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DYISDAT ul DLONpA #1 1sAonn, "6661 ‘oysvag ap apop! “MoM Jo favyy “PAL “IIIAX ? AIX 8017098 80 aqua Ddoansy DU ‘8099011934 2 $940] ‘sa40}.2] :80.401] Sop Wap4o ¥ “49604 “YTLLAVHO A ORDEM DOS LIVROS Reunindo sob o titulo acima os ensalos que compéem este I> vyro, quero, antes de mais nada, assinalar a questo que 0 percorre: Como, entre o fim da Idade Média e 0 século XVI, os homens ten- taram/ordenar)o multiplicado nimero de textos que o livro manus- crito ~€ depois o impresso ~ colocou em circulagio? Arrolar os titu- los, classificar as obras, estabelecer os textos: tantas operagoes gracas as quais tomava-se possivel o ordenamento do mundo do escrito. esse imenso trabalho, marcado pela inquietacdo, os tempos contempordineos so herdeiros diretos. B, de fato, nesses séculos de- cisivos nos quais o livro copiado & mao € progressivamente substi- tuido por aquele composto com caracteres méveis e impresso que se fortificam gestos e pensamentos que sto, ainda, os nossos..A inven- $80 do autor como principio fundamental de determinagdo dos textos, © sonho de uma biblioteca universal, real ou imaterial, contendo to- das as obras jé eseritas, a emergéncia de uma nova definigao do livro, associando indissoluvelmente um objeto, um texto e um autor consti- twem algumas das invengdes que, desde Gutenberg, transformaram as relagSes com os textos. Tais relagdes sio caracterizadas por um movimento contradi- {6rio. Por um lado, cada leitor € confrontado por todo um conjunto de constrangimentos regras. Q autor, 0 livreiro-editor, 0 comentador, 0 todos pensam em controlar mais de perto a produglo do sen- ido, fazendo com que os textos escritos, publicados, glosados ou autorizados por eles sejam compreendidos, sem qualquer variagdo possivel, & luz de sua vontade prescritiva. Por outro lado, a leitura é, por definigio, rebelde e vadia. Os artificios de que langam milo os Ieitores para obter livros proibidos, ler nas entrelinhas, ¢ subverter as ligdes impostas so infinitos. 8 Roger Charter © livro sempre visou instaurar uma ordem; fosse a ordem de sua decifragdo, a ordem no interior da qual ele deve ser compreen- ido ov, ainda, a ordem desejada pela autoridade que encomendou ‘ou permitiu a sua publicagdo. Todavia, essa ordem de miliplasfisio- homias no obteve a onipoténcia de anular a liberdade dos leitores. Mesmo limitada pelas competéncias © convengies, essa liberdade sabe como se desviar e reformular as significagdes que a reduziram. Essa dialética entre a imposigio e a apropriagao, entre os limites ‘ranagredidos e as liberdades refreadas nfo é a mesma em toda parte, sempre e para todos. Reconhecer as suas modalidades diversas ¢ vari gies miliplas é o objeto primeiro de um projeto de leitura empe- rhado em capturar, nas suas diferencas, as identidades entre 0s leito- res e sua arte de ler ‘A ordem dos livros tem também um outro sentido, Manuseri tos ou impressos, os livros so objetos cujas formas comandam, se ro a imposigdo de um sentido ao texto que carregam, 80 menos os lusos de que podem ser investidos e as apropriagOes as quais sfo sus- [[ectiveis. As obras, os discursos, s6 existem quando se tornam rea “| dades fisicas, inscritas sobre as pdginas de um livro,transinitidas por tuma voz que Ié ou narra, declamadas num palco de teatro. Compre- ‘Fender os princfpios que governam a Yordem do discurso” pressupie decifrar, com todo o rigor, aqueles outros que fundamentam os pro- ~ cessos de produsio, de comunicagio ¢ de recepgio dos livros (© de | outros objetos que veiculem 0 escrito). Mais do que nunca, historia~ “dores de obras literdrias ¢historiadores das prétias e parilhas cultu- rais tém conscigncia dos efeitos produzidos pelas formas materiais. No caso do livro, elas constituem uma ordem singular, totalmente inta de outros registtos de transmissio tanto de obras can6nicas (quanto de textos vulgares. Daf, eno, a atengio dispensada, mesmo {que disereta, aos dispositivos téenicos, visuais ¢ fsicos que organi- zam a leitura do eserito quando ele se torna um livro. ‘través dos estudos de caso que resine, esta obra busca atingir um outro objetivo: desencadear uma reflextio de alcance mais geral sobre as relagdes reefprocas mantidas pelas duas signficagGes que, cespontaneamente, atribuimos a0 termo cultura. Aquela que designa as obras € 0s gestos que numa dada sociedade justificam uma apreen- estética intelectual; e aquela que trata das préticas comuns, "sem Gqualidades", que exprimem a maneira através da qual uma comuni ‘A-ordem dos livros 9 dade ~ nao importa em que escala — vive e pensa a sua relago com 0 _mundo, com 0s outros ¢ com ela mesma. ‘As obras ~ mesmo as maiores, ou, sobretudo, as maiores ~ nl {8m sentido estitco, universal, fixo. Elas esto investidas de signifi cagdes plurais e méveis, que se constroem no encontro de uma pro- posigdo com uma recepeao, Os sentidos atribufdos as suas formas ¢ 4s seus motivos dependem das competéncias ou das expectativas dos diferentes pblico’ que delas se apropriam. Certament, os cria- dores, os poderes ou os experts sempre querem fixar um sentido e cenunciar a interpretagio correta que deve impor limites & leitura (ou an othe) Todavia, a recepefa tamisém inventa, destoca e distaree Produzidas em uma ordem especifica, que tem as suas regras, suas