PRIMEIRO

SEMESTRE
2012

27

O Caderno de Teatro é uma seleção de artigos

#08
e entrevistas com artistas que nos últimos anos
participaram do Festival Palco Giratório no Arte Sesc
– Cultura por toda parte. Sua edição desempenha
um papel fundamental na difusão de conhecimento.
Nas páginas que seguem, apresentamos um
artigo repleto de depoimentos sobre os inúmeros
encontros do Odin Teatret com artistas de
Porto Alegre ao longo de 25 anos, além de um
quadro completo sobre a passagem do grupo pelo
7º Festival Palco Giratório, realizado em maio.

Por Patricia Furtado de Mendonça

atriz, professora, tradutora e consultora de projetos teatrais

Odin Teatret
e Porto Alegre
histórias, influências e reflexões
sobre o fazer teatral
1987-2012

Fotos: Claudio Etges

 PRIMEIRO
SEMESTRE
2012
28
Premissa
É possível narrar uma história sem ser parcial?
Acho que não. Por isso, na tentativa de ser o mais
imparcial possível, tento aqui dar voz a diferentes
estudiosos e artistas do Rio Grande do Sul, mais
especificamente de Porto Alegre, que ao longo
desses 25 anos encontram o Odin Teatret em
diferentes geografias, no Brasil e no exterior.
Os territórios, por si só, não determinam a
História, nem as histórias. Digo isso porque a relação
entre o Odin Teatret e Porto Alegre é toda feita de
atravessamentos, de viagens. É puro movimento.
Uma história que vai se construindo sobretudo
fora dos próprios confins: uma professora que vai
encontrar o grupo em São Paulo, outros professores
e alunos que os seguem no Rio, artistas que partem
para Londrina ou Holstebro. Muita gente foi ao
encontro do Odin fora de casa, mas para depois
voltar e compartilhar conhecimentos, saber. Para
transmitir. E é assim que tem início a história entre
o Odin e Porto Alegre – “fora de casa” – até que
fossem criadas as condições para receber o grupo
na cidade e assim multiplicar a possibilidade dos
encontros. Afinal, “encontros” e “reencontros” não
estão entre as maiores alegrias que o mundo do
teatro pode nos proporcionar?
Tentarei aqui alinhavar vivências, opiniões,
influências e sentimentos plurais com relação ao
Odin, buscando restituir, a quem lerá o texto até
o fim, um pouco do que me foi contado até agora.
E, o que é mais importante, considerando que a
junção destes vários fatos e lembranças tem o
poder de despertar como reflexão sobre o valor e o
1  As entrevistas filmadas foram feitas por mim com Irion Nolasco e Alexandre Vargas em maio de 2012, durante o 7º Palco
Giratório. Os outros depoimentos me foram enviados por email por todos os outros artistas e estudiosos acima citados, entre
maio e junho de 2012.
sentido do teatro (e do “teatro de grupo”) hoje, em
Porto Alegre e no mundo.
Insisto: meu objetivo aqui não é fazer análises
ou críticas, mas simplesmente costurar memórias.
São apenas os tijolos de base.
Agradeço profundamente a disponibilidade e
a generosidade de todos os que estão aqui comigo
para “contar essa história”, escondidos ou revelados
nestas entrelaçadas linhas: Irion Nolasco, Maria
Lúcia Raymundo (in memorian), Nair D’Agostini,
Jezebel de Carli, Tatiana Cardoso, Gilberto Icle,
Alexandre Vargas, Jane Schöninger, Lucas Sampaio
e Álvaro Rosa Costa. Ao fim deste artigo, também
encontraremos uma carta-depoimento de Priscila
Duarte, que não é de Porto Alegre, mas participou
da residência artística com o Odin no último Palco
Giratório da cidade. Um destaque especial vai para
a contribuição da atriz do Odin Julia Varley, que nos
presenteia com uma lúcida reflexão sobre os desafios
encontrados pelo jovem de hoje para adquirir as
ferramentas necessárias ao ofício do ator, para fazer
teatro e para manter-se em um grupo.
Participei, a convite do Odin Teatret e do
Sesc/RS, deste 7º Palco Giratório de Porto Alegre.
Foi ali que tive a oportunidade de conhecer pes-
soalmente quase todas as pessoas citadas acima.
As informações contidas neste texto foram-me
fornecidas, em sua maioria, através de entrevistas
filmadas e inúmeras trocas de e-mails[1].
Fica aberto o espaço para futuras contribui-
ções e discussões. Para novos encontros, e reen-
contros. Para novas histórias, influências e refle-
xões sobre o fazer teatral.
CADERNO DE TEATRO
Primeiros contatos
O Odin Teatret, grupo dinamarquês fundado por
Eugenio Barba em 1964, após ter percorrido
diversos países europeus e latino-americanos,
chega ao Brasil pela primeira vez em 1978, quando
os atores Roberta Carreri e Francis Pardeilhan
passam dois meses em Salvador estudando
capoeira e dança dos orixás: preparam-se para o
espetáculo O Milhão.
Em 1987, Barba vem duas vezes ao Brasil em
turnê. Da primeira vez, entre maio e junho, passa
por Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro. Profes-
sores e artistas do Rio Grande do Sul partem para
o Sudeste para seguir as atividades do Nordisk
Teaterlaboratorium. Nair D’Agostini, que na época
era professora da Universidade Federal de San-
ta Maria (UFSM), participa das atividades de São
Paulo e Campinas: segue um workshop com o ator
Richard Fowler e um curso sobre a Antropologia
Teatral conduzido por Barba, além de assistir aos
espetáculos Matrimônio com Deus, com César Brie
e Iben Nagel Rasmussen, e Esperando o Amanhe-
cer, com R. Fowler.
CADERNO DE TEATRO
2 Richard Fowler, Ulrik Skeel, Lena Bjerregård e César Brie (Iben Nagel Rasmussen não pôde participar das atividades do Rio de
Janeiro, pois estava com hepatite).
Logo em seguida, outros estudiosos e artis-
tas de Porto Alegre partem para o Rio de Janeiro
com vontade de saber mais sobre o Odin. A inicia-
tiva foi de Irion Nolasco e Maria Lúcia Raymundo,
sua esposa, ambos professores do Departamento
de Arte Dramática (DAD) da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS). Eles estimulam
seus alunos a partirem com eles para o Rio. Lá,
assistem ao espetáculo Esperando o Amanhecer
e seguem a Parada de Rua com alguns dos atores
do Nordisk Teaterlaboratorium[2]. Jezebel de Carli
– atriz, professora e diretora da Santa Estação Cia.
de Teatro –, que faz parte da caravana, em um
texto intitulado Contaminação Sorrateira: Encon-
tros com o Odin, nos conta:
Era o ano de 1987. Eu era uma jovem es-
tudante de teatro. Tinha vinte e poucos
anos e uma vontade imensa de mudar,
mover. Acreditava no teatro como uma
possibilidade de transformação. Estava
nesse ano envolvida com uma pesquisa
sobre as energias corporais e vocais do
trabalho do ator, a qual era orientada
pelos professores Irion Nolasco e Maria
Lúcia Raymundo. Barba estava desem-
barcando no Brasil e, segundo Irion, era
preciso que fôssemos ao seu encontro,
pois sua pedagogia seria fundamental.
Naquela época, eu havia estabelecido
com Irion e Maria Lúcia uma relação
de mestre e discípulo e, como um bom
aprendiz, aceitei a indicação sem ques-
tionar, pois acreditava que um mestre
vem a você com um barco e lhe diz,
“Vem! Se deseja ir para a Costa Doura-
da, eu o levarei. Além disto, uma vez no
meu barco, você poderá cantar, dançar
e até dormir, mas eu o levarei à meta
em segurança”. Bárbaro!!!! Vamos nos
inscrever nas oficinas. É claro que não
fomos selecionados, pois éramos, tal-
vez muito jovens, inexperientes e ainda
imaturos. Mas, mesmo assim, fomos, de
ônibus, rumo ao Rio de Janeiro, em busca
de algo. Sim, encontramos algo, muito
maior do que a nossa expectativa pudes-
se supor. O encontro com a tradição do
Odin foi como um presente que como-
veu a alma e provocou um pensamento.
Assim, pensei: é dessa forma que quero
fazer teatro!!!! Com ética, treinamento,
coragem, entrega, disciplina, pelo corpo,
com continuidade, curiosidade, perseve-
rança e apaixonamento.
Para Irion, essa ida ao Rio não basta. Saben-
do que Barba voltaria ao Brasil meses depois e
PRIMEIRO
SEMESTRE
2012
29
que conduziria, no Rio, um seminário para direto-
res, em outubro de 1987 ele faz as malas e volta
à cidade, buscando uma maior aproximação com
o criador da Antropologia Teatral. De Porto Alegre
também parte Maria Helena Lopes, fundadora do
grupo TEAR e que também foi professora do DAD
da UFGRS. Os dois participam deste seminário
histórico, frequentado não só por diretores, mas
também por atores e críticos teatrais de vários
estados do Brasil. O seminário desperta opiniões
muito contraditórias, como nos conta Irion:
Sim, foi um momento muito crítico. [...]
Eu me comovo com o Barba. Ele proce-
deu de uma maneira que só poderia ser
de um mestre, só poderia ser dele. Lá
estavam vários astros de TV, artistas do
Rio que já trabalhavam há anos dentro
daquele mesmo “esquemão” e com uma
modéstia mínima. Eles chegavam, abriam
a porta e iam entrando. Então, um dia,
o Barba disse: “Não, não é assim. Vocês
não podem ir chegando. Sabem que exis-
te um horário de chegada. Então vocês
têm que obedecer a este horário”. Foi uma
revolta geral. [...] Criticavam a firmeza, a
exigência e a disciplina. Muitas daquelas
pessoas não se davam bem com isso, não
sabiam como fazer. Porque no teatro bra-
sileiro, você sabe, parece que você nasceu
ungido por alguma entidade, e aí isso te
dá o dom do teatro. E não é isso. É um
trabalho como outro qualquer, um traba-
lho de anos e anos. Você pode constatar
isso vendo os atores do Odin.
 PRIMEIRO
SEMESTRE
2012
30
Mas para mim foi uma coisa espetacu-
lar, foi maravilhoso. [...] Esse workshop
no Rio de Janeiro foi a experiência mais
marcante da minha vida.
