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Por que ensinar filosofia hoje?

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Dante Augusto Galeffi

Trata-se de uma questão em aberto e, ao mesmo tempo, já


previamente enclausurada em sua historicidade. Vou tratar do lado
fechado e do lado aberto da questão, procurando destacar a instauração
de um conflito entre o disciplinar e o transdisciplinar no ensino de
filosofia, orientando-me pela passagem de uma forma disciplinar para
uma compreensão transdisciplinar, do “ensinar” (filosofia como
efabulação) para o “fazer-aprender” (filosofia como atividade criadora).

Iniciando pela “filosofia disciplinar”, cabe imediatamente destacar


sua importância capital para a formação intelectual do Ocidente,
compreendendo por disciplinar a própria disciplina requerida para o
estudo filosófico segundo as suas fontes textuais e seus problemas
capitais, do ponto de vista do indivíduo que realiza por seu desejo e
esforço próprios esse caminho. Assim, a “disciplina filosófica” é o
procedimento necessário para se alcançar o estudo sistemático do
conhecimento propriamente filosófico. Aí encontramos o que se pode
chamar de o caminho do filósofo profissional, caminho dos que fazem da
investigação sistemática seu meio primacial de subsistência, em sua
maioria pesquisadores e professores universitários. Nessa categoria dos
profissionais temos que incluir os licenciados em filosofia que agora se
vêm diante de um grande desafio para o qual não foram e não estão
preparados: o de ensinar filosofia na Educação Básica.

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Texto apresentado no II Simpósio Estadual sobre o Ensino de Filosofia da UERN, no campus da UERN
de Mossoró, no dia 09/08/2013, em uma mesa redonda com o Prof. Dr. Pedro Gontijo e mediada pelo
Prof. Dr. Marcos Zuben.
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Para mim a questão central está no traço disciplinar da tarefa


dentro dos moldes da escola secular e sua incapacidade de sair do seu
círculo vicioso instituído. Mas, agora o “disciplinar” se tona sinônimo de
isolamento e fragmentação de áreas do conhecimento, perdendo o seu
caráter fundamental de autoeducação – o esforço aliado ao desejo que
cada um individualmente tem que realizar para atender ao ímpeto vital
coletivo, social.

O modelo da escola disciplinar tem suas raízes no racionalismo


metafísico moderno e se constituiu a partir de uma emergência dos
Estados em oferecer uma educação elementar obrigatória para todos. Há
um inevitável vínculo com a Revolução Francesa e com a Revolução
Industrial, também com a tendência iluminista de difundir o
conhecimento de todas as maneiras.

A escola, pois, atende ao modelo dos Estados Modernos em


promover educação de acordo com o que se entende como fundamental
para todos. O fundamental, então, é o mais imediatamente necessário:
socialização linguística, alfabetização, as quatro operações aritméticas e a
matemática elementar, a História do Mundo, sua Geografia. A escola,
então, desenvolveu pedagogicamente procedimentos de ensino para cada
área do conhecimento, mas sempre seguindo uma modelagem
racionalista fechada, sempre homogeneizando e moldando os corpos por
repetições e averiguações de aprendizagem no plano impessoal. Uma
mecânica em um campo dinâmico. Uma mecânica que se confunde com a
Didática Pedagógica na maioria das vezes: ensina-se ao professor em
formação a aplicar os moldes já conquistados pela Didática Magna.
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Qual é o resultado disso? Um currículo formado por disciplinas que


tratam cada uma de campos de conhecimento distintos, sem que se tenha
estabelecido em algum momento uma interação dialógica de todas elas,
pois não faz parte dessa lógica incluir, e sim excluir e separar os aptos dos
não aptos socialmente para o trabalho produtivo que interessa ao seu
Estado. O resultado é um modelo de formação que impõe uma
modelagem disciplinar marcada pela fragmentação e o isolamento entre
as partes. Não há uma atenção ao indivíduo em sua singularidade pessoal,
pois é um modelo que prima pela impessoalidade e atende à modelagem
de indivíduos sociais acomodados à maquinação básica: adaptação ao
concreto estado de coisas nas relações de força entre os indivíduos e as
sociedades.

