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São Paulo
2008
VOLUME 1
Ricardo Roclaw Basbaum
São Paulo
2008
VOLUME 1
2
________________________________________
________________________________________
________________________________________
________________________________________
________________________________________
3
para Dani,
amor & aventuras
4
Resumo
Nesta Tese, elaboro uma investigação acerca de meu projeto de trabalho Você
gostaria de participar de uma experiência artística?, em desenvolvimento desde
1994. Trata-se de um projeto que envolve aspectos de participação do espectador,
escultura e instalação, assim como uma abordagem do circuito de arte. A pesquisa
se desenvolve em duas etapas complementares: em um primeiro momento, é
elaborada a noção de Künstlertheorie ou Teoria de Artista, como procedimento de
trabalho que envolve ao mesmo tempo a produção de textos e de obras de arte,
articulando teoria e prática a partir de um sistema de revezamentos plástico-
discursivos; em um segundo momento, procura-se desenvolver o que seria a teoria
do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?, com a utilização
da chamada escrita de artista na elaboração de uma nova narrativa, que incorpora
diversos escritos já existentes – articulando, deste modo, formas visuais e
discursivas. Como resultado, é produzido um texto que ao mesmo tempo que se
inscreve como teoria de artista (Künstlertheorie), indaga acerca da possibilidade de
funcionar enquanto obra de arte.
Palavras-chave:
1. arte contemporânea
2. práticas participativas
3. artista como agente cultural
4. escultura
5. teoria de artista
5
Abstract
Key-words:
1. contemporary art
2. participatory practices
3. artist as cultural agent
4. sculpture
5. artist’s theory
6
Sumário
Volume I
Resumo ........................................................................................................ 4
Abstract ........................................................................................................ 5
Agradecimentos ........................................................................................... 7
Advertência .................................................................................................. 8
A: Künstlertheorie, Sistemas de revezamento plástico-discursivos ............. 15
B: 5 diagramas, extração conceitual ............................................................ 57
C: 8 blocos, escrita retro-prospectiva ...........................................................82
D: qual o lugar deste texto? ......................................................................... 206
Bibliografia ................................................................................................... 212
Volume II
Anexos
Você gostaria de participar de uma experiência artística? .......................... 5
Textos .......................................................................................................... 14
Imagens ....................................................................................................... 79
7
Agradecimentos
Advertência
a) o que é
NBP ?
é uma sigla, formada por três letras,
uma espécie de motivação geral ou pretexto
de trabalho (quase um programa para ações),
um meio para impregnação do espaço.
Quase um lugar-comum atópico.
NBP
impregna e contamina.
NBP
desenvolve-se através de três idéias-vetores principais:
1 imaterialidade do corpo
A matéria orgânica dissolve-se nos ritmos tecnológicos, na velocidade.
Corpos que podem ocupar muitos lugares no espaço ao mesmo tempo.
Temporalidades que impulsionam espaços; espaços que configuram-se
no tempo: continuidades e descontinuidades.
Nossos corpos transitando através destas oscilações.
2 materialidade do pensamento
O pensamento como algo que pode ser lançado, moldado, construído,
acumulado, recolhido, contraído, expandido, amassado, jogado,
corroído, revelado, ampliado, amplificado, estilhaçado, dissolvido, etc.
O pensamento envolve as coisas – entre elas existe a atmosfera,
com Oxigênio, Nitrogênio, Gás Carbônico, Enxofre, Chumbo, Alumínio,
9
3 logos instantâneo
É o conhecimento visual: arrebatador, súbito, envolvente, imediato,
instantâneo. Queremos nos instalar, pretensiosamente, dentro deste
intervalo mínimo, no interior da instantaneidade – melhor dizer ao
lado, mas do lado de dentro. Não como testemunhas, simples testemunhas
oculistas, mas como estratégia para a geração de outros processos,
múltiplos e variados, a partir deste lapso:
o intervalo de tempo entre meio emissor (Me - mensagem emitida)
e meio receptor (Mr - mensagem recebida):
∆t Mr - Me → Zero
NBP
é um programa para súbitas mudanças.
Quais? Como? Quando? Deixe-se contaminar:
elas serão fruto de seu próprio esforço.
NBP
Novas Bases para a Personalidade1
[1990]
1
Ricardo Basbaum, “O que é NBP?”. Apresentado em performance no evento CEP 20000 (Espaço
Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro, 1990). Publicado no folder de exposição individual na mesma
instituição, em fevereiro de 1993. Este texto também integra alguns objetos da série NBP.
10
b)
Basta aceitar utilizar, por um certo período, o objeto mostrado acima, para a
realização de experiências. Ele pode ser usado de diferentes modos e você
pode fazer qualquer coisa com ele: use-o como quiser, da maneira que achar
melhor. O objeto carrega alguns conceitos e eu gostaria que você também os
utilizasse. Apesar de invisíveis, eles são manipuláveis através do uso do
objeto. As experiências que você realizar tornam visíveis redes e estruturas
de mediação, indicando a produção de diversos tipos de relações e dados
sensoriais: os conjuntos de linhas e diagramas, trazidos ao primeiro plano a
partir de sua utilização, são mais importantes que o objeto.
2
Ricardo Basbaum. “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”. Versão inicial (1994)
publicada no folheto "Would you like to participate in an artistic experience?", que integrava a
instalação homônima apresentada no MA Degree Show, Goldsmiths' College, Londres, em setembro
de 1994. Apresentado, em português, na exposição "Escultura Carioca", Paço Imperial, Rio de
Janeiro, em novembro do mesmo ano. O texto acima mostra a versão mais atual, recentemente
distribuída na exposição Quase Líquido (Itaú Cultural, São Paulo, 2008), onde a instalação “Você
gostaria de particip[ar de uma experiência artística?” foi exposta.
12
II - Nas páginas seguintes, serão mobilizados os projetos NBP - Novas Bases para a
Personalidade (iniciado em 1989/90), e Você gostaria de participar de uma
experiência artística? (iniciado em 1994), indicando seu entrelaçamento – sendo que
o segundo se desenvolve no âmbito do primeiro, como um de seus principais casos.
A
15
***
3
Para uma descrição imediata de Você gostaria de participar de uma experiência artística?, V.
Anexo Textos.
4
No sentido de que a Tese atende especificamente a uma demanda da esfera acadêmica, definindo
sua forma final a partir de tal exigência.
16
5
Se Deleuze e Guattari têm a obra de arte como “bloco de sensações (...) composto de perceptos e
afetos”, “ser de sensação”, e o artista como “mostrador de afetos, inventor de afetos, criador de
afetos”, lembram também que “a sensação não é menos cérebro que o conceito”, e que pensar é
também “pensar (…) por sensações”. Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia?, São Paulo,
Editora 34, 2004, pp. 213, 253, 271.
17
6
Sentidos derivados do latim explico, as, avi, atum ou explicitum, are. Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001.
18
8
O. Calabrese, op.cit., p. 12.
9
Cf. Gilles Deleuze, “Para dar um fim ao juízo”, in Crítica e clínica, São Paulo, Editora 34, 1997, pp.
143-153.
10
Giulio Carlo Argan, “A crítica militante”, in Arte e crítica de arte, Lisboa, Editorial Estampa, 1988, p.
138.
11
Para a arte brasileira, dois exemplos se impõem de imediato: Ferreira Gullar e sua atuação junto ao
Neoconcretismo, sintetizada em Etapas da arte contemporânea – do cubismo à arte neoconcreta, Rio
de Janeiro, Revan, 1998; Ronaldo Brito e sua atuação junto a o grupo de artistas emergentes nos
anos 1970, tais como Waltércio Caldas, Tunga, Cildo Meireles e José Resende – Cf. Waltércio
Caldas. Aparelhos, texto de Ronaldo Brito, Rio de Janeiro, GB Editora de Arte, 1979.
20
Logo, se este texto quer se constituir de alguma forma como obra, confiando
em um duplo desenvolvimento plástico-conceitual e posicionando-se materialmente
ao lado das formas e forças em jogo, é porque, de alguma maneira, aprendeu a se
constituir a partir das articulações do jogo crítico-discursivo apontadas acima,
desdobrando-as. É preciso deixar claro, entretanto, que a qualquer autor não
interessa ocupar de modo sumário a posição de crítico-de-si-mesmo: a obra busca
sempre relações de alteridade, e nesse sentido envolve-se em mecanismos de
produção de um outro enquanto ‘espectador’ idealizado e ao mesmo tempo real –
mas nunca pronto, fixo, espécie de alvo ao qual toda obra de arte deveria tender (a
opção generalista seria, é claro, uma operação desempenhada pelo mercado,
visando normalizar um contingente social de consumidores estáveis, garantindo
constante margem de lucro) –, espectador que, em seu papel ativo, também irá
operar certa constituição da obra, atualizando-a. O crítico de arte, enquanto especial
espectador convertido em autor, agente de uma inscrição poética com a qual
colabora diretamente (como vimos acima), funciona assim, de modo decisivo, dentro
das relações de alteridade da obra. Nesse trânsito de alteridades, que fundamenta o
discurso crítico, restaria então ao artista deixar-se permear pelo que Maurice
Blanchot chama de uma “relação de terceiro tipo”, em que “a presença do outro não
nos remeteria nem a nós-mesmos, nem ao Uno” (no sentido de “reduzir o Outro à
verdade do Sujeito”)13: ou seja, envolver as qualidades relacionais da “estranheza”,
“interrupção”, “puro intervalo” e “exterioridade” como deflagradores da produção
desta fala do outro, da constituição de outrem: “quando Outrem me fala, ele não me
fala como eu”, “a relação de outrem a mim não é uma relação de sujeito a sujeito”14.
12
Desenvolvi este tópico em minha dissertação de mestrado, publicada sob o título de Além da
pureza visual, Porto Alegre, Zouk, 2007, sobretudo no capítulo “Migração das palavras para a
imagem”, pp.23-41.
13
Maurice Blanchot, “A relação de terceiro tipo”, in A conversa infinita, São Paulo, Escuta, 2001, pp.
119-120.
14
M. Blanchot, op.cit., 122-124.
21
(d) o lugar de uma teoria da arte seria talvez um pouco mais apropriado para este
texto, uma vez que então se preocuparia em apresentar desdobramentos próprios –
com a intensidade e pragmatismo de uma Tese – ali mesmo, naquele território
híbrido descortinado pela arte moderna, “fundada, exatamente, a partir da
possibilidade de encontro de objetos que se pretendem pura e completamente
visíveis com um campo enunciativo que, adequadamente, posiciona-se junto destes
objetos, atravessando-os.”16 Pois é a partir do Romantismo, com sua quebra de
referências em relação ao classicismo e a acentuação das etapas para o
delineamento de uma autonomia da arte, que “as teorias da arte por artistas primeiro
apareceram”17. De acordo com Michael Lingner, existe uma particularidade na teoria
da arte por artistas – anotada por ele como Künstlertheorie, e adotada aqui como
teoria de artista, numa possível tradução – que deve ser percebida em seus
aspectos de “continuidade e referência histórica” e transformada em “objeto de
pesquisa analítico-científica, para estudo detalhado de suas formas individuais”,
dentro do campo de uma teoria da arte.18 Lembrando que “o fenômeno das teorias
de artista em sua forma moderna se desenvolveu e, de várias maneiras, formatou o
trabalho de muitos dos mais importantes artistas modernos e de vanguarda”, o autor
15
M. Blanchot, op.cit., 128-130.
16
R. Basbaum, op.cit., p.26.
17
Michael Lingner, “Reflections on / as Artists' Theories“, disponível em http://ask23.hfbk-
hamburg.de/draft/archiv/ml_publikationen/kt06-3ae.html. Lingner é escritor e artista alemão, professor
de Teoria e História da Arte da Hochschule für bildende Künste Hamburg, onde desenvolve cursos,
seminários e pesquisas com particular ênfase nos aspectos metodológicos e pragmáticos da teoria da
arte de artista e relações entre arte e teoria, discutindo a “escrita como obra” e a “teoria como prática
manual”.
18
M. Lingner, op.cit.. As citações subseqüentes, salvo quando mencionado, provêm do mesmo
ensaio.
22
19
Entretanto, é claro que o esforço de um artista por explicitar conceitualmente a(s) teoria(s) que
continuamente tece e desfia em conjunto com sua obra deverá necessariamente construir uma
diferença, sobretudo nos termos de uma tomada de posição em relação a um circuito ou sistema de
arte e a abertura de negociações quanto à configuração de uma imagem de artista – como veremos
adiante.
23
“Do mesmo modo que os filósofos concluíram que se imagina tudo a partir de
si mesmo, também vemos ou devemos ver em cada flor o espírito que o
homem ali colocou, e é assim que a paisagem irá se desenvolver, como se
todas as flores e animais estivessem apenas presentes pela metade, a menos
que o homem faça a sua parte. Assim, o homem força seus sentimentos e
sensações de encontro aos objetos a sua volta e, através disso, tudo adquire
sentido e uma linguagem.”23
22
“Kunstwerkes des Geistes”. Lingner cita o poeta, escritor e crítico Ludwig Tieck, quando este se
refere ao pintor Sternbald, personagem principal de sua novela Franz Sternbalds Wanderungen
(1798): “Não quero copiar árvores e montanhas, mas meus sentimentos e humores, que me
emocionam neste momento; é a isto que quero me apegar e comunicar a todos que possam
compreender”.
23
Philipp Otto Runge, Hinterlassene Schriften, Göttingen, 1965. Citado por M. Lingner, op. cit..
24
M. Lingner, op.cit.. mesma referência para as citações subseqüentes.
25
práticas são mobilizadas em relação quase terapêutica (ou seja, com reflexos
diretamente na constituição de uma corporeidade, revelando um cuidado de si),
gerando não uma compilação de textos no sentido convencional mas um “espólio
teórico” que, mais do que um corpo teórico coerente e linear, propõe “uma forma de
prática artística diferente”, “uma forma especial de trabalho” (…) “entre exercícios
mecânico-manuais” e “experimentos estético-criativos”26. Sem dúvida, a atitude de
Hölzer demonstra o permanente cuidado, por parte de um artista pós-impressionista,
em expandir as possibilidades de investigação da visualidade, colocando-a em
contato com regiões próprias à presença da palavra, envolvendo ambas em
operações de passagem entre plástico e discursivo. É interessante e significativo
perceber que há aí algo de uma conquista – no sentido de uma contaminação
recíproca – em que o corpo do artista se deixa tomar pelos ritmos de uma pesquisa
visual que funciona integrada a uma investigação de si e do papel do artista. Se os
territórios de enunciados e visualidades são percebidos – e vivenciados – como
mundos absolutamente à parte um do outro, esta é uma conquista moderna; a qual
é acompanhada (e isto é muito importante) de uma poética e de uma política das
relações entre um e outro domínio. Para o artista que aí se inscreve, é fundamental
indicar com clareza em quais termos se estabelece o entrecruzamento proposto
entre os dois campos.
26
M. Lingner, op.cit..
27
época o permitir.”27
27
Wassily Kandinsky, Ponto, linha, plano, Lisboa, Edições 70, 1987, p. 141. A primeira edição data de
1926.
28
W. Kandinsky, “Introdução”, in op.cit., p. 31.
29
W. Kandinsky, “Prefácio à primeira edição”, in op.cit., p. 21. Este pequeno texto é datado como
“Weimar, 1923” e “Dessau, 1926”.
30
“Iniciando sua produção artística significativa em disputa direta com os limites da pintura cubista
(segundo Argan, a tela Nu Descendo a Escada nº 2 [1912-16] põe em crise o cubismo analítico),
Duchamp procura ‘colocar a pintura à serviço da mente’, concebendo uma pintura-idéia como ato
extremo de sua fuga anti-retiniana – pintura que é também objeto, organizada com consciência da
materialidade do suporte: sua principal obra, A Noiva Despida por seus Celibatários, mesmo (1915-
23), o Grande Vidro, revela a estratégia de impregnação de um objeto plenamente visual por um
campo enunciativo sincrônico. A edição, em 1934, da Caixa Verde – contendo 93 notas, cálculos,
28
desenhos e anotações realizadas durante o processo de elaboração do Grande Vidro – torna claro
que texto e imagem funcionam como simultaneidades diferenciadas que se superpõem, evitando uma
apreciação puramente retiniana. Do mesmo modo, ao referir-se aos trocadilhos, com que
freqüentemente nomeia suas obras, como ‘jogos de palavras tridimensionais’, Duchamp caracteriza
uma estrutura verbal com presença no espaço, estabelecendo em relação ao objeto plástico um
procedimento discursivo disjuntivo, em que as conexões palavra/objeto são retraçadas a partir das
marcas produzidas por cada uma das matérias sobre a outra, no vazio deixado pela ruptura de uma
adequação natural entre ambos os campos. A possibilidade de trabalhar a dimensão conceitual da
obra, sem prejuízo da autonomia plástica, é um dos fatores decisivos na ampliação do campo da arte
durante os anos 60.” R. Basbaum, op. cit., pp. 33-34.
29
31
W. Kandinsky, “Introdução”, in op.cit., pp. 27-28.
30
Creio ser interessante indicar aqui um dos registros através do qual tal
formalismo visual-discursivo teria se desdobrado: a própria (auto)compreensão da
arte conceitual como devedora da linhagem histórica das vanguardas, localizando-se
32
M. Lingner, op.cit..
31
como um dos seus últimos desdobramentos – o principal sintoma, seria, sem dúvida,
o recurso à história da arte como topos de afirmação de sua presença frente às
ações de intervenção em seu contexto de atuação: efetivamente, diversos de seus
principais agentes (mesmo que demarcando posições discordantes entre si) têm
ainda a história como fator impulsionador de uma ‘ruptura’ conceitual, manifestando
nesse sentido uma compreensão modernista de seus gestos – mesmo que seja para
lançar a arte, daí para frente, diretamente para o campo contemporâneo ou pós-
moderno, menos linearizantes. Os escritos de época trazem marcas (muitas vezes
dispersas, mas efetivamente presentes) de uma inscrição evolutiva e histórica,
reivindicando uma pureza de meios e análise de limites formais, que serão as
referências para a transformação pretendida:
“o século XX trouxe à tona uma época que poderia ser chamada ‘o fim da
filosofia e o começo da arte’ (…) Com o readymade não-assistido, a arte
mudou seu foco da forma da linguagem para o que estava sendo dito. Isso
significa que a natureza da arte mudou de uma questão de morfologia para
uma questão de função. Essa mudança – de ‘aparência’ para ‘concepção’ –
foi o começo da arte ‘moderna’ e o começo da arte ‘Conceitual’. Toda arte
(depois de Duchamp) é conceitual (por natureza, porque a arte só existe
conceitualmente.”33
33
Joseph Kosuth, “Arte depois da filosofia”, in Glória Ferreira e Cecilia Cotrim (Orgs.), Escritos de
artistas – anos 60/70, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2006, pp. 212, 217.
34
Art & Language, “Arte-linguagem”, in G. Ferreira e C. Cotrim (Orgs.), op. cit., p. 248.
32
Podemos afirmar que toda arte até nossos dias só foi criada, por um lado,
empiricamente e, por outro, com base em um pensamento idealista. Se ela
puder se repensar ou se pensar e se criar teoricamente/cientificamente, a
ruptura será consumada e, por isso mesmo, a palavra arte terá perdido as
significações – numerosas e divergentes – que se prendem a ela até o
presente. Podemos dizer sobre o que precede que a ruptura, se ruptura
houver, só pode/só poderá ser epistemológica.”35
Sabe-se que a arte conceitual desempenha papel importante frente à crise da arte
moderna, contribuindo para a chamada ampliação do campo da arte contemporânea
e a definição das operações artísticas para além dos limites formais e materiais36: ao
realizar significativo processamento da herança duchampiana (em sua fuga do
esteticismo, ênfase em operações metodológicas não formais e utilização da
palavra) e desenvolver uma consciência sem precedentes em relação aos
mecanismos não-visuais legitimadores da obra de arte, aponta para um ‘futuro’ da
arte não mais determinado por categorias de execução formal-visual – já estavam
em marcha, desde meados dos anos 1950, decisivas transformações em torno de,
entre outros aspectos, uma autonomia da obra que fosse permeável ao seu entorno,
um funcionamento enquanto intervenção no circuito de arte e no campo da cultura,
uma imagem do artista que constitui sua subjetividade de modo público,
exteriorizante, além da auto-expressão, uma fruição ativa e participativa por parte do
público.37 Nesse sentido, é bastante útil a lembrança de Michael Lingner de que
“desde a Revolução Francesa, que arrancou o poder da nobreza e da igreja, criando
as bases para sua autonomia social, a arte trabalhou para afirmar sua própria
35
Daniel Buren, “Advertência”, in G. Ferreira e C. Cotrim (Orgs.), op. cit., pp. 260-261.
