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Um Panorama sobre o Moderno Teatro Brasileiro

O teatro brasileiro é um teatro em crise de desenvolvimento: a melhor, a mais


simpática entre as crises. Nestes últimos anos houve um surto polêmico cujos
resultados, especialmente no tocante ao repertório, são inegáveis. Talvez seja o
momento de passar da fase polêmica à fase construtiva. Afinal as revoluções,
que sempre começam dividindo, só podemos dizer que são bem – sucedidas
quando acabam unificando. (apud Jacobbi; 48: 15).

O encenador Italiano Ruggero Jacobbi - que chegou ao Brasil em 1946 e foi


convidado para trabalhar no Teatro dos Doze no Rio de Janeiro, formado por entre
outros por Fernanda Montenegro e Sérgio Brito - nos fornece nesta entrevista dada ao
Jornal do Brasil no dia 12 de junho de 1948 uma reflexão interessante sobre a
modernização do teatro brasileiro operada ao longo das décadas de trinta, quarenta e
cinqüenta.

Seu olhar estrangeiro nos permite observar um dado essencial nesta tão propalada
modernização do teatro no Brasil: que as mudanças ocorridas no ambiente teatral neste
momento histórico se configuram como “uma crise de desenvolvimento” e vai mais
além é “a mais simpática das crises”. Para compreendermos essa afirmação, devemos
ter em mente, que o projeto de modernização do teatro brasileiro se operou a partir de
uma série de rupturas e crises entre universos que se mesclavam: o universo das Cias
profissionais, que ainda mantinham como parâmetro um teatro voltado para o consumo
popular, ainda aos moldes da chamada Geração Trianon, e dos grupos de jovens
amadores, que travaram uma verdadeira batalha para desmontar aquilo que
consideravam um teatro antiquado, calcado na improvisação e na falta de unidade
cênica. Na tentativa da desconstrução deste paradigma teatral o ponto focal articulado
por esses grupos se concentrou na formação e aprimoramento técnico dos seus
componentes. Além disso, também devemos considerar a própria platéia consumidora
dos espetáculos que, de certa forma, ainda mantinha uma visão conservadora sobre o
que assistia e ia normalmente ao teatro para “rir, rir, rir” (Prado; 2001:20), e esperava a
entrada em cena dos grandes atores e atrizes – normalmente donos das companhias –
que arrastavam essas multidões aos teatros.

Edvaldo Cafezeiro e Carmem Gadelha analisam com muita propriedade a chamada


Geração Trianon. Iniciam a conceituação citando Brício de Abreu:

Convencionou – se entre nós chamar o Gênero de teatro leve, sem pretensões,


feito exclusivamente para rir, de “Gênero Trianon”. Oriundo de mestres da

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carpintaria teatral como Claudio de Souza, Gastão Tojeiro, Armando Gonzaga,
Heitor Modesto e Abadie Faria Rosa, que tiveram grandes sucessos no antigo
“Teatro Trianon” (que se erguia onde hoje se acha o “Cineac Trianon”), com
Cristiano de Souza, Leopoldo Fróes e depois Procópio Ferreira, esse gênero
perpetuou – se entre nós, tomando o nome do Teatro e emigrando depois para a
Cinelândia, onde estabilizou – se no infecto porão que o Sr. Vivaldo Leite
Ribeiro armou em teatro, com nome de “Rival” e que aluga por esse propósito.
(apud Cafezeiro/Gadelha; 1996:441).

Continuando a análise, destacam o modo de atuação da época que:

Na verdade, o “Gênero Trianon” e as revistas eram basicamente as formas


predominantes do fazer teatral carioca. (...) É o auge do sucesso de estrelas
como Dercy Gonçalves, Alda Garrido, e Cazarré, cujo trabalho se pauta pela
improvisação, fazendo do texto um roteiro básico. Tais improvisos dependem
da ativa participação da platéia – o verdadeiro interlocutor – e da capacidade
histriônica do ator para aproveitar – lhe os estímulos. Isso na revista. No
chamado teatro declamado, o texto é mais respeitado, porém não totalmente
livre de “cacos” inventados pelo ator, também histrião. Nos dois gêneros, o
espetáculo faz do ator quase um co – autor, em casos extremos” (Cafezeiro,
Gadelha; 1996:441, 442).

Além disso, também devemos observar que a configuração das companhias da


Geração Trianon ainda se pautavam nos moldes do emploi (emprego), resquícios de um
pseudo classicismo francês. Décio de Almeida Prado nos dá uma descrição saborosa
desta estruturação:

O ator cômico vinha assim se colocar, sem que ninguém sequer lhe disputasse
esse direto, no centro do teatro nacional. O que se exigia dele, de resto, não era
tanto preparo técnico, recursos artísticos, e sim ao contrário, que se mantivesse
sempre fiel a uma personalidade, a sua, naturalmente engraçada e comunicativa.

Os intérpretes menores do nosso teatro, os chamados característicos,


procuravam diversificar até mesmo no físico os seus desempenhos, usando e
abusando de perucas que iam terminar no meio da testa, de bigodes postiços, de
rugas pintadas grosseiramente no rosto. Faziam rir, conquistavam não raro as
platéias pela regularidade de seus desempenhos ou pela facilidade com que
mudavam de voz e de fisionomia, mas não possuíam personalidades
suficientemente fortes para sustentar o espetáculo. Já os cômicos de primeira
linha, um Procópio Ferreira (1898 – 1979), um Jaime Costa (1897 – 1967),
apresentavam ao público, a vida inteira, salvo ligeiras modificações, a mesma
imagem, o rosto e as inflexões que os espectadores tinham aprendido a admirar
e a querer bem. (Prado; 2001:21)

Sob esta perspectiva, de um teatro profissional ainda comungando com práticas


remanescentes da “graça brejeira” do século XIX, que sob a perspectiva dos jovens
atores amadores é completamente ultrapassada e deve ser modernizada, podemos
compreender a crise em desenvolvimento instaurada nos palcos nacionais.

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A historiadora Maria de Lourdes Rabetti circunscreve muito bem o período que os
estudiosos denominam de modernização teatral brasileira da seguinte forma:

Os estudos disponíveis para a história do moderno teatro brasileiro tem como


ponto comum as referências que o localizam no período que parte do final dos
anos 30, percorre a década de 40, culminando com a emergência dos primeiros
resultados evidentes deste processo chamado de renovação na primeira metade
dos anos 50. Neste arco do tempo observam nas cidades do Rio de Janeiro e de
São Paulo a nossa modernização teatral. (Rabetti; 1988: 6).

Observado este arco de tempo em que se concretiza a chamada modernização do


teatro brasileiro e, tentando escapar de uma possível dicotomia reducionista entre jovens
e velhos atores, devemos pensar sobre o significado daquilo que se costuma chamar de
teatro moderno no Brasil e no Ocidente. Tania Brandão nos traz reflexões valiosas
acerca desses conceitos, ao dizer:

O estudo da encenação moderna no Brasil é, portanto de importância


fundamental para que se compreenda o teatro atual do país. Significa rastrear o
processo de passagem do palco das divas, do século passado, para o palco do
encenador, em seus diferentes momentos. (...) Falar em teatro moderno é falar
em um conjunto de transformações da cena que começou a acontecer no final
do século passado, às margens do mercado teatral, e que determinou o
aparecimento do conceito de encenação.

Segundo J.J. Roubine, a transformação do espetáculo a partir dos últimos anos


do século XIX, foi favorecida devido “a coexistência de um desejo de ruptura e
de uma possibilidade de mudança’(p.22). A primeira, “o instrumento
intelectual”, era a recusa do teatro existente; a segunda, “a ferramenta técnica”,
foi a descoberta dos recursos da energia elétrica. O pano de fundo é a
constituição do mercado cultural, a emergência do jogo capitalista ao redor da
questão da arte, que a um só tempo permitiu e determinou, nas diversas áreas de
produção, o enfrentamento da especificidade mesma da arte, das imagens
artísticas. O processo significou o advento do encenador, o diretor; da noção de
encenação enquanto todo articulado ao redor de um cálculo estético. (Brandão,
1990:3,4)

Ao pensarmos o teatro moderno aliado ao processo que “significou o advento do


encenador, o diretor; da noção de encenação enquanto todo articulado ao redor de um
cálculo estético”, nos possibilita refletir que o teatro ocidental e também o brasileiro
tiveram um paradigma desmontado: O teatro, enquanto texto materializado em cena, o
chamado “textocentrismo”, e o deslocamento de um eixo – do teatro do texto para uma
manifestação teatral que também vai privilegiar as imagens. Beatrice Picon – Vallin
analisa brilhantemente essa questão imagética ao afirmar:

Já se caracterizou a imagem do visível “pela marca da pulsação entre o que


aparece e o que desaparece”, seria possível também distinguir a imagem e a
visão. A primeira seria um fenômeno óptico, ela começa e termina nos olhos, no

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sistema ocular. A segunda seria um fenômeno mental: ela começa nos olhos, é
no espírito que se realiza a arte do teatro que seria a arte, nascida da visão do
encenador,que deslancha e desencadeia a visão dos espectadores. (Vallin;
2006:91, 92).

