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Sociedade e Indivíduo: Antinomia de um debate clássico e

contemporâneo na Sociologia.
José Adilson Filho1

Resumo

Este texto procura analisar brevemente como a antinomia Sociedade e Indivíduo,


esteve/está presente no pensamento sociológico clássico e contemporâneo, contribuindo
para a ampliação do enfoque sociológico, através da construção de novas perspectivas
teórico-metodológicas. Contudo, sem deixarmos de expressar uma crítica aos dualismos
e reducionismos gerados por tal forma de pensamento.

Palavras-chave: Sociedade, indivíduo, antinomias

Abstract

This paper seeks to examine briefly how the antinomy Individuals and Society, was / is present
in classical and contemporary sociological thought, contributing to the expansion of the
sociological approach, by building new theoretical and methodological perspectives. However,
without fail to express a critique of reductionism and dualism generated by such thinking.

Keywords: Society, individual, antinomies

Introdução

A sociologia criada no final do século XIX acalentou desde cedo algumas


questões problemáticas e, ao mesmo tempo, desafiadoras à sua construção e
legitimidade como ciência do social na modernidade.

As dualidades em torno de questões tais como sociedade e indivíduo, macro e


micro, agência e estrutura, objetividade e subjetividade, por exemplo, constituem
antinomias marcantes do pensamento sociológico, cujo reflexo não apenas gerou
intensos debates entre seus pares, mas também ampliou seus campos e tendências.

Podemos até afirmar que as antinomias constituíram-se na forma por excelência


do pensamento sociológico. Atualmente autores como Bourdieu, Giddens e mesmo

1
Mestre em História pela UFPE e Doutor em Sociologia pela UFPB. Leciona na UEPB e na Fafica
Habermas, procuram escapar delas, ensaiando contribuições à teoria social a partir da
combinação criativa de tradições diferentes. O esforço destes autores é tentar
transcender os dualismos produzidos pelos clássicos e contemporâneos ampliando o
escopo da análise sociológica no sentido de evitar os reducionismos.

Neste texto, buscaremos analisar como a antinomia “sociedade - indivíduo”


ganha destaque e relevância acadêmica, sobretudo, numa época na qual se fala tanto na
falência da sociedade, isto é, numa dimensão social onde o “espaço público está cada
vez mais vazio de questões públicas”2. Analisando como Durkheim e Weber viram esta
dualidade num momento de construção da ciência sociológica, e como esta antinomia é
direta ou indiretamente utilizada por contemporâneos como Boudon, Elias e Bauman
em seus trabalhos sociológicos.

Durkheim e o primado da sociedade

As análises sociológicas desenvolvidas por Durkheim e Weber nasceram no


contexto efervescente da segunda metade do século XIX e tinham como característica
comum, fazer uma radiografia da modernidade. A sociedade moderna, foco principal de
análise destes autores, tem muito a ver, com as conseqüências produzidas,
simultaneamente, pela divisão social do trabalho durante a Revolução Industrial e pela
expansão da modernidade.

Émille Durkheim é certamente um dos pensadores clássicos que mais contribuiu


para tornar a sociologia uma ciência. No seu livro As Regras do Método Sociológico,
busca caracterizar a singularidade da nova ciência em relação aos outros conhecimentos
modernos. Caberia à sociologia a análise e a interpretação do fato social, isto é, “das
maneiras de pensar, sentir e agir, fixas ou não que exercem sobre o indivíduo uma
coercitividade exterior”.3 Nesta ideia, deduz-se a base que constitui a unidade teórica
do pensamento durkheiminiano, isto é, a tentativa de demonstrar a primazia da
sociedade sobre o indivíduo.

