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BOLETIM I 70

REVISTA DA ÁREA DE HUMANAS


jan./jun. 2017

Incluída no SNPG – nível A


(Sistema Nacional de Pós-Graduação)

CENTRO DE LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS
REITORA
Berenice Quinzani Jordão
VICE-REITOR
Ludoviko Carnasciali dos Santos
DIRETOR DO CLCH
Ronaldo Baltar
VICE-DIRETORA
Elaine Fernandes Matheus
REDAÇÃO
Isabel Cristina Cordeiro
Esther Gomes de Oliveira

CAPA
Bianca Matos Ferreira

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E COMPOSIÇÃO


Maria de Lourdes Monteiro

CONSELHO EDITORIAL
Volnei Edson dos Santos
Paulo Bassani
Celso Vianna Bezerra de Menezes

PARECERISTAS
Dr. Francisco Moreno Fernandes - Univ. Alcalá de Henares - España
Dr. Aquiles Cortes Guimarães - UFRJ
Dr. Jesús Castilho - Univ. de Valladolid - España
Dr. José Oscar de Almeida Marques - UNICAMP
Dr. José Nicolau Julião - UFRRJ
Dra. Salma Ferraz - UFSC
Dr. Otávio Goes de Andrade - UEL

PUBLICAÇÕES
BOLETIM, CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA – LONDRINA-PR. - BRASIL, 1980

1980, (1) 1993, (24,25) 2005 (48,49)


1981, (2,3) 1994, (26,27) 2006, (50,51)
1982, (4,5) 1995, (28,29) 2007, (52,53)
1983, (6,7) 1996, (30,31) 2008, (54,55)
1985, (8,9) 1997, (32,33) 2009, (56,57)
1986, (10,11) 1998, (34,35) 2010, (58,59)
1987, (12,13) 1999, (36,37) 2011, (60,61)
1988, (14,15) 2000, (38,39) 2012, (62,63)
1989, (16,17) 2001, (40,41) 2013, (64,65)
1990, (18,19) 2002, (42,43) 2014, (66,67)
1991, (20,21) 2003, (44,45) 2016 (68,69)
1992, (22,23) 2004, (46,47) 2017 (70, )
ISSN 0102-6968

I
BOLETIM 70

REVISTA DA ÁREA DE HUMANAS


jan./jun. 2017
Incluída no SNPG – nível A
(Sistema Nacional de Pós-Graduação)

CENTRO DE LETRAS
E CIÊNCIAS HUMANAS

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina – nº 70 – p. 1-184 jan./jun. 2017
Indexado por / Indexed by
ISSN 0102-6968
Sociological Abstracts SA
Linguistics and Language Behavior Abstracts LLBA

Toda correspondência deverá ser enviada à

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA


Centro de Letras e Ciências Humanas
Campus Universitário – Cx. Postal, 6001
CEP: 86051-990 – Londrina-PR.

boletimhumanas@uel.br
Fone / Fax:(43) 3371-4408

Publicação semestral / Bi-annual publication


Solicita-se permuta / We ask for exchange

Biblioteca Central da UEL


Ficha Catalográfica

Catalogação na fonte elaborada pela Biblioteca Central da UEL


Boletim / Centro de Letras e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Lon-
drina. – V. 1 (1980)- . – Londrina : a Universidade, 1980- .
v.; 21 cm

Semestral

Descrição baseada em: v. 25 (jan./jun. 1994)

ISSN 0102-6968


1. Sociologia – Periódico. 2. História – Periódico. 3. Letras – Periódico. 4.
Filosofia – Periódico. 1. Universidade Estadual de Londrina.

CDD 301.05
CDU 301:4:I(05)
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO..................................................................... 7

ASTERIX E OS HERMENEUTAS: UMA ANÁLISE DE


HISTÓRIAS EM QUADRINHOS À LUZ DE ALGUMAS
TEORIAS DE INTERPRETAÇÃO........................................... 11
Adriano Clayton da Silva

O ENSINO E A GESTÃO FRENTE ÀS RECOMENDAÇÕES


PARA O ENSINO MÉDIO E PROFISSIONAL....................... 33
Ângela Maria de Sousa Lima; Eliane Cleide da Silva Czernisz; Juliana
Bicalho de Carvalho Barrios

DIÁLOGOS COM GUSTAVE COUBERT E MACHADO DE


ASSIS EM A ORIGEM DO MUNDO, DE JORGE EDWARDS
DIOGO DA SILVA NASCIMENTO........................................ 63
Diogo da Silva Nascimento; Telma Maciel da Silva

O E S TA D O B R A S I L E I R O C O M O ‘ E S TA D O
PATRIMONIALISTA’: ALGUMAS CONTROVÉRSIAS.......... 81
Elsio Lenardão

REFERENCIAÇÃO E ARGUMENTATIVIDADE: ALIADOS


DA PRODUÇÃO TEXTUAL.................................................... 109
Eva Cristina Francisco

EFEITOS DE SENTIDOS NO HUMOR POLÍTICO: UMA


ANÁLISE DISCURSIVA............................................................ 131
Helena Cristina Lübke; Talita Canônico e Silva
A ADAPTAÇÃO DE MENINOS DE KICHUTE, DE MÁRCIO
AMÉRICO, PARA O CINEMA: COMO A CONSTRUÇÃO
D O S M E C A N I S M O S I N T E RT E X T U A I S R E V E L A
MOTIVADORES ...................................................................... 149
IDEOLÓGICOS
Jaime dos Reis Sant’anna

