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PORQUE ME NÃO CHAMO MIGUEL COMO O ARCANJO

1)

Eu era para me ter chamado Miguel, como o arcanjo. Isso era de tradição no lado paterno da
minha família. Em todas as gerações havia pelo menos um, senão diversos Miguéis. Era um
hábito ancestral cuja causa ou origem remontava ao patriarca da família, o célebre avô Miguel.

Sobre ele corriam mil histórias algo nebulosas, roçando o mito, no seio da família, a respeito
das suas aventuras no tempo das grandes guerras, a meio do século. Primeiro a Guerra Civil de
Espanha, passada aqui mesmo ao lado e onde na raia fronteiriça aconteceram mil episódios
fascinantes, burlescos e extraordinários, imediatamente seguida da Segunda Guerra Mundial.

Aquando da primeira, ainda jovem e solteiro, iniciara-se nos grandes negócios do café, das
conservas, dos cereais, da forragem para os animais, quiçá até do armamento. Nunca se soube
de onde lhe veio o capital inicial. Sabia-se contudo que soubera multiplicá-lo com bastante
discernimento e abundância. De seguida, na Segunda Guerra passara para voos mais altos, os
grandes negócios com o volfrâmio, o ouro, as pedras preciosas, quiçá algum tráfico humano, o
grande negócio da época, em que se compravam, vendiam, escamoteavam, se faziam
desaparecer aqui e reaparecer acolá, sob nova identidade e até se ofereciam judeus ao
desbarato, de acordo com as conveniências privadas.

Corriam na família, à boca pequena, sempre discretamente entre sussurros e olhares


cuidadosos em redor, para que ouvidos curiosos de nada se apercebessem, “n” histórias de
como construíra uma sólida fortuna por meios nem sempre os mais ortodoxos, burlando
ambos os lados beligerantes e seus representantes, aliados ou prosélitos através de negócios
fabulosos, quase sempre à base de contrabando e outros meios, que embora legitimados pelo
estado de sítio, o clima de guerra e impunidade, não deixavam de ser algo questionáveis.

Nada disto era abordado às claras, tudo ocorria por meias palavras, veladas alusões, frases
com duplos sentidos cripticamente ocultos entre sorrisos de bons entendedores. Parecia
pairar sobre a sua figura quase mitológica, uma sombra meio escandalosa, levemente
vergonhosa mesmo, mas da qual se sentiam bastante orgulhosos os seus descendentes.

Eu nunca o conheci, pois já há muito morrera aquando do meu nascimento e todas estas
conclusões porventura erróneas, dado que nunca as confessei nem sobre elas troquei
quaisquer impressões, fosse com os meus pais, avós ou outros parentes, que o tivessem
conhecido pessoalmente, não por falta de curiosidade ou insistência da minha parte, mas
porque o assunto era assim a modos que tabu e as pessoas esquivavam-se habilmente, sempre
que eu tentava abordá-lo. Foi portanto muito lentamente, uma peça aqui, outra acolá, através
dessas esparsas insinuações, das tais raras e veladas alusões, muito ocasionais e diversas, que
eu fui formando uma ideia geral do puzzle, aquela manta de retalhos de mistério,
desinformação e silencio que parecia ser a essência dos dias de vida desse tio avô de antanho.

Mas tudo isso eram velhas histórias meio lendárias a que ninguém ligava importância,
estava tudo esquecido, enterrado nos escombros da verdadeira História do século, no seu
infindo carnaval de traições, decepções, crimes e desgraças várias e o que interessava
deveras, pelo menos à família eram as consequências, ou seja o relativo desafogo burguês em
que todos vivíamos, as gordas percentagens nas fábricas de conservas em Bilarreá, a
propriedade das diversas casas de habitação e férias, as cómodas contas bancárias, etc…

Eu, como disse, nunca cheguei a conhecê-lo, a este avô, que o era de facto, mas do meu pai,
sendo pois meu bisavô. Nem nunca cheguei a saber na realidade qual a sua profissão original,
se chegou na verdade a ter alguma. Era um business-man, um fura-vidas, um cavalheiro da
fortuna, como só existiram antigamente nos bons velhos tempos, entre guerras.