Durkheim questionava tanto as teses de Marx, que via na divisão social do


trabalho a produção de conflitos e lutas de classes, assim como refutava a visão

2
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p.21.
3
DURKHEIM, Emille. As regras do Método Sociológico. São Paulo: Ed. Nacional,1978.
utilitarista dos economistas neoclássicos que articulavam a divisão social do trabalho a
simples trocas econômicas, reduzindo o vínculo social ao jogo da competitividade e do
sucesso individuais. Mais do que desenvolvimento econômico, cultural e científico, a
divisão social do trabalho, na perspectiva de Durkheim, produz efeitos morais positivos.
Produz o que ele chamou de uma “solidariedade orgânica”, uma forma de manter a
integração do corpo social. Ele estabeleceu uma diferenciação entre a solidariedade
mecânica (sociedades tradicionais) e a solidariedade orgânica (sociedades modernas)
para demonstrar as diferenças entre a consciência individual e a coletiva nas duas
sociedades.

[...] quanto a precedente implica que os indivíduos sejam


semelhantes, esta supõe que sejam diferentes uns dos outros. A
primeira só é possível na medida em que a personalidade
individual é absorvida na personalidade coletiva; a segunda só
é possível quando cada um tem uma esfera de ação própria, por
conseguinte uma personalidade. É, portanto, necessário que a
consciência coletiva deixe descoberta uma parte da consciência
individual, para que aí se estabeleçam essas funções especiais
que ela não pode regular; e quanto mais essa região se estende,
tanto mais forte se torna a coesão que resulta dessa
solidariedade. Com efeito, de um lado, cada um depende tanto
mais estreitamente da sociedade quanto maior a divisão social
do trabalho, e, de outro lado, é tanto mais personalizada
quanto maior a sua especialização.4

Vê-se, portanto, que a sociedade moderna, devido ao seu alto grau de


especialização, produz um processo de individualização que não rompe com a
consciência coletiva, mas a intensifica e a fortalece na medida em que cada indivíduo
depende dos outros indivíduos. Ora, o último Durkheim – o das Formas Elementares da
Vida Religiosa - tentara encontrar um meio termo para substituir a centralidade da
sociedade sobre o indivíduo, buscando construir sua análise numa perspectiva mais
próxima do interacionismo. Frases como “ A sociedade não existe e não vive a não ser
por seus indivíduos” (496) Ou “ A sociedade não pode passar sem os indivíduos, assim
como os indivíduos sem a sociedade” 5(496), demonstram uma mudança nas posições

4
DURHEIM, Emille. Da divisão social do trabalho. São Paulo,:Martins Fontes, 1995.
5
DURKHEIM, Emille. As formas elementares da vida religiosa. Sâo Paulo: Martins Fontes, 2003.
holísticas do autor, sem romper com elas. Apenas buscará um pouco mais de equilíbrio,
dando maior ênfase ao papel dos indivíduos e suas representações na construção das
interações sociais. As afirmações mais ousadas sobre o papel dos indivíduos na
sociedade, não chegam a eliminar as posições clássicas de Durkheim quanto à dimensão
coercitiva do social, pois esta questão perpassará toda sua obra. Tais afirmações,
segundo Artur Perrusi

Levam-nos a inferir que a sociedade resulta de um efeito complexo de


criação, seleção, de disseminação e de transmissão de uma “profusão
de espíritos”. A sociedade seria, assim, um efeito “emergente” das
ações e da “imensa cooperação” entre os indivíduos. Aparentemente,
estaria resgatada a dualidade entre o indivíduo e a sociedade sem que
ocorra a separação entre a individualidade e a subjetividade, sem
que a dualidade seja transformada num dualismo. Estaríamos diante
de uma idéia de humanidade concebida como intersubjetividade.6

Quero entender esta intersubjetividade como algo ambíguo que opera


simultaneamente com as consciências individuais e coletivas, sem ter que passar pelo
filtro das reduções dicotômicas.

O conceito de consciência coletiva é uma dessas noções ambíguas, mas que ao


mesmo tempo, se caracteriza como elemento fundamental na obra de Durkheim para se
apreender o processo de socialização. Ela é definida como “o conjunto das crenças e
dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade e que formam
um sistema determinado (de similitudes) que tem sua vida própria”7. Apesar de
apresentar flutuações e sofrer algumas críticas, este conceito serve para operacionalizar
as teses de integração do indivíduo à sociedade.