Na perspectiva da escola vigente cada disciplina do currículo atende


a um determinado campo do conhecimento humano desenvolvido
historicamente. Cada disciplina tem a sua especificidade e a sua diferença
em relação às outras. A matemática é clara em seus limites, a história e a
geografia também o são, assim como a física, a biologia e a química
também o são, também língua portuguesa, língua estrangeira, literatura,
sociologia e artes têm todas as suas especificidades marcantes. E a
disciplina filosofia, qual é mesmo a sua especificidade em relação às
outras disciplinas do currículo?

Uma pergunta seguramente difícil de ser respondida de imediato,


mas uma pergunta que não quer calar: por que ensinar filosofia na escola
disciplinar?
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Ora, não é a filosofia a mãe de todas as ciências? Qual é a dúvida


em relação à sua importância? Sim, mas se ela é uma totalidade originante
de todas as ciências, o que é mesmo, a filosofia?

Essa também é uma pergunta que não quer calar em sua infinita
repetição: qual é a importância da filosofia, como disciplina de conteúdos
lineares, para a efetiva formação do ser social qualificado que o Estado
tem o dever constitucional de garantir no ciclo da Educação Básica?

Temos aqui um conflito de difícil resolução. Por um lado, o


instituído disciplinar da educação formal. Por outro lado, a reinclusão da
filosofia como disciplina obrigatória, que tem de improviso a tarefa de
compor o quadro geral das disciplinas para garantir a formação do
pensamento crítico. Mas, como formar o pensamento crítico por meio de
uma disciplina de filosofia? Qual filosofia pode formar para o pensamento
crítico e como?

Por que, então, ensinar filosofia, quando o modelo que se tem


diante é aquele do filósofo profissional com a sua própria disciplina
filosófica e a sua especialidade, não estando minimamente interessado
com questões de “ensino” da filosofia para todos?

Uma tarefa de grau elementar parece ser aquela do licenciado em


filosofia em seu trabalho quimérico: ensinar filosofia. O que ensinar? Eis a
questão? Sim, mas como ensinar o que não se ensina, se aprende?

Um grande conflito ronda como tempestade nos pensamentos dos


muitos licenciados e licenciandos em filosofia. Também porque a filosofia
deixou de ser um saber abrangente para se tornar a atividade profissional
de pesquisadores em filosofia, que não imergem na experiência radical do
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pensar próprio e apropriado. Os professores de filosofia da Educação


Básica em sua maioria se sentem desautorizados a ocupar a atitude de
radicalidade que caracteriza o filósofo autêntico. Mas, como chegamos a
esse ponto, como fomos capazes de algo tão humilhante? Que papel
desautorizado é esse do licenciado em filosofia? Qual é o problema?

Encontra-se muito mais fundo a resposta da questão “por que


ensinar filosofia”?

Olhando para a práxis pedagógica dos professores de filosofia que


estão em atividade trabalhando com a disciplina filosofia no ensino médio
me dou conta de que é para eles que se deve “ensinar filosofia”, pois,
foram formados no regime disciplinar e estão em sua maioria convencidos
de que se deve ensinar filosofia como história. O que poderia ser o
“ensino” de filosofia senão a transmissão da história da filosofia?

Tudo resolvido: o ensino de filosofia se justifica pela sua própria


historicidade e importância dos grandes feitos dos grandes filósofos. Um
reconhecimento, portanto, da autoridade indiscutível do saber instituído e
perfeitamente homogêneo.

O jovem professor, do seu modo, também se acha fascinado pelo


Eros da filosofia, o seu pathos primordial: o espanto. Acredita do seu
modo em transmitir um pouco para ou outros um pouco do seu
entusiasmo com a filosofia. Mas logo se depara com a fragmentação dos
saberes e se vê quase obrigado a proceder de modo semelhante para
sobreviver. Mas é uma luta no fundo inútil. Não há como conciliar e
harmonizar os anseios profundos do jovem filósofo desautorizado com o
estado de organização da escola disciplinar. Vai o jovem filósofo cheio de
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inspiração inocentemente para a arena rodeada de leões vorazes. O que


fazer para aplacar a dor da alma ferida em sua aspiração profunda?