Apenas por fotografia, das quais existiam duas enormes ampliações emolduradas, a preto e
branco, na parede da sala. Numa delas, glabro, enérgico, de fato bem cortado e camisa de
colarinho duro, ostentava uns óculos de armação metálica que lhe acentuavam a seriedade do
olhar, em contraste com um meio sorriso que se insinuava apenas, ligeiro entre os lábios,
cheios, algo entreabertos. Na outra, posterior, ostentava já uma longa barba de corte
quadrado, símbolo da sua viuvez, pois era de bom-tom na época os viúvos revelarem a sua
condição, através das pilosidades faciais. Pelo menos em certos meios…

Esta segunda foto antecedia em pouco o seu segundo casamento com uma senhora de
ascendência espanhola e a sua mudança de residência para Arjamonte, cidade fronteiriça onde
os seus quatro filhos, o meu tio avô Pedro e as suas três irmãs, a minha avó Isabel, futura
matriarca do clã, e as tias Dina e Luísa foram criadas pela madrasta, de quem coitada nem o
nome se recorda, na família, defendendo alguns que se chamava Jesuína, sendo que o que
resistiu nas crónicas familiares foi o da avó Leocádia, mãe natural das crianças, que faleceu
muito cedo, não se sabe bem se de consequências do ultimo parto, se de alguns resquícios da
pneumónica, que ainda alastravam à solta pelo país, no pós-guerra.

Aí frequentaram a escola aprendendo história, matemática, as diversas ciências, a própria


gramática elementar através de mnomónicas cantadas, segundo os processos educativos da
época. Lembra-me perfeitamente da minha avó, já idosa desfiando longas cançonetas sobre a
saga do Cid, as conquistas dos Reis Católicos, a queda de Granada e a maldição da mãe de
Boabdil, as descobertas do traidor Colombo, ou a tabuada de fio a pavio, cantada de modo
hipnótico, quase encíclicamente. Todos eles falavam fluentemente o espanhol como se da
própria língua mãe se tratasse.

Quando eu nasci já a fortuna original estava algo desbastada. Não que tenha sido dividida,
até porque existira uma política de casamentos mistos, entre as duas principais famílias de
herdeiros, sobretudo no que diz respeito às acções das fábricas, no sentido de conservar a
totalidade do património o mais possível unida e coesa, mas sim porque os tempos eram já
outros, as industrias pesqueira e conserveiras sobretudo, perdiam terreno face à concorrência,
quer local quer estrangeira e a uma série ainda de outros factores de geo-política e estratégias
internacionais que me ultrapassavam, para além daqueles, inevitáveis que diziam respeito ao
arrefecer das águas, às mudanças das correntes oceânicas e à fuga dos grandes cardumes que
dantes abarrotavam a nossa costa e subitamente desapareceram para outras paragens.

Por outro lado, naquela época só os filhos homens herdavam de seus pais, esperando-se das
filhas que fossem moças prendadas e arranjassem bons casamentos, cabendo aos irmãos e
restantes familiares apoiarem-nas, caso ficassem solteiras, pelo que só esse meu tio avô Pedro
Miguel, filho único e o mais velho, acima das suas três irmãs, tivesse direito à totalidade do
património líquido do avô Miguel. Coube-lhe também a posse do soberbo palacete, a mais
bela, elegante e rica casa da Bilarreá, na avenida principal, mesmo frente ao rio e à bela
avenida marginal, onde anos depois se instalariam os escritórios, edifícios e restantes
dependências aduaneiras.

É claro que como bom e precavido patriarca ele cuidou de deixar as suas três filhas mais
novas bem providas de meios, sobretudo imóveis, para além de chorudos dotes, obrigatórios
para assegurar bons casamentos para as raparigas. Contudo, participação nas fábricas ou nos
restantes negócios realmente rentáveis, nada. Isso ficou tudo para o seu bem amado filho
Pedro e sua descendência.

