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O JUÍZO MORAL NA CRIANÇA segundo PIAGET

TEXTO 1:

(Texto elaborado a partir de recortes dos artigos: “O desenvolvimento humano na teoria de Piaget”
de Márcia Regina Terra; “Desenvolvimento moral: de Piaget a Kohlberg”, de Lucila Diehl Tolaine Fini,
publicado na revista Perspectiva, Florianópolis, 9 (16): 58-78, Jan/Dez. 1991; “Piaget: que diabo de
autonomia é essa?”, de Wilson Correia, UNICAMP - Campinas, Brasil, publicado em Currículo sem
Fronteiras, v.3, n.2, p.126-145, Jul/Dez 2003)

Estudando o desenvolvimento moral, Piaget preocupou-se com o aspecto específico


do julgamento moral e com os processos cognitivos subjacentes a ele. Estudou o
desenvolvimento moral e definiu estágios através de entrevistas e observação de crianças
em jogos de regras. As pesquisas de Piaget lhe permitiram concluir que existem diferenças
quanto ao respeito a regras em crianças de idades diferentes, distinguindo-se as fases de
anomia, heteronomia e autonomia moral.
Para Piaget, existe um desenvolvimento da moral que ocorre por etapas, de acordo
com os estágios do desenvolvimento humano. Segundo Piaget, “toda moral consiste num
sistema de regras, e a essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o
indivíduo adquire por essas regras” (Piaget, 1994, p. 11).
Por diferentes etapas, então, a criança faz o percurso que a conduz da amoralidade à
autonomia moral, identificada com a capacidade de exercer a própria faculdade racional e
de elaborar bons juízos morais, sempre pela via cognitivista, do raciocínio lógico-formal.
Aliás, a proposta de Piaget é a de: “estudar o julgamento moral, e não os comportamentos
ou sentimentos morais” (Piaget, 1994, p. 7). Nesse sentido, a capacidade de julgar e efetuar
juízos morais pela criança ganha toda a centralidade possível.
Assim sendo, para Piaget o desenvolvimento da moral abrange 3 fases:

a) ANOMIA (crianças até 3-4 anos), em que a moral não se coloca, ou seja, as regras são
seguidas, porém o indivíduo ainda não está mobilizado pelas relações bem x mal e sim
pelo sentido de hábito, de dever.
Expondo a linha de raciocínio piagetiana, Freitag (1992, p. 180-181) assinala que o estágio da
pré-moralidade, entre zero e cinco anos de idade, é aquele no qual a criança não manifesta
noção de regra ou consciência moral (por isso “anomia” - sem regras) O que predomina
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nesse estágio é a dependência da regularidade motriz (regra motora), fundamentalmente os


gestos de repetição imitativa. A compreensão da essência da regra ainda não é verificada,
embora a criança já consiga copiar certos tratamentos dados à regra pelos adultos. Além
disso, embora a criança brinque em jogos sociais, ela ainda não domina o sentido abstrato
das regras que esses jogos implicam, não manifestando consciência delas, nem a
capacidade de fazer julgamentos morais.

b) HETERONOMIA (crianças até 9-10 anos de idade), em que a moral é igual à autoridade,
ou seja, as regras não correspondem a um acordo mútuo firmado entre os jogadores, mas
sim como algo imposto pela tradição e, portanto, imutável (regra coercitiva e respeito
unilateral).
Na fase de heteronomia moral a criança percebe as regras como absolutas, imutáveis,
intangíveis. As regras têm um caráter místico podendo ser consideradas como de origem
divina. Nessa fase a criança julga a ação como boa ou não com base nas consequências dos
atos, sem uma análise mais ampla e sem considerar as intenções do autor da ação.
Considera que se um indivíduo foi punido por uma determinada ação, esta ação é errada.
A criança tende a considerar que sempre que alguém é punido esse alguém deve ter feito
algo de errado, assumindo uma conexão absoluta entre a punição e o erro. Para uma criança
de seis anos, se um menino deixar seu doce cair em um lago ele é culpado por ser bobo e
não deve ganhar outro doce. A criança de seis anos dirá provavelmente que um menino que
quebrou cinco copos enquanto ajudava a mãe é mais culpado do que aquele que quebrou
um copo enquanto roubava geleia.
Piaget percebeu que a criança pequena tem dificuldades para levar em conta as
circunstâncias atenuantes enquanto um adolescente já faz julgamentos com base na
equidade, sendo capaz de pensar em termos de possibilidades e de um número maior de al-
ternativas.
Assim, o estágio da heteronomia, dos cinco aos oito anos de idade, é caracterizado pelo
REALISMO MORAL, em que a regra tem uma validade absoluta por vir de Deus, pais,
professores, amigos e outros adultos, merecendo respeito absoluto. Aí a regra tem um valor
em si mesmo, é permanente, inflexível, sagrada, fixa, imutável. Por isso, os detalhes da
regra não são compreendidos, muito menos analisados pela criança. Nesse sentido, embora
saiba o que é começo e fim do jogo, por exemplo, bem como quem é o perdedor e o
ganhador, dado o realismo moral de que está tomada, a criança ainda não é capaz de
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articular a regra em uma perspectiva hipotético-conceitual e abstrata. É a fase do realismo


