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CIENCIA E POLITICA: DUAS VOCAGOES Max Weber A obra de Max Weber 6, ao lado das de Marx, Comte « Durkheim, um dos fundamentos da metodologia da Sociologia contempovinea. Dai o especial interesse que este livro teré para os leitores desejosos de informar-se acerca do pensamento sociolé ico moderno. Pela leitura dos dois ensaios aqui reunidos, pode- rao eles iniciar-se no conhecimento da contribuicdo metodolégica weberiana, ao mesmo tempo que apreciar brilhantes andlises subs- tantivas daquilo que, no entender dos seus exegetas mais auto- ritados, é 0 niicleo das preocupagies de Weber: a racionalidade. Nesses dois ensaios, 0 grande socidlogo alemao estuda a manelra pela qual a pritica cientifica contribui para o desenvolvimento da racionalidade humana e analisa com percuciéncia as con- digdes de funcionamento do Estado moderno, focalizando assim 4 oposigao bésica entre a “ética de condigéo” do cientista ¢ a “ética de responsabilidade” do politico, dois fulcros polartzadores das opgGes bumanas. CIENCIA POLITICA duas vocacdes MAX WEBER CIENCIA E POLITICA Duas Vocagdes Preficio de ‘Manoa T. Beruinck (Professor-Adjunto de Sociologia da Escola de Administragto de Empresas de S. Paulo, da Fundagio Getdlio Vargas) Tradusto de Leonnpas Hucenneno ¢ Octany Su.vetaa pa Mora Os dois textos incluids neste volume inttulam-se, no original wlemlo, Wussenschaft Als Berufe PolitikAls Beruf. Copyright © 1967 ¢ 1968 Dunkeré Hunblot, Berlim, ‘Todos 0s direitos reservados. Neohum parte deste livro pode ser reproxluzida ou usada de quelquer forma ou por qualquer meio, eletrénico ou mecfnica, inclusive fotocdpias, gravagdes ou sistema de armazenamento em baneo de dados, sem ppermissdo por eserito, exeeto nos casos de trechos curios citados em resenhas erticas ‘ou artigos derevistas, (© primeiro nimero a esquerda indica «eds, ov cecigso, desta obs, praia dezmna «leit index o uno em que esa el, ou Feeigto fol publisada .digdo Ano 14-15-16-17-18-19-20 07-08-09-10-11-12-13 INDICE Norfcia Sone Max WEBER A Crfcta Como Vocagko ‘A Poxirica Como Vocagio 17 55 t NOTICIA SOBRE MAX WEBER Max Weber nasceu em Erfurt, Turingia, Alemanba, em 21 de abril de 1864, Seu pai, Max Weber Sr., era advogado ¢ po- litico; sua riie, Helene Fallenstein Weber, era mulber culta ¢ liberal que manifestava profundos tracos pietistas de fé pro- testante. O ambiente erudito e intelectual do lar contribuin decisi- vamente para a precocidade do jovem Weber. Basta dizer que aos 13 anos de idade jd escrevia ele ensaios bistéricos penetrantes. Weber terminou os estudos pré-universitarios na primave- ra de 1882 e foi para Heidelberg, onde se matriculou no curso de Direito. Estudou também diversas outras matérias, como His- téria, Economia e Filosofia, que, em Heidelberg, cram ensina- das por eminentes professores. Depois de trés semesires 14, Weber mudou-se para Estras- burgo a fim de servir 0 exército por um ano. Quando dew baixa, retomou seus estudos universitarios emt Berlim e Goettin. igen onde, em 1886, submeten-se ao primeiro exame de Direito. Escreven em 1889 sua tese de doutoramento sobre a histéria das companhias comerciais da Idade Média; para isso, teve de con- sultar centenas de documentos espanbéis e italianos, 0 que Ibe exigin 0 aprendizedo desses idiomas. No ano seguinte, estabele- couse como advogado em Berlim; escreven, por essa época, um tratado intitulado Historia das Instituigdes Agrétias; 0 modesto titulo encobre, na verdade, uma andlise socioldgica e econémi- ca do Império Romano. Em 1893, Weber casowse com Marianne Schnitger, sua pa- rente longingua. Depois de casado, passou a levar uma vida de académico bem-sucedido em Berlim. No outono de 1894 acei- tou a cadeira de Economia da Universidade de Friburgo e, dois 7 anos mais tarde, passava a substituir o eminente Knies em Hei- delberg. Em 1898, Weber apresentou sintomas de esgotamento ner- voso e de neurose; até o fim de sua vida, ria sofrer depresses agudas intermitentes, entremeadas de periodos de trabalho in- telectual extraordinariamente intenso. A doenca 0 manteve afas- tado das atividades académicas durante mais de trés anos; resta- belecido, voltou para Heidelberg e reassumiu parcialmente as atividades docentes. Seu estado de satide nao, Ibe permitia, en- tretanto que se dedicasse inteiramente ao magistério. Em decor- réncia disso, solicitou afastamento das atividades diddticas e pro mogao para o cargo de professor titular, o que the foi concedi do pela Universidade. Apesar das crises nervosas, Weber, juntamente com Som bart, assumin em 1903 a diregao do Archiv fir Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, gue se transformou em uma das mais impor- tantes revistas de ciéncias sociais da Alemanba, até seu fecha- mento pelos nazistas, No ano seguinte, a produtividade intelectual de Weber re- cebeu novo impulso; ele publicou entio diversos ensaios aléma da primeira parte de A Etica Protestante e 0 Espttito do Capi- talismo, Em meados de 1904, Weber viajou para os Estados Uni- dos, que causaram profunda impressio sobre seu espirito anali- tico. O Joco central do seu interesse na América foi o papel da burocracia na democracia. De volta @ Alemanha, retomou suas atividades de escritor em Heidelberg, concluindo entio A Tica Protestante e 0 Espirito do Capitalismo. No periodo que medeia entre 1906 ¢ 1910, Weber parti- cipou intensamente da vida intelectual de Heidelberg, mantendo longas discusses com eminentes académicos, como seu irmio Al- fred, Otto Klebs, Eberhard Gotheim, Wilhelm Windelband, Georg Jellinek, Ernst Troeltsch, Karl Neumann, Emil Lask, Friedrich Gundolf, Arthur Salz. Nas férias, muitos amigos vi- nham a Heidelberg visitélo; entre eles, Robert Michels, Werner Sombart, 0 filésofo Paul Hensel, Hugo Mitnsterberg, Ferdinand Téennies, Karl Vossler e, sobretudo, Georg Simmel, Entre os jovens universitirios que procuravam o estimulo de Weber con- tavamese Paul Honigsheim, Karl Lowenstein e Georg Lukacs. & ‘ ‘Apés a Primeira Guerra Mundial, na qual participou ativa- mente, Weber mudowse para Viena. Durante o verdo de 1918, ‘ninistrow seu primeiro curso, depois de dezenove anos de afas- famento da cétedra, Nese curso, apresentou sua sociologia das religibes e da politica sob o titulo de Uma Critica Positiva da Concepcio Materialista da Histéria, . Em 1919, tendo abandonado 0 monarquismo pelo republi- canismo, Weber substituiu Brentano na Universidade de Muni- Gue. Suas dltimas aulas, feitas a pedidos de alunos, foram pu. Sticadas sob o titulo Histéria Econémica Geral. Ex meados de 1920, adoeceu de pneumonia. Morreu em junbo de 1920, dei- xando inacabado um livro de revisio e sintese de toda @ saa obra, intitulado Wirtschaft und Gesellschaft, que é de importdncia fundamental para @ compreensio de seu pensamento. Os numerosos trabalhos de Weber foram, sem exagero, fun- dancentais para o desenvolvimento da sociologia contempordnea, Pode-se dizer que sua obra, juntamente com a de Marx, de Comte e de Durkheim, é um dos fundamentos da metodolo- gia da sociologia moderna, Nos dois ensaios apresentados neste volume, o leitor se poderd familiarizar nao 36 com uma amostra da contribuigio me- todolégica de Weber como também com uma de suas mais bri- Ubantes andlises substantivas. Tanto a vida como a obra de Weber tém sido objeto de amplas andlises, realizadas por socidlogos famosos como Ray mond Aron, Hans Gerth, C. Wrigth Mills e Reinhard Bendix. Este prefacio no pretende, portanto, fornecer subsidios originais ‘para a compreensio do pensamento weberiano. O leitor que desejar aprojundar-se no assunto deveré reportar-se aos trabe- Ibos interpretativos escritos pelos socidlogos acima mencionados, além, naturalmente, de compulsar as obras do proprio Weber. E certo, entretanto, que a compreensao dos ensaios apresentados neste volume poderd ser facilitada por meio de algumas suges- t6es interpretativas, que 0 leitor euidard de desenvolver na me- dida em que se interesse pela obra de Weber. Alvin Gouldner, em penetrante ensaio, sugere que tanto as virtudes como os defeitas do pensamento de Weber podem ser explicados a partir das relagées estruturais que ele mante- ve durante sua vida, Mais especificamente, o pensamento de Weber teria sido influenciado principalmente pelas relagoes qite manteve com seus parentes (especialmente com a mie}, pelo clima universitirio existente na Alemanha, pelas viagens que rea. Hizou (especialmente aos Estados Unidos) e pelo clima politico da Alemanka, Esse conjunto de influéncias acabou por produsir, em We- ber, aquilo que muitos consideram a preocupacao central de sua obra: a racionalidade. A impressio que se tem é a de que seus estudos sobre religides, a andlise do surgimento do capitalismo, os estudos sobre poder e burocracia, os escritos metodolbgicos ¢ sua sociologia do Direito sto tentativas de resposta a pergun- tas tais como: quais as condigbes necessérias para 0 aparecimen- to da racionalidade?; qual a natureza da racionalidade?; quais as consegiiéncias sécio-econémicas da racionalidade? Se tal im- pressio for verdadeira, os dois ensaios que sao apresentados en seguida constituem verdadeiros marcos do pensamento de Weber pois ambos se referem especificamente a racionalidade, Para Weber, a racionalidede diz respeito a uma equagio di- ndmica entre meios e fins. Nesse particular, ele acreditava (¢ essa crenca permeou o pensamento dos socidiogos funcionalistas contempordneos, tais como Parsons, Williams, Homans, etc.) que toda acio humana é realizada visando a determinadas metas — concepcées afetivas do desejdvel — ou valores. Tais valo- res sio fenémenos culturais e possuem bases extracientificas. Em outras palavras, as definigées do que & bom e do que é mau, do que & bonito e do que é feio, do que é agradavel e do que é desagradével constituem proposicées extraempiricas. Nio se pode provar empiricamente que uma coisa seja bela ou feia, etc, Semeibantes proposigdes constituem, nas palavras de Hempel, “julgamentos categéricos de valor”. Para atingir tais metas ou obler tais valores, o homens pre- cisa agir. A aco humana pode, entretanto, ser mais ow menos eficaz para a consecucao de valores. A eficécia do comportamen- to € relativa porque (a) existem sempre diferentes formas de aco, isto &, a acto humana nao é determinada ow limitada por 10 em n+ ‘apenas um curso, mas bi sempre alternativas do curso de ago ao dispor do homem e (b) 0 homem possui uma série de va- lores que precisam ser selecionados, bierarquizados e visados. Por outro lado, a cada momento e espaco, 0 homem nio con- ‘segue fazer duas coisas ao mesmo tempo. Em linguagem so- Yisticada, pode-se dizer que o Princlpio da Complementarida- de descoberto por Bohr (segundo o qual o eléctron pode ser considerado como onda e como particula, dependendo do con- texto) aplicase também ao comportamento humano, Como afir- ma um fisico, Von Pauli: “Posso escolber a observagio de um experimento A e arruinar B on escolher a observagao de B e ar- tuinar A. Nao posso, entretanto, deixar de escolber a ruina de use deles”. Em vista dessa situagao, 0 bomem estd constante- mente enfrentando e sendo obrigado a realizar opedes. O pro- blema da opgao, como sugere Raymond Aron, confere a obra de Weber um sentido existencialista. Que este problema tem in- tenso significado & coisa que se verifica pela oposigao entre “Gica de condicio” (imperativo categérico para 0 cientista) ¢ a “Gtica de responsabilidade" (moral de Maquiavel — neces- séria para a politica). Os critérios de opcio da agao humana variam, Segunda Weber, bé quatro tipos de orientagio para a agao: (a) tradi nal, baseada em hébitos de longa pritica; (b) affektueel, basea- da nas afeigdes e nos estados sensérios do agente; (c) wertra- tional, baseada em crenca no valor absoluto de um comporta- mento ético, estético, réligioso, ou outra forma, exclusivamente por seu valor e independentemente de qualquer esperanca quar to ao sucesso externo; ¢ (d) zwecrational, baseada na expecta- tiva de comportamento e objetos da situacio externa e de outros individuos usando tais expectativas como “condigdes” ou “meios” para a consecucéo bem~sucedida dos fins racionalmente escolbi- dos pelo préprio agente. B Idgico que Weber sabia que cada uma dessas orientacbes é“racional” quando se leva em conta a equacio meios-fins, Mas 0 seu interesse estava voltado para as condigdes necessdrias, para as manifestagbes e consegiléncias da orientagao zwecrational. Em A Politica Como Vocacio, tal interesse se volta para as condigGes necessdrias ao funcionamento do Estado moderno, para a burocracia como organixagao social baseada numa orien- 1 tagao awecrational de acdes e nas consegiiéncias da burocratiza- yo do Estado moderno para a sociedade em que se encontra in- serido. Para Weber, diferentes tipos de sociedades apresentant diferentes formas de lideranga politica, Entretanto, a manuten- G40 dessas liderancas depende de organizagdes administrativas que realizam a “expropriagio” politica. Séo tais organizacies que irdo, afinal de contas, determinar a “racionalidade” do sis- tema politico; sito elas que irdo exercer, com maior ou menor sucesso, 0 monopdlio do poder de uma sociedade. A “racionali- dade” de semethantes organizagoes depende, em primeiro lugar, de uma distingéo entre “viver para a politica”e “viver da po- Itica”. Ainda que Weber nao o afirme categoricamente, essa distingao ajuda a compreender as motivagoes da ago politica e, Por sua vex, gera o problema da corrupgao, na organizagao poli- tica, Em segundo lugar, a racionalidade do sistema politico au- menta na medida em que ocorrem uma diferenciagao de status- -paptis ¢ uma especializagio funcional dentro das organizagoes administrativas. A britbante e erudita anélise de Weber sugere que a diferenciacio ocorre quando bd uma especializacio entre 1 adrinistracio, que deve ser exercida sine ita et studio, ¢ a li- deranca politica, cuja agao 6, por natureza, fundamentada na ita et studium. Essa especializagdo, por sua vez, tende a mudar os critérios de alocagao de status-papéis na organizacao politica, Os critérios deixam de ser plutocriticos e passam a basear-se no de- sempenbo e no conbecimento especializado, Nao hé portanto, nessa nova organizacao, lugar para o dilettante, pois o seu “su- cesso” depende, cada vez mais, da acto especializada, Em A Ciéncia Como Vocagio, o interesse de Weber pela orientacao zwecrational se manifesta no exame da prépria pré- sica da racionalidade. Segundo ele, a Giéncia ou a pratica da Ciéncia contribui para o desenvolvimento da tecnologia, que con- trola a vida. Contribui, também, para o desenvolvimenta de métodos de pensamento, para a construcéo de instrumentos & adestramento do pensar. Finalmente, a Ciéncia contribui para 0 ““ganbo da clarexa’”. O que Weber quer dizer com isso? Quer dizer que a Ciéncia indica os meios necessdrios para atingir determinadas metas. E que tais metas devem, portanto, ser cla- ramente formuladas, a fint de se identificarem os meios de atingi- -las. Por via desse processo, entretanto, os homens ficam saben- do 0 que querem ¢ 0 que devem fazer para obter o que querem. 12 ssibilita a opcao nao sé de meios mas de metas de com- F tnbnto. Beis segundo Weber, « grande contibugio da Rioncia, Em dltima anilise, portanto, a contribuigto da pritica cientifica é, para o pensador alemito, 0 desenvolvimento da ra- cionalidade. — Tense a impressio de que 0 problema da racionalidede as- sume, por vexes, ent Weber, um carder formalista, que se ire Ghuz na adequagto entre meios ¢ fins ¢ nio no exame crtico dos fins "As expenibncias de Hiroxima e Nagaséqui, a “guerra fri sutras manifestagbes “‘racionalistas” do pés-guerra sugeriramt fos clentitas contempordneos of perigos existentes numa atitur de formalista com relagio a “racionalidade”. Weber, entretanto, era um bomem de sen tempo e 56 wnea anilice da estrulura em que estava inserido nos pode ajudar a compreender sua preacupacto com a raciondidade e a maneira como a define. ‘Ele teve a grande virtude de perceber que, na Alemanba de Weimar, at Universidades estavant sendo impregnadas por ideo- logias estranhas 2 educacio, Mais precisamente, que o fasciswto da nascente politica nacional socialista estava comecando a amea- aro espiito critica e a liberdade de pensamento. Os cargos $2 enitos cram, muitas vetes, preenchidos por individuos que “iiltzeam a3 cévedras, para décursos politicos demagdgicos, de inspinagao fascista, A educagio raciondista e juridica de Weber ase bin para que ele pudesse perceber o perigo que tal prética ‘ratia nao 16 para 2 educa(ao como para o proprio futuro da ‘emanha. Dafa sua preocupagio com 4 recionalidade e com & objetividede : “Ainda, entretanto, que se descubram as causas estruturais do pensamerto weberiano ¢ suas liitagdes epistemoléieas, sua conkribuigao & Sociologia permanece central nao s6 por suas ani fises comparativas, por seu método da compreensio (erstehen), cu pela descoberta das conexses entre orientaroes valorativas Comportamentas estruturas. © peniamento de Weber petite também porgue muitas das caracteristicas da estrutura social da Republica de Weimar basicamente se repeter em outras socie- dades, em outros tempos. Manoet T. Bertincx, Ph. D. 3 A CIENCIA COMO VOCAGAO PEDIRAM-ME 05 SENHORES que Ihes falasse da cigncia como vocagao, Ora, nés economistas temos o hébito pedante, a que me agradaria permanecer fiel, de partir sempre do exame das condigdes externas do problema. No caso presente, parto da seguinte indagagdo: quais sfo, no sentido material do termo, as condigées de que se rodeia a ciéncia como vocacio? Hoje em dia, essa pergunta equivale, praticamente ¢ em esséncia, a esta ‘outta: quais séo as perspectivas de alguém que, tendo concluido seus estudos superiores, decida dedicar-se profissionalmente ciéneia, no ambito da vida universitéria? Para compreender_ a peculiaridade que, sob esse ponto de vista, apresenta a situagio alema, convém recorrer ao processo da comparagio © conhecet as condigdes que vigem no estrangeito. Quanto a esse aspecto, sio os Estados Unidos da América que apresentam os contrastes mais violentos com a Alemanha, razZo por que ditigiremos nos- sa atengao para aquele pats. Sabemos todos que, na Alemanha, a catzeia do jovem que se consagta & ciéncia tem, normalmente, como primeiro paso, 2 posicao de Privatdozent, Apés longo trato com especialistas da matéria escolhida, ¢ apés haver-lhes obtido o consentimento, 0 candidato se habilita ao.ensino superior redigindo uma tese ¢ submetendo-se a um exame que é, as mais das vezes, formal, pe- rante uma comissao integrada por docentes de sua Universidade. Ser-lhe-, entio, permitido ministrar cursos a ptopésito de as- suntos por ele prdprio selecionados dentro do quadro de sua venia legendi, sem receber qualquer temuneracio, a nfo set as taxas pagas pelos estudantes. Nos Estados Unidos da América, inicia-se a carreira académica de maneita inteiramente diversa: parte-se do desempenho da fungao de “assistente”. Trata-se de modo de proceder muito préximo, por exemplo, ao dos grandes 7 Institutos alemies das Faculdades de Ciéncias ¢ de Medicina, ‘onde a habilitagio formal 4 posigio de Privaldozent s6 & tenta- da por pequena fracio de assistentes e, com freqiténcia, em fase avangada das respectivas catreiras. A’ diferenga que nosso sis- tema apresenta em relagdo ao americano significa que, na Ale- mana, a carreira de um homem de cigncia se apsia em alicer- ces plutocréticos. Para um jovem cientista sem fortuna pessoal é, com efeito, extremamente atriscado enfrentar os azarcs da caxteira universitéria, Deve ele ter condigdes" para subsistir com seus préprios recursos, ao menos durante certo niimero de anos, sem ter, de maneita alguma, a certeza de que um dia The serd aberta a possibilidade de ocupar uma posigio que lhe daré meios de viver decentemente. Nos Estados Unidos da América reina, em oposigio ao nosso, o sistema burocratico. Desde que inicia a carreira, o jovem cientista recebe um pagamento, Trata-se de salério modesto que, freqiientemente, é apenas igual a0 de um trabalhador semi-especializado, Nao obstante, 0 jovem parte de uma situagio aparentemente estével, pois recebe ordenado fixo. E de regra, entretanto, que se possa despedi-lo, tal como séo afastados os assistentes alemes, quando nio correspondem is expectativas. E que expectativas so essas?