36
Entre outras fontes, registramos aqui quatro ensaios, como referências precisas e pontuais ao
problema da transição entre moderno e pós-moderno. Cf. Harold Rosenberg, “Desestetização”, in:
Gregory Battcock (Org.), A Nova Arte. São Paulo, Perspectiva, 1975; Mário Pedrosa, “Arte ambiental.
Arte pós-moderna, Hélio Oiticica”, in Hélio Oiticica, Aspiro ao grande labirinto, Rio de Janeiro, Rocco,
1986; Ronaldo Brito, “O Moderno e o Contemporâneo (o novo e o outro novo)”. In: Arte Brasileira
Contemporânea - Caderno de Textos 1, Funarte, Rio de Janeiro, 1980; Rosalind Krauss, “A Escultura
no Campo Ampliado”, Gávea, Rio de Janeiro, n. 1, [s.d.].
37
Estas transformações são claramente impulsionadas pelos artistas Jasper Johns, Robert
Rauschenberg, Yves Klein e Piero Manzoni. Cf. Ricardo Basbaum, “Quatro características da arte nas
sociedades de controle”, in R. Basbaum, op. cit., pp. 87-106.
33
autonomia estética” – a qual, afinal, “a arte deve conquistar por si própria”38 através
de suas proposições, configurações e construções. Assim, indicando uma seqüência
de etapas que perfazem o caminho desta gradual construção de um objeto estético
ao mesmo tempo plástico e conceitual (seja material ou desmaterializado), Lingner
vê “este processo emancipatório dividido em fases de autodeterminação que, de
modo geral, podemos denominar como autonomia de conteúdo, forma, gosto e
conceito”, expondo, brevemente, o seguinte desenvolvimento:
39
M. Lingner, op.cit..
40
Célebre termo cunhado por Harold Rosenberg. Cf., deste autor, A Tradição do Novo. São Paulo,
Perspectiva, 1974.
41
Hans Belting, “Ciência da arte e vanguarda”, in O fim da história da arte, São Paulo, Cosac Naify,
2006, p. 197.
35
42
V. notas de nº 30, 31 e 32.
43
J. Kosuth, op.cit., pp. 217-227.
44
Joseph Kosuth, “Painting versus art versus culture (or, why you can paint if you want to, but it
probably won’t matter)”, in Joseph Kosuth, Art After Philosophy and After - Collected Writings, 1966-
1990, Cambridge, MIT Press, 1991, pp. 91-92.
45
J. Kosuth, “Statement from Information”, in J. Kosuth, op.cit., p. 74.
46
J. Kosuth, “Context text”, in J. Kosuth, op.cit., p. 84.
36
“Se há uma teoria para um pintor, é na sua pintura/prática que ela surgirá. O
texto permite ainda falar o que a pintura não pode, já que ela só se apreende
pelo olhar. O texto permite também, no domínio da arte (reservado ao
47
D. Buren, op.cit., p. 261.
48
Daniel Buren, “A arte não é mais justificável, ou os pingos nos is”, in Paulo Sérgio Duarte (Org.),
Daniel Buren – textos e entrevistas escolhidos (1967-2000), Rio de Janeiro, Centro de Artes Hélio
Oiticica, 2001, pp. 25-29.
37
Ou seja, “é preciso entender muito bem que por teoria, como produtor, apenas o
resultado apresentado/pintura é teoria ou prática teórica”50.
O que nos interessa aqui é que tanto Kosuth como Buren, de modos diversos,
atestam o reconhecimento e o cultivo de um local de trabalho para a dimensão
discursiva, reconhecida como um componente da obra de arte: há uma prática da
palavra, do texto, da escrita ou do discurso, o qual não é mais acessório ou apoio
teórico para a obra, integrando-a em algum universo de sentido, mas elemento que
participa de um mesmo gesto de intervenção. Se, para Kosuth, há a descoberta da
“interdependência” entre texto e obra, Buren acessa a mesma questão a partir de
sua contundente afirmação de que “a arte não é mais justificável”51, sendo então
necessário empreender esforço teórico discursivo para reconquistar a possibilidade
da ação forte da obra. Trata-se de trabalhar na região de sentido e significado, e isso
implica em considerável esforço de articulação ‘teórica’: não se trata de deixar a
obra para assumir algum outro papel (escritor, crítico, teórico), mas encontrar ali na
prática da construção da obra a formação mesma da teoria, como indica Buren.
Pouco importa se Daniel Buren expressa a lúcida advertência de que textos não
49
Daniel Buren, “Por que textos, ou o lugar de onde intervenho”, in P. S. Duarte (Org.), op.cit., pp. 84-
87.
50
Daniel Buren, “Advertência”, in G. Ferreira e C. Cotrim (Orgs.), op. cit., p. 261.
51
A frase cunhada por Kosuth, de sentido similar, foi: “o significado da arte estava em crise”. Cf.
Joseph Kosuth, “Painting versus art versus culture (or, why you can paint if you want to, but it
probably won’t matter)”, in J. Kosuth, op.cit., p. 90.
38
substituem obras: é claro que o artista precisa enfatizar a força da presença plástica,
em sua materialidade (seja ela qual for) enquanto obra (e, nesse ponto, o artista
francês é mais esclarecedor que Kosuth), a qual não é ‘texto’, em seu sentido literal
e imediato, solicitando outra operação do olhar que não a simples leitura; é preciso
perceber que o reconhecimento da “heterogeneidade” das matérias visual e
discursiva é fator que – ao contrário – enfatiza sua maior proximidade e manuseio
conjunto, uma vez que há a consciência de sua “pressuposição recíproca”52 – e
então as operações textual e plástica estarão sempre remetendo o “espectador-
leitor”53 de uma para a outra (desenvolvendo, portanto, a capacidade deste se
constituir a partir deste deslocamento perceptivo). Assim, percebe-se que ambos os
artistas trabalham de modo a reconhecer um ‘fundo comum’ de imagens e palavras
(história da arte + história da literatura + história da filosofia?) do qual se servem no
ritmo próprio de seus processos de trabalho, atendendo às demandas de seu
programa poético e da intervenção pretendida: claro que não se trata da conquista
de uma mobilidade segura e tranqüila entre ‘teoria’ e ‘prática’, discurso e visibilidade
– afinal, como apontou Michel Foucault, segundo Deleuze, ambos os campos
estabelecem entre si uma relação de permanente tensão:
52
Trazemos aqui referência à importante “teoria dos enunciados” de Michel Foucault, que pode ser
resumida em três tópicos principais: enunciados e visibilidades estão em “pressuposição recíproca”;
consistem em “formas heterogêneas” que não possuem nenhuma região comum; desenvolvem
permanente condição de heterogeneidade das matérias e portanto somente podem operar a partir do
“combate e captura” recíproco entre as duas práticas. Gilles Deleuze lembra que, para Foucault, o
saber é “bi-forme”, atravessado por “práticas discursivas de enunciados e práticas não-discursivas de
visibilidades”. Cf. Michel Foucault, Isto não é um cachimbo, São Paulo, Paz e Terra, 1988, e Gilles
Delueze, Foucault, São Paulo, Brasilense, 1988. Esta proposição de Foucault é referencial para o
estudo Além da pureza visual, de minha autoria, já referido aqui.
53
A expressão “reader-viewer” é empregada por Gabriele Guercio em sua introdução ao livro de
escritos de Joseph Kosuth. Cf. Gabriele Guercio, “Introduction”, in J. Kosuth, op. cit., pp. xxi-xlii. De
minha parte, impulsionado por esta sugestão, indiquei a possibilidade deste “espectador-leitor”
realizar o ato de “Vler” ou “Lver”, a partir da convergência e simultaneidade das ações de ‘ver’ e ‘ler’.
Cf. Helmut Batista e Ricardo Basbaum, G. x eu (entrevista), Rio de Janeiro, Espaço P, 1998. (folder
de exposição). Documento incluído no Anexo desta Tese.
54
Michel Foucault apud Gilles Deleuze, Foucault, São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 75.
39
“Suponhamos que a seguinte hipótese seja proposta: que este editorial, ele
mesmo uma tentativa de delinear alguns esboços do que é ‘Arte Conceitual’,
seja considerado um trabalho de ‘Arte Conceitual’”.55
“em uma variedade de trabalhos textuais, de 1967 a 1971, Art & Language
apresentou uma ampla gama de especulações – que constituíram seu
trabalho em arte – acerca das condições de individuação de um grupo de
55
Art & Language, “Arte-linguagem”, in G. Ferreira e C. Cotrim (Orgs.), op. cit., p. 236.
40
56
Paul Wood, “Art & Language: wresting the angel”, in Arte & Language, Paris, Jeu de Paume, 1993
(catálogo de exposição), p. 24.
57
Art & Language, “Arte-linguagem”, in G. Ferreira e C. Cotrim (Orgs.), op. cit., p. 238.
58
Veremos, em outra parte desta Tese, como José Gil se aproxima do problema de modo muito mais
efetivo e produtivo. Cf. José Gil, A imagem nua e as pequenas percepções – estética e
metafenomenologia, Lisboa, Relógio D’Água, 1996.
41
59
“A arte moderna é caracterizada por uma certa confusão entre arte e filosofia, a qual tem suas
origens no Romantismo Alemão. A megalomania autoreferente do “116º Athenäum Fragment”, de
Friedrich Schlegel, é o modelo original para os manifestos de todos os movimentos de arte do Século
XX. E a corrente filosófica da arte conceitual tem um importante precursor no idealismo de Fichte e
Schelling – uma tradição filosófica que, como imediatamente notou Novalis, pode ser vista como
artística.” Remko Scha (Institute of Artificial Art Amsterdam), “Theory as Art as Theory”, disponível em
http://radicalart.info/concept/hegel.html.
60
Art & Language, “Arte-linguagem”, in G. Ferreira e C. Cotrim (Orgs.), op. cit., p. 243. A tradução
“metacamadas da arte-linguagem” foi aqui modificada para uma solução que nos parece estar mais
de acordo com o original “meta-strata of art-language”, além de remeter diretamente ao léxico de
Deleuze-Guattari, ao qual recorremos em diversos momentos e perpassa esta Tese. Cf. Editors of
Art-Language, “Introduction”, in Alexander Alberro and Blake Stimson (Orgs.), Conceptual Art: a
critical anthology, Cambridge, MIT Press, 1999, p. 102.
42
que importa é o alinhavo que o artista constrói entre as práticas, fazendo, das duas,
uma: o artista tendo como condição de trabalho esta dupla articulação – do mesmo
modo que a Arte Conceitual investiu em uma maciça teorização da arte, seria
preciso sensorializar a teoria, desinvestindo-a do reducionismo formal e
configurando a prática da arte como este fazer duplo.
Para estes artistas não há dúvida de estar se construindo uma outra imagem
do artista, não voltada para a produção seriada e acrítica de objetos estéticos, mas
ocupada nesta dupla investigação e responsável pela produção de trabalhos atentos
à quádrupla autonomia, configurando a obra também em seus contornos ditos
imateriais – mas que se inscrevem na cuidadosa pesquisa teórico-discursiva que
aponta os limites, o sentido e a natureza do campo investigado. Em ligação direta
com a afirmação de Duchamp de que o artista moderno, após Courbet, é um
“cidadão livre” e que “o jovem artista de amanhã (…) como Alice no País das
Maravilhas (…) será conduzido a atravessar o espelho da retina, para alcançar uma
expressão mais profunda”61, a postura de Kosuth, por exemplo, se alinha em direção
à “imagem do artista como um intelectual que, consciente de não ser nem pintor
nem escultor, identifica o fazer da arte com um conhecimento da dinâmica que torna
a arte possível”62. É claro que este ‘novo artista’ que vai sendo elaborado através
das diversas aventuras da arte dos anos 1960/70 – passando pelo artista intermídia
Fluxus, pela configuração artista-pop de Warhol, pelo an-artista de Allan Kaprow
(que ao desenhar seu conceito trabalha ainda as categorias de anti-artista, não-
artista e artista-artista, desenvolvendo-as historicamente e em suas relações com o
circuito de arte)63, pelo artista da body-art (Vito Acconci e Chris Burden seriam bons
exemplos), assim como pelas contribuições de Lygia Clark e Hélio Oiticica e suas
trajetórias alheias à institucionalização da arte e seu sistema, em processo de
aceleração durante toda a década – não tem sua engenharia dominada
61
Marcel Duchamp, “Where do we go from here?”, apresentado em Simpósio no Philadelphia
Museum College of Art, em março de 1961 e publicado pela primeira vez em Studio International,
1975, número especial dedicado a Duchamp. Disponível em
http://www.msu.edu/course/ha/850/Where_do_we_go_from_here.pdf.
62
G. Guercio, “Introduction”, in J. Kosuth, op. cit., p. xxiv.
63
Cf. Allan Kaprow, “The education of the an-artist, Parts I, II and III”, in Allan Kaprow, Essays on the
blurring of art and life, Berkeley, University of California Press, 1993, pp. 97-109, 110-126 e 130-147,
respectivamente.
43
65
Tópicos extraídos de Gilles Deleuze (com Michel Foucault), op.cit..
45
67
Estamos próximos aqui do que Brian Holmes denomina “extradisciplinar”: ferramenta conceitual
que assinala “um novo tropismo e um novo tipo de reflexividade, envolvendo artistas, teóricos e
ativistas em uma passagem para além dos limites tradicionalmente consignados a suas práticas. O
termo tropismo expressa o desejo ou necessidade de se voltar em direção a algo mais, em direção a
um campo ou disciplina exterior; enquanto que a noção de reflexividade agora indica um retorno
crítico ao ponto de partida, uma tentativa de transformar a disciplina inicial, acabar com seu
isolamento, abrir novas possibilidades de expressão, análise, cooperação e engajamento. Este
movimento de ida-e-volta, ou melhor, esta espiral transformadora, é o princípio operacional do que
chamo investigações extradisciplinares.” Brian Holmes, “Extradisciplinary investigations: towards a
new critique of institutions”, disponível em http://transform.eipcp.net/transversal/0106/holmes/en/print.
47
duplas-pinças por toda parte, double-binds, lagostas por toda parte, em todas as
direções, uma multiplicidade de articulações duplas…”), procurando indicar uma
modalidade de ação sobre o mundo – e de constituição de pensamento – que opere
de forma não dialética, dualista ou biunívoca, atenta à percepção dos “estratos (…)
em estado de pressuposição recíproca, disseminado-se um no outro, com
agenciamentos maquínicos de duas cabeças estabelecendo correlações entre seus
segmentos.” Ainda, “não se deve jamais confrontar palavras e coisas supostamente
correspondentes, nem significantes e significados supostamente conformes, mas
sim formalizações distintas, em pressuposição recíproca e constituindo uma dupla
pinça”68. Para os dois autores, o importante é ter clara a concepção de que “toda a
articulação é dupla”, e que os termos articulados não apresentam correspondência
ou conformidade, “mas sim formalizações distintas em estado de equilíbrio instável
ou pressuposição recíproca”:
70
José Gil indica de modo brilhante a condição sensível do olhar pós-duchampiano, mostrando que
“o olhar implica uma atitude”: “como seria o corpo visível (…) se não fosse visto por outrem? (…) [S]e
o vejo vendo, se o meu corpo se oferece à partida à vista de outrem, é porque o sei capaz de olhar –
porque o meu olhar olhando-o olha o seu olhar. É o olhar que provoca a reflexão do visível: é preciso
que o meu olhar se reflita no olhar do outro para que eu me veja nele e para que, ao mesmo tempo,
nele veja um olhar outro. (…) olhar é antes do mais olhar um olhar. (…) A sua recepção é a sua
emissão. (…) o olhar reflete o não-visível porque se desdobra ao mesmo tempo como emissor e
receptor.” Gil pretende ultrapassar a fenomenologia de Merleau-Ponty em direção a uma
metafenomenologia, que possa dar conta da experiência estética contemporânea (após Duchamp e
Beuys): “O que é então a percepção da obra de arte? Nem um misto de prazer e cognição, nem um
ato que visa um fenômeno particular, visível, e cuja descrição deverá recorrer necessariamente a
conceitos clássicos da teoria do conhecimento; mas um tipo de ‘experiência’ que se caracteriza,
precisamente, pela dissolução da percepção (tal como é tradicionalmente descrita). O espectador vê,
primeiro, como espectador (ou sujeito percepcionante) para, depois, entrar num outro tipo de conexão
(que não é uma ‘comunicação’) com o que vê, e que o faz ‘participar’ de um certo modo na obra. O
que requer todo um outro campo de descrição: deste ‘participar’, desta ‘dissolução’ do sujeito, etc.
Não convém pois falar em ‘percepção estética’, mas num outro tipo de ‘fenômenos’ ou de
‘acontecimentos’. É, de resto, pela idéia (deleuziana) de acontecimento que a metafenomenologia
abre seu campo próprio.” José Gil, op. cit., pp. 17-18, 47-50.
71
Parafraseando Michel Foucault que, na referida conversa com Deleuze, comenta: “Esta dificuldade
– nosso embaraço em encontrar as formas de luta adequadas – não virá de que ainda ignoramos o
que é o poder? Afinal de contas, foi preciso esperar o século XIX para saber o que era exploração;
mas talvez ainda não se saiba o que é o poder.” Gilles Deleuze (com Michel Foucault), op. cit., p. 270.
49
(e) a presença deste texto como obra de arte não pode se perfazer enquanto um
simples conjunto qualquer de instruções ou programa, indicando algum modo de
funcionamento. Certamente que sua atuação nesta direção se dará por algum tipo
de conexão ou articulação que ultrapassa a condição de discurso hipertrofiado
Também Deleuze expressou indagação similar, ao nomear seu último livro (com Guattari) como O
que é a filosofia?. Vale enfatizar que ambos os (três) pensadores valorizavam o aberto e o lado de
fora.
50
72
“Na cadeia de relações que acompanham o ato de criação falta um elo. Esta falha que representa a
inabilidade do artista em expressar integralmente a sua intenção; esta diferença entre o que quis
realizar e o que na verdade realizou é o ‘coeficiente artístico’ pessoal contido na sua obra de arte. (…)
o ato criador não é realizado pelo artista sozinho (…).” Marcel Duchamp, “O ato criador”, in Gregory
Battcock (Org.), A nova arte, São Paulo, Perspectiva, 2002, pp. 73-74.
51
corpo de questões que a obra; entretanto, ele pode e deve, em certo sentido,
ser lido completamente em separado dos trabalhos plásticos, uma vez que
deve demarcar um terreno próprio de atuação, completamente diverso. A
convergência entre as duas áreas, neste caso, deve ser construída a partir da
presença dos contornos dos dois espaços, como ações autônomas, e só a
partir daí – em outro esforço – estabelecer os fluxos, as fluências entre elas,
em iluminações recíprocas.”73
73
R. Basbaum, op. cit., p. 20.
74
Tradução do título do artigo que tomamos agora como referência: Robert Smithson, “A museum of
language on the vicinity of art”, in Robert Smithson: The Collected Writings, Jack Flam (Ed.),
University of California
Press, 1996, pp. 78-94 (originalmente publicado em Art International, março 1968).
52
75
Laputan: que pertence a Laputa, a ilha dos filósofos de As viagens de Gulliver (1726) de Jonathan
Swift; absurdo; não-prático; visionário; fantástico. Nota-se a origem espanhola (“la puta”) da
expressão de Swift.
76
Smithson se refere diretamente a alguns artistas, dos quais traça pequenos perfis de como
organizam a escrita e como se relacionam com o discurso ou fala (no caso de Andy Warhol). Os
artistas mencionados são: Dan Flavin, Carl Andre, Robert Morris, Donald Judd, Sol LeWitt, Ad
Reinhardt, Peter Hutchinson, Dan Graham, Andy Warhol, Edward Ruscha e Charles R. Knight.