Sob este ponto de vista: que desloca o eixo do teatro do texto para uma semiótica das
imagens, podemos compreender o embate que se travou no Brasil a partir dos anos
trinta e, das diversas rupturas ocorridas contra a estética da Geração Trianon, quando
correntes teatrais formadas por jovens atores, cenógrafos, intelectuais, buscaram
desarticular o histrionismo dos atores vedetes, da caixa de ponto, da falta de unidade
estética nos figurinos, cenários, adereços, iluminação e os demais componentes dos
espetáculos teatrais produzido nos palcos brasileiros de então.

Costuma-se fixar o ano de 1938, como emblemático para a modernização do teatro no


Brasil. Neste ano foram criados O Teatro do Estudante do Brasil, por Paschoal Carlos
Magno e o grupo Os Comediantes, formados entre outros por Luíza Barreto Leite, o
artista plástico – depois cenógrafo – Santa Rosa, Brutus Pedreira, Adacto Filho –
inicialmente diretor dos espetáculos. Ambos os conjuntos teatrais tinham uma mesma
motivação: transformar radicalmente os palcos brasileiros e desconstruir as práticas
teatrais ainda vigentes do século XIX formando técnicamente seus componentes de
forma mais substanciosa.

Paschoal Carlos Magno analisa seu impulso ao criar o Teatro do Estudante da


seguinte forma:

O Teatro do Estudante nasceu da minha mais total loucura. Eu tinha chegado


da Europa e via aqui a situação melancólica do teatro brasileiro, um teatro sem
muita orientação técnica, representado por atores e atrizes sem a menor
preparação. Digo melancólico, porque havia uma crescente ausência de público
e um número cada vez maior de companhias que multiplicavam seus frágeis
esforços, suas energias, sem encontrar eco por parte da platéia e da imprensa.
Naturalmente, é preciso não esquecer que antes de nosso retorno ao Brasil,
algumas pessoas isoladas haviam realizado obras gigantescas e que, neste país
onde a memória nacional não existe, esses homens de teatro foram duramente
esquecidos, sendo sua lembrança mutilada. Eu me refiro, por exemplo, a esses
homens que eu considero extraordinários na história do teatro brasileiro, que
foram Álvaro Moreyra e Renato Vianna. (Magno; 1978; 3).

Sob esse ponto de vista, devemos compreender que o início dos trabalhos do TEB foi
de vital importância para o teatro brasileiro. Desde a primeira encenação do grupo:
Romeu e Julieta, de Shakespeare, dirigida por Itália Fausta, se instaurou no Rio de
Janeiro, e posteriormente em todo o Brasil a idéia de um espetáculo em que todos os

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seus elementos estão bem articulados e sintonizados em torno de um diretor, a partir de
um estudo do autor, da época em que a peça ocorre e, um treinamento técnico para os
atores. Tania Brandão discute essa afirmação do moderno a partir da montagem de
Shakespeare pelo TEB:

Assim, a opção pela montagem do TEB parece essencial, pois ela sugeriu uma
mudança radical no pressuposto mais importante do teatro: a pedra de toque
para a afirmação do moderno, em um teatro em que os motores da cena eram os
atores e os atores eram antigos, teria que ser a formação de uma nova geração
de intérpretes, recrutada em novas bases. O desafio era grande, pois não
existiam diretores capazes de formar atores. (...) Foi a veterana Itália Fausta que
recorreu, para que ocupasse o cargo de diretora. (...) Tudo indica que
efetivamente Itália Fausta estava interessada em exercer a função de diretora,
que não existia no Brasil. Aqui era ainda a terra do ensaiador, profissional um
pouco mais tarimbado ou simples cabeça do elenco. (Brandão; 2009: 96,97).

A historiadora Maria de Lourdes Rabetti também analisa essa modernização


proposta pelo TEB e seu fundador ao dizer:

Em Londres, Paschoal entrou no teatro. Escreveu peças, mas não é isso que o
fez popular. Abriu o apartamento de diplomata, numa época de intensa
austeridade dos ingleses, a atores famosos, John Gielguld, Beatrix Lehman,
Laurence Olivier, etc., alguns homossexuais. Teve um caso de amor com o
bissexual Michael Redgrave... jovem bonito, cheio de charme, apelidaram – no
de The Brazilian Bombshell, o apelido de Carmem Miranda em Hollywood. Um
sucesso absoluto. (apud Rabetti; 1988: 12).

As montagens do Teatro do Estudante do Brasil permitiram que primeiramente o


público carioca e, posteriormente o público de diversos estados brasileiros entrasse em
contato com os grandes clássicos da dramaturgia universal e brasileira, tendo como foco
das suas encenações a pesquisa referente a todos os elementos que compõem a cena.
Mas, também devemos considerar as reações das cias profissionais a proposta
renovadora do TEB, principalmente em relação do novo repertório levado a cena por
eles. Tania Brandão também analisa essa reação dos atores profissionais:

Um panorama da década leva a constatação da existência de companhias mais


ou menos estáveis, algumas até bem antigas, oscilando em diferentes graus ao
redor das proposições de mudança e renovação. Há que considerar de saída a
continuidade de trabalho do Teatro do Estudante. Assim, o TEB encenou O
Jesuíta, de José de Alencar, Dias Felizes, de Claude André Puget, Como
Quiseres, de Shakesperare, 3200 Metros de Altitude, de Luchaire, em 1940/41,
e em 1945, Auto da Mofina Mendes, de Gil Vicente, Auto d´El Rei Seleuco, de
Camões, A Escola de Mães, de Marivaux, uma lista curta, marcada por hiatos
temporais. (Brandão; 2009:105).

Um repertório que oscilava entre os clássicos da dramaturgia Ocidental e textos


consagrados brasileiros. Todos eles encenados por um viés de abrasileiramento, mas

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marcados por uma preparação corporal, vocal e teórica e rigorosa, com oficinas
desenvolvidas para cada espetáculo.

Como conseqüência, os atores amadores que participaram do TEB foram ao longo


do tempo sendo absorvidos pelas companhias profissionais por causa deste aspecto
pedagógico - formativo do grupo. Esse fator, também modernizador foi discutido por
Tânia Brandão:

É verdade que os atores “formados” pelo Teatro do Estudante constituíram a


primeira geração de atores modernos do teatro brasileiro no Rio de Janeiro; os
nomes mais destacados foram rapidamente absorvidos pelo mercado, através da
estruturação de grupos próprios ou do ingresso em elencos profissionais em
atividade. É verdade que atores consagrados, projetados pelo “teatro antigo”,
tais como Dulcina de Moraes ou mesmo Jaime Costa (1897 – 1967) ou
Procópio Ferreira (1898 – 1979), buscaram incorporar, embora em diferentes
graus, as novidades impostas por um novo tempo. (Brandão; 1990: 17,18).

O contexto desta modernização ocorrida nos palcos brasileiros pelo TEB, também
deve ser analisada por outro ângulo destacado pela historiadora Bete Rabetti: O teatro e
o poder. Historiograficamente a chegada ao poder de Getúlio Vargas na “Revolução de
Trinta” é essencial para compreendermos esse projeto de modernização. É importante
destacar o papel decisivo de Gustavo Capanema gerindo o Ministério da Educação.
Edvaldo Cafezeiro destaca o papel dos intelectuais dentro da “máquina do poder” ao
refletir:

Os intelectuais que se arregimentaram em torno de Getúlio Vargas criaram, no plano


cultural, os aparelhos capazes de buscar a necessária hegemonia ideológica (...) a
necessidade de formar mão de obra qualificada obrigou a criação de cursos noturnos,
escolas técnicas, educandários públicos e universidades, que vieram a participar da
chamada Reforma Capanema. Ao lado de tudo isso, o alargamento da classe média
urbana permite a ampliação das iniciativas privadas no setor cultural, pois já se forma
um público consumidor suficiente para dar sustentação ao mercado.(Cafezeiro,Gadelha;
1996;427).

Com a repercussão dos espetáculos do TEB – e posteriormente do grupo Os


Comediantes, alguns setores do teatro nacional irão ser subsidiados. Décio de Almeida
Prado considera que essa vertente de atores amadores provenientes do TEB e
capitaneados pelo seu fundador também é um dos fatores decisivos para a modernização
teatral brasileira. Ele destaca que essa forte corrente amadorística permitiu que a cena
brasileira ganhasse alguma consistência, pois:

A medida que a prática, aliada a reflexão teórica, obrigou que se delimitasse


com precisão seus objetivos modernizadores. Essa difícil passagem do velho
para o novo obedeceu à orientação de um pequeno número de pioneiros,

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homens nascidos entre 1900 e 1910, acostumados portanto a enfrentar quase
sozinhos o pior adversário daquele momento, o descrédito em que havia caído o
teatro. (Prado; 2001:38,39).