_ Pura ¢ simples- mente que cle consiga “‘sala cheia”, Isso € algo que néo afeta © Privatdozent. Uma vez admitido, ele nio pode ser desalojado. Nao the petmitem, por certo, quaisquer reivindicagSes, mas cle adquite o sentimento, humanamente compreensfvel, de que, apds anos de trabalhos, tem o diteito moral de esperar alguma con deragio. A situacio adquitida é levada em conta — e isso ¢, com freqiiéncia, de grande importincia — no momento de even- tual “habilitagio” de outzos Privatdozenten. Surge, a partir daf, um problema: deve-se conceder a “habilitacdo” @ todo jovem cientista que haja dado provas de sua capacidade, ou deve-se ter em conta as “necessidades do ensino”, dando sos Dozenten jé qualificados 0 monopélio do lecionar?’ Essa indagacio faz sur- git um dilema penoso, que se liga a0 duplo aspecto da vocecao universitéria © que seré, dentro em pouco, objeto de considera- ges. Na generalidade dos casos, as opinides se inclinam em fa- vor da segunda solugio. Mas ela nfo faz senfo com que se acen- tuem certos perigos. Em verdade, a despeito de sua probidade pessoal, © professor titular da disciplina que se ache em causa se verd, apesar de tudo, inclinado a dar preferéncia a seus pr6- 18 prios alunos. Se posso falar de minha atitude pessoal, adotei a ditetriz. seguinte: pedia ao estudante que havia elaborado sua ese sob minha orientagio que se candidatasse e “*habilitasse” perante outro professor, em outra univetsidade. Desse procedi- mento resultou que um de meus alunos, ¢ dos mais capazes, foi aceito por colegas meus, porque nenhum destes acreditou no motivo que o levava a ptocuré-los. Existe outta diferenga entre o sistema alemio © 0 ameti- cano. Na Alemanha, 0 Privatdozent dé, em geral, menos cursos do que desejaria. ‘Tem ele, por certo, 0 dircito de oferecer to- dos 0s cursos que estejam dentro de sua especialidade. Mas, agir assim, seria considerado indelicadeza grande para com os Dozenten mais antigos; em conseqiéncia, os “grandes” cursos ficam reser- vados para os professores ¢ os Dozenten devem limitar-se 208 carsos de importincia secundéria. Em tal sistema encontram os Dozenten a vantagem, talvez involuntéria, de, durante a juven- tude, dispor de lazeres que podem ser consagrados aos trabalhos cientificos. Nos Estados Unidos da América, a organizagio é funda mentalmente diverse, E precisamente durante os anos de juven- tude que o assistente se vé literalmente sobrecarregado de tra- balho, exatamente porque € remunerado. Num departamento de estudes germanicos, 0 professor titular dé cerca de trés horas de cutso sobte Goethe ¢ isso é tudo — enquanto que o jovem as- tente deve considerar-se feliz se, ao longo de suas doze horas de trabalho semanal, a par dos exercicios préticos de alemfo, for autotizado a dar algumas ligSes sobre escritores de mérito maior que, digamos, Ubland. Instancias superiores elaboram 0 programa ¢ a ele o assistente se deve curvar, tal como ocotre, a Alemanha, com o assistente de um Instituto, Nos iiltimos tempos, podemos observar claramente que, ‘em numerosos dominios da ciéncia, desenvolvimentos recentes do sistema universitério alemio orientam-se de acordo com padrées, do sistema norte-americano. Os grandes institutos de ciéncia de medicina se transformaram em empresas de “‘capitelismo esta- tal”, J& nfo € possfvel gericlas sem dispor de recursos financei- ros considerdveis, E nota-se 0 surgimento, como alids em to- dos os lugares em que se implanta uma empresa capitalista, do fenémeno especifico do capitalismo, que é 0 de “privar 0 tra- 19 balhador dos meios de produgio”. O trabalhador — o assisten- te — nio dispde de outros recursos que nio os instrumentos de trabalho que 0 Estado coloca a seu alcance; conseqiiente- mente, cle depende do diretor do instituto tanto quanto 0 em- pregado de uma fébrica depende de seu patrio — pois o diretor de um instituto imagina, com inteita boa-fé, que aquele é sew Instituto: dirigeo a scu belprazer. Assim, a posigéo do assis- tente é com freqincia, nesses institutos, tio precéria quanto a de qualquer outra existéncia “proletardide” ou quanto a dos assistentes das universidades norte-americanas. Tal como se dé com outros setores de nossa vida, a univer-" sidade alemi se americaniza, sob importantes aspectos. Estou convencido de que essa evolucdo chegaré mesmo a atingir as disciplinas em que o trabalhador ¢ proprietério pessoal de seus meios de trabalho (essencialmente, de sua biblioteca). No mo- mento, 0 trabalhador de minha especialidade continua a set, em larga medida, seu proprio patréo, a semelhanga do artesio de euttora, no quedo de,seu mister préprio, A evolsfo se pro cessa, contudo, a grandes passos. Nao se podem negar as incontestéveis vantagens.téenicas dessa evolugio, que se manifestam em quaisquer empresas que tenham, ao mesmo tempo, catacteristicas buroctiticas e capita- listas. "Todavia, 0 novo “espirito” € bem diferente da velha atmosfera histérica das universidades alemas. Hd um abismo, tanto visto de fora quanto visto de dentro, entre essa espécie de grande empresa universitéia capitalista e 0 professor titular ¢o- mum, de velho estilo. Isto se traduz até na maneita intima de set. Nio quero, entretanto, descer a pormenores. A antiga of ginizagio univetsitéria tornou-se uma ficeio, tanto no que se refere 20 espirito, como no que diz respeito a estrutura, Hi, no obstante, um aspecto préprio da carreira universitétia que se manteve e se vem manifestando de maneita ainda mais sensivel: © papel do acaso. E a ele que 0 Privatdozent e, em patticulat, © assistente deveréo atribuir 0 fato de, eventualmente, passa- rem a ocupar uma posicio de professor titular ou de ditetor de um instituto, Claro esté que 0 arbitrério no reina sozinho em tais dominios, mas apesar disso, exerce influéncia fora do comum. Nao me consta existir, em todo o mundo, catreira em relagZo & qual o seu papel seja mais importante. Estou A vonta- 20 de para falar do assunto, pois, pessoalmente, devo a um con- curso de circunstincias particularmente felizes o fato de havet sido convocado, ainda muito jovem, para ocupar uma posicéo de professor titular dentro de um campo de especialidade em que colegas de minha idade jé haviam produzido muito mais do que eu mesmo. Com base em tal experiéncia, creio possuir visto penetrante para compreender o imerecide’ fado de numetosos colegas para os quais a fortuna nfo sorria, e ainda no sorri, € gp devido aos procssos de sdeso, jamais puderan ocupt, lespeito do talento de que sio dotados, as posigies que mere ceriam, Se 0 acaso ¢ nao apenas o valor desempenha papel tio re- evante, culpa no cabe exclusivamente, nem principalmente, as fraquezas humanas que se manifestam, evidentemente, na sele- do a que me refiro e em qualquer outra. Seria injusto imputar 4 deficiéncias pessoais que se manifestam no quadro de faculdades ‘cou de ministérios responsabilidade por uma situagdo que leva tio grande mimero de mediocridades a desempenharem fungdes importantes nas carreiras universitérias, A razio deve ser bus- cada, antes, nas leis que regem a cooperacio humana, especial- mente a cooperagio entre organizagdes diversas, e, em nosso caso particular, a colaboracgo entre as faculdades que ptopdem ‘0s candidatos ¢ 0 ministério que os nomeia. Podemos tecorret ‘1 um paralelo com a eleigo dos papas que, 20 longo de sécalos numerosos, nos vem fornecendo 0 mais importante exemplo concreto desse tipo de selegio. © cardeal que se indicava como “favorito” raramente vinha a ser eleito. Regra geral, elegia-se ‘© candidato ntimero dois ou ntimero trés. Ocorre fenémeno idéntico nas eleigies presidenciais dos Estados Unidos da Amé- rica, $6 excepcionalmente 0 candidato mimero um ¢ mais proe- minente & “escolhido” pelas convencées. nacionais dos partidos: na maioria das vezes, escolhe-se 0 candidato mimero dois e, com freqiéncia, o niimero tres, Os norte-americanos j4 chegaram mesmo a ctiar expresses técnicas e socioldgicas pata caracterizar essas categorias de candidatos. Seria, ¢ claro, interessante exa- minar, a partir de tais exemplos, as leis de uma selegio que se faz por ato de vontade coletiva, mas esse no é 0 nosso propé- sito de hoje. Essas mesmas leis se aplicam também as eleicdes nas assembléias universitdrias. E devemos espantar-nos nao ‘com os efros que, nessas condigées, sfo freqtientemente come- 21 tidos, mes sim com 0 fato de que, guardadas todas as propor- es, constata-se, apesar de tudo, que hé niimero igualmente con- siderdvel de nomeagdes justificadas. $6 em alguns paises em que © Parlamento tem iofluéncia no caso ou em nagées em que os monarcas intervém por motives politicos (o resultado & 0 mesmo em ambas as situagées), tal como acontecia na Alemanha até época recente ¢, de novo, em nossos dias, com os detentores do poder revolucionétio, é que podemos estar certos de que os mediocres ¢ os artivistas so os tinicos a terem possibilidade de ser nomeados. “ Nenhum professor universitério gosta de relembrar as dis- cusses que se travaram quando de sua nomeagio, porque clas raramente so agradaveis. Posso, entretanto, declarar que, nos umerosos casos que sfo de meu conhecimento, constatei, sem excecio, a existéncia de uma boa vontade preocupada com evi- tar que na decisio interviessem razSes outras que nfo as pura- mente objetivas. & preciso, por outro lado, compreender clatamente que as deficiéncias observadas na selesio que se opeta por vontade co- letiva no explicam, por si mesmas, 0 fato de que a decisfo re- Jativa aos destinos ‘universitétios é em grande porcdo, deixada a0 “acaso”. ‘Todo jovem que actedite possuir a vocagio de cien- tista deve dar-se conta de que a tarefa que 0 espera reveste du- plo aspecto. Deve ele possuir nfo apenas as qualificagées do cientista, mas também as do professor. Ora, essas duas carac- terfsticas nfo s4o absolutamente coincidentes, & possivel ser, a0 mesmo tempo, eminente cientista e péssimo professor. Penso na atividede docente de homens tais como Helmholtz ou Ran- ke que, por certo, nao sto excegées. Em verdade, as coisas se passam da seguinte maneira: as universidades alemis, parti- culatmente as pequenas, entregamse, entre si, 2 mais ridicula concorréncia para atrair estudantes. Os locadores de quartos para estudantes, primérios como camponeses, organizam festas em honra do milésimo aluno ¢ apteciariam organizar marchas & Juz de tochas, pata saudar o milésimo seguinte. A renda que advém da conttibui¢do dos estudantes é, impotta confessé-lo, condicionada pelo fato de outros professores que “atraem grande niimero de alunos” sministrarem cursos de disciplinas afins. Ainda que se faca abstracfo de tal circunsténcia, continuard a 22 ser verdade que o niimero de estudantes matriculados coustitui ‘um critério tang(vel de valor, enquanto que o mérito do cientis ta pertence a0 dominio do imponderivel. Dé-se freqiientemente (e é natural) que se utilize exatamente esse argumento para res- ponder aos inovadores audaciosos. Fis por que tudo quase sem- pre se subordina a obsessio da sala cheia e dos frutos que daf decorrem, Quando de um Dozent se diz que é mau professor, isso equivale, na maioria das vezes, a pronunciar uma sentenga de morte universitéria, embora seja cle 0 primeito dos cientistas do mundo, Avalia-se, portanto, o bom ¢ 0 mau professor pela assiduidade com que os Senhores Estudantes se disponham a hot réfo. Ora, é indiscutivel que os estudantes procuram um deter- minado professor por motivos que so em grande parte — parte tdo grande que é dificil acreditarmos em sua extenso — alheios A cigncia, motivos que dizem respeito, por exemplo, ao tempera- mento ow a inflexdo da voz. Experiéncia pessoal jé bastante am- pla ¢ reflexo isenta de qualquer fantasia condaziram-me a des- confiar fortemente dos cursos procurados por grande massa de estudantes, embora 0 fato pareca inevitdvel. A democracia deve set praticada onde convém. A educacio cientifica, tal como, por tradigao, deve ser ministrada nas universidades alemas consti- tui-se numa tarcfa de aristocracia espiritual, ¥ indtil querer dissimuléJo. Ora, é também verdade, por outro lado, que den- te todas as tatefas pedagépicas, a miais dificil € a que consiste ‘em expor problemas cientificos de mancira tal que um espirito io preparado, mas bem-dotado, possa compreendélo ¢ formar ‘uma opinifo prépria — 0 que, para nés, cortesponde ao tinico éxito decisive. Ninguém o contestaré, mas nfo é, de maneira al guma, o niimero de ouvintes que daté a solugéo do problema. ‘Aquela capacidade depende — para voltar a nosso tema — de ‘um dom pessoal e de maneira alguma se confunde com os conhe- cimentos cientificos de que seja possuidora uma pessoa. Contra- riamente 20 que se dé na Franca, a Alemanha no tem uma cor- porasio de imortais da cincia, mas sio as universidades que de- vem, por tradigio, responder as exigéncias da pesquisa ¢ do ensi- no. ‘Serd mera coincidéncia o fato de essas duas aptidées se en- contrarem no anesmo homem. ‘A vida universitéria estd, portanto, entregue a um acaso cego. Quando um jovem cientista nos procura para pedir con- selho, com vistas A sua habilitagio, &nos quase impossivel as- 23 sumit a responsabilidad de She aprovar o des{gnio. Se se trata de um judeu, a ele se diz com naturalidade: lasciate ogni sperar za, Impdese, porém, que-a todos os outros candidates também se pergunte. “‘Vocé se actedita capaz de vet, sem desespeto nem amargor, ano apés ano, passar 4 sua frente mediocridede apés mediocridade?” Claro est4 que sempre se recebe a mesma resposta: “Por certo que sim! Vivo apenas para minha voca- gio”. Nao obstante, eu, pelo menos, s6 conheci muito poucos candidatos que tenham suportado aquela situacéo sem grande prejutzo para suas vides interiores. Eis af o que era necessério dizer acerca das condigSes exte- riores da ocupagio de cientista. Crefo que, em verdade, os senhores esperam que eu Ihes fale de outro assunto, ou seja, da vocarao cientifica propriamente dita, Em nossos dias e referida a organizacio cientifica, essa vo- cago é determinada, antes de tudo, pelo fato de que a ciéncia atingiu um estégio de especializagao que ela outrora nfo conhe- cia e no qual, ao que nos é dado julgar, se manterd para sempre. A afirmagio tem sentido nio apenas em relagio as condigées externas do trabalho cientifico, mes também em relagéo as dis- posigées interiores do proprio cientista, pois jamais um indivi- duo poderd ter a certeza de alcancar qualquer coisa de verdadei- ramente valioso no dominio da ciéncia, sem possuit uma rigoto- sa especializacio. Todos os trabalhos que se estendem para 0 campo de especialidades vizinhas — é experiéneia que nés, eco- homistas, temos de tempos em tempos e que os socidlogos tém constante e necessariamente — levam a marca de um resignado reconhecimento: podemos propor aos especialistas de discipli- nas afins perguntas ‘iteis, que eles nfo se terlam formulado tao facilmente, se pattissem de seu proprio ponto de vista, mas, em contrapartida, nosso trabalho pessoal permanecerd inevita- velmente incompleto. $6 a especializacio estrita permitiré que © trabalhador cientifico experimente por uma vez, e certamen- te nfo mais que por uma vez, a satisfacio de dizer a si mesmo: desta ver, consegui algo que permanecerd, Em nosso tempo, obra verdadeiramente definitiva e importante € sempre obra de espe- ialista, Conseqiientemente, todo aquele que se julgue incapaz de, por assim dizer, usar antolhos ou de se apegat a idéia de que © destino de sua alma depende de ele formuler determinada con- jetura e precisamente essa, a tal altura de tal manuscrito, fart 24 melhor em permanecer alhcio ao trabalho cientifico. le jamais sentiré o que se pode chamar a “‘experiéncia” viva da ciéncia, Sem essa embriaguez singular, de que zombam todos os que se mantém efastados da ciéncia, sem essa paixdo, sem essa certeza de que “milhares de anos se escoaram antes de vocé ter acesso a vida e milhares se escoatio em silencio” se voc€ niio for ca- paz de formular aqucla conjetura; sem isso, voce nfo possuird jamais a vocagio de cientista ¢ melhot seté que se dedique a Sutra atividade. Com efeito, pare o homem, enquanto homem, nada tem valor a menos que cle possa fazé-lo com paixto. Outta coisa, entretanto, € igualmente certa: por mais inten- sa que seja essa paixio, por mais sincera e mais profunda, ela nao bastard, absolutamente, para assegurar que sc alcance éxito. Em verdade, essa paixio nao passa de requisito da “inspiracio”, que € 0 tinico fator decisive. Hoje em dia, achase largamente disseminada, nos meios da juventude, 2 idéa de que a ciéncia se tetia transformado numa operagéo de célculo, que se realizaria fem laboratérios © escritérios de estatfstica, ndo com toda a “alma”, porém apenas com o auxilio do entendimento frio, 2 semelhanga do trabalho em uma fabrica. Ao que sc deve desde Jogo responder que os que assim se manifestam néo tém, fre- glientemente, nenhuma idéia clara acerea do que se passa uma fabrica ou num laboratério. Com efeito, tanto num caso coro no outro, € preciso que algo ocorra ao espirito do trabalhador — e precisamente a idéia exata — pois, de outra forma, ele nun- ca seré capaz de produzit algo que encetre valor. Essa inspira- Gio néo pode ser forgada. Ela nada tem em comum com 0 célculo frio. Clero esté que, por si mesina, ela nfo passa tam- bém de um requisite, Nenhum sociélogo pode, por exemplo, acreditar-se desobrigado de executar, mesmo em seus anos mais avancados ¢, talvez, duranté meses a fio, operagdes triviais. Quando se quer atingir um resultado, nfo se pode impunemente, fazer com que o ttabalho seja executado pot meios mecfinicos da que esse resultado