RECURSOS LINGUÍSTICO-ARGUMENTATIVOS NUMA


CRÔNICA DE MACHADO DE ASSIS.................................... 169
Rita de Cássia Simões Martelini
APRESENTAÇÃO

O Boletim nº 70, referente ao 1º semestre de 2017, faz a


divulgação de oito artigos, nas áreas de Letras, Ciências Sociais,
Educação e Ensino.
O primeiro artigo, “Asterix e os hermeneutas: uma análise de
histórias em quadrinhos à luz de algumas teorias de interpretação”,
de Adriano Clayton da Silva, apresenta um caminho de análise
hermenêutica e intertextual de dois álbuns de história em quadrinhos
do personagem francês Asterix, com base, principalmente, nas teorias
de Umberto Eco.
As autoras Ângela Maria de Sousa Lima, Eliane Cleide da
Silva Czernisz e Juliana Bicalho de Carvalho Barrios, no trabalho
intitulado “O ensino e a gestão frente às recomendações para o
Ensino Médio e Profissional”, discutem as recomendações para
a formação do homem, cidadão e trabalhador num contexto em
que predominam a organização e a gestão do trabalho flexível e
competitivo, com o objetivo de ultrapassar a esfera da adaptação de
adolescentes, jovens e adultos à sociabilidade produtiva capitalista.
Diogo da Silva Nascimento e Telma Maciel da Silva, no
artigo “Diálogos com Gustave Coubert e Machado de Assis em A
origem do mundo, de Jorge Edwards”, focalizam a intertextualidade
estabelecida entre o quadro A origem do mundo, do pintor Gustave
Coubert, o romance homônimo do escritor chileno Jorge Edwards
e o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis.
Elsio Lenardão, no artigo “O Estado brasileiro como ‘Estado
patrimonialista’: algumas controvérsias”, apresenta alguns contra-
argumentos à sugestão, predominante na imprensa e no senso
comum, de que ainda estaria em vigência no Brasil um Estado de
tipo patrimonialista. O autor investiga dados comparativos a respeito
da burocracia brasileira atual (profissionalização, estabilidade,
remuneração) e do Estado (tamanho, gastos), visando relativizar e
desmistificar, nesses aspectos, a “hipótese patrimonialista”.

7
No trabalho “Referenciação e argumentatividade: aliados da
produção textual”, Eva Cristina Francisco destaca a importância da
elaboração adequada de um texto, abordando, mais especificamente,
a produção textual no contexto da aprendizagem escolar. A autora
apresenta algumas contribuições da Linguística Textual no ensino,
considerando a referenciação e a argumentação como elementos
responsáveis pela construção textual.
As autoras Helena Cristina Lübke e Talita Canônico e
Silva, no artigo “Efeitos de sentidos no humor político: uma
análise discursiva”, divulgam o estudo de duas piadas sobre dois
políticos brasileiros, Anthony Garotinho e Sérgio Cabral, ambos
ex-governadores do Rio de Janeiro, os quais são investigados pela
Polícia Federal por serem acusados de corrupção. Com base em
elementos da Análise do Discurso francesa, as autoras ressaltam a
importância do humor na transmissão de determinados efeitos de
sentido responsáveis pela formação ideológica do enunciador.
Jaime dos Reis Sant’Anna, no artigo “A adaptação de Meninos
de Kichute, de Márcio Américo, para o cinema: como a construção
dos mecanismos intertextuais revela motivadores ideológicos”,
discute as relações dialógicas entre cinema e literatura na adaptação
do filme Meninos de Kichute (2010), de Luca Amberg, baseada
no romance homônimo de Márcio Américo, publicado em 2003.
O autor salienta como os mecanismos intertextuais revelam
motivadores ideológicos utilizados no processo criativo, sobretudo
no que se refere ao resgate da memória coletiva de um grupo de
crianças pobres de Londrina, nos anos 1970.
Rita de Cássia Simões Martelini, no artigo “Recursos
linguístico-argumentativos numa crônica de Machado de Assis”,
analisa uma crônica de Machado, de 1883, na qual o autor traça
um perfil do acionista da época, definindo-o como um indivíduo
indolente, desconhecedor de finanças e preocupado apenas com
os dividendos da companhia. O seu interlocutor, um carneiro de
estimação, procura convencê-lo de que também é acionista, mesmo

8
apresentando-se em forma de animal. A partir dessa alegoria, a autora
verifica como certos recursos linguístico-argumentativos, entre eles,
a adjetivação, a seleção lexical, a metáfora e a ironia contribuem para
o processo persuasivo do texto machadiano.
ASTERIX E OS HERMENEUTAS:
UMA ANÁLISE DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS À
LUZ DE ALGUMAS TEORIAS DE INTERPRETAÇÃO

Adriano Clayton da SILVA1

RESUMO: Este trabalho apresenta um caminho de análise hermenêutica e intertextual


de dois álbuns de história em quadrinhos do personagem francês Asterix. A análise é
acompanhada pelas teorias de interpretação e intertextualidade propostas por alguns
pensadores da Hermenêutica, com destaque para Umberto Eco. Também há um exemplo
de superintepretação, em que Asterix é encontrado numa das obras de Eco. Ao final se
demonstra, pela via hermenêutica, que os álbuns analisados representam críticas aos
povos ali estereotipados – ingleses e espanhóis. O objetivo deste trabalho é mostrar como
explorar e utilizar as teorias interpretativas na literatura, tanto no Ensino Médio como
na Graduação.
PALAVRAS-CHAVE: Hermenêutica; Interpretação; Intertextualidade; Asterix.