Outro fator que permitiu a desconstrução das práticas da Geração Trianon visto
como uma arte espúria, calcada apenas na diversão e, sem preparo técnico, foi também
em 1938 o início do trabalho do grupo Os Comediantes. Os seus participantes se
reuniam inicialmente no Palace Hotel, na Avenida Rio Branco, no local onde
atualmente está construído o Edifício Marquês de Herval. O hotel era o ponto de
encontro da elite carioca, a então chamada Jeunesse Dorrée da cidade. Na parte dos
fundos do hotel se encontrava instalada a Associação de Artistas Brasileiros,
coordenada por Celso Kelly. Gustavo Dória descreve como eles surgiram:

Celso Kelly, com a ajuda de seus colegas de diretoria, desenvolvia um programa


de atividades, onde de vez em quando o teatro surgia através de uma cena curta,
um monólogo ou mesmo pequenas representações.

Ansiava ele, porém, por algo mais sólido e mais concreto, e assim depois de
inúmeras experiências, resolveu promover um concurso de teatro amador para
peças de um ato, cujo prêmio seria a montagem e a representação do vencedor
ou dos vencedores dentro de um espetáculo, em temporada regular, no então
Teatro Regina (hoje Dulcina).

Na competição, que constituiu um êxito, saiu vencedor o grupo Os


Independentes, dirigido por Sadí Cabral e Mafra Filho que apresentou um
espetáculo composto de quatro originais em um ato: Uma Anedota, de Marcelo
Mesquita, Que Pena Ser Só Ladrão, de João do Rio, Uma Tragédia Florentina,
de Oscar Wilde e D. Beltrão de Figueiroa, de Júlio Dantas. (Dória; 1975: 5).

Depois da temporada no Teatro Dulcina e da repercussão positiva recebida por parte


dos intelectuais cariocas e da platéia, o grupo resolveu continuar seus trabalhos. A eles
se juntou o artista plástico – que viria a se constituir o cenógrafo do grupo Santa Rosa.
Grande conhecedor das tendências modernas do teatro europeu, principalmente o
chamado Cartel Francês, ele escolheu o nome do grupo. A historiadora Maria de
Lourdes Rabetti analisa a escolha do nome feita por Santa Rosa:

“Era preciso que exprimisse o meu real desejo; que cada elemento reunisse o conjunto
de qualidades necessárias para encarnar qualquer personagem. Acho que foi num
dicionário ou revista italiana na qual havia um artigo do meu amigo Mário da Silva que
encontrei a definição específica, diferenciando ator de comediante”.

É comum encontrar referências que procuram associar Santa Rosa (e com ele Os
Comediantes) ao pensamento de Copeau e Jouvet, dois encenadores vistos pelos
renovadores como defensores da idéia de ensemble no teatro. Ao nosso ver, esta
associação já dada aqui, na própria escolha do nome do grupo e, no entanto, vinculada
diretamente à questão do trabalho do ator. (...) Para além de uma exata recuperação das
fontes, o que aqui se quer observar é a introdução da questão do ator – segundo modelo

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externo, moderno – para configurar, de uma forma cada vez mais sofisticada, a entrada
do nosso teatro para a modernidade. (apud Rabetti; 1988: 16,17).

Além do elemento renovador que o próprio nome Os Comediantes sugeria, também


devemos pensar no projeto de formação dos atores que seus idealizadores consideravam
essencial. Sem um treinamento sistemático, em uma espécie de escola paralela, Os
Comediantes acreditavam que “muito pouco aproveitamento teria o nosso trabalho”
(Doria; 1975:8).

Com a escolha de um nome que consolidava um ideário renovador, o próximo passo


do grupo seria dar continuidade as suas pesquisas. Depois de quase dois anos
escolheram encenar a peça A Verdade de cada Um (Assim é (se lhe parece), de
Pirandello. A escolha do texto foi feita pelas possibilidades artísticas que sua encenação
oferecia, pois segundo o ideário do grupo a peça não se configurava como um “teatro
digestivo”. Depois da estréia da peça, reconhecida como inovadora, mais uma vez os
participantes do grupo se propõem a uma escolha de um repertório mais consistente a
ser montado. Neste ínterim eles entram em contato com o encenador polonês
Ziembinski. O encenador polonês descreve esse primeiro contato com os participantes
do grupo:

Conhecia o pessoal da embaixada, inclusive o embaixador. Pois bem, um dia


veio tocar no Municipal um grande amigo meu, o Witold Cuzinski, famoso
pianista, hoje. Sabendo que eu estava no Rio, pediu que eu fosse vê – lo. Fui ao
coquetel da imprensa, no Hotel Central, lá na praia do Flamengo. Nos
encontramos, conversamos, aquele negócio todo, tudo em francês, porque
alemão se falava muito pouco, naquele tempo. Depois, veio a entrevista, quando
então sentei – me ao lado de um senhor muito simpático que começou a falar
comigo, perguntando de onde eu vinha, o que fazia, e tudo isso. Contou – me
então que aqui havia um grupo de intelectuais interessados em renovar o teatro.
Era Agostinho Olavo. Convidou – me para ir ver a maquete do cenário de Belá
Paes Leme de A Verdade de Cada Um, num hotel que tinha na esquina da
Avenida Almirante Barroso com a Rio Branco. Lá, eu conheci o Santa Rosa, o
autor do projeto da exposição, outros intelectuais, todos ligados aos
Comediantes. Um dia, fui ao Teatro João Caetano assistir o ensaio geral de A
Verdade de cada Um. Então mexi aqui e ali, nas luzes. O pessoal ficou
espantado com aquilo que fazia. (apud Ziembinski; 1981:174, 175).

O espanto dos integrantes do grupo com o trabalho realizado por Ziembiski advinha
da sua enorme experiência na Polônia trabalhando a estética expressionista e, da sua
sólida formação teatral antes de chegar ao Brasil. Desse encontro, aparentemente casual
iria se consolidar entre os Comediantes e Ziembiski, a encenação de Vestido de Noiva,
de Nelson Rodrigues, considerado um marco na dramaturgia e na encenação modernas
brasileiras.

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Os comentários de Ziembiski, acerca de Vestido de Noiva são bastante
esclarecedores:

Eu acho que Vestido de Noiva chamou a atenção porque, diante de outros tipos
de espetáculos da época, era um texto brasileiro altamente categorizado. Nele
respirava a realidade do Brasil, e principalmente a realidade carioca. Isso o
transformava num monumento de fraternidade extremamente grande. Além
disso, o que havia, no espetáculo, de expressionismo, o levara para além da
realidade comum. Principalmente porque seu expressionismo não pecava pelo
formalismo comum a outras expressões do expressionismo. Era um
expressionismo de forma, mas baseado num extremo realismo, quase puxado a
uma interpretação naturalista do texto. Então havia todo um sabor de
composição que sintetizava e reduzia a realidade na sua forma existente, ao
mesmo tempo aberto pela verossimilhança daquilo que acontecia com suas
figuras. (Ziembiski; 1981: 180).

Segundo o próprio Ziembinski, a chave do texto repousava na sua brasilidade, e mais


do que isso na sua “carioquice” transposta para uma forma extremamente teatral e
extraordinária. Para uma melhor compreensão da brasilidade que o texto representava
devemos refletir e rastrear a forma como o texto foi descoberto pelos Comediantes. O
grupo organizou em 1943 uma temporada que iria incluir grandes textos da dramaturgia
ocidental. Mas, o encenador Francês Louis Jouvet, radicado naquele momento no Brasil
por causa da Segunda Guerra Mundial refletiu conversando com Brutus Pedreira – um
dos integrantes do grupo - que o processo modernizador do grupo – e quem sabe
nacional! - só se iria concretizar, se buscassem um texto brasileiro que traduzisse os
anseios sociais e estéticos do país. Essa foi uma questão central que iria nortear as
buscas dos Comediantes. Mais uma vez Gustavo Dória nos esclarece sobre esse ponto:

Ora, na verdade, Jouvet nos ajudou e muito. Mostrou uma nova maneira de
apresentar o espetáculo teatral; salientou a importância do teatro e mostrou,
ainda, as possibilidades do artista brasileiro. (...) Tudo isso despertava a nossa
atenção e ainda para um aspecto para o qual ainda não tínhamos voltado os
olhos. Não seria verdade dizer – se que o autor brasileiro não estava nas
cogitações dos mentores de Os Comediantes. Mas o certo é que, diante da
qualidade mínima existente, não havia também esforço no sentido de procurar
algo possível a ser revelado. (...) Foi quando surgiu o texto de um jovem
escritor, que tivera sua peça estreada um ano antes, pelo elenco oficial
patrocinado pelo Serviço Nacional de Teatro, sem maior êxito. Tratava – se de
um jornalista em início de carreira, pertencente a uma família de jornalistas e
filho de conhecido homem de imprensa. Era Nelson Rodrigues, cujo novo
original despertou o interesse de Ziembisnki, pois que se lhe apresentava como
um campo de ação fabuloso. Vestido de Noiva era um presente dos céus a sua
formação expressionista. (Dória; 1975: 16, 17,18).