Podemos afirmar que é a partir desses en-
contros de 1987 que os princípios da Antropo-
logia Teatral de Barba começam a entranhar re-
almente nos departamentos de teatro da UFRGS
e da UFSM, assim como em núcleos de pesqui-
sa locais sobre o trabalho do ator. Um dos mais
representativos é o núcleo dirigido pelo próprio
Irion e por Maria Lúcia: As Energias Corporais no
Treinamento do Ator – citado por Jezebel ante-
riormente – que além de trazer os ensinamentos
de Arthur Lessac, também trata dos princípios da
Antropologia Teatral. Deste núcleo, também vem
a fazer parte a atriz Tatiana Cardoso, hoje tam-
bém professora da UERGS.
Quem nos oferece uma leitura específica so-
bre o interesse pelo Odin e pela Antropologia Tea-
tral em Porto Alegre, no meio acadêmico e artístico
daqueles anos, é Gilberto Icle, criador da UTA (Usi-
na do Trabalho do Ator) e hoje professor da UFRGS:
O teatro de Porto Alegre foi bastante
sensível ao trabalho de Eugenio Barba,
pois a cidade tem uma tradição de te-
atro de grupo que remonta à década de
1950. Além disso, as universidades que
ofereciam formação teatral no Estado
do RS sempre potencializaram a ideia
de teatro laboratório, ou seja, há um
3 Barba, Eugenio. Além das Ilhas Flutuantes, Ed. Hucitec, São Paulo, 1991. Tradução: Luis Otávio Burnier.
ambiente propício para a pesquisa da
linguagem e a formação do ator. Assim,
alguns grupos e artistas da cena gaúcha
se interessaram pelo trabalho do Odin
a partir da sua primeira visita ao Bra-
sil, em 1987. Mas foi a década de 1990
que tornou a influência uma parceria.
Nesses anos, alguns de nós trabalhamos
intensamente com o grupo dinamarquês
e assistimos a muitos de seus trabalhos.
Escreveu-se e trabalhou-se a partir das
ideias da Antropologia Teatral. Eu diria
que a principal influência tenha sido uma
certa ética do trabalho grupal que tem na
palavra "pesquisa" um catalisador. O tea-
tro em Porto Alegre notadamente mudou
de cara nos últimos 20 anos e aquilo que
era exótico e estranho – o treinamento, a
investigação – passou a ser moeda cor-
rente e sinônimo de qualidade artística.
Essa forma de organização do trabalho,
com ênfase no processo e na formação
do ator, tem, sem dúvida, um atravessa-
mento do trabalho pedagógico do Odin,
seja pelo trabalho direto com o grupo,
seja via o trabalho de Luiz Otávio Burnier
e do LUME de Campinas.
Início dos Anos 90
Nos anos 1990, de fato, diferentes artistas e es-
tudiosos do Rio Grande do Sul têm a oportunida-
de de se aproximar ainda mais do Odin Teatret.
Em 1991, incansáveis, Irion e Maria Lúcia vão até
CADERNO DE TEATRO
Holstebro e ali permanecem em imersão durante
cerca de 10 dias, assistindo a todos os espetácu-
los do grupo e participando de várias outras ati-
vidades. Irion recorda:
Fiquei maravilhado, com tão pouco fa-
zer tanto. Era mais que uma ousadia.
(...) Quando vi Casamento com Deus, me
emocionei demais. (...) E claro, o trabalho
deles, extraordinário, inesquecível. Ainda
mais ao vivo e a cores. Porque se você vir
no vídeo, não causa este impacto. Há um
distanciamento. E ali não, eles vinham
perto de você. Também vi a Roberta com
Judith, outro arraso. Era tudo um arraso,
eu dizia: meu deus do céu, o que é isso?
No mesmo ano, Tatiana Cardoso segue para
Londrina – cidade para onde o Odin retorna inú-
meras vezes – e participa da Mostra Odin Teatret,
organizada por Nitis Jacon por meio do FILO (Fes-
tival Internacional de Teatro de Londrina). Ainda
em 1991, é publicado o primeiro livro de Barba
no Brasil, Além das Ilhas Flutuantes [3], com tra-
dução de Luis Otávio Burnier (1956-1995), ator e
fundador do LUME, grupo teatral que há alguns
anos mantinha uma relação muito estreita com
o Odin e que, por sua vez, sempre teve uma for-
te proximidade com inúmeros grupos teatrais de
Porto Alegre, sobretudo através de seminários e
oficinas – como já nos disse Gilberto Icle.
Em maio de 1993, Gilberto assiste ao espe-
táculo Kaosmos e a outras demonstrações de tra-
CADERNO DE TEATRO
balho do Odin em Córdoba, na Argentina. Alguns
meses antes, em janeiro, Tatiana Cardoso e Maria
Helena Lopes participam de um seminário de três
semanas conduzido por Iben Nagel Rasmussen
em Londrina, que culmina com a apresentação do
espetáculo Pontes sobre o Vento. Tatiana nos conta:
Coreografia para atores e bailarinos in-
teressados em trabalho de voz. Este era
o título do seminário que Iben realizou
através do FILO, em 1993. Um seminário
em regime de imersão na chácara São
José com muito verde, silêncio e uma pis-
cina bem oportuna. Eu havia conhecido o
trabalho do Odin em 1991 e tinha ficado
particularmente tocada pelo trabalho de
Iben. Era um período em que estava bus-
cando cursos de aperfeiçoamento, e esta
proposta, naquela época, já apresentava
um atravessamento de técnicas que acre-
ditava serem fundamentais para o artista:
um ator que dança, um bailarino que can-
ta, ou seja, artistas empenhados em olhar
para si mesmos, em treinar seu ofício além
do que previamente já está estabelecido.
Tive certeza de que seria uma ótima ex-
periência para mim e foi muito mais que
isso. Me inscrevi no seminário a convite
de Carlos Simioni, que já trabalhava com a
Iben na época. Fui selecionada através de
carta de intenção e currículo. [...]
Eram mais ou menos 10 horas diárias de
trabalho, com um intenso treinamento
físico pela manhã. Foi uma experiência
riquíssima, profunda, radical. Sempre que
tenho que escrever ou refletir sobre esse
tipo de processo, me vem em mente que
é através do teatro que a vida me coloca
melhor diante de mim mesma. É nestas
ocasiões, quando treino, mergulho e pra-
tico a arte que amo, que minha integri-
dade física, psicológica, mental, crítica
diante do mundo e dos outros é exerci-
tada, lapidada, transformada. Naquele
seminário, me sentia viva como nunca,
desperta, consciente que minha tarefa
era um tesouro, algo sagrado.
No ano seguinte, em 1994, sempre em Lon-
drina, Nitis Jacon organiza a 8ª sessão da ISTA
(International School of Theatre Anthropology),
“aldeia teatral” fundada em 1979, onde atores e
dançarinos de diversas culturas – Oriente e Oci-
dente– encontram estudiosos para investigar,
confrontar e aprimorar os fundamentos técnicos
de sua presença cênica. Dela participam diversos
artistas e estudiosos de Porto Alegre: Tatiana Car-
doso, Irion Nolasco, Maria Lúcia Raymundo, Nair
D’Agostini, Paulo Maurício Guzinski e Alice Padi-
lha Guimarães, que hoje faz parte do grupo Teatro
de los Andes, sediado em Sucre, na Bolívia, e fun-
dado em 1991 por César Brie, ator que integrou
o Nordisk Teaterlaboratorium entre 1980 e 1990.
Irion Nolasco e Nair D’Agostini conseguem,
por meio de suas universidades e da Secretaria
do Estado, um apoio econômico para a realiza-
PRIMEIRO
SEMESTRE
2012
31
ção da ISTA de Londrina. Com isso, montam um
seminário “pós-ISTA” que tem desdobramentos
na UFRGS e na UFSM. Chama-se Seminário In-
ternacional Teatro em Fim de Milênio e conta
com a presença de alguns artistas e intelectuais,
inclusive aqueles do staff científico da ISTA: Pa-
trice Pavis, Jean Marie Pradier, Nicola Savarese,
Franco Ruffini, Ian Watson e Rafael Mandressi,
além da dançarina indiana Sanjukta Panigrahi
(1944-1997) e sua orquestra. Eles conduzem
palestras e espetáculos em Porto Alegre, lo-
tando o teatro com cerca de 300 pessoas. Para
Santa Maria, seguem Jean Marie Pradier, Franco
Ruffini e Sanjukta Panigrahi, que ali apresenta
dois espetáculos. Vários alunos da UFSM acom-
panham as apresentações nas duas cidades.
Com relação ao impacto daquelas palestras e da
apresentação de Sanjukta em Santa Maria, Nair
D’Agostini comenta:
No Curso de Artes Cênicas da UFSM,
alguns professores já trabalhavam em
aula os princípios e algumas técnicas
da Antropologia Teatral, tanto na in-
vestigação prática quanto na teoria.
Havia projetos de investigação científica
e artística a partir da cultura gaúcha –
financiados pelo CNPQ, pela FAPERGS
e outros órgãos financiadores da uni-
versidade – em que eram utilizados os
conceitos e princípios da Antropologia
Teatral. Os conteúdos sobre o Odin, Bar-
ba e a Antropologia Teatral eram desen-
 PRIMEIRO
SEMESTRE
2012
32
volvidos na disciplina “Ética e Estética”,
em que, além de material bibliográfico,
os alunos tinham acesso a vídeos de de-
monstrações técnicas de atores do Odin
e espetáculos. O curso também tinha um
intercâmbio intenso com o LUME e pro-
movia oficinas e espetáculos. Portanto, já
havia uma certa familiaridade com esse
conhecimento e tradição.
Quanto ao impacto produzido pelos es-
petáculos de Sanjukta, foi algo inimagi-
nável, sobretudo no Caixa Preta, Teatro
do Centro de Artes e Letras da UFSM. Ali,
alunos e professores puderam vivenciar,
além da magia da dança Odissi, a eficá-
cia expressiva de seus princípios para a
arte do ator. Um espectador não ligado às
artes cênicas fez o seguinte comentário:
“Saíam raios luminosos de seus pés, tão
intensa era a energia que ela emanava”.
1995: Eugenio Barba e Julia Varley
chegam a Porto Alegre
As sementes lançadas no seminário Teatro em
Fim de Milênio começam a criar raízes. É preciso
adubar a terra. Irion, Maria Lúcia e Nair reúnem
forças mais uma vez e conseguem organizar
outro encontro: em 1995, Eugenio Barba e Julia
Varley chegam pela primeira vez a Porto Alegre.