Deparo-me com uma situação que requisita uma radical


investigação filosófica própria e apropriada. Impõe-se uma pergunta
persistente: o que é filosofia? Sim, é uma pergunta que já se tornou uma
ladainha irritante. Mas é também preciso dizer: sem responder a esta
pergunta nunca se tratará propriamente de filosofia e sim sobre filosofia.
Mas na escola disciplinar parece não caber a aprendizagem do filosofar
apropriador, próprio e apropriado.

Nessa linha de discurso, posso logo saltar para os polos de maior


tensão e interesse coletivo e público. Há professores de filosofia que
mesmo na educação disciplinar fazem a diferença, mas eles não fazem a
diferença porque a filosofia enquanto disciplina formal faz a diferença, e
sim por suas simples presenças e modo como se dão a filosofar
propriamente. A singularidade do professor de filosofia faz a diferença.
Tenho notado que essa diferença nos olhos dos muitos professores e
professoras de filosofia que já tive a oportunidade de conhecer ao longo
do tempo de docência com didática e práxis pedagógica em filosofia. Em
muitos vi o olhar do criador adormecido, mas o brilho dos olhos não
deixava esconder a luz que revelava para mim a disposição profunda para
filosofar de modo próprio e apropriado. Encontro o mesmo no olhar das
crianças sempre interessadas em tudo o que se passa. Assim como pude
também ver o olhar opaco de muitos em relação ao que dizem ser o
pathos da filosofia: nunca ocorreu com eles algo assim como o “espanto”.
Mesmo assim, os que não tinham nenhum brilho no olhar mostravam
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alguma abertura para experiências de formação muito significativas e


singulares.

Meu foco é o professor de filosofia: é para ele que a filosofia faz


algum sentido que seja ensinada. O trabalho com a filosofia na escola é
um interesse específico dos muitos que se licenciaram em filosofia em
todo o país ou estão em formação para essa finalidade. São muitos que se
tornaram poucos em relação à grande demanda de professores de
filosofia licenciados em filosofia. Cresceu a percepção da concretude do
trabalho com a filosofia na sala de aula. Há hoje uma grande produção
bibliográfica e videográfica sobre o ensino de filosofia na educação básica.
Há inclusive o programa PIBID que tem dado atenção à formação de
professores e tem proporcionado valiosos experimentos pedagógicos com
o trato disciplinar com a filosofia.

Entretanto, tudo isso se passa por força do que muitos consideram


um acidente de percurso: a obrigatoriedade do componente curricular
filosofia no ensino médio. Claramente, a infraestrutura existente na área
é insuficiente, o que também provoca um tipo de expansão fora do
controle dos senhores do território Filosofia. Pois o formato das atuais
licenciaturas em filosofia cumpre a métrica disciplinar, além de ter
ocorrido uma benéfica ênfase na formação para a pesquisa em filosofia,
deixando-se em segundo plano a tarefa de “ensinar” o que os produtores
filósofos profissionais concebem e criam.

Há também o crescimento da pesquisa filosófica na área


educacional, mas tudo o que parece avançar se esbarra com o muro da
disciplinaridade. Esse muro representando a escola fechada e o “ensino”
de história da filosofia. Muitos já incorporaram o filosofar e já
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compreenderam por conta própria que é possível filosofar em língua


própria, e que podem também inventar meios adequados para o exercício
do pensar apropriador dialogicamente. Mas isso é o contrário do que a
escola disciplinar espera de uma disciplina. Assim, há o conflito entre uma
educação fechada e uma educação aberta, uma educação disciplinar e
uma educação transdisciplinar.

Na educação fechada, disciplinar, parece caber “ensinar” filosofia


como história da filosofia. Entretanto, na escola aberta e na própria escola
que se abre não cabe “ensinar” filosofia e sim “fazer-aprender a filosofar”.
Mas este modo transdisciplinar não tem guarida nas formas disciplinares
de ensino. E por que associar o transdisciplinar à filosofia?