A estréia do espetáculo no dia 28 de dezembro de 1943 é considerada como uma


ruptura no teatro brasileiro sobre as práticas teatrais ainda vigentes e, ao mesmo tempo

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um marco na modernização do teatro brasileiro. Os cenários de Santa Rosa foram
divididos em dois planos: em cima Realidade, embaixo Memória e Alucinação. Desta
forma o cenógrafo conseguiu materializar cenicamente a seqüência aparentemente não
cronológica, onde o tempo e o espaço se mesclavam no interior da psique da
personagem principal – Alaíde que depois de ser atropelada, estava em uma sala de
operações. Emmanuel Bassante discute essa modernidade em relação aos cenários de
Santa Rosa – ou o território cênico como Ziembinski denominava o espaço – da
seguinte forma:

A peça Vestido de Noiva poderia ser definida como uma tragédia da memória.
Um desastre de automóvel leva a personagem principal, Alaíde, a uma mesa de
operação e, à proporção que ela caminha para a morte, as lembranças soterradas
pelo inconsciente vêm a tona, construindo com suspense a trama da peça, dando
sentido aos fragmentos de realidade, memória e alucinação, que se juntam como
peças de um quebra cabeça. (Barsante; 1981: 54).

O cenário construído em dois planos, que permitia que a trama se desenrolasse


como um quebra cabeças, também se constituiu como um fator modernizante no
panorama do teatro da década de quarenta, que ainda utilizava via de regra espaços
teatrais construídos dentro de uma tradição cenográfica ainda calcada em parâmetros do
século XIX, que emoldurava “belamente” os atores. Neste aspecto, Santa Rosa também
se destaca ao construir um espaço cênico que permite dinâmicas e mudanças de cena
que traduzam o labirinto da mente de Alaíde em decomposição e, que se encaminha
para a morte.

Nelson Rodrigues de uma forma dramática e ao mesmo tempo bem humorada


comenta a estréia da peça Vestido de Noiva no Teatro Municipal lotado:

Lembro – me do primeiro espetáculo. Ninguém tossia. E havia qualquer coisa


de apavorante naquela presença numerosa. Termina o primeiro ato. Três
palmas, se tanto, ou quatro ou cinco, no máximo. Gelado, imaginei que seriam
palmas das minhas irmãs dos meus irmãos. (...) Continuava no fundo do
camarote, cravado na cadeira. Repetia para mim mesmo: Fracasso, fracasso.
Termina o segundo ato. Menos palmas ainda. Imagino: - Até as minhas irmãs
têm vergonha de me aplaudir. Pongetti tinha razão. Vestido de Noiva era o caos.
Até que baixa o pano sobre o final do terceiro ato. Silêncio. Espero, silêncio.
Ninguém bate palmas, nem minhas irmãs. De repente começaram umas
palminhas, a coisa foi evoluindo num crescendo, até se transformar numa
monumental apoteose. (Rodrigues; 1975; 15).

O silêncio da platéia ao final do espetáculo nos dá a dimensão da ruptura ocorrida


no teatro brasileiro a partir de Vestido de Noiva. O grau de originalidade causou um
estranhamento na platéia, que sob o impacto das imagens materializadas em cena por

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Ziembiski, foi tomada de um certo estupor.Decio de Almeida Prado comenta o impacto
do espetáculo ao afirmar:

O que víamos no palco, pela primeira vez, em todo o seu esplendor, era essa
coisa misteriosa chamada mise em scene (só aos poucos a palavra foi sendo
traduzida por encenação), de que tanto se falava na Europa. Aprendíamos com
Vestido de Noiva, que havia outros modos de andar, falar e gesticular além dos
cotidianos, outros estilos além do naturalista, incorporando – se ao real, através
da representação, o imaginário e o alucinatório. O espetáculo perdendo a sua
antiga transparência, impunha – se como uma segunda criação, puramente
cênica, quase tão original e poderosa quanto a instituída pelo texto. (Prado;
2001; 40).

Dentro deste panorama de modernização do teatro brasileiro, podemos refletir que


não foi apenas a platéia que entrou em contato com ‘essa coisa misteriosa chamada mise
em scene, também Nelson Rodrigues, como autor, assistiu a uma leitura cênica feita por
Ziembiski do seu texto. Uma encenação recheada de imagens acima e além do texto.

O trabalho de ambos os grupos – O Teatro do Estudante do Brasil e Os Comediantes


- pode ser analisado sociologicamente no panorama do teatro brasileiro, como uma
mudança de paradigma nos palcos nacionais, criando novos conceitos e práticas
estreitamente ligadas a um teatro moderno. Ambos os grupos acreditavam que a
formação de uma nova geração de atores mais capacitada tecnicamente iria permitir esta
modernização.

Dulcina de Moraes não se mostrou insensível a essas transformações. Décio de


Almeida Prado analisa esse impacto afirmando:

Dulcina de Moraes, filha de bons atores da velha guarda (Átila e Conchita de


Moraes), ela mesmo tendo estreado ainda adolescente na companhia de
Leopoldo Fróes, construíra com pertinácia uma carreira de comediante, um
pouco na linha fantasista de Elvire Popesco, de quem reencenou não poucos
sucessos parisienses. O seu repertório não ia além do vaudeville bem – acabado,
tipo Louis Vermeil, mas os espetáculos que oferecia ao público
predominantemente feminino já se distinguiam pelo apuro material e pela
homogeneidade do elenco. Tendo – se tornado, em meados da década de
quarenta, o maior nome do teatro brasileiro, jogou com grande desprendimento
todo o seu prestígio artístico e popular na aventura da renovação, subindo em
algumas poucas e corajosas temporadas, da comédia ligeira à comédia de idéia
(Bernard Shaw, Girardoux), ao drama (Chuva, de Somerset Maugham) e ao
teatro poético (Bodas de Sangue, de García Lorca). (Prado; 2001:42).

Esse teatro com perspectivas modernizadoras foi também absorvido, de certa


forma, por Dulcina de Moraes. Sergio Viotti citando Mário Nunes analisa a importância
do Ministro Gustavo Capanema neste processo ao dizer:

11
Entendeu o Ministro Gustavo Capanema que o governo devia animar
temporadas de arte para elites intelectuais e destacou 300 mil cruzeiros de verba
do SNT, nos exercícios de 43 e 44, para este fim. Dulcina e Odilon, simpáticas,
queridas e aplaudidas figuras de comediantes tomaram a si o pesado encargo, e
com o exagero tropical das coisas da nossa terra, ensaiaram e montaram, em
sessenta dias, cinco peças de grande projeção artística e intelectual e já gastaram
nesse afã mais de 400 mil cruzeiros.

Mas em nossas conversas, Dulcina sem ordenar memórias que nem sempre
eram relembradas com precisão que eu desejaria, me disse:” Um dia, eu recebi
um convite do Ministro Capanema, Ministro da Educação. Me pediu para
procura – lo e me disse: “Dulcina, você quer fazer, no ano que vem, uma
temporada oficial no Municipal? (apud Viotti;2000:292).

A temporada popular organizada por Dulcina no Teatro Municipal intitulada de


Estação para Intelectuais teve como repertório César e Cleópatra e Santa Joana de
Bernard Shaw e Anfitrião 38 de Jean Girardoux. Como obteve subvenção do governo
foi possível realizá–la a preços populares. A Estação para Intelectuais atraiu a elite
intelectual, mas também o público em geral.

Para esta Estação para Intelectuais a atriz não estava apenas interessada em agradar
somente aos intelectuais, mas permitir o acesso de um público mais popular a
espetáculos considerados de difícil compreensão. Sergio Viotti destaca o interesse da
mídia sobre este aspecto, revelando o que os jornais anunciaram antes do início dessa
temporada:

Dulcina não vai oferecer ao povo um teatro medíocre. Dulcina acredita no


público e quer que o público tenha, a preços mínimos, o teatro que merece. E
essa homenagem à inteligência do público que é permanente em todas as suas
realizações culmina agora no reconhecimento que a nossa grande atriz faz do
direito que tem o povo de ver a preços populares, no Teatro Municipal, o teatro
de grandes efeitos cênicos que até hoje só tem sido apresentados para os
privilegiados, a preços inacessíveis. (apud Viotti;2000:294).