Sobre este projeto, nos conta Nair D’Agostini:
Irion e Maria Lúcia tinham sido professo-
res do Curso de Artes Cênicas da UFSM,
e o projeto Teatro em Fim de Milênio
foi uma continuidade da parceria entre
UFSM e UFRGS para a vinda do Potlach,
da Itália, para Porto Alegre e Santa Maria,
com espetáculos, parada de rua, oficinas,
apresentações técnicas e conferência.
Dessa forma, Teatro em Fim de Milênio
foi uma produção, coordenação e orga-
nização conjunta, sendo que o sucesso
e o resultado desse evento, assim como
dos precedentes, nos levou a dar con-
tinuidade e unir forças para esse novo
projeto, sobretudo porque o espectador
gaúcho não conhecia os espetáculos do
Odin, e considerávamos que, além da
oportunidade de poder fruir de sua ino-
vadora estética, também o espetáculo, as
demonstrações técnicas, a oficina e as
conferências trariam um aporte impor-
tante aos profissionais de teatro, como
também para a pedagogia teatral. Essa
parceria nos levou a organizar e concre-
tizar outros importantes projetos, que, de
certa forma, estavam interligados e fo-
ram frutos do contato com a Antropolo-
gia Teatral, como o curso "Poética e Gra-
mática do Mimo Corpóreo", ministrado
por Thomas Leabhart, do Pomona College
University of Califórnia – USA, realizado
na UFSM e na UFRGS, ainda em 1995.
Foram apenas três dias de evento em Porto
Alegre: 6, 7 e 8 de dezembro. Mas a programação
foi intensa e, mais uma vez, lotou todos os espaços
que acolheram as atividades do Odin Teatret: Casa
de Cultura Mario Quintana, Teatro Carlos Carvalho
e Salão de Atos, onde Julia Varley apresentou seu
espetáculo solo O Castelo de Holstebro e suas de-
monstrações de trabalho O Irmão Morto e O Eco do
Silêncio. Eugenio Barba conduziu uma palestra e,
junto de Julia Varley, um seminário para estudan-
tes e artistas. Lembra Irion Nolasco:
A palestra de Barba aqui, em 1995, des-
pertou uma tremenda curiosidade da-
queles que falavam sem conhecer. Eles
encheram o plenário da universidade,
o “Plenarinho”. Veio gente que nunca
imaginei que viria. Estavam todos lá,
impactados. O seminário foi histórico.
Era aberto para todos os que quisessem
participar. Havia não só alunos e gen-
te de teatro, mas, inclusive, professores
de Letras. E a abertura foi tal que até
as pessoas que falavam mal estavam lá
também. Isso foi muito legal. Devia haver
umas 200 pessoas no seminário, já que
CADERNO DE TEATRO
era só teórico. Depois dos encontros de
1994 e 1995, a tradição do Odin ficou
bem mais conhecida aqui. As pessoas já
usavam termos do Odin, falavam em sats,
coisas assim.
Em relação ao impacto causado pela presen-
ça e pelas atividades de Barba e Julia Varley, as-
sim como em relação à influência dos estudos da
Antropologia Teatral sobre grupos gaúchos, Nair
D’Agostini afirma:
É bastante difícil ter uma ideia precisa
sobre uma experiência estética, já que
é muito subjetiva. Mas pelo que pude
perceber, foi despertado interesse pela
Antropologia Teatral nos profissionais de
teatro mais inquietos e sempre ávidos de
novos conhecimentos e aquisições técni-
cas e artísticas. Muitos grupos iniciaram
uma investigação prática, no sentido de
se aproximarem dessa tendência estética.
Quanto aos meus alunos, foi uma experi-
ência forte em que os mais afoitos e im-
buídos de força de vontade foram leva-
dos a organizar e realizar treinos intensos
e sistemáticos sobre o corpo e, também,
pesquisas de ações e aprimoramento de
partituras de ações que os tornassem efi-
cazes na pré-expressividade exigida por
essa forma de linguagem expressiva. Na
minha avaliação, houve, nessa nova ten-
dência estética (se assim podemos nos
referir), produções artísticas inovadoras
e com qualidade técnica, mas também
muitas produções que não alcançaram
o nível artístico e técnico desejável, pró-
prio da imaturidade artística e da falta de
aprimoramento técnico.
(...)
Sei de grupos que tiveram uma for-
te influência e se orientaram em suas
experimentações teatrais a partir dos
princípios da Antropologia Teatral. Pos-
so citar, em Porto Alegre, o grupo Usi-
CADERNO DE TEATRO
4 Barba, Eugenio. A Canoa de Papel: Tratado de Antropologia Teatral. Publicado pela primeira vez em 1994 pela Ed. Hucitec, de São
Paulo, com tradução de Patricia Braga Alves. O livro foi reeditado em 2009, com a mesma tradução, pelo Teatro Caleidoscópio-
Editora Dulcina, de Brasília.
5 Barba, Eugenio e Savarese, Nicola, A Arte Secreta do Ator: um Dicionário de Antropologia Teatral, publicado em 1995, pela
Editora Hucitec, São Paulo, com Tradução dos integrantes do LUME Teatro. Uma nova edição sairá em dezembro de 2012, pela
Editora É Realizações, São Paulo, com tradução de Patricia Furtado de Mendonça.
na do Trabalho do Ator (UTA). Também
cito o trabalho de Tatiana Cardoso, de
Jezebel de Carli e a pesquisa sobre o ator
de Irion Nolasco. Cito também a tese de
Inês Marocco sobre a espetacularidade
da cultura gaúcha. (...)
No curso de Artes Cênicas da UFSM, fo-
ram geradas inúmeras pesquisas práti-
cas e teóricas a partir dos princípios da
Antropologia Teatral. Hoje, acredito ser
difícil ignorar, quer nas investigações
teóricas quer nas práticas, os princípios
da Antropologia Teatral revelados por
Barba. Seu aporte teórico e artístico já se
constitui uma tradição das mais signifi-
cativas de nossos tempos e tornou-se um
referencial de suma importância para as
investigações teóricas, práticas, artísticas
e pedagógicas atuais.
É em 1995, durante estes encontros, que
Alexandre Vargas – ator, diretor, fundador do
Falos & Stercus e organizador do Festival de
Teatro de Rua de Porto Alegre – também entra
em contato direto com o Odin, grupo do qual
ouve falar pela primeira vez em 1992, quando
Luis Otávio Burnier e Carlos Simioni fazem uma
turnê em Porto Alegre. Curioso e interessado
pelo que lhe contam, Alexandre vai buscar mais
informações sobre a cultura do Odin nos livros de
Barba, no Além das Ilhas Flutuantes e no Canoa
de Papel[4]. Mas o impacto de estar frente a frente
com Barba é ainda maior. Ele lembra:
Eu gostava demais da postura do Barba,
de alguém que tem um espaço no teatro.
Ele chegava aqui falando, e tinha uma
postura de defender este espaço. Não es-
tava pedindo licença. E isso contrastava
com o comportamento de pedir licença
no meio teatral que eu estava acostuma-
do. É uma convicção na postura, no dizer,
e ao mesmo tempo um cara muito bem
preparado para falar de seu argumento,
na construção de seu discurso. Isso me
impressionou bastante. E também me
estimulava na minha preparação. Então,
eu passava a ter uma referência que eu
não tinha. (...)
Na época, já existia muito fortemente a
antropologia aqui em Porto Alegre atra-
vés dos discursos e das práticas. Duas
pessoas fundamentais, Irion Nolasco e
Maria Lúcia Raymundo, faziam um traba-
lho sensacional e nos passavam bastante
coisa do trabalho da Antropologia Tea-
tral. Mas, por outro lado, chegava uma
disciplina, quase que uma onda de dis-
ciplina extremamente grande que você
tinha que ter com o trabalho, que era
muito dura. E isso gerava trabalhos mui-
to frios, mecânicos. Então tinha aquele
viés de um trabalho que era demandado
dessa forma, e quando você via o resul-
tado artístico era de uma frieza que, e eu
intuía que... mas não pode ser isso, não
deve ser isso. O grande impacto que fica
é o desmoronamento de quem já traba-
lhava com isso, tem o contato com o Eu-
genio e percebe que não era aquilo que
ele vinha fazendo. E quando você ouve o
Eugenio dizer: “Não é nada disso”... Isso
foi importante demais.
Tatiana Cardoso também nos fala sobre este
encontro de 1995:
Recordo que, para mim e meus colegas
da área, na época, era um acontecimen-
to poder estar ouvindo os ensinamentos
de Barba. E lembro especialmente a de-
dicação do Irion para que a organização
ocorresse de forma impecável, sempre a
contento de Eugenio e Julia.
Entre 1995 e 2010: amadurecendo
o aprendizado
Um hiato de 15 anos vem a separar fisicamente
o Odin de Porto Alegre, já que, depois de 1995, só
voltarão à cidade em 2010. Mas isso não significa
PRIMEIRO
SEMESTRE
2012
33
que haja um distanciamento ou uma falta de
comunicação entre o grupo dinamarquês e os
artistas e estudiosos da capital do Rio Grande
do Sul. Isso pode ser constatado pelas inúmeras
viagens de gente de teatro local para outros
estados ou países. Além disso, a busca de contato
com a tradição do Odin também é facilitada pela
publicação dos livros de Barba em português,
pois eles se tornam referência fundamental para
inúmeras teses nacionais de graduação e pós-
graduação em Dança e em Artes Cênicas.
Em 1995, é publicado o livro A Arte Secreta
do Ator: um Dicionário de Antropologia Teatral
, de Barba e Savarese. Este livro, junto de A Ca-
noa de Papel e Além das Ilhas Flutuantes, vai
nutrindo o estudo de vários artistas e estudan-
tes de Porto Alegre, muitos dos quais alunos de
Irion, Maria Lúcia e Nair D’Agostini, e também
de outros professores que, apesar de não terem
tido um contato mais estreito com o Odin, são
igualmente influenciados pelo pensamento e
pela cultura de Barba e seu grupo.
Entre 7 e 18 de agosto de 1995, a convite
da EITALC (Escuela Internacional de Teatro de
América Latina y el Caribe), Gilberto Icle per-
manece na sede do Odin, em Holstebro, e par-
ticipa do encontro Trabalhando e Convivendo
com o Odin Teatret. Ali, ele tem a possibilidade
de assistir a uma série de espetáculos, demons-
trações e vídeos do grupo. Com relação aos
reflexos da cultura do Odin e da Antropologia
Teatral[5] sobre seu grupo, a Usina do Trabalho
do Ator (UTA), e sobre sua visão relativa ao fa-
zer teatral, Icle afirma:
São tantos reflexos que eu não saberia
enumerá-los. A UTA trabalhava, nos pri-
meiros anos, a partir de boa parte dos
exercícios do Odin, seja aprendidos dos
próprios atores, seja legados via LUME.
