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de um conhecimento próprio, traduzido em forma literária. E geralmente sob a tutela de
uma personalidade totêmica: um artista, um autor, isto é, um realizador
cinematográfico. Os cineclubes que incorporam ou corporificam essa cultura cinéfila
são, assim, reconhecidos pela Academia porque esta pode identificar um autor e uma
linguagem dita superior, a da escrita. Mas a imensa maioria dos cineclubes se
caracteriza justamente pelo caráter coletivo e anônimo de sua organização, em que não
se destacam personalidades – salvo exceções, claro – e pela inexistência de uma
producão literária própria; o que mais caracteriza o cineclube é o debate em sua forma
oral. Mesmo os boletins informativos ou as fichas de filmes que marcaram toda uma
época do cineclubismo em todo o mundo eram, em sua quase totalidade, reproduções
de textos de revistas e outras fontes externas. A introdução dessa cinefilia – e, por
tabela, dos cineclubes - nos estudos de cinema, estabeleceu justamente uma
abordagem, um corte elitista mais ou menos idêntico ao que motivava grande parte da
exclusão do gosto pelo cinema (a cinefilia da pessoa comum) e dos cineclubes da
História do cinema. Esses autores reconhecem os cineclubes de elite do final dos anos
20 (Gauthier) ou os círculos de cinéfilos do início dos anos 50 (De Baecque), que
frequentavam a Cinemateca, algumas salas de arte e talvez uma dúzia de cineclubes
em Paris – quando existiam cerca de 10.000 cineclubes na França.
Mas eles não ficaram de fora apenas por isso. Os cineclubes definem-se
essencialmente por: a) serem associações entre iguais, de gestão coletiva e
democrática, b) não terem fins lucrativos: ninguém se apropria privadamente dos
resultados econômicos da atividade - se e quando estes existem – que devem ser
obrigatoriamente reinvestidos na própria instituição, e c) terem como objetivo a
apropriação do cinema, isto é, de serem instrumentos para o acesso, a fruição, a
informação, o conhecimento, a formação, a preservação e expressão de identidades
comunitárias, culturais, étnicas, etc., separadamente ou de forma combinada. Em
outras palavras, o cineclube não tem dono, é propriedade coletiva, comunitária; não é
uma atividade comercial, não é um empreendimento capitalista e, finalmente, é uma
instituição criadora de valores (como diria Gramsci), uma ferramenta política para o
autoconhecimento de todo tipo de comunidade, seja territorial, cultural, étnica ou de
classe. Essas três características, exclusivas dos cineclubes quando todas reunidas,
sempre foram motivo para mais que sua exclusão: para uma verdadeira e constante
perseguição em toda a sua história e em todos os países. Os cineclubes são perigosos
para as instituições hegemônicas em vários sentidos. O comércio do cinema, a chamada
indústria cinematográfica, os vê como concorrentes a serem literalmente eliminados
(apesar dos cineclubes sempre terem sido importantes formadores de público para o
cinema em geral). Hoje, essa concorrência se apresenta travestida de supostos direitos
autorais – quando se trata, na verdade, de direitos patrimoniais ou de propriedade
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industrial – como se não fossem justamente as grandes corporações cinematográficas
as que mais sujeitam autores a abdicarem de seus direitos em negociações
absolutamente desiguais. Os cineclubes sempre ameaçaram todas as igrejas e dogmas,
e foram perseguidos por impiedade e imoralidade – justamente ao não acatarem a
censura estabelecida por aquelas organizações. E os cineclubes sempre combateram –
e seus membros e frequentadores foram por isso frequentemente presos e abusados –
censuras, polícias e todas as formas de poder que cerceiem as liberdades e direitos em
qualquer circunstância. A História do Cineclubismo, que nunca foi escrita, é também
uma longa trajetória de exclusão, abandono e perseguição.
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Quase todos os movimentos estéticos do cinema surgiram dos cineclubes como o
expressionismo francês, o neorealismo italiano, a nouvelle vague francesa, os cinemas
novos do Brasil, da Inglaterra, da Tchecoslováquia, bem como o cinema experimental
ou de vanguarda, um pouco em toda parte. No limite, nos países onde não existe uma
indústria do cinema organizada, o que existe de cinema se organiza em torno ou se
origina dos cineclubes. Hoje já há países ou regiões – inclusive no Brasil, onde 90% dos
municípios não têm cinemas - em que existem mais cineclubes que salas comerciais. No
outro extremo, os Estados Unidos são provavelmente o país com o maior número de
cineclubes na atualidade: lá toda cidade tem a sua film society.
