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MARIA AMELIA BULHOES GARCIA ARTES PLASTICAS: PARTICIPAGAO E DISTINCAO. BRASIL ANOS 60/70* Na andlise da estrutura do sistema das artes plasticas no Brasil, deve-se eleger um periodo especifico para identificagao dos individuos e instituigdes que o constituem. O presente trabalho tem como foco as décadas de 60 e 70; neste periodo as principais instituicdes sio os museus, as escolas de arte e as galerias. Dentro delas, pessoas desempenham variadas fungdes; a instituigéo a que pertence e sua funcdo na mesma definem posigdes dentro do sistema que é 0 espago comum em que interatuam. Observa-se ainda que as mesmas realizam varias atividades, 0 que restringe bastante as possibilidades de participacao de outros individuos no sistema. Artistas como, por exemplo, Anna Bela Geiger, Carlos Fajardo, Fayga Ostrower, Ubirajara Ribeiro, sao professores de arte em Universidades ou em outros cursos, puiblicos ou privados, além de atuarem também como produtores. Criticos como Olivio Tavares, Frederico de Morais, Aracy Amaral, Walter Zanini, por sua vez, desempenham, além das atividades criticas, a docéncia sobre teoria e histéria da arte e sio também administradores, na diregao de museus e instituicdes de ensino. Mesmo a atividade do marchand, * Texto elaborado a partir das conclusdes de tese de Doutorado apresentada no Curso de Histéria da USP - 1990. Porto Arte, Porto Alegre, v.3, n.6, dez. 1992. 34 que é basicamente a comercializagao, pode se estender & administragdo, como ocorreu com Jean Boghici em relacao A importante mostra "Opiniao 65" ou A direco da galeria Collectio, que promoveu a publicacao do livro-catélogo "Arte Brasil, 50 anos depois" em comemoraciio aos cingiienta anos da Semana de Arte Moderna As instituigdes igualmente interagem e alternam seus papéis. O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, por exemplo, além da atividade especifica, de sediat mostras, manteve, durante longo periodo em atelier préprio, cursos de gravura, desenho, pinturae mesmo histéria daarte. O Museu de Arte Moderna de Sao Paulo foi responsivel pela producao de eventos como © Panorama da Arte Atual Brasileira, premiando anualmente artistas, numa. espécie de selegio nacional dos melhores em cada Area (pintura, desenho, gravura e escultura). Estes museus, piblicos ou privados indistintamente, também searticulavam e interagiam com o circuito comercial de galerias. Uma mesma mostra, como a do grupo de artistas argentinos da Nova Figuracio, foi exposta no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro e na Galeria Boninoe o Museu de Arte de Sao Paulo (MASP) promoveu,, conjuntamente com a galeria Arte Aplicada, a exposigéo do Mével e Objeto Inusitado. Uma observaciio detalhada permite afirmar que as instituigdes se articulamem uma complexa rede de relages Assim, 0 sistema das artes plasticas é responsavel pela produco, circulagéo e consumo de objetos e eventos plasticos, garantindo-os com sua. legitimidade € fortalecendo-se com o sucesso destas realizagdes. Em torno desta rede circula tudo que pode ou aspira a ser considerado arte dentro da sociedade. Os individuos inseridos nesta estrutura so responsaveis por um processo de legitimagaio (a rotulagao a que se refere Howard Becker. Participar deste sistema de relagGes significa poder rotular como "arte" determinadas produgGes e como "artistas", determinadas pessoas. Por outro lado, o sistema das artes plisticas & apresentado a populagao em geral através dos meios de comunicagio de massa. Um espago especifico dle divulgaciio das artes plasticas dentro destes meios oportuniza também ao seu responsivel uma posicao de poder dentro do sistema das artes. Assim, por exemplo, varios periodistas, jornalistas que se especializavam no tema, como Olivio Tavares, Olney Cruse, ou Harry Laus, passaram a dispor de um poder de rotulagio que foi proporcional ao nivel de penetrago dos periddicos em que atuavam. Os meios de comunicagao, como um todo, néio fazem parte do sistema das artes, mas os espacos especificos dedicados as artes, 35 plasticas dentro dos mesmos tornaram-se assim, segmentos do sistema das artes, A importancia dos meios de comunicagiio de massa deve-se ao fato de que eles divulgam a imagem das artes plasticas ao grande piiblico, reforgando seu elitismo como signo de distingao