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OS COMEDIANTES
Vânia de Magalhães1
O objetivo de todos os integrantes do grupo era descobrir uma peça, um texto, que
marcasse uma espécie de revolução para a platéia exigente formada pela classe média.
Santa Rosa achava imprescindível montar Pirandello, Moliére; para os artistas, o
fundamental era o nível cultural, o talento e a disponibilidade para colaborar
efetivamente.
O primeiro texto encenado pelo grupo foi A verdade de cada um, de Pirandello, em
1939, um ano após a fundação do grupo. Brutus Pedreira pesquisou o original de
Pirandello e entregou seus estudos ao diretor Adauto Filho. Era preciso, contudo, evitar
a caricatura. Resolveu-se então que a apresentação do espetáculo recuaria a ação para o
tempo em que a peça foi escrita, de acordo com as pesquisas feitas. Simultaneamente, o
Teatro do Estudante caminhava, abrindo espaço com uma proposta comum aos
Comediantes. O sucesso deste primeiro grupo facilitaria a consolidação do segundo.
1 Teórica de teatro formada pela Uni-Rio e mestre em história social das idéias pela Universidade Federal
Fluminense (UFF).
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influía na criação dos cenários para a peça de Pirandello. Abadie Faria Rosa colaborou
entregando aos Comediantes o material cenográfico da Comedia Brasileira. A estréia
ocorreu em 15 de janeiro de 1940, no Teatro Ginástico, com casa lotada e direito a
ovação ao final. Parte dos aplausos deveu-se ao cenário e a mise en scène.
O pensamento que norteava o grupo tinha em Eugênia e Álvaro Moreyra uma fonte de
inspiração; como no Teatro de Brinquedo, a preocupação era atingir a media burguesia,
até então descontente com o teatro descompromissado com as reflexões sobre a vida, o
teatro para rir.
A preocupação com o valor artístico dos trabalhos foi ainda mais estimulada com a
chegada de Louis Jouvet: todos ficaram perplexos ante a conjugação harmônica entre
teatro encenado, texto e interpretação; mais clara do que nunca, surgia a idéia da
importância do encenador, ou melhor, do diretor.
Segundo Gustavo Dória, a idéia de montar um texto nacional era compartilhada por
diversos elementos do grupo. Numa terra de tamanha luminosidade, onde a natureza era
tão pródiga, debaixo de um céu tão acirradamente azul, onde o povo possuía uma
exuberância própria que se traduzia principalmente através de uma festa de carnaval
verdadeiramente fascinante, o teatro brotava de todos os cantos, em todas as ruas.
Moliere ou Shakespeare seriam experiências futuras, o ponto de partida era o autor
nacional. Pensou-se então em homenagear Álvaro Moreyra, montando sua peça Adão,
Eva e outros membros da família, pois os Comediantes sentiam-se descendentes do
Teatro de Brinquedo.
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Mano Cacciaglia, em seu livro Pequena história do teatro no Brasil, dedica parte de um
capítulo aos Comediantes. Para este autor, a renovação teatral surgiu vinte anos após a
Semana de Arte Moderna de 1922, com o grupo Os Comediantes. A chegada de
Ziembinski ao Brasil, em 1941, foi decisiva para a modernização do nosso teatro.
A dissertação de Victor Hugo Adler Pereira, Momento teatral: cultura e poder nos anos
40, contém algumas entrevistas com pessoas que trabalhavam em teatro na década de
1940. Estas entrevistas foram feitas pelo jornalista Daniel Caetano para sua coluna de
teatro do Diário de Notícias, durante os meses de maio e junho de 1946. Alguns temas
aparecem repetidos, tais como 'O teatro e o público', 'A importância do teatro
comercial', 'O auxílio dado pelo governo ao teatro nacional' e 'O papel do grupo Os
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Daniel Caetano pergunta à atriz e empresária Bibi Ferreira se há concessões feitas para
o público na escolha do repertório. Bibi Ferreira responde que, quando as companhias
privilegiam o econômico, ocorre um enfraquecimento do artístico. Mas justifica a
preferencia pelo teatro comercial, afirmando que "ninguém faz teatro para outra coisa,
senão para o público. Se este não comparecer às salas de espetáculo, tudo perde sua
razão de ser."