53
sem dúvida seria aqui apontar que existe a produção de algo em dinâmica particular,
resultando em efeitos e movimento: ou seja, para a escrita de artista (e, em maior
escala, a Künstlertheorie) vale como produção de valor não a coerência linearizante
ou racional da sintaxe, mas as vibrações de um sentido que se produz no modo do
risco, quando o artista se perde nos “corredores da história” ou em “vácuos de
conhecimento”. Trata-se muito mais da produção de palavras que se antepõem às
coisas (cobrem e velam) sem simplificá-las à luz da explicação, e que, logo,
funcionam em direta articulação com as obras – em proximidade e articulação junto
à busca poética que mobiliza a trajetória investigativa e exploratória de cada artista.
É interessante observar que a massa de produção discursiva por artistas deve
constituir seu próprio museu “monstruoso” e “multifacetado”, próximo, adjacente,
vizinho à arte – mas outro edifício. O artista seria aquele que se relaciona com duas
arquiteturas (“arquiteturas e contra-arquiteturas”), produzindo uma dupla intervenção
no edifício do conhecimento – plástica e discursiva, sendo que este “trêmulo edifício
de ficções que sustenta arranjos sintáticos invertidos” apenas adquire dinâmica
própria no estabelecimento cuidadoso de suas relações com as obras ou mesmo em
sua condição de funcionamento enquanto tal: daí o museu da linguagem – como
quer Smithson – ser necessariamente vizinho da arte enquanto seu outro ou contra-
museu. Mas, sobretudo, se o apetite discursivo dos artistas é convertido em museu,
este se configura enquanto infinito e sem limites – e esta característica se torna
mesmo a principal da condição de possibilidade de tal prática: pois não há como a
articulação teoria-prática ser condicionada a priori, quando ela se dá em tão precisa
e sensível proximidade entre as práticas visuais e discursivas, em constante
combate recíproco; e é exatamente a medida de tal articulação que pode apontar os
limites locais, regionais, de como se dá a operação textual. Estes “limites em parte
alguma” (Smithson/Pascal) são constituídos a partir do deslocamento do “centro”
impulsionador das poéticas – esse agregado verbivocovisual –, que está “em toda
parte”, para o local da intervenção pretendida. De fato, uma aventura sem receituário
prévio, mergulho no encadeamento das palavras em busca de que se perca o
sentido habitual produzido na linearidade da sintaxe, apostando em reencontrá-lo na
combinação e articulação conjunta plástico-discursiva.
54
O ambiente dinâmico indicado por Robert Smithson não se constitui sem sua
significativa constatação de que é necessário um rearranjo do componente ’ficcional’
– não apenas em direta relação com a prática discursiva mas sobretudo enquanto
portador de possibilidades de deslocamento do artista. Smithson combate as
oposições ficção x realismo e romantismo x materialismo, considerando-as
incorretas, já que os termos em cada par “compartem ‘superfícies’ similares”: seria
preciso, portanto, recuperar seus pontos de contato, sem os quais realismo e
materialismo, por exemplo, permanecerão prisioneiros de uma estrita racionalidade
que impediria “a estética de ajustar-se com o local da ficção em todas as artes”,
resgatando-a assim (a ficção) de seu aprisionamento na literatura, como quer o
senso-comum. Smithson propõe um duplo deslocamento: por um lado, arrancar a
“ficção” de seu resguardo estritamente literário, propagando-a por todos os outros
campos expressivos; e, por outro, afirmar a importância das coisas ‘naturais’ e das
pequenas “fatias de vida” [slices of life] cotidianas, perdidas no racionalismo realista
que afinal reforça a clivagem entre esfera estética e campo da vida – quando “arte
compete com a vida e estética é substituída por imperativos racionais” ocorre este
empobrecimento de possibilidades, onde “se acredita que a ficção não seja parte do
mundo”; e aí, diagnostica Smithson, “o status da ficção [desaparece] dentro da
mitologia do fato”. Logo, há um claro posicionamento no sentido de buscar uma
ampla liberação do ficcional como camada constitutiva do real do mundo, ferramenta
operacional para qualquer operação de intervenção – pois é isso que importa:
agregar maiores e mais consistentes possibilidades ao artista para a ação sobre o
mundo. É sobretudo a possibilidade da ficção de quebrar a temporalidade linear da
história que interessa Smithson, pois assim pode deslocar-se de maneira direta
entre os extremos da “pré-história” e da “pós-história” sem que seja forçado a
abandonar o presente, uma vez que ambos “fazem parte da mesma consciência do
tempo”: a componente discursiva é tratada por Smithson como elemento de alta
potência, portador de uma liberação de fluxos temporais – é a ficção que, arrancada
da literatura e expandida pelo mundo, contribui para que se abram diversos tempos
na clausura de uma certa pequena história dos encadeamentos, alheia à força do
dispositivo poético. Estaria próximo assim do tempo como Devir, que Deleuze
procura liberar frente à História, segundo indica Peter Pál Pelbart:
55
77
Peter Pál Pelbart, O tempo não-reconciliado – imagens do tempo em Deleuze, São Paulo,
Perspectiva, 2004, 110-118.
78
P. P. Pelbart, op.cit., p. 110.
56
B
57
Até aqui este corpo discursivo tem procurado preparar um caminho, construir
uma possibilidade de ação, precipitar uma conduta – indicar um processo particular
para validação da ambiciosa operação de construção da singular situação em que
trabalho de arte e operação discursiva compõem em conjunto aquele outro lugar
produtivo, conciso, intenso, do qual se espera saltar para a multiplicidade de outros
processos, recebidos ‘em aberto’ como prolongamento do mesmo emaranhado de
fios que tecem e traçam uma e outra camada: este lugar outro, construído pelo texto
como obra de arte, seria sempre o mesmo a ser desdobrado em cada uma das
modalidades em que se cristaliza (obra plástica, discurso, texto como obra, etc.), já
que o que importa seria funcionar sempre em tal sistema de revezamentos plástico-
discursivos: produzir vibrações, trazer conexões e passagens, franquear o trânsito
de componentes ficcionais, mostrar as contaminações recíprocas. Neste caso, o que
se pretende é tornar presente tal teia tecida em torno da proposta de trabalho Você
gostaria de participar de uma experiência artística? – a qual se viabiliza a partir da
costura específica entre visualidade e texto, percebida como condição estruturante
mesma do campo em que se propõe mover-se, o qual se quer deslocar (a arte
contemporânea, o pensamento contemporâneo).
79
R. Basbaum, op. cit., p. 61. Refiro-me diretamente aqui ao capítulo “Diagramas e processos de
transformação” (pp. 61-79), em que o diagrama não é tomado como signo, à maneira de Peirce, mas
como conceito, em proximidade com o trabalho de Deleuze e Guattari. As próximas citações referem-
se diretamente a este capítulo.
59
E tal avanço foi possível quando o diagrama vem a se apresentar como “conceito”,
estabelecendo redes de conexão e ressonância com outros termos homólogos,
tornando-se participante de um campo operacional voltado a processos de
transformação – estando aí presentes a flexibilidade, velocidade e dinâmica
necessárias para tal tarefa. A partir deste momento,
80
R. Basbaum, op. cit., p. 66.
81
R. Basbaum, op. cit., p. 75.
60
82
R. Basbaum, op. cit., p. 79.
83
Indicando como os diversos encadeamentos entre trabalhos de arte de diferentes épocas se
materializam de forma não-linear qual nuvens, que se fazem presentes naquele espaço, no contato
direto com a obra. Deve-se ter em mente, entretanto, a necessária crítica a uma historiografia linear
hegemônica que insiste em ver apenas estes encadeamentos (autonomia pura e absoluta da obra),
sem perceber as outras séries de remissões que conduzem diretamente para o lado de fora da obra
de arte (autonomia parcial e dinâmica). Estamos aqui em contato direto com o que Peter Pál Pelbart
chama de “nuvem não-histórica”: “Deleuze cita Nietzsche, para lembrar que o Intempestivo é fruto de
uma nuvem não-histórica”, que significa para Nietzsche “um grau de ilusão, de cegueira, de
parcialidade, de horizonte restrito, de ignorância, de esquecimento, ou seja, de mistério, todo esse
envoltório necessário para que o tempo se incline inteiro diante do instante da vida, nutrindo sua
irrefreável paixão, credulidade, determinação, ousadia, amor por aquilo que está por vir, bem como
sua injustiça e impiedade em relação ao que já existe ou o que existia anteriormente.” Peter Pál
Pelbart, “Deleuze, um pensador intempestivo”, in Daniel Lins, Sylvio de Souza Gadelha e Alexandre
Veras (Orgs.), Nietzsche e Deleuze - intensidade e paixão, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000, p.
70.
61
logo, cada diagrama aponta para diferentes tramas e complôs, tal qual
roteiros para filmes ainda-por-fazer. Se a maioria dos diagramas é desenhada
a partir dos pronomes eu e você, o principal motivo não é simplesmente
convidar você e eu para desempenhar partes específicas da ação, mas
enfatizar a presença de uma força rítmica (música, em sentido amplo) como o
principal impulso coordenando a combinação verbal/visual. 84
como tal, somente pode funcionar (isto é, produzir efeitos, constituir campo próprio)
quando se conquista a possibilidade de construir tal encadeamento em modo
perceptivo: a teoria de artista não se materializa enquanto objeto à parte; a teoria de
artista é formada a partir do jogo duplo das idas e vindas entre obra de arte e
discurso, resultando deste processo de busca e investigação, entrelaçamento e
construção. É preciso um duplo trabalho – ler e ver, ver e ler, sucessiva e
fragmentariamente – e um trabalho em dupla –; espectador/leitor e artista, em
desafios respectivos e despistamentos recíprocos, acordarão a possibilidade fugaz
de um encontro em que as invenções plásticas e discursivas reforçam esse local, de
um evento, acontecimento: a Künstlertheorie é efetivamente o lugar em que se
multiplicam questões e efeitos, abrem-se possibilidades de que o gesto inicial faça
rede, rizoma – resistência e reforço, produção de pensamento. Não sendo objeto, é
da ordem do espaço, em suas várias implicações – mas sobretudo o lugar a partir do
qual a obra de arte é articulada discursivamente, configurando um tipo de agregado
plástico-discursivo de densidade própria, massa ou amálgama; processual,
informe85.
85
“Informe” não no sentido de ‘abjeto’ mas, como escreve Rosalind Krauss – em contato direto com
Bataille –, “como um processo de ‘alteração’, no qual não existem termos essenciais ou fixos mas
somente energias dentro de um campo de forças, energias que, por exemplo, operam nas mesmas
palavras que marcam os pólos deste campo, de maneira tal que os impossibilita de sustentar
firmemente os termos de qualquer oposição.” Rosalind E. Krauss, “The destiny of the informe”, in
Yve-Alain Bois e Rosalind E. Krauss, Formless – A User’s Guide, New York, Zone Books, 1997, p.
245. Em relação à definição de Bataille, nos interessa destacar a ausência de formalização a priori da
Künstlertheorie, configurando-se sempre como efeito processual de um espaço a conquistar, fugaz e
intermitente, constituído nos interstícios das ações prático-teóricas em tarefa plástico-discursiva.
Segue a formulação de Georges Bataille (em livre tradução): “Informe - Um dicionário começaria a
partir do momento em que não mais fornecesse o sentido das palavras, mas suas tarefas. Assim,
informe não é apenas um adjetivo possuindo tal sentido, mas um termo que serve para desclassificar,
geralmente exigindo que cada coisa tenha sua forma. Aquilo que designa não possui direitos em
qualquer sentido, e se faz esmagar em toda parte como uma aranha ou um verme. Com efeito, para
que os homens acadêmicos fiquem contentes, seria necessário que o universo adquirisse forma. A
filosofia como um todo não possui outro objetivo: trata-se de fornecer uma beca àquilo que é, uma
beca matemática. Por outro lado, afirmar que o universo não se parece com nada e que é apenas
informe equivale a dizer que o universo é alguma coisa como uma aranha ou um escarro.” [“Un
dictionnaire commencerait à partir du moment où il ne donnerait plus le sens mais les besognes des
mots. Ainsi informe n’est pas seulement un adjectif ayant tel sens mais un terme servant à déclasser,
exigeant généralement que chaque chose ait sa forme. Ce qu’il désigne n’a ses droits dans aucun
sens et se fait écraser partout comme une araignée ou un ver de terre. Il faudrait en effect, pour que
les hommes académiques soient contents, que l’univers prenne forme. La philosophie entière n’a pas
d’autre but: il s’agit de donner une redingote à ce qui est, une redingote mathématique. Par contre
affirmer que l’univers ne ressemble a rien et n’est qu’informe revient à dire que l’univers est quelque
chose comme une araignée ou un crachat.”] Georges Bataille, “Dictionnaire”, in Documents, nº 7,
décembre 1929, p. 382. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb34421975n/date.
64
86
Este diagrama, realizado originalmente em inglês como monotipia sobre placas de alumínio, foi
mostrado nas seguintes exposições – que perfazem um conjunto que considero como o circuito de
apresentação inicial de Você gostaria de participar de uma experiência artística?, incluindo ainda o
65
objeto em aço pintado e um display com folhetos para distribuição ao público: “Degree show”,
Goldsmiths College, Londres, 1994; “Escultura Carioca”, Paço Imperial, Rio de Janeiro, 1994; "projeto
NBP + 4 manifestos", Galeria de Arte e Pesquisa, UFES, Vitória, 1995 [exposição individual]; Você
gostaria de participar de uma experiência artística?, Espaço Cultural 508 Sul, Brasília, 1997
[exposição individual].
87
diagrama 02, impresso em lona, foi exibido nas mostras “Paralela 2006”, Ibirapuera, São Paulo,
2006 e Você gostaria de participar de uma experiência artística?, Museu Histórico de Santa Catarina,
Florianópolis, 2006 [exposição individual].
66
diagrama 01: como já foi assinalado aqui, este diagrama foi produzido ainda no
início do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?, como
parte diretamente integrante de seus elementos iniciais. Assim, ao ser lançado – ou
88
A instalação exibida na documenta 12, Kassel, 2007, era composta de diagrama, painel com texto,
e estrutura arquitetônico-escultórica – sob o título de Would you like to participate in an artistic
experience?. Uma descrição mais apurada da instalação poderá ser encontrada no capítulo seguinte
desta Tese.
89
“diagrama 4” integra as mostras “Quase líqüido”, Itaú Cultural, São Paulo, 2008 e “Estratégia”,
Plymouth Arts Centre, Plymouth, 2008.
90
“A questão da complexidade é prática: ela se coloca quando um encontro ‘empírico’ (…) impõe um
novo questionamento do poder atribuído a um conceito e atualiza uma dimensão da interrogação
prática que tal conceito ocultava.” Isabelle Stengers, Quem tem medo da ciência? Ciências e
poderes, São Paulo, Siciliano, 1990, p. 171.
67
seja, exibido em público pela primeira vez –, Você gostaria...? trouxe como um de
seus protagonistas o diagrama, ao lado do objeto e do folheto de instruções para
participação. É possível perceber hoje que estes três elementos (diagrama, objeto,
instruções) seguem como operadores principais de Você gostaria…? – constituindo-
se como veículos básicos para seu funcionamento e atualização, sendo
necessariamente reprocessados continuamente: o objeto, através de seus usuários,
participantes do projeto; as instruções, por meio da readequação de sua
diagramação e texto; o diagrama, como já dissemos, pelo acréscimo de elementos e
camadas em enredamento conceitual sucessivo. Torna-se importante tornar mais
próxima a organização deste primeiro diagrama, uma vez que estão ali marcadas
algumas das áreas constituintes do projeto em suas delineações principais, assim
como uma seqüência de eventos que indica etapas de sua efetuação. O diagrama
01 propõe oito etapas, compreendendo (1) a presença inicial do objeto, (2) sua
oferta em público, (3) o perfil do participante e tempo de participação, (4) (5) a
realização da experiência e seu registro, (6) a relação do artista frente às
participações, (7) a apresentação final do projeto e (8) os efeitos da transformação
pretendida sobre espectador, artista e próprio projeto. Há um cenário assim
desenhado que deixa claras algumas ênfases que se considerou importantes para
que Você gostaria…? pudesse ser deflagrado: era importante deixar claro que o
objeto proposto para as experiências não se reduzia às suas características
materiais, sendo composto também de uma dimensão conceitual; seria preciso ir de
encontro a um público ou audiência para construir o interesse necessário que
conduzisse às participações; estas, se dariam não apenas com a utilização do objeto
físico, mas também de sua dimensão conceitual, pois somente assim se poderia
empreender alguma transformação a partir da hibridização do espectador
participante com o objeto e seus conceitos; seria importante que as experiências
fossem registradas pelos próprios participantes; o artista de algum modo deveria
reagir aos registros das experiências, que constituem o arquivo do projeto; deveria
haver algum forma de apresentação dos resultados (das experiências e seu
arquivo), relacionada aos espaços do circuito de arte; estes resultados seriam
levados em conta sob a perspectiva aguda de implicar em efeitos de transformação
e problematização também em relação ao artista e o projeto, e não somente em
68
diagrama 02: Este segundo diagrama se caracteriza por um forte salto em relação
ao diagrama 01, com a inclusão de novos elementos que o envolvem, sem contudo
apagá-lo: o diagrama inicial é mantido intacto em seu interior, sendo portanto
conservadas as etapas e considerações apontadas acima, quanto às linhas de
funcionamento do projeto. Os acréscimos somam novos conjuntos de linhas e
palavras, que foram situados no diagrama junto a tópicos que necessitavam ser
comentados em função do efetivo desdobramento do projeto no período 1994-2006
– ou seja, entre o planejamento do diagrama 01 como programa prospectivo (1994)
e uma sua primeira atualização (2006) em face aos acontecimentos trazidos pelo
91
Cf. Ricardo Basbaum, "(?)? (Pergunta dentro de pergunta)", Arte & Ensaios, nº 7, Rio de Janeiro,
2000, pp. 115-119. Este texto foi apresentado originalmente em palestra realizada no Centro Cultural
Oduvaldo Vianna Filho (Castelinho do Flamengo), no Rio de Janeiro, em 29/01/96. V. Anexo Textos
70
92
Os “jogos eu x você”, também chamados de “coreografais superpronome” foram apresentados pela
primeira vez na exposição "Palavreiro", Funarte, Rio de Janeiro, 1997; desde então integraram
diversos eventos, exposições e oficinas, no Brasil e no exterior. Fig. 34-37.
93
Instalação apresentada pela primeira vez no MAM-RJ em 2000. [exposição individual] Integra,
desde 2004, a Tate Collection, Londres. Fig. 19-20.
94
Instalação apresentada na 25ª Bienal de São Paulo, 2002. Fig. 25-26.
95
Instalação apresentada na Galeria Artur Fidalgo, Rio de Janeiro, 2001. Fig. 21-22.
71
99
O website do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?, hospedado em
www.nbp.pro.br, entrou no ar em setembro de 2006. Foi desenvolvido em conjunto com Romano e a
empresa Tecnopop.
100
No sentido de que o diagrama, em sua apresentação gráfica de elementos sempre em conexão,
demonstra a máxima de que “o discurso é trabalhado pelos outros textos – ‘todo texto é absorção e
transformação de uma multiplicidade de outros textos’ – , atravessado pelo suplemento sem reserva e
a oposição vencida da intertextualidade”. Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, Dicionário das ciências
da linguagem, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1973, p. 422.
101
No sentido de “blocos de texto individuais (…) interligados por links eletrônicos”: ainda que nestes
diagramas não se tenha a ferramenta eletrônica efetivamente em ação, é bastante evidente que sua
estrutura conduz diretamente ao hipertexto, justamente por combinar texto e imagem em arquitetura
conjunta – como se cada elemento possibilitasse um clique que conduziria a algum outro lugar (texto
ou imagem ou combinação dos dois) em espaço interno ou externo do diagrama mesmo. Cf. George
P. Landow (Ed.), Hyper/Text/Theory, Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1994, p. 1.
74
102
Instalação apresentada em “psiu-ei-oi-olá-não”, A Gentil Carioca, Rio de Janeiro, 2004 [exposição
individual], “3 escenarios”, CAAM - Centro Atlantico de Arte Moderno, Las Palmas de Gran Canaria,
Espanha, 2005 e “Be what you want but stay where you are”, Witte de With, Rotterdam, Holanda,
2005.