Max Weber e ação dos indivíduos

O sociólogo alemão Max Weber procurou livrar seu pensamento sociológico dos
aspectos essencialistas e metafísicos que havia nas obras de Marx e Durkheim.
Fortemente influenciado pelos filósofos Dilthey e Nietzsche, Weber irá propor uma

6
PERRUSI, Artur. A construção social dos sentidos: Subjetividade e individualidade em Durkheim. In.
Cartografia das novas investigações em Sociologia. (0rgs.) Ariosvaldo da Silva Diniz; Maria Dilma Simões
Brasileiro; Margarita Latiesa – João Pessoa EDU- UFPB/Manufatura, 2005, p. 40.
7
DURKHEIM, Emille. As formas elementares da vida religiosa, op. Cit.
sociologia compreensiva da sociedade. Na verdade, a categoria sociedade, no
pensamento weberiano, perde força para o papel dos indivíduos. Não lhe interessa
compreender algo genérico chamado sociedade e, sim, a ação dos indivíduos e o sentido
conferido a ela. Portanto, há uma profunda mudança de perspectiva nesta concepção.
Pois nela nem a classe social nem tampouco a sociedade, aparecem como realidades
substancializadas.

A ênfase dada ao método compreensivo decorre da necessidade de demarcar a


diferença que caracteriza as chamadas “ciências do espírito” em relação às ciências
exatas. Daí não ser possível conceber as ciências sociais como uma análise determinista
do social, uma vez que não existem as tais leis “férreas” que manipulam o devir
humano.

Neste sentido, a realidade social não pode ser compreendida como determinação
de causas exteriores aos indivíduos. Mas em termos de atividade social.

Entendemos por „atividade‟ um comportamento


humano (...) quando e na medida em que o agente
ou os agentes lhe comunicam um sentido subjetivo.
E por atividade „social‟ a atividade que, segundo o
seu sentido visado pelo agente ou pelos agentes, se
relaciona com o comportamento dos outros, em
relação aos quais se orienta seu desenrolar.8

Percebe-se que Weber não é um individualista, pois, não consagra ao indivíduo


isolado o papel de sujeito construtor da sociedade. O que lhe interessa, sobretudo, é
compreender e explicar as ações sociais por cadeias causais, isto é, colocar em
evidência os vínculos que ligam uma ação a outra, mostrando o encadeamento dos
múltiplos fatores que constrói a trama do social. Daí ser possível deduzir que o
indivíduo não poder ser visto como uma espécie de consciência absoluta de si e
totalmente responsável por seus atos.

Tal perspectiva levou Weber a desenvolver uma posição anti-metafísica cujo


princípio se orientou pela idéia de que as sociedades são influenciadas por uma
pluralidade de fatores e não exclusivamente por um dos aspectos da realidade. Mas

8
WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UNB, 1991.
mesmo Weber, com todo seu cuidado e moderação, não escapou em certos momentos
da sua trajetória intelectual, de alguns dualismos e paradoxos. Segundo Fleischmann

(...) Cedo ou tarde teria que escolher entre uma história


que é um encadeamento causal a partir da ou rumo à
infra-estrutura econômica e uma outra que se reconstitui
a partir das ações racionais do homem, isto é, a partir da
luta politeísta dos valores. A primeira posição, adotada
sob a influência de Marx, vai aos poucos perdendo a força
nele, em parte sob o efeito de suas decepções políticas
diante do socialismo, em parte por causa de sua
convicção ideológica de que é a luta entre os seres
humanos, e não o ideal filosófico abstrato de um estado
feliz e pacífico da sociedade, que explica a realidade
humana tal como ela é ... Sem esta faceta heraclitiana
inerente ao seu modo de pensar, a semelhança com
Nietzsche poderia não passar de pura e simples
coincidência.9