moral, ainda preso à heteronomia.

As obrigações são percebidas como impostas de fora e não como


elaboração da consciência. O bem é definido de acordo com a
obediência correta à regra. As regras e as diretivas não podem ser
seguidas de forma meramente aproximativa. Impõe-se seu
seguimento rígido, ao pé da letra. A responsabilidade pelos atos é
julgada conforme as consequências objetivas por eles provocadas e
não de acordo com as intenções. O tamanho do castigo deve ser
equivalente ao tamanho da mentira ou do dano objetivo causado.
Um menino de nossa pesquisa paulista sintetizou essa moralidade
heterônoma na fórmula: ‘Quebrou um prato, apanha uma vez;
quebrou dois, apanha duas vezes’” (Freitag, 1992, p. 180).

c) AUTONOMIA, corresponde ao último estágio do desenvolvimento da moral, em que há a


legitimação das regras e a criança pensa a moral pela reciprocidade, quer seja o respeito a
regras é entendido como decorrente de acordos mútuos entre os jogadores, sendo que
cada um deles consegue conceber a si próprio como possível 'legislador' em regime de
cooperação entre todos os membros do grupo (regra racional e respeito mútuo).
Na fase da autonomia moral o propósito e consequências das regras são consideradas pela
criança e a obrigação é baseada na reciprocidade. A criança se caracteriza pela moral da
igualdade ou de reciprocidade; percebe as regras como estabelecidas e mantidas pelo
consenso social. Piaget constatou que por volta de 10 anos a criança passa a perceber a
regra como o resultado de livre decisão, podendo ser modificada, e como digna de
respeito, desde que mutuamente consentido.
Ele pode ser dividido em duas fases: de semi-autonomia e de autonomia plena.
O agir sem flexibilizar a regra da fase heterônoma começa a ser modificado quando a criança
se aproxima do estágio intermediário da semi-autonomia (entre 8 ·e 12 anos), uma espécie
de ponte entre a heteronomia e a autonomia plena, quando o conhecimento das regras
morais é profundo e sofisticado. Contudo, embora esse estágio seja marcado por certa
flexibilidade, relativização, generalização e diferenciação com relação a direitos e deveres, as
regras não estão plenamente internalizadas, isto é, o indivíduo ainda não as fez suas. Isso
significa que ele ainda não alcançou a plena consciência das regras, razão pela qual não se
pode dizer que ele empreendeu uma elaboração pessoal das mesmas.

É só depois, após os treze anos de idade, que há uma maior conscientização e um maior
detalhamento da regra (e aí entra-se na fase da autonomia moral propriamente dita). É o
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momento de rever, debater, discutir e analisar as regras morais, modificando-as segundo


os limites do consenso na vida em grupo, entre iguais. Daí, além do consenso, as ideias de
respeito, reciprocidade, cooperação e lealdade, grupalmente estabelecidas em meio aos
próprios pares. Assim, qualquer modificação no que tange ao mérito da regra só é
efetuada sob um processo de negociação e de estabelecimento de um acordo grupal, de
tal modo que atenda ao princípio da reciprocidade, da cooperação, justiça e equilíbrio na
vida em grupo.