ABSTRACT: This work aims to show a way of hermeneutic and intertextual analysis
of two comic book albums of the French character Asterix. The analysis is followed by
interpretation and intertextuality theories proposed by some Hermeneutics philosophers,
especially Umberto Eco. There is also an example of super interpretation, in which Asterix
is found in Eco’s works. At the end, it is proved that the analyzed albums represent
critiques to the stereotyped people showed there - English and Spanish. The objective
of this work is to present how to explore and use the interpretive theories in literature,
both in High School and Undergraduate.
KEY-WORKS: Hermeneutics; Interpretation; Intertextuality; Asterix.

1
Doutorando no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas
– Unicamp.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 11-32 – jan./jun. 2017 11
Introdução

Ler um texto, seja este qual for, e ser capaz de enxergar além
do seu sentido mais óbvio2 é uma habilidade muito desejável em
círculos de literatura ou liturgia: sempre há a possibilidade de um
texto estar dizendo mais do que ele aparenta. Mas a capacidade
de ver além da superfície também pode ajudar no decorrer da
vida e das oportunidades que esta apresenta, seja na interpretação
das leis e regulamentos que regem nossas condutas diariamente,
seja na compreensão subliminar das conversas que travamos com
familiares, chefes e outras pessoas pertencentes às esferas que
frequentamos. Entender exatamente o que o marido ou a esposa
quis dizer com a frase “Está tudo bem comigo”, em tom ríspido
e seguida de um olhar atravessado, pode salvar o dia.
Voltando aos textos escritos, literários ou não, Stanley Fish
(1992) apresenta de forma quase didática a questão de estarmos
quase sempre presos a uma intepretação possível, mais óbvia, em
detrimento de outras, devido às comunidades interpretativas que
frequentamos e às ideias que circulam nelas. Dando o exemplo
da frase Is there a text in this class?, que para o autor poderia ter ao
menos três interpretações possíveis, Fish aponta que as normas
que determinam a interpretação dela não estão na língua, “mas
são inerentes a uma estrutura institucional dentro da qual as
pessoas ouvem os enunciados como já organizados com referência
a certos propósitos e metas previamente assumidos” (Ibidem, p.
194). Assim, dentro de um curso universitário de literatura, a
pergunta acima, feita por uma aluna no começo do semestre a
um professor, iria evocar quase instantaneamente a interpretação

2
É claro que, conforme será explicado mais à frente, o óbvio para um não é necessariamente
óbvio para outrem.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 11-32 – jan./jun. 2017 12
mais óbvia, que é saber se haverá algum texto a ser lido e seguido
durante o semestre naquele curso.
Mas ser capaz de sustentar a interpretação mais óbvia pode
também ser um desafio e exigir habilidades do leitor. Na falta
do autor para explicar exatamente o que ele quis dizer em seu
próprio texto3, o leitor pode enfrentar dificuldades para explicar as
escolhas do primeiro na construção do texto, da história contada
e da narrativa.
O filósofo, semiólogo e escritor Umberto Eco foi um dos
autores da atualidade que mais se debruçou sobre o problema da
interpretação, ou da superinterpretação. Seus textos abrangem
diversos aspectos dos mecanismos pelo qual se pode compreender
um texto, e serão a base da teoria de interpretação que se
utilizará neste trabalho para interpretar dois álbuns de história
em quadrinhos do personagem francês Asterix. Mas não foram
poucas as dúvidas com relação às definições de autor, leitor e
narrador que Eco apresenta como uma espécie de sistema de
caixas chinesas ou matrioskas. Os esquemas são tão instigantes que
chegamos até a propor um algoritmo que buscaria “simplificar”
as relações e possíveis interpretações de um texto por um leitor4,
por exemplo. Muitas questões levantadas permaneceram abertas.
Afinal, nem as leituras de Os limites da Interpretação (2004) e de

3
Considerando aqui que o prórpio autor saberia isso. Essa ideia será mais bem explicada
nas próximas páginas.
4
F(L) = L.A, com L=V1±V2±V3±... e A=V1±V2±V3±..., onde F(L) indica a qualidade da
interpretação proposta pelo leitor, L é o texto, ou o intentio operis, A é o conjunto de todo
o conhecimento do leitor, e V indica cada conhecimento específico do texto ou do leitor.
Assim, quanto mais conhecimento tiver o leitor (quanto maior A, ou quanto mais Variáveis
de conhecimento), maior a possibilidade de ele encontrar uma interpretação válida para
o texto; por outro lado, quanto mais intertextualidade tiver o texto (quanto maior L, ou
quanto mais variáveis), maiores são as chances de o leitor percebê-las e deduzir daí uma
boa interpretação. Se, porém, L≠A, então o conhecimento do leitor não é compatível com
as informações do texto e ele nunca conseguirá uma interpretação válida para o texto,
ou seja, F(L) = 0.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 11-32 – jan./jun. 2017 13
Interpretação e Superinterpretação (1993), livros mais antigos, nem
a leitura de Seis passeios pelos bosques da ficção (1994), que seria
um desenvolvimento posterior de Eco, permitem chegar a um
esquema de leitura determinista. O que temos são apenas meios
para traçar uma hipótese de interpretação do texto escolhido.
Primeiramente trazemos um resumo das propostas de Eco,
fundindo as idéias que aparecem nos três livros acima citados. Ao
mesmo tempo, apresentamos algumas ideias de outros autores
que servem de contrapontos às teorizações de Eco. A seguir,
apresentamos brevemente o conceito de estereótipo e alguma
noção de referenciais culturais – o cerne das ideias que mantêm
vivas as histórias de Asterix. Depois, chegamos às analise dos
álbuns. Por se tratar de histórias em quadrinhos (HQ), Asterix
entre os bretões e Asterix na Hispania, os dois álbuns ora analisados
apresentam um tipo de intertextualidade bem diferente da que
costumamos encontrar em outros textos literários. Basta lembrar
que numa HQ a imagem carrega tantas ou mais informações que
as palavras (por exemplo, a expressão facial de um personagem não
usa palavras para ser expressa na HQ). Mas foi justamente isso
que atraiu nossa atenção. Por fim, trazemos um pequeno ensaio
de superinterpretação, no qual buscamos “provar” que Asterix
aparece no livro de Eco.
Como dito no começo, interpretar textos é uma habilidade
muito necessária tanto na literatura quanto no cotidiano. Assim,
o que buscamos com este trabalho é mostrar uma teoria de
interpretação compreensível e utilizável, para ser ensinada tanto
para alunos do Ensino Médio como para seus futuros professores,
ainda na Graduação. A escolha por analisar HQs, além das já
mencionadas, se deve também ao fato de ser um tipo de texto
muito comum atualmente, tanto no dia a dia dos leitores quanto
nos concursos vestibulares de diversas universidades do Brasil.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 11-32 – jan./jun. 2017 14
Uma teoria de interpretação de Eco?