Ora, esta guinada a favor de Nietzsche coloca o princípio da causalidade na


perspectiva do fator voluntário, ou seja, de um sujeito portador de uma vontade racional.
O que não quer dizer que Weber adote uma perspectiva igual a dos adeptos do
individualismo metodológico. É preciso relativizar a força da ação individual e o
sentido racional dela – pois, mesmo que haja sempre uma margem de manobra e
autonomia do indivíduo nas suas escolhas e projetos de vida - ela dá-se num contexto
marcado por pressões e constrangimentos históricos, religiosos, morais e econômicos. O
próprio Weber irá mostrar como o processo de racionalização instrumental estaria
levando a civilização ocidental a uma espécie de “gaiola de ferro”, uma vez que tal
situação marcada pela lógica da dominação racional burocrática estaria “colonizando”
todas as esferas da vida humana. A racionalização enquanto processo de reificação é
algo construído social e historicamente..

9
FLEISCHMANN, E. De Weber a Nietszche. Arquivos européennes de sociologia, V, 1964, p. 194 e 228.
Boudon, Elias e Bauman e a “sociedade dos indivíduos”

As décadas de 1980 e 1990 podem ser vistas como fases da história


contemporânea caracterizadas por um profundo enfraquecimento da idéia de sociedade
como utopia, isto é, como um télos a ser perseguido coletivamente. A débâcle do
socialismo real simbolicamente expressou algo mais do que o desmoronamento de um
sistema social e ideológico, significou o esvaziamento do debate público de valores
como solidariedade, fraternidade e justiça social, fundamentais a uma faceta da
modernidade clássica. O fim do socialismo real e a fragilização dos atores coletivos –
sindicatos, partidos e associações – favoreceram a consolidação da ideologia neoliberal.

Foi neste contexto que emergiram os governos neoliberais de Margareth


Thatcher e Ronald Reagan, os quais buscaram efetivamente deslocar o enfoque da
sociedade para os indivíduos. A nação é reduzida e fragmentada à lógica dos interesses
e sucessos individuais. “Essa coisa de sociedade não existe”10, diria Thatcher com uma
certa dose de ironia e arrogância. Ela mesma teve que travar uma longa e dura batalha
para desmantelar a força dos atores coletivos (sindicatos) e colocar em evidência o
papel do mercado e do individualismo como as únicas espécies de deus ex machina de
um mundo pretensamente esvaziado de utopias sociais.

É em meio a esta atmosfera de transformações e redefinições ocorridas no


mundo contemporâneo que ganham força as teorias do ator e as microanálises da
realidade. A corrente denominada de individualismo metodológico é uma das
tendências sociológicas que se fortalecem neste contexto. A pregnância de uma leitura
mais forte do ator individual e dos seus interesses racionais - em detrimento de uma
maior audiência dos aspectos ligados às classes sociais, sindicatos e partidos - acontece
num momento em que o discurso de auto-afirmação do indivíduo torna-se dominante.

Muitos sociólogos que dão ênfase ao papel do indivíduo como elemento central
na análise dos fatos sociais se colocam como seguidores da sociologia compreensiva de
Max Weber, assim como se nutrem, simultaneamente, da velha tradição da economia
neoclássica, cuja tese é a da aplicação do “mercado como modelo de inteligibilidade das

10
THATCHER, Margaret apud BAUMAN, Zygmunt. In. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro:Jorge Zahar
Editor, 2001, p. 38.
relações interindividuais e da ficção de um homem apto a efetuar uma ação racional em
função de objetivos e de interesses bem compreendidos.”11

Raymond Boudon, sociólogo francês, nascido em 1934, é um dos maiores


expoentes do individualismo metodológico. Ele inscreve sua análise numa
representação utilitarista da ação. Todavia, esta ação “possui um status metodológico e
não ontológico: basta, para as necessidades da análise, adotar um esquema utilitarista
simples, mesmo que este esquema se configure como irrealista, contanto que seja
confrontado com um caso real qualquer”. 12