Luís Iglesias, empresário e diretor da companhia Eva e seus Artistas, confessou que a
preocupação com o publico o levou a organizar um repertório voltado para fazer rir,
"sem imbecilizar". Seu plano era iniciar um teatro despretensioso para conquistar o
público e, depois de formar uma platéia constante, empreender "vôo mais alto": chegar
ao "teatro de arte". Ele justificava a afirmação feita por Daniel Caetano, de que os
intelectuais se afastaram do teatro. Para Iglesias, os intelectuais consideram a arte
dramática, no Brasil, monopólio de alguns ignorantes e a literatura teatral brasileira é
taxada de inferior. Iglesias condena-os dizendo que as peças intelectualizadas são
apenas preferência de "meia dúzia de diletantes" e que o teatro não vive de satisfazer
essa minoria.
Renato Viana pode ser considerado um resistente, pois afirma preferir ganhar pouco,
mas fazer o que entende por arte. Renato Viana é uma figura polêmica, considerado
chato e pretensioso por alguns críticos e dramaturgos, ou um incompreendido autor de
peças intelectualizadas por outros. Daniel Caetano o vê como um pioneiro de um teatro
mais sério e reflexivo no Brasil, um homem culto, um homem de pensamento e de
teatro", que deveria ter sido da maior expressão no palco nacional. Mas, como a
bilheteria contava mais para as companhias teatrais, o desinteresse cio público pelo
espetáculo que não fazia rir impediu que o teatro de Renato Viana fosse apreciado e
divulgado.
existem pessoas que, "nos lazeres burocráticos das repartições públicas", escrevem uma
peça de cinco em cinco anos e não aceitam se subordinar à realidade de que o público, a
maioria, quer um teatro que faça rir. Raimundo Magalhães Júnior conclui que não se
pode fazer teatro sem se deixar submeter a essa realidade.
Odilon, da companhia Dulcina & Odilon, disse, a respeito da dicotomia teatro arte x
teatro comercial, que sua atividade devia se dirigir ao "grande público". Afirmou,
também, ter encenado grandes autores nacionais, tais como Raimundo Magalhães
Júnior e Ernani Fornari. A marquesa de Santos e Sinhá-moça chorou são peças
representativas de "um grande teatro". Estas peças são marcadas por um contexto
histórico que era o da ditadura Vargas, então, o tema épico, tratar do imperador,
escrever sobre a Monarquia, falar sobre Tiradentes mitificando-o, era de interesse do
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo Getúlio Vargas, pois o mito
acabaria se amalgamando à figura de Vargas. Este patrocínio do governo a peças
históricas era uma forma de o mesmo se promover.
Voltando à dicotomia anterior, ela vai desembocar no teatro arte, que foi considerado o
dos Comediantes, na abertura do Teatro de Arte, no início de um teatro de arte.
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Odilon disse que seu intuito, no período em que ocupou o Teatro Municipal, era dar
oportunidade ao povo de assistir a espetáculos de arte a preços populares. Para ele, não
se deve conciliar arte e comércio, mas se deve pensar no grande público e fazer arte a
preços populares, superando, assim, a dicotomia teatro arte x teatro comercial. Odilon
preocupa-se, portanto, não só com a platéia, mas também com a qualidade do trabalho a
ser representado.
O dramaturgo Raimundo Magalhães Júnior disse que escrevia tanto peças sérias como
peças para rir porque desejava que os empresários as encenassem, não pretendia guardá-
las em arquivos. Acreditava que o autor teatral devia escrever os dois gêneros e que a
bilheteria seria, sempre, o resultado do gosto do público. Sua peça Carlota Joaquina foi
muito bem recebida, mas, segundo seu autor, o grande público prefere o teatro para rir.
Joracy Camargo, autor de Deus lhe pague, afirmou que costumava dar ao público o que
ele queria:
Joracy Camargo escreve para o grande público, mas sem trair as suas idéias: acredita
que o teatro tenha um potencial transformador.
Nelson Rodrigues, por sua vez, optou radicalmente por um teatro arte: "Acho que o
espetáculo teatral é a reunião do autor, diretor e ator. O público é com o bilheteiro. O
autor que pensa no publico mata a obra de arte."
O dramaturgo Cesar Leitão achava que nossa dramaturgia não se desenvolvera por ter
sido desprestigiada. As companhias teatrais preferiam montar traduções estrangeiras do
que originais brasileiros. O dramaturgo, então, não conseguia viver do seu trabalho que,
normalmente, terminava na gaveta, já que não era encenado. Raimundo Magalhães
Júnior e Ernani Fornari eram exceções.