O que é o leitor? Quantos sentidos um texto pode ter,
ou melhor, quantos sentidos podemos extrair de um texto ou
nele inserir? Essas são algumas das perguntas que, acreditamos,
guiaram Eco quando ele desenvolveu suas teorias de interpretação.
Nos Seis Passeios, Eco (1994) se pergunta: o que um autor
deve escrever para que seu leitor o entenda? Uma das imagens
mais usadas ao longo de todo o livro são as carruagens: não é
preciso dizer ao leitor que uma carruagem é puxada por cavalos,
isso é algo que o leitor pode deduzir mesmo nunca tendo visto
uma carruagem. O autor pode deixar de informar uma série de
coisas, pois conta com a inteligência, a lógica e as inferências do
leitor para que o texto seja lido.
O jogo da busca de pistas e sentidos pode também se fazer
a partir da falta de outros tipos de informações, deixando no leitor,
por exemplo, a eterna dúvida quanto à traição de Capitu em Dom
Casmurro. Para Eco, é possível que o leitor empírico (ECO, 1994, p.
15-16) – também chamado de “leitor ingênuo” – sinta-se “traído”
ao final do livro de Machado de Assis, enquanto o leitor-modelo
(Ibidem, p. 15), mesmo relendo várias vezes o livro em busca
de novas pistas, não se sentiria frustrado, pois entenderia que a
“intenção” do autor teria sido aquela mesma. Teria e não teria, pois,
enquanto escreve, o autor tem uma ideia a expressar, uma intenção,
mas que na verdade pode ter outro significado dependendo da
leitura (ECO, 2004, p. 07).
Eco afirma que o autor deve saber o que trazer para seu
texto se quiser ter como leitor determinada pessoa, já que serão
suas pistas que criarão na mente desse leitor cenários e previsões,
e é isso que torna o “jogo” interessante para o leitor. Mas o próprio

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Eco precisa criar uma diferença entre autor empírico (ECO, 1994,
p. 17) e autor-modelo (Ibidem, p. 20), o primeiro sendo o escritor
propriamente dito, e o segundo sendo aquele que detém as chaves
para a compreensão do texto escrito. Essa ideia de um autor
(modelo ou não) que possui a única, ou a melhor, interpretação
possível de um texto, porém, já vem sendo debatida há certo tempo
dentro dos círculos literários. Grandes pensadores como Michel
Foucault (1979) e Roland Barthes (2004), seguindo uma linha
de pensamento atualmente conhecida como pós-estruturalismo,
apontam que o autor jamais teria controle sobre sua obra.
Uma vez escrito, o texto pode conter informações, e oferecer
interpretações, que o próprio autor não imaginava estarem ali.
Insistir na infalibilidade do autor serviria tão somente para manter
cânones engessados e os empregos dos críticos literários. O maior
destaque para o leitor também ajudou a quebrar o paradigma de
que a intenção do autor (a intentio autoris de Eco) seria a mais
importante e aquela que todos buscariam. Mas, a fim de termos
uma teoria ainda aplicável, prossigamos dando certo poder ao
autor-modelo de Eco.
A ideia de autor-modelo contrasta com outro conceito
apresentado por Eco (2004, p. 14): o intentio operis, a intenção da
obra, que seriam as ideias lançadas pelo autor no texto sem nem
mesmo ele ter se apercebido disso. O contraste se dá justamente
porque, então, é possível haver outras interpretações de uma obra
que não dependem da vontade do autor (modelo ou não). Como
Eco contorna isso?
O autor explica que todos os seus tipos de leitores e
intentiones só têm sentido dentro de um limite. O texto não
pode dizer tudo simplesmente porque o autor não domina todos
os assuntos possíveis e imagináveis. Mesmo que haja num texto