Muitos tentam evitar o que consideram um equívoco: o traço


transdisciplinar do filosofar. Logo associam a qualquer coisa e a coisa
nenhuma. Nunca provavelmente se colocaram a questão e logicamente
consideram uma descaracterização da filosofia e do filosofar considerar a
atividade filosófica como transdisciplinar. Como assim, o que seria esse
transdisciplinar da filosofia e do filosofar?

O que é mesmo o próprio da filosofia que as outras disciplinas


escolares não possuem? Sua história e contar sua história já diferencia o
filosofar das outras disciplinas e atividades escolares?

Esse é o ponto também gerador de muitos conflitos e de muitas


polêmicas que não contribuem para o esclarecimento da tensão. O
transdisciplinar é confundido com os “temas transversais”, o que mantém
uma proximidade de sentido em virtude da presença do prefixo “trans”
em ambas as expressões. Mas, ninguém nunca pôs até agora a questão da
atitude filosófica como uma inerente atitude transdisciplinar, pelo fato
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desta ultrapassar o “disciplinar” em sua busca pela Totalidade. Sempre se


disse que tudo cabe na filosofia como um saber que não se contenta com
apenas uma parcela de conhecimento sobre os fenômenos, mas quer
sempre alcançar além do imediatamente dado. A atitude filosófica, assim,
não é o resultado da assimilação de conteúdos, mas o próprio método
filosófico por excelência e o mais rigoroso. O mais rigoroso, entretanto,
não quer dizer que seja somente acessível para poucos, e sim que o
filosofar só faz sentido para o ser vivo capaz de buscar a si mesmo. Como
assim? Essa forma de afiguração do filosofar não o torna inadequado para
o que se quer ter como certo e fechado?

Ora, o filosofar ou é vivido ou não passará de exercício de falatório e


de ter ouvido falar. Entretanto, quem tem a fórmula mágica capaz de
ensinar a filosofar? Como assim, ensinar a filosofar?

É pela e na atitude filosófica que se aprende a filosofar. Filosofa-se


quando se procura investigar os próprios pensamentos e se procura
aprender sobre os diferentes perfis que conectam a vida humana singular
(a vida das subjetividades singulares) ao seu processo conjuntural
constitutivo. Uma investigação que não tem circunscrições, apesar de ter
horizontes temáticos legados pela mais viva criação filosófica do passado.
Mas os horizontes temáticos são simples indicadores da especificidade de
uma problemática filosófica apresentada por um grande filósofo da
história. Então, o filósofo passa do tema do mundo para o tema da alma,
do tema da alma para o tema da lógica, deste para aquele da ética, da
política e da estética. Seu filosofar se atém aos diversos perfis que vão se
revelando ao longo da investigação. Tudo, porém, está ligado pela atitude
filosófica que não é disciplinar, que não é linear, que não é nenhuma
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posse de conhecimentos certificadamente verdadeiros. Pelo contrário,


pela atitude filosófica o que se alcança é a epoché e não a posse de um
saber metafísico fechado em seu absoluto solipsista. A epoché,
entretanto, possui a sua própria e necessária evidência apodíctica: aquela
de que se trata de uma desocultação do ente por meio de uma descrição
própria e apropriada, o que significa um filosofar que apenas começa por
divisar a infinita tarefa do pensamento humano diante de seus desígnios e
possibilidades.

O filosofar que compreendo como transdisciplinar não podendo ser


ensinado, pode, entretanto, ser realizado como atividade investigativa
permanente. Mas esta perspectiva não faz sentido na escola disciplinar,
sendo inclusive um elemento destruidor do arranjo disciplinar vigente. O
filosofar transdisciplinar não é regido pela mecânica do conhecimento
sedimentado e instituído, pois se guia pelo indeterminado e pela abertura
radical para a investigação do sentido-sendo. Para dizer do sentido que dá
sentido ao existir fático e previamente determinado ao fracasso
ontológico de um projeto humano mais criador.