social. As matérias sobre artes plasticas no periodo em estudo, ocupavam um lugar préprio dentro das paginas de cultura, © que ja as colocava em um espago privilegiado em termos de valor cultural, Em geral, utilizavam uma quantidade de objetivos superior a das demais matérias, referenciavam a presenga de personalidades nos eventos ¢ as cifras astronémicas que certas obras alcancavam em sua comercializagao, O texto das matérias estabelecia na maioria das vezes uma relacao das artes plasticas com erudico, sofisticagaioe bom gosto. Obrasde arte eram também utilizadas como chamadas em anincios publicitarios mais sofisticados. Além destas constatacdes basicas sobre a estrutura complexa € articulada do sistema das artes plasticas e de sua légica de distincao social, pode-se aprer Ses relativas a sua insergdo no proceso histérico. Iguns setores da intelectualidade brasileira, principalmente no meio universitario, inauguravam um novo modelo de atuagao artistica, comprometendo seu fazer com as lutas seguia o seu femacionalizante, com predominio das tendéncias abstracionistas, que vinham se impondo desde o inicio da década de 50 que alcancaram seu ponto maximo no inicio dos anos 60, com 0 concretismo e o neocentrismo. As renovagdes se desenvolveram sem maiores alteragdes na estrutura do sistema, e, principalmente, sem que as disputas sociais, que conflituavam a sociedade, o atingisse. Pelo contririo, as artes plasticas eram apresentadas como sindnimo de estabilidade e valor garantido. Neste periodo, omercado de arte apresentou um crescimento significativo, com accriagao de galerias de maior porte como a Bonino no Rio de Janeiroe Astréia em So Paulo, demonstrando que_a crise que envolvia alguns setores da 36 rios destacavam 0 alto nivel e qualidade da arte brasileira, bem como o seu internacionalismo. Aarte era vista, também, como um signo da modernidade que se implantava desde a década de 50, com o fortalecimento do parque industrial de bens de consumo duraveis. Desenvolvimentismoe modernidade artistica foram slogans dos novos tempos que determinados segmentos da elite propunham-se construir. Na crise deste modelo (61-64), os questionamentos sociais nao atingiram as artes plasticas, cujo piiblico, restrito e sofisticado, permaneceu identificado com 0 projeto de modernizacao. As artes plisticas mantiveram, neste momento seu espacgo permanente dentro dos meios de comunicagio social. Nestes, nao se percebe questionamentos mais profundos ou grandes antagonismos, pelo contrario, uma arte mais tradicional, figurativa ¢ de inspiragéo modemista, seguia ao lado da abstragao dividida em duas vertentes (uma mais informal e intimista e outra mais geométrica e racional). Eram tendéncias estilisticas diferenciadas, que, inclusive, se identificavam com projetos e visio de mundo conflitantes, em alguns pontos, mas que se harmo- nizavam na manutengiio da Idgica de distingao do sistema das artes plasticas. resultaram de estratégias de subversio, empreent insatisfeitos com o projeto que os setores d ocedade tale © model uM imagen Neste momento, eM que a mobilizaca se influenciada por setores de classe média urbana e mesmo por setores descon- tentes da classe dominante, disseminou-se no sistema das artes plasticas uma série de estratégias de subversio, para favorecer a maior participago do piiblico nos processos de produgio circulacioe consumo de bens culturais plasticos. Esta orientagao de certa forma desestabilizou asartes plisticas em sua funcdio de distingao social, seguindo um padrao generalizado na cultura brasileira neste momento. O objetivo basico destes movimentos culturais era a mobilizagiio da sociedade civil através da arte, numa tentativa de questionar e mesmo frear os avangos do autoritarismo. Preocupados em encontrar formas de atuagio dentro do sistema, alguns individuos questionaram seu elitismo, usando como referencial as vanguardas internacionais mais criticas, como o Pop ¢ a Nova Figuragiio. O 37 grupo Nova Objetividade, por exemplo, que incluia artistas iniciantes, como Anténio Dias, Rubens Guerschman, Pedro Escosteguy e outros, ja consagrados, como Hélio Oiticica e mesmo criticos de renome como Maio Pedrosa, atuou de forma bastante politizada. As estratégias de subversfo internas ao sistema, de certa forma, corespondiam as demandas da sociedade, sendo também agdes