A organização e a forma de trabalho,
tanto no treinamento diário quanto nas
montagens, eram bastante inspiradas
nos procedimentos tomados do grupo.
Só muitos anos depois que conseguimos
 PRIMEIRO
SEMESTRE
2012
34
transformar esses exercícios e criarmos,
a partir deles, coisas novas e completa-
mente nossas. Como professor universi-
tário, tomei o tema da "presença" como
um grande tema de pesquisa, e todo meu
trabalho tem girado em torno dele. Esse
tema, primeiro, encontrei desenvolvido
no trabalho do Barba e, a partir dele, se
criou pra mim toda uma forma de enten-
der, falar e fazer teatro. (...)
A Antropologia Teatral permite um olhar
sobre o espetáculo, uma interferência
na formação e um pensar sobre as po-
éticas teatrais. Ela oferece ferramentas
concretas para fazer isso. Ela organiza,
sistematiza um raciocínio sobre o fazer
teatral só equiparado ao que fizeram
Stanislavski, Zeami, Grotowski, Decroux
e muito poucos outros. Ela faz uma pas-
sagem, embora não tenha pretensões
científicas, entre a teoria e a prática, de
forma harmoniosa e bela.
Em dezembro de 1995, em Salvador, Tatia-
na Cardoso reencontra Iben e o grupo A Ponte
dos Ventos. É a oportunidade para se confrontar
novamente com os ensinamentos de sua mestra.
Ela nos conta:
Depois do seminário de 1993, segui trei-
nando sozinha, convencida de que tinha
encontrado uma base sólida para mim.
Em 1995, participei de outro seminário
de Iben, desta vez, em Salvador, Bahia.
Mesma coisa, carta de intenção e cur-
rículo. Fui selecionada. Quando comecei
a trabalhar com o grupo, parecia que eu
nunca tinha me separado de Iben, pois
havia continuado o trabalho. Ao final
daquela experiência, na festa de encer-
ramento, Iben me chamou para um can-
to e me convidou para integrar o grupo
oficial, o Ponte dos Ventos, cujo próxi-
mo encontro seria naquele mesmo ano,
em Scilla, no sul da Itália. Desde então,
6 Exercício no qual se praticava a “resistência”, mas assim chamado porque era feito com o auxílio de faixas que, casualmente,
tinham a cor verde.
participei de todos os encontros do grupo,
que aconteceram até agora na Dinamarca,
na Itália, no Brasil e na Colômbia.
A Iben e o grupo Ponte dos Ventos são
meu porto seguro, são como a casa da
família para onde sei que sempre poderei
voltar. É um lugar de irmãos, de pessoas
que sabem que nossos encontros vão mais
além de nós mesmos, que estar com Iben e
continuar junto é como um pacto de hon-
ra com uma espécie de desejo original de
manter nossa arte, aproximando o mundo
dos deuses e dos homens pra sempre.
Os encontros anuais do Ponte dos Ventos
(Vindenes Bro, em dinamarquês) costumam durar
três semanas e são em regime de imersão. Deles
participam artistas de diferentes países. Nessas
ocasiões, Tatiana pratica várias técnicas usadas
pelos atores do Odin, além de entrar em profundo
contato com exercícios desenvolvidos particular-
mente por Iben, como: samurai, fora de equilíbrio,
verde[6], dança do vento, entre outros. Por sua vez,
através de suas próprias aulas, segue transmitin-
do os ensinamentos recebidos pela mestra:
Sou professora da Universidade Estadual
do Rio Grande do Sul e eventualmente
dou oficinas para atores dentro ou fora
do Brasil. Os princípios da Antropologia
Teatral são a base da minha técnica de
atriz e fazem parte do vocabulário do
conteúdo que ensino. Como dediquei
minha formação ao treinamento físico,
toda essa experiência embasa minhas
aulas, independente do foco da aula.
Esses princípios são extremamente úteis
justamente porque perpassam qualquer
tema, qualquer nível, qualquer gênero ou
estilo teatral. Eles são universais e dizem
respeito ao corpo, à dinâmica da ação, à
presença, à vida geral da cena. Conhecê-
-los e saber como manipulá-los é como
um segredo que traz uma base muito só-
lida pra qualquer tipo de ator.
CADERNO DE TEATRO CADERNO DE TEATRO PRIMEIRO
SEMESTRE
2012
7 “O paradoxo pedagógico: aprender a aprender”, em “Laboratório: teatro-escola”, segundo capítulo do livro de Eugenio Barba 35
Teatro. Solidão, Ofício, Revolta, publicado em 2009 pelo Teatro Caleidoscópio/Editora Dulcina, Brasília, com tradução de Patricia
Furtado de Mendonça.
No meio tempo, Alexandre Vargas também
busca uma maior aproximação com a tradição do
Odin. Em outubro de 1996, durante uma turnê do
Falos & Stercus no Rio de Janeiro, aproveita para
ver o espetáculo Kaosmos, que naquele período
estava em cartaz na cidade:
Vi Kaosmos no Rio, no Teatro Carlos Go-
mes. Isso era importante para mim, por-
que aí pude ver os atores, ver a presença
cênica. Isso dava todo um outro valor ao
que tinha lido, e aquilo me interessava.
Eu mirava coisas, queria objetivamente
coisas no meu trabalho de ator. Queria
a questão da presença cênica e aqueles
atores tinham uma presença cênica tre-
menda, que não se dava pelo viés psico-
lógico, e isso me interessava muito.
Quem também não perde o contato com o
Odin no final dos anos 1990 é Nair D’Agostini
que, em junho de 1998, parte para Belo Horizon-
te e segue as atividades do Odin na 1ª edição do
ECUM (Encontro Mundial das Artes Cênicas). Ali,
pode assistir ao espetáculo Ode ao Progresso e a
algumas outras apresentações do grupo.
Ainda em 1998, em Porto Alegre, Alexan- no discurso dele. Eu gostava daquele algum festival fora de Porto Alegre. Em 2008, As sementes haviam sido plantadas. As raí-
dre Vargas participa de uma oficina com o ator pensamento bélico, estrategista, para por exemplo, ele assiste ao espetáculo O Sonho zes cresciam subterraneamente. A terra tinha sido
e diretor paraibano Luiz Carlos Vasconcelos e, compor a minha estratégia também: de Andersen em São José do Rio Preto, por estar adubada e as árvores já davam seus frutos, uma
também, passa a trabalhar com Tatiana Cardo- “como é que eu me acho nesse campo, em turnê no mesmo festival. Ele acrescenta: estação após a outra. A influência do Odin sobre a
so. Ele nos conta: como é que me coloco nesse campo?”. cultura de estudiosos, artistas e grupos de teatro do
Fora isso, entre 1996 e 2010, o contato Não me encontrei com eles muitas ve- Rio Grande do Sul vai se firmando cada vez mais
(...) E aí tive contato com o Luiz Carlos, foi mais através dos livros. Sempre que zes, mas o trabalho continuou sendo no arco destes 15 anos, motivada, principalmente,
que veio pra cá para ministrar uma ofi- meu grupo passava por alguma crise, uma referência para mim tanto no que pela necessidade que eles têm de se confrontar e
cina. Ele trabalhava muito sobre os prin- por exemplo, eu buscava na biblioteca diz respeito à poética teatral quanto à de dialogar com uma tradição teatral sólida – e de
cípios da Antropologia Teatral. (...) Nessa um livro do Eugenio para tentar per- ética grupal. Certamente, os escritos de valor – que lhes ajude a construir a própria identida-
oficina, fiz um trabalho grande de parti- ceber se isso estava ali também, se ele Barba me influenciaram, em certa me- de profissional. Isso vai acontecendo, como foi vis-
turas, e isso me despertava mais ainda mencionava algo no Canoa, no Arte dida, muito mais que seus espetáculos. to, através de viagens para fora de Porto Alegre, da
para o trabalho da antropologia. Depois Secreta, no Teatro Pobre do Grotowski, Li toda a produção trazida no Brasil e leitura dos livros de Barba e também por meio das
fui trabalhar com a Tatiana Cardoso. Ela em artigos. estudei nos originais em italiano textos diversas trocas acadêmicas e artísticas. Para muitos,
vinha do trabalho da Iben, etc. Mas eu que passaram a ser objeto de meus se- o Odin vira de fato uma referência fundamental, até
não queria só trabalhar tecnicamente os Com Gilberto Icle não é diferente. Entre minários na pós-graduação. Utilizei-os mesmo um modelo a seguir. Mas o afastamento, por
fundamentos, eu queria me aproximar 1995 e 2010, sua relação com o Odin Teatret se desde meus próprios estudos de mes- um período, também é necessário.
também da ousadia, da arrogância ne- dá principalmente através dos livros, ainda que trado e doutorado até minhas pesquisas No livro Teatro. Solidão, Ofício, Revolta[7],
cessária que eu percebia ali no Eugenio, ele tenha sempre tentado alcançar o grupo em mais recentes. de Eugenio Barba, há um capítulo composto de
 PRIMEIRO
SEMESTRE
CADERNO DE TEATRO CADERNO DE TEATRO
2012
36
uma série de entrevistas em que ele responde à
seguinte pergunta, feita por Maria Grazia Grego-
ri: “Então não deve haver modelos? No entanto,
o Odin é um modelo para muita gente”. E assim
Barba responde:
Hoje há um estranho mito de autismo,
que cada um pode se autogerar. É es-
sencial ter um ponto de referência com o
qual se confrontar e sobre o qual voltar a
refletir. Tem realmente muita sorte a pes-
soa que é obrigada a se definir diante de
outra que tem uma personalidade fora do
comum. Por um período, a sombra dessa
pessoa mais madura e mais experien-
te cobrirá suas ações. Foi assim quando
Meyerhold começou sua relação com
Stanislavski, ou quando Grotowski come-
çou a se relacionar com a sombra de Sta-
nislavski, e também quando comecei mi-
nha relação com Grotowski. Essa relação
pode durar muito ou pouco tempo. A du-
ração depende do tempo necessário para
despertar as próprias energias. Depois, é
preciso se afastar. Então é a ausência que
te acompanha. É o momento em que a
pessoa que ficou sozinha, personalizando
a herança recebida, deve inventar o pró-
prio caminho. Tanto na tradição oriental
como naquela ocidental, é assim que se
descreve essa descoberta das próprias
forças: superar o mestre subindo por
suas costas. E fazendo isso, manifestar
ou negar o ethos que aprendeu.