Embora dê algum crédito às pressões sociais que se impõem à ação individual, a


centralidade de sua análise está posta numa perspectiva que não problematiza como
estas ações e percepções são moldadas pelo passado e pela dinâmica social. Termina
caindo num subjetivismo a-histórico ao propor uma análise desinvestida das mediações
sociais. Por mais que seja importante destacar a autonomia e os interesses dos
indivíduos é imprescindível reconhecer que sobre a consciência individual paira
elementos de ordem simbólica e cultural que ajudam a definir e a moldar as identidades,
as escolhas e as práticas dos atores.

Negligenciar esta dimensão é hipertrofiar o sujeito individual colocando sobre


ele o enorme fardo do devir histórico, negando-lhes os conflitos e as estratégias de
dominação que se estabelecem nas relações entre classes, grupos sociais e instituições
onde se localizam e se desenvolvem suas ações e seus interesses. Tal concepção pode
fortalecer não apenas o individualismo enquanto prática metodológica mais sim como
concepção ontológica. Pois o mercado e as ideologias utilitaristas colocam toda a
responsabilidade pelo êxito ou fracasso das escolhas sobre um ser individualizado.

Temos em Norbert Elias, sociólogo alemão, um contraponto ao individualismo


metodológico de Boudon, uma vez que tece uma crítica radical a oposição entre
sociedade e indivíduo. No livro A sociedade dos indivíduos, escrito em 1939, Elias
antecipadamente demonstra que toda sociedade é uma sociedade formada por
indivíduos e que, sobretudo, na modernidade é incorreto pensá-la de um jeito que
priorize uma dimensão em detrimento da outra. Mas ao contrário, deve-se priorizar as

11
LALLEMENT, Michel. História das Idéias Sociológicas. De Parsons aos contemporâneos. Rio de Janeiro,
Vozes, 2004, p. 259.
12
BOUDON, Raymond. Efeitos perversos e ordem social. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1979.
redes de interdependências que ligam os indivíduos entre si. Para isso, Elias procura
romper com a lógica do in ou out, isto é, do velho dualismo tão caro ao pensamento
sociológico.

Interessa-lhe observar as reciprocidades e as dependências que se forjam entre os


indivíduos de uma determinada época histórica. Assim, quando analisa as
transformações pelas quais passou uma sociedade de cavaleiros guerreiros para uma
sociedade de nobres refinados13- através de elementos como a invenção da etiqueta, da
pompa e do prestígio – procura articular estes elementos à teia da rede de relações e
funções sociais que historicamente vão se plasmando e modificando as estruturas
sociais e a personalidade dos agentes humanos.

A partir do estudo do processo civilizador, evidenciou-se com


bastante clareza a que ponto a modelagem geral, e portanto a
formação individual de cada pessoa, depende da evolução
histórica de cada pessoa, do padrão social, da estrutura das
relações humanas. Os avanços da individualização, como na
renascença, por exemplo, não foi conseqüência de uma súbita
mutação em pessoas isoladas, ou da concepção fortuita de um
número especialmente elevado de pessoas talentosas; foram
eventos sociais, conseqüência da desarticulação social do
artista-artesão, por exemplo. Em suma, foram conseqüência de
uma reestruturação específica das relações humanas.14

O intenso processo civilizacional teria no âmbito da cultura produzido um


sistemático controle e repressão das pulsões e agressividades individuais para criar a
sociedade moderna. Elias historiciza as teses de Freud para compreender como
indivíduo e sociedade se constituem, ao mesmo tempo, como condição e resultado de
um intenso processo de interdependência.