77
contexto deste texto hipertrofiado, o diagrama está sendo mobilizado como agente
direto – ferramenta em sua construção – das manobras em torno da Künstlertheorie,
uma vez que realiza a mediação entre obra e camadas discursivas – sendo ele
mesmo (diagrama) um composto duplamente articulado pela mistura e
enfrentamento de linhas e palavras, com entradas e remissões múltiplas (conexões
em aberto) e vocação inter- e hiper- textual – além de oferecer fluxos de associação
inter-imagética ao remeter diretamente a outros conjuntos de obras, que multiplicam
e reforçam a poética em jogo. O mergulho pelas passagens e entradas oferecidas
pela rica superfície do diagrama permite acesso à textura reveladora dos efeitos
destas diversas conexões – que, em funcionamento, acionam a dinâmica da teoria
de artista: ou seja, não um conjunto de textos finalizado e linearmente estabelecido,
mas a instigante dinâmica de sua vibração junto à obra plástica. O desafio deste
texto é proporcionar tal emergência – a presença e consistência de uma camada
discursiva complexa e múltipla como matéria produzida pela obra mesma, ou
melhor, como materialidade indissociável da obra plástica que cabe o artista – com
maior ou menor engajamento e comprometimento junto às suas conseqüências –
administrar em seus variáveis graus de afloramento e emergência. Logo, cabe
destacar mais um diagrama da série que estamos comentando aqui, desta vez
incluindo ali elementos especificamente desenvolvidos para a articulação desta
pesquisa. Foi então traçado o diagrama 05, procurando localizar na superfície do
diagrama 04 (a versão mais atualizada até este momento) certas áreas e núcleos de
problematização de Você gostaria de participar de uma experiência artística? e do
projeto NBP – para, a partir daí, em esforço de elaboração discursiva, agregar
elementos que comporiam uma teoria de artista em funcionamento, agindo por entre
as camadas de entrelaçamento de obra de arte e discurso.
Os termos que constituem cada um dos blocos destes oito agregados irão articular o
desdobramento de uma seqüência de narrativas teórico-poéticas, através da
utilização de escrita que inclua colagem e invenção, em que o sentido se construirá
entre os “museus da arte e da linguagem” (Smithson) – em contato com ambos os
campos, buscando insinuar-se em confronto contra a cristalização dos fluxos entre
eles (tarefa a evitar): a procura é pela dinâmica que anima as relações de
consistência através das quais a prática do artista se faz ao mesmo tempo
discursividade e plasticidade. Se a composição dos oito blocos apresentada acima
combina tópicos de origens e remissões diversas – envolvendo desde materiais
conceituais gerados diretamente a partir da prática de Você gostaria de participar de
uma experiência artística? e de projetos paralelos de atuação (“tríades”, “artista-
etc”), até terminologia desenvolvida em proximidade com autores com os quais o
projeto encontrou afinidade (por exemplo: “micropercepção”, José Gil e Suely Rolnik;
“hipervírus”, Thierry Bardini; “sujeito anfíbio”, Paolo Virno) – é porque o que se
promete a partir de agora pretende invadir outra textura e dicção, experimentar
diversa modalidade de produção de sentido, contribuindo assim para a construção
deste texto hipertrofiado através de diferentes vias de acesso à palavra. Para cada
Bloco de agregados temáticos conceituais, um segmento de texto próprio irá
demarcar certos limites de funcionamento – fluidos – que buscam de fato
ressonâncias não-lineares, muitas vezes locais, mas que perseguem alcance mais
longo; ou seja, à procura de estabelecer uma condução multidirecional tal qual a
estrutura e funcionamento de um hipertexto, abandonando sistemas conceituais
centralizados e substituindo-os pela “multilinearidade, nós, links e redes”103 – não no
sentido, como já dissemos, da adoção literal do suporte eletrônico, mas sim por
deixar a organização do trabalho escrito ser permeada por “muitas redes [que]
interagem, sem que uma delas seja capaz de ultrapassar as outras; este texto (…)
não tem início; é reversível; ganhamos acesso a ele através de várias entradas,
nenhuma das quais pode ser autoritariamente apontada como a principal; mobiliza
103
George P. Landow, Hypertext 2.0 – the convergence of critical theory and technology, Baltimore,
The Johns Hopkins University Press, 1997, p. 2.
80
códigos que se estendem até onde a vista pode alcançar…”104 . Assim pretende-se
habitar e produzir a partir do espaço intermediário em que visibilidades e enunciados
se tensionam de modo incessante, abrindo-o e franqueando-o à percepção – esta
seria a chave de acesso ao texto que propõe um funcionamento como obra de arte;
ou seja, mais significativo seria obter tal dinâmica, e nem tanto assumir condição
física enquanto tal, nos termos de uma materialidade específica.
***
104
Passagem de Roland Barthes em S/Z, citada por G. P. Landow, op.cit., p.3.
81
C
82
Bloco 1
tríades, ensaio-ficção, manifesto NBP
105
Os três documentos encontram-se no V. Anexo Textos desta Tese.
83
Parece haver certa insistência numérica recorrente em torno do ‘3’: tudo se inicia, é
verdade, com a sigla NBP, que condensa três elementos já interessantes,
amarrados em linha na proposição Novas Bases para a Personalidade, cujos dois
termos intrusos (“para a”) estabelecem a ligação relacional própria das locuções
prepositivas. Em anotações do período em que o projeto foi gerado (1990/91),
encontro a referências que associam as três letras a noções amplas, assim
caracterizadas:
106
Ricardo Basbaum, “caderno de notas, 1990/1991”, p. 1. V. Anexo Textos
107
Cf. Nota 67, Parte A.
84
reduz a qualquer signo numérico e aponta para o múltiplo: para as estas tríades
NBP, três é nada menos que sempre mais um.
O escrito “O que é NBP?” foi trazido a público pela primeira vez em situação de
performance – enquanto fala, voz – de modo que é possível implicá-lo – e ao projeto
NBP – às reverberações musicais que se têm quando a dicção se faz ouvir em suas
demarcações, derivas e reverberações pelo espaço, rumo ao ouvido do outro. Tal
musicalidade implica também em ritmo, e é preciso atentar também aqui a certos
cuidados com o andamento do projeto e sua escrita, pois não há qualquer intenção
de que este aspecto seja ignorado, pelo contrário: se há esta marca ritmo-musical
associada à dimensão discursiva do projeto NBP – através do vínculo de um de
seus principais escritos à fala e à performance (corpo) – é preciso trazer tal tópico à
superfície, assinalar o (lance de) dado musical que celebra a significação e
importância deste acaso: “escrita em forma de discurso, pronta para oralização”108 . A
musicalidade latente em NBP é ainda algo a ser exteriorizado com maior
contundência, mas fica desde já indicado esta presença a ativar fluxos e ritmos de
desdobramento do projeto e acolhimento do outro – como se a costura do projeto
NBP pudesse ser percebida como imenso Parangolé imaterial composto de malha
plástico-discursiva pronto a ser utilizado, assumindo vocação verbivocovisual.
108
Ricardo Basbaum, “caderno de notas, 1990/1991”, p. 3. V. Anexo Textos
85
109
“Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos (GPCI) é um grupo de pesquisa em arte contemporânea,
em arte e tecnologia, em arte da performance, isto é, o corpo como sujeito e objeto da obra de arte e
as tecnologias de produção, de reprodução da imagem e da imagem/movimento, e ainda, as
tecnologias comunicacionais, sobretudo a Internet.” O GPCI existe desde 1992, coordenado por Bia
Medeiros. Cf. Maria Beatriz Medeiros, Corpos informáticos – arte, corpo, tecnologia, Brasília, Editora
da Pós-Graduação em Arte da UnB, 2006.
86
ESPAÇO NEGATIVO
TRANSPARENTES CONCEITOS
GELÉIA ADVERSA
Curiosamente, somente algum tempo depois (2007) foi redigido documento que
estende cada um dos tópicos em desenvolvimento próprio – o título “(a), (b), (c):”110
referencia as proposições de maneira respectiva – indicando desta vez um amplo
conjunto de conexões, localizadas “no âmbito de um processo de negociação”: (a)
enquanto provocação provinda do participante GPCI; (b) como campo de
invisibilidades relacionais onde transparência é “maleabilidade, ambiência,
configuração de um meio o qual facilita a travessia”; (c) tal qual “inclusão cultural
específica (…) em mútua ‘contração transformativa’”, distendendo-se nos termos da
“geléia geral da adversidade da qual vivemos”, querendo ser “intervenção,
resistência”. É importante lembrar que “em termos de ação e funcionamento cada
qual dos três tópicos pode ser ativado a qualquer tempo, sem hierarquização ou
110
Ricardo Basbaum, “(a), (b), (c):”, 2007. Texto inédito. V. Anexo Textos
87
Cinema não toma parte aqui enquanto posição hierárquica superior frente ao
processo, com ambição de estabelecer-se como ‘produto final’ – antes, sua
presença se insinua no mesmo plano de igualdade em que ocorre sua própria
desmontagem em 4 etapas. Logo, sistema-cinema se caracteriza por uma
pragmática (sistema) que atende a um determinado emprego, a uma
utilização que busca trazer potência relacional extra a um projeto artístico em
pleno andamento e funcionamento, sintoma de alguns de seus traços
constitutivos e estruturais.
112
Até este momento já foram realizados quatro trabalhos em vídeo com aproveitamento de imagens
obtidas através de sistema-cinema: “Transatravessamento” (2002), apresentado na 25ª Bienal de São
Paulo, utilizou imagens gravadas nas exposições “passagens (NBP)” (Artur Fidalgo, Rio de Janeiro,
2001) e “Outra Coisa” (Museu da Vale, Vila Velha, 2001); “transatravessamento (& fuga)” (2002),
apresentado em “20 anos 20 artistas” (Centro Cultural São Paulo, 2002), “re-projetando + sistema-
cinema + superpronome” (Galeria Cândido Portinari, Rio de Janeiro, 2003) e “entre Pindorama”
(Künstlerhaus, Stuttgart, 2004), utilizou imagens gravadas na 25ª Bienal de São Paulo; “E: anotações
sobre contatos com re-projetando + sistema-cinema + superpronome” (2003) utilizou imagens
gravadas na exposição “re-projetando + sistema-cinema + superpronome” (Galeria Cândido Portinari,
Rio de Janeiro, 2003); ‘Yo Tú – Me You” (2005), apresentado na exposição “3 escenarios” (CAAM -
Centro Atlantico de Arte Moderno, Las Palmas de Gran Canaria, 2005), utilizou imagens gravadas na
própria exposição.
113
“Interculturalidades”, Centro de Artes UFF, Niterói, 2002.
91
determinam a pegada, sua apreensão pela mão (para se pegar os dois objetos da
mesma maneira, é preciso utilizar em um a mão direita, em outro, a esquerda).
Atenção: o deslocamento aqui não é pequeno – trata-se de um salto, ginga ou jogo
de corpo: para operar um encontro entre duas situações, no sentido de arquitetar a
possibilidade de um terceiro grupo de frases, foi construído objeto semelhante que,
entretanto, a partir de um pequeno desvio, materializa-se de modo ligeiramente
diverso. E é preciso avisar: houve a introdução de mais uma sigla – V.C.P. (Vivência
Crítica Participante).
transatravessamento
aceleração positiva ou negativa: sua velocidade jamais será a mesma depois
deste contato. Não se esqueça: “o pensamento é mais rápido que a
velocidade da luz” (já foi dito). Sensorialidade como deslizamento entre o
caótico e o prazeroso, tocando a superfície das coisas (ir e vir, ir e vir, ir e vir
114
Ricardo Basbaum, “roteiro para sistema-cinema”, op. cit..
92
adversa geléia
olhares para o entorno, despindo-se de alguns automatismos, aceitando a
fluência de outros. Mergulhando no que imensamente nos escapa e resiste e
é ao mesmo tempo estranhamente familiar: passando ao lado nos captura e
transmite ao longe – sempre. Estado momentâneo quase chegando a ser
junto comigo.
artista-etc
a imagem do que se faz misturando-se ao que não se faz; (des)construindo
enquanto se aponta em mil direções e se apronta em prestações. Frágil
resistência, sutil insistência: nunca apenas um lugar nem a mesma rotina de
procedimentos; sempre as simultaneidades e o olhar magnético, a confiança
no lugar. Compactação impossível do poético singular que escapa sempre,
tudo arrastando em volta. Voraz. Contenção. Saltos.
Perfazendo três pequenos verbetes, este curto texto revela-se uma pequena peça
literária carregada de remissões a outros escritos: o aparato sistema-cinema, em
seu efeito de espreita ao componente discursivo, deflagra – ao apresentar-se em
conjunto com o texto “Sistema-Cinema” – rede intertextual em que os principais
termos envolvidos conduzem diretamente a outros escritos. E também – e isto aqui é
importante – às obras (instalações, objetos, estruturas, diagramas, etc.) a eles
associados. Ou seja: esta pequena tríade enfatiza característica de intermediação,
115
“Sistema-Cinema”, texto produzido para a instalação “Sistema-Cinema V.C.P.”, apresentado pela
primeira vez na exposição “Interculturalidades”, Centro de Artes UFF, Niterói, 2002. Desde então,
exibido basicamente de forma ampliada, plotado diretamente sobre a parede com letras adesivas, foi
apresentado nas exposições “20 anos 20 artistas” (Centro Cultural São Paulo, 2002), “re-projetando +
sistema-cinema + superpronome” (Galeria Cândido Portinari, Rio de Janeiro, 2003) [exposição
individual], “sistema-cinema + diagramas” (MAC-UnaM, Posadas, Argentina, 2003) [exposição
individual] e “entre Pindorama” (Künstlerhaus, Stuttgart, Alemanha, 2004). Fig. 39-41, 48
93
116
Ricardo Basbaum, “Módulo de transatravessamento do artista-etc”, in 25ª Bienal São Paulo –
Iconografias Metropolitanas - Brasil, São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo, 2002, pp. 46
[catálogo]. V. Anexo Textos
117
Ricardo Basbaum, “I love etc-artists” in Jens Hoffmann (Org.), The next Documenta should be
curated by an artist, Frankfurt, Revolver Books, 2004, pp. 14-15; e “Amo os artistas-etc”, in Rodrigo
Moura (Org.), Políticas Institucionais, Práticas Curatoriais, Belo Horizonte, Museu de Arte da
Pampulha, 2005, pp. 21-23. V. Anexo Textos
118
Ricardo Basbaum, “Critical and Participatory ‘Vivência’”, in Vivências: dialogues between the works
of Brazilian artists from 1960s-2002, The New Art Gallery Walsall, Walsall, 2002; e “V.C.P. - Vivência
Crítica Participante”, Ars, São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, USP, no prelo.
94
O percurso aqui condensado articulou três textos (“O que é NBP?”; “(a), (b), (c):”;
“Sistema-Cinema”), cada qual portando um grupo de três proposições
(imaterialidade do corpo, materialidade do pensamento, logos instantâneo; espaço
95
Para estas aproximação das tríades não foi utilizado o artifício do cálculo
combinatório – onde cada uma das nove proposições poderiam recombinar-se em
qualquer arranjo, indiferentes a seu agrupamento anterior – mas uma reunião mais
modesta dos elementos de acordo com sua posição em cada uma das
configurações tal como foram propostas. A partir de três novos grupos – reunindo os
primeiros, segundos e terceiros termos de cada tríade, procurou-se a consolidação
de uma posição que ao mesmo tempo que respalda os percursos anteriores também
os provoca e tensiona: ou seja, se cada grupo de três tópicos ao ser confrontado aos
outros dois produz novos tópicos (em operação de condensação), estes novos
tópicos por sua vez voltam-se aos anteriores de modo contundente, obrigando-os a
se re-significarem. Tal como se passa nos diagramas do projeto Você gostaria de
participar de uma experiência artística?, onde as sucessivas atualizações não
96
O diagrama tríade das tríades nomeia três blocos que pretendem identificar linhas-
mestras de ação para o projeto NBP (e as demais séries paralelas dele
derivadas),119 que avançam por conta própria – ainda que sempre no âmbito de um
sistema proposto de ações – articulando efeitos e procedimentos: trauma, dinâmica
de grupo, ensaio-ficção são termos que reverberam de modo amplo. Certamente
mais do que os anteriores, sua inserção frente ao projeto de se dá em esfera macro,
em localização menos pontual (vimos como as tríades anteriores se estabelecem a
partir de procedimentos particulares): desta vez, arriscou-se um exercício de
mapeamento do percurso percorrido, intensificando-se possibilidades que, ao serem
nomeadas, funcionam prospectivamente em rearranjo dos caminhos que se quer. É
certo, porém, que estes três novos termos não se impuseram em gesto súbito e
trazem, cada qual, algumas referências.
119
Por exemplo, os jogos, exercícios e coreografias eu-você. Fig. 34-37
97
fortes do que pode delinear uma teoria de artista a conduzir esta prática particular, o
problema ficaria melhor definido enquanto proposição de uma modalidade de
condução do trabalho que não implica na separação das matérias e investe na forte
costura do fazer plástico e fazer conceitual – apostando nas regiões de
indiscernibilidade.
referência não sejam explícitas, há uma dinâmica posta em jogo, ancorada naquele
particular evento e local, e sujeito e objeto (eu/você) participam de tal situação
coletiva. Fig. 46, 54 De modo que seria preciso estar atento ao modo como as
inflexões do jogo afetam eu e você e as relações possíveis, o fluxo dos afetos. Há
também nos diagramas, portanto, um deslocamento de perspectiva rumo à
percepção de uma dinâmica coletiva em que o sujeito é notado como parte de uma
dinâmica à qual está mais ou menos integrado (no sentido de compartilhar
pulsações e ritmos) e frente à qual se preocupa com as linhas de contato
(membranas, mais uma vez) que agrupam (dinâmicas estratégicas, afetivas) ou
implodem. Já os jogos, exercícios e coreografias eu-você tomam o problema da
dinâmica de grupo como elemento efetivo de implementação de seu fazer – estas
ações são percebidas como “‘person’ ou ‘group specific’”, no sentido de que “leva[m]
em conta” e são definidas “a partir da especificidade de cada grupo ou pessoa”, uma
vez que “não opera[m] como um conjunto de ações e movimentos pré-estabelecidos:
qualquer instrução ou decisão deve vir a partir (do interior) do coletivo”120 –
consistindo em verdadeiros laboratórios em que se experimenta a construção de
grupos de trabalho (que muitas vezes prosseguem em dinâmica própria mesmo
depois de finalizadas as atividades). As ações podem ali ser roteirizadas ou
elaboradas na experiência direta do fazer – mas somente deslancham (no sentido
de tornarem-se efetivas por motor próprio) quando as frestas e intervalos (que estão
em toda parte, em qualquer proposta) são efetivamente trazidos a um primeiro
plano, ocupados, habitados e impulsionados pelos participantes (entre os quais
sempre me incluo). É evidente que o contexto institucionalizado da arte
contemporânea é hoje ultra-complexo, desenvolvendo-se em diversos circuitos –
locais, regionais, internacionais, etc. – que estabelecem entre si relações em
diversas escalas, exibindo tramas e amarrações de diversos tipos; a rigor, não se
pode reduzir o sistema de arte a uma mecânica simplificadora nos termos de
inclusão ou exclusão. Entretanto, sempre pertencemos a algum coletivo ou
comunidade, estando cada um de nós de fato enredados em conjuntos afetivos,
120
Ricardo Basbaum, “Diferenças entre nós e eles”, disponível em
http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/entrelugares/ricardo.html. Publicado originalmente em inglês como
“Differences between us and them”, in Us and Them, Becky Shaw e Gareth Woollam (Org.),