O crítico Bandeira Duarte dedicou várias colunas a César e Cleópatra, desde os


ensaios até a reação do público. Numa delas, Dulcina declarou:

Eu, pelo menos penso que estou vivendo um momento de loucura. O que você
está vendo hoje é parte do nosso trabalho diário. Porque não se trata de um
trabalho comum, com atores experimentados, em que cada um recebe seu papel
e sabe o que vai fazer. (...) É preciso ensaiar cada detalhe e cada palavra,
primeiro em separado, depois em conjunto. (apud Viotti; 2001: 294, 295).

As críticas ao seu desempenho como Santa Joana também foram bastante positivas.
Viotti nos revela mais uma vez essas análises da mídia:

Dulcina esqueceu os papéis medíocres ou inferiores de que vem se incumbindo


há tantos anos. Aquela atriz que ali estava encarnando Joana d´arc era uma

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artista de grande classe, segura das suas intenções, nuançando como depois de
longa experiência de um teatro de arte. (apud Viotti; 2001:291).

Mais uma vez observamos nestes comentários uma referência de uma atriz – e do
resto do elenco – que desenvolve sua atuação pautada por uma busca das nuances que
caracterizam os atores modernos, ou como foi definido: “artistas de longa experiência de
um teatro de arte”.

As análises da interpretação de Dulcina de Alcmena em Anfitrião 38 de Jean


Girardoux também nos dão uma dimensão da busca por uma interpretação que fuja dos
estereótipos que o púbico estava acostumado a assistir:

Dulcina é, nos nossos palcos, a encarnação mais sugestiva e perfeita do anjo –


demônio que serve ao homem da companheira. Consegue, diferenciando – se
em uma feliz interpretação, dar – nos a imagem do casto sensualismo. (apud
Viotti; 2001: 299).

Dentro de um teatro convencionado como moderno a busca de unidade interpretativa


e o trabalho árduo e assíduo são extremamente importantes. Mesmo não possuindo um
estudo depurado sobre técnicas de encenação, Dulcina/diretora artística dedica um
tempo considerável em preparar todos os detalhes destes espetáculos. Esta é uma
questão preponderantemente considerada moderna, a possibilidade do alargamento do
tempo dos ensaios para um resultado mais construído das personagens pelos atores,
aliada a busca de uma unificação da “linguagem cênica’.

Luiza Barreto Leite – uma das fundadoras dos Comediantes - se refere a esse
momento de transformação na Revista Leitura, em um artigo intitulado 1944 e o Teatro:

Dulcina Iniciou uma nova fase, marcou uma etapa ascendente em sua carreira
artística, que as más línguas afirmam haver atingido o pináculo e, como tal,
estar sujeita ao autoplágio e a conseqüentemente decadência. Dulcina nasceu no
ano passado para o teatro nacional, para o bom teatro, é claro. (...) Foi aí que
Dulcina surgiu realmente afastada de Louis Vermeil e de seu antigo repertório,
que se compunha, em sua grande maioria, de peças indignas do talento
dramático e da inteligência humaníssima da nossa maior atriz. Ela provou a si
própria e aos críticos ser capaz de agradar integralmente sem concessões de
ordem material ou artística, feitas ao público e as casas de modas. (apud Leite;
1945: 8).

Mas, esse enfrentamento com um teatro considerado moderno, vai se concretizar


na sua trajetória como atriz em 1945 com a montagem da peça Chuva. A historiadora
Bete Rabetti discute este momento:

Em 1945, numa temporada oficial do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, ocorrida com apoio e
subvenção do Ministro Capanema, a Companhia Dulcina – Odilon apresenta a montagem de

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Chuva (Rain, de John Cotton e Clemence Randolph, adaptação do conto homônimo de William
Somerset Maughan: 1932), peça traduzida, a convite dos atores por Genolino Amado.

A montagem considerada “histórica” passa a se constituir em um novo ponto de referência da


carreira da atriz, chegando a ser alçada como um dos principais marcos da entrada de sua
companhia no projeto de modernização teatral. A ênfase nos registros críticos e de alguns
ensaios historiográficos recai na qualidade cenográfica inventiva, que permite fazer chover “o
tempo inteiro” em cena; na idéia de conjunto que orienta a montagem e na interpretação da
personagem Sadie Thompson, considerada uma das mais significativas e oportunas da carreira da
atriz Dulcina de Morares. Em 1946, quando a companhia apresenta Chuva em Buenos Aires,
com enorme sucesso, a revista Anhembi releva como dado que considera ”uma particularidade
(...). Digna da maior atenção (...) o fato de ter sido o primeiro embaixador do novo teatro
brasileiro no exterior, e de não nos ter envergonhado” (apud Anhembi 1953 número 29:34)

A montagem de Chuva pela Cia Dulcina – Odilon acaba se configurando como um


marco no universo das companhias profissionais para a modernidade, pela busca de
abandono de um padrão interpretativo dominado pelo domínio do histrionismo das
divas da Geração Trianon, além de incorporar um cuidado especial em todos os
elementos cênicos, lhes conferindo uma unidade dramática. A reprodução em cena da
ilha em que a peça se passa, a noite tempestuosa com a “chuva cenográfica’ no palco,
que obriga o navio a aportar e as nuances impressas nas interpretações de todos os
atores, principalmente por Dulcina na sua personagem Sadie, a transformaram no “carro
de batalha da Companhia Dulcina – Odilon”, além de transformar a peça em um
paradigma da modernização do teatro profissional carioca, sepultando um estilo de
representação ainda remanescente do século XIX.

Sergio Viotti cita mais uma vez as palavras de Luiza Barreto Leite sobre o dado
modernizador impresso na montagem de Chuva:

Os amadores tem feito belas coisas, é verdade, mas não é possível, dentro de um
regime capitalista, realizar nada permanentemente e definitivamente bem. (...)
Agora teremos Chuva, que já estará em cena quando esta crônica for publicada;
e, ou essa peça, que para mim é o maior trabalho de Dulcina como atriz, será
um dos seus maiores sucessos de bilheteria, ou a tese que venho defendendo
com tanto entusiasmo, que o público quer teatro bom e emocional, nas questões
sociais, é um miserável fracasso. (apud Viotti; 2001:332).

O crítico Bandeira Duarte também escreveu na sua coluna do jornal Diário da Noite
uma crítica elogiosa a atuação de Dulcina:

Quer quanto à escolha da peça, quer quanto às interpretações pessoais e de


conjunto, Dulcina realizou com Chuva o melhor espetáculo da temporada e
proporcionou o mais belo de sua carreira tão cheia de coisas belas. Equivalendo
a diretora e desmentindo o conceito acanhado e provinciano que recusa ao
artista a faculdade de dirigir e interpretar – o que no fundo é semelhante a negar
a um pintor a capacidade de misturar as tintas do seu quadro – Dulcina oferece
uma Sadie Thompson de admirável eloqüência dramática, de genial sinceridade,
de insuperável beleza poética. (apud Fonta; 2008: 117).

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O início dos trabalhos do Teatro do Estudante e o impacto de Vestido de Noiva,
pelos Comediantes incentivaram “a velha guarda’ a revisar o estilo de seus espetáculos.
Decio de Almeida Prado destaca que no panorama dessa modernização teatral dos anos
quarenta a Cia Dulcina – Odilon e Os Artistas Unidos, coordenada por Henriette
Morineau eram as que traduziam mais fortemente essa proposta modernizadora da cena
brasileira:

Henriette Morineau, francesa de nascimento e de formação, fora descoberta no


Rio de Janeiro por Louis Jouvet, participando de um seu elenco durante o
período que este, uma das maiores figuras do teatro universal, permaneceu no
Brasil, afastado da Europa pela guerra. Mais, tarde, já falando o português com
desembaraço, mas sem perder o forte sotaque de origem, Mme Morineau
fundaria, em 1946, os Artistas Unidos, companhia que durante muitos anos
seria apontada como exemplo de profissionalismo. Foi ela, por exemplo, quem
nos deu a conhecer o teatro americano de pós – guerra, encenando A Street Car
Named Desire, de Tennesse Williams, sob o título, julgado mais provocante, de
Uma Rua Chamada Pecado.

Nenhuma das duas (Dulcina e Morineau), em verdade podiam competir com


Ziembinski em imaginação e originalidade de visão. Mas, pela seriedade de
suas montagens (...) Bem como por suas qualidades invulgares, quer artísticas,
quer pessoais, pesaram ambas decisivamente sobre o público, inclinando – o
para o lado dos espetáculos menos rotineiros. (Prado; 2001: 42, 43).