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diversas referências a outras obras literárias, situações, eventos
históricos e sociais, etc., isso não quer dizer que o leitor deve
buscá-las todas, imaginando que o autor-modelo (intentio auctoris)
queria isso. Ou seja, o intentio auctoris nem sempre coincide com
o intentio operis – as referências podem não querer dizer o que o
leitor-modelo deve encontrar. Quando o leitor começa a enxergar
mais do que o texto pode mostrar, ele está, segundo Eco (1993, p.
57), fazendo uma interpretação paranóica, ou superinterpretando.
Essa questão do que o leitor-modelo deve encontrar é uma
constante nas obras de Eco, que enfatiza de diversos modos que
há limites e que eles não devem ser ultrapassados. Assim, um
leitor que se proponha a ler um texto somente pode encontrar
ali algumas interpretações predefinidas, logicamente, pelo autor,
e isso de acordo essencialmente com o que ele deixa transparecer
ou não no texto e com as relações advindas do que foi exposto, ou
seja, os tempos do texto, da história, do enredo; as referências a
eventos históricos e/ou locais reais; as próprias instruções explícitas
sobre como ler ou entender algumas passagens, etc. Mas será que
o leitor deve aceitar essas regras de Eco?
O teórico da literatura Jonathan Culler (1993), dialogando
diretamente com o próprio Eco, defende essa ideia de
superinterpretações, justamente porque elas poderão “esclarecer
ligações ou implicações ainda não percebidas ou sobre as quais
ainda não se refletiu” (Ibidem, p. 131). Culler chega a cutucar
Eco, dizendo que este

Também acredita que a superinterpretação é mais interessante


e intelectualmente valiosa do que a interpretação ‘segura’ e
moderada. Ninguém que não estivesse profundamente atraído
pela ‘superinterpretação’ poderia criar os personanges e as obsessões
interpretativas que animam seus romances. (Ibidem, p. 131)

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 11-32 – jan./jun. 2017 17
Sejam quais forem os motivos que levaram Umberto
Eco a propor teoricamente a moderação das interpretações e,
paradoxalmente, praticar a imoderação em seus romances, não
invalidam diversos outros pontos de sua proposta de leitura
interpretativa de textos aqui apresentada.
Outro conceito muito trabalhado por Eco é o de tempo.
A questão do tempo liga-se ao enredo – a forma como a história
é contada –, ao estilo e à história cronológica do romance. A
organização interna dos eventos pode ser construída de forma
sucinta e rápida, quando se deseja que o leitor passe rápido por
alguma parte do enredo, ou de forma detalhada e até prolixa,
quando o autor quer que o leitor delongue a leitura sobre certos
fatos ou personagens. Flashbacks (rememorações de eventos
anteriores ao momento da narrativa) e flashforwards (projeções
de eventos que ainda vão ocorrer) são também ferramentas
fundamentais na construção do texto5.
Eco dedica os dois últimos capítulos dos Seis Passeios
exclusivamente aos acordos ficcionais que se estabelecem entre
autor e leitor. Uma regra básica de todo romance histórico citada
por Eco é que “a história pode ter um sem-número de personagens
imaginárias, porém o restante deve corresponder mais ou menos
a que aconteceu naquela época no mundo real” (ECO, 1994, p.
112). Por outro lado, ao iniciar uma leitura, o leitor aceita que
certos aspectos ou fatos ou eventos apresentados são reais dentro
do universo daquele texto. O autor frisa que é fundamental que
o leitor saiba que está lendo uma ficção e que, por mais que
apareçam no universo da obra fatos e lugares idênticos aos do
mundo real, o leitor-modelo não deve sair por aí procurando tais

5
Eco explica bem esses conceitos no capítulo 2 dos Seis Passeios (1994), e eles têm os mesmos
efeitos que nos cinema e televisão.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 11-32 – jan./jun. 2017 18
lugares e fatos a fim de confirmar a “realidade” da história. A
busca por uma razão de ser das coisas, um Deus que explique
a vida e seus acontecimentos, é o mesmo mote que pode levar
alguém a achar que as ficções estão carregadas de sentidos reais.
Essa confusão entre realidade e ficção já gerou equívocos trágicos
e absurdos6.
Embora Eco não aborde o assunto com profundidade,
a intertextualidade é outro fator essencial à interpretação. Esse
conceito nasceu com a filósofa, escritora, psicanalista e feminista
Julia Kristeva (1974). Pensar a intertextualidade é imaginar o texto
como uma malha, costurada por outros textos, e estes feitos por
outros textos, entendendo-se por textos não apenas o que está
em livros, mas também discursos orais, filmes, teorias sociais e/
ou científicas etc. Assim, um texto sempre remete a outro, que
remete a outro, indefinidamente.