Liverpool, Static, 2005, pp. 71-78. V. Anexo Textos
100
a dinâmica entre nós e eles é tida como o padrão habitual através do qual o
papel e a imagem do artista são negociados em nossa sociedade, em termos
de estruturas institucionais e de mercado. Comumente, os artistas entram
nesse campo através de um processo de transformação, em que abandonam
progressivamente seu estado estrangeiro para habitar a moldura institucional
– essa condição convencional reduzida não representa uma norma, mas um
conjunto de traços reterritorializantes que alimentam a arte, tornando-a um
lugar com limites seguros e garantidos em nossa sociedade. Essa é uma
óbvia supersimplificação, ligada a estereótipos do senso comum. Uma
perspectiva mais interessante pode ser buscada em termos do que foi
mencionado acima como ‘processo de passagem’. O artista contemporâneo
rompe as linhas que vão diretamente de eles para nós, tornando essa
conexão complexa, isto é, enfatizando entre suas características o fluxo
contínuo entre indivíduos, grupos, coletivos e instituições – indo e vindo de
um para outro, desempenhando papéis simultâneos e ocupando mais de uma
posição ao mesmo tempo. Enquanto o artista superinstitucionalizado é
alguém preso à linearidade |eles → nós|, o artista interessante de hoje se
moveria no duplo sentido nós ↔ eles, encontrando a sua singularidade não
em cada extremo, mas no conjunto de múltiplas relações envolvidas em
diversos processos de transformação.121
121
R. Basbaum, op. cit., p. 3-4.
101
Bloco 2
hipervírus, marca, trauma, micropercepção, comunicação
Antes deste momento, é preciso destacar ainda outro objeto, cuja presença também
impulsionou as pesquisas de modo decisivo: seu título remete diretamente à série
(NBP – Novas Bases para a Personalidade, 1993); mas sua estrutura traz como
novidade o elemento arquitetônico, que permite que funcione enquanto abrigo ou
cápsula para dois visitantes: ali, sentados, os que se instalam na peça ficam visíveis
aos que continuam em torno – ainda que internos, projetam-se ao exterior, indicando
que a peça de ferro não passa de uma membrana, superfície que separa mas não
impede o trânsito do visível (assim como não há vedação sonora – a fala irrompe e
sempre se estabelece entre os de dentro e os de fora, assim como entre os dois de
dentro). Fig. 17 É verdade que existe um cadeado trancando a porta: quem está ali
não pode sair sem que alguém do outro lado gire a chave e franqueie a saída:
assim, sempre haverá a necessidade de uma conversa entre quem, do lado de fora,
possui a chave, e quem está dentro da peça – pois, e isso sempre ocorre quando
esta peça é exposta, há interesse e desejo em ali entrar para se instalar no lado de
dentro. Mas o mais intrigante se passa para os que entram: aquele interior consiste
em estar cercado por membrana metálica, que não impede a visão do espaço em
torno (seja espaço aberto ou fechado) – fazendo com que a peça literalmente
funcione como uma espécie de filtro entre as coisas todas ao redor e os visitantes –
que, de fato, pouco a pouco convertem-se em usuários, à medida em que vão sendo
provocados pela estrutura de funcionamento da cápsula. Olhar em torno passa ser
experiência interessante; sobretudo, ao ter a porta como elemento frontal: ali está
plasmada a forma específica NBP e não há como olhar para frente sem que este
desenho se imponha entre o olhar e o espaço exterior – como um grande filtro, esta
área externa será percebida de outro modo. Gosto de pensar que por efeito deste
filtro NBP são materializadas linhas invisíveis que permeiam qualquer espaço em
que há trânsito de afetos (onde exista a intensidade própria de subjetividades
105
***
Afinal, “a abertura democrática (…) que se deu ao longo dos anos 1980, deve-se em
parte à chegada do regime pós-fordista, para cuja flexibilidade a rigidez dos
sistemas totalitários constituía um estorvo”.124 Portanto, esta convergência indica a
necessidade de se tomar os principais acontecimentos da arte brasileira dos anos
122
No volume Império, de Antonio Negri e Michael Hardt, considerado como um dos mais
significativos textos acerca do novo panorama socioeconômico – e notabilizado por apontar a
discussão de novos caminhos para a luta política – a dimensão internacional do novo quadro é
apontada logo nas primeiras páginas: “A problemática do Império é determinada, em primeiro lugar,
por um fato singular: a existência de uma ordem mundial”. Antonio Negri, Micahel Hardt, Império, Rio
de Janeiro, Record, 2001, pp. 21.
123
Suely Rolnik, “Zombie anthropophagy”, in Kollektive Kreativität, Revolver, Frankfurt, 2005, pp.206-
218. (catálogo de exposição, Kunsthalle Friedericianum, maio-junho, 2005)
124
Suely Rolnik, “Geopolítica da cafetinagem”, disponível em http://www.rizoma.net.
106
125
Gilles Deleuze, Pourparlers. Paris, Les Éditions de Minuit, 1990, p. 247.
126
“A mutação a que assistimos desde 1975 é aquela do nascimento de um novo modo de regulação
do capitalismo (o terceiro na história, depois do mercantilismo e do capitalismo industrial). Este novo
capitalismo, nós o chamamos de capitalismo cognitivo.” Yann Moulier-Boutang, “Capitalisme cognitif
et éducation, nouvelles frontières”, disponível em http://multitudes.samizdat.net/Capitalisme-cognitif-
et-education.html.
127
Passadas duas décadas, uma exposição comemorativa que ambicionava o “resgate histórico de
um movimento cultural” (texto de apresentação do Centro Cultural Banco do Brasil) não faz mais do
que repetir os mesmos dizeres daquele momento: “Herdeiros do silêncio, essa nova geração sonhava
com muito som, muito sol e rock and roll. Nas artes, perpassava um sentimento de liberdade, um
desejo de ser feliz, de pintar a vida com cores fortes e vibrantes, valorizando o gesto, a ação. (…)
contrapunha-se um desejo de fazer da arte um local de emoções, um caldeirão borbulhante de
odores, prazeres e sensações. Esse compromisso hedonista, essa ânsia de ser feliz vai encontrar
suas raízes no desejo coletivo de ‘participar’, de integrar a coletividade democrática que se sonhava.”
Marcus de Lontra Costa, “Os anos 80: uma experiência brasileira”, in Onde está você, Geração 80?,
Rio de Janeiro, Centro Cultural Banco do Brasil, 2004, p. 7 (catálogo de exposição).
128
Y.Moulier-Boutang, op.cit..
107
“As corporações têm utilizado seu enorme poder para roubar da arte seu
papel como um espaço de dissenso, como um possível lugar para a
experiência não mercantilizada. O museu se torna um local de afirmação do
projeto corporativo, e a corporação coloca a arte para funcionar ‘inventando
um futuro’ – isto é, mercados mais amplos, maior poder. Todos compreendem
como a publicidade é utilizada para definir um público e estabelecer suporte
para o poder. As corporações apenas estendem esse processo para dentro
da esfera cultural, transformando a arte em um tipo de propaganda. Assim, a
arte provê a corporação com um meio para se comunicar com o bem público,
mesmo se a corporação amplia seus interesses próprios – a arte é então
utilizada para normatizar o poder da classe corporativa. Com esta finalidade,
as corporações têm suplantado o apoio do governo às artes e museus e
organizações artísticas dependem das corporações para sua sobrevivência –
e as corporações têm iniciado a construção de seus próprios museus-
satélites. A distância entre espaço corporativo e cultural tem diminuído. Qual
poderá ser a alternativa?”129
Enfim, sob a vigência de “um outro sistema de acumulação, no qual esta se volta
para o conhecimento e para a criatividade, isto é, para as formas de investimento
129
Richard Bolton, “Enlightened self-interest: the avant-garde in the ‘80s”, in Grant H. Kester (Ed.),
Art, activism and opposionality – essays from Afterimage, Durham, Duke University Press, 1998, pp.
23-50.
108
130
Y.Moulier-Boutang, op.cit..
131
Éric Alliez, Brian Holmes, Maurizio Lazzarato, “Construction vitale: quand l’art excède ses
gestionnaires”, in Multitudes, Paris, Éditions Amsterdam, nº 15, inverno 2004. Disponível em
http://multitudes.samizdat.net/Construction-vitale.html.
132
De fato, as exposições “2080”, museu de arte moderna, São Paulo, 2003, e a já mencionada
“Onde está você, Geração 80?”, Centro Cultural Banco do Brasil, 2004, não foram capazes de tocar
no nervo das contradições e complexidades do período e de seu processo de institucionalização.
109
133
É interessante que pensadores atentos ao desenvolvimento do capitalismo cognitivo, à procura da
construção de um pensamento de resistência, apontem a “política da comunicação ou (…) a luta para
o controle ou para a libertação do sujeito da comunicação” como traços característicos da nova
organização do poder socioeconômico: “a unidade do político, do econômico e do social é
determinada na comunicação; é no interior desta unidade, pensada e vivida, que os processos
revolucionários podem hoje ser conceituados e ativados”. Maurício Lazzarato e Antonio Negri,
Trabalho imaterial – formas de vida e produção de subjetividade, Rio de Janeiro, DP&A, 2001, pp. 39-
40.
110
[A] marca Olho foi desenvolvida especialmente para este evento [“Como vai
você, Geração 80?”], sob a forma de adesivos para serem colados pelo
espaço da sala e por outros locais do edifício. Os adesivos estavam também
disponíveis para venda, podendo ser adquiridos (um pacote com dois) pelo
público visitante: uma forma de estender o trabalho para além do evento,
colocando (literalmente) nas mãos dos visitantes possibilidades de invasão do
trabalho por outros espaços, construindo outras intervenções, num gesto já
de certa forma interativo, em que minha autoria é compartilhada (processo
que continuei através do projeto NBP). Colados (ou às vezes pintados) sobre
objetos, outras imagens ou elementos arquitetônicos, desenvolvi uma série de
trabalhos nos anos seguintes (até aproximadamente 1990), explorando as
possibilidades de reprodutibilidade desta marca simples e impregnante. Além
de produzir um efeito de demarcação e antropomorfização de objetos e
imagens, a marca Olho provoca principalmente uma reversibilidade
perceptiva, fazendo com que as coisas, transformadas em agentes e
arrancadas à sua indiferença, nos observem. Para o olhar humano, cria-se a
possibilidade de acesso a uma suposta 'interioridade' do mundo – através da
estratégia de enfatizar a superfície das coisas, pois o Olho transforma tudo
em imagens perceptualmente dinamizadas –, em que a marca indica pontos
de produção de problemas, de questões (a 'interioridade' afinal revelada como
abismo, campo problemático sem qualquer a priori), como uma ferramenta de
evidenciação e combate à homogeneidade e opacidade das coisas. Claro que
a mobilização perceptiva envolvida neste processo é da ordem da velocidade,
da repetição, impregnação, estampagem e memorização, abrindo caminho
134
Assim dizia o texto de apresentação do projeto desenvolvido com a marca Olho em 1987, na
Unicamp, enquanto artista residente: “I- Este trabalho tem a pretensão de ser contemporâneo: insere-
se no campo visual comunicativo das sociedades de massa, planetárias: quer dialogar com muita
gente. II- A divulgação multiplicada de uma única marca, contaminadora de qualquer espaço:
propaganda da mais interessante possibilidade da arte: olhar-crítico, olhar-conhecimento, olhar-
pensamento. III- Ação substantiva de um salto acima do vácuo ocidental para a positividade
sinestésica de algo. IV- Celebração: conseqüência agradável, não condição de trabalho do afastado
artista, em busca de melhores e mais acirrados ângulos de visão.” Ricardo Basbaum, Evento da torre,
Campinas, Unicamp, 1987 (folder-convite). Fig. 12
111
Deste modo, NBP se caracteriza por procurar abrir uma inflexão produtiva em meio
às questões que se desenvolviam no trabalho até então, estabelecendo articulação
direta com elementos de um discurso propriamente plástico – em contato com
determinantes sobretudo da escultura, objeto e desenho, mas também da
instalação, performance, arquitetura e vídeo – e elementos de uma estratégica
gráfica, da ordem da reprodutibilidade técnica e de um viés comunicativo, cuja
articulação texto/imagem permitia então que fosse lançada ao olhar em um jogo
perceptivo mais rápido, repetitivo e insidioso, aproximando-se mesmo de
possibilidades ditas subliminares e de contaminação.
Vale lembrar que quando formulei pela primeira vez a sigla NBP, articulando as
consoantes iniciais da proposição Novas Bases para a Personalidade, havia a
motivação de mobilizar principalmente a questão da 'transformação', relacionando-a
de alguma forma ao corpo. Vindo de experiências com performance (junto à Dupla
135
"O que nos faz afirmar fenomenologicamente que algo está vivo? É precisamente através desta
relação de afeto. (…) uma apreensão pática, imediata e não-discursiva ocorre do relacionamento
ontológico de auto-composição da máquina. (…) No momento da relação autopoiética, existe um
conhecimento imediato e pático da situação – 'algo está ocorrendo'". Félix Guattari, "On Machines",
Journal of Philosophy and the Visual Arts (artigo fotocopiado, s/d). As observações de Guattari são
importantes para a configuração de um campo pós-fenomenológico da experiência perceptiva com a
obra de arte.
136
Ricardo Basbaum, “Projeto NBP: algumas pistas de um programa em processo” in Luiz Nazario e
Patricia Franca (Orgs.), Concepções contemporâneas da arte, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2006,
pp. 204-205. Texto apresentado originalmente no Seminário Outras investigações, módulo “O artista
como pesquisador”, Itaú Cultural, Belo Horizonte, 01/09/2000. A argumentação a seguir toma partes
deste escrito como referência.
112
137
A Dupla Especializada (Alexandre Dacosta e Ricardo Basbaum) tinha como principal projeto de
trabalho a proposta geral de "intervenção em meios de comunicação de massa". Realizamos
performances envolvendo pintura e música (1981), intervenções com cartazes no espaço urbano
(1981-84), distribuímos uma filipeta-manifesto (1984), produzimos um videoclipe (Egoclip, direção de
Sandra Kogut e Andrea Falcão, 1985) e um conjunto de canções, apresentadas no show-
performance "Reflexões Musicais" (1986). Fig. 1-6 O grupo Seis Mãos (Alexandre Dacosta, Barrão e
Ricardo Basbaum) começou suas atividades em 1983, com "Improvisos para pintura e música".
Realizamos a performance Garçons (1984-85), em que invadíamos de surpresa vernissages vestidos
de garçons, distribuindo objetos e textos especialmente preparados para cada ocasião. Junto com
Sandra Kogut apresentamos, em diversos espaços do Rio de Janeiro, a vídeo-performance
Calêndula Concreta (1986-87) Fig. 7-9.Ver algumas referências da Dupla Especializada e grupo Seis
Mãos em Corpo, São Paulo, Itaú Cultural, 2005, p. 51. Até o momento, o principal acesso à produção
destes dois grupos restringe-se ao arquivo dos artistas envolvidos. Uma recente exceção é o texto
“Década de 1980: mais algumas observações críticas”, de Thaís Rivitti, número sete, USP, 2006, pp.
4-5, que desenvolve comentários acerca do vídeo Egoclip, da Dupla Especializada (1985).
138
"Lygia Clark e Hélio Oiticica", Sala Especial do 9º Salão Nacional de Artes Plásticas, curadoria de
Luciano Figueiredo e Glória Ferreira, Paço Imperial (Rio de Janeiro), 1986.
113
140
Citações de passagens do artigo de Charles T. Wolfe, “De-ontologizing the Brain: from the fictional
self to the social brain”, Ctheory, Vol 30, n. 1-2, 051, 2007, http://www.ctheory.net,
141
“É o cérebro que diz Eu, mas Eu é um outro. (…) E este Eu não é apenas o ‘eu concebo’ do
cérebro como filosofia, é também o ‘eu sinto’ do cérebro como arte.” Gilles Deleuze e Félix Guattari,
O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 271.
115
(objeto relacional, toque, som, odor, proposição artística, etc.), ao envolver o outro e
suas diversas e complexas camadas a partir das quais deflagra o jogo das
sensações, produz efeitos de transformação do sujeito:
142
Lygia Clark (com a colaboração de Suely Rolnik), “Memória do corpo”, in Lygia Clark, Rio de
Janeiro, Funarte, 1980, p. 55.
143
É importante quando Ronaldo Brito insiste na singularidade, que ainda pode-se dizer
subaproveitada, do saber da arte: “Hoje aparece cada dia com mais clareza a distinção – senão a
contradição – entre o Saber da Arte e o Saber sobre a Arte. Entre a verdade produtiva dos trabalhos
de arte, ao longo da história, e o discurso da História da Arte. E se constata o quão pouco se conhece
desse primeiro e decisivo saber (…)”. Ronaldo Brito, “O moderno e o contemporâneo (o novo e o
outro novo)”, in Arte Brasileira Contemporânea - Caderno de Textos 1, Funarte, Rio de Janeiro, 1980.
144
Charles T. Wolfe lembra que “a construção de um caso-limite chamado ‘organismo’ se dá
forçosamente a posteriori”, sendo este “nada além do que a produção de uma artificialidade vital”
116
(mas resistente “ao modelo mais mecanicista”), a “capacidade de projetar uma totalidade significante
sobre um universo caótico”. Também aí reverbera uma questão constitutiva ou construtiva, uma vez
que em seu sentido mais “ordinário, na natureza”, o organismo “é uma ficção, uma saturação
temporal e histórica de uma interseção causal no grande nexo do mundo.” Charles T. Wolfe, “La
catégorie d’’organisme’ dans la philosophie de la biologie: retour sur les dangers du réductionnisme”,
in Multitudes, Paris, Éditions Amsterdam, nº 16, primavera 2004. Disponível em
http://multitudes.samizdat.net/La-categorie-d-organisme-dans-la.html.
145
Paolo Virno, “Multitude et principe d’individuation”, disponível em
http://multitudes.samizdat.net/Multitude-et-principe-d.html.
146
Adotamos aqui a distinção entre conceitualismo e arte conceitual proposta na exposição Global
conceptualism: points of origin 1950s-1980s: enquanto “arte conceitual” refere-se diretamente a “uma
prática formalista e essencialista desenvolvida a partir do início do minimalismo” (ou seja, enquanto
corrente particular dentro da arte contemporânea, com atuação centralizada no período entre 1963-
1974), o “conceitualismo”, ao “romper decisivamente com a dependência histórica da arte em relação
à forma física e apercepção visual”, seria “a ampla expressão de uma atitude envolvendo um largo
elenco de práticas que, ao reduzir radicalmente o papel do objeto de arte, re-imaginou as
possibilidades da arte em relação às realidades sociais, políticas e econômicas dentro das quais é
produzida.” Além disso, “sua informalidade e afinidade com o coletivismo tornou o conceitualismo
atraente para aqueles artistas que desejavam um engajamento mais direto com o público”. É
importante ainda acrescentar que vemos a própria noção de arte contemporânea como portadora de
uma condição conceitual. Luis Camnitzer, Jane Farver e Rachel Weiss, “Foreword”, in Global
conceptualism: points of origin 1950s-1980s, Nova York, Queens Museum of Art, 1999, p. VIII.
117
Encontra-se aqui uma convergência direta – mas não linear! – com estratégias
utilizadas pelo mundo da publicidade corporativa em torno das logomarcas. De fato,
data-se a partir da década de 1980 o início do período denominado de “capital de
147
Em torno deste problema desenvolvi a dissertação "Convergências e superposições entre texto e
obra de arte" (Mestrado em Comunicação e Cultura, Escola de Comunicação , UFRJ, 1996),
publicada em Ricardo Basbaum, Além da pureza visual, Porto Alegre, Zouk, 2007, pp. 17-94.
119
É importante enfatizar aqui que ao desenvolver tanto a marca Olho como a sigla e
forma específica NBP não houve propósito direto de parodiar uma forma de ação
concreta da nova dinâmica do mundo socioeconômico – trata-se muito mais de uma
atuação convergente com o funcionamento do ambiente dos fluxos globais, em que
as estratégias comunicacionais são sintoma de uma operatividade que se impõe.
Pois se o propósito é fazer o campo da arte contemporânea convergir para a
demanda de um agir veloz, repetitivo, presente em diferentes espaços e portador de
uma estratégia conceitual de ordem problematizadora, é porque se acredita que tal
estratégia irá indicar formas de resistência e instrumentalizar o trabalho frente a um
circuito de arte que de modo crescente se integra (e se entrega) a um
funcionamento que obedece aos mesmo preceitos de marketing das corporações
globais.
148
Naomi Klein, Sem logo: a tirania da marca em um planeta vendido, Rio de Janeiro, Record, 2003,
pp. 31, 39, 45-46.
149
Antonio Negri e Michael Hardt, op. cit.., p.51.
120
150
Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 220.
151
Utilizo aqui referências diretas do artigo de minha autoria “Within the organic line and after”,
publicado em Alexander Alberro e Sabeth Buchmann (Ed.), Art after conceptual art, Massachusetts,
MIT Press, Viena, Generali Foundation, 2006, pp. 93.
152
Piero Manzoni, “Some Realizations... Some Experiments... Some Projects...”, 1962, disponível em
http://home.sprynet.com/~mindweb/page14.htm.