sas no Pais. A fermentagio que se pode observar de 64 a 69 introduziu alteragdes, por exemplo, no papel que os sales passaram a desempenhar, diferenciando-se do tradicional salfio académico e modernista, cuja funciio maior era legitimar artistas e difundir um estilo de produco. Surgiram entio, uma variedade e quantidade de novos saldes; financiados com verbas piblicas ou privadas, eles tinham em comum o cariter renovador e democratizante. Neles péde vir & tona uma produgo mais questionadora, abrindo-se possibi dades de apresentagzio de obras que, por suas caracteristicas especificas, no teriam possibilidades de serem exibidas em museus ou galerias. Os Saldes foram uma espécie de Feiras de exposigées do que de mais novo ¢ ousado se pensavae executava em artes plisticas no Pais, Sua nova dindmica, atraia um plblico maior e mais diversificado. A partir de 69, no entanto, o Estado Autoritario se consolidou através do Ato Institucional n°. 5, sustando o processo de resisténcia democratizante que se desenvolvia dentro do panorama artistico. A partir de entao e ao longo da primeira metade da década de 70, o sistema das artes plasticas retomou seu elitismo com 0 apoio seguro permanente do Estado. Sendo utilizado, em muitos casos, na legitimagao da hegemonia dos segmentos de classe dominante que assumiram o poder através do autoritarismo. Para legitimar a distingao de determinados grupos sociais, Teforcou-se a separacao entre "arte" e "ndo-arte". As estratégias utilizadas foram desde a desarticulagao de iniciativas democratizantes como feiras e outras propostas do mesmo género, até o favorecimento da implementagao de uma experimentagao intelectualizada e hermética de dificil apropriagao pelo publico em geral. O controle do Estado, através de limites impostos a determinadas priticas artisticas ofereceu um padrao externo de repressio € censura. O sistema, assim, nfio.aparecia como repressor ou limitador, mas antes como um espaco de liberdade. Neste perfodo (69 a 73 mais especificamente), 38 © Estado deteve o controle do que podia ser dito ou feito em termos gerais na sociedade brasileira, e, assim também, nas artes plasticas, Neste momento, dos mais fechados do autoritarismo, algunssegmentos do sistema dasartes plisticas viram-se fortalecidos, com forte apoio estatal, através por exemplo, da criagio de salées, como os dos Transportes ¢ o da Eletrobras, mas principalmente, pela transferéncia e concentracao de renda, que abriu novas possibilidades de aites plasticas, como fontede legitimacaio Foi, portanto, no periodo que se estendeu entre 69 e 75, que o sistema dasartes plasticas no Brasil consolidou a forma elitistae aparentemente despolitizada que seguiu posteriormente. E 0 fez com 0 apoio do governo autoritario para o qual censura e financiamento foram as estratégias utilizadas. Este papel do Estado, no entanto, foi bastante encoberto, o sistema das artes plasticas passava uma imagem de autonomia que era irreal em um pais como o Brasil, em que o mercado de bens culturais de luxo era restrito ou ittisério. Mesmo na etapa seguinte, quando os setores empresariais responsiveis pela comercializaco tenderam a assumir 0 controle do sistema, retirando das maos do Estado um maior compromisso con a manutengao destas praticas artisticas, ele permaneceu ainda como seu grande cliente Apartirde 1975, 0 sistema das artes plasticas evidenciava jauma estrutura compativel com o avango das relagdes capitalistas monopolistas dominantes no Pais. A empresa privada, através de seus segmentos especificos, ‘os marchands, assumia o comando do sistema, estimulando a progressiva setorizagio da produgio e da comercializagao. Galerias se especializaram em gravuras, outrasem objetosou arte conceitual e, outrasainda, em uma producao mais académica e conservadorg agiotendeu a absorver absor¢ao de padrdes estéticos ¢ estilos, mas um entrosamento estrutural, na medida em que os mesmos procedimentos de produco, consumo e difusio internacionais, foram utilizados dentro do Pais. A despolitizagao se fez, entao, or uma censura diteta, nas pela propria ideotovia de uma arte pura ndo acima das con 0, difusdio e consume 39 O setor empresarial, consolidado na segunda metade de década de 70, atuou basicamente na comercializacio e difusio, promovendo a troca entre os capitais cultural, econémico e social. Estas