As regras passam a ser percebidas como resultado de um consenso


coletivo, tendo cada membro desse coletivo o compromisso
recíproco de respeitá-las, desde que haja lealdade de todos com
essas regras. Havendo violação de uma das partes, o compromisso
rompe-se e a regra pode e precisa ser renegociada. Sua modificação
depende da concordância dos demais, isto é, de todos os atingidos
pelas modificações. A veracidade é considerada parte integrante do
respeito mútuo, e a reciprocidade, o pré-requisito para a validade da
norma. Nesse estágio, o realismo moral está superado. (Freitag,
1992, p. 181).
Esse conceito de autonomia exprime a ideia de que o autônomo é o ser racional, que
internaliza e respeita as regras do grupo por meio da cooperação e da justiça

Os estágios por que deve passar a consciência do sujeito são necessários à tomada de
consciência da regra, à internalização e à codificação da mesma. Sobre a consciência da
regra, podemos expressá-la, como vimos, sob a forma de três estágios:

No primeiro estágio, a regra ainda não é coercitiva, seja porque é


puramente motora, seja (...) porque é suportada, como que
inconscientemente, a título de exemplo interessante e não da
realidade obrigatória. Durante o segundo estágio (...) a regra é
considerada como sagrada e intangível, de origem adulta e de
essência eterna; toda a modificação proposta é considerada pela
criança como uma transgressão. Durante o terceiro estágio, enfim, a
regra é considerada como uma lei imposta pelo consentimento
mútuo, cujo respeito é obrigatório, se deseja ser leal, permitindo-
se, todavia, transformá-la à vontade, desde que haja o consenso
geral. (Piaget, 1994, p. 34).

Assim, o processo que compreende o percurso do egocentrismo ao altruísmo, da


heteronomia à cooperação intragrupal, iniciada por volta de 7-8 anos de vida, conduz a
criança a secundarizar o papel da coação social em benefício da compreensão dos
conceitos de justiça, reciprocidade e cooperação.
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É pela cooperação grupal que a responsabilidade objetiva vai, progressivamente,


cedendo lugar à responsabilidade subjetiva, com evolutiva flexibilidade e pela qual a
criança passa a valorizar a intenção (o que se quis de fato com a ação praticada), e não
apenas as consequências dos próprios atos e dos atos dos outros membros do grupo. Desse
modo, a sanção se justifica quando há intenção de causar dano, vindo a perder o sentido
quando tal intenção não existe. Daí a noção de justiça: “Aquele que pensa que tudo o que é
determinado pela autoridade é justo (e pouco importa qual é o conteúdo dessa
determinação...) carece da autonomia requerida pela verdadeira noção de justiça” (Freitas,
2003, p. 94).
Esse conceito de justiça pressupõe autonomia quanto à verdadeira noção de justiça,
implicando a ideia de igualdade: “a justiça só tem sentido se for superior à autoridade”
(Piaget apud Freitas, 2003, p. 94). A razão suplanta o mundo adulto. Graças a esse
refinamento no conceito de justiça, a criança passa da igualdade quantitativa para a
igualdade eqüitativa, indo da noção matematizada da primeira à ideia de proporcionalidade
da segunda, dando ênfase às peculiaridades de cada situação e circunstância singulares.
Sanções justas são as baseadas na reciprocidade, e não simplesmente na expiação ou
punição. Responder pelos próprios atos é restabelecer o equilíbrio perdido com a infração
praticada.

Referências bibliográficas:
FREITAG, B. (1992) Itinerários de Antígona: a questão da moralidade. 2. ed. Campinas: Papirus.
FREITAS, L. (2003) A moral na obra de Jean Piaget: um projeto inacabado. São Paulo: Cortez.
HOUAISS, A. & VILLAR, M. de S. (2001) Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva.
LA TAILLE., Y. O lugar da interação social na concepção de Jean Piaget. In LA TAILLE; OLIVEIRA, M.K;
DANTAS,H. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. 13.ed. São Paulo:
Summus, 1992, p.11-22
________Desenvolvimento do juízo moral e afetividade na teoria de Jean Piaget. In LA TAILLE;
OLIVEIRA, M.K; DANTAS,H. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. 13.ed.
São Paulo: Summus, 1992. p.47-74
PIAGET, J. (1994) O julgamento moral na criança. 2. ed. Trad. E. Lenardon. São Paulo: Summus.
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TEXTO 2:
O DESENVOLVIMENTO DO JUÍZO MORAL SEGUNDO JEAN PIAGET
(texto elaborado a partir de “O juízo moral na criança” de Piaget)

“A criança ama a regra; na regra ela encontra o instrumento mais


seguro de sua afirmação; pela regra, ela manifesta a permanência de
seu ser, de sua vontade, de sua autonomia.” Jean Chateau