Por tudo isso, é tão estranho e ao mesmo tempo revelador que tão pouco se
tenha escrito – ou refletido de forma estruturada – sobre os cineclubes. É forçoso
lembrar, no entanto, que desde o final dos anos 50, os chamados Estudos Culturais –
de Richard Hoggart, Stuart Hall, Raymond Williams, E.P. Thompson e outros –
recuperaram a noção do papel do público e de suas instituições nas artes e no campo
do audiovisual. A esses, seguem-se as autoras que, baseadas na tradição aberta por
Emilie Altenloh, mas sobretudo pela exclusão das mulheres no terreno do cinema,
aprofundaram a questão do público e de suas instituições, mas com uma ressonância
muito mais ampla: Janet Staiger, Martha Hansen, Annete Kuhn, entre outras. Mas esses
estudos, de resto essenciais para a compreensão das relações sociais estabelecidas em
torno do dispositivo cinematográfico, não abordam especificamente o cineclubismo.
O Brasil tem uma forte tradição de cineclubismo, que também vem desde o início
do século passado, constituindo um movimento cultural que influenciou muito não
apenas o cinema brasileiro, mas a cultura cinematográfica como um todo. Foi
provavelmente o cineclubismo brasileiro que rompeu de forma mais evidente e
profunda com o padrão elitista de cineclubismo herdado do modelo francês que,
combinado com as práticas paternalistas patrocinadas pela Igreja, criou um modelo
que influencia até hoje cineclubes em todo o mundo. Contudo, por aqui também os
cineclubes foram ignorados pela reflexão acadêmica. Pelo menos até o início deste
séculoÉ um levantamento que realizei recentementeiii revelou a existência de um bom
número de artigos e trabalhos acadêmicos sobre aspectos bem diversos do
cineclubismo em nosso país. O texto de Priscila Sales, que eu já havia descoberto
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antes, se destaca qualitativamente nesse conjunto, pela consistência e coerência com
que determinou seu objeto e a abrangência que deduz da experiência do Clube de
Cinema de Assis.
Contar a história de um cineclube pode não ter maior interesse para quem não
participou ou conheceu a experiência. Mas aqui Priscila Sales consegue localizar e
mostrar a importância de um cineclube como paradigma de uma organização da
comunidade universitária inserida na realidade de uma cidade média do interior do
estado, neste caso São Paulo. Ela revela como essa experiência estabeleceu uma rede
de conexões culturais institucionais e informais que culminavam na formação – e na
busca – do seu público. E como essa prática evolui em diferentes momentos e
contextos igualmente emblemáticos da história recente do País. É uma história que vai
muito além da narrativa factual. Mas, ao mesmo tempo, um dos aspectos mais
interessantes do trabalho que embasa este livro é justamente a prospecção,
organização e análise dos fatos, através dos documentos que revelam essa trajetória,
seja no que me parece ter sido uma verdadeira aventura de descobrimento, nos
arquivos do cineclube e na revelação de um dossiê do cineclube na Cinemateca
Brasileira, ou seja na articulação heurística desses componentes com a pesquisa na
imprensa de Assis e em diversas outras fontes que a autora percorreu e integrou neste
trabalho.
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(Título do livro) é o resultado de uma pesquisa acadêmica séria e consistente
mas, para mim, bem mais: é sobretudo um trabalho que consegue reproduzir uma
experiência cultural de forma a apresentá-la como uma ferramenta para a compreensão
do que é um cineclube. E por isso é também um estímulo para a reflexão, acadêmica
e/ou informal, e para o engajamento cultural, para a atividade cineclubista.
i
La passion du cinéma – Cinéphiles, ciné-clubs et salles spécialisées à Paris de 1920 à 1929. AFRHC – École des
Chartes. 1999.
ii
La cinéphilie – Invention d’un regard, histoire d’une culture, 1944-1968.Fayard. 2003 (Existe edição brasileira)
iii
Bibliografia cineclubista brasileira (2000/2017) – disponível em
https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2017/10/reuni-aqui-os-principais-textos.html