No viés desta discussão sobre a modernização do teatro brasileiro especificamente


ligado aos “atores da velha guarda’ devemos refletir até que ponto essas rupturas se
concretizaram de um modo totalizante, ou se pelo contrário, percorreu um caminho
repleto de descontinuidades. A historiadora Bete Rabetti nos fornece reflexões
interessantes sobre este aspecto:

Dulcina de Morais, atriz de teatro no Brasil, permanece como modelo de um


modo de interpretar que antecede, acompanha e ultrapassa os caminhos da
renovação em prol de um “teatro moderno”. O problema que hoje se coloca para
o historiador do teatro daquele período, portanto, ainda deve comportar a
pergunta sobre em que medida a mesma leitura feita pelos olhos do projeto
renovador, contemporâneo ao fenômeno atorial em questão e que produziu as
fontes documentais substanciais nas quais o estudiosos de hoje deve se basear),
se traduziu, em seguida, no estabelecimento de conceitos definitivos para a
orientação da interpretação do ator no Brasil; conceitos estabelecidos, no
entanto, a partir de uma intenção de ruptura com a tradição atorial anterior.
(Rabetti; 1999: 52,53).

Discutir o processo modernizador do teatro brasileiro significa também nos permitir


refletir sobre suas idas e vindas, suas “fraturas” e descontinuidades. Em um arco de
tempo circunscrito entre a década de trinta até ao final da década de cinqüenta uma série

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de fatores confluíram para uma série de transformações que podemos considerar como
modernas. Sob este aspecto Tânia Brandão nos fornece reflexões valiosas, ao dizer:

Em geral, a leitura dos textos que trabalham com o estudo do teatro moderno
brasileiro deixa no ar uma sensação estranha. Parece que o palco foi modificado
por mutação: saiu de cena o quadro do teatro antigo, entrou o do teatro
moderno. As contradições e dificuldades não são consideradas, os limites
impostos a afirmação da modernidade não são revelados. Para o leitor, nem
sempre fica claro o fato de que o moderno foi se impondo por um processo de
deslocamento, do amadorismo, cujas platéias são específicas e com freqüência
reduzidas, para o profissionalismo. Mesmo quando o gradualismo, o
deslocamento, é considerado, a forma usada para tratar a questão, após a
“vitória” da modernidade, surge ainda uma espécie de mutação, como se
houvesse ocorrido uma apoteose moderna, como se o teatro antigo tivesse
desaparecido, tragado pela multidão. (Brandão; 1990: 34).

Além desta mescla entre um teatro com características ainda conectadas a práticas da
Geração Trianon e o teatro que se afirma como moderno com a presença dos grupos
amadores, também devemos refletir sobre os anos subseqüentes ao término da Segunda
Guerra Mundial. A política populista do Estado Novo praticada por Getúlio Vargas
passa a ser vista como antidemocrática, culminando com o seu suicídio em 1954,
gerando uma mudança no olhar sobre o Brasil que pretende modernizar – se,
democratizar - se. No âmbito internacional o impacto da guerra abriu espaço para
profundas modificações sociais que se refletiram no teatro. Uma das vertentes que se
desenvolveram com vigor – principalmente nos Estados Unidos - foi o teatro realista, e
na Europa registramos um teatro de vanguarda no qual o teatro do absurdo e a visão
brechtiniana têm um lugar de destaque.

Alberto Guzik faz um balanço deste momento no Brasil ao falar que:

A rotina das companhias profissionais, com poucas exceções, mal foi afetada
por toda a movimentação européia. Dominava os palcos uma sólida produção
do realismo caseiro da comédia de costumes, entremeada de provados sucessos
internacionais. O movimento dos amadores foi empreendido no intuito de se
modificar essa situação; considerando – se sua contribuição no geral,
percebemos que implantaram no país as transformações já incorporadas na
Europa pelo profissionalismo convencional. As fontes primordiais da renovação
se situaram em Jacques Coupeau, Louis Jouvet, Gaston Baty, Charlles Dullin e
Georges Pitoëff, enfim, o Cartel, em conjuntos similares ou equivalentes.
(Guzik; 1986: 36).

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Mesmo observando essa mescla de elementos renovadores, com práticas teatrais
ainda vistas como antiquadas, devemos refletir que esse final da década de quarenta, se
encaminhando para a década de cinqüenta foi decisivo no processo de modernização do
teatro brasileiro. O ano de 1948 também é considerado como emblemático para o teatro
brasileiro. É o ano que, em São Paulo, se iniciaram os trabalhos do TBC – Teatro
Brasileiro de Comédia. A historiadora Maria de Lourdes Rabetti comenta a importância
do surgimento do TBC da seguinte forma:

É lugar comum indicar o surgimento do TBC como “divisor de águas”, como a


possibilidade de efetiva implantação da nossa modernidade teatral. Aos olhos
deste trabalho, o TBC representa o fruto (bastante amadurecido, é certo) de um
processo histórico teatral longo e muitas vezes ambíguo. Surge, em 1948, como
resultado, por um lado, do trajeto das pesquisas amadoras (sua sede, se viu,
estava destinada a reunir grupos amadores) e, por outro, como estrutura
possibilitadora de acolhimento de diretores estrangeiros. Através do TBC, o
teatro moderno atinge sua etapa “institucional”: pressupõe uma estrutura
organizadora e econômica que se traduz numa continuidade de trabalho
possibilitadora de uma atuação do nosso teatro moderno como linguagem
estruturada, articulada naqueles pontos de referência até então observados de
modo esparso ou esporádico. (Rabetti; 1988: 21).

Para melhor compreendermos o espaço conquistado pelo TBC dentro do panorama


de renovação do teatro brasileiro como“ divisor de águas”, como a possibilidade de
efetiva implantação da nossa modernidade teatral”, devemos ter em mente que o
movimento de renovação teatral brasileiro capitaneado pelos grupos amadores ganhava
outros contornos:

Quando foi fundado o TBC, em 1948, muita coisa estava modificada no


movimento dos amadores brasileiros. O Teatro do Estudante era ressuscitado
por Paschoal Carlos Magno de um período de agonia e lançava – se aos
preparativos de seu mais prestigioso espetáculo, o Hamlet dirigido por Hoffman
Harnish, que marcara a estréia e consagração de Sérgio Cardoso. (...) Os
Comediantes haviam – se dispersado em 1947, após uma penosa temporada
profissional. (Gusik; 1986: 11).

Franco Zampari, um italiano radicado em São Paulo que administrava as Indústrias


Matarazzo era um amante das artes e concebeu o Teatro Brasileiro de Comédia após o
impacto da montagem de Hamlet pelo TEB e a repercussão de Vestido de Noiva dos
Comediantes. Inicialmente ele concebeu o teatro como um espaço que pudesse abrigar
as cias amadoras de São Paulo, lhes dando um suporte que garantisse uma qualidade
artística. Em 1949, ele percebe que somente criando uma companhia estável, o seu
ideário de unir arte e consumo seria viável. Este é um ponto importante a ser refletido.
O TBC tinha como divisa a busca da união de um elenco estável que garantisse um jogo

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atorial mais homogêneo (com um treinamento mais uniforme e técnico), aliado ao
conforto da casa de espetáculos, somados a um repertório de grande qualidade artística e
intelectual, materializado cenicamente por uma produção realizada nas oficinas do
teatro (figurinos, adereços, cenários, iluminação, sonoplastia), tendo como ponto central
e unificador dos espetáculos um encenador que dominasse as técnicas modernas de mise
em scene.

Mariângela Alves Lima nos chama a atenção sobre “essa base mais sólida” presente
nos espetáculos do TBC:

A idéia de um bom espetáculo com letras maiúsculas que caracterizou o


trabalho dessa companhia, não é estranha a nenhum grupo que se disponha a
fazer teatro seriamente. Essa idéia, sistematizada, possibilita uma filosofia
específica da criação teatral. Supõe que para fazer um bom teatro é preciso não
só a presença de um ator genial, mas também de bons diretores, de um elenco
com treinamento uniforme, bons cenógrafos, bons iluminadores, uma equipe de
cena atualizada, etc.

O teatro brasileiro aprendeu muito com essa sistematização introduzida pelo


TBC. A magia do comunicador cedeu lugar à valorização do trabalho
consciente empregado na produção de um espetáculo. Neste sentido o TBC
introduziu um novo comportamento, a preocupação com todos os elementos
para a totalidade do espetáculo. (Lima; 1980: 25).