A disciplina refere-se ao cumprimento de regras e estas, segundo Piaget (1932-1995),


são construídas na relação da criança com seu meio.
Ao nascer, a criança age em função do seu ritmo interno, sob o forte comando das
necessidades básicas do seu corpo e impõe ao meio as suas regularidades de sono,
alimentação e mesmo de companhia e afeto. O organismo humano, como o de todos os
seres vivos, orienta-se na busca de uma adaptação a esse meio, efetuando trocas,
acomodando-se às situações e objetos, assimilando o real enquanto constrói sua
personalidade, sua forma de relacionar-se com o exterior, regulando seus impulsos às
exigências dos que o rodeiam.
Os sentimentos e as necessidades das crianças são inibidos inúmeras vezes e, cada
vez mais, em função das preferências dos outros, pela aprovação e reprovação do meio
circundante: “Desde o berço é submetida a múltiplas disciplinas e, antes de falar, toma
consciência de certas obrigações.” (Piaget, 1932-1994, p. 24)
A personalidade se constrói pela busca de adaptação, de um lado pela estrutura
cognitiva que se vai formando em estágios cada vez mais abrangentes e elaborados e, de
outro, pelo julgamento do bem e do mal, do justo e do injusto que lhe dá não somente
parte do seu dinamismo, mas todo o sentido de sua orientação. “É o julgamento de valor
que unifica a personalidade, com vistas à sua formação.“ (Amaral, 1978, p. 10)
Nem o bem, nem o mal são dados à priori. A decisão de como agir vai depender da
capacidade e responsabilidade de cada um em responder, por si mesmo, aos desafios da
vida em comum, da sua coragem e determinação em enfrentar a si mesmo e ao problema
moral da sociedade.
Freitag (1992) estudando a questão moral, conclui que não há um princípio de ação
inequívoco, racional, transparente, que nos diga para todo o sempre como agir, como julgar
e interpretar as ações alheias e as nossas, “a harmonia da consciência moral humana
simplesmente inexiste.” (Piaget , 1932-1994, p.08)
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Aliás, a questão “Como agir ?” acompanha a história humana em toda a sua


existência, pois “tudo que é humano põe então, cedo ou tarde, por um lado ou por outro, sob
uma forma ou outra, um problema moral. “ (Jankélévitch, 1981-1991, p. 10)
No decorrer dos tempos, o homem atribuiu valores às situações sociais e definiu
regras que constituíram um sistema, ao qual deve obediência e que é aprendido pelas
crianças desde pequenas.
Piaget explicou a forma de assimilação das regras sociais pela criança.

A CONSTRUÇÃO DAS REGRAS MORAIS


“A regra outra coisa não é que a condição de existência do grupo
social, e, se aparece como obrigatória à consciência, é porque a vida
comum transforma esta consciência em sua própria estrutura,
inculcando-lhe o sentimento de respeito.” Jean Piaget

Como já foi dito anteriormente, a criança pequena atende a princípio, às


regularidades do seu corpo e, aos poucos, percebe as regras do seu ambiente, passando a
agir em função delas. De início, essas regras são bastante confundidas, hábitos e regras sociais
não se diferenciam e passa um bom tempo até que ela perceba a diferença entre as
regularidades corporais e as regras culturais ou físicas. De todo modo a pressão do ambiente
mostrará à criança que há coisas que ela pode fazer dependendo do local onde está, outras
que deve fazer para ser aceita, diferenciando estas das necessidades do seu corpo.
Como a criança aprende?
Piaget tem uma enorme e complexa obra dedicada ao estudo desta questão
epistemológica. Sua maior contribuição foi a conceituação da inteligência para explicar que o
homem, como todo ser vivo, procura adaptar-se ao meio em que vive utilizando dois
processos complementares: a assimilação e a acomodação
Assim, em seu relacionamento com o meio ambiente físico ou social, a criança
constrói hipóteses sobre o que vê e testa-as para melhor adaptar-se. No campo moral não é
diferente, a criança passa por estágios sucessivos, regulares, na relação com o mundo em
que vive, de acordo com a sua idade, e o processo de construção do juízo moral depende da
troca que ela efetua entre os esquemas que possui e os estímulos que recebe. Há diferença
entre a estrutura do pensamento de um bebê, de uma criança de oito anos ou de um
adulto. Embora, funcionalmente, a busca da adaptação e do equilíbrio seja constante, a
estrutura que possibilita esse pensar diferencia-se, como se, de vários técnicos interessados
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em consertar um aparelho danificado, apenas um deles tivesse as ferramentas apropriadas,