2)

Muitos anos passaram e com eles toda a existência de uma geração abundante e pródiga.
Houve casamentos, nascimentos e mortes, negócios, enredos e fantasias. Pedro e suas irmãs
casaram, tiveram filhos, vários e foram relativamente felizes. Os negócios floresceram,
desenvolveram-se e estabilizaram. As crianças cresceram, foram à escola, tornaram-se adultos.
A seu tempo também eles casaram e começaram a ter filhos.

Na geração seguinte houve dois primos também eles chamados Miguel, de acordo com a
tradição. O primogénito do tio Pedro e da tia Mariquita, acima referidos e o filho segundo dos
meus avós, dado que o primeiro, o meu pai se veio a chamar João Manuel, em homenagem ao
padrinho, como era costume na época, seu tio, irmão de meu avô Manoel, que havia casado
com a avó Isabel. Os restantes primos e primas fruto dos casamentos das tias Dina e Rochartre
e Luísa e Raul, optaram por nomes diversos mais na tradição das respectivas famílias paternas,
suponho.

Toda esta gente já eu conheci pessoalmente e era uma caterva de tios e tias, primos e
primas, uma abundância de casas, visitas e mimos proporcionados às crianças, aquilo que se
chama uma grande e ilustre família. Um carroucel de sensações, surpresas e dinâmicas.

Por exemplo em casa dos tios Raul e Luísa, a irmã mais nova da minha avó, senhora de
elevado nível e extraordinária beleza, que manteve intacta bem para além dos sessenta anos
com seus cabelos prematuramente brancos, nevados, de uma elegância e bom trato a toda a
prova. Ele médico, careca e barrigudo, um desses João Semana de província, de largo coração,
capaz de atender clientes gratuitamente até bem entrada a noite, enquanto tivesse pacientes
no consultório, eternamente agradecidos pelas atenções do Senhor Dôtor, nunca se
esquecendo duma prendinha ao alcance das suas magras bolsas, fosse uma dúzia de ovos, um
frasco de doce de tomate ou vá lá uma galinha gorda, nos seus melhores dias, a tia dona de
casa, porque nessa geração as senhoras ainda não trabalhavam, nem sequer isso se punha
como mera hipótese. Era algo fora de cogitação.

Nessa casa, dizia eu, existia um lago artificial imenso que servia de piscina às crianças, no
verão e de lar a inúmeras aves que por ali se passeavam em absoluta liberdade, patos, pavões,
faisões e numerosas raças de galinhas entre as quais as paduanas, uma espécie angolana que
nunca ninguém tinha visto, ou ouvido sequer falar, que tinham a particularidade de ter a
cabeça coberta com um tufo enorme de penas que lha ocultavam por completo, deixando
apenas à vista os estranhos bicos compridos, alaranjados e cuja cobertura de espessas penas
cinzentas, polvilhadas de pintas brancas, fazia lembrar as galinhas do mato.

Lembra-me ainda o ambiente extremamente asseado, antiséptico e o cheiro penetrante a


remédios e químicos que se respirava no consultório, um pequeno edifício aparte, no extremo
do quintal onde recebia clientes particulares, alguns deles tão humildes que nem podiam
recorrer às consultas do hospital onde todos os dias exercia gratuitamente. Mesmo no canto,
na esquina da propriedade situava-se a garagem onde, coberto por uma lona enorme de cor
esverdeada, jazia havia muito tempo um daqueles velhos coches puxados a cavalos, que ainda
existiam ao tempo e serviam para passear turistas indolentes ao longo da marginal,
sobranceira ao mar, junto à praia e ao casino. Também lá estava esquecido um velho Buick
preto, há muito abandonado, talvez por excessivamente caro, já nessa época, em termos de
combustível.

Às vezes, durante a sesta dos adultos, escapava-me para a biblioteca onde existia a colecção
completa dos livros de bolso Vampiro, de temática policial e a não menos fascinante colecção
Neptuno, de ficção cientifica, onde me entretinha boa parte das tardes a ler e a fantasiar,
tendo-me ficado desses tempos por certo esta mania compulsiva, quase obscessiva mesmo, da
leitura. Foi nessa casa também que criei o gosto pela musica, pois esse meu tio avô possuía
uma óptima aparelhagem e uma extraordinária colecção de discos, quase todos clássicos, mas
com honrosas excepções dentro da musica popular, exibindo até alguns autores
expressamente proibidos pelo regime, casos do Zeca Afonso, do Adriano Correia de Oliveira,
entre outros.