seja, freqiientes vezes, de significa- reduzida, Contado, se nio nos acudir ao espfrito uma “idéia” precisa, que oziente a formulagéo de hipéteses, ¢ se, en- quanto nos entregamos a nossas conjeturas, nfo nos ocorre uma idéia” relativa a0 alcance dos resultados parciais obtidos, no chegaremos nem mesmo a alcangar aquele m{nimo. Notmalmen- te, a inspitagio 86 ocorre apés esforgo profundo. Nao hé divi- 25 da de que nem sempre € assim. No campo das ciéncias, a intui- Go do diletante pode ter significado t2o grande quanto a do especialista ¢, por vezes, maior. Devemos, alids, muitas das hi- péteses mais frutiferas ¢ dos conhecimentos de maior alcance a diletantes. Estes no se distinguem dos especialistas — con- forme o julzo de Helmholtz a respeito de Robert Mayer — se- nifo por auséncia de seguranga no método de trabalho e, amiuda- damente, em conseqiiéncia, pela incapacidade de verificar, apre- ciat e explorar o significado da prépria intuigao. Se a inspiragio no substitui o trabalho, este, por seu lado, ‘nfo pode substituir, nem fotcar o surgimento da intuiglo, 0 que a paixio-também nao pode fazer. Mas 0 trabalho e 2 paixio fazem com que sut- ja a intuicio, especialmente quando ambos atuam ao mesmo tem- po. Apesar disso, a intuigio nfo se manifesta quando nés 0 queremos, mas quando ela o quer. Certo é que as melhores idéias nos ocotrem, segundo a observagio de Ihering, quando nos encontramos sentados em uma poltrona e fumando um cha- ruto ou, ainda, segundo o que Helmholtz observa a respeito de si mesmo, com precisfo quase cientifica, quando passeamos por uma estrada que apresente ligeiro aclive ou quando ocorram circunstincias semelhantes. Seja como for, as idéias nos acodem quando no as esperamos € no quando, sentados A nossa mesa de trabalho, fatigamos o cérebro a procurélas. verdade en- tretanto, que elas nfo nos ocorreriam se, anteriormente, nijo hou- vvéssemos tefletido longamente em nossa mesa de estudos € no houvéssemos, com devocao apaixonada, buscado uma resposta, De qualquer modo, 0 estudioso esté compelido a contar com 0 acaso, sempre presente em todo trabalho cientifico: ocorrerd ou no ocotreré a inspiragio? Pode dar-se que alguém seja traba- Thador notdvel, sem que jamais lhe ocorra uma inspiracio. Co- meter-seia, alifs, erto grave, se se imaginasse que tio-somente no campo das ciéncias é que as coisas se passam de tal modo € que num esctitério comercial elas se apresentam de maneira inteiramente diversa do modo como se apresentam em um labo- ratério. Um comerciante ou um grande industrial que no te- ham “imaginacio comercial”, isto é, que nfo tenham inspira- do, que nfo tenham intuigées geniais, nfo passarao nunca de omens que tetiam feito melhor se houvessem permanecido na condicéo de funcionétios ou de técnicos: jamais criaro for- mas novas de organizagéo. A intuigéo, ao contrério do que jul- 26 ‘gam os pedantes, nfo desempenha, em ciéncia, papel mais im- portante do que o papel que Ihe toca no campo dos problemas da vida pritica, que 0 empreendedor moderno se empenha em resolver. De outta parte — e é panto também freqiientemente esquecido — 0 papel da intuigéo nfo ¢ menos importante em ciéncia do que em arte. E pueril acreditar que um matemético, preso a sua mesa de trabalho, pudesse atingir resultado cienti- ficamente wtil através do. simples manejo de uma régua ou de uum instrumento mecinico, tal como a méquina de calealar. A imaginagdo matemética de um Weierstrass é, quanto a seu sen- tido ¢ resultado, orientada de maneira inteiramente diversa da maneira como se orienta a imaginacio de um artista, da qual se distingue também, e radicalmente, do ponto de vista da quali dade; mas 0 processo psicolégico ¢ idéntico em ambos os casos. ‘Ambos equivalem a embriaguez (“‘mania”, no sentido de Pla. to) ¢ “inspiragio”, As intuig6es cientificas que nos podem ocorrer dependem, portanto, de fatores ¢ “dons” que so por nés ignorados. Essa verdade incontestével serve de pretexto, aos olhos de certa men- talidade popular (disseminada, 0 que € compreensivel, especial- mente entre os jovens), para levar & devogio {dolos, cujo culto, hoje em dia, se faz ostensivamente, em todas as esquinas e em todos os jornais, Esses idolos sfo os da “‘personalidade” ¢ da “experiéncia pessoal”. Hi, entre esses {dolos, ligacdes estreitas, pois, um pouco por toda’ a parte, predomina a idéia de que « experiéncia pessoal constituiria a personalidade e se incluiria em sua esséncia, Tortura-se o espfrito para fabricar “experién- cias pessonis”, na convicsio de que isso constitui atitude digna de uma personalidade e, quando nfo se aleanca resultado, podese, a0 menos, assumir o at de possuir essa graga, Outzora, em lin: gua alemd, a “experitacla pessoal” era chamada “sensacéo”, E creio que, naquela época, tinha-se idéia mais clara do que seja a personalidade e do que ela significa. Senhoras e senhores! $6 aquele que se coloca pura ¢ sim- plesmente ao servico de sua causa possui, no mundo da ciéncia, “personalidade”. E no € somente nessa esfera que assim acon- tece. Nio conheco grande artista que haja feito outra coisa que no 0 colocarse ao servico da causa da arte e dela apenas. Mes- mo uma personalidade da estatura de Goethe, na medida em que 27 sua arte esté em pauta, teve de expiar a liberdade que tomou de fazer de sua “vida” uma obra de arte. Os que ponham em divide essa afirmativa admititdo, nfo obstante, que era neces- sério ser um Goethe para poder permitir-se tentativa semelhan- te e ninguém contestaré que mesmo uma personalidade de sew tipo, que s6 aparece uma vez cada mil anos, nfo teve condicéo de assumir essa atitude impunemente. Coisa diverse nfo acon tece no dominio da politica, mas hoje, nfo abordaremos esse tema, No mundo da ciéncia, é absolutamente imposstvel consi- derar como uma “personslidade” o individuo que nfo passa de empresétio da causa a que deveria dedicar-se, que se lanca A cena com a esperanga de se justificar por uma “experiéncia pessoal” e que s6 é capaz de indagar: “Como poderia eu pro- var que sou coisa diversa de um simples especialista? Como po- deria eu proceder para afirmer, na forma e no fundo, algo ja- mais dito por pessoa alguma?”” Trata-se de fendmeno que, em nnossos dias, assume proporeées desmesuradas, embara s6 produ. za resultados despreziveis, para nfo mencionar que diminui quem propde aquele género de pergunta. Em oposicéo a isso, aquele que poe todo o coragio em sua obra, ¢ s6 nela, cleva-se a ab tura e A dignidade da causa que deseja servir. E para o artis: tao problema se coloca de mancita perfeitamente idéntica, A despeito dessas condigées prévias, que séo comuns a ci éncia € a arte, outras existem que fazem com que nosso trabalho seja profundamente diverso do trabalho do artista. O trabalho cientifico esti ligado a0 curso do progtesso. No dominio da atte, 20 contrétio, néo existe progresso no mesmo sentido. Nao é verdade que uma obra de arte de epoca determinada, por em- pregar recursos técnicos novos ou novas leis, como a da pers- pectiva, seja, por tais razies, artisticamente superior a uma ou- tra obra de arte elaborada com ignordncia daqueles meios ¢ leis, com a condicao, evidentemente, de que sua matéria e forma res- peitem as leis mesmas da arte, 0 que vale dizer com a condigaio de que seu objeto haja sido escolhido’e trabalhado segundo a esséncia mesma da arte, ainda que no recotrendo aos meios que vém de ser evocados. Uma obra de arte verdadeiramente “aca- bada” nfo ser& ultrapassada jamais, nem jamais envelhecerd. Cada um dos que a contemplem apreciaré, talvex diversamente, a sua significac3o, mas nunca poderd alguém dizer de uma obra 28 verdadeiramente “acabada” que ela foi “‘ultrapassada” por uma outra igualmente “‘acabada”, No dominio da ciéncia, entretanto, todos sabem que a obra construida ter envelhecido dentro de dez, vinte ou cingtienta anos. Qual é em verdade, 0 destino ou, melhor, a significagao, em sentido muito especial, de que esté revestido todo trabalho cientifico, tal como, alias, todos os ou- tros elementos da civilizacéo sujeitos A mesma lei? Bo de que toda obra cientifica “acabada” nfo tem outto sentido senio 0 de fazer surgirem novas “indagagdes”: ela pede, portanto, que seja “ultrapassada” e envelheca. Quem pretenda servir a cién- cia deve resignar-se a tal destino. F indubitével que trabalhos cientificos podem conservar importincia duradoura, a titulo de “fruicdo”, em virtude de qualidade estética ou como instrumen- to pedagdgico de iniclagio & pesquisa. Repito, entretanto, que na esfera da ciéncia, nao s6 nosso destino, mas também nosso objetivo € 0 de nos vermos, um dia, ultrapassados. Nao nos é possfvel concluit um trabalho sem esperar, a0 mesmo tempo, que outros avancem ainda mais. E, em principio, esse progresso se prolongaré ao infinito, Podemos, agora, abordar o problema da significagao da ci- éncia, Com efeito, nio é, de modo algum, evidente que um fe- _némeno sujeito a lei do progresso albergue sentido e razéo. Por que motivo, ento, nos entregamos a uma tarefa que jamais en- contra fim € no pode encontsélo? Assim se age, zesponde-se, fem fungio de propésitos puramente priticos ou, no sentido mais amplo do termo, em fungio de objetivos técnicos; em outras palavras, pata orientar a atividade prética de conformidade com as perspectivas que a experincia cientifica nos ofereya. Muito bem. Tudo isso, entretanto, s6 se reveste de significado para o “homem prético”. A pergunta a que devemos dat resposta € a seguinte: qual @ posicdo pessoal do homem de ciéncia pe- rante sua vocasio? —- sob condicio, naturalmente, de que ele a procute como tal, Ele nos diz que se dedica a cigncia “pela ci- éncia’” e nfo apenas para que da cigncia possam outros retirar vantagens comerciais ou técnicas ou pata que os homens possam melhor nutris-se, vestirse, iluminar-se ou dirigir-se. Que obras significativas espera 0 homem de ciéncia realizar gragas a desco- bertas invariavelmente destinadas ao envelhecimento, deixando-se aprisionar por esse cometimento que se divide em especialida- 29 des e se perde no infinito? Resposta a essa pergunta exige que facamos previamente algumas consideragdes de ordem geral. * © progtesso cientifico ¢ um fragmento, o mais importante indubitavelmente, do proceso de intelectualizagéo a que esta: mos submetidos desde milénios e relativamente 20 qual algumas pessoas adotam, em nossos dias, posigio estranhamente negativa ‘Tentemos, de inicio, perceber claramente o que signilica, ina pritica, essa racionalizagio intelectualista que devemos a ci- éncia e A técnica cientifica. Significard, por acaso, que todos os que esto reunidos nesta sala possuem, a respeito das respecti- vas condigdes de vida, conhecimento de nivel superior ao que um hinda ou um hotentote poderiam alcangar acerca de suas prdptias condigdes de vida? FE pouco provavel. Aquele, den- tte nds, que entra num trem no tem nogo alguma do mecanis- mo que permite ao vefculo pér-se em marcha — exceto se for um fisico de profissio, Alids, nfo temos necessidade de conhe- cet aquele mecanismo. Basta-nos poder “‘contar” com o trem ¢ orientar, conseqiientemente, nosso comportamento; mas néo sa bemos como se constréi aquela maquina que tem condigdes de deslizar. O selvagem, ao contrério, conhece, de mancita incom- paravelmente melhor, os instrumentos de que se utilize, Eu se- ria capaz de garantir que todos ou quase todos os meus colegas economistas, acaso presentes nesta sala, dariam respostas dife- rentes 4 pergunta: como explicar que, utilizando a mesma soma de dinheizo, ora se possa adquirir grande,soma de coisas € ora uma quantidade minima? © selvagem, contudo, sabe perfeita- mente como agit para obter o alimento quotidiano ¢ conhece ‘os meios capazes de favorecé-lo em seu propdsito. A intelectua- lizagio € a racionalizagio crescentes néo equivalem, portanto, a'um conhecimento geral crescente acerca das condicées em que vivemos, Significam, antes, que shemos ou acreditamos que, a qualquer instante, podertamos, bastando que o quiséssemos, provar que nfo existe, em principio, nenhum poder misterioso ¢ imprevistvel que interfira com 0 curso de nossa vida; em uma palavra, que podemos dominar tudo, por meio da previ Equivale isso a despojar de magia o mundo. Pata nés nfo mais se trata, como para o selvagem que acredita na existéncia de 30 queles poderes, de apelar a meios mégicos pata dominar os es- pititos ou exorcizé-los, mas de recorrer & técnica e A previsio. ‘Tal € a significacio essencial da intelectualizasao. Surge daf uma pergunta nova: esse processo de desencanta- mento, realizado a0 longo dos milénios da civilizacio ocidental fe, em termos mais gerais, esse “progresso” do quel participa a cléncia, como clemento e motor, tem significagio que wltrapasse essa pure prética e essa pura técnica? Esse problema mereceu exposigo vigorosa na obra de Leon Tolst6i. Tolstdéi a ele che- gou por via que Ihe é propria. O conjunto de suas meditagses cristalizou-se crescentemente ao redor do tema seguinte: a mor- te € ou no € um acontecimento que encerra sentido? Sua res- posta € a de que, para um homem civilizado, aquele sentido nao existe, E nfo pode existir porque @ vide individual do civiliza- do esté imersa no “progresso” e no infinito e, segundo seu sen- tido imanente, essa vida nio deveria ter fim. Com eleito, hé sempre possibilidade de novo progresso para aquele que vive no progtesso; nenhum dos que morzem chega jamais a atingir o pico, pois que o pico se pée no infinito. Abrio ou os campone- ses de outrora mozreram “‘velhos e plenos de vida”, pois que estavam instalados no ciclo orginico da vida, porque esta lhes havia ofertado, ao fim de seus dias, todo 0 sentido que podia proporcionarlhes e porque ado subsistia enigma que eles ainda teriam desejado resolver. Podiam, portanto, considerar-se sa- tisfeitos com a vide. O homem civilizado, 20 contrério, coloca- do em meio a0 caminhar de uma civilizagio que se entiquece continuamente de pensamentos, de experiéncias e de problemas, pode sentirse “‘cansado” da vida, mas néo “leno” dela, Com efeito, ele nao pode jamais apossar-se sendo de uma parte infi- ma do que a vide do espirito incessantemente produz, ele nfo pode captar senio 0 provisério e nunca o definitive. ‘Por esse motivo, a morte é, a seus olhos, um acontecimento que ngo tem sentido, E porque a morte ngo tem sentido, a vida do civili- zado também no o tem, pois a “progressividade” despojada de significagio faz da vida um acontecimento igualmente sem signi- ficago. Nes ultimas obras de Tolstéi, encontra-se, por toda a parte, esse pensamento, que dé tom A sua arte, Qual a posigio possivel de sdotar a esse respeito? Tem o “progresso”, como tal, um sentido discetnivel, que se estende it para além da técnica, de maneira tal que porse a seu servigo equivaleria a uma vocagio penetrada de sentido? # indispen- sfvel levantar esse problema. A questi que se coloca nio é mais a que se fefere téo-somente A vocacao cientifica, ou seja a de saber o que significa a ciéncia, enquanto vocagio, para aque- Je que a ela se consagra; a pergunta é inteiramente diversa: qual © significado da ciéncia no contesto de vida humana ¢ qual 0 seu valor? Ora, a esse respeito, enorme € 0 contraste entre o passado co presente. Lembremos a maravilhosa alegotia que se contém ao infcio do livro sétimo da Repiblica de Platao, a dos pri nicizos confinados a caverna. Os rostos desses prisioneitos estio voltados para a parede rochosa que se levanta diante deles; as costas, 0 foco de lu que eles no podem ver, condenados que esto a s6 se ocuparem das sombras que se projetam sobre a parede, sem outra possibilidade que a de examinar as relagées que se estabelecem entre tais sombras. Ocorre, porém, que um dos prisioneiros consegue romper suas cadeias; volta-se € eh carn 0 sol. Deslumbrado, cle hesita, caminha em sentidos dife- rentes ¢, diante do que vé 36 sabe balbuciar. Seus companhei ros 0 tomam pot louco, Aos poucos, ele se habitua a encarar a luz. Feita essa experiéncia, 0 dever que Ihe incumbe é 0 de tomar ao meio dos prisioncizos da caverna, a fim de conduzilos para a luz. Ele € 0 filésofo, eo sol reptesenta a verdade da c- €ncia, cujo objetivo é o de conhecer nao apenas as aparéncias ¢ as sombras, mas também 0 ser vetdadeizo, Quem continua, entretanto, a adotar, em nossos dias, essa mesma atitude diante da ciéncia? A juventude, em particular, estd possufda do sentimento inverso: a seus olhos, as constru- bes intelectusis da ciéncia constituem um reino itreal de abs- tragies artificiais e ela se esforca, sem éxito, por colher, em suas imios insens{veis, 0 sangue e a seiva da vida real. Actedita-se, atualmente, que'a tealidade verdadeira palpita justamente nessa vida que, aos olhos de Platio, no passava de um jogo de som- bras projetadas contra a parede da caverna; entendese que todo © resto so fantasmas inanimados, afastados da reatidade, e nada mais. Como ocorreu essa transformacao? O apaixonado entu- siasmo de Plato, em sua Repsiblica, explica-se, em iltima andlise, pelo fato de, naquela época, haver sido descoberto o sentido de 32 um dos maiores instrumentos de conhecimento cientifico: 0 con- teito. O métito cabe a Sécrates que compreende, de imedia- to, a importinca do conceito. Mas néo foi o winico a percebé- ‘Ie. Em escritos hindus, € possivel encontrar os clementos de ‘uma légica andloga a de Aristételes. Contudo, em nenhum outro lugar que aso a Grécia percebe-se a consciéncia da importincia do conceito, Foram os gregos os primeiros a saberem utilizar esse instramento que permitia prender qualquer pessoa aos gri- Thoes da I6gica, de maneiza tal que ela no se podia libertar se- io reconhecendo ou que nada sabia ou que esta e nao aquela afitmacéo correspondia & verdade, uma verdade eferna que nun- cca se desvaneceria como se desvanevem a acio e agitacdo cegas dos homens, Fol uma experiéncia extraordindria, que encon- trou expansio entre os discfpulos de Sécrates. Acreditou-se pos sivel concluir que bastava descobrir 0 verdadeiro conceito do Belo, do Bem ou, por exemplo, o da Coragem ou da Alma — ou de qualquer outro objeto — para ter condigo de compre- ender-lhe o set verdadeiro. Conhecimento que, por sua vez, per mitiria saber ¢ ensinar a forma de agir cortetamente na vida e, antes de tudo, como cidadéo. Com efeito, entre os gregos, que 6 pensavam com referencia & categoria da politica, tudo con- duzia a essa questo, Tais as razes que os levaram a ocuparse da ciéncia, ‘A. essa descoberta do espitito helénico associou-se, depois, 0 segundo grande instrumento do trabalho cientifico, engendrado pelo Renascimento: a experimentacio racional, Tornow-se ela meio seguro de controlar a experiencia, sem 0 qual a ciéncia em- pitica moderna nao teria sido posstvel. Pot certo que nao se haviam feito experimentos muito antes dessa época. Haviam tido Inger, por exemplo, experiéncias fisioldgicas, realizadas na India, no interesse da técnica ascética da Toga, assim como expe- Hiéncias matematicas na antiguidade helénica, visando fins mili- tares