enquanto os outros as estivessem procurando, testando as que possui para verificar sua
eficiência; num moto contínuo de novas aprendizagens e adaptações.
Quanto às regras morais, diz Piaget,
As regras morais que as crianças aprendem a respeitar, lhe são
atribuídas pela maioria dos adultos, isto é, ela as recebe já
elaboradas, e, quase sempre, nunca elaboradas na medida de suas
necessidades e de seu interesse, mas de uma vez só e pela sucessão
ininterrupta das gerações adultas anteriores (Piaget, 1994, p. 23).

A regra motora
O bebê, no estágio da Inteligência Sensório-Motora, cuja estrutura de pensamento é
pré-verbal e associal, vivencia o hábito, construído da generalização dos esquemas motores. A
criança tem uma necessidade de exercício, de experimentar sob várias formas, o objeto que
lhe é apresentado, até que o inclua num esquema de assimilação já conhecido. Depois
também acomoda-se ao objeto, modificando sua ação, testando novas possibilidades. É o
caso do jogo de bolinhas de gude, relatado por Piaget (1932-1977).
Ao receber algumas bolinhas, a criança de três anos faz com elas um ninho, escondê-
as, junta e separa, brinca como costuma brincar com qualquer objeto. Percebe então sua
natureza, sua facilidade em rolar e coloca-as numa cavidade para que fiquem seguras. Este
exemplo permite que se perceba como a criança procura adaptar-se, pelo equilíbrio entre
assimilação e acomodação , pela utilização dos esquemas que possui e a criação de novos,
permitindo a cristalização e ritualização das condutas. Novos esquemas se estabelecem, são
investigados e conservados, como se fossem obrigatórios e eficazes.
É necessário dizer que essa forma de agir sobre os objetos, por tal estrutura de
pensamento, corresponde à primeira forma de relacionar-se com o meio, havendo a cada
estágio de desenvolvimento novas formas, sucedendo-se umas às outras numa gama de graus
sucessivos e cada vez mais abrangentes. Segundo Piaget, a diferença da natureza das
estruturas reduz-se a isto: “Há, na criança, atitudes e crenças que o desenvolvimento
intelectual eliminará, na medida do possível há outras, que assumirão sempre maior
importância“ (Piaget, 1932-1977, p. 73)
Os objetos são fonte de curiosidade e de novas experiências, mas as crianças não
seguem regras, aplicam os esquemas conhecidos para, acomodando-se às peculiaridades
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dos objetos, assimilar novas maneiras de agir sobre eles e, progressivamente, torná-lo
rituais, anunciando sua socialização progressiva.
Segundo Piaget (1932/1977, p.75 ), a regra motora se confunde com o hábito, com
a forma da criança realizar suas atividades de rotina, como a maneira de mamar, dormir,
acordar, pegar um objeto, pedir pela presença da mãe, etc. A criança porém, não possui a
noção do respeito, a consciência da obrigação ou da necessidade da regra que aos poucos
irá construindo.

A regra coercitiva e o respeito unilateral.


Sem o sentimento da regularidade que caracteriza o estágio da regra motora, a
consciência dessa obrigação nunca apareceria, o que, porém não é suficiente para definir o
respeito às regras. Esse sentimento necessita, para surgir, da relação de pelo menos dois
indivíduos, da coação que o social exerce sobre a criança.
A criança de dois anos começa a diferenciar as leis físicas e sociais, distingue as
regras impostas daquelas que estabelece nas suas brincadeiras, passa também a querer
jogar não somente por seus impulsos motores, mas como vê os outros jogarem, quer cada vez
mais descobrir esse código e tem o sentimento de que deve agir desta mesma maneira.