convengaes e suas hierarquias, as obras escapam e ganham den- sidade, peregrinando, as vezes na mais longa jornada, através do ‘mundo social. Decifradas a partir dos esquemas mentais e afetivos ue constituem a cultura (no sentido antropol6gico) das comunidades {que as recebem, tais obras se tomam um recurso precioso para pensar ‘ essencial: a construgio de um vinculo social, a subjetividade ini dual, relagio com o sagrado. Toda criacio, ao contrério, inscreve mas suas formas © nos seus temas uma relagio: na mancira pela qual ~ em um dado mo- ‘mento e em determinado lugar ~ s4o organizados 0 modo de exerct- cio do poder, as configuragées sociais ou a economia da personali- dade \Pensado (e pensando a si mesmo) como um demiurgo, o escri tor cria, apesar de tudo, na dependéncia. Dependéncia em face das regras (do patronato, do mecenato, do mercado) que definem a sua condigdo. Dependéncia, mais fundamental ainda, diante das determi- rages no conhecidas que impregnam a obra e que fazem com que ela seja concebivel, comunicével, decifravel,) Considerar, assim, que toda obra esti ancorada nas praticas € nas insttuiges do mundo social nao é, portanto, postular uma igual- dade generalizada entre todas as produgSes do espirito. Algumas des- sas, mais do que outras, nfo esgotam jamais a sua forga de signfi- cagio, Parece ser um pouco precipitado invocar a universalidade do belo ou a unidade da natureza humana para compreendé-Ias. O es- sencial encontra-se em outra parte, nas relagdes complexas, sutis, éveis, enlagadas as formas mesmas das obras (sejam elas simbéli 10 Roger Chartier ‘cas ou materiais) desigualmente abertas & apropriagées, aos costu- ‘mes ¢ inquietagdes dos seus diferentes piblicos. Hoje, © que toda a hist6ria cultural deve pensar 6 a paradoxal articulagio entre uma diferenca ~ aquela através da qual todas as so- cciedades separam do cotidiano, de varias maneiras, um dominio par- ticular da atividade humana ~ e as dependéncias ~ que, de diversas ‘maneiras, inscrevem a invengdo estética ¢ intelectual nas suas condi- {des de possibilidade e de inteligiblidade. Esse vinculo problemético se enratza na prépria trajetGria que dé significagao as obras mais po- derosas, aquelas construfdas partir da transfiguragio estética ov retlexiva das experiénclas comuns, compreeuuidas a partir das priti- cas peculiares aos seus diferentes piiblicos. ( ‘Uma reflexio feta sobre a construgdo da imagem do autor, as ) regeas de formagio das comunidades de leitores ou as significagbes 4 utilizadas na edificagdo de bibliotecas (com ou sem paredes) talvez. ccontribua para pormenorizar algumas questdes que hoje atravessam disciplinas do saber e, também, 0 debate pablico. Reintroduzindo a variedade ¢ a diferenga, 16 onde surge espontaneamente a ilusio do universal, ela nos ajuda a nos desprendermos de nossos limites muito seguros e de nossas evidéncias por demais familiares. COMUNIDADES DE LEITORES ‘A memoria de Michel de Certeau Bem longe de serem escritores, fundadores de um lugar préprio, hherdeiros dos lavradores de antanho ~ mas, sobre o solo da lin- ‘guagem, cavadores de pogos e construtores de casas -, 0s litres ‘Ho Viajantes: eles circulam sobre as terras de outrom, cagam, for tivamente, como nbmades através de campos que ndo escreveram, arrebatam os bens do Egito para com cles se regalar. A escrita acumula, estoca resiste ao tempo pelo estabelecimento de um lu- ar, € multiplica a sua produgio pelo expansionismo da reprodu- ‘oA Tetura no se protege conta o desgaste do tempo (n6s nos esquecemos € nds a esquecemos); ela pouco ou nada conserva de suas aquisigbes, e eada lugar por onde ela passa € a repetigao do parafso perdido." Esse magnifico texto de Michel de Certs, a9 contrast 0 es- crit ~ conservador, 0, durével~ a8 letras ~ sempre na ordem do efémero-, acaba por consituir om fundamento obrgatri, ‘multneamente, le constitu um desaioinguetante para toda his Via que se prope a invenarareracionalizar uma prética~ a Ieitira ~ que raramente deixa mareas, © que, a0 dispersa-se em uma infin dade de atos singulares, liberta-se de todos os entraves que visam_ submeté-Ia. Un tal proto repousa, por prnefio, num duplo posti- Indo: que a leita no es, ainda, inscitano texto, e que nio bi, Portanto, distincia pensiivel entre o sentido que Ihe é imposto (por ‘seu autor, pelo uso, pela critica, etc.) € a interpretagtio que pode ser feita por seus leitores; conseqilentemente, um texto s6 existe se hou- ver um leitor para Ihe dar um significado, 12 Roger Charter ‘Quer se trate de um jornal ou de Proust, © texto no tem signifi- ‘cago ano ser alravés de seus leitores; ele muda com eles, orde- nando-se gragus a c6digos de percepgo que The escapam. Ele sé se torna texto através de sua relagfo com a exterioridade do litor, por um jogo de implicagdes e de ardis entre duas expectativas ‘combinadas: aquela que organiza um espaco legfve (uma Titerali- dade) ¢ aquela que organiza uma diligencia, necesséria & efetua- do da obra (uma leitura)? A tarofa do historiador 6, entfo, a de reconstruir as variagBes {que diferenclam os “espagos legiveis" ~ isto €, os textos mas suits formas discursivas e materiais ~ e as que govemnam as circunstincias de sua "efetuagZo" — ou seja, as leituras compreendidas como préticas cconeretas e como procedimentos de interpretagio. ‘Com base