O filho mais velho deste casal, o Raulinho tinha ido para o colégio militar e sonhava com
briosas façanhas guerreiras. Tinha a mania da esgrima, do rugby, da ginástica, da guerra de
guerrilha. Ao longo da vida veio a ter, com grande desgosto seu quatro filhas, tendo acabado
por desistir à quarta tentativa, admitindo finalmente a contra gosto, que o destino decidira
realmente privá-lo de um descendente varão. Não obstante formou a filhas todas no curso de
comandos. Era obstinado, teimoso, insistente.

Não deixava contudo de ser generoso, como veio a provar muitos anos depois, aquando da
minha estadia no Hospital Militar, ala de Psiquiatria, para onde me tinham recambiado depois
dumas exageradas manifestações de loucura furiosa, a que tive de recorrer em desespero de
causa para me conseguir ver livre, da maldita convocatória militar, que me tinha calhado em
sorte com mais três infelizes mancebos, num universo possível de mais de duzentos homens,
tendo todos os outros ficado dispensados. É claro que aquela espécie de lotaria me deixou
lixado, até porque eu tinha jurado, muitos anos antes, ainda no tempo da guerra colonial que
não havia de fazer a tropa.

Ninguém me tinha dobrado ainda, nem a família com as suas regras espúrias, nem os
professores na escola mais a Mocidade Portuguesa à qual nunca pertenci, o que tenho de
agradecer ao meu velhote que sempre me encobriu e deu aval, ou os padres da igreja que
também nunca frequentei não tendo recebido crisma ou qualquer outro feitiço católico para
além do baptismo da praxe, uma vez mais graças aos bons ofícios e velada protecção do meu
pai. Não seriam agora os militares a foderem-me o juízo, jurei..,
Certo é que às tantas, inesperadamente, já um bom mês e tal depois da minha admissão na
Psiquiatria, lá me aparece uma manhã o bom do primo Raúlinho, na companhia de um coronel
qualquer, amigo dele que não abriu a boca durante todo o tempo que lá esteve, nem desviou
os olhos atentos e prescrutadores da minha pessoa, enquanto o Raul me interrogava sobre as
condições do meu internamento e as razões que me levavam a uma atitude daquelas, uma vez
que a guerra já tinha acabado e eu só tinha que fazer três meses de recruta após o que seria a
minha vez, já sargento de dar recruta aos novos mancebos cooptados entretanto. Quanto a ele
aquilo devia parecer-lhe o paraíso, mas eu não estava nem aí.

O que ele não sabia, nem eu me descosi, mantendo-me sempre dentro do meu papel de
esquisóide mutismo, de cabelo às três pancadas, pijama desemparelhado, pés sujos e
fedorentos e olhar alucinado o quanto baste, acentuados por uma barba de três dias e um ar
de alheamento e distracção permanentes, é que os meus amigos estavam todos a curtir na
praia, a namorar as bifas e a apanhar grandes pifos de verão, enquanto eles queriam que eu
me resignasse a perder todo aquele precioso tempo marcando passo em Mafra, cheio de falso
garbo patriótico, levantando-me antes da alvorada para correr quilómetros e depois levar o
resto do dia sendo humilhado, espezinhado na minha dignitas e tratado como um animal, aos
gritos e insultos por aqueles militarões de merda. Eu hein?