121
partir da qual todo o planeta estaria sendo posicionado em ‘modo de exibição’ sobre
esta pequena ‘plataforma para transformação’. Fig. 55-57 Esta série de trabalhos
indica a investigação se desenvolvendo em torno de estruturas de mediação –
sobretudo a importante consideração das formas dinâmicas da linha como
membrana (regiões de contato) e da superfície como veículo (superfícies de
deslocamento a partir de contato dinâmico)153 .
153
É importante notar que a noção de um dinamizador que ultrapassasse o vocabulário formalista
também se encontra dentro do quadro amplo do conceitualismo, onde “’desmaterialização’ não
significou apenas o desaparecimento do objeto, mas uma redefinição de seu papel como portador de
sentido [carrier of meaning], reinvestindo sentido em objetos existentes e procurando eliminar a
erosão de informação.” Luis Camnitzer, Jane Farver e Rachel Weiss, op.cit., p. VIII.
154
Thierry Bardini, “Hypervirus: a clinical report”, in Ctheory, Vol. 29, Nº 1-2, 031, 2006,
http://www.ctheory.net.
155
Hyman Hartman, “Vírus, evolução e origem da vida”, in Charbel El-Hani e Antonio Augusto Passos
Videira (Orgs.), O que é vida? Para entender a biologia do século XXI, Rio de Janeiro, Relume
Dumará, Faperj, 2000, pp. 233-242.
156
Retomamos a partir de agora diversas passagens do artigo mencionado anteriormente, Thierry
Bardini, op. cit..
122
“Tudo que tenho feito (…) está dominado pelo pensamento sobre o vírus, o
que poderia ser chamado de parasitologia ou virologia, um vírus podendo ser
muitas coisas (…) O vírus é em parte um parasita destrutivo, que introduz
desordem na comunicação. Mesmo do ponto de vista biológico, isso é o que
ocorre com um vírus; faz sair dos trilhos o mecanismo de tipo comunicacional,
sua codificação e decodificação. Por outro lado, é algo que não é vivo nem
não-vivo; o vírus não é um micróbio. E se você seguir estes dois caminhos,
aquele do parasita que, do ponto de vista comunicativo, interrompe uma
destinação – interrompendo a escrita, a inscrição, a codificação e
decodificação da inscrição – e aquele que por outro lado não está vivo nem
morto, você terá a matriz de tudo o que fiz desde que comecei a escrever.”157
157
Jacques Derrida, com Peter Brunette e David Willis, "The Spatial Arts: An Interview with Jacques
Derrida.", in Peter Brunette e David Wills, (Eds.), Deconstruction and the Visual Arts: Art, Media
Architecture, Cambridge, Cambridge University Press, 1994, p. 12. Citado em Thierry Bardini, op. cit..
158
De Jacques Derrida, pode-se ler ainda: “eu não tenho senão uma língua e ela não é minha, a
minha ‘própria’ língua é-me uma língua inassimilável. A minha língua, a única que me ouço falar e me
ouço a falar, é a língua do outro.” Jacques Derrida, O monolingüismo do outro ou a prótese de
origem, Porto, Campo das Letras, 2001, p. 39.
123
“Não concebemos a obra de arte nem como ‘máquinas’ nem como ‘objeto’
(…). Se tivéssemos que buscar um símile para a obra de arte, não o
poderíamos encontrar, portanto, nem na máquina nem no objeto tomados
objetivamente, mas (…) nos organismos vivos.”161
159
Éric Alliez, Da impossibilidade da fenomenologia, São Paulo, Editora 34, 1996, 87.
160
É. Alliez, Da impossibilidade da fenomenologia, op. cit., p. 87.
161
Ferreira Gullar, “Manifesto neoconcreto”, in Etapas da arte contemporânea – do cubismo à arte
neoconcreta, Rio de Janeiro, Revan, 1998, p. 285.
124
Está em jogo aqui o embate entre uma relação com o mundo gerida pelo hábito dos
ritmos cotidianos, que não implica em qualquer ruído de descontinuidade entre nós e
o mundo – sem produção de diferença – e um envolvimento afetivo de tipo mais
radical e intenso – tal qual aquele investido em uma relação transformadora (que
pode se dar – mas não apenas – com as coisas do campo da arte como um dos
espaços intensivos; por exemplo, como desenvolvemos aqui). Para José Gil, a
possibilidade de “captar os mais ínfimos, invisíveis e inconscientes movimentos dos
outros corpos” (e também “movimentos de forças”) se dá quando “o corpo se torna
consciência” – ou seja, estabelece uma relação com os objetos que seria já de fundo
ontológico e não mais fenomenológico, “não mais visando “o sentido do objeto na
percepção” (Merleau-Ponty), mas funcionando “como uma instância de recepção de
forças do mundo graças ao corpo”, e assim “uma instância de devir as formas, as
intensidades e o sentido do mundo”. A modalidade perceptiva em questão atuaria a
partir de uma aproximação que “desposaria” o objeto por “processos precisos de
cognição e contágio”, em que ocorre a “captação das formas e forças que animam o
objeto”: as etapas são delineadas pelo autor como (1) impregnação da consciência
pelo corpo; (2) contato do corpo com o mundo exterior, passando a coincidir com as
forças do objeto; (3) início pelo corpo de um devir-objeto a partir do qual se
estabelece um zona de indiscernibilidade entre corpo e objeto; (4) transferência de
165
Este trecho corresponde a Gilles Deleuze, Diferença e repetição, Rio de Janeiro, Graal, 1988,
p.343. A citação é indicada por José Gil, cujo artigo serve de referência aos comentários que se
seguem. José Gil, “Abrir o corpo”, in Suely Rolnik e Corinne Diserens (Orgs.), Lygia Clark, da obra ao
acontecimento: Somos o molde, a você cabe o sopro, Nantes, Musée de Beaux-Arts de Nantes,
2005, São Paulo, Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2006.
127
certos traços do corpo ao objeto, do mesmo modo que certas propriedades do objeto
se transmitem ao corpo – e Gil nota que “esta descrição sumária não difere muito da
percepção artística”. Há de se notar – e é importante que se destaque –
convergências com o processo anteriormente descrito de produção de alteridade a
partir de contaminação pela partícula sígnica virótica: a preocupação com uma
“ontologia constituinte” parece ser fundamental – mas aqui há a possibilidade de se
perceber um pacto menos invasivo, onde o contato sujeito-objeto (ainda que revele
uma zona de tensão na crista da indiscernibilidade) transcorre (nos parece) de modo
suavemente coreográfico. Mas o mais surpreendente do modelo delineado por José
Gil revela-se através de duas outras construções que se desdobram também a partir
do agregado de sensações pequenas e insensíveis – pois para o autor este corpo
que “se deixa invadir cada vez mais pelos movimentos ínfimos” se transformaria em
“corpo-consciência”, caracterizado por uma “hiperexcitabilidade” e
“hipersensibilidade”: “torna-se capaz de captar as ‘sensações insensíveis’ ou
pequenas percepções”; e “pode entrar imediatamente em contatos-osmose com os
outros corpos” (“abre-se aos outros corpos, conectando-se com os movimentos do
seu inconsciente”). É que na “captação das pequenas percepções pelo corpo-
consciência”, além de ser invadido no “aquém do limiar da consciência” pelo ínfimo e
insensível, há também aquela pequena percepção que “resulta da defasagem entre
dois contextos idênticos” – vale à pena trazer aqui a citação completa:
“Qualquer coisa, um ‘não sei quê’ surgiu hoje no rosto do amigo que vejo
todos os dias. O ‘não sei quê’, indefinido porque microscópico, não é nada
que se veja, é o intervalo entre a percepção macroscópica habitual do rosto
do meu amigo, e a sua percepção atual. A pequena percepção é intervalar:
tem, no entanto, uma forma, uma espécie de contorno interior da defasagem
a que chamei ‘contorno do silêncio’ ou ‘contorno da ausência’. A forma não
descreve uma figura pois o intervalo só é percepcionado enquanto forma das
forças que emanam do conjunto de pequenas percepções. Nada se vê, nada
se ouve, ‘sente-se’ qualquer coisa indeterminada, ilocalizável, que se
128
166
José Gil, op.cit., p. 64-65.
129
167
Lugar enunciado por José Gil como “exterior do interior da zona de fronteira que separa o nosso
corpo do espaço que o rodeia.” J. Gil, op.cit., p. 66.
130
“no final do século XX, neste nosso tempo – um tempo mítico –, somo todos
quimeras, seres híbridos teorizados e fabricados, compostos de máquina e
organismo; enfim, somos todos ciborgues. O ciborgue é nossa ontologia;
orienta nossa política. É a imagem condensada de imaginação e realidade
material, estes dois centros articulados estruturando qualquer possibilidade
de transformação histórica.”169
168
Gilles Deleuze e Félix Guattari, O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia, Rio de Janeiro, Imago,
1976, p. 54 e p. 36-37.
169
Donna J. Haraway, "A Cyborg manifesto: science, technology, and socialist-feminism in the late
twentieth century", in Simians, Cyborgs, and Women, Londres, Free Association Books, 1991, p. 150.
170
D. Haraway, op. cit., pp. 180-181. Haraway conclui seu artigo com a seguinte frase: "I would rather
be a cyborg than a goddess".
131
O campo de trabalho que se abre a partir de NBP dialoga com certas áreas da
cultura contemporânea que têm sido decisivas para a renovação do pensamento,
neste final de século. Refiro-me, em primeiro lugar, à combinação entre campo
comunicativo e desenvolvimento tecnológico, cujo impacto tem se feito sentir desde
o início dos anos 60 (traduzido na "aldeia global" de McLuhan) mas que tem sua
instalação em configuração planetária determinada sobretudo a partir dos anos 80
171
Esta é a última frase de um dos excelentes ensaios da autora em torno do trabalho de Lygia Clark.
Suely Rolnik, “Uma terapêutica para tempos desprovidos de poesia”, in Suely Rolnik e Corinne
Diserens (Orgs.), Lygia Clark, da obra ao acontecimento: Somos o molde, a você cabe o sopro,
Nantes, Musée de Beaux-Arts de Nantes, 2005, São Paulo, Pinacoteca do Estado de São Paulo,
2006, pp. 13-26.
172
S. Rolnik desenvolve o conceito de “corpo vibrátil” como aquele constituído a partir de
“micropercepções”, em diálogo direto com a obra de José Gil mas referindo-se concretamente às
pesquisas de L. Clark: as “macropercepções” seriam “a simples percepção das formas, com a qual
somos familiarizados (…) que objetificam as coisas e as separam do corpo”; as “micropercepções”
apresentam-se como “capacidade própria do corpo vibrátil” em sua relação sensível com o mundo. As
primeiras, indicam um contato com o mundo enquanto “cartografia de formas”; as segundas, como
“diagrama de forças”. “É a tensão deste paradoxo entre micro e macro-sensorialidade que dá o
impulso à potência criadora. (…) [P]ara que esta seja atiçada, é preciso habitar o paradoxo, ou seja,
ativar simultaneamente as duas capacidades do sensível.” Suely Rolnik, op.cit., pp. 13-14, 16, 24.
132
***
Bloco 3
membrana, linha orgânica, escultura-conceitual, espaço háptico, tatilidade
173
NBP x eu-você, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2000. [exposição individual]
174
passagens (NBP), Galeria Artur Fidalgo, Rio de Janeiro, 2001. [exposição individual]
175
transatravessamento, 25ª Bienal Internacional de São Paulo, 2002.
135
183
No sentido de estar aquém e além da arquitetura.
137
desses possíveis encontros. O dispositivo que regula tal dinâmica deriva de recursos
que convergem da escultura, objeto e arquitetura – elementos físicos e estruturais,
algumas vezes modulares, conduzem ela(s) e ele(s) à situação de provocação e
contato.
184
No sentido de estar aquém e além da escultura.
138
Este investimento em contato seria mesmo algo próprio do projeto NBP186 , ainda
que não se dê exatamente como ‘convite’ – estando mais próximo de uma dinâmica
mais complexa de envolvimento que combina a construção de frestas (espaços de
recepção), proposição de possibilidades e requisição de uma atitude ativa por parte
do participante: se este não se desviar de uma postura indiferente rumo a um
posicionamento produtivo – com envolvimento concreto de núcleos de desejo –
nada se passará. Reside aí um desafio complexo, tomado na amplitude do problema
– dentro de possibilidades concretas, pois sempre se faz o que é possível a cada
tempo – e tratado nos termos de oferecimento de algo nas dimensões sensível e
conceitual em duplo jogo, dupla articulação. Além de procurar demonstrar – e isto é
construído concretamente através da reunião de diversos elementos – a presença
de espaços de acolhimento (que, como indicamos, partem da elaboração de vazios,
cuidadosamente preparados), tais projetos para-escultóricos investem igualmente na
dimensão de tatilidade, no sentido de provocar o corpo daquele que confronta os
trabalhos a partir da necessidade de mobilização direta: a superfície das grades
metálicas possui textura própria, claramente demarcada; a frieza do metal é
elemento que surpreende a qualquer gesto de contato; almofadas e colchões
garantem o conforto de superfícies macias e acolhedoras. Ocorrem situações de
toque físico que demandam alguma reação, já que a provocação é explícita. E este
envolvimento avança com o desafio de se atravessar portas e passagens, e superar
obstáculos: em passagens (NBP) e transatravessamento o espectador deve
ultrapassar quatro tamanhos diferentes de portas, necessitando realizar algum
esforço físico; junto aos obs., é levado a tomar a decisão de levantar ou não a perna
para ultrapassar as pequenas barreiras (20 cm de altura), caso deseje efetivamente
ingressar no espaço expositivo. Assim, em sua visita à instalação, o visitante será
levado a combinar dois diferentes comportamentos – fruição estética e esforço físico
185
R. Basbaum, “Módulo de transatravessamento do artista-etc”, op.cit..
186
“performance; negociação; desvio, contato & distribuição”, Cf. Capítulo C, Bloco 1 desta Tese.
139
(EU) olho para um lado, olho para o outro. Fecho os olhos, apuro os ouvidos,
baixo a cabeça, dobro os joelhos, relaxo os braços, solto os ombros, repuxo a
coxa, afrouxo o estômago.187
psiu…
psiu…
psiu…
187
Ricardo Basbaum, “passagens (NBP)”, op.cit..
188
R. Basbaum, “Módulo de transatravessamento do artista-etc”, op.cit..
140
(…)
ah! agora –
é agora – já – neste instante –
agora – veja –
bem aqui – bem aqui!
aqui e agora –
ah!
assim – assim – bem assim
vem – venha – pode vir
assim – aqui e agora
venha aqui – bem aqui
olhe – venha para mim
psiu…
psiu…
aqui e agora – já –
neste instante
pode ver
sim
não – não há nada
não
(…)
141
esqueci de dizer
esqueci – olhe – olhe bem aqui –
espere – espere – esqueci de dizer
já não compreendo
venha aqui
psiu… – não quero e não compreendo
eu posso
olhe – olhe para cá – bem aqui –
nada mais
não vejo nada – nada
olhe para cá – aqui – bem aqui
não há nada
veja…
(…)
não
não me interessa – não quero
não quero saber – qualquer coisa
nada quero saber
fique por aí – você
você – eu – você – eu – você
fique – não diga nada
não quero ver
não
189
Ricardo Basbaum, “psiu-ei-oi-olá-não” – estão aqui representados apenas aqueles parágrafos do
texto que integraram a instalação apresentada. A versão integral inclui um bloco de texto a mais,
além de repetir diversas vezes o último bloco, como um refrão, ao longo do escrito.
142
Este investimento nas regiões de contato não pode ser afastado do interesse
concreto do projeto em relação às experiências de Lygia Clark em torno da linha
orgânica – pois a artista efetivamente investigou o espaço encontrado entre a
coisas, procurando desenvolver sua obra enquanto pesquisa acerca do potencial
transformador localizado nesta área de encontro: quando corpos e coisas (ou corpos
e corpos, coisas e coisas) se tocam (ou se confrontam), delineiam bordas de
intensidade das quais se pode partir para se produzirem problemas e instaurarem
espaços; há em sua prática um conhecimento que não pode ser subestimado.191 Se
a linha orgânica não foi desenhada por ninguém, resultando do contato de duas
diferentes superfícies, necessitando assim ser “descoberta”192 , isto a localizaria
diretamente no mundo, junto a coisas e corpos (e corpos e corpos, coisas e coisas):
ela “era real, existia em si mesma, organizando o espaço. Era uma linha-espaço”.193
190
Este último bloco é extraído do experimento “Ação em Relação ao Estranho”, de Kurt Lewin, e já
havia sido utilizado para uma série de 15 gravuras apresentada em 1993. Cf. Kurt Lewin, “Sinopse
das investigações experimentais”, in Teoria dinâmica da personalidade, São Paulo, Cultrix, 1975, pp.
259-261.
191
Cf. Ricardo Basbaum, “Within the organic line and after”, in Alexander Alberro e Sabeth
Buchmann, Art after conceptual art, Cambridge, MA/London, MIT Press, Vienna, Generali Foundation,
2006, 87–99. As passagens que se seguem são referidas diretamente a este ensaio.
192
Lygia Clark preferia se referir a este gesto como “descoberta”, mas do que como “criação” ou
“invenção”.
193
Lygia Clark, “Lygia Clark e o espaço concreto expressional”, entrevista a Edelweiss Sarmento,
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 2 julho 1959, Republicada em Lygia Clark, Barcelona, Fundació
Antoni Tàpies, Paris, Réunion des Musées Nationaux, Marseille, MAC, Galeries Contemporaines des
143
Musées de Marseille, Porto, Fundação de Serralves, Porto, Bruxelles, Société des Expositions du
Palais des Beaux-Arts, 1998, pp. 83-86.
194
Lygia Clark, “Conferência pronunciada na Escola Nacional de Arquitetura em Belo Horizonte em
1956,” in Lygia Clark, op. cit., p. 72. Publicado originalmente in Diário de Minas, 27 janeiro 1957.
144
entre, habitar infra, agir por “subtração aditiva”195 onde as lacunas contam como
gestos de transformação (pois entre nada há, senão forças).
NBP
é um programa para súbitas mudanças.
Quais? Como? Quando? Deixe-se contaminar:
195
A expressão é de John Cage, “additive subtraction”, ao comentar Erased De Kooning drawing, de
Robert Rauschenberg. Cf. John Cage, “Jasper Johns: estórias e idéias”, in De segunda a um ano,
São Paulo, Hucitec, 1985, p. 75.
145
196
Ricardo Basbaum, “O que é NBP?”, op. cit..
197
Noção desenvolvida por Suely Rolnik em diversos escritos, que procura indicar um corpo aberto,
“que absorve as forças que o afetam, fazendo delas elementos de sua tessitura, marcas de sensação
que irão compor sua memória. Mobilizar a potência vibrátil do sensível é então convocar esta
memória, as marcas de suas vivências fecundas mas também as de seus traumas e os fantasmas
que a partir deles e neles germinaram.” O corpo vibrátil não é o corpo já ‘saudável’, mas aquele que
reconhece sua capacidade de reagir ao entorno e direcionar-se de modo produtivo na criação das
transformações que o potencializem nessa direção. Cf. Suely Rolnik, “Uma terapêutica para tempos
desprovidos de poesia”, in Lygia Clark, da obra ao acontecimento – Somos o molde. A você cabe o
sopro, São Paulo, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Nantes, Musée de Beaux Arts de Nantes,
2006, pp. 13-26.
146
passa e processa no jogo das membranas das bordas de contato das para-
esculturas que se lançam ao confronto. Este sujeito transformado teria a obra ao seu
lado, inscrita no corpo – e ao mesmo tempo se movimentaria mais agilmente nesta
nova condição de hibridização entre corpo e obra de arte, em que o poema é
prótese a circular pelo corpo, enquanto condição imaterial da obra que não
contamina mais a ela(s) e/ou ele(s), mas a eu/você.
euvocê
vocêeu
Deve-se notar que tal operação levada a cabo pela obra de arte em sua captura do
espectador, conduzindo-o da condição de visitante (ela/ele) para participante
(eu/você) – ou seja, trazendo-o de situação de ausência de contato para a ocasião
de constituir membrana entre si e o trabalho de arte – não se processa através de
dinâmica simples mas demanda abordagem complexa, de mais de uma etapa. Deve
ficar claro aqui que não é o objeto ou o elemento da instalação que, em sua
materialidade física, deflagra este processo tanto em sua instantaneidade (pois
existe sempre algo no trabalho de arte que é da ordem de uma “apreensão pática,
imediata e não-discursiva”199 ) quanto em etapas: trata-se de ação conjunta da obra
em suas diversas partes, mecanismo elaborado composto das dimensões plástica e
198
Ricardo Basbaum, “superpronome”, op.cit..
