poder entre os Estados, em âmbito

econômico, político, ideológico e militar é o principal empecilho para uma mudança

significativa no sistema internacional. Esta assimetria poderia se manifestar pela coerção,

mecanismo utilizado pelas potências para produzir resultados políticos de acordo com seus

interesses próprios, coagindo Estados fracos a cumprir as regras, ignorando um custo de

ajustamento alto para introduzi-las. Este é outro dos desafios para a harmonização de regras

internacionais, necessária para o aperfeiçoamento da governança global.

Ainda para superar os desafios listados, Downs, Rocke e Barsoom (1996) defendem a

importância de mecanismos de enforcement para aprofundar os padrões de cooperação,

aumentando os benefícios e institucionalizando as leis internacionais. Esta questão é muito

relevante ao se considerar a necessidade de coordenação entre os modelos políticos domésticos

através da aproximação com as normas internacionais.

Observando outro aspecto, Kahler (2004) pondera que as organizações internacionais

são instituições criadas e dirigidas pelos governos nacionais, de modo que os avanços em

direção à democratização ou a criação de mecanismos formais de accountability dependem em


grande parte da vontade dos Estados, limitada pela defesa da manutenção do status quo pelas

grandes potências. Este fator reafirma a assimetria de poder e a soberania como empecilhos à

democratização.

Por fim, Sposito (2014) que é necessária a aceitação da flexibilização da soberania

estatal para que se avance a um cenário mais cooperativo e que permita às organizações

internacionais regular assuntos transnacionais de alcance interno na esfera doméstica,

desenvolvendo e fazendo cumprir normas e arranjos internacionais.

Cabe destacar, por outro lado, que Lima e Hirst (2006) também apontam como falhas

para a governança global que as opções dos países intermediários são muitas vezes

constrangidas pelas atuações dos Estados com maior projeção de poder político e econômico

no sistema internacional. Percebe-se que, depois dos anos 1990, surge uma literatura de

contestação a respeito de uma governança universal e única enraizada no pensamento liberal

anglo-saxão (Alves, 2015), ficando evidentes as faltas de compromissos das grandes potências

com uma governança universal.

Como exemplo de iniciativa de governança, Alves cita o G-20 financeiro. Trata-se de

uma iniciativa no campo monetário e financeiro composta por atores heterogêneos nas suas

organizações políticas e nas suas preferências econômicas, para tentar administrar uma

realidade econômica e financeira global dinâmica. Para o autor, a governança do G-20 está

adaptada às condições econômicas estruturais e políticas internacionais do século XXI, de

administrar um sistema monetário e financeiro internacional instável, no qual prevalecem as

preferências domésticas de cada unidade soberana no lugar de coordenações conjuntas para

administrar os efeitos da crise.

Ainda sobre a conjuntura recente do século XXI, Ikenberry (2009) observa que os EUA

estão dividindo seu poder de influência nas instituições multilaterais, mas não liquidando o

poder de veto, voto e de influência, o que indica parecer pouco provável que a ordem liberal
enraizada nos valores e nas ideias dos EUA seja contestada nos contornos da governança global.

Isto tornará a governança mais complexa e desafiadora, mas ainda será uma ordem hegemônica

norte-americana.

Outro exemplo relevante diz respeito à governança do meio ambiente, que diz respeito

a uma questão de relevância internacional, com efeitos que transpassam as fronteiras dos

Estados e requerem administração e regulamentação internacional. Multiplicaram-se os

regimes sobre matéria ambiental, bem como tem sido forte a atuação transnacional de

organizações não governamentais para pressionar os estados. Bättig e Bernauer (2009)

argumentam que a democracia se correlaciona positivamente com os produtos e compromissos

políticos assumidos com os regimes ambientais, uma evidência de que uma condição da esfera

doméstica favorece a interação com o regime de governança ambiental. O estudo não consegue,

no entanto, revelar se os compromissos assumidos são efetivamente colocados em prática, uma

limitação que promove um resultado inconclusivo.

Outro trabalho sobre a governança do meio ambiente, o de Breitmeier, Young e Zürn

(2006), observa o compliance sobre as normas do regime de meio ambiente, estabelecendo uma

fórmula para se atingir a observância nos regimes internacionais, que consiste em controle

horizontal, mecanismos fortes de verificação, juridificação, participação de ONGs e

desenvolvimento institucional. Assim, os autores buscam verificar o que pode melhorar o

desempenho dos regimes ambientais, observando algumas condições que precisam interagir

entre a esfera doméstica e o nível internacional.

Este trabalho buscou discutir qual é a relação entre a esfera doméstica e o nível

internacional para a governança global. Considerando que há uma interdependência crescente

e que há fatores determinantes para os resultados da governança global na política doméstica,

descrevemos as diferentes interpretações sobre o assunto, quais são os desafios na interação

entre os dois níveis e demos dois exemplos específicos para dialogar com a literatura.
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