De volta à longínqua infância, lembro-me bem de que sempre que me apanhava lá por casa,
este primo, propriamente da geração do meu pai, tinha a mania de querer iniciar-me nos
treinos dos comandos, de modos que lá andava eu em bolandas entre cambalhotas, golpes de
judo e técnicas de dissimulação, rastejando pelo mato rasteiro, subindo às árvores ou
pendurado da varanda do primeiro andar, todo pintalgado de manchas e enrodilhado num
fato camuflado enorme que ele ma emprestava para dar mais verosimilhança e entusiasmo à
minha performance, enquanto ele gritava peremptório e impiedoso – Salta Zé! Salta que eu te
apanho! – Não é que eu não confiasse nele, mas a altura era de tal modo arrepiante e as
minhas pernas tão magras e fininhas, que dessa vez fiz-lhe um manguito e com esforço voltei a
içar-me para a platibanda, deixando-o a vociferar que estes putos de hoje são uns mariquinhas
de merda.

O Raul tinha ainda dois irmãos mais novos e uma irmã caçula, o João José que ao contrário
do primogénito todo militarista e pró regime, veio a fugir a salto para a França, aquando a
altura da sua incorporação, o que o enviaria directamente para África e a guerra colonial, onde
se formou com distinção como engenheiro nuclear, tendo ficado mais de vinte anos sem voltar
a pôr os pés no país, onde só voltou depois do 25 de Abril de 74, o Luizinho que veio a fazer
carreira na TAP e a Luizinha, que se formou em Pedagogia e seguiu a carreira de professora e
constava que tinha preferências sexuais questionáveis.

Ou ainda o imenso palacete do tio Pedro, fronteiro ao rio, a melhor habitação de toda a vila,
inveja e orgulho de todos os conterrâneos, com os seus três pisos silenciosos, enormes e
encerados, banhados por uma permanente luminescência amarelada que mais fazia lembrar
um museu que uma casa de habitação, onde ao fundo de enormes corredores, por alguma
porta entreaberta se deixavam ver difusamente os vultos de velhas tias, debruçadas em círculo
sobre os seus bastidores, compondo lenta e dramaticamente o ponto cruz de elaborados
bordados, como aquelas melancólicas figuras dos quadros do Vermeer, silencio raramente
quebrado pelo riso fresco das crianças, quando descíamos vertiginosa e perigosamente pelos
largos corrimões que ladeavam as amplas escadarias de madeira, brilhantes de cera e verniz,
antes que as sisudas e eternamente presentes criadas de farda negra, avental e touca brancas,
rígidas de goma, corressem a silenciar-nos, com gestos secos e sem ternura.

O filho mais velho deste casal foi o primeiro Miguel dessa geração, de acordo com a tradição
familiar. Teve contudo um destino invejável em nada marcado ou sequer tingido pela terrível
malapata que a minha mãe tanto temia. Pelo contrário, nascido em berço de ouro, toda a vida
multiplicou com engenhosas aplicações financeiras o imenso talhão que lhe coube em sorte da
herança paterna. Foi a ele que lhe coube administrar as fábricas de conservas ainda na posse
da família e tão bem o fez, numa administração bipartida com os primos, herdeiros da outra
metade das acções, que passados poucos anos tinham já três ou quatro fábricas espalhadas
pelo país e ilhas, sendo a base original a mais pequena e insignificante das unidades de
produção.

Teve uma irmã mais nova a Lourdinhas que veio a ser minha madrinha de baptismo, a quem
perdi o rasto há dezenas de anos. Muitos anos depois, a pedido do meu velhote, este primo
Miguel veio a ser ele também padrinho de baptismo do meu filhote, Pedro Miguel, para não
fugir à tradição, o que de novo deixou minha mãe bastante contrariada. O meu kota, sabendo
bem não poder contar comigo como um pai verdadeiramente responsável, quis desde logo
deixar esse anteparo ao neto, um padrinho rico que na sua e na mais que certa minha
ausência, pudesse proporcionar ao puto algum conforto eventualmente monetário se viesse a
dar-se o caso, mas sobretudo, a título de exemplo, de figura parental ou guia moral, coisas em
que eu falharia rotundamente segundo o seu ponto de vista. No que não se enganou, de
facto…

Havia também a casa dos tios Rochartre e Dina, humilde apartamento de rés do chão sem
nada de especial, aparte um certo ambiente espectral de certo modo incómodo para a minha
sensibilidade exacerbada. Era de resto o sítio que eu menos frequentava e só lá ia de
obrigação, na companhia dos mais velhos para qualquer visita forçada e sem importância. Uma
seca.