e, ainda, experiéncias na Idade Média, com vistas & explo- taco de minas. Foi, porém, o Renascimento que elevou a ex: petimentacio 20 nivel de um principio da pesquisa como tal. Os Precursores fotam, incontestavelmente, os grandes inovadores no Gominio da arte: Leonardo da Vinci ¢ seu companbeitos ¢, pat- ticularmente ¢ de maneira caractetistica no dom{nio da misica, os que se dedicaram a experimentacfo com o cravo, no século XVI. Dai, a expetimentacao passou para o campo das ciéncias, 33 devido, sobretudo, a Galileu alcangou 0 dominio da teoria, gracas a Bacon; foi, a seguir, perfilhada pelas diferentes univer. sidades do continente europeu, de infcio e principalmente pelas da Iedlia e da Holanda, estendendo-se esfera das cigncias exatas, Qual foi para esses homens, na aurora dos tempos modez- nos, a significacio da ciéncia? Aos olhos dos experimentadores do tipo de Leonardo da Vinci e dos inovadores no campo da mrisica, a experimentagéo era o caminho capaz de conduzir & arte verdadeira, © que equivalia dizer 0 caminho capaz de com duzir a verdadeira natureza, A arte deveria set elevada ao nivel de uma ciéncie, o que significava, 20 mesmo tempo e antes de tudo, que o artista deveria ser elevado, socialmente e por seus préprios méritos, ao nivel de um doutor. Essa ambigio serve de fundamento a0 Tratado da Pintura, de Leonardo da Vinci. E que se diz hoje em dia? “A ciéncia vista como caminho capaz de conduzir & natureza” —~ seria frase que haveria de soar a0s ouvidos da juventude como uma blasfémia, Nao, é exatamente © oposto que aparece hoje como verdadeiro. Libertando-nos do intelectualismo da ciéncia é que poderemos apreender nossa pré- pria natureza e, por essa via, a natureza em geral. Quanto a di- zer que a ciéncia é também caminho que conduz a arte — opiniéo que nfo merece que nela nos detenhamos. Todavia, & época da formacio das cigncias exatas, esperava-se ainda mais da ciéncia, Lembremos o aforismo de Swammerdam: “Apresento- clhes aqui, na anatomia de um piolho, a prova da providéncia divina”” © compreenderemos qual foi, naquela época, a tarefa propria do trabalho cientifico, sob influéncia (indireta) do pro- testantismo ¢ do puritanismo: encontrar o caminho que conduz a Deus. Toda a teologia pietista daquele tempo, sobretudo a de Spener, estava ciente de que jamais se chegaria a Deus pela via que tinha sido tomada por todos os pensadores da Idade Média — ¢ abandonou seus métodos filoséficos, suas concep- es € dedugdes. Deus estd oculto, seus caminhos nfo sio os nossos, nem seus pensamentos 0s nossos pensamentos. Esperava- se contudo, descobrir tracos de suas intengées através do exame da natureza, por intermédio das ciéncias exatas, que permitiriam apreender fisicamente suas obras, E em nossos dias? Quem continva ainda a acreditar — salvo algumas criangas. grandes que encontramos justamente entre os especialistas — que os conhecimentos astrondmicos, biolégicos, fisicos ou quimicos po- 34 detiam ensinar-nos algo a propésito do sentido do mundo ow poderiam ajudar-nos a encontrar sinais de tal sentido, se € que le existe? Se existem conhecimentos capazes de extixpar, até 3s roles, a crea na cxisténia de aja 16 0 gue for aus 5 pe a uma “significagio” do mundo, esses conhecimentos Scatamente os que se tradvzem pela citncias. Como poderia a cigneia nos “conduzit a Deus”? Nio é ela a poténcia especi camente a-teligiosa? Atualmente, homem alum, em seu foro intimo — independentemente de admiti-lo de forma explicita — coloca em dvida esse cardter da cigncia, O. pressuposto funda- mental de qualquer vida em comunhio com Deus impele o ho- mem a se emancipar do racionalismo e do intelectualismo da ci- ancia: essa aspiragao, ou outra do mesmo genero, erigiu-se em tuma palavra de ordem essencial, que faz vibrar a juventude alema inclinada & emocao religiosa ou em busca de experién- cias religiosas. Alids, a juventude alemi nfo corre a cata de ex- periéacia religiosa, mas de experiéncia da vida, em geral. S6 pa- rece desconcertante, dentro desse género de aspiragées, o método escolhido, no sentido de que o dominio do irracional, tinico do- iminio em que o intelectualismo ainda nfo havia tocado, tornou-se objeto de uma tomada de consciéneia e é minuciosamente ext- minado. A isso conduz, na prética, o moderno romantismo in telectualista do irracional, Contudo, esse método, que se pro- poe a livrarnos do intelectualismo, se teaduzité, indubitavel- mente, pot um resultado exatamente oposto ao que esperam atingir os que se empenhem em seguir essa via. Enfim, ainda que um otimismo ingénuo haja podido celebrar a ciéncia — isto é, a técnica do dominio da vida fundamentada na ciéncia — como ‘© caminho que levaré a felicidade, creio ser posstvel deixar in- teiramente de parte esse problema, tendo em vista a critica de- yastadora que Nietzsche ‘ditigiu contra ‘‘os dltimos homens’ que “descobriram a felicidade”. Quem continua a acreditar nis- so — excetuadas certas criancas grandes que se encontram nas cétedras de faculdades ou nas salas de tedacio? Voltemos atrés. Qual é, afinal, nesses termos, o sentido da cigacia enquanto vocagio, se estio destrufdas todas as ilu- ses que nela divisavam © caminho que conduz ao “ser verda- deiro”, & verdadeita arte”, & ‘“verdadeira_natureza”, a0 “ver~ dadeiro Deus”, a “verdadeira felicidade’’? Tolstéi dé a essa per- gunta a mais simples das respostas, dizendo: ela nfo tem senti- 35 do, pois que nfo possibilita responder 4 indagacio que teal- mente nos importa — “Que devemos fazer? Como devemos viver?” De fato, & incontestvel que resposta a essas questoes nfo nos € tornada acessivel pela ciéncia. Petmanece apenas o problema de saber em que sentido a ciéncia no nos proporciona resposta alguma e de saber se a ciéncia poderia ser de alguma utilidade para quem suscite corretamente a indagacio, * Instalou-se, em nossos dias, o hébito de falar insistentemente numa “‘ciéncia sem pressupostos”, Existe uma tal ciéncia? Tudo depende do que se entenda pelas palaveas empregadas. Todo trabalho cientifico pressupde sempre a validade das regras da logica e da metodologia, que constituem os fundamentos gerais de nossa orientacio no mundo. Quanto A questio que nos preo- Cupa, esses pressupostos séo o que hd de menos problemético. A ciéncia pressupde, ainda, que o resultado a que o trabalho ci- entifico leva € importante em si, isto &, merece ser conhecido. Ora, € nesse ponto, manifestamente, que se retnem todos os nossos problemas, pois que esse pressuposto escapa a qualquer demonstraso por meios cientfficos. Nao é possfvel interpretar © sentido tltimo dese pressuposto — impée-se, simplesmente, aceité-lo ou recusé-lo, conforme 2s tomadas de posicio pessoais, definitivas, face & vida, A natureza da relagio entre trabalho cientifico ¢ os pres supostos que 0 condicionam vatia, ainda uma vez, de acordo com a estrutura das diversas ciéncias. As ciéncias da natureza, como a Fisica, a Quimica ou a Astronomia pressupdem, com natu- talidade, que valha a pena conhecer as leis dltimas do devir cés- mico, na medida em que a ciéncia esteja em condigoes de estan belecé-las. E isso nfo apenas porque esses conhecimentos nos permitem atingir certos resultados.técnicos, mas, sobretudo, por- que tais conhecimentos tém um valor “em si”, na medida, pre- cisamente, em que traduzem uma “yocacio”. Pessoa alguma poderd, entretanto, demonstrar esse pressuposto. E menos ain- da se podetd provar que 0 mundo que esses conhecimentos des- crevem merece existir, que ele encerra sentido ou que nio é absurdo habité-lo, Aquele género de conhecimentos néo se pro- Be esse tipo de indagacdo. Tomemos, agora, um outro exem- plo, o de uma tecnologia altamente desenvolvida do ponto de 36 ista cientifico, tal como é a medicina moderna, Expresso de snaneira trivial, 0 ““pressuposto” geral da Medicina assim se co- Toca: o dever do médico est na obrigiglo de conservar a vida pata e simplesmente e de reduzir, quanto possivel, o sofrimento. Tudo isso é porém, problemético. Gragas aos melos de que dispde, 0 médico mantém vivo o moribundo, mesmo que este the implore pér fim a seus dias e ainda que os parentes dese- jem ¢ devam desejar a morte, conscientemente ou nio, porque Jd ao tem mais valor aquele vide, porgue os sofsiments ees jam ou porque os gastos para consetvat aquela vida indtil — tiatese, lalvez, de um pobre demente — se fazem pesadissi- mos, $6 0s pressupostos da Medicina ¢ do cédigo penal impe- dem o médico de se apartar da Jinha que foi trayada. A Medi- tina, contudo, nio se propée a questio de saber se aquela vide merece ser vivida e em que condigées. Todas as céncias da reza nos dio uma resposta & petgunta: que deveremos fa- veh, se quisermos ser feenicamente seniores da vida. Quanto a indagagSes como “isso tem, no fundo e afinal de contas, algum sentido”, “devemos e quetemos ser tecnicamente seahores da vide?” aquelas ciéncias nos deixam em suspenso ou aceitam ‘ptessupostos, em funcio do fim que perseguem. Recorramos a ‘uma outra disciplina, a ciéncia da arte. A estética pressupde ‘a obra de arte. E, em conseqiiéncia, apenas se propde pesqui- sar 0 que condiciona a génese da obra de arte. Mas nfo se pergunta, absolutamente, se o reino da arte no seré um reino de esplendor diabélico, reino que & deste mundo ¢ que se levan- ta contra Deus ¢ se levanta, igualmente, contra a fraternidade humana, em razio de seu espirito fundamentalmente aristocrs- fico. A estética, em conseqiiéncia, no se pergunta: deveria haver obtas de arte? — Tomemos, ainda, o exemplo da ciéncia do Direito, Essa disciplina estabelece o que & vélido segundo as regras da douttina juridica, ordenada, em patte, por necessidade Iégica e, em parte, por esquemas convencionais dados; estabe- lece, por conseguinte, em que momento determinadas regras de Direito e determinados métodos de interpretacfo sfo havidos como obtigat6tios. Mas a ciéncia juridica nao dé resposta A per- gunta: deveria haver um Direito ¢ dever-se-iant consagrar exata- mente estas regras? Aquela ciéncia sé pode indicar que, se de- sejamos certo tesultado, tal regra de Direito é, segundo as nor- mas da doutrina juridica, 0 meio adequado para ati; ‘Tomemos, por fim, o exemplo das citncias histéricas. Elas nos capacitam a compreender os fenémenos politicos, artisticos, lite- rérios ou sociais da civilizagao, a partir de suas condigées de for- magio. Mas nao dio, por si mesmas, resposta & pergunta: esses fenémenos mereceriam ou merecem existic? Elas pressupéem, simplesmente, que hi intetesse em tomar parte, pela pratica des. ses conhecimentos, na comunidade dos “homens civilizados”. Nao podem, entretanto, provar “‘cientificamente” que haja van- tagem nessa participagio; ¢ 0 fato de pressuporem tal vantagem nifo prova, de forma alguma, que ela exista. Em verdade, nada do ue fo mencionado 6 por si proprio, evidente. Detenhamo-nos, agora, pot um instante, nas disciplis me so familiares, a saber, a Sociologia, a Histétia aes ee Politica, a Ciéncia Politica e todas as espécies de filosofia da cul- tura que tém por objeto a interpretago dos diversos tipos de conhecimentos precedentes. Costuma-se dizer, e eu concordo, que a polftica no tem seu lugar nas salas de aulas das universi, dades. Nao 0 tem, antes de tudo, no que concerne aos estudan- tes. Deploto, por exemple, que, no antiteatro de meu antigo colega Dietrich Schafer, de Berlim, certo mimeto de estudantes pacifistas se haja reunido em torno de sua cétedra, para fazer uma manifestacao, e deploro também o comportamento de estu- dantes antipacifistas que, ao que parece, organizaram manifesta. so contra 0 Professor Foerster, do qual, em razio de minbas concepsées, me sinto, entretanto, muito afastado € por muitos motivos. Mas a politica néo tem lugar também, no que concerne aos docentes. E, antes de tudo, quando cles trata cientifica. mente de temas politicos. Mais'do que nunca, a politica estd entio deslocada. Com efeito, uma coisa € tomar uma posicao politica pratica, e outra coisa é analisar cientificamente as estru- turas polfticas ¢ as doutrinas de partidos. Quando, numa reuniéo piiblica, se fala de democracia, néo se faz segredo da posicio pes- soal adotada ¢ a necessidade de tomar partido de maneira clara se impée, entio, como um dever maldito. As palavtas empre. Racas huma ocasiao como essa nao so mais instrumentos de ané- lise cientifica, mas constituem apelo politico destinado a solicitar que os outros tomem posigaio. Nio sio mais telhas de arado para revolver a planicie imensa do pensameato contemplative, Porém glidios para acometer os adversérios, ou numa palavra, meios de combate. Seria vil empregar as palavras de tal mancita 38 em uma sal de aula, Quando, em um curso universitério, ma- nifesta-se a intengio de estudar, por exemplo, a “cemocracia”, procede-se ao exame de suas diversas formas, o funcionamento proprio de cada uma delas ¢ indaga-se das conseqiiéncias que Juma ¢ outza acarretam; em seguida, opde-se & democracia as for- mas pio-democréticas da ordem politica e tenta-se levar essa andlise até a medida em que o proprio owvinte se ache em con- digées de encontrar 0 ponto a partir do qual poderé tomar posi- io, em fungio de seus idesis bésicos. O verdadeizo professor ge impediré de impor, do alto de sua cétedra, uma tomada de posigéo qualquer, seja abertamente, seja por sugestio -— p a maneira mais desleal & evidentemente a que consiste em “dei- xat,os fatos falarem’”. Por que razdes, em esséncia, devemos abster-nos? Presu- mo que certo niimero de meus respeitéveis colegas opinaré no sentido de que é, em geral, impossivel por em prética esses es- cenipulos pessosis e que, se possivel, seria fora de propésito ado- tar precaugoes semelhantes. Ora, ndo se pode demonstrat a inguém aquilo em que consiste o dever de um professor uni- versititio. Dele nunca se poderé exigir mais do que probidade intelectual ou, em outras palavras, a obrigagio de reconbecer que coastituem dois tipos de problema beterogéneos, de uma parte, 0 estabelecimento de fatos, a detetminacao das realida- des mateméticas ¢ Idgicas ou a identificagéo das estrututas in- trinsecas dos valores culturais ¢, de outra parte, a sesposta a questies concernentes ao valor da cultura e de seus contesidos particulares ou a questées relativas 4 mancira como se deveria agit na cidade ¢ em meio a agrupamentos polfticos. Se me fos- Se perguntado, neste momento, por que esta tiltima série de questées deve set exclnfda de uma sala de aula, eu responderia que 0 profeta eo demagogo estio deslocados em uma cftedra Universitaria. Tanto ao profeta como ao demagogo cabe dizer: “V4 A tua e fale em piblico”, 0 que vale dizer que ele fale em lugar onde possa ser criticado. Numa sala de aula, enfrente-se © auditério de maneira inteisamente diversa: o professor tem a palavra, mas os estudantes esto condenados a0 siléacio. As citcuastincias pedem que os alunos sejam obtigados a seguir os cursos de um professor, tendo em vista a futura carzcira e que neahum dos presentes a uma sala de aula possa critiear o mes- tre. A um professor é imperdosivel valer-se de tal situagio para 39 buscar incutir, em seus disefpulos, as suas préprias concepeces politica, em vez de thes ser util como € de a ever, através da transmissio de conhecimentos e de experiéncia cientifica. Pode, por certo, ocorrer que este ou aquele professor sé imper- feitamente consiga fazer calar sua preferéncia. Em tal caso, es- tard sujeito A mais severa das criticas no foro de sua propria consciéncia, Ume falha dessas no prova, entretanto, absoluta- mente nada, pois que existem outros tipos de falha como, por exemplo, os ettos materiais, que também nada provam contra a obrigacio de buscar a verdade, Além disso, é exatamente cm nome do interesse da ciéncia que eu condeno essa forma de proceder, ~ Recorrendo as obras de nossos historiadores, tenho condigéo de lhes fotnecer prova de que, sempre que um homem de ciéncia permite que se manifestem’ seus préprios julzos de valor, ele perde a compreensio integral dos fatos. Tal demons. tragio se estenderia, contudo, para além dos limites do tema que nos ocupa esta noite e exigitia digressdes demasiado longas. Gostaria, apenas, de colocar esta simples petgunta: Como € posstvel, numa exposicéo que tem por objeto o estudo das die versas formas dos Estados e das Igrejas ou a histéria das reli- sides levar um crente catblico e um franco-magom a submeterem ‘esses fenémenos aos mesmos critérios de avaliagéo? Isso é algo. de que nio se cogita, E, entretanto, 0 professor deve tet a am bigdo © mesmo etigir em dever o tornar-se vitil tanto a um quanto a outro, em razfio de seus conhecimentos e de sew método. Pode ser-me objetado, a justo titulo, que o crente catdlico jamais acei- tard a maneiza de compreender a histéria das otigens do cristiae nismo tal como a expée um professor que nfo admite os mes. ‘mos pressupostos dogmiéticos. Isso € verdade! A tazio das dis- cordincias brota do fato de que a ciéncia “sem pressupostos”, recusando submissiéo a uma autoridade religiosa, no conhece nem “milagre” nem revelagio”. Se o fizesse, setia infiel a seus proprios pressupostos. O ctente, entretanto, conhece as. duas posigdes. A ciéncia “sem pressupostos” dele exige nada menos — mas, igualmente, nada mais — que a cautela de simplesmente reconhecet que, seo fluxo das coisas deve ser explicado sem intervengo de qualquer dos elementos sobrenaturais a que a explicacio empftica recusa caréter causal, aquele fluxo s6 pode set explicado pelo método que a ciéncia’se esforca por aplicat. E isso 0 exente pode admitir sem nenhuma infidelidade a sua £6. 