Compreendo que pela atitude filosófica fica garantida toda


atividade filosofante sem a perda da especificidade filosófica: a
radicalidade do ponto de partida, que é uma disposição amorosa ao
diálogo interrogante, questionador, imprevisível.

Que medo que dá de perder o controle de uma razão sempre certa!


Mas, caberia ao filosofar perpetuar como disciplina o adestramento do
corpo-aluno e do corpo-professor de filosofia, ou pelo contrário introduzir
o elemento perigoso, revolucionário do pensamento humano? Caberia
apenas repetir o grandioso passado ou também lhe caberia a tarefa de
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potenciar a individuação humana para sua qualidade mais elevada, em sua


heterogênese espiritual criadora?

Bem, para pretender uma filosofia transdisciplinar também na


educação básica precisamos de outra escola, de outro compromisso, de
outra aventura, até mesmo de outra filosofia. E como a realidade é aquela
que temos diante em nosso dia-a-dia, não vejo como impedir o
acontecimento de uma geração de novos filósofos que, na qualidade de
prisioneiro da caverna platônica, poderão romper as correntes e realizar a
dialética ascendente de forma radicalmente nova. E poderão ocupar os
espaços de um filosofar que seja uma continuada oficina de criação de
descrições das vivências cognitivas próprias e apropriadas, fora do
controle de uma suposta elite intelectual que supostamente detém o
saber filosófico. Mas, quem de fato detém o saber filosófico?

Quais são, então, as habilidades e competências que se espera


alcançar com tal filosofar? E como este ato criador poderá inaugurar outra
possibilidade para o trabalho filosófico na educação básica? Por que não
seguir o modelo de ensino ostensivo vigente? E por que procurar-se criar
uma aprendizagem filosófica de qualidade para todos, a partir da invenção
dos novos e marginais filósofos obscuros que se dedicam à impossível
tarefa de educar filosoficamente, acreditando que podem fazer a
diferença?

Assim, respondo de maneira provisória à questão, por que ensinar


filosofia? Respondo compreendendo a oportunidade que os novos e
desconhecidos filósofos têm pela frente de inaugurar outra possibilidade
para o filosofar consequente e libertador dos tais grilhões platônicos.
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Também não se pode imaginar esse acontecimento de um filosofar


básico para além dos territórios fechados da filosofia acadêmica, sem a
presença dos que fazem a diferença pelo seu esforço e dedicação em
relação às causas perdidas. É um verdadeiro ato de renúncia e voto de
pobreza: voltar ao ambiente disciplinar depois de se ter vivenciado o lado
“metafísico” de todo filosofar, ou de ter galgado os degraus da carreira
acadêmica universitária.

Ora, essa forma de talento filosófico não é facilmente reconhecido


pelos profissionais, talvez porque já se acostumaram ao posto que
alcançaram e se esqueceram que só se aprende algo do começo, sempre
do começo.

E para melhor esclarecer de que não estou falando do


transdisciplinar da filosofia como uma fórmula que banaliza e populariza o
que é por essência distinto e muito difícil, por atitude transdisciplinar
compreendo a própria atitude filosófica, que também chamo de atitude
aprendente radical, e por atitude filosófica a própria busca do saber total
que nunca se alcança em sua totalidade intuída, mas que sempre
impulsiona a dinâmica do pensar humano para o tratamento do que se
pode saber sobre tudo pela experiência do pensar apropriador, que é
sempre o pensar de um singular cogito transcendental, quer dizer de um
pensamento que mira o próprio pensamento como objeto de suas
cogitações. Um pensamento que só se pode aprender dentro do
pensamento, quer dizer: pensando própria e apropriadamente.