Esses só tinham tido uma filha única, a prima Nita que tinha casado com o Manuel Álvares e
tinham por sua vez três filhos, o Fernandinho das Pitas-Pitas, da minha idade e que devia a sua
alcunha ao facto de adorar galinhas, de brincar com elas e até com miniaturas de plástico
amarelado, que punham ovos minúsculos quando se lhes pressionava o corpo contra as patas.
Aquilo a mim dava-me uma nojeira, dado que sempre fui incapaz de segurar numa galinha
viva, nem sequer morta, sempre tive malapata com esses bichos de penas, bico acerado e
olhinhos redondos e cruéis e achava aquilo uma paneleirice pegada. As únicas aves que
minimamente tolerava eram as marinhas, tipo patos, gansos, flamingos, talvez por terem
penas alvas e sobretudo estanques. De longe também apreciava as de rapina, pela crueldade,
a objectividade, a frieza…

Havia ainda dois irmãos mais novos, o Luís e a Ana, com quem nunca vim a ter muita
intimidade ainda que fôssemos praticamente da mesma geração. Essa família foi viver para o
Porto e tirando o meu velho que os visitava com frequência, pois como vim a saber mais tarde
mantinha uma amásia nessa cidade e era de facto muito kamba do Manel Álvares e da Nita,
praticamente perdemos o contacto com eles.

Ou finalmente a casa velha dos meus avós, onde fui criado entre estátuas de gesso em
tamanho natural e frondosos limoeiros, num quintal enorme onde também existia uma
capoeira imensa com dois gigantescos galos brancos de olhos encarnados e aguçados esporões
nas patas blindadas de um amarelo vivo e doentio, tal como os enormes bicos de marfim que
povoaram de pesadelos a minha mais recôndida infância, apenas devido a uma graçola
inconsequente de um dos meus tios, que entre risotas sugeriu que eu tivesse sempre muito
cuidado na proximidade destas bestas, não fossem elas arrancar-me a pilinha, com alguma
bicada traiçoeira. É claro que ele e todos os adultos presentes no momento imediatamente
esqueceram o assunto, não imaginando o quão fundo tal ameaça calara na minha mente febril
e fantasiosa, de tal modo que nunca mais pude olhar para tais aves sem uma ponta de rancor e
medo, fugindo espavorido para dentro de casa e o colo protector de alguma das criadas, logo
que surpreendia alguma delas à solta, esgaravatando e debicando o solo, lá para os fundos do
quintalão.

O meu avô Manoel tinha a mania da fotografia, de modos que existia uma colecção
mirabolante de instantâneos plasmados em vidro, pois era ainda o tempo dos dagarreótipos e
das máquinas de fole, com toda a gente em pijama ostentando triste caras pendentes de sono,
os homens ainda por barbear e as senhoras meio descabeladas e com rolinhos na cabeça, pois
ele iniciava as sessões de manhã bem cedo, mal toda a gente se levantava. Em quase todas
estas fotografias sou eu o centro das atenções, com barretinas na cabeça, as enormes orelhas
espetadas e os dentes de ratinho sobressaindo dos lábios, deitado nalgum colchão de praia ou
brincando pelo chão, ou ainda ao colo de qualquer adulto, ou alguma das criadas.

Também se vêem esporadicamente algum dos cães da família, Kaiser o enorme setter fulvo
ou o triste do Bobby, malhado e minúsculo, que nem raça tinha e andava sempre a fugir da
voraz boca do outro, que aparentemente o odiava e perseguia implacavelmente e sem quartel.

3)

A minha mãe, moça alentejana, de Beringela-Aquela, alma simples e despretensiosa,


condescendente e tolerante o quanto baste, mas como boa nativa do signo Carneiro, capaz de
se tornar assaz teimosa, intransigente e até mesmo de índole dubitativa, quando lhe chegava a
mostarda ao nariz e tinha que impor a sua opinião ou defender quaisquer posições, encostou
firmemente os pés à parede e determinou cortante e peremptória, sem contemplações ou
lugar a dúvidas:

- Não, João Manuel! O menino não se vai chamar Miguel porque eu não quero! Lembra-te
do teu irmão… E quanto a este assunto basta! Acabou-se a conversa! - aquando a mera
sugestão de meu pai, nesse sentido, por nada de especial, apenas para se manter dentro da
tradição familiar.