nos procedimentos adotados por Michel de Certeau, 6 poss{vel evocar alguns desses mecanismos, problemas e condigdes de viabilidade de uma tal histria, Tr@s pélos, em geral separados pela tradigo académica, definem 0 espago dessa hist6ria: de um lado, a anilise dos textos, sejam eles canénicos ou profanos, deci- frados nas suas estruturas, nos seus objetivos, em suas pretensbes; de outro lado, a hist6ria do livro, além de todos os objetos e de todas as formas que toma o escrito; finalmente, o estudo de préticas que se ‘apossam de maneira diversa desses objetos ou de suas formas, produ- zindo usos e significagdes diferenciados. Para nés, uma questio fun- damental sustenta essa,abordagem que associa critica textual, biblio- grafia e hist6ria cultural: Como, entre os séculos XVI e XVIII, nas sociedades do Antigo Regime, a multiplicada circulagao do escrito transformou as formas de sociabilidade, permitindo novos pensamen- tos e modificando as relagbes de poder? Daf a atengio prestada & maneira pela qual se opera o encontro entre 0 "mundo do texto" e 0 "mundo do leitor’ ~ para retomar os termos de Paul Ricoeur? Reconstruir em suas dimensdes historicas esse processo de “atualizagio” de textos exige, inicialmente, conside- rar que as suas significag6es so dependentes das formas pelas quais| cles sio recebidos ¢ apropriados por seus leitores (e editores). Estes ‘ltimos, de fato, nfo se defrontam jamais com textos abstratos,ideais| | e desprendidos de toda a materialidade: manejam ou percebem obje~ | tos e formas cujas estruturas e modalidades governam a leitura (ou a A ondem dos livros B escuta) procedendo & possivel compreensio do texto lido (ou ouvi- 4o), Contra uma definigdo puramente semintica do texto ~ na qual residem no apenas a eiicaestraturalista, em todas as suas varian- tes, mas também as teorias lterdrias mais cuidadosas em reconstuir a recepedo das obras ~ & preciso levar em conta que as formas pro- dluzem Sentidos e que um texto, estivel por extenso, passa a investi se de uma signfieagdo e de um status inéitos, tio logo se modifi quem os dispostivos que convidam a sua interpretagao Deve-selevar em cont, também, que a leitra & sempre uma pritica encarnada em gestos, em espagos, em hibitos. Distante de tma fenomenologia que apaga qualquet modalidade concreta do ato de ler ¢ 0 caractriza por seus efeitos, postulados como universals (Como também 0 trabalho de resposta ao texto que faz com que 0 a5 suo seja mais facilmentecompreendido grag & mediagdo da inter pretagdo), ma historia das manciras de ler deve identficar as dispo- sige especificas que distinguem as comunidades de Ieitores © a5 tradigbes de litura, Essa abordagem prssupbe o reconhecimento de vias séries de contrasts; em primeiro lugar, entre as competéncas de Ietura, A clivagem entre alfabetizados e analfabetos, essencial mas grosseira, nfo esgota as diferengas em relagdo ao escrito. Aque- les que sto capazes de lr textos nfo ofazem da mesma manera, eh uma grande diferenga entre os lerados talentosos eos letores menos habeis,obrigados a oralizar 0 que Ieem para poder compreender, ou ‘que 36 se sentem 8 vontade com algumas formas textuais ou tipogra- ficas. HA contrases, igualmente, entre as normas e as convengdes de leitura que definem, para eada comunidade de litres, os usos legt- timos do livro, as maneiras de lt, os instruments e procedimentos da interpretagdo, Conrases, enfin, encontramos entre os diversos in- tereses expectaivas com os quai os diferentes grupos de leitores invest a prtica da leitura. Dessas determinagdes que governam as priticas dependem as maneiras plas quais os textos podem ser lidos e lidos diferentemente por leitores que nfo dispem das mesmas ferramenis inteleetais, e que nfo mantém uma mesma relagao com oesctit, Michel de Certeauilustou tal sbordagem ao caracterizar 0s tragosespectficos da letura mistia, assim defnidos: "Por ‘leituras mistica' eu entendo o conjunto de procedimentos de leiturarecomen- dado ou praticado no eampo da experignia de solitérios ou dos gru- 4 Roger Chartier pos designados, nos séculos XVI e XVII, como ‘iluminados’, ‘misticos', ou ‘espirituais".* Nessa comunidade minoritéria, marginal, dispersa que € o meio mistico, a leitura tal como regulamentam nor- ‘mas € costumes, investe 0 livro de fungdes originais: substtuir a ins- tituigao eclesidstica tida por enfraquecida, tomar possfvel uma pa- Tavra (aquela da oragio, da comunicagio com Deus, do conversar), indicar as priticas através das quais se constr6i a experi€ncia espiti- tual. A relagio mfstica com o livro pode, também, ser compreendida ‘como uma trajet6ria onde se sucedem varios "momentos" da leitura 2 instauragdo de uma alteridade que fundamenta a busca subjetiva, 0 desdobramento de um prazer, 0 suplicio do corpo reagindo’ a ‘manducagio" do texto, e, a0 fim desse percurso, a interrupsio da leitura, 0 abandono do livro, 0 absoluto desprendimento, Observar, assim, as redes de préticas ¢ as regras de leituras proprias as diversas comunidades de Ieitores (espirituais, intelectuais, profissionais, etc.) 6 uma primeira tarefa para se chegar a uma hist6ria da leitura preocu- pada em compreender, nas suas diferengas, a figura paradigmética desse leitor que 6 um furtivo cagador> Mas ler & sempre ler alguma coisa. Por certo que a condigio de existéncia da histéria do livro é radicalmente distinta de uma his- {ria do que é lido: © leitor emerge da histria do liv, na qual ele esteve por um longo tempo confundido, indistinto. (..) O leitor era considerado um efeito do livro. Hoje ele se destaca desss livos dos quais se Julgava ser ele um reflexo harmonioso, Bis que o reflexo se deli ‘ela, gna o seu relevo, adqure uma independéncia.