40 ‘Uma nova questio, contudo, se levanta: tem algum sentido © trabalho realizado pela ciéncia aos olhos de quem permanece indiferente aos fatos, como tais, e s6 dé importincia a uma to- mada de posigio prética? Creio que, mesmo em tal caso, a ci éncia nfo estd despida de significagio, Primeiro ponto a assi- rnalar: a tarefa ptimordial de um professor capaz € a de levar seus disefpulos a reconhecerem que hé fatos que produzem des- conforto, assim entendidos os que so desagradéveis & opiniio pessoal de um indivfduo; com efeito, existem fatos extremamente cesagradveis para cada opinido, inclusive a minha. Entendo {que um professor que obriga seus alunos a se habituarem a esse género de coisas realiza uma obra mais que puramente intelec- tual e nfo hesito em qualificé-la de “moral”, embora esse adje- tivo possa parecer demasiado patético pata designar uma evidén- cia tio banal, Nio mencionei, até agota, sendo as razdes préticas que jus- tificam recusa a impor convicgées pessoais, Hé razdes de outra ordem. A impossibilidade de alguém se fazer campeio de con- ‘viegdes priticas “em nome da ciéncia” — exceto 0 caso tinico que se refere a discussio dos meios necessétios pata atingir fim previamente estabelecido — prende-se a razdes muito mais pro- fundes. Tal atitude é, em principio, absurda, porque as diversas ordens de valores se defrontam no’ mundo, em luta incessante, Sem pretender tragat 0 elogio da filosofia do velho Mill, impoe- vse, no obstante, reconhecer que ele tem tazio, ao dizer que, quando se parte da experiéncia pura, chega-se ao politeisino. ‘A férmula revestese de aspecto superficial e mesmo paradoxal, mas, apesar disso, encerra uma parcela de verdade. Se hé uma coisa que atuelmente no mais ignoramos ¢ que uma coisa pode set santa nfo apenas sem ser bela, mas porque ¢ na medida em que no & bela — e a isso hd referéncias no capftulo LIIL do Livro de Isafas e no salmo 21. Semelhantemente, uma coisa pode ser bela no apenas sem set boa, mas precisamente por aquilo que néo a faz boa. Nietzsche relembrou esse ponto, mas Baudelaize jé 0 havia dito por meio das Fleurs du Mal, tftulo que escolheu para sua obra pottica, A sabedotia popular nos censina, enfim, que uma coisa pode ser verdadeira, conquanto nio seja bela nem santa nem boa. Esses, porém, no passam dos car s0s mais clementates da luta que opde os deuses das diferen- tes ordens ¢ dos diferentes valores. Ignore como se poderia 41 encontrar base para decidir “cientificamente” 0 problema do valor da cultura trancesa face & cultura alemd; af, também, di- ferentes deuses se combatem e, sem divida, por todo o sempre, ‘Tudo se passa, portanto, exatamente como se passava no mun. do antigo, que se encontrava sob 0 encanto dos deuses ¢ demé- nnios, mas assume sentido diverso. Os gregos ofereciam sacti- ficios a Aftodite, depois a Apolo e, sobretudo, a cada qual dos deuses da cidade; nés continuamos a proceder de mancira seme- Thante, embora nosso comportamento haja rompido 0 encanto se haja despojado do mito que ainda vive em nds, Eo desti- no que governa os deuses © n4o uma ciéncia, seja esta qual for, © méximo que podemos compreender é 0 que 0 divino signic fica para determinada sociedade, ou o que esta ou aquela s0- ciedade consideta como divino, Bis af 0 limite que um pro- fessor nfo pode ultrapassar enquanto ministra uma aula, o que nio quer dizer que se tenha assim resolvido © imenso’ proble- ma vital que se esconde por detrés dessas questées. Entram, en- ‘Go, em jogo poderes outros que no os de uma cétedta univer- sitéria. Que homem teria a pretenséo de refutar “cientificamen- te” a ética do Sermao da Montanka, ou, por exemplo, a méxi- ma “nao oponha resisténcia a0 mal” ou'a pardbola do oferecer a outra face? E, entretanto, claro que, do ponto de vista estri- tamente humano, esses preceitos evangélicos fazem a apologia de uma ética que se levanta contra a dignidade. A cada um cabe decidir entre a dignidade religiosa conferida por essa ética ea dignidade de um ser viril, que prega algo muito diferente, como, por exemplo, “resiste ao mal ou sets responsével pela vitéria que cle alcance”. Nos termos das conviegses mais. pro- fundes de cada pessoa, uma dessas éticas assumird as feigdes do diabo, a outta as feigdes divinas e cada individuo terd de deci- dir, de seu proprio ponto de vista, o que, para ele, é deus e 0 que 0 diabo, © mesmo acontece em todos os planos da vida. tacionalismo grandioso, subjacente & orientagio ética de nossa vida e que brota de todas as profecias religiosas, destronow 0 po- litefsmo, em beneficio do “Unico de que temos necessidade”; mas, desde que se viu diante da realidade da vide interior ¢ ex: terior, foi compelido a consentir em compromissos ¢ acomode- s de que nos deu noticia a histéria do cristianismo, A reli- tomouse, em nossos tempos, “rotina quotidiana”. Os deu- ses antigos ebandonam suas tumbas e, sob a forma de poderes 42 impessois, porque desencantados, esforgam-se por ganhat poder sobre nossas vidas, reiniciando suas lutas eternas. Daf os tore ‘mentos do homem’ moderno, tormentos que atingem de mancira particularmente penosa a nova geracio: como se mostrar a al- fura do quotidiano? Todas as buscas de “‘experiéncia vivida' tém sua fonte nessa fraqueza, que € fraqueza nao ser capaz de cencarar de frente 0 severo destino do tempo que se vive. Tal € 0 fado de nossa civilizagio: impoe-se que, de novo, tomemos claramente consciéncia desses choques que a orien- taco de nossa vida em fungio exclusiva do pathos grandioso da ética do cristianismo conseguiu mascarar por mil anos. Basta, porém, dessas questées que ameacam levar-n0s. de- masiado Tonge. © erro que uma parte de nossa juventude co- mete, quando, ao que observamos, replica: “Sejal Mas se fre- qiientamos os cursos que vocés ministram € para ouvir coisa diferente das andlises e determinagdes de fatos”, esse erro con- siste em procurar no professor coisa diversa de um mestre di- ante de seus disefpulos: a juventude espera um Iider e néo um professor. Ora, s6 como professor € que se ocupa uma cétedra, ¥ preciso que no se faca confusio entre duas coisas tio diver- sas e, facilmente podemos convencer-nos da necessidade dessa distingao. Permitam-me que os conduza mais uma vez aos Es- tados Unidos da América, pois que 14 se pode observar certo mimero de realidades em sua feicGo original e mais contundente, O jovem norteamericano aprende muito menos coisis que 0 jovem alem#o. Entretanto, e apesar do niimero incrivel de exa- mes @ que € sujeitado, ndo se tornou ainda, em razio do esp ito que domina a universidade norte-americana, @ besta de fexames em que esté transformado 0 estudante alemio. Com feito, a burocracia, que faz do diploma um requisito prévio, uma espécie de bilhete de ingresso no reino da prebenda dos empre- 40s, esté apenas em seu periodo inicial, no além-Atlantico. O jovem norte-americano nada respeita, nem a pessoa, nem a tra- digio, nem a situago profissional, mas inclina-se diante da gran- deza pessoal de qualquer individuo, A isso, ele chama ‘“‘demo- cracia”. Por caricatural que possa parecer a realidade america na quando a colocamos diante da significardo verdadeira da pa- lavra democtacia, aquele é 0 sentido que Ihe atribuem e, de mo- mento, s6 isso importa. O jovem norte-americano faz de seu professor uma idéia simples: é quem Ihe vende conhecimentos 43 € métodos em troca de dinheiro pago pelo pai, exatamente como 9 merceeito vende repolhos a mie. Nada além disso. Se o pro- fessor for, por exemplo,’ campeio de futebol, ninguém hesitard em conferir-lhe posicio de Ider em tal setor. Mas, se nio é uum campeao de futebol (ou coisa similar em outro esporte), nio passa de um professor € nada mais. Jamais ocorreria a um jovem norteamericano que seu professor pudesse vender-lhe “concepgées do mundo” ou regras vilidas para a conduta na vida. Claro estd que nés, alemies, rejeitamos uma concepgio formulada em tais tetmos. Cabe, contudo, perguntar se nessa maneiza de ver, que exagerei até certo ponto, no se contém uma parcela de acerto. ‘Meus caros alunos! Vooés acorrem a nossos cursos exigindo de nds, que somos professores, qualidades de lider, sem jamais evar em consideracéo que, de cem professores, noventa e nove no tm e nio devem ter a pretensio de ser campedes do fute- bol da vida, nem “otientadotes” no que diz tespeito as ques- tes que concernem 3 conduta na vida. E preciso no esquecer gue o valor de um ser humano nao se pde, necessariamente, na dependéncia das condigSes de lider que ele possa possuir. “De qualquer maneira, 0 que faz, 0 que transforma um homem em stbio eminente ou professor universitério no & por certo, 0 que poderia transformé-lo num lider no dominio da conduta prética da vida e, especialmente, n0 dominio prético O fato de um homem possuir esta tltima qualidade € algo que brota do puro acaso. Seria inguictante o fato de todo professor titular de uma cétedra vniversitatia abrigar o sentimento de estar co- locado diante da impudente exigéncia de provar que ¢ um lider. E mais inquictante ainda seria o fato de permitir-se que todo professor de universidade julgasse ter a possibilidade de desem- penbar esse papel na sala de aula, Com efeito, os individuos que a sii mesmos se julgam Ifderes sio, freaiientemente, os menos qualificados para tal fungio: de qualquer forma, a sala de aula no serd jamais 0 local em que 0 professor possa fazer prova de tal aptidio. O professor que sente a vocacdo de conselheiro da juventude ¢ que frui da confianga dos mogos deve desempenhar esse papel no contacto pessoal de homem para homem. Se ele se julga chamado a participar das lutas entre concepgdes de mun- do e entre opiniées de partidos, deve fazé-lo fora da sala de aula, deve fazé-lo em lugar piblico, ou seja, através da impren- 44 sa, em reunides, em associagdes, onde queira. E, com efcito, de- ‘masiado cémodo exibir coragem num local em que os assistentes e, talvez, os oponentes, estio condenados ao siléncio. * Apés tais consideracies, os senhotes poderiio dizer 7 $e as sim é, qual, em esséncia, a contribuicio positiva da ciéncia para a vida pratica e pessoal? Essa pergunta Ievanta, de novo, 0 pro- blema do papel da ciéncia. ‘Em primeizo lugar, a ciéncia coloca naturalmente 2 nossa disposigio certo némero ‘de conhecimentos que nos permitem do- minar tecnicamente a vida por meio da previsio, tanto n0 que se refere a esfera das coisas exteriores como ao campo da ati vidade dos homens. Os senhores replicatio: afinal de contas, isso nfo passa do comércio de legumes do jovem norte-ameri- cano, De acordo. Em segundo lugar, a ciéncia nos fornece algo que 0 comér- cio de legumes nao nos pode, por certo, proporcionar: métodos de pensamento, isto é 0s instrumentos ¢ uma disciplina, Os se- hores retrucario, talvez, que ao se trata, agora, de legumes, porém de meios através dos quais obter legumes. Assim seja. ‘Admitamo-lo por enquanto. Felizmente, nfo chegamos ainda 20 fim da jomnada, ‘Temos a possibilidade de apontar para uma terceira vantagem: a ciéncia contribui pata clareza. Com a com digéo de que nés, os cientistas, de antemio a possuamos, Se assim for, poderemos dizerlhes claramente que, diante de tal problema de valor, € possivel adotar, na prética, esta ou aquela posicéo — e, para simplificar, peco que recottamos a exemplos Comuns tomados de situacées sociais a que temos de fazer face. ‘Quando se adota esta ou aquela posigio, seré preciso, de acordo com 0 procedimento cientifico, aplicar tais ou quais meios para conduzir 0 projeto a bom termo. Poderé ocorter que, em certo momento, os métodos apresentem um cardter que nos obtigue @ recusé-los. Nesse caso, serd preciso escolher entre o fim ¢ 0s meios inevitéveis que esse fim exige. O fim justifica ou no justifica 0s meios? O professor s6 pode mostrar « necessidade da escolha, mas nio pode ir além, caso se limite a seu papel de professor e niio queira transformar-se em demagogo. Além disso, ele poderd demonstrar que, quando se deseja tal ou qual fim, 45 torna-se necessério consentir em tais ou quais conseqiiéncias subsidiérias que também se manifestaréo, segundo mostram as ligées da experiéncia, Na hipétese, podem apresentar-se as mes- mas dificuldades que suzgem a propésito da escolha de meios. A este nivel, s6 defrontamos, entretanto, problemas que podem igualmente apresentar-se a qualquer técnico; este se vé compe- lido, em numerosas circunstincias, a decidir apelando para o principio do mal menor ou para o prinefpio do que é relativa- mente melhor. Com uma diferenca, entretanto: geralmente, 0 técnico dispée, de antemio, de um dado ¢ de um dado que é capital, 0 objetivo. Ora, quando se trata de problemas funda- mentais, 0 objetivo no nos é dado. Com base nessa observa- 40, podemos referir, agora, a dltima contribuicéo que a ciéncia dé a0 servico da clareza, contribuicio além da qual niéo hé ou- tras. Os cientistas podem — e devem — mostrar que tal ou qual posicéo adotada deriva, logicamente e com toda certeza, quanto ao significado de tal ou qual visio wltima e bisica do mundo. Uma tomada de posigéo pode derivar de uma visio tinica do mundo ou de varias, diferentes entre si. Dessa forma, © cientista pode esclarecer que detetminada posicéo deriva de uma e nio de outra concepsio, Retomemos a metéfora de que hé pouco nos valemos. A ciéncia mostraré que, adotando tal posicio, certa pessoa estari a servico de tal Deus ¢ ofendendo tal outro e que, se se desejar manter fiel a si mesma, chegard, cet- tamente, a determinadas conseqtigacias fntimas, dltimas e sig- nificativas, Fis © que a ciéncia pode proporcionar, ao menos em principio. Essa mesma obta € 0 que procuram tealizar a disci plina especial que se intitula filosofia e as metodologias préprias das outras disciplines. Se estivermos, portanto, enquanto cien- tistas, 2 altura da tarefa que nos incumbe (0 que, evidentemente, € preciso aqui pressupor) poderemos compelir uma pessoa a dar-se conta do sentido dltimo de seus préprios atos ov, quando menos, ajudéla em tal sentido. Pareceme que esse resultado nao € desprezivel, mesmo no que diz.respeito a vida pessoal, Se uum professor alcanca esse resultado, inclino.me a dizer que ele se poe a setvigo de poténcias “morais”, ou seja, a servigo do dever de levar a brotarem, nas almas alheias, a clareza e 0 sen- tido de responsabilidade, \ Creio que Ihe seré tanto mais facil realizar essa obra quanto mais ele evite, escrupulosamente, im por ou sugerir, a audiéncia, uma conviccao. 46 ‘As opinides que, neste momento, Ihes exponho tém por base, em verdade, a condicéo fundamental seguinte: a vida, en- quanto encerra em si mesma um sentido e enquanto se compre- ende por si mesma, s6 conhece 0 combate eterno que os deuses travam entre si ou — evitando a metéfota — s6 conhece a in- compatibilidade das atitudes ultimas possiveis, a impossibilida- it seus conflitos e, consegiieatemente, a necessidade it em prol de um ou de outro. Quanto a saber se, ‘em condicées tais, vale a pena que alguém faca da ciéncia a sua “vocagao” ou a indagar se a ciéncia constitui, por si mesma, uma vocacdo objetivamente valiosa, impde-se reconhecer que esse tipo de indagacdo implica, por sua vez, um juizo de valor, a pro- posito do qual nao cabe manifestagio em uma sala de aula. A resposta afirmativa a essas perguntas constitui, com efeito ¢ precisamente, 0 ptessuposto do ensino. Pessoalmente, eu as res- pondo de maneita afirmativa, tal como atestado por meus tra- balhos. Tudo isto se aplica igualmente ¢, mesmo, especialmente 20 ponto de vista fundamentalmente hostil ao intelectualismo ‘onde vejo, tal como a juventude modetna vé ou na maior parte das vezes imagina ver, 0 mais perigoso de todos 0s deménios. E talvez este o momento de relembrar a essa juventude a sen- tenga: “Nio esqueca que o diabo é velho ¢, assim, espere tornar- -se velho pata poder compreendé-lo”. O que no quer dizer que se faga necessério provardhe a idade apresentando uma certidio de nascimento. O sentido daquelas palavras é diverso: se vocé deseja se defrontar com essa espécie de diabo, ndo caberé optar pela fugs, tal como acontece muito fregiientemente em nossos dias, mas seté necessdrio examinat a fundo os caminhos que trilha, para conhecer-the o poder e as limitagées. ‘A ciéncia é atualmente, uma “vocacio” alicergada na es- pecializagdo € posta ao servigo de uma tomada de consciéncia de nds mesmos ¢ do conhecimento das relacbes objetivas. A ci- éncia no é produto de revelagées, nem é graca que um profeta ou um visiondrio houvesse recebido para assegurar a salvacio das almas; nao é também porcao integrante da meditagio de sabios e filésofos que se dedicam a refletir sobre 0 sentido do mundo. Tal é 0 dado inclutével de nossa situacéo histérica, a que nfo poderemos escapar, se desejarmos permanecet fidis a nds mesmos. E agora, se & maneira de Tolstéi novamente se colocar a indagacio: “Falhando a ciéncia, onde poderemos obter 47 uma resposta pata @ pergunta — que devemos fazer € como de- ‘vemos organizar nossa vida?” ou, colocando o problema em ter- mos empregados esta noite: “Que deus devemos servir dentte ‘os muitos que se combatem? devemos, talvez, servir um outro deus, mas qual?”, — a essa indagacdo eu tesponderei: procurem uum profeta ou um salvador. E se esse salvador nao mais existe ou se mio € mais ouvida sua mensagem, estejam certos de que nio conseguitio fazt-lo descer 4 Terra apenas porque milhares de professores, transformados em pequenos profetas privilegia- dos e pagos pelo Estado, procuram desempenhar esse papel em uma sala de aula, Por esse caminho sé se conseguird uma coisa ¢ é impedir a geragdo jovem de se dar conta de um fato decisivo: © profeta, que tantos integrantes da nova geracdo chamam a plena vez, nao mais existe, Além disso, s6 se conseguiré impedir que essa geragio apreenda o significado amplo de tal auséncia. Estou certo de que nfo se presta nenhum servigo a uma pessoa que “vibra” com a religio quando dela se esconde, como, alids, dos mais homens, que seu destino ¢ 0 de viver nama época indi- ferente a Deus e 20s profetas; ou quando, aos olhos de tal pes- soa, se dissimula aquela sitvago fundamental, por meio dos st- cedineos que sio as profecias feitas do alto de uma eétedra uni- versitétia, Parece-me que o crente, na pureza de sua fé, devetia insurgirse contra semelhante engodo. Talves, entzetanto, Ihes ocorra, agora, nova pergunta: qual a posicio a adotar diante de uma teologia que pretende o titulo de “‘ciéncia”? Nao vamos nos esquivar e contornar a questo. Por certo que nfo se encontram, em toda parte, “‘teologia” “dogmas”, 0 que, entretanto, nfo equivale a dizer que eles s6 se encontiem no cristianismo. Contemplando 0 curso da Histé- ta, encontramos teologias amplamente desenvolvidas no islamis- mo, no maniquefsmo, na gnose, no orfismo, no parcismo, no taolsmo, no budismo, nas seitas hindus nos Upanishades ¢, na- turalmente, também no judaismo. Tais teologias tiveram, em cada caso, desenvolvimento sistemético muito diferente. Nio é, porém, produto do aceso 0 fato de o ctistianismo ocidental tet go somente elaborado ou procurado elaborat de maneira mais sistemética sua teologia —- contrariamente ao que se passou com os elementos de teologia que se encontram no judafsmo —, como também procurado emprestarthe desenvolvimento cuja_ signif cago histérica &, indiscutivelmente, a de meior relevincia, Isso 48 se explica por influéncia do espitito helénico, pois toda teologia ‘ocidental dimana desse espftito, como toda teologia oriental pro- cede, manifestamente, do pensamento hindu. A teologia uma ‘racionalizagao intelectual da inspiracio religiosa. Jé dissemos que nao existe ciéncia inteiramente isenta de pressupostos ¢ dissemos ‘também que ciéncia alguma tem condigéo de provar seu valor ‘a quem lhe rejeite os pressupostos. A teologia, entretanto, acres- centa outros pressupostos que lhe séo préprios, especialmente hho que diz respeito a seu trabalho e a justificagao de sua exis- téncia. Naturalmente que isso ocorre em sentido e medida muito vyaridveis, Nao hé davida de que toda teologia, mesmo a teo- Togia hindu, aceita 0 pressuposto de que o mundo deve ter um sentido, mas 0 problema que se coloca € o de saber como inter- pretar tal sentido, para poder pensé-lo. Trata-se de ponto idén- fico 20 enfrentado pela teoria do conhecimento elaborada por Kant, que, partindo do pressuposto “a verdade cientifica existe e € vilida”, indaga, em seguida, dos pressupostos que a tornam