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São Paulo
2016
1) Exposição do tema e justificativa de sua relevância
instrumentos que permitem que as sociedades que passaram por regimes autoritários e
por graves violações de direitos humanos possam fazer uma transição para a democracia
e empregar mecanismos para fazer face aos legados dos crimes praticados pelo regime
contas com o passado autoritário para evitar que se repitam as violências contra as
na efetivação do direito à justiça, mas também é preciso considerar que pode cumprir
Judiciário.
mais de vinte anos de regime autoritário. Paulo Abrão e Marcelo Torelly (2014, p. 113)
apontam que a aprovação da Lei nº 6.683, a Lei de Anistia, em 1979 foi o marco
jurídico fundante do processo de redemocratização. A Lei de Anistia foi aprovada por
dos violadores de direitos humanos do regime militar no Brasil. Hoje, a Lei de Anistia
permanece vigente e continua sendo aplicada pelo Judiciário para impedir a persecução
reconhecer que o Poder Judiciário brasileiro, em geral, foi importante aliado das Forças
Armadas e que ainda durante a transição foi muito marcante o controle do regime
ditatorial.
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No julgamento da ADPF nº 153, impetrada pela Ordem dos Advogados do Brasil (cf. Ventura, 2011;
Tang, 2015).
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Caso Gomes Lund y otros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil. Exceções preliminares, mérito, reparações
e custos. Sentença de 24 nov., série C, n.219, 2010.
Assim, esta pesquisa objetiva analisar a judicialização da justiça de transição no
modo refratário à pauta da justiça de transição. Isto parece ser o reflexo de uma cultura
jurídica autoritária no país, pouco afeita ao direito internacional dos direitos humanos.
O Ministério Público Federal propôs 26 ações penais nos últimos anos sobre os
Primeiro Grau, mas nos outros casos, seja de recebimento ou aceitação, tanto o MPF
estão trancadas nos tribunais regionais federais ou nos tribunais superiores. Assim,
penal dos agentes da ditadura nos próximos anos e este tema voltará a ficar em
como sobre os limites de sua interação com o sistema regional de proteção aos direitos
de ativismo judicial têm impactado o Judiciário para o avanço das políticas transicionais
no Brasil.
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A análise da atuação do MPF é objeto da dissertação de mestrado deste pesquisador, a ser depositada em
outubro de 2016 ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Ciência Política da USP.
2) Análise da bibliografia pertinente
direitos humanos praticadas por regimes opressores. Kathryn Sikkink (2011, p. 71)
um processo que converge para o que chama de justiça em cascata. Para a autora, há um
nacionais de responsabilização por violações dos direitos humanos, assim como por
tipos ideais de justiça política pura em um extremo, e o de justiça legal pura em outro
extremo (cf. Elster, 2004). O modelo de justiça política pura seria aquele em que o novo
governo decide unilateralmente quem são os criminosos e o que será feito com eles,
assumindo uma forma de justiça orquestrada com aparência de legalidade, mas no qual
já se tem certeza do resultado do julgamento. Por outro lado, o modelo de justiça legal
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Ademais, um segundo fluxo vem de esforços globais para aplicação de normas internacionais de direitos
humanos, com a evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do Direito Internacional
humanitário, em que se verifica a proliferação de novos tratados com uma linguagem cada vez mais
precisa sobre a responsabilização penal individual. Ademais, a criação e a prática dos tribunais penais
internacionais contribuíram para o desenvolvimento desta legislação internacional.