® Esta independéncia fundadora nio é, todavia, uma liberdade arbitréria. Bla € limitada pelos c6digos e convengdes que regem as, priticas de uma comunidade de dependéncia. Ela € limitada, também, plas formas discursivas e materiais dos textos lidos. "Novos leitores criam textos novos, cujas significagdes depen- dem diretamente de suas novas formas." Assim D.F. MeKenzie de- finiu com grande acuidade o duplo conjunto de variagbes ~ variagSes 1a disposigao dos leitores, variagSes nos dispositivos textuais e for- ‘mais ~ que toda a histéria, desejosa de restituir a significagio move- diga e plural dos textos, deve levar em consideragdo. Podemos tirar proveito dessa consatagdo de diversas manciras:indicando os con- teases maiores que distinguem os modos de litura;caracterizando as pritieas mais populares dos litores; ou pestando stengao as frm- Jas editoriais que textos antgos oferecem a novos compradores, mais numerosos e mais humildes. ‘Uma tal perspctivatraduz a dupla insatsfago frente &histé- fia do liv feita na Franga nos dhtimos trnta anos, Esta, durante muito tempo, se dera por objeto a desigual medida da presenga do l- ‘ro entre os grupos que compunham a sociedade do Antigo Regime. Dai, a constragio (que continua als, necesséria) de indicadores aptosarevelar as dstancias culturais; assim, para determinado tempo «© espago, a porcentagem de inventérios péstumos mencionando a posse de livros, a classticagdo de colegdes segundo 0 ndmero de ‘obras que comportassem, ot ainda, a caracteizagao temstica das bi- blotecasprivadas em fungéo da parte que nelastém as diferentes ca- tegoris biblogréficas. Nessa perspectiva,reconhecer as leituras dos franceses entre os séculos XVI e XVII era, antes de qualquer outra coisa, constituir séries de dados numerados, estabelecer pisos quant- talivos eobservar as tradugées culturais das dferengassociais ssa abordagem, coleivamenteassumida (inclusive pelo autor deste texto), fez acumlar um saber sem o qual outras intrrogagées pensiveis. Todavia, tal nfo se deu sem problema. Ela se ba- scia em uma concepgio de carter acentuadamente sociogrifico que postula, de forma implicita, que as clivagiens Culturais so organiza das segundo um recorte social prévio. E preciso, ereio eu, recusar ‘essa dependéncia que aticua as dstincas, constutdas a prior entre 4s priticas culturais e oposies socials, seja na escala de contrastes macroseépicos (entre os dominantese os dominados ~ entre as elites € 0 povo), sea na escala de dferenciagSes mais miidas (por exem- plo, entre os grupos soins hierarquizados pela dstingio de condigao de offcio ou de nveis de fortuna). Nao hé o que obrigue as partilhas cutursis a se ordenarem de acordo com uma grade tnica de recorte do social, recorte esse que Supostamente comandaria a desigual presenga de objtos culturais, bem como as diferensas de conduta em relagao a eles. A perspectiva deve ser modificada,preocupando-se em desenhar,primeiro, as éreas sociis nas quais cireulam cada corpus de textos e cada género de im- press, Partr, entéo, dos objetos e nao das classes ou dos grupos, 16 Roger Chartier leva-nos a considerar que @ hist6ria s6cio-cultural & francesa viveu ‘muito tempo sob uma concepgdo mutilada do social. Privilegiando apenas a classficagio sécio-profissional, ela esqueceu que outros prinefpios de diferenciagao, eles também plenamente sociais, poderi- am dar, com maior pertinéncia, razio a outras distincias culturais: pertencer a um sexo ou a uma geraglo, adesbes religiosas, solidarie- dades comunitérias, tradigdes educativas e corporativas, et. Em sua definigGo social e serial, ahistéria do livro visava ca- racterizar as configuragdes culturais a partir de categorias de textos supostamente especificas. Tal operagdo revelou-se duplamente redu- tora, Por uit lay, ela assemella a identifieagao de diferengas &s dni ‘cas desigualdades de reparti¢fo; por outro, ela ignora os processos através dos quais um texto faz sentido para aqueles que o Iéem. Con- tra tais postulados € preciso propor vérios deslocamentos. O primeiro situa 0 reconhecimento das distincias mais arraigadas socialmente nos usos contrastados de materais partilhados. Mais do que nunca, foi dito que nas sociedades do Antigo Regime os mesmos textos s50 apropriados, quer pelo leitor popular, quer por aqueles que nio esta- vam inclufdos nessa categoria. Seja porque leitores de condico hu- ilde tiveram a posse de livros que no Thes eram particularmente destinados (€ 0 caso de Menoechio, o moleiro friulano; de Jameray Duval, o pastor da Lorena; ou de Ménéira, o vidraceiro parisiense),* seja porque livreiros e impressores inventivos e prudentes colocaram 40 alcance de uma grande clientela textos que antes s6 circulavam no ‘mundo restrito de letrados afortunados (€ 0 caso dos pliegos sueltos castethanos e dos plecs catalies, dos chapbooks ingleses ou da f6r- ‘mula editorial conhecida na Franca sob o termo genérico de biblio- theque bleue). O essencial & compreender como 0s mesmos textos podem ser diversamente apreendidos, manejados ¢ compreendidos. © segundo deslocamento incide sobre a reconstrugao das redes de préticas que organizam, histérica e socialmente, os modos renciados de acesso aos textos. A letura néo é somente uma operagio abstrata de inteleccio; ela é engajamento do corpo, inscrigdo num es- ‘pago, relagio consigo ¢ com os outros. Bis por que deve-se voltar a ‘tengo particularmente para as maneiras de ler que desapareceram «em nosso mundo contemporéneo. Por exemplo, a letura em vor. alta, em sua dupla fungo: comunicar 0 texto aos que no 0 sabem deci- frat, mas também cimentar as formas de sociabilidade imbricadas A ordem dos livros ” igualmente em sfmbolos de privacidade ~ a intimidade familiar, a convivéncia mundana, a conivéncia letrada. Uma historia da leitura no deve, pois, limitar-se a genealogia tinica da nossa maneira con- tempordnea de ler em siléncio ¢ com os olhos. Ela tem, também e s0- bretudo, a tarefa de encontrar os gestos esquecidos, os habitos desa- Parecidos. Essa iniciativa € muito importante, pois revela, além da dlistante estranheza de priticas antigamente comuns, estruturas es- pecfficas de textos compostos para usos que no sio mais os mesmos dos leitores de hoje. Ainda nos séculos XVI ¢ XVII, a leitura implicita do texto, literdrio ou ndo, constitufa-se numa oralizagio, e seu "leitor” aparecia como o ouvinte de uma palavra lida, Dirigida tanto a0 ouvido quanto ao olho, a obra brinca com formas € proce- ddimentos aptos a submeter o texto as exigéncias proprias da perfor- ‘mance oral. Dos temas do Don Quixote as estruturas de textos que participam da bibliotheque bleue, numerosos so os exemplos desta ligagio entre 0 texto ea vor? "Seja 0 que quer que fagam, os autores no escrevem livros. 5 livros nao so absolutamente escritos. Eles sio fabricados por et pistas e outros artifices, por operdrios e outros técnicos, por prensas © outras méquinas."!° Essa observagio pode introduzir 0 terceiro dos deslocamentos que gostaria de sugerir. Contra a representagdo elabo- rada pela prépria literatura e retomada pela mais quantitativa das hi \érias do livro ~ segundo a qual o texto existe em si mesmo, isolado dde toda a materialidade — deve-se lembrar que no hi texto fora do suporte que o dé a ler (ou a ouvir), e sublinhar o fato de que no existe a compreensio de um texto, qualquer que ele seja, que nao dependa das formas através das quais ele atinge © seu leitor. Di distingo necessaria entre dois conjuntos de dispositivos: os que des- tr textuais e intengBes do autor, ¢ os que resultam de decisbes de editores ou de limitagées impostas por oficinas impres- s autores nao escrevem livros: ndo, eles eserevem textos que se tomam objetos escritos, manuscritos, gravados, impressos e, hoje, informatizados. Essa clivagem, espago onde, alids, constr6i-se um sentido, foi, durante muito tempo, esquecida, A histéria literdria elds- sica percebia a obra como um texto abstrato cujas formas tipogréficas ‘do importavam. O mesmo ocorreu com a "estética de recepgo”, que postula ~ malgrado o seu desejo de “historicizar” a experiéncia que os 4 18 Roger Chartier Icitores absorvem das obras ~ uma relagio pura ¢ imediata entre os 'snais" emitides pelo texto ~ jogando com as convengées literérias, accitas ~¢ 0 "horizonte de expectativa" do pablico ao qual édirigido. [Numa tal perspectiva, 0 “efeito produzido" nio depend, em absolu- to, das formas materiais que 0 texto suporta."" Estas, todavia, contri bbuem largamente para modelar as expectativas do leitor, além de convidar a participagdo de outros piblicos e incitar novos usos. Voltamos, assim, a0 nosso triingulo inicial, definido pela re- lado estabelecida entre 6 texto, o livro ea letura, Retomando as ex- pressées de Michel de Certeau, as variagdes dessa letura apontam para algumas figuras elementares da relagao entre “espago legivel” & “efetuagio". A primeira refere-se a um texto estével, dado a ler em formas impressas que, estas sim, sofrem uma mudanga. Estudando as inovagGes que sobrevieram quando da edico das pecas de William Congreve, na virada do século XVII para o XVIMl, DF. McKenzie ‘demonstrou como transformagées formais aparentemente insignifi- ceantes (a passagem do in-quarto para in-octavo, a numeragio das, cenas, a presenga de omamentos entre elas, a indicago nas margens do nome de quem fala, a mengo de entradas e safdas) tiveram um. feito importante sobre a ordenagio das obras. Uma nova legibilidade nascia, gragas a um formato de fécil manejo e pela organizagao das pginas, que resttuia ao livro algo do movimento da organizagio c&nica, rompendo, assim, com as antigas convengSes que imprimiam pecas sem nada thes resttuir de sua teatralidade. Logo, surgia uma nova mania de ler 0 texto, ¢ também um novo horizonte de recep- 0, pois os dispositivos wilizados na edigio in-octavo de 1710, eopi- ados daqueles utilizados nas edigées do teatro francés, deram uma legitimidade inédita as pegas de Congreve, inscritas, doravante, em tum cnone elissico ~ aquele que levou 0 autor a depurar, aqui e ali, 0 seu estilo, adaptando-o a essa nova “dignidade” tipogrfica.!? As va- riagbes das modalidades mais formais de apresentagio dos textos puderam, entéo, modificé-los, assim como mudaram os seus registros de referéncia eas suas manciras de interpretagio. Em maior escala, 0 mesmo aconteceu com a principal modifi- casio no "imprima-se", entre os séculos XVI e XVIII ~"o triunfo de~ vo dos brancos sobre os pretos"!