2010: Eugenio Barba e Julia Varley
voltam a Porto Alegre 15 anos depois
Mas era chegada a hora de organizar um novo
encontro, para que os percursos artísticos de
cada um, amadurecidos e transformados, pudes-
sem ser confrontados sob novas perspectivas.
Em 2009, Alexandre Vargas começa a organizar
o Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre. Bus-
ca uma maneira de trazer Barba e o Odin para
PRIMEIRO
SEMESTRE
2012
37
sua cidade novamente, para estreitar relações e
se aproximar de suas técnicas de trabalho. Mas o
festival ainda é muito pequeno e não dispõe das
condições necessárias para isso. Ele não desiste.
Então procura Jane Schöninger e Silvio Bento, do
Sesc/RS e já parceiros de seu festival, para propor
alguma atividade com o Odin para 2010. É aí que
se confirma esta possibilidade: Eugenio Barba e
Julia Varley são convidados pelo Sesc/RS para
participar do 5º Festival Palco Giratório de POA.
Falando sobre sua motivação para articular esta
turnê com o Sesc, Alexandre diz:
Nessa época, me interessava demais con-
versar com o Eugenio, pois era o momen-
to em que eu estava sofrendo bastante
com a questão do grupo. Já não encon-
trava as respostas nos livros para buscar
uma solução, aí eu pensava: tenho que
conversar com alguém e não pode ser
qualquer pessoa.
E Jane Schöninger, por sua vez, nos fala do
interesse do Sesc/RS em estabelecer esta parceria:
O projeto Palco Giratório existe pratica-
mente há 10 anos, com o desenvolvimen-
to de circuitos pelo interior do Estado. E,
há sete anos, o Festival acontece em Porto
Alegre, com uma característica bastante
forte que é apresentar grupos, coletivos,
profissionais que possuam um trabalho
contínuo. O Festival é um “território de
pouso”, um espaço onde esses coletivos
possam fortalecer o intercâmbio, o fluxo
das trocas e dos usos, da produção e do
consumo dos bens culturais. E entende-
mos que o Odin vem para celebrar e le-
gitimar esse objetivo do projeto, sendo
a referência mundial que é. É o exemplo
maior de generosidade, de possibilidades
de intercâmbio, de trocas, de arte.
Sendo assim, em maio de 2010, Eugenio
Barba e Julia Varley voltam a Porto Alegre com
 PRIMEIRO
SEMESTRE
CADERNO DE TEATRO
2012
38
algumas atividades: Julia Varley apresenta uma
nova demonstração de trabalho, O Tapete Voador,
e Barba conduz a palestra “Princípios da Antropo-
logia Teatral”, ao mesmo tempo que apresenta a
nova edição de seu livro A Canoa de Papel: Trata-
do de Antropologia Teatral.
Nair D’Agostini está presente nesses encon-
tros. No relato abaixo, ela nos conta sua impres-
são sobre as diferenças que encontrou em Barba
e Julia Varley e, também, sobre a diferença do
impacto causado pela presença dos dois artistas
em Porto Alegre, sempre comparando os anos de
1995 e 2010.
É bem difícil falar dessas diferenças, so-
bretudo em Julia. No que diz respeito à
qualidade técnica, ela apresentou maior
nível e me pareceu que, metodológica
e pedagogicamente, está mais madura,
generosa e segura em sua apresenta-
ção. Em Barba, senti mais abertura, uma
disponibilidade integradora e generosa.
Impressionou-me em Barba, nesta oca-
sião, a transparência, o despojamento e,
porque não dizer, a humildade com que
generosamente falou de sua arte, de seu
grupo e de sua vida. Parecia que já não
possuía mais pretensões, mas só queria
estar ali para uma missão: compartilhar
um saber ao qual dedicou uma vida.
Com certeza, a recepção do público de
1995 e de 2010 foi muito diferente, pois
hoje o Odin e o Barba já não são mais
“desconhecidos” da classe teatral, e isso
faz uma grande diferença na recepção.
Os novos que o viam pela primeira vez
tiveram, penso eu, o contato com um
ícone, quase um Deus, pois estudam suas
teorias, trabalham na prática a partir de
seus princípios (acredito que a maioria
das escolas teatrais conhece as teorias e
práticas do Odin), e isso gera muitas ex-
pectativas. Para os que já o conheciam,
acredito que também deve produzir sen-
timentos e impressões diversas, umas
CADERNO DE TEATRO
8 Estiveram em Porto Alegre: Eugenio Barba, Roberta Carreri, Julia Varley, Iben Nagel Rasmussen, Elena Flores, Jan Ferslev, Kai
Bredholt, Tage Larsen, Augusto Omolú, Donald Kitt, Fausto Pro e Anne Savage, a tour manager do grupo.
muito valoradas e outras decepcionan-
tes. No meu caso, Barba me comoveu
profundamente. Para mim, ele se revelou
naquilo que há de mais valioso, na sua
humanidade. Ele alcançou a simplicidade,
a sabedoria.
Alexandre Vargas também traz algumas
reflexões próximas às de Nair com relação às
mudanças nas atitudes de Barba, causadas, em
sua opinião, pelo amadurecimento e pelo saber
acumulado na experiência do grupo. Ele também
nos fala do impacto causado pelo Odin nos jovens
e nos professores presentes, ao se defrontarem
com um grupo de tamanha importância no cená-
rio internacional do teatro. Ele analisa:
Foi um impacto monstruoso, porque o
Eugenio vem com toda essa mudança
de vida, mas uma pessoa ainda bastante
convicta no que faz. Só que chega entre-
gando sua fala de outra maneira. Então
a recepção também foi muito diferente.
Me impressionou demais e acho que im-
pressionou muita gente também a sua
transparência em revelar coisas que ge-
ralmente não são reveladas. Por exemplo,
dizer que somos um grupo de indivíduos,
de individualistas. Isso é muito forte, por-
que tem uma luta muito grande para se
construir grupos de teatro no Brasil. (...)
Existe um arco de convivência muito
grande entre o Odin e o Eugenio, 48 anos
trabalhando juntos. E quando ele volta
pra cá, com esse hiato de tempo de 15
anos, a gente vê nele uma pessoa mais
velha, mais conhecedora do que está fa-
zendo e sem tantas barreiras para falar,
sem tantos muros. A simplicidade chega
de uma forma mais direta, a clareza de
que o que ele faz é um ofício, que tem
que trabalhar. A história chega menos ro-
mântica em um momento que é oportu-
no que chegue menos romântica. Porque
o romantismo da existência, o romantis-
mo teatral, se perdeu aqui. E a sensação,
às vezes, é de o que fazer, como fazer. Aí,
quando esse homem chega aqui, relatan-
do essa experiência de uma forma mais
clara, eu acho que isso desperta outros
horizontes. Esse é o meu ponto de vista
sobre o impacto que o Odin teve dentro
da cidade. Outro, sem dúvida, é a presen-
ça física dele e um monte de jovens que
está na plateia vendo-o falar. Há um con-
traste entre o que o Eugenio fala e o que
o jovem está idealizando através de um
livro ou do que chegou a ele através de
um professor que não teve uma aproxi-
mação tão direta com o Eugenio ou com
o trabalho do Odin.
Às vezes, os jovens têm no Eugenio e no
Odin a imagem de um mito, e isso con-
trasta com o modo tão simples em que
eles se colocam. Mas a construção desse
mito também pode ser um argumento
forte de um professor, pode ser a seguran-
ça de um professor que distorce uma prá-
tica. Então, foi comum, eu recebi alguns
relatos de alunos que se diziam surpresos
com aquilo que viam e ouviam, compa-
rando com o que tinham aprendido com
algum professor. E esse atrito era muito
importante. Em 2010, havia muitos estu-
dantes seguindo, sempre há. A classe ar-
tística também participou bastante: indo,
assistindo. Sempre me impressiona a falta
de perguntas. (...) Eu fico pensando, puxa,
esses professores falam tanto, usam tanto,
PRIMEIRO
SEMESTRE
2012
39
e aí o Eugenio está aqui e eles não pergun-
tam, não falam, não trocam?
Talvez fosse timidez deles mesmos por
estarem diante de alguém que eles tam-
bém consideravam um mito, mais do que
a falta de interesse ou curiosidade. Isso é
extremamente incoerente, já que usam a
antropologia teatral, o discurso do Euge-
nio, da Julia, da Roberta. E num momento
em que você pode estar ali presencialmen-
te com eles, você não troca? Então, o uso
da antropologia, o uso da teoria, é muitas
vezes uma bengala. Isso gera uma segu-
rança nesses professores, uma segurança
teórica, mas que distorce uma prática.
2012: Chegada de todos os
integrantes do Odin Teatret
a Porto Alegre
Desta vez, o intervalo de tempo é breve: em vez
de 15, só dois anos. A pequena turnê de 2010 dei-
xa aquele gostinho de quero mais, e o Sesc/RS
consegue novamente criar as condições – sempre
através de Jane Schöninger e do Festival Palco Gi-
ratório – para trazer, agora, todos os artistas do
Odin Teatret[8] para Porto Alegre.
Foi um grande esforço, mas os resultados
provam que valeu a pena, basta lembrar os tea-
tros lotados durante as várias apresentações do
Odin em Porto Alegre. Uma plateia marcada pela
mistura de gerações: desde os velhos seguidores
do Odin até centenas de jovens estudantes e te-
atrantes que encontram o grupo pessoalmente
pela primeira vez.
 PRIMEIRO
SEMESTRE
CADERNO DE TEATRO CADERNO DE TEATRO PRIMEIRO
SEMESTRE
2012 2012

40 9 Grupos selecionados que participaram da residência: Teatro Sarcáustico (RS); Cooperativa Alegretense de Teatro (RS); Usina do
Trabalho do Ator (RS), Santa Estação Companhia de Teatro (RS); Grupo Ritornelo (RS); Circo Girassol (RS); Companhia Bananeira
(RJ); Teatro Diadokai (MG); Tao Filmes (DF); Teatro del Arca (Uruguai). Não estiveram presentes todos os integrantes de cada
grupo, mas apenas alguns artistas para representá-los, já que o número de participantes era limitado.