Seus trabalhos analisaram a sociedade moderna, sobretudo, num período em que


o processo de individualização ocorria paralelamente à consolidação dos estados
nacionais como comunidades imaginadas ou idealizadas. O nacionalismo e o civismo
estavam presentes como elementos da alma e da identidade nacionais. Estes elementos

13
Ver de ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001.
14
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1994, pp, 28 e 29.
deviam funcionar como forjadores da unidade nacional. As lutas sociais de alguns
grupos étnicos como os negros, por exemplo, nos EUA durante os anos de 1960, podem
ser lidas como algo que mobilizou os mais diversos grupos e classes sociais. Ou seja,
como uma questão nacional.

Mas atualmente verifica-se uma mudança de rota nos horizontes da sociedade


moderna. Mudança cuja característica principal se assenta na fragilização e na
efemeridade dos laços sociais. E a idéia de flexibilidade se impõe como sendo a
alternativa principal para homens e mulheres lograrem algum êxito nestes tempos de
incertezas. O Indivíduo flexível seria um ser adaptável às constantes mudanças e
rupturas provocadas pela nova lógica do sistema. Assim, os efeitos perversos do
capitalismo como desemprego, pobreza e marginalização são tratados, em última
instância, como conseqüência da incompetência de homens e mulheres que se mantém
fechados e presos a um mundo de rotinas e de valores rígidos. Conforme Richard
Sennett

Hoje se usa a flexibilidade como outra maneira de


levantar a maldição da opressão do capitalismo. Diz-se
que, atacando a burocracia rígida e enfatizando o risco, a
flexibilidade dá às pessoas mais liberdade para moldar as
suas vidas. Na verdade, a nova ordem impõe novos
controles, em vez de simplesmente abolir as regras do
passado – mas também esses novos controles são difíceis
de entender. O capitalismo é um sistema de poder muitas
vezes ilegível. Talvez o aspecto da flexibilização que mais
confusão causa seja seu aspecto sobre o caráter pessoal.
[....] Como decidimos o que tem valor duradouro em nós
numa sociedade impaciente, que se concentra no momento
imediato? Como se podem buscar metas de longo prazo
numa economia dedicada ao curto prazo? Como se podem
manter lealdades e compromissos mútuos em instituições
que vivem se desfazendo ou sendo continuamente
reprojetadas? Estas as questões sobre o caráter impostas
pelo novo capitalismo flexível.15

Os efeitos desta corrosão do caráter pessoal podem ser percebidos no aumento


do individualismo e da indiferença às questões sociais. As pessoas vivem sob uma

15
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo.
Rio de Janeiro, Record, 2005, pp, 9 a 10.
espécie de autismo social que oblitera sua imaginação e sensibilidades. Os gurus da
administração flexível como Peter Drucker estão em sintonia fina com as idéias
políticas dos neoliberais mais reacionários, pois para ambos não “existe essa coisa de
sociedade,” muito menos salvação a partir dela. Na sociedade dos indivíduos líquidos,
segundo Bauman “a redenção e a condenação são produzidas pelo indivíduo e somente
por ele – o resultado do que o agente livre fez livremente de sua ação”. 16

A individualidade é pensada na forma de um “eu absoluto” que não precisa de


mediações e apoios. Livre e solitariamente os indivíduos são os únicos capazes de
encontrarem as soluções para os seus males. Não adianta pedir ajuda aos outros, pois
toda sorte repousa sobre o que cada pessoa faz de si mesma. Daí decorre, com efeito,
um processo de reprivatização da vida social e que leva ao declínio do espaço público
como lugar por excelência das aspirações, sonhos e lutas coletivas. Ao contrário, cresce
o mercado de promoção do eu-individual e os livros de auto-ajuda e os gurus e
celebridades das mídias, tornam-se nossos verdadeiros conselheiros. Pois nos ensinam
a apostar nossas fichas, única e exclusivamente em nós mesmos. Assim, sem a proteção
de Deus, do príncipe da política e da solidariedade do “outro” – esses homens
pretensamente transformados em indivíduos-heróis, se auto-projetam como “donos” do
seu destino, numa história essencialmente privada e fragmentária.