Assim, de uma penachada só, o meu tio Miguel, irmão segundo de meu pai, apenas um ano
mais novo que ele, se viu privado de apadrinhar o sobrinho, dando-lhe o seu nome, apanágio e
sorte. Foi esse precisamente o motivo da recusa tão veemente de minha mãe. É que, segundo
ela, os Miguéis da família tinham uma propensão exagerada para a malapata, isto é, a falta de
sorte. E desta posição não abdicou, não obstante todos os argumentos do meu velho.

Eis pois que o meu outro tio, o Juca irmão terceiro, nove anos mais novo que o meu pai, se
viu subitamente promovido à responsabilidade de apadrinhar o sobrinho, dando-lhe o seu
nome, apanágio e eventual sorte. Daí eu chamar-me José Manuel, como ele.

Mal ela sabia, coitada que ambos os manos já estavam de há muito com o destino marcado
e que nada nem ninguém podia alterar a sua sorte fatídica, bem como a mais dramática ainda
de um primo irmão do meu pai, também ele de nome Miguel sendo todos bastante jovens, ao
tempo e longe portanto ainda dos episódios que haviam de cercear-lhes as curtas vidas, tão
prematuramente. A velhota porém com aquele instinto infalível que às vezes a caracterizava,
não abdicou da sua e levou-a avante contra tudo e todos. O que em nada veio a alterar o meu
percurso futuro, dado que aparentemente também eu trazia o destino marcado desde o berço
ou antes ainda, desde a configuração astral desenhada nos céus aquando da minha concepção.

Mas ela olhava com particular atenção para o percurso do meu tio Miguel, desde muito cedo
um inconformado, um inadaptado, um aventureiro potencial avant-la-lettre. Ainda mal saído
da adolescência, assim que concluiu o curso geral dos liceus e sentindo-se asfixiado pela
atmosfera política que grassava no país decidiu-se a tentar a sorte no estrangeiro, pelo que
emigrou para Londres.

Nunca soube propriamente as vicissitudes que por lá passou. Existiam umas velhas
fotografias a preto e branco, desse período, em que ele aparecia aparentemente alegre e
satisfeito rodeado de rapazes e raparigas loiros e trigueiros, empoleirados na varanda de um
prédio, todos risonhos. Deve-lhe ter ficado dessa época a sua acentuada preferência por
estrangeiras, pois daí em diante só engatou mulheres de outras culturas e latitudes, jamais
portuguesas.

Passado algum tempo regressou à base, com a saúde algo debilitada, mas foi estadia de
curta duração, tendo partido logo de seguida para o Brasil, a bordo do Vera Cruz, uma das jóias
da coroa, do tempo em que ainda tínhamos uma frota mercante de gabarito internacional.
Também existiam umas velhas fotografias, ilustrando essa viagem, em que se via o tio Miguel
muito magrinho e escorreito, passeando pelo tombadilho sempre na companhia de belas
mulheres, ou ainda de calções e raqueta de ténis, tentando acamar a sua poupa de cabelo
riçada e teimosa, que tanto trabalho lhe dava a domesticar, chegando ao ponto de ter de
engomá-la com ferro quente para conseguir alisá-la.

Mais uma vez não tive acesso a grandes pormenores sobre esta sua estadia, ainda que ele
fosse bastante loquaz, divertido e fantasioso comigo, seu único e portanto preferido sobrinho.
Contudo e ainda que me contasse mil e umas histórias raramente se detinha sobre esses
períodos da sua vida.