Algumas considerações antes das análises dos álbuns



Antes das análises propriamente ditas, é preciso dizer algo
sobre estereótipos e referenciais culturais no universo de Asterix,
além, é claro, de lembrar que os álbuns foram originalmente
publicados na França da década de 1960, em língua francesa.
No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o verbete
estereótipo significa, dentre outras acepções, uma ideia ou convicção
classificatória preconcebida sobre alguém ou algo, resultante
de expectativa, hábitos de julgamento ou falsas generalizações.
Vale aqui também a útil ideia de estereótipo ligada ao turismo
apresentada por Pereira e Ornelas (2005): os estereótipos
6
Um exemplo marcante trazido pelo próprio Eco (1994, p. 138-145) é a criação dos Protocolos
dos Sábios de Sião. Eco afirma: “...esse texto percorreu a Europa e foi cair nas mãos de Hitler.
Vocês conhecem o resto da história”.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 11-32 – jan./jun. 2017 19
funcionam como elementos indispensáveis para categorizar povos
e pessoas e ajudam a formar a identidade turística do destino que
se está promovendo e, assim, motivam o desejo de conhecer o que
foi ressaltado como belo, relevante, sedutor, encantador e atraente.
Nas histórias de Asterix, os referenciais culturais reforçam
os estereótipos. Uma forma de expor essa relação é mostrar como
eles funcionam em outras histórias. Temos, por exemplo, os filmes
do grupo inglês Monty Python, entre os quais destacamos O
sentido da vida (1983): a cena do casal de bretões da página 34 de
Asterix entre os bretões (1985a) é quase idêntica à cena do filme de
Monty Python em que um casal de ingleses protestantes critica
os católicos: nos dois casos, temos um casal sentado em silêncio,
o homem tomando chá e lendo um jornal, a mulher tricotando,
até que algum fato externo chama a atenção do casal, momento
em que o homem lança julgamentos sobre tal fato, enquanto a
mulher permanece tricotando. A diferença fundamental, nesse
caso, é o assunto que discutem, mas o estereótipo de um casal
típico inglês numa cena doméstica é patente. No filme de Baz
Lhurmann, Vem dançar comigo (1992), a cena do personagem
principal aprendendo pela primeira vez o paso doble, dança típica
espanhola, é muito parecida com a dos quadrinhos da página 35
de Asterix na Hispânia (1985b), em que Obelix aparece dançando
com os ciganos.
Nas duas histórias ora analisadas, os personagens Asterix
e Obelix viajam até os países dos ingleses e dos espanhóis,
representados respectivamente pelos bretões e hispânicos, e nesses
locais, como quaisquer turistas, se defrontam com os povos e
costumes locais. Ficará evidente em mais de um quadrinho que os
autores de Asterix se valem muito de estereótipos e de referenciais
culturais – arte, culinária, esportes, danças, monumentos,

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personagens reais ou não da época etc. – para caracterizar os
locais visitados.

Analisando os álbuns7

Asterix entre os bretões

O tempo na narrativa de Asterix entre os Bretões (1985a)


é linear. Todas as ações são apresentadas em ordem cronológica,
desde a partida de César para Bretanha (p. 05), até a conversa
que Asterix tem com o druida depois de voltar para a Gália (p.
48); não há nenhum flashback ou flashfoward. Algumas ações são
narradas com o mesmo tempo de leitura e de ocorrência, e as
ações narradas com esse tempo são diálogos nos quais são tomadas
decisões importantes para o desenrolar da história. O diálogo
no qual Asterix e Obelix decidem ajudar o bretão Cinemapax a
levar o barril de poção mágica até a aldeia dissidente na Bretanha
(p. 10), ou o diálogo em que os romanos encontram os gauleses
levando o barril de poção mágica para a Bretanha e decidem voltar
à ilha para prevenir os outros romanos (p. 14), são exemplos disso.
Outras ações narradas com um tempo de ação igual ao tempo de
leitura são os diálogos nos quais Cinemapax explica os costumes
bretões para Asterix e Obelix. A atenção do leitor precisa ser
atraída para esses momentos em que as peculiaridades da cultura
bretã são inseridas nas falas dos personagens.
Dentro dos quadrinhos existem ações narradas com um
tempo bem menor do que o necessário para a ação acontecer na

7
As duas histórias aqui analisadas relacionam-se aos episódios históricos (reais) das guerras
de conquista da Hispânia e da Bretanha pelo imperador romano Júlio César. Tais eventos
são bem documentados em livros de história mas, como lembra Eco, a História dita Oficial
não deve ser confundida com a história contada nos álbuns.

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realidade. A viagem da Gália para a Bretanha (p. 11-14) ou a
noite em que Asterix e Obelix dormem numa estalagem (p. 22)
são exemplos de ações desse tipo: acontecem em poucas vinhetas,
mas o leitor é capaz de preencher as lacunas e entender como
aconteceram. Quando se diz que um grupo de pessoas saiu da
Gália e foi à Bretanha num barco, pode-se esperar que o leitor
imagine uma viagem que durou horas. A narrativa minuciosa é
desnecessária, e basta mostrar o início e o final dessas ações, porque
o leitor tem condições de usar seu conhecimento de mundo para
imaginar os detalhes.
Existe uma espécie de narrador em terceira pessoa que fala
nos quadrinhos e colabora para ligar certos pontos da história que
de outro modo ficariam estranhos como, por exemplo, é o caso da
passagem entre Cinemapax fugindo de canoa da Bretanha (p. 07)
e a paz, beirando o tédio, em que Asterix e Obelix se encontram
(p. 08). Esse narrador impessoal não participa da história, mas é
ele que interliga todos os episódios.
Na narrativa nenhuma ação é narrada com um tempo de
leitura maior do que o tempo que a ação levaria para acontecer,
e isso diz respeito à natureza das histórias em quadrinhos: nas
HQs, quase não há descrições de forma física do lugar e das
pessoas, tudo é transmitido através da imagem e a maior parte
dos acontecimentos é narrada através de combinações de imagens
e palavras. As ações são contadas por imagens, que podem ser
retificadas pelas falas e onomatopeias.
Para ler Asterix, o leitor-modelo deve aceitar que havia
fronteiras entre os países no ano 50 a.C. Também que os bretões
já tinham sistemas financeiro e de pesos e medidas diferentes dos
sistemas do restante da Europa, além de outras características
reconhecíveis somente no mundo moderno como, por exemplo,