possivel. A questio nos lembta, ainda, o ponto de vista dos estetas modernos que partem (explicitamente, como faz, por exemplo, G. V. Lukacs, ou de forma efetiva) do preanposto de que “existe obras de arte” ¢ indagam, em seguida, como é isso possivel. Certo € que, em getal, as teologias nao se contentam fom esse pressuposto ultimo, que brota, essencialmente, da filo- sofia da religido. Partem elas, normalmente, de pressupostos su- plementares: pattem, de um lado, do pressuposto de que se im- Se crer em certas “tevelagdes” que sio importantes para a sal- vacdo da alma — isto é, fatos que sfo os Unicos a tornar posst- vel que se impregne de sentido certa forma de conduta na vida; @, de outro lado, pattem do pressuposto de que existem certos estados e atividades que possem 0 caréter do santo — isto 6, que dio lugar a uma conduta compreensivel do ponto de vista da religiéo ou, pelo menos, de seus elementos essenciais. Con- tudo, também a teologia se vé diante da questiio: como com pteender, em funcao de nossa representacio total do mundo, ‘esses pressupostos que nfo podemos senao aceitar? Responde 2 teologia que tais pressupostos pertencem a uma esfera que se situa para além dos limites da “ciéncia”. Nao correspondem, por conseguinte, a um “saber”, no sentido comum da palavra, mas a um “ter”, no sentido de que nenhuma teologia pode fazet as veres da f6.e de outros elementos de santidade em quem no 49 os “possui”. Com mais forte razdo, néo o poderd também ne- nhuma outra cigncia. Em toda teologia “positiva”, o crente chega, necessatiamente, num momerito dado, a um ponto em que s6 Ihe seré possivel recorrer 4 méxima de Santo Agostinho: Credo non quod, sed quia absurdum est. O poder de realizar essa proeza, que é 0 “sactificio do intelecto” constitui 0 trago decisive e ca- tacteristico do crente praticante. Se assim 6, vé-se que, apesar da teologia (ou antes por causa dela) existe uma tensfo inven- cfvel (que precisamente a teologia revela) entre o dominio da erenga na “ciéncia”” eo dominio da salvacao religiosa. $6 0 discipulo faz legitimamente o “sacrificio do intelecto” em favor do profeta, como 36 0 crente o faz em favor da Igreja. Nunca, porém, se viu nascer uma nova profecia (repito delibera- damente essa metéfora que terd talvez chocado alguns) em razio de certos intelectuais modernos experimentarem a necessidade de mobiliar a alma com objetos antigos e portadores, pot assim dizer, de garantia de autenticidade, aos quais acrescentam a re- ligito, que aliés nao praticam, simplesmente pelo fato de recor- darem que ela faz parte daquelas antiguidades. Dessa maneiza, substituem a teligizo por um sucedaneo coin que enfeitam a alina como se enfeita uma capela privada, ornamentando-a com {dolos ttazidos de todas as partes do mundo, Ou ctiam sucedancos de todas as possiveis formas de experiéncia, aos quais atribuem a dignidade de santidade mistica, para traficé-los no metcado de livros. Ora, tudo isso nao passa de uma forma de charlatanis- mo, de maneira de se iludir a si mesmo. Hé, contudo, um outro fendmeno que nada tem de charlatanismo e que consiste, ao con- trétio, em algo muito sério e muito sincero, embora as vezes in- terpretado, talvez falsamente, em sua significagio, Pretendo refecit-me a esses movimentos da juventude que se vém desen- volvendo nos tiltimos anos ¢ que tém o objetivo de dar as re- lagies humanas, de caréter pessoal, que se estabelecem no ine terior de uma comunidade, o sentido de uma relacdo zeligiosa, cdsmica ou mistica. Se é certo que todo ato de verdadeira fra- ternidade pode acompanhar a consciéncia de juntar algo de im- perecfvel ao mundo das relacdes suprapessoais, pareceme, a0 contritio, duvidoso que a dignidade das relagdes comunitérias possa ser realcada por essas interpretagGes religiosas. Estas con- sideragdes, contudo, nos afastam do assunto. 50 © destino de nosso tempo, que se caractetiza pela raciona- lizagio, pela intelectualizacao e, sobretudo, pelo “‘desencantamen- to do mundo” levou os homens a banirem da vida piblica os va- ores supremos © mais sublimes. ais valotes encontraram re- figio na transcendéncia da vida mistica ou na fraternidade das relagdes diretas ¢ reciprocas entre individuos isolados, Nada hé de fortuito no fato de que a arte mais eminente de nosso tempo & {ntima e njo monumental, nem no fato de que, hoje em dia, 6. nos pequenos circulos comunitétios, no contacto. de bomem a homem, em piantssimo, se encontra algo que poderia corres- ponder a0 pnewma profético que abrasava comunidades antigas ‘¢ as mantinha solidérias. Enquanto buscamos, a qualquer pre- 0, “inventar” um novo estilo de arte monumental, somos le- vados a esses lamentéveis hozrores que sio os monumentos dos ‘iltimos vinte anos. E enquanto tentatmos fabricar intelectual- mente novas teligides, chegaremos, em nosso fntimo, na ausén- Ga de qualquer nova’e auténtica profecia, a algo semelhante que terd, para nossa alma, efeitos ainda mais desastrosos. As profecias que caem das cétedras universitérias nfo tém outro resultado senfio o de dar lugar a seitas de fandticos ¢ jamais produzem comunidades verdadeiras. A quem nfo é capaz de suportar virilmente esse destino de nossa época, s6 cabe dar 0 conselho seguinte: volta em silencio, sem dar a teu gesto a pu- blicidade habitual dos renegados, com simplicidade ¢ recolhi- mento, as. bragos abertos ¢ cheios de misericérdia das velhas Igrejas. Elas no tornardo penoso o retomno. De uma ou de outra maneira, quem retorna seré inevitavelmente compelido. a fazer 0 “sactificio do intelecto”. E no serei eu quem 0 con dene, se cle tiver, verdadeiramente, forca para fazé-lo. Realimen- te, aquele sacrificio, feito para dar-se incondicionalmente a uma religido, € moralmente superior 4 arte de fugit 2 um clazo de- ver de probidade intelectual, que se poe quando néo existe a coragem de enfrentar claramente as escolhas iiltimas, se mani- festa, em scu lugar, inclinagio por consentir em um telativismo precdrio, A meu ver, esse dom de si é mais louvével que todas esas profecias de universitérios incapazes de perceber claramen- te que, numa sala de aula, nenhuma virtude excede, em valor, a da probidade intelectual.’ Essa integridade nos compele a di- zet que todos — ¢ sfio numerosos — aqueles que, em nossos dias, vivem 4 espera de novos profetas ¢ de novos salvadores 51 se encontram na situagio que se desereve na bela cangio de exilio do guerda edomita, cangéo que foi incluida entre os oré- culos de Isaias: “Petguntam-me de Seit: “Vigia, que & da noite? “Vigia, que € da noite?” O vigia responde: “Vem a manhi e depois a noite. Se quereis, interrogai, Convertei-vos, voltai!* O povo a que essas palavras foram ditas ndo cessou de fazer 4 pergunta, de viver A espera hé dois mil anos, ¢ nds Ihe conhe- cemos o destino perturbador. Aprendamos a ligio! Nada se fez até agora com base apenas no fervor e na espera. preciso agit de outro modo, enttegar-se a0 trabalho e responder as exi- géncias de cada dia — tanto no campo da vide comum, como no campo da vocagio, Esse trabalho seré simples e ficil, se cada gual encontrar © obedecer ao deménio que tere as'teias de sua vida. 52 A POLITICA COMO VOCACAO EsrA CONFERENCIA, que 0s senhores me pediram para {a- zer, decepcionard necessariamente ¢ pot miltiplas taz6es, Numa palestra que tem por titulo a vocagéo politica, os senhores hio de esperar, instintivamente, que eu tome posi¢éo quanto a pto- blemas da atualidade. Ora, a tais problemas eu sé me referirei a0 fim de minha exposicgo ¢ de maneira puramente formal, quando vier a abordar certas questes que dizem respeito & significagio da atividade politica no conjunto da conduta hu- mana. Excluamos, portanto, de nosso objetivo, quaisquer in- dagades como: que politica devemos adotar? ou que contet- dos devemos emprestar a nossa atividade politica? Com efeito, indagagdes dessa ordem nada tém a ver com o problema geral que me proponho examinar nesta oportunidade, ou seja: que é a vocagio politica € qual o sentido que pode ela revestir? Pas- semos ao assunto. Que entendemos por politica? © conceito é extraordina- riamente amplo e abrange todas as espécies de atividade direti- va aut6noma, Fala-se da politica de divisas de um banco, da politica de descontos do Reichsbank, da politica adotada por um sindicato durante uma greve; e € também cabjvel falar da politi ca escolar de uma comunidade urbana ou rural, da politica da diretoria que estd a testa de uma associagio e, até, da politica de uma esposa habil, que procura governar seu matido. Nao darei, evidentemente, significagio tao larga a0 conceito que set- vint de base as reflexes a que nos entregaremos esta noite, Entenderemos por politica apenas a diresio do agrupamento polftico hoje denominado “Estado” ou a influéncia que se exet- ce em tal sentido. ‘Mas, que € um agrupamento “politico”, do ponto de vista de um socidlogo? O que é um Estado? Sociologicamente, 0 35 Estado nfo se deixa definir por seus fins, Em verdade, quase que néo existe uma tatefa de que um agrapamento politico qual- quet nfo se haja ocupado alguma vez; de outro lado, no possivel referir tarefas das quais se possa dizer que tenham sera. pre sido atribuidas, com exclusividade, aos agrupamentos polf- ticos hoje chamados Estados ou que se constituiram, historica- mente, fos precursores do Estado moderno. Sociologicamente, © Estado nfo se deixa definir a nfo ser pelo especitico meio que Ihe € peculiar, tal como é peculiar a todo outto agrupamento politico, ou seja, 0 uso da coasio fisica “Todo Estado se funda na forca”, disse um dia Trotsky a BrestLitovsk. E isso é verdade, Se s6 existissem estruturas so- ciais de que a violéncia estivesse ausente, 0 conccito de Estado tetia também desaparecido ¢ apenas subsistitia 0 que, no sen tido préptio da palavra, se denomina “anarquia”. A’ violencia no & evidentemente, © tinico instrumento de que se vale 0 Estado — no haja a respeito qualquer divida —, mas é seu instrumento especifico. Em nossos dias, a relacio ‘entre 0 Es- tado e a violencia é particularmente intima, Em todos os tem- os, os agrupamentos politicos mais diversos — a comecar pela familia — recorreram a violéncia fisica, tendoa como instru- mento normal do poder. Em nossa época, entretanto, devemos conceber 0 Estado conteraporineo como uma comunidade hu- mana que, dentro dos limites de determinado territétio — a no- fio de tettitério corresponde a um dos elementos essenciais do Estado — teivindica o monopélio do uso legitimo da violéncia fisica. £, com efeito, préprio de nossa época 0 nio reconhecer, em relagio a qualquer outro grupo ou 0s individuos, o .direito de fazer uso da violéncia, a nfo set nos casos em que o Estado © tolere: 0 Estado se transforma, portanto, na tinica fonte do “direito” & violencia. Por politica entenderemos, conseqiiente- mente, 0 conjunto de esforgos feitos com vistas a participar do poder ou a influenciar a divisio do poder, seja entre Estados, seja no interior de um tinico Estado. Em termos gerais, essa definigo corresponde a0 uso cor rente do vocdbulo. Quando de uma questio se diz que é “po- Iitica”, quando se diz de um ministro ou funcionério que sk0 “po- Iiticos, quando se diz de uma decisto que foi determinada pela “politica”, é preciso entender, no primeito caso, que os interes- 56 ses de divisio, conservagio ou transferéncia do poder sao fa- tores essenciais para que se possa esclarecer aquela questo; no segundo caso, impde-se entender que aqueles mesmos fatores condicionam a esfera de atividade do funciondtio em causa, as- sim como, no ultimo caso, determinam a decisio. Todo homem, que se entrega & politica, aspira a0 poder — seja porque 0 con- sidere como instrumento a setvico da consecucio de outros fins, ideais ou egoistas, seja porque deseje o poder “pelo poder”, para gozar do sentimento de prestigio que ele confere. ‘Tal como todos os egrupamentos politicos que historica- mente 0 precederam, o Estado consiste em uma relagio de do- minagéo do homem sobre o homem, fundada no instrumento da violéncia legitima {isto é, da violéncia considerada como le- gitima). O Estado s6 pode existit, portanto, sob condigio de que os homens dominados se submetam & autotidade continua- mente reivindicada pelos dominadores. Colocam-se, em conse- qiéncia, as indagagées seguintes: Em que condigées se subme- tem eles ¢ por qué? Em que justificagdes internas ¢ em que meios externos se apsia essa dominacao? Existem em principio — e comecaremos por aqui — trés rez6es internas que justificam a dominacio, existindo, conse- qicntemente, trés fundamentos da legitimidade. Antes de tudo, a autoridade do “pasado eterno”, isto ¢, dos costumes santifi- cados pela validez imemorial ¢ pelo hébito, enraizado nos ho- mens, de respeité-los. Tal € 0 “poder tradicional”, que o patri- arca ou o senhor de tetras, outrora, exercia. Existe, em segun- do lugar, a autotidade que se funda em dons pessoais ¢ extraor- dinérios de um individu (carisma) — devogio ¢ confianga es- tritamente pessoais depositadas em alguém que se singulariza por qualidades prodigiosas, por herofsmo ou por outras quali- dades exemplares que dele fazem o chefe. Tal é 0 poder “caris- mético”, exercido pelo profeta ov — no dominio politico — pelo ditigente guerreiro eleito, pelo soberano escolhido através de plebiscito, pelo grande demagogo ou pelo dirigente de um partido politico. Existe, por fim, a autoridade que se impoe em razio da “legalidade”, em razio da crenga na validez de um estatato legal e de uma “competéncia” positiva, fundada em regras racionalmente estabelecidas ou, em outros termos, a auto- ridade fundada na obediéncia, que reconhece obrigagdes confor- 37 mes ao estatuto estabelecido, Tal € 0 poder, como o exerce © “servidor do Estado” em nossos dias e como’o exercem todos 08 detentores do podet que dele se sproximam sob esse aspecto. E dispensdvel dizer que, na realidade concreta, a obedién- cia dos stiditos & condicionada por motivos extremamente pode- ros0s, ditados pelo medo ou pela esperanca — seja pelo medo de uma vinganca das poténcias mAgicas ou dos detentores do poder, seja a esperanca de uma recompensa nesta terra ou em outro mundo. A obediéncia pode, igualmente, ser condicionada pot outros interesses ¢ muito vatiados. A tal assunto voltare- mos dentto em pouco. Sejz como for, cada vez que se prope intertogacéo acerca dos fandamentos que “legitimam” a obe- diéncia, encontramse, sempre e sem qualquer contestagao, essas trés formas “puras” que acabamos de indicas, Essas representagoes, bem como sua justificagio intezna, revestem-se de grande impostincia para compreender a estru- tura da dominagio, Certo € que, na realidade, s6 muito rara- mente se encontram esses tipos putos. Hoje, contudo, no nos serd possfvel expor, em pormenor, as variedades, transicées ¢ combinagées extremamente complexas que esses tipos assumem; estudo dessa ordem entra no quadro de uma “teoria geral do Estado”, No momento, voltatemos a atencdo, particularmente, para © segundo tipo de legitimidade, ow seja, o poder brotado da sub- missio a0 “catisma” puramente pessoal do “chele”, Esse tipo nos conduz, com efeito, & fonte de vocacio, onde encontramos seus tragos mais caractetisticos. Se algumas pessoas se abando- nam ao catisma do profeta, do chefe de tempo de guetta, do sgtande demagogo que opera no seio da ecclesia ou do Perlamento, quer isso dizer que estes passam por estar interiormente “cha- mados” para o papel de condutores de homens e que a ele se dé obedincia nao por costume ou devido a uma lei, mas por- que neles se deposita f€, E, se esses homens forem mais que presungosos aproveitadores do momento, viverdo para seu tre balko ¢ procutardo realizar uma obra, A devosio de seus dis pulos, dos seguidores, dos militantes orienta-se exclusivamente para a pessoa e para as qualidades do chefe. A Histéria mostra que chefes carisméticos surgem em todos os dominios e em todas as épocas. Revestiram, entretanto, o aspecto de duas figuras 58 essenciais: de uma parte, a do mégico e do profeta ¢, de outra parte, a do chefe escolhido para dirigir a guerta, do chefe de grupo, do condottiere, Préptio do Ocidente € entretento — e isso nos interessa mais especialmente — a figura do livre “de- magogo”. Este s6 triunfou no Ocidente, em meio as cidades in- dependentes e, em especial, nas regides de civilizacio mediter- nea, Em nossos dias, esse tipo se apresenta sob 0 aspecto do “chefe de um partido parlamentar”; continua a s6 ser encontra- do no Ocidente, que € 0 ambito’ dos Estados constitucionais. Esse tipo de homem politico “por vocacio”, no sentido préprio do termo, no constitui de maneira alguma, em pafs algum, a tinica figura determinante do empreendimento politico e da luta pelo poder. O fator decisivo reside, antes, na natureza dos meios de que dispdem os homens politicos. De que modo conseguem as forgas polfticas dominantes afirmar sua autoridade? Essa indagacio diz tespeito a todos os tipos de dominacio e vale, conseqiientemente, para todas as formas de dominagio po- Iitica, seja tradicionalista, legalista ou carismitica, Toda empresa de dominagio que reclame continuidede ad ministrativa exige, de um Indo, que a atividade dos sididos se oriente em fungi da obediéncia devida aos senhores que pre- tendem ser os detentores da forga Iegftima e exige, de outro Jado e em virtude daquela obedigncia, controle dos bens mate- tiais que, em dado caso, se tornem necessitios pasa aplicagio da forga fisica, Dito em outtas palavras a dominaco organiza- da, necessita, por um Iado, de um estado-maior administrative e, por outro lado, necessita dos meios materiais de gestio. © estado-maior administrative, que representa externamen- te a orgenizagio de dominagio politica, tal como aliés qualquer outta organizagio, nfo se inclina a obedecer ao detentor do poder em razio apenas das concep;des de legitimidade acima discuti- das. A obediéacia funda-se, antes, em duas espécicis de motivo que se relacionam a interesses pessoais: retribuigio material e prestigio social. De uma parte, a homenagem dos vassalos, a prebenda dos dignitétios, os vencimentos dos atuais servidores piblicos e, de outra parte, a honra do cavaleiro, os privilégios das ordens ¢ a dignidade do servidor constituem a recompensa esperada; e 0 temor de perder o conjunto dessas vantagens € a razio decisiva da solidatiedade que liga 0 estado-maior admi- 59 nistrativo aos detentores do poder. E 0 mesmo ocorre nos cx: sos de dominacio carismética: esta proporciona, aos soldados fidis, a gléria guetreisa ¢ as riquezas conquistadas e proporciona, a0s seguidores do demagogo, os “despojos”, isto é, a exploracéo dos administrados gragas a0 monopélio dos tributes, as peque- nas vantagens da atividade politica e as recompensas da vaidade. Para assegurar estabilidade a uma dominagio que se ba- seia na violéncia fazem-se necessétios, tal como em uma empresa de cardter econémico, certos bens materiais. Desse ponto de vista, é possivel classificar as administragdes em duas categorias, A primeira