® — quer dizer, a aeraco da p- ina pela multiplicagao dos parégrafos que quebram a continvidade interrupta do texto, e aquela das alineas, que entre idas e vindas & ‘A ordem dos livros 19 linha tornam a ordem do dicurso imediatamente mais legivel. Uma nova leitura das mesmas obras ou dos mesmos gneros 6 assim suge- rida pelos editores de entio; uma leitura que fragmenta os textos em unidades separadas, e que reencontra, na articulagao visual da pgina, as conexGes intelectuais ou discursivas do raciocinio. Esse recorte pode ter implicagdes fundamentais quando se trata de um texto sagrado. E conhecido o embarago de Locke diante do habito, entdo difundido, de dividir o texto da Biblia em ca versfculos. Para cle, uma tal forma implicava o risco de ver oblite- rada a poderosa coeréncia da palavra de Deus. A prop6sito das epis- {olas de Paulo, notava que: “Nao apenas o vulgo toma os versiculos ppor aforismos distintos ao Ié-los, mesmo os homens de maior saber, pperdem muito da forga ¢ do poder de sua cocréncia e da luz que deles se desprende”. Em seu entender, os efeitos de tal recorte siio desas- {rosos, autorizando a cada seita ou partido religioso fundar a sua le- gitimidade sobre os fragmentos da Escritura que mais Ihe parogam confortiveis: ‘Se uma Biblia fosse publicada como devera ser, ou Seja, com as suas diferentes partes escritas em discurso continuo, seguido pelo argumento, estou convencid de que os diferentes partidos as eri- ticariam como uma inovagSo e uma mudanga perigosa na publica: (0 desses santos livros. (..) Basia a ele (0 fiel de ume Tercja qualquer) munir-se de certos versiculos das Santas Escrturas ‘contendo palavras expressdes de fécil interpretaglo(..) para que ‘sistema, que 0s ter integrado 2 doutrina ortodoxa de sua Igreja, logo 08 faga advogados poderotor e irrefutéveis de sua opinito, Essa 6a vantagem de frases separadas e da fragmentagio das Es- crituras em versicules que, rapidamente, torar-se-i0 aforismos Independentes.'¢ Segunda figura: auela na qual a passagem de uma forma de digo para outra direcona, ao mesmo tempo, trasformigdes no texto ea constinigéo de um nov pablico. £0 caso evidente do cor- ‘pus de ttulos quc constitu o catélogo da biblionheg onjunto prendeu a atengdo dos historindores durante tanto tempo € porque ele parecia fornecer um acessodireto “cultura popular” do ‘Antigo Regime, cultura essa supostamente expressa e alimentada por 20 Roger Chartier tais livros, difundidos em massa para o mais humilde dos leitores.!5 Parece claro que a quasetotalidade das obras que compdem o fundo francés da livrariade colportage’ no foi escrita para um tal fim, A bibliothéque bleue & uma férmula editorial que vai beber no repert6rio de texts jé publcados, aqueles que mais parecem convir \as expectativas do grande pilico que cla quer atingt. Donde duas |precaugSes necessérias: nfo tomar os livros de capa azul como "populares" em si mesmos, pos eles pertencem a todos os géneros da literatura erudita; considerar que ees ja possufam uma primeira ex t€ncia editorial, vezes muito antiga, antes de ter ingressado no e- | perro de livros para um grande nme de leiton © estudo dos ttlos do catslogo “popular” permitin observar como disposigées formas e materiis podem encerrar em si mesmas 05 indices de diferencia cultural, Com efeito, a especificidade fun- damental dabiblionhéque bleue remete as intervengdes editorisis ope radas sobre os textos a fim de torné-os legiveis paras largas clien- telas a que sio destnados. Todo esse trabalho de adaptag liminu, simplifica, recorta ¢ ilustra os textos ~ é coman rmaneira através da qual of livreiros e impressoresespecializados nesse mercado representam as competéncias e expoctativas de seus compradores. Assim, as propria esruturas do livro sto dirigdas pelo modo deleitura que os editors pensam ser oda clientelaalmeada. Esta dima trata-se de uma teresa constatagao ~ 6 sempre pensada como uma letura que exige sinis vsives (ttulos anteeipados ou resumos sinttios e recapitolativos, ou ainda gravuras em madeira aque funcionam como protocolos de leitara ou lugares ce meméria). uma leitra agradével, se tilizadas seqiéncias breves e fechadas, separadas umas das outras; uma leitura que parece se contentar com uma coeréncia minima, uma mancira de ler que nfo & a das elites le- tradas do perfodo, mesmo que certs notiveis nfo vejam com maus olhos a compra dos livros de capa azul, As obras impressas para um maior nimero de leitores apostam no pré-conhecimento dessesleito- res. Pela recorrencia de formas muito coificadas, pela repetigdo de temas semelhantes de um titulo ao outro, pelo reemprego das. mes- mas imagens, 0 conhecimento do texto jf visto ¢ utilizado para a ‘compreensio de novas leturas. © catélogo azul tomas, assim, uma * coorage vend ambuane jor on eet mera. (8 do.) ‘A ordem dos livros 21 ieitura que € mais reconhecimento do que verdadeira descoberta, E, portanto, nas particularidades formais das edigSes e nas modificagGes ue elas impdem as obras das quais se apoderam que se pode reco- hecer o caréter "popular". ‘Ao propor essa reavaliagao da bibliothéque blewe, nossa inten- ‘80 no € apenas compreender 