do julgamento. Cada realidade transicional aproximará a justiça transicional de um ou
Renan Quinalha (2012, p. 172) destaca como o direito à justiça envolve qual
versão da história se quer adotar como oficial, a verdade pública que se quer consagrar
imprescritíveis, quais injustiças ficarão fora do alcance da esfera de ação jurídica, bem
como os crimes que serão anistiados. Santos (2010, p. 145) aponta, ainda, que na
transicionais que não somente no aspecto da responsabilização criminal dos autores das
graves violações de direitos humanos. Assim, pode ser chamado a dar respostas e agir
temporais à responsabilização destes crimes, pela sua extensão e gravidade, que vai
além do tolerável pela comunidade internacional, uma vez que se ataca o próprio
que, no período investigado, especialmente entre 1964 e 1985, ocorreram crimes contra
de dois anos e meio com mandato legal, são fundamentais para consolidar a leitura
sobre memória, verdade e justiça, pois fazem parte de um documento legal que
determina uma versão oficial do Estado sobre esses assuntos. O trabalho da CNV é
importante, ainda, por individualizar 434 vítimas e 377 autores de graves violações de
direitos humanos.
Fundamental nº 153 (ADPF nº 153) para que o Supremo Tribunal Federal (STF)
realizasse
votos contrários e somente dois votos favoráveis, dos ministros Ricardo Lewandowski e
em 1979 pelo Congresso Nacional significou um acordo entre oposição e governo para
diversa para a Lei de Anistia, inclusive porque parte significativa de seus integrantes
estava comprometida com o regime. De forma similar, Bernardi (2016, p. 440) lembra a
as leis de anistia.
Poder Judiciário adotar uma interpretação produtiva sobre normas de proteção aos
encontrado limites em agir desta forma e tem impedido o avanço da pauta da justiça de
transição.
Judiciário brasileiro tem acolhido as ações cíveis sobre a responsabilidade estatal no que
diz respeito à reparação, mas se opõe à responsabilização individual dos autores dos
O Supremo Tribunal Federal julgou a ADPF nº 153 sete meses antes de o Brasil
O caso Guerrilha do Araguaia, pelo qual o Brasil foi condenado, chegou à Corte
transnacional que gerou o que Keck e Sikkink (1998) chamam de efeito bumerangue.
primários dos direitos, mas também seus violadores primários. Quando não há recurso
buscar conexões internacionais para expressar suas preocupações e proteger suas vidas.
aliados internacionais para tentar trazer pressão de fora nos Estados. “Contatos
internacionais podem amplificar as demandas dos grupos domésticos, abrir espaço para
novas demandas e então ecoar de volta estas demandas para a arena doméstica” (Keck;
luta pelo direito à justiça sobre as graves violações de direitos humanos cometidas no
CorteIDH alterou o equilíbrio de poder interno e abriu oportunidades para que um grupo
Poder Judiciário e inaugurou um boom de judicialização nos últimos anos (cf. Meyer,
2016a, p. 125; Bernardi, 2015, p. 551). Esta leitura feita por uma corte no seio da
Criou-se, assim, espaço e recursos para que atores e grupos domésticos litiguem
contra o seu próprio Estado no plano local tendo por fundamento os direitos
Emilio Meyer (2016a, p. 114) reflete como a judicialização da política tem impactado a
conflitos sociais e políticos e uma série de atores sociais têm feito uso do direito e dos
discursos jurídicos. Assim, “uma parte importante do trabalho atual de juízes criminais
e civis envolve o julgamento de crimes praticados por antigos membros dos regimes
repressivos”.
durante a ditadura.
modo que os casos são ferramentas para transformação da jurisprudência dos tribunais e
considerando que “ao mesmo tempo em que as instituições e normas tendem a manter o
oportunidades políticas domésticas (cf. Bernardi, 2015, p. 28), para entender o impacto
da sentença da CorteIDH.
internacional dos direitos humanos e a ultrapassar uma cultura jurídica muito afeta à
soberania. Assim, a partir de uma cultura jurídica positivista e soberanista, tem sido
aplicada uma visão de direito penal enquanto defesa do cidadão contra o poder punitivo
que somente deve haver mudança caso o Supremo Tribunal Federal entenda que é
possível a persecução penal para estes crimes em um novo julgamento dos embargos de
Humanos os casos de Luiz José da Cunha e de Eduardo Collen Leite, assim como já
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A OAB entrou com embargos de declaração após a decisão do STF na ADPF nº 153. Em 2014, o PSOL
entrou com uma nova ADPF, a ADPF nº 320, para que o STF se pronuncie sobre o cumprimento da
sentença da CorteIDH no caso Gomes Lund e a respeito dos crimes permanentes de sequestro e ocultação
de cadáver.