Parte dessa história tem como emblema o culto à perfomance do corpo, isto é, a
busca obsessiva pelo corpo sempre jovem e saudável. O sujeito individual é também um
narcisista e um consumidor compulsivo, cuja estilística da existência resume-se aos
cuidados de si. A obsessão pelo corpo perfeito levou a um aumento avassalador dos
praticantes de academias de ginástica e do consumo de produtos farmacêuticos, como
anabolizantes, viagras e a dietas rigorosíssimas. A busca na verdade é pela aparência e
não pela saúde, o que levou a transformações profundas na estética corporal. O que
significa dizer que é o corpo o primeiro a ser flexibilizado pelas novas condições do
mercado e da cultura líquida moderna. Porém, enganam-se os que confundem isso com
autonomia, liberdade e poder sobre si.

16
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001, p, 76.
Ao contrário do que se imagina a exaltação da liberdade e de autocontrole do
corpo, esconde um processo de agenciamento e de disciplinarização dos indivíduos à
lógica do mercado e da sociedade capitalista.

A nossa obsessão com o domínio do corpo, das suas


perfomances, movimentos e taxas substitui a tentativa de
restaurar a ordem moral. O corpo torna-se o lugar da
moral, e matriz da identidade moral.17

Conforme Bauman, para estes indivíduos marcados pela centralidade do corpo,


a esfera pública só tem sentido se for para dar publicidade e legitimidade às suas
pulsões narcisistas e hedonistas. Talvez seja por isso que os escândalos, sobretudo,
aqueles envolvendo políticos e suas amantes – exemplos de Bill Clinton e Renan
Calheiros – conquistem enorme audiência. A notoriedade e a força que tem tido estes
assuntos na sociedade, devem ser articulados, ao meu ver, a dois fatores. O primeiro diz
respeito ao modo pelo qual recai sobre o sujeito individual a responsabilidade pelos
problemas gerados sobre a sociedade. O problema da ética é exclusividade de Renan
Calheiros e não da política nacional, muito menos da história e cultura brasileira.
Assim, ele teve que renunciar à presidência do senado para que a nação voltasse a ter
“ordem e progresso”. A segunda questão está relacionada a elementos de
espetacularização da vida privada, isto é, da sexualidade, da virilidade, das paixões
íntimas das celebridades, promovidas pelas várias mídias. Nestas duas dimensões o
individual e o corpóreo conquistam a esfera pública de maneira midiática e espetacular,
muito embora à custa de um intenso processo de despolitização do social.

A estes dois elementos se vinculam as estratégias de produção de subjetividades


criadas pelo mercado e pela publicidade. A publicidade e o mercado colocam no
consumismo a possibilidade dos indivíduos exercerem de fato suas liberdades e de
afirmarem suas singularidades. Ser livre é ser diferente; é saber caminhar sozinho.
Individualidade significa autenticidade, a projeção do “verdadeiro eu”. Mas como
exercer a autenticidade do “eu” numa sociedade que massifica os indivíduos. O
mercado através da publicidade procura uma saída para este paradoxo.

17
ORTEGA, Francisco. Da ascese a bio-ascese ou do corpo submetido à submissão ao corpo. IN. Imagens
de Foucault e Delleuze. (Orgs.) ORLANDI, Luis B. Lacerda, RAGO, Margareth, VEIGA_NETO, Alfredo. Rio
de Janeiro, DP e A, 2002, p, 165.
O consumismo é uma resposta do tipo “como fazer” aos
desafios propostas pela sociedade dos indivíduos. A lógica
do consumismo serve às necessidades dos 18homens e das
mulheres em luta para construir, preservar e renovar a
individualidade e, particularmente, para lidar com a sua
supracitada aporia. [...]Uma propaganda como “seja
você mesmo – prefira Pepsi” faz eco a essa aporia com
uma franqueza muito bem-vinda pelos consumidores
potenciais do produto e à qual seriam gratos. A luta pela
singularidade agora se tornou o principal motor da
produção e do consumo de massa. Mas, para colocar o
anseio por singularidade a serviço do mercado de
consumo de massa( e vice-versa), uma economia de
consumo deve ser uma economia de objetos de
envelhecimento rápido, obsolescência quase instantânea e
veloz rotatividade. E assim, também de excesso e
desperdício. A singularidade é agora marcada e medida
pela diferença entre “o novo” e “o ultrapassado”, ou
entre mercadorias de hoje e as de ontem que ainda são
“novas” e, portanto, estão nas prateleiras das lojas. [...]