O tão famoso ‘padrão de qualidade” do TBC, realmente possibilitou a platéia no


Brasil pós Getúlio Vargas mergulhar num universo teatral dominado pelo signo da
modernidade, aliada a qualidade técnica da produção. Atores como Cacilda Becker,
Sérgio Cardoso, Sérgio Brito – todos estes provenientes do Teatro do Estudante – além
de Madalena Nicol, Tônia Carreiro, Cleyde Yáconis, Paulo Autran, Nidia Lícia
puderam refinar as suas técnicas de representação ao trabalharem com vários
encenadores Europeus – a maioria Italianos, tais como Adolfo Celi, Luciano Salce,
Alberto D´Aversa, Flamínio Bollini, Ruggero Jacobbi e, posteriormente Ziembinski,
Maurice Vaneau, Antunes Filho e Flávio Rangel. Todos eles possuíam uma sólida
técnica teatral que imprimiram nas suas encenações e no treinamento dos atores
contratados em um sentido estável.

Sábato Magaldi comenta este papel de destaque do TBC:

O balanço que Décio de Almeida Prado fez, em Janeiro de 1953, sobre o teatro
paulista atribui ao TBC uma posição, em São Paulo, comparável a da Comedie
em Paris. O conjunto dispõe, no seu quadro fixo, de dezoito atores, quatro
encenadores (Celi, Ziembinski, Salce,e Bollini), um cenógrafo (Vaccarini), onze
auxiliares e treze funcionários. Está bem clara, a essa altura, a orientação do

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repertório: peças comerciais alteram – se com textos mais difíceis. (...) A essa
altura não há mais dúvida quanto às características e às diretrizes do TBC: uma
companhia conduzida com espírito empresarial,não no sentido de obtenção de
lucros mas de funcionamento de moldes rígidos de uma indústria; a presença
superior de Franco Zampari, um verdadeiro mecenas, que obteve também a
colaboração de amigos e de figuras de relevo na fundação da Sociedade
Brasileira de Comédia, sem fins lucrativos mantenedora do TBC; a passagem
dos antigos teatros de estilo italiano, com frisas e camarotes, e anfiteatros, para
uma pequena sala, adaptada, criando maior intimidade entre o ator e o público e
em conseqüência um tipo de interpretação mais sóbrio e comedido. (Magaldi;
1980: 47).

Dentro deste arco de modernização do teatro brasileiro, é pertinente refletirmos sobre


esse “ir e vir” do repertório do TBC, que oscila entre o boulevard sofisticado ao
existencialismo de um texto de Jean Paul Sartre. Uma peça considerada de mais fácil
compreensão, mas montada com apuro técnico – interpretativo possibilitaria a platéia
mergulhar em um universo dramatúrgico mais complexo. Neste sentido o TBC tem
como ideário formar a platéia através de encenações em que a arte e o tão deplorado
produto de consumo de massas se mesclam. Alessandra Vannucci discute essa questão
ao afirmar que:

O repertório do novo teatro, imediatamente reorientado conforme critérios


renovadores em radical dissenso com o mercado tradicional e em seguida
estabilizado em solução eclética de “transição necessária” entre escolhas
eruditas e diversivas, exibe o desejo de afirmar sua integração à cultura “culta”
da metrópole, atraindo assim a platéia burguesa (por identificação) e de classe
média (por aspiração). (...) Duas almas convivem na casa de Zampari, a bela e a
útil: a primeira se preocupa com o prestígio, a segunda com a audiência.
(Vannucci; 2000: 66).

Sob este ponto de vista, podemos refletir que, dentro deste panorama modernizador
que o TBC representa um espaço catalisador, na qual a conexão das produções do
Teatro Brasileiro de Comédia e seu público composto principalmente pela burguesia e a
classe média se fez imediata. O público com um poder aquisitivo mais elevado esperava
assistir encenações que unissem um elogio a inteligência e a sensibilidade, sem se
descurar de um certo apelo à elegância e a sofisticação.

Mas, para podermos refletir sobre os caminhos da modernização do teatro brasileiro,


devemos ter em mente a sua importância do TBC enquanto uma companhia que
estabeleceu determinados parâmetros de qualidade artística, ao mesmo tempo em que,
exemplarmente formou uma geração. Tânia Brandão discute essa questão ao afirmar:

A verdade é que, a partir do TBC, o cenário teatral brasileiro se modifica de


forma acelerada e não é possível raciocinar por absurdo, considerar o que teria

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acontecido se não tivesse existido o TBC. As discussões teatrais dos anos 50 e
60 têm o empreendimento de Franco Zampari como telão de fundo, para o
endosso e a ruptura. E, a rigor, o teatro nacional não ultrapassou o limite de
enfrentamento da questão moderna traçada pelo TBC. (Brandão; 1990: 46).

Estas cias formadas por ex integrantes do TBC e outros profissionais da época


contribuíram na disseminação do tão propalado “padrão de qualidade” do Teatro
Brasileiro de Comédia. Alberto Gusik comenta esta influência:

Efetivamente, durante certo momento da recente história cultural de São Paulo,


a totalidade das suas companhias em funcionamento possuía algum vínculo com
o TBC. Madalena Nicol formou com Ruggero Jacobbi a primeira. Sérgio
Cardoso, Nydia Licia e Leonardo Villar, a segunda. Maria della Costa, oponente
de Zampari, num momento em que este aspirava ao monopólio da produção
teatral em São Paulo, passou pela sala da Major Diogo, antes da inauguração do
TMDC, em 1954. Tônia – Celi – Autran ganhou esta grafia e criou companhia
própria em 1955. Em 1957, Cacilda Becker forma seu grupo e consigo leva
Ziembinski, Walmor Chagas e Cleyde Yáconis. Em 1958, Fernanda
Montenegro, Fernando Torres, Ítalo Rossi, Sérgio Brito e Gianni Ratto partem
para o Teatro dos Sete e um histórico Mambembe. Tereza Raquel se afasta da
sala no final de 1959, fixando – se no Rio de Janeiro depois de um ano de
atividade em São Paulo, onde se afirma como primeira atriz. De 1949 a 1959 o
TBC foi a base para a formação de companhias nacionais. (Gusik; 1986: 226).

Se, “De 1949 a 1959 o TBC “foi a base para a formação de companhias nacionais”,
permitindo que um modelo reformador moderno se impusesse, transformando de certa
maneira os teatros em espaços consagrados não só a diversão mas também a formação
intelectual da platéia, pelo teor estético das encenações e a consistência de uma nova
dramaturgia, devemos atentar para outro aspecto não menos importante. Todos estes
grupos amadores – que se encaminharam na sua maioria para o profissionalismo –
destacavam que a pretensa modernização do teatro brasileiro deveria se centrar também
na formação do ator. Em certo sentido, todas estas companhias desenvolviam um
treinamento contínuo aos atores, permitindo uma performance atorial mais substanciosa
e complexa.

Madalena Nicol que fundou sua companhia com o diretor Italiano Ruggero Jacobbi
após abandonar o TBC analisa este aspecto:

Trabalhar continuamente era uma finalidade em si. Quem estivesse trabalhando


se sentia gratificado por poder trabalhar em qualquer condição. Sempre me
considerei, não propriamente uma renovadora, mas uma pessoa aberta para
idéias novas que acha que se deve consertar certos erros. E, naturalmente,
estava ao lado do grupo jovem, imbuída de uma série de idéias revolucionárias
em relação ao teatro que era apresentado. Desde o início, fazíamos teatro sem
ponto, o que era um absurdo para uma companhia como a de Procópio Ferreira.
Não havia um relacionamento entre os mais novos e os mais velhos. Entretanto,

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sempre achei que a gente nunca pode, pelo motivo de estar renovando, trazer
idéias novas, desrespeitar aquilo que foi feito antes. Eu sempre fui grande
admiradora de dona Dulcina. Não a conheço pessoalmente, mas sempre que
posso presto uma homenagem a essa mulher que foi de grande coragem, de um
profissionalismo, de uma grande abertura em relação ao teatro da época. (Nicol;
1978:79).

Cleyde Yáconis que iniciou a sua carreira no TBC e depois foi trabalhar na
companhia Teatro Cacilda Becker também fala da importância do seu aprendizado na
Cia fundada por Franco Zampari:

O TBC nos ensinou exatamente tudo. Quando eu digo nós, tenho que dizer
gente como eu, que entrei do zero, você concorda? Então, eles nos ensinaram.
Quando você ensina uma criança a escrever e dá o abecedário, ela aprende a
letra,mas a característica é dela. O que eles me ensinaram foi descobrir o ponto
de equilíbrio da minha coluna para eu começar a andar. (Yáconis; 1978: 27).

Paulo Autran, que fundou com Tônia Carreiro e Adolfo Celi a CTCA,discute sobre a
importância do modo de trabalho do Teatro Brasileiro de Comédia:

O TBC teve uma importância técnica, formal muito grande. Eu me lembro até
de um ensaio de uma peça com Gustavo Nuremberg, amador, onde Celi mandou
– o por a língua para fora, segurou – a e disse:” agora, fala o seu texto. Sua
dicção é muito ruim.” O Celi não dirigia apenas; ele formava tecnicamente os
atores. (Autran; 1978: 122).