199
Félix Guattari. V. nota 135.
147
Seria preciso então falar aqui de esculturas conceituais para se referir aos trabalhos
que se integram ao projeto NBP, para que se possa compreender a presença de
obras que se instalam no espaço arquitetônico, ali se estruturando como elementos
físicos que procuram desenvolver provocações ao visitante, oferecendo a
possibilidade do desenvolvimento de membranas – o mesmo se passaria com o
objeto de Você gostaria de participar de uma experiência artística? e seu convite
direto à utilização. Enquanto esculturas conceituais, seria indicado que estas peças
constroem suas estratégias de ação trazendo ao primeiro plano a articulação
conceitual que as constitui – principalmente, desenvolvendo a possibilidade que tal
articulação conceitual não se faz presente apenas como paisagem de conceitos
oferecida em contemplação ao visitante mas, enfim, se coloca como agente que
trabalha a inclusão deste visitante enquanto sujeito pensante da obra, capaz (de
acordo é claro com o grau de seu investimento) de desviá-la de rumo para o
148
Bloco 4
experiência, incorporação, sujeito híbrido
medida, aponta todo o trabalho de arte), deve indicar que as experiências que
propõe sejam desenvolvidas em ambiente de intensidade. Somente uma experiência
intensiva oferece o mergulho adequado para a ocorrência de processos de
transformação – isso não quer dizer isolamento formal em relação ao entorno, mas o
desenvolvimento de um processo de contato e de passagens entre seus principais
atores, de modo que em alguma parte esse contato se processe de fato e algum
trânsito se institua; e ali se concentrarão especialmente as forças envolvidas nessa
dinâmica, sem evitar que outros processos continuem ativos e atuantes – mas é
preciso garantir, por instantes que sejam, a erupção de algum ritmo especial. Ocorre
que não existe garantia a priori da deflagração e ocorrência de um processo
intensivo – esta é um dinâmica avessa a um planejamento, organização e
desenvolvimento, no sentido de um plano de metas; daí ser preciso conduzi-la em
termos de aproximações e envolvimento sensorial, pois o que se passará será da
ordem do desejo e da vontade e somente assim a ambiência intensiva se constituirá:
se não houver atividade do espectador, nunca se entrará finalmente no aqui&agora
da experiência intensiva, proporcionadora de transformação. Nada disso será
exclusivo de NBP, mas propriedade da obra de arte em um de seus terrenos de
aventura possíveis – exigência talvez de certa arte contemporânea em escapar o
quanto possível (não existe escape absoluto) dos jogos dominantes do
entretenimento e do mercado. De modo que aqui a obra – em suas componentes
sensorial e discursiva – deverá funcionar no sentido do envolvimento, da oferta de
espaços, da elaboração de membranas, da hibridização, para assim proporcionar a
possibilidade de que o outro, frente à provocação oferecida, encontre este território
onde as forças se acelerem e adquiram trânsito, em limiar de intensidade: que
somente ocorre se existe um estado de trocas entre obra e sujeito participante –
assim é possível alguma transformação.
Não há como obter medidas ou garantias da efetivação deste estado – que seria a
possibilidade mesma de uma experiência: o estado intensivo é experimentado como
vivência do corpo vibrátil201 , vivência de vivência: experimentar a si mesmo em
momento de trocas com a obra – daí também a importância do elemento discursivo,
201
V. nota 197.
150
Daí a importância para o projeto NBP das palavras de Lygia Clark (já indicadas
aqui), ao nomear como “metabolismo simbólico”202 o processo de reação do corpo
ao contato sensível com o mundo, indicando a presença de uma constituição de si –
e então, a obra de arte seria um dos elementos do mundo junto ao qual esse contato
se dá de modo particular, uma vez que se dedica a problematizar o sensível,
produzindo sensações de matriz própria, irredutíveis ao que quer que seja, mas
hábeis na construção de conexões com o entorno. Ao confrontar-se com objetos,
202
V. nota 142.
151
203
E assim o projeto NBP caminha em direção oposta ao “grande sonho e promessa de que a
informação possa se libertar dos constrangimentos que controlam o mundo dos mortais”, expresso
por Marvin Minsky em sua sugestão de que “em breve será possível extrair a memória humana do
cérebro e importá-la, intacta e sem modificações, para discos de computador.” Citado por N.
Katherine Hayles, How we became post-human – virtual bodies in cybernetics, literature and
informatics, Chicago, The University of Chicago Press, 1999, p. 13.
152
partícula invasiva – com a qual só resta conviver, a favor dos instantes especiais que
oferece, percebendo-a em seus contornos não-naturais de diferença:
inevitavelmente, aos poucos esta será devorada, mas isto indicará não seu
aniquilamento, mas assimilação. Pois se o vírus-poema NBP desloca-se pelo corpo
como partícula estranha, esta circulação não se dará através das vias naturais: em
ação conjunta partícula-ambiente se constituirão ali, naquele corpo, outros circuitos,
caminhos e modalidades de circulação cujo efeito principal será restituir as vias de
acesso ao exterior – como se a invasão se desse de fato como estratégia para a
produção de aberturas, como duplo caminho para entrar-sair, trazendo corredores e
passagens, canais e vias duplas. Não interessa a NBP invadir corpos para gerenciá-
los ou assumir postos cerebrais de organização e controle, mas redistribuir sistemas
de circulação de intensidades descentralizadas – mais próximos de dinâmicas de
descontrole – que abrirão passagens para que mais ali se passe, mas também que
mais dali se escape: não se trata de ganhar ou perder, mas amplificar certa dinâmica
dentro-fora, Ou seja, se há para o vírus-poema NBP alguma programação em jogo,
esta se faz enquanto dupla manobra que irá articular interioridade e exterioridade,
amarrando ambas as regiões na dinâmica do corpo: pode ser dito que as etapas do
processo compreendem (1) o contato direto com a obra (instalação, escultura-
conceitual, estrutura arquitetônico-escultórica, diagrama, etc.) – em suas implicações
hápticas –, o que conduz à (2) constituição da membrana intermediária, interface
obra-espectador; através da espessura e densidade destas superfícies de
intermediação, em etapas sucessivas, ocorre (3) a contaminação pelo vírus NBP,
que circula de modo invasivo pelo corpo do sujeito-espectador ali produzindo novos
circuitos que, afinal, (4) conduzem à produção de vias e passagens que enviam de
volta ao exterior. Ocorre que, de fato, não há porque ter estas etapas como fases em
seqüência e resulta ser mais proveitoso perceber a instauração deste processo
como um avanço simultâneo das quatro etapas descritas acima, cada qual em ritmo
próprio – pois não importa de fato a ordem em que se perfazem as ações entre elas,
se consideramos importante acentuar que a apreensão da obra de arte se dá de
diferentes modos, sempre resguardando a importância da imediaticidade do
contato204 : assim, seria decisivo se perceber o trabalho funcionando ao mesmo
204
“[o] corpo que se torna uma espécie de órgão de captação das mais finas vibrações do mundo”.
153
∆t Mr - Me → Zero 205
contextual exterior se instala nas vias de circulação interna, o sujeito se lança para
fora sendo constituído ali no exterior, e, principalmente, reforça-se o lugar em que as
dinâmicas exteriorizante e interiorizante se processam simultaneamente sem perder
sua dupla característica, ou seja, mantém-se o conflito, assimila-se a (inassimilável)
disjunção e assim abrem-se espaços associados a ferramentas de trabalho – a
emancipação (ou cura) pode estar ainda a se consumar, mas se está melhor
articulado e armado para os combates. Há um trânsito (próprio da obra
contemporânea) que se torna intenso e possibilita diversos sítios para intervenção:
NBP ocupa alguns deles, procurando trabalhar potencialidades possíveis do poema
hoje.
intensidades se mede pela influência que ela provoca nos que a percepcionam”206 :
então este corpo coletivo híbrido instaura modificações no entorno (ou seja, na
instalação), conduzindo o trabalho sempre a outras direções, produzindo desvios em
relação ao outro-visitante, à obra e à sua ambiência (triplo endereçamento). Então:
(1) a instalação estará pulsando em repouso, emitindo ritmos a partir de seu padrão
de vibração habitual, como que em contorno de espera, em modo de espreita; (2)
aqueles que tocam, pisam, avançam, deitam, se sentam, repousam, instauram ali
movimento, iniciam deslocamento e dinâmica e o conjunto é ativado – há falas,
conversas, escuta, sonoridade; (3) com a ativação das membranas é que se produz
hibridização e não se sabe mais com clareza os limites entre obra e corpos, pois a
movimentação preenche o espaço com linhas (estado diagramático) que vão e vêm
e – principalmente – deslocam-se através deste misto obra-corpos para dentro e
para fora de cada um (singularidades possíveis), ativando sistemas de circulação
particulares em duplo jogo (sistemas que também se enredam mutuamente, uma
vez que aí redes dialógicas são sim constituídas) – há vibração que põe em
funcionamento intenso trânsito, possibilidade de misturas, probabilidade de trocas;
(4) os efeitos se produzem enquanto mudança, transformação, no sentido de não se
ser mais o mesmo após tal dinâmica: processos de subjetivação deflagrados na
intensidade do contágio, discursividade em multiplicação alterando o campo teórico-
crítico – a dinâmica da obra se coloca em escala temporal, pois não há volta
possível a qualquer estado inicial: uma vez ativados, os trabalhos do projeto NBP
guardam as marcas de cada estado pelos quais passaram e torna-se impossível (de
fato, isto não se deseja) qualquer retorno a um momento de inércia inicial (se bem
que em repouso as peças pulsam, de modo que nunca houve instante zero, início
absoluto em NBP).
Com Você gostaria de participar de uma experiência artística?, ocorre sem dúvida
procedimento similar – com a particularidade de que aqui os protocolos de uma
experiência estão demarcados de maneira mais enfática, pois este projeto assim o
pede. Aqui, a modalidade de contato entre participante e objeto é de variabilidade
muito maior: ao conduzi-lo sob sua guarda, levando-o consigo, este participante –
206
J. Gil, op. cit., p. 65.
156
207
Ricardo Basbaum, “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”, op. cit..
157
208
Referência ao website do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?, que
constitui o banco de dados do projeto, disponibilizando documentação enviada pelos participantes –
trata-se de espaço público de consulta aberto a qualquer um que acesse a internet através do
endereço http://www.nbp.pro.br.
158
Bloco 5
atores participantes, papéis, circuito, artista-etc (agenciador, curador, crítico),
autoria compartilhada
Seria impossível separar o trânsito do artista pelo circuito de arte das configurações
que se adquire nesta dinâmica. Ou seja, ao desenvolver a poética e trabalhar suas
possibilidades de intervenção e inserção, certamente estarão aí implicadas a
constituição de uma figura ou imagem do artista e alguma compreensão dos outros
papéis de personagens com os quais terá que negociar: será necessário perceber,
de modo geral, que gestões deverão ser tramadas para que o trabalho circule
(agenciamento); entender como a obra se relaciona com o espaço expositivo
(curadoria); saber discernir as tramas teórico-críticas do jogo da arte (crítica) – pois
ao avançar na construção do trabalho, o artista se desenvolve em direção à
modalidade que corresponde à atuação pretendida. Mas não se trata simplesmente
de assumir perfis já prontos – ‘artista de sucesso’ ou ‘artista marginal’, por exemplo,
como casos extremos –, embora isso sempre seja possível a qualquer tempo (isto é,
deixar-se configurar conforme a demanda); o mais interessante seria empreender
um constante exercício de escuta em relação à prática e moldar a forma de atuação
e imagem do artista conforme as nuances e exigências da pesquisa plástico-
conceitual empreendida: são pesquisas que correm em paralelo – configurar a obra,
configurar-se como artista.
209
Como gestos iniciais importantes destaco a Filipeta-Manifesto (1984), de autoria da Dupla
Especializada, distribuídas nas ruas do Rio de Janeiro e o texto-poema Olho, de minha autoria,
impresso no cartaz da exposição "Olhos, Discos e Eletrodomésticos", Galeria Contemporânea, Rio de
Janeiro, 1985.
210
Sendo "Rota de Colisão", apresentação da exposição de André Costa, Galeria de Arte do Centro
Empresarial Rio, Rio de Janeiro, 1987, o primeiro texto publicado.
211
A Moreninha realizou três ações principais, todas no ano de 1987, sempre no Rio de Janeiro:
intervenção na palestra de Achille Bonito Oliva (Galeria Saramenha, fevereiro), exposição Lapada
Show (Espaço Brumado, junho), publicação do livro Orelha (lançamento na Petite Galerie,
novembro). Entre os nomes envolvidos (dentre os quais me incluo), alguns com maior e outros com
menor engajamento, encontram-se: Alex Hamburger, Alexandre Dacosta, André Costa, Beatriz
Milhazes, Cláudio Fonseca, Cristina Canale, Chico Cunha, Eneas Valle, Gerardo Vilaseca, Hamilton
Viana Galvão, Hilton Berredo, João Magalhães, John Nicholson, Jorge Barrão, Lúcia Beatriz, Luiz
Pizarro, Lygia Pape, Márcia Ramos, Márcia X, Márcio Doctors, Maria Lúcia Catani, Maria Moreira,
Paulo Roberto Leal, Ricardo Basbaum, Solange de Oliveira, Valério Rodrigues.
160
direto de problemas produzidos e derivados das obras. Algo como uma revolta
contra clichês, no interesse pela emissão de voz própria, individual, coletiva. Se a
primeira ação se deu como intervenção que produz polêmica e se expande pelo
circuito de arte e pelos meios de comunicação, a última se configura como livro,
onde cada membro indica e externaliza seus posicionamentos frente aos
acontecimentos: daí que me parece muito claro que estas ações indiquem o
encerramento do período identificado como “Geração 80” – no sentido de
desconstrução de certas emissões (do circuito comunicacional, de posicionamentos
que recusavam o confronto crítico com as obras) e em rumo à elaboração e
publicação de discurso próprio.212
212
Os episódios protagonizados por A Moreninha estão ainda ausentes do discurso oficial da arte
brasileira, em geral ignorados pela historiografia e pela crítica. Como referências, além da cobertura
de imprensa no período (jornais, televisão), apenas o livro Orelha (vários autores, edição própria,
1987) – do qual foram extraídos os artigos de Eneas Valle (“Geodemas de Uá Moreninha”) e Márcio
Doctors (“A experiência estética da invenção como radicalidade estética da vida”) para publicação em
Ricardo Basbaum (Org.), Arte contemporânea brasileira - texturas, dicções, ficções, estratégias, Rio
de Janeiro, Contra Capa, 2001 – e meu artigo "Cérebro Cremoso ao Cair da Tarde", O Carioca, nº 5,
dezembro 1998.
161
ADVERTÊNCIA:
Atenção para esta distinção de vocabulário:
Amo os artistas-etc.
Talvez por que me considere um deles.
Artistas-etc não se moldam facilmente em categorias e tampouco são
facilmente embalados para seguir viagens pelo mundo, devido, na maioria
das vezes, a comprometimentos diversos que revelam não apenas uma
agenda cheia mas sobretudo fortes ligações com os circuitos locais em que
estão inseridos. Vejo o ‘artista-etc’ como um desenvolvimento e extensão do
‘artista-multimídia’ que emergiu em meados dos anos 1970, combinando o
‘artista-intermídia’ fluxus com o ‘artista-conceitual’ – hoje, a maioria dos
artistas (digo, aqueles interessantes…) poderia ser considerada como
‘artistas-multimídia’, embora, por ‘razões de discurso’, estes sejam referidos
somente como ‘artistas’ pela mídia e literatura especializadas. ‘Artista’ é um
termo cujo sentido se sobre-compõe em múltiplas camadas (o mesmo se
passa com ‘arte’ e demais palavras relacionadas, tais como ‘pintura’,
‘desenho’, ‘objeto’), isto é, ainda que seja escrito sempre da mesma maneira,
possui diversos significados ao mesmo tempo. Sua multiplicidade, entretanto,
é invariavelmente reduzida apenas a um sentido dominante e único (com a
óbvia colaboração de uma maioria de leitores conformados e conformistas).
Logo, é sempre necessário operar distinções de vocabulário. O ‘artista-etc’
traz ainda para o primeiro plano conexões entre arte&vida (o ‘an-artista’ de
Kaprow) e arte&comunidades, abrindo caminho para a rica e curiosa mistura
entre singularidade e acaso, diferenças culturais e sociais, e o pensamento.
(...)
(…)
Amo os artistas-etc.
163
***
213
Ricardo Basbaum, “Amo os artistas-etc”, op. cit..
214
O desenvolvimento a seguir reproduz, com adaptações, os argumentos do texto “Deslocamentos
rítmicos: o artista como agenciador, como curador e como crítico”, de minha autoria, apresentado no
Seminário “Marcel, 30”, 27ª Bienal de São Paulo, 2006. Não publicado.
164
215
As três partes de “The Education of the Un-Artist” foram publicadas originalmente em 1971, 1972 e
1974. Cf. Jeff Kelley (Ed.), Essays on the blurring of art and life, Berkeley, University of California
Press, 1996, pp. 97-109, 110-126 e 130-147, respectivamente.
216
A. Kaprow, “The Education of the An-Artist, Part I”, in op. cit., pp. 103-104.
165
217
Vito Acconci, “Steps into performance (and out)”, in Luces, cámara, acción (…) ¡Cortem! -
Videoacción: el cuerpo y sus fronteras, Valencia, IVAN Centre Julio Gonzalez, 1997, p. 174. No
original Acconci escreve “physical mover”, que traduzimos para “transportador físico”.
218
Vito Acconci, “Lecture: September 16, 2002”, in Jen Budney e Adrian Blackwell (Eds.), Unboxed:
engagements in social space, Ottawa, Gallery 101, 2005.
166
219
Guy Brett refere-se a Robert Smithson, “A sedimentation of the mind: Earth Projects” (1968) in
Jack Flam (Ed.), Robert Smithson: The Collected Writings, Berkeley, University of California Press,
1996, p. 112. Cf. Guy Brett, “Introduction”, in Carnival of perception – selected writings on art, London,
inIVA, 2004, p. 18.
220
No sentido proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari, não de caracterizar o enunciado no
imperativo, mas de enfatizar a “relação de qualquer palavra ou enunciado com pressupostos
implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas
nele. (…) As palavras de ordem [remetem] (…) a todos os atos que estão ligados aos enunciados por
uma ‘obrigação social’.” Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, Vol. 2, Rio de Janeiro, Editora 34,
1995, p. 16.
221
Alain Badiou, Pequeno manual de inestética, São Paulo, Estação Liberdade, 2002, p. 42.
170
é interessante como esta noção se impôs com relativa facilidade, a partir da arte
conceitual, indicando a influência no tecido social de algumas das questões trazidas
pela cibernética, a partir dos anos 1950. Ao se atentar ao ‘sistema’ ou ‘circuito’,
necessariamente está em jogo uma compreensão de seu funcionamento ou
dinâmica, já que “a própria idéia de ‘circuito’ já traz em si a idéia de ‘deslocamento’:
(…) Não que se queira aqui discutir o deslocamento disto ou daquilo, mas perceber
deslocamento como movimento ou estado de coisas com o qual se trabalha”222. A
questão seria, portanto, pensar “o circuito da arte, ou seja, quais os trânsitos que se
estabelecem através de seus vários ‘nós’, entre as diversas componentes do
sistema” no sentido de intervir na presente “economia do sentido ou do significado
da obra e seu jogo de relações”: assim, nesse jogo, produz-se algo da ordem do
imprevisto, em outra ordem rítmica.
222
Faço aqui referência a um texto de minha autoria: Ricardo Basbaum, “Circuito de arte em
deslocamento”, disponível em http://www.videobrasil.org.br/14/port/circuito.pdf. V. Anexo Textos
171
223
R. Basbaum, “Circuito de arte em deslocamento”, op. cit..
224
A terminologia é de Gilles e Deleuze e Félix Guattari: “As sensações, perceptos e afetos, são
seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido”. Cf. O que é a Filosofia?, Rio de Janeiro,
Editora 34, 1992, p. 213.
225
Expressão de Pierre Lévy.