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a carroça de dois andares representando os ônibus vermelhos
ingleses (p. 24), ou ainda o grupo de bardos representando os
Beatles (p. 19). Conquanto haja tantos elementos do mundo
moderno, isso não implica incoerências ou informações
conflitantes na história, e o universo ficcional de Asterix pode
existir sem problemas. Contudo, o leitor-modelo deve conhecer a
História e os estereótipos e costumes ingleses, pois somente assim
será capaz de entender as “sacadas” e ironias e sátiras feitas pelos
autores. Aliás, um recurso constantemente usado pelos autores
para explicitar as críticas é a “proverbial” frase de Obelix: Esses
bretões são loucos!
Ao observar as dezenas de referências aos usos e costumes,
língua, clima e geografia da Inglaterra, sempre de modo
estereotipado ou irônico, fica claro que Asterix é uma forma
de crítica ou sátira8. O rol a seguir apresenta várias referências
encontradas nos quadrinhos que reforçam essa interpretação. Os
números à esquerda apontam para as vinhetas do seguinte modo:
os dois primeiros algarismos representam o número da página, e o
último algarismo a linha do quadrinho. Ex: 062: página 06, linha 2.
Observe-se também que em alguns quadrinhos há alguma crítica
direta de Obelix. Esse personagem teria a visão de um cidadão
francês mediano da década de 1960, com seus preconceitos e
estereótipos. O personagem Asterix é mais reservado em seus
comentários.

062: Godseivzekingos: nome do chefe dos bretões; ao ser falado,


soa como a frase God save the king, alusão ao hino da Inglaterra
(não do Reino Unido): God save the Queen.
062 e 063: O famosíssimo chá das cinco e o week-end inglês.

8
Lembrando que esta análise se concentra no álbum traduzido para o português brasileiro.

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071: Zebigbos: nome do chefe da aldeia bretã; lembra a expressão
the big boss.
Em vários balões de fala: adjetivos vêm antes de substantivos, alusão
à língua inglesa.
074: Tribo dos Cambridges: referência à Universidade e suas equipes
de remadores.
094: Tweed: tecido escocês, muito usado na confecção de roupas
inglesas.
133: Nevoeiro: referência ao clima cinzento da Inglaterra (fog).
144: Referência ao Eurotúnel que hoje liga a Inglaterra à França.
Na época em que foi escrito o álbum, o túnel ainda não existia,
mas vemos que já se cogitava a sua construção.
153: A predileção por cerveja morna, e não gelada, na Inglaterra
(isso na década de 1960).
163 Asterix e Obelix trocam risos diante da surpresa de Cinemapax
(personagem característico bretão) ao ver que os romanos não
gostam de cerveja “morna”.
172: Referência à mão de direção no trânsito inglês: contrária ao
usado na França e na maioria dos países. Obelix critica os bretões.
181 e 182: O esmero dos ingleses com seus jardins.
184: Medidas de comprimento: referências ao sistema de medidas
inglês, também diferente de outros países. Obelix critica de novo.
193: O nevoeiro: em 133, Cinemapax disse que era comum na
região, agora diz que é comum “nesta época do ano”. Asterix,
secundado por Obelix, comenta que esses bretões são loucos, afinal
o nevoeiro acontece em qualquer lugar ou momento.
194: Os quatro bardos: referência clara aos Beatles, já muito famosos
na época em que foi escrito o álbum.
204: Referência ao complexo sistema monetário inglês, e novamente
Obelix criticando.
214: A fleuma inglesa. Asterix fica pasmo, mas se recupera no
quadrinho seguinte.
243: A carroça vermelha de dois andares: os famosos ônibus
londrinos.
293: Londinium torre: The London Tower.
322: Demonstração de afeto britânico: a frieza inglesa, e o
estranhamento de Asterix.

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324: As casas iguais: como somente o Governo tem o poder de
construir residências na Inglatera, elas tendem a ser todas iguais.
333: O jornal Os tempos na mão de um personagem: o jornal inglês
The Times.
362 a 424: A paixão pelo rugby, mostrada através das mascotes,
formações dos times, torcidas, filas para assistir aos jogos, algumas
regras, a bola oval, a troca de camisas.
454: A desconfiança inglesa com relação à cozinha francesa: o
estereótipo que os ingleses têm dos franceses. Obelix nervoso e
estupefato com isso.
484: A atribuição da origem do chá britânico aos gauleses – ironia
final.

Asterix na Hispânia

As mesmas análises sobre os tempos narrativos feitas


no álbum anterior valem para Asterix na Hispânia (1985b). A
história segue sempre em frente, sem flashbacks ou flashfowards, e
nos momentos em que o enredo vem mostrar alguma crítica ou
sátira, o tempo de leitura diminui. Os elementos identificadores
do estereótipo do povo espanhol estão presentes, como a dança
flamenca, as touradas, e até a aparição de Dom Quixote e Sancho
Pança, ícones da literatura espanhola, mas o autor-modelo não
mostra os espanhóis com a mesma riqueza de detalhes com
que mostrou os ingleses. Bem escrita, a história não apresenta
discrepâncias ou incoerências, e o uso das imagens muito ajuda
na compreensão de certas passagens, como a cara de desespero
do decurião Claudius ao encontrar os gauleses (p. 37). O grande
quadrinista Uderzo trabalha brilhantemente quando quer mostrar
expressões faciais nos personagens.
A questão da fronteira entre os países é muito explorada
nesse álbum, e isso faz parecer que poderia ser um problema da

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época em que foi escrito – claro que estamos sempre considerando
que o álbum representaria situações e críticas do mundo real da
década de 1960. Um leitor que não tenha isso em mente poderá
achar estranha a ideia de fronteiras entre países no ano 50 a.C.
O leitor-modelo também deve saber um pouco mais da geografia
e história europeias na antiguidade para entender algumas das
piadas apresentadas.