0 mais poderoso instrument de acul- turagiio escrita na Franga do Antigo Regime,'® E, também, mostrar ue a indicagio das diferengas s6cio-culturas e o estudo dos disposi- tivos formais e materais, onge de exclufrem-se reciprocamente, es- to necessariamente ligados. E isso nio apenas porque as formas se ™modelam gragas as expectativas e competéncias aribufdas ao pablico por elas visado, mas, sobretudo, porque as obras e objetos produzem ©.seu nicho social de recepeto, tanto mais quanto nao forem produzi- das por divisdes cristalizadas ¢ prévias Recentemente, Lawrence W. Levine fez uma bela demonstra- ‘80 disso."” Analisando a forma como eram encenadas as pegas de Shakespeare na América do século XIX (sto 6, misturadas a outros gtneros: 0 melodrama, a farsa, 0 circo, a danga, etc), ele revelou como esse tipo de representagio criou um piblico numeroso, “popular”, que nio estava reduzido a elite letrada e que era partici- pante ativo do espetéculo, através de reagées e emog6es. No final do século, a estrita partlha estabelecida entre os géneros, 08 esilos © 0s lugares dividiu esse piblico "universal", reservando para uns 0 Shakespeare “Iegitimo", e destinando aos outros um divertimento "popular". Na constituigao dessa bifureated culture, as tansforma ges na apresentagZo das pecas de Shakespeare (mas também da mi sica sinfOnica, da Gpera, das obras de arte) tiveram um papel decisi Yo, fazendo suceder a um tempo de mistura e de partlha, wm outro, no qual 0 processo de distingio social produzia a separagao cultural, Os dispositivos tradicionais de representagio do repert6rio "shakespeareano" na América so da mesma ordem das transforma- 8s "tipogréficas” operadas pelos editores da bibiocheque blewe nas obras de que se apropriaram. Tanto uns quanto os outros objetivam inscrever 0 texto numa matriz cultural que nio é a dos seus destina- \érios originais, permitindo, assim, "Ieituras", compreensdes ¢ usos possivelmente desquilificados por outros habitos intelectuais (Os dois exemplos levam a considerar as distincias eulturais ‘io como mera tradugdo de divisdes estétieas e iméveis, mas como 2 Roger Chartier feito de processos dindmicos. Por um lado, a transformagio das for- mas e dos dispositivos através dos quais um texto € proposto pode ctianiovos piblicds e'fiovos usos; por outro, a partilha dos mesmos. ‘objetos por toda uma sociedade suscita a busca de novas diferengas, pias a sublinhar as distincas existentes. A trajetéria do impresso, no ‘Antigo Regime francés, pode servir como testemunha disso. Tudo se passa como se as distingBes entre as maneiras de ler fossem reforga- das A medida que o escrito impresso tomava-se menos raro, menos ontrolado, mais comum, Enguanto a simples posse do livro signifi- cou, durante tanto tempo, uma clivagem cultural, a conguista do im- presso investiv progressivamente as posturas de Ieitura © 03 objetos tipogrificos de uma tal fungio. As leituras distintas © 0$ livros re- uintados se opBem, desde entao, aos impressos prematuros © aos decifradores ineptos. ‘Mas, tanto uns quanto os outros, lembremo-nos, Iéem recor- rentemente os mesmos textos, cujas signifieagSes miltipas e contra- dlitérias se inventam a luz de contrastados usos. A questio torna-se, desde j4, aquela da escotha: por que alguns textos se prestam melhor do que outros a esses reempregos durdveis ¢ multiplcados?"® Ou por «que 0s produtores de livros se consideram capazes de ganar piblicas tio diversos? A resposta reside nas relagBes sutis estabelecidas entre as estruturas mesmas das obras, desigualmente abertas a reapropria- Ges, e nas determinagdes miitiplas ~ tanto institucionais, quanto formais ~ que regulam a possivel "aplicago" delas (no sentido her- rmenéutico) a situagdes muito diferentes. a relagio entre texto, impresso ¢ letura, surge uma terceira figura quando um texto, estével na sua leitura e fixo em sua forma, & apreendido por novos leitores que o lem diferentemente de seus pre- {f eecessores, "Um lio muda pelo fato de que ele ndo muda quando 0 | mundo muda"? — e para tomar a proposigao compativel com a escala do nosso trabalho, acrescentemos ~ "enquanto o seu modo de leitura muda", A observagio € suficiente para justificar © projeto de uma historia das prticas de leitura, endo como meta a indicagSo dos con- trastes mais importantes que se pode extrair dos sentidos diversos de tum mesmo texto, 4 € tempo de questionartrés dessas clivagens fun- ‘damentais, tidas por certas. Em primeiro lugar, aquela entre uma lei- tura onde a compreensio pressupée uma necesséia oralizagao ~ em vor alta ou baixa ~ € uma outra, possivelmente visual” Lembramos ‘Aordem dos livros 2B aqui (mesmo se a cronologia € discutfvel) a observagdo de Michel de Certeau, associando a liberdade do leitore a letura em silencio: A leitura tomou-se, depois de trésséculos, um gesto do olho, Ela ro 6 mais acompanhada, como antes, pelo rumor de uma artict laglo vocal, nem pelo movimento de mandueagio muscular. Ler sem pronunciar em vor alta ou 8 meia-voz € uma experié rodema", desconhecida durante milénis. Antigamente,o leitor imteriorizava 0 texto; ele fazia de sua voz o corpo do outro; ele era, a0 mesmo fempo, autor. Hoje 0 texto no impe o seu ritmo ao Individuo, ele nao se manifesta mais pela vou do leitor. Essa suspensio do emprego do corpo, condigéo de sua