172
226
R. Basbaum, “Circuito de arte em deslocamento”, op.cit.. Cf. Francisco Ortega, Para uma política
da amizade: Arendt, Derrida, Foucault, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2002.
227
É importante lembrar que David Medalla já havia coordenado em Londres a galeria Signals (anos
1960), tendo depois iniciado o grupo de “exploradores transmídia” Exploding Galaxy, atuado junto ao
coletivo Artists for Democracy (anos 1970), e trabalhado junto a grupos como Octetto Ironico, Gay
Galaxy, Synoptic Realists e Mondrian Fan Club (anos 1980/90). Cf. Guy Brett, “Pré-história e proposta
da Bienal de Londres”, Rio Trajetórias, catálogo, Rio de Janeiro, 2002.
173
228
David Medalla, “London Bienalle – statement”, 2000.
229
Ricardo Basbaum, “O artista como curador”, Panorama da Arte Brasileira 2001, São Paulo, Museu
de Arte Moderna, 2001, p. 38.
174
230
Jens Hoffmann, “A exposição como trabalho de arte”, in Concinnitas, Rio de Janeiro, Instituto de
Artes/UERJ, nº 6, julho 2004, p. 20.
175
231
Para a compreensão das relações entre discurso e visibilidade são fundamentais os três pontos da
teoria do enunciado proposta por Michel Foucault. Segundo o pensador francês, enunciados e
visibilidades estão em “pressuposição recíproca”, são “matérias heterogêneas” (não possuem nada
em comum) e estão em estado de “não-relação” (existe um espaço ‘entre’). Daí que somente podem
estabelecer uma situação de confronto, de mútuo “combate e captura”. Cf. Michel Foucault, Isto não é
um cachimbo, São Paulo, Paz e Terra, 1988, e Gilles Deleuze, Foucault, São Paulo, Brasiliense,
1988. V. Parte A, nota 52.
176
232
Ricardo Basbaum, Além da pureza visual, Porto Alegre, Zouk, 2007, p. 29.
233
Revista de arte e cultura contemporânea iniciada no Rio de Janeiro em 1995, da qual fui um dos
editores-fundadores junto com Eduardo Coimbra e Raul Mourão. A partir do segundo número, segui
como editor junto com Coimbra. A revista foi encerrada em 2003, com a publicação de seu sexto
número. As circunstâncias que envolveram a criação da revista e sua relação com o grupo Visorama
(que a precedeu) e com a agência AGORA (que a sucedeu) estão comentados em meu artigo “E
agora?”, Arte & Ensaios, nº 9, Rio de Janeiro, dezembro 2002, pp. 85-93.
177
234
Ricardo Basbaum, "A crítica de arte como um terreno privilegiado da ficção contemporânea",
sinopse de palestra no Foro Internacional de Revistas de Arte Contemporáneo, Cidade do México,
1999. Texto não publicado.
178
235
David Harvey, Condição pós-moderna, São Paulo, Edições Loyola, 1992, p. 191.
179
***
236
Éric Alliez, Da impossibilidade da fenomenologia, op. cit., p. 87.
180
238
Ricardo Basbaum, “Sistema-Cinema”, op. cit..
183
coletiva e pública – construirá outro lugar – também coletivo e público – que aos
poucos se irá habitar (ou melhor: já ali estamos, faltando-nos, entretanto, recursos
para melhor percebê-lo).
Bolocs 6, 7
polifonia, dialogismo, crítica, escultura social, rede, comunidade
Cabe ainda a pergunta, afinal, "o que é NBP?" ? (Não sei se puderam
perceber, mas acabei de enunciar uma pergunta dentro de uma pergunta.
Como responder a tal artefato sintático? Com uma resposta dentro de uma
resposta?) Na primeira vez em que foi enunciada, eu certamente estava
apenas perguntando algo a mim mesmo, que por um 'acidente qualquer de
percurso', veio a público. Está claro que não perguntei antes a vocês "o que é
NBP?". Hoje sim, eu devolvo a pergunta, como pergunta dentro de pergunta,
querendo ouvir, querendo saber, querendo arrancar alguma coisa – como
efetivamente tem acontecido, está acontecendo e acontecerá no projeto que
desenvolvi, estou desenvolvendo e desenvolverei em torno de uma
"experiência artística", em que recebo de volta respostas quanto ao uso de
um objeto NBP (…).240
241
Ricardo Basbaum, “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”, op. cit..
186
artista – trazendo sempre muitos ao primeiro plano. Produzir uma obra não pode se
circunscrever a uma interpretação de si, mas ousar deixar-se capturar pelo outro
através de variados formatos – lançando-se para todos (no sentido de ampla
disponibilização, não de totalidade).
242
É claro que qualquer um que se mostrar interessado revela um efeito de eficiência da captura: já
não haverá indiferença; e será preciso acreditar na importância desta operação enquanto índice de
certas confluências existentes a priori – afinidades com a modalidade de investigação e aventura
pretendida.
188
244
Beth Brait, “As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso”, in Diana Luz Pessoa de Barros e José
Luiz Fiorin (Orgs.), Dialogismo, polifonia, intertextualidade, São Paulo, Edusp, 2003, p. 22.
245
B. Brait, op. cit., p. 22.
190
246
Ricardo Basbaum, texto que abre o item “comments / comentários” do website do projeto Você
gostaria de participar de uma experiência artística?. V.
http://www.nbp.pro.br/blog_comentarios.php?critico=78.
247
Ricardo Basbaum, “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”, op. cit..
191
248
R. Basbaum, op. cit..
192
participante – as manobras podem ser suaves ou bruscas, mas o que sempre ocorre
de fato é o uso, em variadas implicações. Aos poucos, então, o objeto desloca-se
para papel secundário na trama, ao se efetuar a realização da experiência proposta
(“as experiências que você [participante] realizar tornam visíveis redes e estruturas
de mediação, indicando a produção de diversos tipos de relações e dados
sensoriais: os conjuntos de linhas e diagramas, trazidos ao primeiro plano a partir de
sua utilização, são mais importantes que o objeto”) – e novos protagonistas serão
aqueles tópicos efetivamente constituídos a partir daí, nos quais se aposta o
potencial de indicar desvios (“transformação durante a experiência”) a partir de sua
percepção como produção de pensamento (a ser também agregado no cômputo de
um pensamento coletivo). Tal processo, enfim, produzido enquanto constituição de
experiência intensiva, deve produzir documentação: sabe-se da dificuldade e
importância em construir o registro adequado daquilo que aconteceu apenas uma
vez, em algum lugar, a partir da singularidade da experiência – pois se trata de
construir acessos àquilo que efetivamente se configura como irrepresentável e
intransferível para além do aqui e agora de sua realização. Desafio, como se sabe,
já amplamente enfrentado pelos artistas experimentais que (anos 1960/70)
construíram obras em escape do circuito institucional, junto às dinâmicas da vida, da
natureza, etc. – e, na constituição posterior da situação expositiva, recriam junto ao
espectador algo do que foi realizado a partir de fotografias, filmes, vídeos, gráficos,
relatos, etc.: o que se tem a partir daí será sempre reconstrução, produção de nova
experiência com utilização do documento e do arquivo.249 É o mesmo problema,
portanto, que deve ser trabalhado pelo participante: construir documentação das
experiências realizadas – e de fato este gesto deve ser arquitetado e resolvido no
âmbito de cada experiência e participação. Há diferentes abordagens e soluções
adotadas e esta é uma das riquezas de Você gostaria...?: não importa a qual
capacidade técnica do participante ou os recursos utilizados – existe diversidade de
249
Artur Barrio é um destes artistas que desenvolvem sua obra em direta relação com o registro e
sua incompletude. Segundo o artista, "em 1º lugar, toda e qualquer situação, ao ser registrada,
encerra o conteúdo de um momento, portanto, o registro não está condicionado a qualidades
técnicas, assim como também não apenas ao conteúdo, mas sim também a todo o comportamento
psicológico do operador (...) diante de um trabalho, momento ou situação que geralmente provoca
uma série de situações acontecimentos nunca estáticos, tanto física como psicologicamente. (...) pois
já que o material empregado em meus trabalhos é precário, não vejo porque o registro tenha de estar
ligado a aspectos técnicos perfeitos." Artur Barrio, "Da qualidade Técnica do Registro ou
Precariedade" in Barrio, Funarte, Rio de Janeiro, 1978, p. 8.
193
“Meus objetos são para ser vistos como estimulantes para a transformação da
idéia de escultura, ou da arte em geral. Devem provocar pensamentos sobre
o que a escultura pode ser e como o conceito de esculpir pode ser estendido
para os materiais invisíveis utilizados por todos:
250
Ricardo Basbaum, “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”, op. cit..
251
V. http://www.nbp.pro.br.
194
Esta é a razão pela qual a natureza de minha escultura não é fixa e finalizada.
Processos continuam na maioria delas: reações químicas, fermentações,
mudanças de cor, decomposição, secagem. Tudo está em estado de
mudança.”252
A convergência com NBP e Você gostaria…? se dá de maneira direta, uma vez que
na operacionalidade da escultura social objetos atuam como “estimulantes” que
deflagram processos em um triplo endereçamento: voltando-se sobre si mesmos
(“transformação da idéia de escultura, e da arte em geral”), invadindo corpos (“como
nós moldamos nossos pensamentos ou como nós moldamos nossos pensamentos
em palavras”) e estendendo-se por um lado de fora (“como nós moldamos e
formatamos o mundo em que vivemos”) – NBP e suas estratégias invasivas e de
produção de membranas igualmente se dirige ao projeto mesmo, ao outro e a um
fora. Beuys propõe a transformação do mundo a partir da realização de esculturas
imateriais – moldagem e formatação da fala e do pensamento – em processo
contínuo, como obra coletiva de todos. NBP concentra sua poética transformacional
em processos de subjetivação – é aí, nos limites entre eu e o mundo, entre eu e
você, que prefere investir (linha orgânica) – ainda que também mobilize
252
Joseph Beuys, “Introduction”, in Caroline Tisdall, Joseph Beuys, Nova York, The Solomon R.
Guggenheim Museum, 1979, p. 7. (“My objects are to be seen as stimulants for the transformation of
the idea of sculpture, or of art in general. They should provoke thoughts about what scupture can be
and how the concept of sculpting can be extended to the invisible materials used by everyone: /
Thinking Forms – how we mould our thoughts or / Spoken Forms – how we shape our thoughts into
words or / SOCIAL SCULPTURE – how we mould and shape the world in which we live: Sculpture
as an evolutionary process; everyone an artist. / That is why the nature of my sculpture is not fixed
and finished. Processes continue in most of them: chemical reactions, fermentations, colour changes,
decay, drying up. Everything is in state of change.”)
195
Não haveria como NBP tocar todo mundo: há um ritmo pragmático instalado no
projeto que o impele a multiplicar-se lentamente, se comparado ao proselitismo
beuysiano. Entretanto, é como se ao enunciar “todo mundo um artista” Beuys tivesse
preparado o terreno para que Você gostaria de participar de uma experiência
artística? pudesse ocorrer: o vírus NBP estaria pronto para contaminar corpos
artísticos já maleabilizados pelo efeito da palavra de ordem beuysiana – mas os
corpos mobilizados por Joseph Beuys são corpos sem membranas e NBP se
encarregaria do processo de sua constituição, equipando-os para o enfrentamento
sensorial-conceitual do mundo. Na lentidão de seus protocolos dialógicos, Você
gostaria…? não é capaz de atender a demanda de todo mundo, avançando pouco a
pouco – como se Beuys realizasse uma conversão por decreto, e NBP através da
vontade de ação: não importam quais os papéis a serem desempenhados por todos
ou qualquer um (artista, não-artista, an-artista, artista-etc), pois estes seriam
sobretudo lugares de onde se produz, e não identidades como condição a priori de
ação. Uma coisa é atender a todos; outra, mobilizar qualquer um. Este, aparece
subitamente carregado de interesse, reconhece o processo de empatia ou sedução
e se propõe a agir; aquele, espera inerte, certo de haver conquistado um privilégio
que irá trazer para próximo de si recompensa protocolada, porém ainda não
entregue. NBP somente funciona se for capaz de mobilizar aqueles interessados em
conversas, mordidos pela pergunta inicial e ávidos por organizar suas próprias
questões; não haverá explicação a garantir tomadas de posição que não sejam
196
Bloco 8
espaço público, politização, resistência, arte vida, arquivo como
membrana
claro que sempre há um desencontro entre o indivíduo e seu trânsito social, mas ao
produzir esta convergência, ela se dará através do lugar da obra de arte, do poema,
como elemento não completamente assimilável, irredutível ao que quer que seja
mas pleno em efeitos de produção de contato, instauração de membranas e
contágios, abertura de espaços e remissão ao outro. Se tomarmos a noção de corpo
em modalidade estendida, e somarmos ao corpo orgânico a corporeidade dos
papéis institucionais ou mesmo de um projeto de investigação e pesquisa, teremos
também em jogo o corpo do espectador, do artista, do projeto (o corpo da obra, etc.)
– trata-se por um lado, de corpos orgânicos habitados por dimensões institucionais,
sociais; e também da materialidade dinâmica de um projeto que pulsa, se expande
ou contrai em situações contínuas de troca com o ambiente (sem esta conversa, o
projeto se extingue): e então estamos nos movimentando em “espaço topológico
intensivo”, como indica José Gil, onde
253
José Gil, “Abrir o corpo”, op. cit., p. 66.
254
“Aí se sobrepõem o interior e o exterior numa zona de tensão: coincidindo e ao mesmo tempo
opondo-se, o paradoxo desdobra-se abrindo o espaço e multiplicando-se. A zona paradoxal de
hiperexcitabilidade, formada por intensidades divergentes, sustém os investimentos das forças que
procuram conectar-se com as forças do mundo. Enquanto espaço paradoxal, definido por uma
198
Você gostaria de participar de uma experiência artística? não pode ter continuidade
sem pensar-se como construção de arquivo, uma vez que qualquer das experiências
realizadas configura-se como gesto único ancorado no aqui&agora de uma situação
intransferível – daí a produção de registros e documentos, construídos para
possibilitarem a qualquer momento a atualização do gesto inicial, desdobrando-o
para outras regiões da narrativa que se está a desenvolver (em modo descontínuo).
Um arquivo que seja pleno em passagens, sem isolar-se em obsessões
classificatórias, registrando as diferenças de participação e contexto a partir dos
participantes, irá se debater entre banco de dados e memória do corpo – o registro
200
(…)
3. Considere o seu corpo como um veículo
que permite o deslocamento de signos pelo ambiente.
(espacialização do pensamento)
4. Os olhares se fixarão em N.B.P., não em você.
(despistamento)
5. Observe as alterações em seu comportamento.
6. N antes de B e P.
(…)
8. N.B.P. já estará em você.
(contaminação)258
258
Fragmento de texto que acompanha o múltiplo Crachá (NBP), produzido em 1990. Trata-se de um
pequeno crachá de plástico colorido, com as letras N, B e P impressas em sua superfície. Quem o
utilizar por certo período de tempo terá NBP transferido para seu corpo, podendo depois interromper
o uso, pois já estará ‘contaminado’. Este objeto é um curioso objeto-relacional burocrático, pois
articula os efeitos do primeiro através de um objeto típico de identificação institucional (crachá). O
texto completo, estampado no verso da embalagem plástica, contém oito pontos: “NOVAS BASES
PARA A PERSONALIDADE / 1. Use este crachá como quiser. / 2. Considere a relação cor do
crachá/cor da roupa. / 3. Considere o seu corpo como um veículo que permite o deslocamento de
signos pelo ambiente. (espacialização do pensamento) / 4. Os olhares se fixarão em N.B.P., não em
você. (despistamento) / 5. Observe as alterações em seu comportamento. / 6. N antes de B e P. / 7.
Quando não quiser usar mais o crachá, retire-o. / N.B.P. já estará em você. (contaminação)”. Fig. 13-
14
201
259
http://www.nbp.pro.br.
202
Não é o caso de se acreditar em progresso técnico para algum dia resolver tal
conflito: esta diferença permanecerá em aberto, a partir da irredutibilidade um ao
outro dos dois mecanismos e processos – e neste confronto Você gostaria…? se
estrutura e desenvolve corpo próprio de trânsito híbrido, sem se deixar capturar na
promessa da eficiência asséptica do mecanismo técnico ao qual se acopla (que é
assim desviado de certo ideal de redenção através do aparelho), e enfatizando e
promovendo a produção de dimensão sensorial forte a partir da ambiência
intransferível da experiência, a qual elabora outra sorte de partículas para além
banco de dados. Superfícies de contato são aí requeridas: arquivo como membrana,
localizado entre corpo e máquina.
260
Gilbert Simondon, “The Genesis of the Individual”, in Jonathan Crary e Sanford Kwinter (Eds).,
Incorporations, New York: Zone Books, 1992, pp. 297-319. Transdução “denota um processo (...) no
qual uma atividade gradualmente coloca-se em movimento, propagando-se em uma área dada, sobre
a qual opera. Cada região (...) serve para constituir a próxima de tal maneira que no momento mesmo
em que essa estruturação se efetua há uma modificação progressiva ocorrendo em conjunto com ela.
(...) O processo transdutivo é, assim, uma individuação em progresso. (...) Os termos finais aos quais
o processo transdutivo finalmente chega não preexistem ao processo.”
261
Ricardo Basbaum, “Clark & Oiticica”, in Paula Braga (Org.), Fios soltos: a arte de Hélio Oiticica,
São Paulo, Perspectiva, 2008, p. 113. Publicado originalmente em Blast 4: Bioinformatica, New York,
X-Art Foundation, 1994.
203
D
206
A primeira pergunta a caber aqui, seria: qual o lugar deste texto? Espera-se
que o exercício da leitura tenha produzido efeitos de intensidade, de modo a
elaborar uma experiência da ordem do espaço, no sentido de propor certa
organização de termos e conceitos e seus encadeamentos – não apenas entre si,
mas sobretudo em relação direta com uma obra plástica que, por motivos óbvios,
não pode estar igualmente presente aqui, neste momento. Curiosamente, então, a
conclusão desta Tese afirma uma dúvida: como não há maneira de certificar-se a
priori acerca da experiência da leitura, não haveria portanto como se concluir agora
positivamente sobre o funcionamento ou não da proposta pretendida. Mas a
convicção é de que foi possível construir um desafio ou provocação, no sentido de
prometer aqui algo que de saída não se poderia ter certeza de cumprir. Ou melhor,
quando a investigação proposta procura mobilizar-se em torno da teoria de artista, e
ao mesmo tempo indica que esta não constitui corpo próprio, em separado, a ser
oferecido ao leitor, não estaria, desde logo, predestinada ao fracasso? Assim, ao
mesmo tempo em que se busca, afinal, o lugar deste escrito, será preciso perguntar
também: que texto é este?
O que se pretendeu aqui foi exercitar algo do que Michael Lingner indicou
como quádrupla autonomia da obra de arte contemporânea (de conteúdo, formal,
estética, conceitual): seria possível então, a partir da arte conceitual, praticar
experimentações não apenas para além da estética e do formalismo, como também
buscando os limites da concepção da obra, nos termos de seu funcionamento,
inserção institucional, relação com o espectador e demais instâncias de um circuito
ou sistema de arte, etc. Sobretudo, este exercício se efetivaria através da
elaboração de um corpo discursivo que se impõe em presença forte junto à obra, a
funcionar com ela e constituir então uma presença que não se pode evitar ou
ignorar. A veemência desta presença não deve ser desprezada, e pode-se afirmar
que é exatamente aí – na espacialidade própria da existência de um núcleo
discursivo incontornável a funcionar junto à obra – que se travam hoje algumas das
principais batalhas da arte contemporânea: é na possibilidade de controlar ou se
207
262
Por exemplo, “Cruzeiro do Sul”, publicado no catálogo da mostra Information (MoMA, Nova York,
1970) e “Inserções em Circuitos Ideológicos”, apresentado no debate Perspectivas para uma Arte
Brasileira (1970). Cf. Cildo Meireles, “Cruzeiro do Sul”, in Arte Brasileira Contemporânea – Caderno
de textos 1, Rio de Janeiro, Funarte, 1980, p. 28; e “Inserções em Circuitos ideológicos”, in Cildo
Meireles, Rio de Janeiro, Funarte, 1981, p. 22.
208
263
Michael Lingner, “Reflections on / as Artists' Theories“,disponível em http://ask23.hfbk-
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