10 A programação completa compreendeu: 41
Teatro de Câmara Júlio Piva: a residência artística A Cumplicidade Artística entre o Ator e o Diretor (3 dias), conduzida por
Barba e alguns de seus atores, incluindo uma oficina de Dança dos Orixás com Augusto Omolú; as demonstrações de trabalho
O Irmão Morto e O Eco do Silêncio, com Julia Varley, e Branca como o Jasmin, com Iben Nagel Rasmussen; Teatro SESC Centro:
os espetáculos coletivos As Grandes Cidades sob a Lua e Ode ao Progresso; a palestra de Eugenio Barba 50 anos de trabalho: a
luta contra a natureza do teatro; a demonstração de trabalho Antropologia Teatral; o encontro público dedicado à finalização
da residência artística, do qual participaram todos os membros do Odin Teatret; lançamento e venda de vários livros de Barba e
das atrizes do Odin; Casa do Teatro: sessões dos vídeos A Conquista da Diferença, Nas Duas Margens do Rio, O Teatro encontra
o Ritual, Em Princípio era a Ideia; Teatro do Museu: o encontro A Ponte dos Ventos com Iben Nagel Rasmussen, Elena Floris
e Tatiana Cardoso; a palestra A Organização e a Cultura do Odin Teatret com Base em Experiências desde 2004, com a tour
manager do grupo Anne Savage. Espaço Circo Teatro Girassol: oficina de perna de pau com o ator Donald Kitt.

ODIN TEATRET NORDISK TEATERLABORATORIUM
O Odin Teatret foi fundado em 1964 em Oslo, na
Noruega. Em 1966, transferiu-se para Holstebro,
na Dinamarca, e se transformou em Nordisk Tea-
terlaboratorium. Atualmente, os 25 membros que
compõem o staff artístico e administrativo do Odin
são provenientes de 10 países e três continentes.
Desde a sua origem, o Odin Teatret se concen-
trou no treinamento dos atores, em sua capacidade
de estabelecer novas relações com os espectadores
e nas diferentes dramaturgias que compõem um
espetáculo. O autodidatismo dos atores do Odin,
com a consequente elaboração de um treinamen-
to individual e o ensino aos membros mais jovens
do grupo, determinou o constante interesse pela
aprendizagem e pela transmissão dos conhecimen-
tos técnicos.
Os 48 anos do Odin Teatret como laboratório
favoreceram o crescimento de um ambiente profis-
sional e de estudo, caracterizado por diversas ativi-
dades interdisciplinares e colaborações internacio-
nais. Hoje, as principais atividades do Laboratório
incluem: espetáculos, demonstrações de trabalho e
workshops para atores e diretores; “trocas” feitas
em diversos contextos, na Dinamarca e no exterior;
A programação é farta e bastante articulada.
Mas o que acontece exatamente naqueles dias?
Uma residência artística para atores e diretores ,
espetáculos, demonstrações de trabalho, pales-
tras, sessões de vídeo, lançamento e venda de
livros, oficinas, etc[10]. Há longas listas de espera
para assistir aos espetáculos, filas para ver as de-
monstrações de trabalho, alguns livros do Odin
esgotam-se já no primeiro dia, e uma multidão de
jovens luta por um ingresso para ouvir Eugenio
Barba e seus atores durante as palestras e os en-
contros. Chegam pessoas não só de várias cida-
des do Rio Grande do Sul, mas também de outros
estados do Brasil, inclusive do Uruguai.
Após cada palestra ou demonstração de tra-
balho, incansavelmente, Barba e seus atores per-
manecem nos teatros para responder a todas as
perguntas dos espectadores, abrindo espaço para
o diálogo e a troca de experiências, em coerência
com a tradição do Odin. Reflete-se sobre: o arte-
sanato do ator, suas técnicas e seu treinamento;
organização de encontros internacionais de grupos
de teatro; hospitalidade para companhias e grupos
de teatro e dança; Odin Week Festival anual; pu-
blicação de revistas e livros (Odin Teatret Forlag e
Icarus Publishing Enterprise); produção de filmes e
vídeos didáticos; pesquisas no campo da Antropolo-
gia Teatral durante as sessões da ISTA (International
School of Theatre Anthropology), que desde 1979
se tornou uma aldeia teatral onde atores e dançari-
nos de diversas culturas encontram estudiosos para
investigar, confrontar e aprimorar os fundamentos
técnicos de sua presença cênica; Universidade do
Teatro Eurasiano; espetáculos do Theatrum Mundi;
colaboração com o CTLS (Centre for Theatre Labo-
ratory Studies) da Universidade de Arhus, que regu-
larmente organiza a The Midsummer Dream School;
Festuge (Semana de Festa) de Holstebro; Festival
trienal Transit, dedicado às mulheres que trabalham
no teatro; OTA (Odin Teatret Archives), arquivos
vivos da memória do Odin; WIN, Prática para Na-
vegantes Interculturais; espetáculos para crianças;
exposições; concertos; mesas-redondas; ações cul-
turais e projetos especiais para a comunidade de
Holstebro e de seu entorno, etc.
os vários níveis de dramaturgia que compõem um
espetáculo; a cumplicidade entre ator e diretor; os
[9]
desafios do ofício do ator nos dias atuais; a so-
brevivência dos grupos de teatro no Brasil e no
mundo; a perseverança do Odin através do teatro
e a transmissão da experiência.
Neste festival, estão presentes Irion Nolasco,
Jane Schöninger, Gilberto Icle, Alexandre Vargas,
Tatiana Cardoso, Jezebel de Carli, entre tantos ou-
tros. Nada mais justo do que dar-lhes novamente
voz para que nos falem de mais este contato com
o grupo dinamarquês em Porto Alegre. Nesses
novos depoimentos, eles nos contam sobre o im-
pacto que a presença integral do Odin causa nos
espectadores que seguem suas atividades neste 7º
Palco Giratório, sobretudo em relação ao ano de
2010. Ainda que os vários textos tenham – inevi-
tavelmente – algumas informações ou impressões
repetidas, decidi deixá-los aqui na íntegra, pelas
reflexões que podem despertar, inclusive a partir
dessas repetições.
O Odin Teatret criou 74 espetáculos que viaja-
ram por 63 países em contextos sociais diferentes.
Durante essas experiências, desenvolveu-se uma
cultura específica do Odin, baseada na diversida-
de e na prática da “troca”: os atores do grupo se
apresentam à comunidade que os recebe com o seu
trabalho artístico e, em troca, ela responde com
cantos, músicas e danças que pertencem a sua pró-
pria tradição. A “troca” é uma espécie de permuta,
ou escambo, de manifestações culturais, e não só
oferece uma compreensão das formas expressivas
alheias como também dá início a uma interação
social que desafia preconceitos, dificuldades lin-
guísticas e divergências de pensamento, juízo e
comportamento.
Nenhum outro grupo de teatro no mundo, até
os dias de hoje, desenvolveu um leque de atividades
tão diversificado quanto o Odin Teatret, criando e
transmitindo incansavelmente sua própria tradição
entre Ocidente e Oriente, alcançando um raio de
milhares de artistas, estudantes e estudiosos – de
diferentes campos do saber – que encontram nele
matéria de inspiração e referência para suas pró-
prias buscas.
Depois dos depoimentos de alguns dos ami-
gos gaúchos mais antigos do Odin, seguem tam-
bém os de dois amigos gaúchos mais novos: Lu-
cas Sampaio e Álvaro Rosa Costa. Lucas é ator do
Grupo Geográfico e professor do Teatro Escola de
Porto Alegre (TEPA); além disso, também deu um
grande suporte ao Odin Teatret neste Palco Girató-
rio de 2012. Álvaro, que hoje integra a Cia. Incomo-
de-te, participou da residência artística com o Odin
como ator convidado do Circo Girassol.
Compõem este artigo mais dois importan-
tes depoimentos: o de Priscila Duarte e o de Julia
Varley. Priscila é uma atriz do Teatro Diadokai que
conheceu o Odin em 1986, tendo dialogado com o
grupo em diferentes países e em diversos contex-
tos desde então. Aqui, através de seu depoimento
sobre a residência de Porto Alegre, ela nos traz
um olhar “cruelmente sincero” sobre o sentido de
continuar fazendo teatro nos dias de hoje. Fecha o
artigo o texto de Julia Varley já citado na Premissa.
Alexandre Vargas
Tem uma diferença entre 2010 e 2012 até
pelo formato de trabalho. O que mais me
chama atenção, como espectador disso tudo,
é perceber uma aproximação que foi se dando
gradualmente. Com isso, não estou mirando o
meio cênico, pois os artistas, os atores, foram
chegando aos poucos. Eles não vieram todos
de uma vez só, foram se aproximando. Acho
que o Eugenio também fala dessa questão da
“comunidade”. É difícil chegar numa comuni-
dade: tem lutas, tem territórios, tem espaços
aí. Muitas vezes, é difícil para os grupos locais
se defrontarem com certas coisas, sobretudo
com certas coisas que o Eugenio fala, por
exemplo: coerência, trabalho diário, a ques-
tão do ofício. Basta lembrar o que ele falou
ontem, como ir contra as leis do teatro, lutar
contra um teatro rentável, não só na ques-
tão financeira, mas na questão da ideologia.
Sendo que às vezes você é obrigado a ter um
trabalho dentro do sistema em que vivemos,
onde você cede a isso. Hoje, acho que tem
uma mistura de gerações também.
Naquela plateia tem essa mistura: você vê
um Irion, que inicia um movimento forte,
que traz o Eugenio, vê alunos que o Irion
formou, tendo como base muito desse tra-
balho, e aí tem a Tatiana Cardoso, o Gilberto
Icle, o UTA. O UTA, Usina do Trabalho do Ator,
é gerado tendo como base esse movimento
do Odin e do Burnier. Aí você pega também
grupos mais jovens que tem um preconceito
em relação a esse trabalho. Pode ser até um
preconceito juvenil, como dizer “não que-
ro fazer isso, não me interessa”. São coisas
que eu já ouvi, tem gente que acha que os
espetáculos são sisudos demais. Mas aí se
surpreendem quando percebem o humor
dos espetáculos. Uma coisa que eu também
achava legal desses dois espetáculos é o for-
malismo de um [As Grandes Cidades sob a
Lua] e o não formalismo do outro [Ode ao
Progresso]. Achava que isso podia dar um
insight no público que podia ser bacana.