Outro tema constante nas entrevistas de Daniel Caetano é o auxílio dado ao teatro pelo
governo. Veremos adiante que os próprios Comediantes tiveram auxílio do SNT. Bibi
Ferreira fez a sua crítica e propôs uma saída. Para ela o governo auxiliaria mais o teatro
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se, ao invés de dar uma quantia para algumas companhias teatrais, isentasse todas do
pagamento de impostos e oferecesse transporte gratuito. Não fica claro se o transpor-te a
que ela se refere é do público ou dos cenários e dos artistas. Bibi Ferreira também se
queixou da ausência, nos currículos escolares, de matérias sobre arte dramática ou
literatura teatral.
Odílon é um dos poucos integrantes da classe artística satisfeito com o incentivo dado
pelo governo. A sua companhia, Dulcina & Odilon, recebeu subvenção, o que lhe
possibilitou montar grandes encenações. já para Raimundo Magalhães Júnior, o SNT
devia construir teatros e criar uma Escola de Arte Dramática, pois a distribuição de
incentivos só serve para encher os bolsos de alguns".
Gastão Tojeiro, autor de várias peças populares criticou a ação do SNT: "Só o que
Dulcina levou daria para construir dois teatros nessa cidade." Mário Nunes, crítico
teatral, afirmou, irritado, que o governo nunca se interessou pelo teatro e que, por
fingimento, criou o SNT para distribuir "centenas de milhares de cruzeiros, ao sabor das
influências políticas ou amigas". Mário Nunes também falou da necessidade de mais
casas de espetáculos e de uma Escola de Arte Dramática.
Ao final, o crítico teatral Augusto Maurício disse que o argumento de que o público não
aceitava o teatro de arte, preferindo "o teatro para rir", foi uma desculpa utilizada pelos
artistas e empresários e que, se o nível do teatro nacional não estava elevado, a culpa
não era do SNT, pois este foi criado para distribuir subvenções aos empresários.
Augusto Maurício, então, denunciou:
O panorama descrito até agora marca bem a preocupação com um teatro de "Fazer rir",
um teatro que chegasse ao público. O surgimento de um grupo como Os Comediantes é
realmente um marco, pela preocupação com a iluminação, com o texto, com o conteúdo,
com o teatro de arte.
Brutus Pedreira afirmou que a sua maior preocupação não era o lucro, mas a qualidade
do trabalho, que possuía um público pequeno, porém suficiente pai pagar os artistas.
Outro critico de teatro, Aldo Calvet, elogia o trabalho de Os Comediantes, tentando não
exagerar na si valorização: "E realmente unia bela iniciativa amadorística que trouxe
para a cena indígena elevada soma inteligência e afirmação."
O crítico Pompeu de Souza era um dos que acreditava que o teatro brasileiro podia ser
dividido em antes e depois dos Comediantes. Renato Vieira, crítico de O Jornal,
considerava Vestido de noiva uma peça ousada em termos de criatividade e imaginação,
introduzindo novos elementos à cena brasileira.
Para o historiador e crítico teatral de O Globo, Gustavo Dória, "o teatro de Nelson
Rodrigues, dentro de seu feitio característico, possui a universalidade que caracteriza as
obras de arte e as torna acessíveis a qualquer platéia". Para Dória, o grupo Os
Comediantes deve seu destaque à ausência de outros grupos buscando um trabalho
artístico de qualidade.
Dois dias depois da estréia de Vestido de noiva, Paulo Bittencourt escrevia no Correio
da Manhã que "nascia o moderno teatro brasileiro".
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Victor Hugo Adler Pereira fez uma análise ela repercussão do trabalho dos
Comediantes. Anteriormente, no Brasil, as companhias teatrais não possuíam diretor de
cena, o empresário e ator principal da companhia dirigia o espetáculo em torno de sua
própria atuação, destacando-a. As idéias de unificação dos elementos de cena (cenários,
atores, luz e som) são trazidas da Europa pelos diretores que vieram para o Brasil,
refugiados durante a guerra, como o próprio Zíembinski. Segundo Victor Hugo, "o
diretor de cena passava a significar um veículo de modernização c de aquisição de
influências estrangeiras". As influências destes conhecimentos técnicos, provenientes do
estrangeiro, fizeram-se notar nos trabalhos das outras companhias. A aquisição destas
técnicas significava, para essas companhias, a internacionalização do teatro brasileiro e
à sua elitização. O modelo estrangeiro representava a possibilidade de modernização do
teatro nacional.