Constava que desde cedo a sua saúde não era grande coisa e fora precisamente lá pelos
Brasis que o que quer que fosse de que ele sofria, se agudizara e acabara forçando o seu
regresso a climas menos rigorosos e mais propícios ao seu organismo. Parece que aquando a
sua estadia em terras da Britânia tivera um principio de tuberculose, doença então muito em
voga entre a juventude do pós guerra e que mais tarde na humidade dos trópicos, os bacilos
revigoraram-se com tal força que a coisa avassalara e tomara proporções preocupantes. O
certo é que teve de embarcar de regresso com urgência e arranjou maneira de ser colocado
nos Açores, cujo clima é o ideal para quem sofre de fraquezas pulmonares.

Nesse tempo já ele trabalhava num banco, a exemplo do meu pai, que tendo tentado
primeiro a carreira de professor primário, em cujo Magistério conhecera a minha mãe, acabara
por desistir sem terminar o curso, optando pela carreira na banca privada.

Por essa altura já se transformara num verdadeiro british gentleman, com os seus lenços de
pescoço em seda pura, os fatos claros de linho cru e sapatinhos de duas cores, capaz de ver
uma mulher sozinha sentada numa esplanada tomando chá, como só as inglesas e
escandinavas tinham coragem de se apresentar, a perna cruzada sob um vaporoso vestido
estampado de cores alegres, voluptuosa cabeleira loira ou ruiva coberta por um largo chapéu
de palha e metendo-se no carro fazer dois ou três ou cinco quilómetros se fosse preciso para
lhe aparecer de surpresa, os braços cobertos de flores e um sorriso cativante de marialva,
enquanto a seduzia num inglês perfeito de Oxford.

Sempre dizia meio a sério meio na brincadeira que o seu ideal era arranjar uma enfermeira,
como amante e companheira, que lhe servisse quer de mulher na cama, quer de curandeira,
nas crises…

Comigo sempre se esforçou por mostrar-se alegre, companheiro e cúmplice. Fingindo jogar-
me a mão à pilinha, indagava se eu já tinha namorada e se eu corava, fugindo à pergunta,
rindo-se comentava que já era tempo, ao menos de eu começar a bater umas punhetinhas.

Fazia por perder quer ao xadrez, quer ao bilhar, com verosimilhança e sem dar muito nas
vistas, chegando mesmo a convencer-me que eu lhe ganhara com esforço e mérito bastante,
coisa que o irmão, o meu tio e padrinho Juca jamais me consentiu, dando-me cada abada que
me deixavam furioso e revoltado.

Nas viagens que às vezes fazíamos, procurava entreter-me o tempo todo, com relatos
fantasiosos de aventuras de caw-boys e índios, navegadores ancestrais e descobridores de
terras virgens, exploradores de vastos continentes, faquires, feiticeiros bantús, faraós antigos e
civilizações perdidas como a Atlândida ou a Terra de Mú, extremamente detalhados e
convincentes, com uma voz e dicção especiais de artista de rádio, em sofisticados
brasileirismos como só se ouvia nos noticiários do cinema.

Era de facto um extraordinário contador de histórias e encheu-me a cabeça de fantasias e


sonhos irrealizáveis. Talvez venha daí o meu fascínio pela literatura e a ficção, bem antes de
saber ler.

Quanto ao irmão Juca era precisamente o oposto, calado, atlético, solitário, pouco dado a
confidências e expontâneidades, o cabelo sempre um pouco comprido, amigo de copos e
farras, durante a juventude, optara depois por seguir o curso do Alfeite, formando-se com
distinção como engenheiro mecânico naval. O primeiro da família a ostentar um curso
superior, orgulho não manifesto de sua mãe, a minha saudosa avó Isabel. Fez duas comissões
em África, na Guiné no mais aceso da guerra colonial e entre outros louvores por coragem e
capacidade de comando sob fogo inimigo, foi também o percursor da primeira operação
salvamento submarino de grande envergadura, feito no país. Com uma equipa de homens rãs
arranjara e substituíra a hélice de um navio debaixo de água, poupado ao erário publico largas
centenas de milhares de contos de réis.

( Retratar o Juca e sua influência, e desvendar um pouco o pouco que sei sobre a família
materna, após o que se conclui a saga no conto AS BELAS LETRAS )

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