obedece ao seguinte principio: o estado-maior, os fun- ciondrios ou outros magistrados, de cuja obediéncia depende 0 detentor do poder, so, cles prdptios, os proprietétios dos ins- trumentos de gestfo, instrumentos esses que podem ser recursos financeiros, edificios, material de guerra, parque de vetculos, cavalos etc. A segunda categoria obedece a principio oposto: 0 estado-maior é “privado” dos meios de gestao, no mesmo sen- tido em que, na época atual, o empregado e 0 proletério sio “privados” dos meios materiais de produgdo numa empresa ca- pitalista, 1, pois, sempre importante indagar se o detentor do poder ditige organiza a administragéo, delegando poder exe- cutivo a servidores ligados a sua pessoa, a empregados que ad- mitiu ou a favoritos ¢ familiares que néo séo proprietérios, isto 4, que niio so possuidores de pleno direito dos meios de gestio ‘ou se, pelo contrétio, a administracto esté nas mios de pessoas economicamente independentes do poder. Essa diferenca € ilus- trada por qualquer des administragSes conhecidas. Daremos 0 nome de agrupamento organizado “segundo 0 prinefpio das ordens” ao agrupamento politico n0 qual os meios materiais de gestéo so, total ou parcialmente, propriedade do estado-maior administrativo. Na sociedade feudal, por exemplo, © vassalo pagava, com seus préprios recursos, as despeses de administragio e de aplicagio da justiga no territério que the havia sido confiado e tinha a obrigagio de equipar-se € apro- visionar-se, em caso de guerra. E da mesma forma procediam os vassalos que a cle estavam subordinados. Essa situagio tinha alguns efeitos no que se refere ao exercicio do poder pelo suze- rano, de vez que o poder deste fundava-se apenas no juramento pessoal de fidelidade ¢ na circunstincia de que a “legitimids- 60 de” da posse de um feudo e honra social do vassalo derivavam do suzerano, Contudo, encontra-se também disseminado, mesmo entre as formagées politicas mais antigas, o dominio pessoal do chefe. Busca este transformar-se no dominador da administragio entre- gando-a a siditos que a ele se ligam de maneira pessoal, a e5- cravos, a servos, a protegidas, a favoritos ou a pessoas a quem cle assegura vantagens em dinheiro ou em espécie, O chefe en- frenta as despesas administrativas Iangando mio de seus préptios bens ou distribuindo as rendas que seu patriménio proporcione ¢ cria um exército que depende exclusivamente de sua autori- dade pessoal, pois que & equipado e suprido por suas colheitas, armazéns ¢ arsensis. No ptimeiro caso, no easo de um agra: pamento estruturado em “Estados”, o soberano s6 consegue g0- ‘vernar com o auxflio de uma aristocracia independente e, em razio disso, com ela pattilha do poder. No segundo caso, o governante busca apoio em pessoas dele diretamente dependen- tes ou em plebeus, isto é em camadas sociais desprovidas de fortuna e de honra social prépria. Conseqiientemente, estes «l- timos, do ponto de vista material, dependem inteiramente do chefe e, principalmente, nao encontram apoio em nenhuma ou- tra espécie de poder capaz de contrapor-se a0 do soberano, To dos 08 tipos de poder patriarcal e patsimonial, bem como o des- potismo de um sultao e os Estados de estrutura burocratica fi- liam-se a essa Gltima espécie — ¢ insisto muito particularmente no Estado burocrético por ser cle 0 que melhor caracteriza 0 de- senvolvimento racional do Estado moderno. De modo geral, o desenvolvimento do Estado modemo tem por ponto de partida 0 desejo de o principe expropriar os pode- res “privados” independentes que, a par do seu, detém forca administrativa, isto € todos os proprietitios de meios de ges tho, de recursos financeitos, de instrumentos militares e de quaisquer espécies de bens suscetiveis de utilizagio para fins de cardter politico, Esse proceso se desenvolve em paralelo perfeito com o desenvolvimento da empresa capitalista que do- mina, a pouco € pouco, os produtores independentes. E nota-se enfim que, no Estado moderno, 0 poder que dispée da totali- dade dos meios politicos de gestfo tende a reunir-se sob mio Yinica. Funcionério algum permanece como ptoprietério pes- 61 soal do dinheiro que ele manipula ou dos edificios, reservas ¢ miquinas de guetta que ele control, © Estado moderno — e isto é de importincia no plano dos conceitos — conseguiu, portanto, e de maneira integral, “privat” a diregio administrati- va, os funciondrios ¢ trabalhadores burocriticos de quaisquer meios de gestio, Nota-se, a essa altura, o surgimento de um processo inédito, que se desenrola a nossos olhos ¢ que ameaca expropriar do expropriader os meios politicos de que ele dis- poe e 0 seu poder politico. Tal & a0 menos apatentemente, a consegiiéncia da revolugio (alema de 1918), na medida em que novos chefes substituiram as autoridades estabelecidas, em que se apossaram, por usutpagio ou eleigfo, do poder que controla © conjunto administrative ¢ de bens materiais e na medida em que fazem derivar — pouco importa com que dircito — a legi- timidade de sev poder da vontade dos governados. Cabe, en- tretanto, indagar se esse primeiro éxito — ao menos aparente — pemmitiraé que a revolugio alcance o dominio do aparelho econémico do capitalismo, cuja atividade se orienta, essencial- mente, de conformidade com leis inteiramente diversas das que regem’a administracéo politic. Tendo em vista meu objetivo, limitar-me-ei a registrar esta constataggo de ordem puramente conceitual: 0 Estado moderno é um agtupamento de dominagio que apresenta caréter institucional e que procurou (com éxito) monopolizar, nos limites de um territério, @ violéncia fisica legftima como instrumento de dominio e que, tendo esse obje- tivo, reuniu nas mios dos dirigentes os meios materiais de ges- tao. Equivale isso a dizer que 0 Estado moderno expropriou todos os funciondtios que, segundo o principio dos “Estados” dispunham outrora, por direito proprio, de meios de gestio, substituindo-se a tais funcionérios, inclusive no topo da hierarquia. Sem embargo, a0 longo desse processo de expropriagio que se desenvolveu, com éxito maior ou menor, em todos os paises do globo, nots-se o aparecimento de uma nova espécie de ‘“po- Iiticos profissionais”. ‘Trata-se, no caso, de uma categoria nova, que permite definir o segundo sentido dessa expressio. Vemo- clos, de inicio, colocarem-se a servico dos principes. Nao tinham a ambicdo dos chefes carisméticos ¢ nfo buscavam tansformar- -se em senhores, mas empenhavam-se na luta politica para se colocarem A disposigio de um principe, na gestio de cujos in- teresses politicos encontravam ganha-pio e contetido moral para 62 suas vidas, Uma vez mais, é s6 no Ocidente que eucontramos essa categoria nova de politicos profissionais a servigo de pode- es outtos que nfo o dos principes. Nao obstante, foram eles, ein tempos passados, o instrumento mais importante do poder dos principes e da expropriacdo politica que, em beneficio des- tes, se processava. Antes de entrar em pormenores, tentemos compreender claramente, sem equivocos ¢ sob todos os aspectos, a significa- go do aparecimento dessa nova espécie de “homens politicos profissionais”. Sao possiveis multiplas formas de dedicagio A politica — e € 0 mesmo dizer que é possivel, de muitas manei- ras, exercer influéncia sobre a divisio do poder entre formacées politicas diversas ou no interior de cada qual delas. Pode-se exercitar a politica de maneira “ocasional”, mas é igualmente possivel transfotmar a politica em profissio secundéria ou em profissio principal, exatamente como ocotre na esfera da ativi- dade econdmica. Todos exercitamos “ocasionalmente” a politi- ca ao introduzitmos nosso voto em uma urna ou ao exprimir ‘mos nossa vontade de maneita semelhante, como, por exemplo, manifestando desaptovagio ou acordo no curso de uma reunifio “politica”, pronunciando um discurso “politico” ete. Alids, para numerosas pessoas, 0 contacto com a politica se reduz a esse género de manifestagdes. Outros fazem da atividede politica a profissio “secundétia”. Tal & 0 caso de todos aqueles que de- sempenham o papel de homens de confianca ou de membros dos partidos politicos e que, via de regra, sé agem assim em caso de necessidade, sem disso fazerem “vida”, nem no sentido material, nem no sentido moral. ‘Tal € também o caso dos integrantes de conselhos de Estado ou de outros érgios consultivos, que 6 exercem atividades quando provocados, Tal é, ainda, o caso de numeros{ssimos parlamentares que s6 exercem atividade politica durante 0 perfodo de sessdes. Esse tipo de homem politico era comum outtora, na estraturagio por “ordens”, prépria do anti- go regime. Por meio da palavra “‘ordens”, indicamos os que, por direito pessoal, eram proprictétios dos ‘meios materiais de gestio, fossem de cardter administrativo ou militar, ou os be- neficidrios de privilégios pessoais. Ora, grande parte dos mem- bros dessas “‘ordens” estava longe de consagrar totalmente, ou mesmo precipuamente, a vida & politica; a politica s6 se dedi- cavam ocasionalmente. Nao encaravam suas prertogativas senao 63 como forma de assegurar rendas ou vantagem pessoal. No in- terior de seus préprios agrupamentos, sé desenvolviam ativida- de politica nis ocasioes em que seus suzeranos ou seus pares lhes dirigiam solicitagio expressa. Eo mesmo se dava com relagao a uma importante fragio das forgas auxiliares que o principe colocava a seu servigo, para transformé-la em instrumento na luta que ele travava com 0 tito de constituir uma organizacio polf- tica a ele pessoaimente devotada. Os “conselheiros privados” integravamsse a essa categoria, bem como a ela também se in- tegrava, remontando no tempo, grande parte dos conselheiros que se assentavam nas curias ou em outros 6rgios consultivos a servigo do principe. Evidentemente, entretanto, esses auxi- liares que sé ocasionalmente se dedicavam 4 politica ou que neia viam tao-somente uma atividade secundéria estavam longe de bastar ao principe. Nao lhe restava, portanto, outra alterna- tiva senio a de buscar rodear-se de um corpo de colaboradores inteira e exclusivamente dedicados 4 sua pessoa ¢ que fizessem da atividade polftica sua principal ocupagéo. Naturalmente que a estrutura da organizac3o politica da dinastia nascente, assim ‘como a fisionomia da civilizasZo examinada, dependeré muito, em todos os casos, da camada social onde o principe v4 recrutar seus agentes. Eo mesmo cabe dizer, com mais forte razio, dos agrupamentos politicos que, apés a abolicio completa ou a li mitagdo considerével de poder senhorial ‘se constituam politi- camente em comunas “livres” — livres no no sentido de fuga a0 dominio através de recursos a violéncia, mas no sentido de auséncia de um poder senhorial ligitimado pela tradigio e, muito freqiientemente, consagrado pela religifo e considerado como fonte tinica de qualquer autoridade. Historicamente, essas co munas sé se desenvolveram no mundo ocidental, sob a forma ptimitiva da cidade etigida em agrupamento politico, tal como 4 vemos surgir, pela primeira vez, no ambito da civilizagio me- diterranes. * Ha duas maneiras de fazer politic. Ou se vive “para” « politica ou se vive ‘“da” politica, Nessa oposigao nio hé nada de exclusive. Muito a0 contrério, em geral se fazem uma € outta coisa ao mesmo tempo, tanto idealmente quanto na pré- tica, Quem vive “para” a politica a transforma, no sentido 4 mais profundo do temo, em “fim de sua vida”, seja porque encontra forma de goz0 na simples posse do poder, seja porque © exercicio dessa atividade the permite achar equilibrio interno ¢ exprimir valor pessoal, colocando-se a servigo de uma “causa” que dé significagio a sua vida. Neste sentido profundo, todo homem sério, que vive para uma causa, vive também dela. Nossa distingio assenta-se, portanto, num aspecto extremamente impor- tante da condicéo do homem politico, ou seja, 0 aspecto econd- mico. Daquele que vé na politica uma permanente’ fonte de rendas, diremos que ‘‘vive da politica” ¢ diremos, no caso con trério que “vive para a politica”. Sob regime que se funde nna propriedade privada, é necessério que se retinam certas con digSes, que os senhores poderio considerar triviais, para que, no sentido mencionado, um homem possa viver “para” a tica. © homem politico deve, em condigdes normais, ser econo- micamente independente das vantagens que a atividade politica Ihe possa proporcionar. Quer isso dizer que Ihe & indispensével possuir fortuna pessoal ou ter, no ambito da vida privada, tuacio suscetivel de Ihe assegurar ganhos suficientes. Assim deve ser, pelo menos em condigées normais, pois que os segui dotes do chefe guerreiro dio to pouca importincia as condi ges de uma economia normal quanto os companheiros do agita- dor revolucionétio, Em ambos os casos, vive-se apenas da pre- 8a, dos roubos, dos confiscos, do curso fotgado de bonus de pa- gamento despidos de qualquer valor — pois que tudo isso é, no fundo, a mesma coisa, Tais situagdes so, entretanto, necessa- riamente excepcionais; na vida econdmica de todos os dias, s6 a fortuna pessoal assegura independéncia econémica. O homem politico deve, além disso, ser “economicamente disponivel”, equi- valeado a afirmagio a dizer que ele nio deve estar obrigado a consagrar toda a sua capacidade de trabalho e de pensamento, constante e pessoalmente, @ consecugio da prépria subsisténcia. Ora, em tal sentido, © mais “disponivel” ¢ 0 capitalista, pessoa que recebe rendas sem nenhum trabalho, seja porque, 4 seme- Thanca dos grandes senhores de outrors ou dos grandes proprie- thrios e da alta nobreza de hoje, ele as aufere da exploracao imo- bilidria — na Antigiiidade e na Tdade Média, também os escra- vos € servos representavam fontes da renda —, seja porque as aufere em razio de titulos ou de outras fontes andlogas, Nem © operério, nem muito menos — ¢ isso deve ser patticularmen- 65 te sublinhado — 0 modetno bomem de negécios e, sobretudo, ‘© grande homem de negécios séo disponiveis no sentido men- cionado. © homem de negécios esté ligado a sua empresa ¢, portanto, no se encontra dispontvel e muito menos dispontvel esti o que se dedica a atividades industriais do que 0 dedicado a atividades agricolas, pois que este & beneficiado pelo cardter sazonal da agticultura- Na maioria das vezes, 0 homem de ne gécios tem dificuldade para deixar-se substituis, ainda que tem- porariamente. O mesmo ocorre com rela¢io 20 médico, tanto menos disponivel quanto mais eminente e mais consultado. Por motivos de pura técnica profissional, as dificuldades ja se mos- tram menores no caso do advogado, o que explica a circunstin- cia de cle ter desempenhado, como homem politico profissio- nal, papel incomparavelmente maior ¢, com freqiiéncia, prepon- derante. Nao se faz necessério, entretanto, estender ainda mais esta casuistica; mais conveniente é deixar claras algumas conse- qiiéncias do que se acabou de expor. fato de um Estado ou de um partido serem ditigidos por homens que, no sentido econémico da palavra, vivam exclusiva. mente pata a politica e nfo da politica significa, necessariamente, que as camadas dirigentes so recrutadas segundo critério “plu tocrético”. Fazendo essa assercfo, no pretendemos, de manei- ta alguma, dizer que a diregio plutocrética néo busque titer van- tagem de sua situagfo dominante, com 0 objetivo de também viver “da” politica, explorando essa posicéo em beneficio de seus intereses econémicos. Claro que isso ocorre. Nao bé ca- madas dirigentes que nfo tenham sido levadas a essa explora gio, de uma ou de outra maneira, Nossa assergdo significa sim- plesmente que os homens politicos profissionais nem sempre se véem compelidos a reclamar pagamento pelos servigos que em tal condi¢ao prestam, ao paso que o individuo desprovido de fortuna est sempre obrigado a tomar esse aspecto em considera- so. De outra parte, nfo é de nossa intengio insinuar que os ho- mens politicos desprovidos de fortuna tenham como nica preo- cupaso, durante 0 curso da atividade politica, obter, exclusiva. mente ou mesmo principalmente, vantagens econémicas e que cles no se preocupem ou nao considerem, em primeiro lugar, a causa a que se dedicaram. Nenhuma afirmagdo seria mais falsa que a feita em tal sentido. Sabe-se, por experiéncia, que a preocupagdo com a “seguranga”” econémica 6, com efeito — de 66 maneira consciente ou nfo — o ponto cardial na otientagio da vida de um homem que jé possui fortuna. O idealismo politico, que nio se detém diante’ de nenkuma consideragio e de nenhum princfpio, € praticado, se nao exclusivamente, 20 menos princi- palmente, por individuos que, em tazio da pobreza, estio A margem das camadas sociais interessadas na manutengio de cer- ta ordem econémica em sociedade determinada. Eo que s¢ nota especialmente em perfodos excepcionais, revolucionétios. Tudo que nos interessa realcar é entretanto o seguinte: 0 recru- tamento nio plutocratico do pessoal politico, sejam chefes ow seguidores, envolve, necessariamente, a condigio de a organiza- gio politica assegurar-the ganhos regulares e garantidos. Nunca existem, portanto, mais de duas possibilidades. Ou a ativida- de politica se exerce “honorificamente” ¢, nessa hipétese, so- mente pode set exercida por pessoas que sejam, como se cos- tuma dizer, “‘independentes”, isto é, por pessoas que gozam de fortuna pessoal, traduzida, especialmente, em termos de rendi- mentos; ou as avenidas do poder sio abertas a pessoas sem fortuna, caso em que a atividade politica exige remuneracio. © bomem politico profissional, que vive “da” politica, pode set um puro “beneficidrio” ou’ um “funcionérfo” remunerado. Em outras palavras, ele receberd rendas, que so honordrios ou emolumentos por servigos detezminados — nfo passando a gor- jeta de uma forma desnaturada, irregular ¢ formalmente ilegal dessa espécie de renda — ou que assumem a forma de remune ragio fixada em dinheiro ou espécie ov em ambos ao mesmo tempo. O politico pode revestir, portanto, a figura de um “em- preendedor”, a maneira do condottiere, do meeiro ou do com- prador de carga ou revestir 0 aspecto de boss norte-americano que encara suas despesas como investimentos de capital, que ele transforma em fonte de lucros, mercé da exploracéo de sua influéncia politica; ou pode océrrer que ele simplesmente zece- ba uma remuneracio fixa, tal como se dé com 0 redator ou se- crétario de um partido, com o ministro ou funciondrio politico modernos. A compensagio tipica outrora outorgada pelos prin cipes, pelos conquistadores vitoriosos ou pelos chefes de par- tido, quando triunfantes, consistia em feados, doacéo de tertas, prebendas de todo tipo e, com o desenvolvimento da economia financeira, traduziu-se, mais particularmente, em gratificagdes. Em nossos dias, sio empregos de toda espécie, em partidos, em 67 jornais, em cooperativas, em organizagSes de seguro social, em municipalidades ou na administragio do Estado — distribuidos pelos chefes de partido a seus partidérios, pelos bons e leais ser- vigos prestados. As lutas partidérias nio sio, portanto, apenas lutas para consecucio de metas