Eu também me percebi em algumas per-
guntas que foram feitas, como: “E a questão
do amor, como é que fica, com os atores, e
tal?”. E na pergunta, estava a sombra de seu
grupo, ou seja, a sombra de seus problemas.
O André Carreira fala que o Odin seria uma
experiência, uma nova célula de sociabilida-
de possível para a América Latina. Então, a
América Latina se encanta com essa ideia e
vai buscar isso. Eu acho que ainda tem esse
referencial nos grupos. Quando perguntam,
perguntam coisas que não são só “como o
diretor faz”. E acho que o Eugenio é muito
coerente quando diz “essa é a minha ma-
neira de fazer, funciona para mim, pode não
ser eficaz para você”. Ele não está dando re-
ceitas. Mas o que as pessoas querem saber,
às vezes não pode ser respondido, pois não
há respostas, tipo “como eu dirijo? como eu
mantenho um ator?".
Tatiana Cardoso
Olha, foi muito interessante ver o Odin na
minha cidade, depois de já passados 18 anos
da minha relação com o grupo fora do Brasil,
através do Ponte dos Ventos.
Me senti honrada, feliz, orgulhosa de fazer
parte de um trabalho tão profundo, tão re-
volucionário para a história do teatro como
é o do Odin. Há 15 anos, a vinda de Eugenio
tinha um ar de novidade, de curiosidade por
parte dos jovens estudantes de teatro da épo-
ca. E é surpreendente constatar que agora,
em 2012, ainda tem! Eu não conhecia muitos
daqueles jovens atores ou estudantes de tea-
tro da plateia aqui de Porto Alegre, mas podia
ver o impacto que causava naquela plateia,
aquele grupo longevo, experiente e maduro.
Antes, eles nos chocavam com sua precisão,
com suas habilidades corpóreas, com suas
imagens herméticas e cheias de profundida-
de, com seu trabalho vocal primoroso. Hoje,
eles nos chocam pelos mesmos motivos, mas
com um sabor a mais: jovens velhos homens
e mulheres gigantes, profundos, monstruosa-
mente humanos, inspirando profissionalismo,
ética, coragem, disciplina e inquietude. Eles
nos inspiram, diria até dolorosamente por ser
tão difícil, que vale a pena manter-se unido.
Quando se considera as diferenças e se colo-
ca o teatro como um ideal, “manter-se unido”
– mesmo parecendo impossível – porta um
significado que vai além do próprio ofício, da
própria arte. (...) Mas o que fica depois que
eles partiram é, sobretudo, essa vontade de
fazer igual, de apostar em parcerias fecundas,
de olhar o teatro como algo que vai além de
uma produção eventual ou comercial.
Gilberto Icle
Este encontro foi fundamental, pois as no-
vas gerações não conhecem o trabalho do
Odin, senão pela narrativa dos mais velhos
e pelos livros. Ainda que os espetáculos que
estiveram em POA não sejam os espetáculos
exemplares do grupo, a presença do Odin aju-
da a dar conhecimento sobre sua produção
e mobiliza a discussão sobre a cena contem-
porânea, tão desestabilizada nas discussões
 PRIMEIRO
SEMESTRE
2012
42
entre pós-dramático, performance, presença,
etc. Certamente há desdobramentos no que
tange à curiosidade de saber mais sobre o
grupo, mas, sobretudo, em relação à forma-
ção de novos atores, pois boa parte da peda-
gogia desenvolvida no RS tem relação com o
trabalho do grupo.
Jezebel de Carli
Correram os anos e em todos os momen-
tos em que me foi possível procurei estar
novamente entre o Odin, mesmo sem eles
saberem. Estar sorrateiramente em 94, 95,
2010 e, finalmente, em 2012 na residência
entre grupos. Já não sou jovem nem conse-
gui manter-me ao lado dos meus primeiros
pares, àqueles que “se levantaram na ponta
dos pés para que um dia pudessem voar”
(referência ao texto de Eugenio Barba). Hoje,
em 2012, estou ao lado de outros, tentando
desesperadamente guiar um grupo. Ouvir as
palavras de Barba, perceber as marcas no cor-
po da Iben, ouvir que uma atriz entregou sua
vida ao teatro, ver Roberta pela primeira vez
e seu corpo impregnado de trabalho, ouvir da
Julia dizer “mas você tem um grupo...” e após
receber um sorriso, chorar muitas vezes pela
beleza, generosidade, devoção e respeito pelo
teatro que esses homens e mulheres nos de-
monstram me fez, mais uma vez, ter vontade
de seguir adiante, força para criar terremotos,
querer que os que se foram retornem, tratar
o outro com ternura e gratidão e, crer nova-
mente que o teatro pode mudar o humano.
Irion Nolasco
Agora também está sendo um feedback de
coisas, é emocionante. Eu me emociono sem-
pre com o Barba. Ele não precisa fazer nada,
ele simplesmente existe e espero que ele dure
120 anos. (...) O grande lance do Barba é a efi-
cácia. Aqui no sul dizemos: mata a cobra e
mostra o pau. Ele fala e ele mostra, aí você
fica olhando pra ele como se fosse mágica,
CADERNO DE TEATRO
magia. Para mim, ele é um mestre. E mestre,
para mim, não é só a pessoa que sabe as coi-
sas, é uma pessoa que ama o que faz, que tem
paixão pelo que faz, que se incendeia pelo que
faz. E assim é ele, o dia inteiro. Você vê ele
assim, aqui, o tempo todo, rondando, vagan-
do, preocupado com os detalhes. (...) Eu acho
que o que atrai e toca todas as pessoas é que
eles são verdadeiros. São de verdade, não são
fake. Você pode ver o passar dos anos. Fiquei
muito comovido com o primeiro trabalho que
eles mostraram aqui, As Grandes Cidades sob
a Lua. Você pode ver, eles envelheceram, mas
com dignidade e verdade. É uma maravilha
poder ver isso. Nem dá para falar muito. Eu
fico tão emocionado que... Eu amo o Odin,
sou suspeito para entrevistas.
Jane Schöninger
Foi uma overdose de ações, em tão pouco
tempo. Queríamos mais tempo e mais e mais.
A cidade, o Estado, o país esteve “em movi-
CADERNO DE TEATRO
mento” com essa passagem por aqui. O movi-
mento de pessoas, o movimento das cabeças,
o movimento dos sentimentos. Penso que,
com esse movimento, há uma possibilidade
de novas articulações entre grupos, entre
profissionais. Podemos arriscar a colocar em
poucas palavras o retorno que tivemos sobre
esses dias: um “novo” oxigênio para o teatro.
Lucas Sampaio
Tive o primeiro contato com o Odin Teatret
em Holstebro, durante o Odin Week Festi-
val 2011. Lá, entendi o significado do ator
profissional, possuidor de ferramentas, vir-
tudes, treinamento. Trata-se de uma união
de artistas que prova a todos os colegas
de profissão espalhados pelo mundo que
o trabalho em conjunto alça voos inimagi-
náveis. Neste momento, em Porto Alegre, o
Odin faz-se necessário justamente na tro-
ca, mostrando que o teatro de grupo ain-
da é um caminho de forte identidade e de
progresso artístico. É como se a existência
deles se refletisse, em sua constância, na
frase: “Acredite, acredite, acredite”.
Álvaro Rosa Costa
Esta experiência, residência, reverência ou
seja lá o que for, com o Odin Teatret, explodiu
na minha cabeça, conectou muitos, muitos
pontos. Me colocou em estado de alerta, Mar-
co Zero, Espiral, em movimento. Trabalho há
muito tempo com música, apesar de ser Ba-
charel em Gravura. Muitas das questões que
me instigavam no Instituto de Artes da UFGRS
estão presentes nas palavras e nas ações dos
integrantes do Odin. Após 24 anos, consigo
entender a magia que estes jovens senhores,
alquimistas, exercem sobre os artistas. Não
só atores, mas vários artistas de vários seg-
mentos. Eles dialogam com os princípios da
criação, encontram ecos em Fayga Ostrower,
Jung, no marceneiro da esquina. Eles "fazem".
Se o resultado é brilhante, bom, ruim, a mim
PRIMEIRO
SEMESTRE
2012
43
não interessa. Aquela massa submersa do
iceberg, chamado Odin, é que me desafia. O
que mais me pergunto: “E agora!?”. Só sei que
vou "encontrar" várias possibilidades. E como
disse Roberta Carreri: "Há uma vontade que
me habita". Simples, sem fórmulas... trabalho,
cumplicidade... possibilidades.
PRISCILA DUARTE
Teatro Diadokai
Belo Horizonte, 4 de junho de 2012.
Dinossauros em Porto Alegre
A residência artística com o Odin Teatret
Conheci o Odin Teatret como espectadora,
durante um festival de teatro em Montevi-
déu (Uruguai) em 1986, quando eu ainda era
uma estudante da graduação em teatro da
UniRio. Lembro-me bem da minha impres-
são: foi como se eu visse a materialização de
minhas aspirações juvenis, tão indefiníveis e,
subitamente, tão reconhecíveis naquele gru-
po de artistas. Foi avassalador.
 PRIMEIRO
SEMESTRE
2012
44
Minha crescente inquietação em torno do fazer
teatral, alimentada pelo contato com o Odin
Teatret, me levou ao encontro de outro grupo
identificado com o Terceiro Teatro: o Teatro Tas-
cabile di Bergamo. Em 1987, um mesmo evento
trouxe ao Rio de Janeiro o Nordisk Teaterlabora-
torium e o grupo italiano Tascabile, que me pro-
porcionaram outras experiências impactantes,
com suas oficinas, conferências e espetáculos.
Em 1989, eu e Ricardo Gomes (companheiro
de trabalho desde então) partimos para a Itália.
Foi o início de uma longa relação profissional
com o Tascabile. Com eles, trabalhamos como
atores estáveis de 1989 à 1994 e, depois, como
colaboradores em projetos específicos, de 2003
à 2007. Foi durante este período que a relação
com o Odin se deu de forma mais estreita. Ren-
zo Vescovi, diretor do Tascabile, considerava
Barba como um de seus mestres. Diversas fo-
ram as ocasiões de encontro de trabalho entre
os dois grupos, durante aqueles anos na Europa.