Segundo o dramaturgo João das Neves, a década de 1940 assistiu à formação de uma
nova platéia: a classe média de nível universitário e a alta burguesia. A guerra, ao
dificultar as viagens da burguesia à Europa, fez com que "as últimas novidades do
teatro" se transferissem para os palcos brasileiros. O diretor Louis Jouvet, por exemplo,
fixou-se no Brasil em 1943, imprimindo aqui o estilo europeu de fazer teatro. O
crescimento do ensino universitário também foi responsável pelo surgimento ele grupos
amadores dispostos a experimentar novas formas dramáticas, como, por exemplo, o
Teatro do Estudante, de São Paulo.
Os Comediantes deram continuidade à esta proposta que, mais tarde, foi incorporada
aos objetivos do Teatro Brasileiro de Comedia (TBC). O teatro "para rir" não agradava
ao público formado pelos diversos segmentos das classes sociais que exigiam um teatro
mais reflexivo. O teatro "Sério" seria uma antítese do "teatro para rir”, calcado em
improvisações e cacos. O texto teatral passou a ser valorizado e deveria ser respeitado.
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O texto de Nelson Rodrigues, Vestido de noiva, foi publicado pelo SNT na coleção
Dramaturgia Brasileira. A rubrica do primeiro ato indica as possibilidades cênicas.
"Cenário dividido em três planos: 1º) alucinação; 2º) memória; e 3º) realidade." Alaíde,
a protagonista, foi atropelada e está em uma mesa de operação. A peça ilustra o
movimento de seus pensamentos no instante que antecede a sua morte, os delírios
imaginários e a lembrança do passado confundem-se com a realidade. Alaíde volta no
tempo, no plano da imaginação, para conhecer Mme. Clecy, de quem leu o diário. As
frases de efeito, características do trabalho de Nelson Rodrigues, aparecem já no
primeiro ato, quando Alaíde discute com seu marido, Pedro: "Você fez mal em dizer
que não mataria nunca a sua mulher! Um marido que dá garantias de vida está
liquidado." Aparecem também quando conversa com Mme. Clecy: "Um morto é bom,
porque a gente deixa num lugar e, quando volta, ele está na mesma posição."
A peça desenvolve-se a partir de uma notícia de jornal: uma mulher morreu atropelada
na Glória. As frases de efeito de Nelson Rodrigues lembram manchetes de jornal e o
ritmo rápido e fragmentado dos acontecimentos, o ritmo jornalístico. Alaíde, por sua
vez, afirma ter conhecido mais a história de Mme. Clecy através de jornais lidos na
biblioteca.
No segundo ato, conversando com seu namorado mais novo, Clecy diz, num instante de
arrebatamento, uma frase concisa e poética: "As mulheres só deviam amar meninos de
17 anos." As confusões no interior de uma família, sempre presentes nas peças de
Nelson Rodrigues, aparecem no terceiro ato, em unia discussão entre Lúcia e Alaíde. A
última comenta: "E tão bom tirar o namorado dos outros, então, de uma irmã!" O
marido de Alaíde, antigo namorado de Lúcia, tramou a morte da mulher para ficar com
a cunhada. No final cio terceiro ato, o locutor passava a imagem de uma família unida,
através do formal comunicado do falecimento de Alaíde e do convite para a missa de
sétimo dia:
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Para Décio de Almeida Prado, o sucesso de Vestido de Noiva deveu-se ao fato de que
era o primeiro texto brasileiro que, além de sugerir perversões psicológicas, deslocava o
interesse dramático, centrado não mais sobre a estória que se contava, e, sim, sobre a
maneira de fazê-lo.
Como não existiam escolas, esta mudança só poderia ocorrer, segundo Sábato Magaldi,
através de um estrangeiro, formado pela escola expressionista, "dominando como
poucos os segredos do palco, no qual é um mestre da iluminação, o diretor polonês
Ziembinski".
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O cinema americano havia ganho espaço nos meios de comunicação do Brasil. O teatro
necessitava, portanto, de uma reciclagem estética, para não sucumbir à influência da
estética hollywoodiana.
Apesar de considerarmos que o início cio teatro moderno no Brasil ocorre em 1927 com
a experiência de Álvaro Moreyra, em sua busca de um teatro reflexivo, não há dúvidas
de que o teatro nacional sofreu uma revitalização estética com a estréia de Vestido de
noiva.
BIBLIOGRAFIA
CACCIAGLIA, Mário. Pequena história do teatro no Brasil. São Paulo, Edusp, 1980.
DÓRIA, Gustavo. Moderno teatro brasileiro. Rio de Janeiro, SNT/ MEC, 1975.
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PEREIRA, Victor Hugo Adler. Momento teatral: cultura e poder nos anos 40.
Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, PUC, 1981.