objetivas, mas sfo, a par disso, ¢ sobretudo, rivalidades para controlar a distribuicio de empregos. Na Alemanha, todas as lutas entre as tendéncias particula- ristas ¢ as tendéncias centralistas giram, também ¢ principalmen- te, em totno desse ponto. Que poderes ito controlar a dis- tribuigdo de empregos — os de Berlim ou, a0 contritio, os de Munich, de Karlstuhe ou de Dresde? Os partidos se itritam muito mais com artanhdes ao dircito de distribuigio de empre- 1g0s do que com desvios de programas. Na Franca, um movi- ‘mento municipal, fundado nas forcas respectivas dos. partidos politicos, sempre’ foi considerado perturbagio mais importante do que uma alteracéo no programa governamental e, com efeito, suscitava agitacdo maior no pats, dado que, geralmente, 0 pro- grama de governo tinha significagio apenas verbal. Numerosos partidos politicos, notadamente nos Estados Unidos da América do Norte, transformaram-se, depois do desaparecimento das ve- thas divergéncias a propésito de interpretagio da Constituicio, em organizagSes que 6 se dedicam 4 caga aos empregos € que modificam seu programa conereto em funcio dos votos que haja por captar. Na Espanha, pelo menos até os vltimos anos, os dois partidos se sucediam no poder, segundo um principio de alternincia consentida, sob a cobertura de cleigies “préfabrica- das” pelas altas diregdes, com o fim de permitir que os partidé- tios dessas duas organizagies se beneficiassem, alternadamente, das vantagens propiciadas pelos postos administrativos. Nos ter ritérios das antigas colénias espanholas, as ditas “cleigées” ¢ as ditas “tevolugées” niio tiveram outro objetivo se no o de dis- por da vasilha de manteiga de que os vencedores esperavam setvirse. Na Suica; 0s partidos pacificamente repattem entte si os empregos, segundo o princfpio da distribuigio proporcio- nal, Aliés, mesmo na Alemanhe, certos projetos de constitui- Gio ditos “tevolucionatios” como, por exemplo, o ptimeito pro- eto elaborado em Baden, propdem estender o sistema suico a distribuigio dos cargos ministeriais ¢, conseqiientemente, consi- deram o Estado © 0s postos administrativos como instituigées destinadas a simplesmente proporcionar prebendas. Foi espe- 68 cialmente 0 pattido do Centro que se entusiasmou com proje tos desse tipo e, em Baden, chegou a inscrever em seu progra ma a aplicacio do principio de disttibuicéo proporcional de car- gos segundo as confissdes religiosas, sem se pteocupat com a capacidade politica dos futuros dirigentes. Tendéncia idéntica se manifestou em todos os demais partidos, com o aumento crescente do ntimero de cargos administrativos que se deu em conseqtiéncia da generalizada burocratizagio, mas também se deu por causa da ambicio crescente de cidadaos atraidos por ‘uma sinecura administrativa que, hoje em dia, se tornou espé- cic de seguro especifico para 0 futuro, Dessa forma, aos olhos de seus aderentes, os partidos aparecem, cada vez mais, como uma espécie de trampolim que thes permitiré atingir este obje- tivo essencial: gerantir 0 futuro. ‘A essa tendéncia opée-se, entretanto, o desenvolvimento moderno da fungio piblica que, em nossa época, exige um cor- po de trabalhadores intelectusis especializados, altamente quali ficados ¢ que se preparam, a0 longo de anos, para o desempe- ho de sua tarefa profissional, estando animados por um scn- timento muito desenvolyido de honta corporativa, onde se acen- tua o capitulo da integridade. Se tal sentimento de honta nzo existisse entre os funciondrios, estarfamos ameagados por uma corrupgio assustadora ¢ no escapatiamos ao dominio dos fils teus, Estaria em grande perigo, ao mesmo tempo, o simples rendimento técnico do aparelhamento estatal, cuja importancia econémica se acentua crescentemente € no deixatd de crescer, sobretudo se consideradas as tendéncias atuais no sentido de so- cializaséo, Mesmo nos Estados Unidos da América do Norte, onde, em épocas passadas, se desconhecia a figura do funcioné- rio de cazreira ¢ onde o diletantismo administrativo dos politicos deformados permitia que, em fungio do acaso de uma cleicio presidencial, fossem substituidas varias centenas de milhares de funciondrios, mesmo nos Estedos Unidos da América do Norte, repitamos, a antiga forma de recrutamento foi, de hé muito, superada pela Civil Service Reform. Na otigem dessa evolugio, encontram-se exigéncias imperio- sas, de ordem técnica exclusiva. Na Eutopa, a funcio publica, organizada segundo o principio da divisio do trabalho, desen- volveu-se progressivamente, ao longo de processo que se esten- 69 de pot meio milhar de anos. As cidades ¢ condados italianos foram 0s primeiros a tomatem por essa via; ¢, no caso das mo- narquias, esse primeiro lugar foi tomado pelos Estados conquis- tadotes normandos. © passo decisivo foi dado relativamente A gestio das financas do principe. Os obstéculos surgidos quan- do das reformas administrativas levadas a efcito pelo Imperador Max permitem-nos compreender quanto foi dificil para os fun- ciondrios, mesmo sob pressio de necessidade extrema e sob ameaga turca, privar © soberano da gestéo financeita, embora esse campo seja, sem divide, o menos compativel com 0 dile- tantismo de um principe que, por aquela época, aparecia, ainda e antes de tudo, como um cavaleiro. Razio idéntica fazia com que o desenvolvimento da técnica militar impusesse a presenca de um oficial de carreira ¢ o aperfeigoamento do processo judi- cidtio reclamasse um jurista competente. Nesses trés dominios — 0 financeito, 0 do exército e o da justica — os funciondrios de carreira triunfaram definitivamente, nos Estados evolufdos, du- rante 0 século XVI. Dessa maneita, paralelamente ao fortale- cimento do absolutismo do principe em relagio as “ordens”, ocorteu sua progtessiva abdicagio em favor dos funcionérios que haviam, precisamente, auxiliado o principe a alcancar vit6ria so- bre as “ordens”. ‘A par dessa ascensio de funcionérios qualiticados, era pos- sivel constatar — embora com transigSes menos claras — uma ‘outta evolusio envolvendo os “dirigentes politicos”. Desde sem- pre e em todos os paises do mundo, houve, evidentemente, con- selheiros reais que gozaram de grande autoridade, No Oriente, a necessidade de reduzir tanto quanto posstvel a responsabilida- de pessoal do sultfo, com fio de asegurar 0 éxito de seu re nado, conduziu & criacéo da figura tipica do “grio-vizir”. No Ocidente, ao tempo de Carlos V — que foi também o tempo de Maquiavel — a influéncia que, sobre os circulos especializa- dos da diplomacia, exerceu a Icitura apaixonada dos relatdrios de embaixadores transformou a atividade diplomética numa arte de Connoisseurs. Os aficcionados dessa nova arte, formados, em sua majoria, dentro dos quadros do humanismo, conside- tavam-se como uma categoria de especialistas, a semelhanga dos letrados da China do baixo perfodo, 0 periado da divisio do pais em Estados miiltiplos. Foi, entretanto, a evolugéo dos re- gimes politicos no sentido do constitucionalismo 0 que permi- 70 tiu sentir, de maneica definitiva ¢ utgente, uma orientagio for- malmente unificada do conjunto de politica, inclusive a politica interna, sob a égide de um s6 homem de Estado. Sempre hou- ve, por certo, fortes personalidades que ocuparam a posigio de conselheiros ou — em verdade — a de guia do principe. Nao obstante,. a organizacio dos poderes piblicos havia, primitiva- mente, seguido via diversa daquela que acabamos de assinalar, tendo ocorrido esse fato mesmo nos Estados mais evoluidos. Nota-se, com efeito ¢ desde logo, a constituigéo de um corpo administrative supremo, de cardter colegiado, Em teoria, embo- 1a com freqiiéncia cada vex menor na pritica, esses organismos reuniamse sob presidéncia pessoal do principe, tinico a tomar decisdes, Através de tal sistema, que deu origem as propostas, contrapropostas ¢ votos segundo 0 princfpio da maioria e, a pat disso, devido a0 fato de que o soberano, além de tecorrer as supremas instincias oficiais, apelava a homens de confianca, a cele pessoalmente ligados — 0 “gabinete” —, por cujo inter- médio tomava decisdes em resposta As resolugdes dos Conselhos de Estado ou de outros érgios da mesma espécie (sem importar © nome que recebessem) — 0 principe, que se colocava cada vez mais na posicéo de um diletante, julgou poder escapar & importincia inexoravelmente crescente dos funciondrios especia- lizados ¢ qualificados, retendo em suas mios a direcio mais alta, Percebe-se, por toda parte, essa luta latente entre os funcioné- rios especializados e a autocracia do principe. Esse estado de coisas s6 se alterou com o surgit dos parla- mentos e das aspitagées politicas dos chefes dos partidos par- lamentares. Embora as condigdes dese novo desenvolvimento fossem diferentes nos diferentes pafses, conduziram, nao obstan- te, a um resultado aparentemente idéntico, Com algumas nuan- a5, € certo. Assim, em todos os lugares onde as dinastias con- seguiram conservar um poder verdadeiro — na Alemanha, no- tadamente —, 05 intetesses do principe se aliaram aos dos’ fun- cionérios, contra as pretenses do Parlamento ¢ suas aspiragées 20 poder. Os funciondtios tinham, com efeito, interesse na pos- sibilidade, aberta a alguns, de ascender a postos do executivo, inclusive os de ministro, que se transformavam, desse modo, em posigio superior da carreira. De sua parte, o monarca tinha interesse em poder nomear os ministros a seu bel-prazer e de es- colhé-los entre os funcionérios a ele devotados, E havia, enfim, 71 um interesse comum dessas partes no assegurar unidade de di- regio politica, vendo surgirem condigées de enfrentar 0 Pasla- mento sem cisio interna: tinham essas partes interesse, portan- to, em substituir o sistema colegiado por um chefe de gabinete que exprimisse a unidade de vistas do ministério, Acrescente- -se que, para manter-se ao abrigo das rivalidades entre partidos e dos eventuais ataques desses partidos, 0 monarca tinha neces- sidade de contar com uin responsével tinico, em condigées de Ihe dar cobertura, isto é, com um homem que pudesse dar ex: plicagdes aos parlamentares, opor-se aos projetos que estes apre- Sentassem ou negociar com os partidos. ‘Todos esses diversos interesses agiram conjuntamente e num mesmo sentido, con- duzindo a autoridade unificada de um ministro-funcionério, O proceso de desenvolvimento do poder parlamentar teve, contu- do, conseqiiéncias ainda maiores no sentido de unificagio quan- do, como na Inglaterra, o Parlamento conseguiu sobrepor-se 20 monasca, Em tal caso, 0 “gabinete”, tendo a frente um dirigen- te parlamentar nico, 0 “lider”, assumiu a forma de uma comis- so que se apoiava exclusivamente em seu préprio poder, de- tendo, no pafs, uma forca real, embora ignorada nas leis, a sx ber, a forca do partido politico que, ma ocasio, contava com maioria no Parlamento, Deixaram, portanto, os organismos co legiados oficiais de ser érgio do poder politico dominante — que havia pasado aos partidos — e, conseqtientemente, nio po- diam permanecet como reais detentores do governo, Para ter condigées de afirmar sua sutoridade interna ¢ de orientar a po- Iftica ‘exterior, o partido ditigente necessitava, antes de tudo, de um érgio diretor composto unicamente pelos verdadeiros dirigentes do partido, a fim de estar em condigées de manipular confidencialmente os negécios. Esse érgao era, precisamente, o gabinete, Contudo, aos olhos do ptblico ¢, em especial, aos colhos do pablico parlamentat, havia um chefe tinico responsa- vel pot todas as decisdes: o chefe do gabinete. Somente nos Estados Unidos da América e nas democracias por eles influen- ciadas € que se adotou sistema totalmente diverso, consistente em colocar o chefe do partido vitorioso, eleito por sufrdgio uni- versal direto, a frente do conjunto de funciondrios por ele no- meados, dependendo da autorizaggo do Parlamento apenas em matétia de orgamento ¢ de legislagio. 72 ‘A evolugio, 20 mesmo tempo em que transfotmava a po- Iitica em uma “emprésa”, ia exigindo formagio especial daque- Jes que participavam da Iuta pelo poder ¢ que aplicavam os mé- todos politicos, tendo em vista os princfpios do partido moderno. A evolugio conduz, assim, a uma divisio dos funcionétios em duas categorias: de um lado, os funcionétios de carreira e, de outro, 0s funciondtios “politicos”. Nao se trata, por certo, de ‘uma distingao que faga estanques as duas categorias, mas ela é, nio obstante, suficientemente n{tida. Os funcionérios “politicos”, no sentido proprio do termo, sio, regra geral, reconheciveis ex- ternamente pela circunstincia de que é possivel deslocé-los a vontade ox, pelo menos “‘colocé-los em disponibilidade”, tal como ocorre com os préfets na Franga ou com funcionérios do mesmo tipo em outros paises. Tal situacio é radicalmente diversa da que tém os funcionarios de carreira de magistratura, estes “inamoviveis”, Na Inglaterra, € possfvel incluir na cate- goria de funcionérios politicos todos os que, por forga de con- vengio estabelecida, abandonam seus postos, quando tem lugar ume alteragao da maioria parlamentar e, por conseqiéncia, uma reforma do gabinete. Assim ocorre, habitual e especialmente, em relagio a0s funcionérios cuja incumbéncia ¢ a de-velar pela “administragio interna”, que é, essencialmente, “politica”, im- portando, antes de tudo, em manter a “ordem” no pais ¢ pot tanto, em manter o existente equilibrio de forcas. Na Prissia. apés 0 ordenamento de Puttkamer, os funcionétios, sob pena de serem chamados & ordem, eram obrigados a “tomar a defesa da politica do governo” e, 8 semelhanca dos préfets na Franca cram utilizados como instrumento oficial para influenciat as elei- es. No sistema alemao, contudo —— contrariamente ao que se dé em outros pafses — a maioria dos funcionirios “politicos” ficava submetida a uma regta que se aplicava a0 conjunto de funcionétios, ou seja a de que © acesso as fungdes administrati- vvas est sempre ligado a diplomas universitérios, a exames pro- fissionais ¢ a estégio preparatério. Essa caracterfstica especifica dos funcionétios modernos nfo tem vigéncia, na Alemanba, no que se refere aos chefes da organizacio politica, isto é, aos mi nistros. Sob o regime antigo, jé era possivel, na Prissia, que alguém se tornasse ministro dos cultos ou da instrugio, sem ter jamais freqientado um estabelécimento de ensino superior, 20 73 asso que, em princfpio, a posicio de conselheiro especial * sé estava aberta a quem houvesse obtido aprovacio nos exames prescritos. Um chefe de divisio administrativa ministerial ou conselheiro especial estavam, portanto e naturalmente — a0 tempo em que Althoff ocupava a pasta da Educagao na Prussia — muito mais bem informados do que os chefes de Departamen- to acerca dos problemas téenicos concretos, afetos a esse depar- tamento. E nao era diferente o estado de coisas na Inglaterra. Tal a raz4o por que funciondtio especializado € a mais pode- rosa personagem no que diz respeito aos trabalhos em curso. Em verdade, uma situacio dessas nada tem, por si mesma, de absurda. O ministro é, acima de tudo, o representante da cons- telagio politica instalada no poder; cabe-the, portanto, pér em prética o programa da constelagio de que faz parte, julgando, em fungio de tal programa, as propostas que Ihe séo oferecidas pelos funciondtios especializados ou dando a seus subordinados as diretrizes polfticas conformes @ linha de seu pattido. Numa empresa privada, tudo se passa de maneita semelhan- te. O verdadeito soberano, ou seja, a assembléia de acionistas esté, numa empresa privada, tio desprovida de influéncias so- bre’a gestéo dos negécios quanto um “povo” ditigido por fun- cionétios especializados. As pessoas que tém poder de decisio no que se refere a politica da empresa, isto é, os membros do “conselho de administragao”, dominadas pelos bancos, nao fa- zem mais que tragar as ditetivas econémicas e designar quem seja competente para ditigit a empresa, pois que elas prdprias ngo tém aptidio para getila tecnicamente. Desse ponto de vista, € evidente que néo constitui novidade alguma a estrutura atual do Estado revolucionéio, que entrega a diteso adminis- trativa a yerdadeitos diletantes, apenas porque estes dispoem de metralhadotas, © que nfo vé nos funcionitios especializados mais que simples agentes executivos. Nao é, portanto, por esse Jado, mas por outro que se impée buscar as causas das dificulda- des enfrentadas pelo sistema atual. Nao temos inten¢éo, entre- tanto, de abotdar esse ptoblema em nossa palestra de hoje. * * No original Vortragender Rat, alto funcionétio ministerial encar- regado da aptesentagio petiddica de ‘relatérios acerca das atividades do Grgaio em que servia. 74 Convém, agora, dirigir nossa atengio para os tragos par: ticulares dos politicos profissionais, tanto os que detém posigio de chefia, quanto seus seguidores. Aguéles tracos se tém al terado com o decusso do tempo e, ainda hoje, apresentam ma- tizes: variados. Como jé fizemos notar, os “politicos profissionais” surgi- ram, outrora, da luta que opunha o principe as “‘ordens” e logo se colocaram a servigo do primeiro. Examinemos, brevemente, os principais tipos. Para lutar contra as ordens, o principe buscou apoio nas camadas sociais politicamente disponiveis ¢ nfo comprometidas com'as mesmas ordens. A essa categoria pertenciam, em prime 0 lugar, os clérigos, tanto nas Indias orientais como nas oci dentais, na China e Japio, na Mongélia dos Lamas e nos paises ctistios da Tdade Média." Havia, para isso, uma razio técnica: tratava-se de pessoas que sabiam escrever. Recorreu-se aos bri- manes, aos sacerdotes budistas, aos Lamas ou aos bispos e sa- cerdotes, porque neles se encontrava um. pessoal administrativo potencial capaz de expressar-se por escrito suscetivel de ser utilizado pelo imperador, pelos principes ou pelo khan na huta que travavam contra a aristocracia. O sacerdote, e muito par- ticularmente o sacerdote celibatétio, colocavase & margem da agitacio provocada pelo choque de interesses politicos econdmi- cos préprios da época e, sobretudo, nfo estava tentado, como © vassalo, a conquistar, em detrimento de seu senhor ¢ no in- teresse de seus descendentes, poder politico préprio. Por sua condigao social, o sacerdate estava “privado” dos meios de ges- to, dentro do sistema administrativo do principe. A segunda categoria veio a ser constituida pelos letrados com formagio humanistica, Foi um tempo em que, para aspi- rar & posigéo de conselheizo do principe ¢, em especial, de histo- ridgrafo do principe, aprendia-se a fazer discursos em latim € poesias em grego. Foi a época de floragio inicial das escolas hrumantsticas e da fundacio, pelos seis, das cétedras de “poéti- ca”: época rapidamente ultrapassada entre nés, Teve, sem di vida influéncia duradoura sobre nosso sistema escolar, mas, em verdade, nio deu lugar a conseqiiéncias significativas no campo da politica. Coisa diversa, entretanto, ocorreu no Extremo- Oriente. © mandarim chinés é, ou melhor, foi, em sua origem, re

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