Especificamente no caso do TBC, podemos perceber que a fundação da Escola de


Arte Dramática em 1948, por Alfredo Mesquita também foi de extrema importância.
Percebemos uma “simbiose’ entre as práticas teatrais do TBC e a formação dos atores
promovida pela EAD. Francisco Iglésias discute a mudança de mentalidade que se
formou no país:

A Escola de Arte Dramática, criada em 1948 em São Paulo, por Alfredo


Mesquita, não é só um momento significativo na história da arte e do teatro no
Brasil, mas um momento na história da educação e, conseqüentemente, na vida
social do país. (...) O teatro como profissão era impensável na mentalidade
arcaica, quando pesavam sobre ele preconceitos de todo tipo. O ator era
discriminado – não podia nem ter seu sepultamento em “campo santo”. As
várias cidades brasileiras, de porte médio para cima, contudo, conheceram o
amadorismo, com representações que reuniam os atraídos pelo palco. Estava –
se longe de pensar em uma instituição de ensino regular e orgânico como foi
feita pela Escola de Arte Dramática criada no dia 2 de Maio de 1948, em São
Paulo, por Alfredo Mesquita. (Iglésias;1989: 27,28).

Desde o início do século XX no Rio de janeiro, outras escolas já haviam começado


a desconstrução dessa imagem dos atores/vagabondi, lhes permitindo fortalecer uma
técnica mais sólida. Mas, em São Paulo, o aparecimento da EAD se reveste de uma
importância fundamental. A maioria dos seus alunos atores foram absorvidos pelo

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mercado de trabalho que exigia mais capacitação técnica e muito deles foram
contratados pelo TBC.

Em 1953, o ex aluno José Renato, recém saído da EAD idealiza uma companhia de
teatro permanente chamada de Teatro de Arena. A premissa básica da nova companhia
era desconstruir a caixa geométrica do palco italiano e permitir aos atores novas
relações mais intimistas com os espectadores. A idéia surgiu nas salas de aula da EAD a
partir das indicações de Décio de Almeida Prado que lecionava na escola. Ele comenta
essa nova possibilidade espacial – atorial que forneceu subsídios para a criação do
Teatro de Arena:

Eu assinava uma revista americana de teatro, a Theatre Arts, cujos números doei
para a Comissão Estadual de Teatro alguns anos atrás. Nessa revista, li um
artigo assinado pela senhora Margot Jones sobre o que era o teatro de arena.
Isso deve ter sido por volta da década de 1950. Eu também adquiri um livro
dessa senhora em que ela falava do formato da arena. E, numa das aulas da
EAD, eu falei aos alunos sobre o assunto com base nesses artigos lidos. Os
alunos Geraldo Matheus e José Renato se interessaram pelo tema e montaram,
dentro da escola um espetáculo com essa nova concepção cênica. (apud Prado;
2004: 35).

Este estudo teatral realizado na EAD em 1951 forneceu um direcionamento para os


participantes do Teatro de Arena, permitindo assim fundação da companhia no dia 11 de
abril de 1953 com a peça Esta Noite é Nossa, de Stanford Dickens no MASP. Dentro
desse panorama modernizador do teatro brasileiro, o início dos trabalhos do TA também
se configura como uma etapa importante, pois o modo de produção e relação com os
espectadores a partir deste momento seriam transformados. Uma montagem em um
espaço de arena possibilitava que qualquer sala fosse adaptada para o jogo teatral e, que
arquibancadas ou cadeiras fossem postas em volta do espaço cênico, aproximando os
atores dos espectadores, exigindo outra forma de interpretação. Além disso, os custos da
montagem do espetáculo se reduziam muitíssimo, pois em uma arena, somente devem
ser posicionados alguns objetos que não atrapalhem a visibilidade dos espectadores que
circundam o espetáculo. Se o “padrão TBC de qualidade” exigia um depuramento
técnico e custos elevados na construção cenográfica para cada encenação, em um
espaço de arena estes custos se reduziram de uma forma significativa.

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Mariângela Alves de Lima discute a trajetória da companhia desde o início dos seus
trabalhos e o público atraído por essas montagens consideradas de vanguarda:

Como toda a experiência de vanguarda o Arena começava atingindo um número


restrito de pessoas, um público particularmente interessado em arte.
Economicamente os primeiros espetáculos do museu não acrescentaram nada ao
precário capital da companhia. O elenco foi remunerado, as despesas foram
pagas. “Sem lucro e sem prejuízo”, no dizer de José Renato. (...) Clubes, uma
fábrica e um colégio – o ecletismo dos locais serviu para comprovar a
capacidade de locomoção desse tipo de trabalho. O espaço de arena
possibilitava realmente a ampliação das faixas de público. (Lima; 1978:33).

Os textos escolhidos para a encenação neste espaço de arena não diferiam do


repertório do TBC. Maldosamente parte da crítica considerava o Teatro de Arena com
“primo pobre” do TBC. Este repertório se mantém inalterado até 1955 quando a
companhia passa a ter uma sede própria, aberta a uma série de eventos artístico –
intelectuais, transformando o espaço em uma espécie de centro cultural.

O ano de 1956 se configura como um ponto de transformação da companhia: o


estreitamento dos laços de seus fundadores com o grupo Teatro Paulista de Estudantes,
formado, entre outros, por Mílton Gonçalves, Flávio Migliaccio, e Gianfrancesco
Guarnieri, além da chegada de Augusto Boal dos Estados Unidos, iniciando o trabalho
com o Teatro de Arena do método Stanislavskiano, buscando transformar o andar, o
falar brasileiro, criando laboratórios de interpretação. Essa fusão possibilitou contornos
mais engajados politicamente ao grupo que culminou na encenação de Eles Não Usam
Black Tie, de Guarnieri em 1958 - o espetáculo de encerramento das atividades da Cia.
O texto também considerado um marco na dramaturgia e na encenação moderna
brasileira obteve um enorme sucesso e permitiu que o grupo continuasse seus trabalhos.
Décio de Almeida Prado analisa os fatores que contribuíram para a repercussão da peça:

Eles Não Usam Black Tie (1958) abre não só a carreira dramatúrgica de
Gianfrancesco Guarnieri como todo um ciclo do teatro brasileiro. Naqueles
alvoroçados anos que vão de 1955 a 1960, tão fecundos em revelações de
autores, se não ocupa o primeiro lugar cronológico, tendo vindo depois das
peças de Jorge Andrade e Ariano Suassuna, foi ela, contudo, que ficou como
marco histórico, seja pelo inesperado e prolongado sucesso de bilheteria que
obteve, revertendo em favor das peças nacionais a expectativa do público, seja
pela guinada estética e política que significou, ao aproximar duas entidades até
então julgadas incompatíveis – teatro e povo. Se este já comparecia, usualmente
na qualidade de comparsa, em algumas peças modernas, não se infira disso que
a perspectiva dos autores fosse popular, no sentido que a palavra veio a assumir
em nossos palcos.

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Passando – se num morro do Rio de Janeiro, entre operários em greve, Eles Não
Usam Black Tie alia numa tessitura coesa um forte drama, com graça inocente
de nossas melhores comédias de costumes (o namoro de Terezinha e Chiquinha,
a festa de noivado), só que colhidas in loco, com muita espontaneidade, com a
sua solidariedade individual e grupal e, gente humilde, gente pobre, que já
havíamos visto em nossos palcos. Mas operários mostrados como tal, definidos
em função de sua categoria, atuando coletivamente contra padrões, constituíam
– se em algo absolutamente novo. (Prado; 1986: 5,6).

Dentro deste panorama modernizador do teatro brasileiro a encenação de Eles Não


Usam Black Tie em 1958 pelo Teatro de Arena, se configura como uma importância
comparável a Vestido de Noiva em 1943 pelos Comediantes. Ambas as encenações
redefiniram padrões estéticos e sociais brasileiros que se refletiram em todo teatro
nacional. As discussões posteriores a Eles Não Usam Black Tie, entre o Teatro de Arena
e o TBC, questionando se a modernização do teatro brasileiro deveria se inscrever em
um viés nacional são importantes, mas o que nos inclinou a traçar esse panorama foi
exatamente poder rastrear as mudanças sócio – político teatrais que confluíram para o
que consideramos um moderno teatro no Brasil.Além disso, esse panorama nos
possibilitará compreender com mais clareza o ideário que impulsionou Dulcina de
Moraes a criar a Fundação Brasileira de Teatro.Todos esses grupos e cias buscaram
formar tecnicamente seus atores, compreendendo que este era um dos pontos cruciais da
modernização do teatro Brasileiro.

SÁ. Alvaro de. A Fundação Brasileira de Teatro no Rio de Janeiro – 1955 – 1969.
Primeiro Capítulo. Dissertação defendida em 2011 no PPGAC da UNIRIO. Orientador:
Maria de Lourdes Rabetti.

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