A experiência europeia foi decisiva na criação
de nosso grupo no Brasil – o Teatro Diadokai
– fundado em 1996, em parceria com o diretor
Ricardo Gomes. Desde então, o Teatro Diadokai
desenvolveu diversos projetos, envolvendo tam-
bém outros artistas e grupos. Há quatro anos,
nos transferimos do Rio de Janeiro para Minas
Gerais onde somos professores (eu, substituta e
Ricardo, efetivo) no Curso de Artes Cênicas da
Universidade Federal de Ouro Preto. A partir daí,
o Teatro Diadokai entrou em um período de la-
tência, enquanto buscamos um equilíbrio entre
vida acadêmica e artística.
Foi então que surgiu a oportunidade da residên-
cia artística com o Odin Teatret, em Porto Alegre.
O reencontro com aqueles que considero como
uma das mais fortes referências em minha for-
mação artística, mestres dos meus mestres (os
artistas do Tascabile), foi, de novo, provocador.
A maturidade (minha e deles) temperou este en-
contro com novos sabores. Não foi uma reedição
do Uruguai nem de outras ocasiões que tivemos
na Europa. As questões hoje (para mim e para
eles) são outras. Nos dias que antecederam a re-
sidência, me perguntei: por que estou indo
para esse encontro? Que sentido tem, a es-
tas alturas do campeonato (tenho 46 anos),
participar de uma oficina de apenas quatro
dias de trabalho? Por um lado, a expectativa
obviamente confirmou-se: não se aprende
nada em quatro dias de oficina. Mas, o que
estava em jogo ali era uma outra coisa. Não
se tratava de aprender nada. No final das
contas, tratou-se de questionar tudo: para
onde mesmo estamos indo? Que teatro é este
que queremos fazer? Por quê? Como? Para
quem? Com quem?
A residência em Porto Alegre poderia ser re-
dimensionada a um retorno fantasioso ao
período cretáceo (ou seria jurássico, como
naquele filme?). Seja como for, serve como
metáfora: Barba e seus atores como dinos-
sauros, que, contrariando todas as certezas
da ciência, não estão extintos. Muito pelo
contrário, esbanjam uma vitalidade destila-
da pelos anos, pela maturidade. Estes estra-
nhos seres mantêm sua força contrariando a
ameaça de extinção. Ora, mas todos sabemos
que não existem mais grupos de teatro: este
movimento já passou. E no entanto, do ou-
tro lado do oceano, na fria Dinamarca, ain-
da existe um grupo de artistas que acredita
na ética e na dignidade do trabalho. Como
eles, existem alguns poucos no mundo. Eu
também me vejo como uma espécie de di-
nossauro, que insiste em trabalhar em uma
profissão em extinção, que não interessa
mais a quase ninguém. Além de sua experi-
ência artística, os dinossauros da Dinamarca
dividiram conosco, em Porto Alegre, suas in-
quietações quanto à efemeridade e à finitu-
de das coisas, preocupações naturais em sua
surpreendente longevidade.
Da residência, participamos eu e Ricardo – o
Teatro Diadokai –, além de representantes de
grupos do sul e de outros estados brasileiros.
Na viagem, nos acompanharam um grupo de
jovens alunos do curso de Artes Cênicas da
Universidade Federal de Ouro Preto que as-
CADERNO DE TEATRO
sistiram a demonstrações de trabalho, filmes,
espetáculos e conferências. Apesar das opiniões
elogiosas sobre o que viram naqueles dias, não
percebi neles um impacto tão devastador quan-
to aquele que me atingiu durante o festival no
Uruguai. Será que há algo que possa puxar o
tapete das novas gerações? O que mudou? Os
jovens? O tapete?
Não creio mais em grupos de teatro. Não sei
nem se creio mais no teatro. Estranhamente,
estes dias em Porto Alegre reascenderam uma
chama tênue. Será o fim do período de latên-
cia do Teatro Diadokai? Só há uma forma de
saber: encontrando forças para alimentar a
chama. E perseverar.
JULIA VARLEY – ODIN TEATRET
Holstebro, 13 de junho de 2012
Existem dois temas que me interessam quan-
do penso na relação entre o Odin Teatret e as
gerações mais jovens que, como nós, fazem
teatro hoje: o significado do grupo em relação
à produção artística e cultural, e a capacida-
de de suportar uma carga de trabalho que vai
além do normal. Voltamos a Porto Alegre pela
terceira vez: isso nos permite continuar encon-
trando espectadores e gente de teatro do lugar.
A continuidade e a residência que o Eugenio e
eu conduzimos para grupos de teatro durante
a última visita também me deram a chance de
refletir novamente sobre temas que me interes-
sam. Um dos aspectos fundamentais do Odin
Teatret, como grupo e como teatro laboratório,
é a cotidianidade ao compartilhar atividades
que não estão diretamente ligadas ao resultado
(espetáculo), como, por exemplo, fazer o trei-
namento todo dia. Acho que hoje ficou muito
mais difícil manter essa cotidianidade. A impa-
ciência para alcançar resultados, a instabilidade
econômica e o profundo desenraizamento geo-
gráfico fazem com que muita gente se contente
em colaborar com projetos e, dessa maneira, o
“senso de pertencimento” acaba sendo encon-
trado mais dentro das “redes”, e não dos grupos.
O Odin soube conquistar o tempo para deixar
CADERNO DE TEATRO
que os resultados brotassem do trabalho, sem
ter em mãos, desde o início, um texto ou uma
história a seguir e sem saber em qual porto se
desejava chegar. E foi assim que aprendemos
como proceder. Concentrar-se nos impulsos fí-
sicos e vocais, em sua simultaneidade, inclusi-
ve em oposição à narração, é uma técnica que
se baseia na capacidade de reconhecer os si-
nais que o próprio trabalho indica, e cuja qua-
lidade pode ser identificada depois de muitas
representações. Todos os atores do Odin Tea-
tret passaram por um longo período de apren-
dizagem durante o qual colocaram à prova
sua própria capacidade de resistência, e assim
descobriram energias que ultrapassam o limiar
do cansaço. Como é que um jovem encontra
hoje um mestre, uma mestra ou uma situação
qualquer que o obrigue a ultrapassar os limites
conhecidos para que ele dê o máximo de si?
A técnica teatral é incorporada, é um pensa-
mento que é ação, é a inteligência dos pés, é
algo que não pode ser aprendido nos livros.
É uma técnica que deve ser assimilada e defen-
dida dia após dia, praticando o ofício durante
anos. Em uma era tecnológica, talvez o teatro
seja anacrônico, mas eu quero defendê-lo exa-
tamente porque ele mantém a necessidade de
um conhecimento incorporado. Em Porto Ale-
gre, tive a confirmação que muitos grupos de
teatro ainda compartilham essa necessidade e
a vivenciam através de sua prática.
Conclusão
Para concluir, volto ao início da Premissa, como
um uróboro que morde o próprio rabo: “É possível
narrar uma história sem ser parcial?”. Este texto se
encerra cheio de frestas, por mais que eu e meus
“companheiros de viagem” tenhamos tentado resti-
tuir alguns pontos de vista desta história que ainda
se move dentro de cada um, que ainda se faz a cada
instante, sobretudo quando a memória traz à tona
um fato inesperadamente relembrado ou quando
um mesmo fato é reinterpretado sob nova luz.
Se dentro deste grande caleidoscópio de pa-
lavras e histórias faltam ainda tantas outras pala-
vras e histórias, significa que há espaço para muito
mais: mais lembranças, mais relatos e, o que é mais
importante, mais encontros.
Aqui, todavia, a parcialidade não está apenas
na história contada. Está também em um arco de
tempo que ainda não se encerrou. Com certeza,
não foi a última vez que gente de teatro de Porto
Alegre foi ao encontro do Odin, assim como tam-
bém não foi a última vez que o Odin pôs os pés em
Porto Alegre. Certamente Barba e seus atores ainda
voltarão, até mesmo porque – como disse antes
Gilberto Icle – “os espetáculos que estiveram em
POA não foram os espetáculos exemplares do gru-
po...”. É verdade, Porto Alegre ainda não recebeu os
“grandes” espetáculos do Odin. Quem sabe eles não
voltam nos próximos anos com seu novo e último
espetáculo A Vida Crônica?
Teremos mais histórias para contar.
E para finalmente fechar este artigo falando
de “influências e reflexões sobre o fazer teatral”,
deixo ecoando em vocês mais algumas palavras de
Eugenio Barba:
É através da troca, e não no isolamento,
que uma cultura pode crescer e se trans-
formar organicamente. O que vale para os
indivíduos também vale para quem trabalha
no teatro. Mas para que a troca aconte-
ça, é preciso oferecer algo de volta. Nesse
sentido, a identidade histórico-biográfica é
fundamental para se confrontar com o polo
oposto, o encontro com a “alteridade”, com
PRIMEIRO
SEMESTRE
2012
45
o que é diferente. Isso não significa impor
o próprio horizonte e o próprio modo de
ver, mas permitir um deslocamento e vis-
lumbrar um novo território que fique além
do universo conhecido.
(...)
A meta a ser alcançada não é se identi-
ficar numa tradição, mas construir para
si mesmo um núcleo de valores, uma
identidade pessoal, seja ela rebelde ou leal
com as próprias raízes. O único caminho
para alcançar essa meta é uma prática
minuciosa que constitui a nossa identida-
de profissional. É a competência no ofí-
cio que transforma uma condição numa
vocação pessoal e, aos olhos dos outros,
num destino que é, ao mesmo tempo,
herança e tradição. Somos nós que deci-
dimos, profissionalmente, a qual história
pertencemos, quem são nossos antepas-
sados, aqueles valores nos quais nos re-
conhecemos. Eles podem ser de épocas e
culturas distantes, mas o sentido de seu
trabalho é a herança que deve ser tutelada
e transmitida. Cada um de nós é filho do
trabalho de alguém. Cada um de nós se
orienta afastando-se de um passado que
escolheu para si.
...
A história do Odin Teatret em Porto Alegre
atravessa fronteiras e gerações, e continuará atra-
vessando.
...
Patricia Furtado de Mendonça
É atriz, professora, tradutora e consultora de projetos teatrais. É também
mestre em Teatro pela UNIRIO e graduada em “Disciplinas das Artes, da
Música e do Espetáculo” pela Universidade de Bolonha (Itália). Em 1998, a
convite de Eugenio Barba, passa a traduzir seus livros do italiano ao portu-
guês. Atualmente, conduz uma pesquisa sistemática sobre a relação do Odin
Teatret com o Brasil, colaborando com as investigações do Centre of Theatre
Laboratory Studies (CTLS) e do Odin Teatret Archives (OTA), Dinamarca.