Os menores que começam a jogar, aos poucos, são dirigidos pelos


maiores no respeito à lei, e, além disso, inclinam-se de boa vontade
para essa; virtude, eminentemente característica da dignidade
humana, que consiste em observar corretamente as normas do jogo.
(Piaget, 1932-1994, p 24).
Assimila pois as regras adotadas ao conjunto de instruções que disciplinam sua
vida, pelo respeito que vai adquirindo pelas pessoas. “É o respeito pelas pessoas que faz
com que as ordens que emanam destas pessoas adquiram força de lei na consciência
daquele que respeita. Portanto, o respeito é origem da lei” Bovet (apud Piaget, 1932-1977
p. 324 )
Esse sentimento, que domina os primeiros relacionamentos, gera a aceitação interior
das normas e o sentimento de obrigação, pela impressão da criança de estar em contato
com algo superior a ela e resulta “duma mistura sui generis de medo e afeição, que se
desenvolve em função das relações da criança com seu ambiente adulto.“ (Bovet apud
Piaget, 1932-1977, p. 324).
O sentimento do dever característico dessa fase, refere-se, então, menos à regra
em si, do que ao respeito da criança pelo mais velho. Trata-se do respeito unilateral, que
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justifica a característica de heteronomia dessa fase e a faz submeter-se às regras


exteriores.
As crianças, se questionadas sobre a origem das regras, explicam que elas advém de
um ser superior, o pai ou Deus, que as criou para serem seguidas, e que por isto, não podem
ser mudadas.
O que permite seja essa fase dominada pelo respeito unilateral é o domínio do
egocentrismo, caracterizado pela centração em si mesma e pela não diferenciação do
subjetivo com o objetivo. A criança assimila suas fantasias às opiniões recebidas e mistura
as regras advindas do meio exterior àquelas que quer seguir. Isto explica porque neste
período de 2 a 8 anos, as relações interindividuais são fundadas neste respeito unilateral
da criança pelo adulto, na admiração e na obediência. É um egocentrismo, no sentido de
uma transição entre o individual e o social, entre o estágio motor e o da cooperação
propriamente dita.
O egocentrismo, na medida em que promove a confusão entre o eu e o mundo
exterior, justifica o contágio, a necessidade da coação do adulto, a crença na origem divina
das instituições e sua ação comandada pelos mais velhos. “Egocentrismo e imitação forma
um só todo, como, em seguida, autonomia e cooperação” (Piaget, 1932-1977, p. 81)
Não é por acaso que quase todas as crianças assimilam as regras aprendidas por meio
da imposição dos pais e dos adultos em geral, através da interiorização das coações do meio
ambiente em função da sua subjetividade e, sem distinguir, o que vem desta última e o que
procede das pressões ambientais.
O REALISMO MORAL predominante nessa fase, se constitui numa tendência da
criança em considerar os deveres como subsistentes em si, que se impõem
obrigatoriamente, quaisquer que sejam as circunstâncias. A criança é heterônoma, realiza
suas ações por dever, sem se preocupar com o conteúdo das ordens recebidas e avalia os
atos não por sua intenção, mas de acordo com as suas consequências.
Segundo os estudos de Jean Piaget, o Realismo Moral é explicado por três
características:
1. O dever é essencialmente heterônomo, a criança obedece à regra e ao adulto, sem
realizar um julgamento. Todo ato que segue a regra é bom e a obediência define o bem;
2. A regra deve ser observada “ao pé da letra” e não sobre o seu espírito;
3. A concepção da responsabilidade é objetiva, concebe as regras como obrigatórias em si
e avalia os atos pelo seu resultado e não pela sua intenção.
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A criança prepara-se para introduzir-se num mundo de relações sociais.


Primeiramente sob a forma do Realismo Moral e através da coação, que como explica
Piaget representa a imposição de um sistema de regras de conteúdo obrigatório, do
exterior ao indivíduo.
Esse mecanismo de coação é bastante forte e domina todo o segundo estágio da
formação do juízo moral, o estágio das regras coercitivas.
Nunca há coação pura, respeito unilateral exclusivo, a criança por
mais submissa que seja tem a impressão de que poderia discutir as
regras, e a simpatia mútua pode envolver as relações por mais
autoritárias que sejam. Piaget, 1932-1977, p. 78
A cooperação pura também não existe, pois, segundo Piaget, 1932-1977, em toda
discussão, mesmo entre iguais, um dos interlocutores pode fazer pressão sobre o outro por
desafios ocultos ou explícitos, ao hábito e à autoridade. Aliás, a cooperação deve ser
entendida como o termo limite, o equilíbrio ideal para o qual tendem as relações de coação.
Na fase de Egocentrismo, se a criança que não tem a definição do seu eu, relaciona-
se com o mundo através da coação adulta, também é através da coação que se prepara para
a possibilidade de cooperação futura.