decisões de rejeição das ações penais: o questionamento dos efeitos
permanentes dos crimes de sequestro praticados; a definição de que o crime
de ocultação de cadáver é crime instantâneo de efeitos permanentes (e não
crime permanente; e, o que chama mais atenção, a reiterada despreocupação
com os efeitos da decisão da CorteIDH no Caso Gomes Lund e o papel do
direito internacional dos direitos humanos (Meyer, 2016b, pp. 53-54).
do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos teve repercussão direta na luta
entanto, tem sido tímida. É preciso, assim, refletir sobre que motivos levam nossa corte
mencionado, aponta a presença de uma cultura jurídica autoritária presente ainda hoje
no Brasil.
instância punitiva política da ditadura, com suas atribuições ampliadas para processar e
nacional perante a Justiça Militar (cf. Santos, Brega Filho, 2009). Ademais, o Judiciário
p. 957).
“Em conjunto, as decisões do Poder Judiciário, quando do período ditatorial,
refletem, muitas vezes, seu tempo e seus senhores; são expressões da ditadura
e de seu contexto de repressão e violência. Os magistrados que ali estiveram
– ou melhor, que ali permaneceram – frequentemente eram parte dessa
conjuntura, inclusive porque, por meio da ditadura militar, foi-lhes garantido
um assento naqueles tribunais. (...) Nesse contexto, conclui-se que a omissão
e a legitimação institucionais do Poder Judiciário em relação às graves
violações de direitos humanos, então denunciadas, faziam parte de um
sistema hermético mais amplo, cautelosamente urdido para criar obstáculos a
toda e qualquer resistência ao regime ditatorial, que tinha como ponto de
partida a burocracia autoritária do Poder Executivo, passava por um
Legislativo leniente e findava em um Judiciário majoritariamente
comprometido em interpretar e aplicar o ordenamento em inequívoca
consonância com os ditames da ditadura. (Brasil, Comissão Nacional da
Verdade, 2014, p. 957).
Schinke (2015, p. 449) chama a atenção para o fato de que, quanto mais direto o
justiça de transição no Brasil, qual papel o judiciário brasileiro tem cumprido e pode
brasileiro tem uma postura refratária à pauta da justiça de transição? Assim, entendendo
a importância dos atores judiciais domésticos para a internalização de uma norma global
Este trabalho parte do referencial teórico segundo o qual temos hoje instituições
de forma a não haver ameaça de regressão autoritária. Ademais, existe uma legislação
humanos. Tendo em vista a gravidade dos crimes perpetrados pelos agentes do Estado,
não é aceitável que haja mecanismos que impeçam o direito à justiça e é imprescindível
permeabilidade do Judiciário e que papel pode cumprir, que relação o judiciário deve ter
comissões da verdade. Por outro lado, tentaremos analisar quais são as perspectivas
Direitos Humanos.
As principais hipóteses para entender por que o Judiciário tem uma postura
refratária à pauta da justiça de transição são de que há uma cultura jurídica autoritária,
internacional dos direitos humanos. Estas são questões frequentemente levantadas pela
literatura e tentaremos entender até que ponto elas explicam o quadro judicial que existe
para entender como o judiciário doméstico interage com o direito internacional dos
entrevistas com litigantes e com juízes que julgaram estes casos. Assim, discutiremos o
direito internacional dos direitos humanos pelo judiciário brasileiro e sobre como este se
que papel o Judiciário brasileiro poderia cumprir e quais são os limites da pauta no país,
Bibliografia
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Silva Filho, Cristiano Paixão, Lívia Gimenes Dias da Fonseca, Talita Tatiana Dias
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