autonomia, equivale a um distanciamento do texto. Ela 6 0 habeas-corpus do Ieitor2 AA seguir, passemos a clivagem entre uma leitura “intensiva" — confrontada a livros pouco numerosos, apoiada na escuta e na me- :méria, reverencial e respeitosa ~ e uma leitura “extensiva’, consumi- dora de muitos textos, passando com desenvoltura de um ao outro, sem conferir qualquer sacratidade & coisa lida;22 enfim, entre a leitura da intimidade, da clausura, da solidio, considerada como um dos suportes essenciais da constituigo de uma esfera do privado, ¢ leitu- ras coletivas, disciplinadas ou rebeldes, feitas nos espagos comunit ios 23 Esbogando uma primeira trama eronol6gica, que contém como mutago maior os avangos progressivos da leitura silenciosa na Idade Média ¢ a entrada no mundo da leitura extensiva no fim do século XVIII, tais oposigdes, tornadas cléssicas, conduzem a varias refle- xBes. Umas tendem a tomar menos simples as dicotomias apresenta- das, chamando a atengio para os deslocamentos, embaralhando os critérios que diferenciam de maneira abrupta os estilos de leituras, invertendo as figuras que associam espontaneamente o coletivo e 0 Popular, a elite e 0 privado;* outras, convidam a articular t6s séries de transformagées cujos efeitos foram, muitas vezes, mal deslinds- dos. Por um lado, as “revolugSes" ocorridas nas técnicas de reprodu- ‘edo de textos (com a passagem da scribal culture para a print cul- jure), por outro, as mutagdes das formas especificas do livro, A substituigo do livro em rolo (volumen) pelo livro em cadernos 24 ‘Roger Chartier (Codex) nos primeiros séculos da era crist@ foi a mais importante; po- rém, outras, certamente mais diseretas, modificaram 0s dispositives visuais da pégina impressa entre 0 século XVI e o XVII}2° Enfim, as mudangas em larga escala tanto das competéncias quanto dos mo- dos de leitura, Existem af diferentes conjunturas, que nio surgiram no mesmo ritmo e que no foram cadenciadas pelas mesmas censuras. A, ‘mais interessante pergunta formulada pela historia da leitura hoje é, sem nenhuma davida, aquela que diz respeito As relagées entre esses te@s conjuntos de mutagdes: as tecnolégicas, as formais e as culturais Da resposta que Ihe dermos depende a reavaliagdo dus trajet6- ias e recortes culturais que earacterizam a sociedade do Antigo Re- ime, Mais do que se diz, tai trajetérias e recortes se ordenam a par- tir da presenga do escrito impresso. Durante muito tempo, essa socie- dade 86 foi avaliada de acordo com duas séries de medidas: aquelas que, gragas & contagem das assinaturas, visavam estabelecer as per- ‘centagens de alfabetizagio ~ logo, as variagées na capacidade de ler segundo as épocas, os lugares, os Sex0s € as condigdes ~ ¢ us outras ue, examinando os inventarios de bibliotecas arganizadas por noté- ros ou livreiros, tendiam a medir a circulagio do livro ¢ as tradigdes de leitura Todavia, ndo mais nas sociedades do Antigo Regime do que nna nossa, 0 acesso ao impresso no pode ser reduzido 2 exclusiva posse do livro: nem todo livro fido € necessariamente possufdo, ‘nem todo impresso mantido no foro privado & necessariamente um i vo. Além disso, 0 escrito est mesmo instalado no coragio da cultura dos analfabetos, presente nos rituais, nos espagos pablicos, nos es- agos de trabalho.” Gragas & palavra que o decifra, gragas 3 imagem ‘que 0 desdobra, ele se torna acessivel mesmo Aqueles que sto incapa- 2e8 de ler, ou que dele nio podem ter, por si s6s, nada mais que uma compreensio rudimentar. As taxas de alfabetizagio nio fornecem, entfo, uma justa medida da familiaridade com o escrito ~ tanto que nas sociedades arcaicas, onde o aprendizado da leitura © da escrita so dissociados © sucessivos, ha numerosos individuos (sobretudo mulheres) que deixam a escola sabendo ler, ao menos um pouco, mas sem conseguir eserever2 A posse privada do livro nio indicaria, tampouco, a freqiiéncia do manejo de textos impressos por aqucles pobres demais para ter uma “bibliotec: ‘A ordem dos livros 25 ‘Mesmo que parega ser impossivel estabelecer 0 mimero desses leitores que nfo sabiam sequer assinar, ou © dos leitores que nao pos- sufam um livro sequer (pelo menos no um livro que fosse digno de ser anotado pelo notério que fazia o inventério de bens) mas que, as- sim mesmo, liam panfletos e cartazes, folhas volantes e jornais, é preciso pensar neles como tendo sido numerosos, para compreender 0 impacto do escrito impresso sobre as formas antigas de uma cultura que ainda era bastante oral, gestual e iconogréfica, Entre os dois mo- dos de expressio ¢ de comunicagao, as imbricagSes si. miltiplas, Primeiramente, entre o escrito ¢ 0 gesto: nfio apenas o escrito esté no contro das festas wibunnas © das cerimOnias religiosas como também. ‘numerosos textos continham a intengdo de anular-se como discurso, produzindo, sob © ponto de vista pritico, condutas reconhecidas ‘como conformes as normas sociais ou religiosas. E 0 caso, por exem- Plo, dos tratados de civilidade que visavam fazer os individuos incor- pporarem as regras da polidez mundana ou da decéncia rista.28 Imbricagdo, jgualmente, entre palavra ¢ escrito, ¢ de duas ma- neiras: por um lado, os textos destinados pelo autor ~ e, mais corre temente, pelo editor ~ ao piblico mais popular encobrem com fre-

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