A regra racional e o respeito mútuo

O respeito mútuo é, por assim dizer, a forma de equilíbrio para a qual tende o
respeito unilateral, como a cooperação constitui a forma de equilíbrio para a
qual tende a coação, nas mesmas circunstâncias. (Piaget, 1932-1977, p. 83)

Neste período, de 10 à 11 anos em diante, caracterizado pela regra racional, a


criança começa a se submeter verdadeiramente às regras e a praticá-las como uma
cooperação real, forma dessas regras uma concepção nova: pode-se mudá-las com a
condição de haver entendimento entre os parceiros, porque a verdade da regra não está
mais na tradição, no ser distante e superior, mas no acordo mútuo e na reciprocidade. “A
cooperação substitui a coação, a criança dissocia seu eu do pensamento do outro” (Piaget,
1932-1977, p. 83) e somente então entra numa nova fase de relação com o mundo social, sob
sua forma mais avançada, possuidora das “ ferramentas “ necessárias, da estrutura que
permite a cooperação.
Descobrindo sua própria fronteira, conhecendo-se melhor, tem a possibilidade de
melhor conhecer o outro, dissociando-se dele. Cada vez mais apresenta suas ideias,
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discute seu ponto de vista comparando-o a outro qualquer, sente-se capaz de se opor às
ideias pré-estabelecidas e propor mudanças. Seguindo as regras pode então sentir-se capaz
de modificá-las, porque essas se interiorizam, tornam-se fatores e produtos de sua
personalidade.
O respeito unilateral, marcante no período anterior, impondo regras completamente
feitas, dá lugar ao respeito mútuo, como um método de controle recíproco e de
justificação do domínio moral. O respeito mútuo constitui-se não pela autoridade, mas
pelas relações entre iguais, embora composto pela afeição e medo, este refere-se ao
temor de decair perante os olhos do parceiro. Substitui a heteronomia intrínseca do
respeito unilateral por uma autonomia necessária a seu próprio funcionamento,
reconhecida pela elaboração da regra pelos próprios indivíduos a ela obrigados.
O respeito mútuo é, portanto, também, fonte de obrigações, mas não prontas e
impostas, e sim geradas pela reciprocidade, que não regula a avaliação final do bem ou do
mal, mas a mútua coordenação dos pontos de vista e das ações. A necessidade de
respeitar equilibra-se com a de ser respeitado.
A criança está preparada agora para a vida em comum, para o grupo, que é sempre
fonte de obrigações e regularidades, sendo capaz de ter consciência de sua ação e da ação
do outro, de perceber as intenções e consequências do que faz. O que não quer dizer que
todos os seus atos serão regidos pelo mais alto estágio da moralidade, o que mesmo nos
adultos não acontece.
A consciência do dever resulta, basicamente, de duas características que se
complementam: a instrução dada de um indivíduo a outro e a aceitação, o respeito por parte
daquele que a recebeu. O respeito que se tem pelo outro é que torna legitimada a regra
fixada por ele.
O respeito mútuo, do ponto de vista intelectual, libertando a criança das opiniões
impostas, em proveito da coerência interna e do autocontrole, substitui as normas da
autoridade pela norma imanente à própria ação, constituindo a possibilidade da
reciprocidade. Como diz Piaget:
A grande diferença entre a coação e a cooperação ou entre o
respeito unilateral e o respeito mútuo, é que a primeira impõe
crenças ou regras completamente feitas, para serem adotadas em
bloco, e a segunda apenas propõe um método de controle recíproco
e de verificação no campo intelectual, de discussão e de justificação
no domínio moral. (Piaget, 1932-1977 p. 84).
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E, como vimos anteriormente, somente a criança maior, possui as condições de


consciência e estrutura mental para agir por si própria. Esta troca do respeito unilateral para
o respeito mútuo nunca é, porém, tão completa ao ponto de desaparecer qualquer forma de
coação, aliás, como afirma Piaget, pois “o respeito mútuo ou a cooperação nunca se
verificam completamente. As formas de equilíbrio não só são limitadas, como também
ideais“ (Piaget, 1932-1977, p. 84).

Referências bibliográficas:

FREITAG, B. (1992) Itinerários de Antígona: a questão da moralidade. 2. ed. Campinas: Papirus

PIAGET, J. (1977). O julgamento moral na criança. São Paulo: Mestre Jou (Original publicado em
1932)

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