empresas-galerias partici- pavam também na constituigao do valor simbélico que se acrescentava a obra. Isto se dava através de suas relacGes de poder dentro da estrutura do sistema das artes plasticas onde se estabelece a legitimidade dos produtos e processos artisticos. O setor empresarial teve forte participagiio na valorizagfio de artistas e obras quando, por exemplo, fez a selecao para a mostra "Arte Brasileira Hoje: 50 anos depois", usar outro exemplo lA ou ca, editando um catalogo-livro. O Prestigio que determinadas empresas obtiveram com sua atuagao, por outro lado, também as legitimava como rotuladoras. Assim ao expor um artista, com Aapresentagao de um critico destacado, muitas vezes contratado pela propria galeria, e divulgar o evento nos meios de comunicagao, acrescentavam a obra um valor simbélico que se constituia também em valor de mercado. Aanilise da atuagao do sistema das artes plisticas nas décadas de 60 € 70 permite algumas consideracées finais. A primeira delas é que neste periodo, no Brasil, o Estado ampliou progressivamente sua ago junto as artes plasticas, cumprindo trés tarefas basicas: estancar as propostas democratizantes e participativas que se formularam na segunda metade dos anos 60; de forma indireta, através do processo de concentracio de renda, favorecer o fortaleci- mento do mercado das artes ¢ instaurar, por meio de varias formas de apoio, o laboratério experimental de uma arte conceitual, internacionalmente atualiza- da, que o mercado posteriormente absorveu Observa-se assim que o Estado interferiu decisivamente, de forma direta ou indireta, na adequago do sistema das artes plasticas a légica de mercado, garantindo um elitismo que era, por sua vez, titil 4 legitimagao de um regime politico autoritario, também elitista. A segunda considerag&o é que, durante o periodo em estudo, 0 sistema das artes plasticas assumiu progressivamente uma tendéncia internacionalizante. Esta internacionalizagao ocorreu em fungio de dois fatos principais: primeiro pela expansio da industria cultural que atingiu amplas camadas da populacio, divulgando ¢ inundando seu cotidiano de padrées culturais internacionais, e segundo pela identificagao das elites brasileiras com os valores das elites internacionais com que se aliaram. Incorporou-se assim na producio, difuszio e consumo, modelose padrdesestéticos dos péloshegeménicos emnivel internacional, seguindo as grandes correntes. Além disso, ampliaram- se os intercmbios entreas instituicdes locais e suas congéneres internacionais. 40 Finalmente, cabe apontar uma consideragao fundamental paraa compreensao do sistema dasartes plasticas neste periodo. Apesar dastentativas de modificagées democratizantes, este sistema manteve predominantemente um papel elitistano conjunto das praticas artisticas no Pais, servindo a distingaio daqueles grupos restritos que a ele podiam ter acesso. Cabe lembrar, no entanto, ‘sistema dasartes plasticas, mantendo suas especificidades, estéestreitamente relacionado ao meio social. A manutengio do elitismo ou sua democratizacio dependem, em grande parte, do proprio curso seguido pela historia brasileira. BIBLIOGRAFIA AMARAL, Aracy. Arte para qué? A preocupagao social naarte brasileira. S40 Paulo : Nobel, 1984. BECKER, Howard. Les Mondes de l'art. Paris : Flamarion, 1988. BORDIEU, Pierre. A Economia das trocas simbilicas. Sao Paulo : Perspec- tiva, 1982. BRUM, Argemiro. O Desenvolvimento econdmico brasileiro. Petrépolis : Vozes, 1982. CANCLINI, Nestor Garcia. La Produceién simbéli 1979. MANTEGNA-MORAES. Acumulagao monopolista e crises no Brasil. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1979. PECCININI, Daisy (coord.) Objeto na arte: Brasil anos 60. Sao Paulo: FAAP, 1978. ___. Arte. Novos Meios Multi PONTUAL, Roberto. Arte br do Brasil, 1972. ZANINI, Walter. Histéria geral da arte no Brasil, Sao Paulo ; Inst. Valter Salles, 1983. . México : Siglo XX1, : Brasil anos 70. Sao Paulo : FAAP, 1985. contemporanea. Rio de Janeiro : Jomal MARIA AMELIA BULOES GARCIA - Doutora em Historia Social pela USP; Prof*de Historia da Cultura do Departamento de Histéria do IFCH/UFRGS; Prof*e Coordenadora do Curso de Pés-Graduagito- Mestrado em Artes Visuais do IA/UFRGS; Presidente da Associagdo Nacional de Pesquisadores em Artes Plasticas. 41

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