Individualidade que, na verdade, não produz nenhuma autenticidade a não ser a


singularidade de ter os meios disponíveis para consumir produtos “novos” e caros que
são lançados no mercado. A despeito da ideologia massificadora, apenas uma parcela
da sociedade tem exclusividade sobre eles. Os demais desenvolvem mil estratégias e
astúcias para entrar nesta sociedade de indivíduos consumidores. Infelizmente os que
não conseguem entrar ou que por ela são eliminados, formam justamente aqueles seres
humanos que passam a ser vistos como inautênticos, amorfos e desnecessários.

De qualquer modo não pode haver uma individualidade plenamente


desenvolvida na sociedade moderna. Ela não passa de discurso sedutor para esconder as
impossibilidades de sua realização concreta. Pois seu acontecimento somente seria
possível com a destruição da própria sociedade dos indivíduos. Nas palavras de
Bauman

Juntamente com o desafio da individualidade , contudo, a


sociedade dos indivíduos fornece a seus membros os
meios de conviver com essa impossibilidade – ou, em
outras palavras de fechar os olhos à essencial e incurável

18
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro, Jorge zahar Editor, 2007, p. 36.
impossibilidade da tarefa, ainda que o lote das tentativas
fracassadas de realizá-la continue crescendo e se torne
cada vez mais denso.19

Considerações Finais

Vimos que a antinomia Sociedade e Indivíduo foi fundamental, sobretudo, para


a gênese e legitmidade da sociologia como ciência. Sendo em Durkheim mais do que
em Weber , um aspecto definidor da singularidade do método sociológico. O debate
clássico e contemporâneo sobre a relação sociedade e indivíduo, com raras exceções,
sempre se pautou pela busca da primazia de uma ou de outra dimensão, gerando com
efeito dualismos, que não obstante, empobreceram a complexidade da qual se reveste o
social. Ou em algumas análises, substancializando demais o papel da sociedade (escola
durkheiminiana) ou dos indivíduos (individualismo metodológico), isto é,
transformando-os em entidades abstratas, sui generis, metafísicas, divorciados das redes
de relações e interdependências pessoais, sociais e históricas, como nos faz ver Elias, no
seu livro A sociedade dos indivíduos.

Bauman recupera a crítica de Elias para analisar como a modernidade em sua


fase líquida procura através das estratégias do mercado, do dispositivo da publicidade e
da nova bioascese corporal, inventar o indivíduo-herói, self-mad-man, sobrevalorizando
a competitividade, o consumismo e o hedonismo em detrimento da utopia coletiva, ou
menos, da idéia de sociedade. O que para ele não significa dizer que devamos sucumbir
aos discursos apocalípticos, de que “não existe mais a sociedade”, apenas os interesses
individuais. Em sua análises, Bauman, mostra como um tema aparentemente banal
como o big brother ou uma simples publicidade de um carro estão atravessados por uma
multiplicidade de relações e interdependências. A sociologia de Bauman como a de
Elias tem entre outras virtudes, a de serem análises que evitam incorrer no erro do
reducionismo e dos dualismos, tentando articular os múltiplos processos que modelam
a vida social e, em particular, a personalidade dos indivíduos.

19
BAUMAN, Zygmunt. Op, cit, p.29.
Referências Bibliográficas.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 2001.

__________________Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

BOUDON, Raymond. Efeitos perversos e ordem social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1979.

DURKHEIM, Emille. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Ed. Nacional,


1978.

_________________As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins


Fontes, 2003.

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