E porque há ainda o “ensino de filosofia” como tarefa premente


para os professores formados em filosofia, é por eles que se pode
começar de fato a “desmontar” a grande muralha da escola disciplinar,
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tendo em mira a formação humana para o mais pleno exercício político,


epistemológico, ético, estético, ecológico, metafísico o que não cabe nas
molduras e gavetas disciplinares. Ora, aqui se revela a atitude filosófica
como algo da ordem do pessoal e intransferível, como a vida de cada um.
Ninguém pode viver por ninguém. Não se pode filosofar, a rigor, senão em
sentido próprio e apropriado. E este é o plano da diferença entre um
filosofar disciplinar, fechado, para um filosofar transdisciplinar, aberto.
Um salto de natureza e não apenas uma diferença de grau. Quase uma
retomada do horizonte filosófico grego aberto pelo espanto da unidade de
tudo, mesmo sem os meios técnicos para alcançar uma maior precisão
conceitual em relação à realidade, ou melhor, às múltiplas realidades que
se oferecem à experiência humana.

Vejo, assim, a atitude filosófica constituindo o núcleo de formação


de todo ser humano, como uma apropriação vital de cada um em sua
singularidade. É neste sentido que posso usar o termo “ensinar” filosofia
compreendendo a disposição para o acompanhamento do
desenvolvimento de seres humanos em formação, no que diz respeito à
capacidade de pensar corretamente em atos e palavras. O professor de
filosofia estaria ocupando a mesma posição do “parteiro”, se ocupando
em acompanhar cada parturiente em seu florescimento. Uma concepção
que não está longe de uma prática ao alcance de muitos na intenção de
alcançar a todos.

Muda a perspectiva de engajamento: o porquê ensinar filosofia se


justifica pela própria emergência humana planetária em relação ao ser
humano que está sendo gestado nas fábricas do mundo e de como isso
afeta sobremaneira o futuro da humanidade e do planeta. Assim, até
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mesmo na escola fechada o ensino de filosofia tem o seu lugar, porque


agora há novos filósofos que estão começando da periferia para chegar ao
centro, pois há cada vez mais um número maior de pessoas pensando por
conta própria e realizando de modo solitário o retorno radical sobre si
mesmo de memória cartesiana. Aliás, é muito estranho que profissionais
da filosofia não sejam autênticos filósofos, não no sentido erudito do
termo, mas no sentido socrático do mesmo: o aspirante ao saber, o
imberbe, justamente, o que é ignorante, o que nada sabe. É para os que
se encontram na posição de “não saber” que cabe o ensino de filosofia,
porque mesmo aí se pode também filosofar criteriosamente, desde que já
se seja filósofos, quer dizer, já se encontre no caminho da investigação de
tudo o que interessa ao ser humano em sua capacidade criadora e em sua
aventura existencial ainda longa.

É como criação do novo que vejo a importância de se ensinar


filosofia, quer dizer, de se introduzir todo educando em seu próprio
processo de autocompreensão e autoconhecimento, sem que seja
possível abdicar da singularidade de cada ego pensante.

Isso, porém, não se encontra disponível, sendo uma simples


possibilidade dentre tantas outras possibilidades. Alguém já me chamou a
atenção para o aparente relativismo deste posicionamento, no que
retruquei: seria relativismo se a atitude filosófica não estivesse presente
do início ao fim, pois não seria apropriado atribuir a Heráclito a origem do
relativismo filosófico pelo fato de ter introduzido a dialógica das
polaridades opostas, na medida em que para ele Tudo é Um.
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Uma outra formação do professor de filosofia começa a se mostrar


necessária. Mas, quem iniciará a experimentação de um novo modelo
para a formação do licenciado em filosofia?

Não há tempo para tamanha tarefa de construção coletiva. Talvez


seja melhor deixar que os deuses continuem resolvendo aparentemente
os problemas existenciais humanos, e continuar acreditando que a
filosofia propriamente dita só possa mesmo acontecer com os outros,
aqueles grandes pensadores que provocam inveja nos mais irados deuses
do Olimpo humano.

Seja melhor, talvez, deixar que os outros decidam por cada um o


que cada um tem que ser. Seja melhor abdicar de pensar de maneira
própria e apropriada.

Mas não, é melhor continuar andando do que manter-se atado ao


que obstrui e oculta, esconde e controla. Filosofar é também um pôr-se
fora do controle de toda previsibilidade e de toda certeza apenas
matemática e geométrica.

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