054: Olé: uma das palavras espanholas mais famosas do mundo.


132: Hora da sesta: referência ao conhecido costume espanhol do
cochilo após o almoço.
Muitas referências a peixes: característica da culinária espanhola.
144: Pepe: apelido comum na Espanha.
224: A passagem do Rubicão: a História diz que César atravessou o
rio Rubicão e ocupou Roma, mas o quadrinho mostra um sujeito
grandalhão chamado Rubic que desfila por Roma preso numa biga.
234: O terreno de Ordenalfabetix: os monólitos erigidos em Carnac,
na França, por volta do terceiro milênio a.C. O objetivo dessa
construção ainda é pouco conhecido pelos cientistas atuais, mas o
quadrinho informa que Ordenalfabetix teria recebido os menires
de Obelix para enfeitar um terreno recebido como herança.
274: Turismo dos franceses na Espanha: como os franceses enxergam
a Espanha.
281: A passagem pela fronteira hispânica: referência aos postos de
fronteira e alfândegas espanholas.
282: O godo falando: os personagens de outras nacionalidades
também são estereotipados através do tipo de fonte usado nas
palavras dos balões: neste caso, a fala do godo, atual alemão, é
representada com uma fonte gótica.
291: Vistu para entrar na Espanha.
313: Uma crítica ao estereótipo francês: turistas que viajam a outro
país mas levam seus hábitos – e até casas – consigo.
321: Muito calor: referência ao clima da Espanha.
322: O cavaleiro e seu escudeiro e os moinhos: referência clara a
Dom Quixote de La Mancha e a Sancho Pança, célebres personagens
criados por Cervantes.

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324: Procissões de druidas: referência às diversas festas católicas nas
cidades da Espanha, todas com procissões.
331: Escrito na placa da estalagem: Bretão falado e fala-se godo: mais
uma vez a estereotipação dos povos através das fontes (sempre em
relação ao modo como os franceses enxergam esses povos).
Em vários quadrinhos: todos os hispânicos são geralmente
baixinhos, de cabelos escuros e barba por fazer, e usando um colete.
352: Ciganos: outro traço importante do estereótipo da cultura
espanhola.
354: Dança dos ciganos: flamenco ou paso doble, ambas danças da
Espanha.
Os sobrenomes dos espanhóis, sempre compostos, contêm a
partícula y no meio.
392 a 394 e 411: mais procissões.
453 a 471: A tourada, “esporte nacional” espanhol está bem
caracterizada: o touro selvagem, o toureiro, a capa vermelha, a
arena, a torcida gritando Olé, e os cumprimentos do povo que lança
objetos ao toureiro no final do espetáculo.

Hipótese de leitura

O foco desta análise está sobre os traços socioculturais dos


personagens bretões e hispânicos, pois o que se busca é mostrar
que os dois álbuns funcionam como sátiras ou críticas a povos e
situações – esta é nossa hipótese interpretativa.
Tanto num como no outro álbum, se encontram dezenas de
referências às culturas e sociedades inglesa e espanhola, embora
no álbum dos hispânicos Obelix não apareça criticando o povo
a todo momento como faz com os bretões ao dizer Esses bretões
são loucos. Esta é a grande diferença: em Asterix entre os bretões
(1985a), o autor-modelo frisou muito mais as críticas aos modos
e costumes do povo inglês, tentando mostrar o quanto este é
excêntrico em relação aos franceses, muitas vezes usando ironias
e até algum sarcasmo, mas sem haver uma autocrítica francesa.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 11-32 – jan./jun. 2017 27
Em Asterix na Hispânia (1985b) o uso de estereótipos
continua, mas dessa vez os franceses também são criticados.
Em ambas as aventuras o narrador é impessoal, mas no álbum
da Hispânia ele tem um papel mais ativo e ajuda a mostrar ao
leitor que o texto é uma sátira: na página 22, quando se explica
a expressão “a passagem do Rubicão”; e na página 23, quando
se explica a existência dos monólitos de Carnac. Também os
espanhóis são mais parodiados do que criticados, e isso acontece
algumas vezes com os franceses também.

Crônica: Superinterpretando9

Asterix nos bosques de Eco


Estaria Asterix presente no livro Seis passeios pelos bosques
da ficção? Eco não cita diretamente o personagem francês em
nenhuma parte, nenhuma frase do livro, mas isso não quer dizer
que seu autor-modelo não o tenha feito. Vejamos...
O nome do livro de Eco pode ser uma indicação dessa
presença: bosques lembram as florestas gaulesas, com espaços
para passeios entre as árvores; a própria capa do livro lembra
uma ilustração de Uderzo. Olhe bem e diga se não. Na página
26, encontramos a citação do tal Sr. X. Ora, em inglês, língua
em que foi originalmente escrito o livro de Eco, Sr. X torna-se
mister X, que se lê mister æx, e que sonoramente lembra o nome
Asterix. Coincidência ou não? E o soco que o sujeito dá no outro
na página 71? – “... e de repente aquele homem sereno faz um
rápido movimento com seu braço bom e desfecha no adversário

9
Assim como Eco propôs hipóteses de leitura nem sempre verdadeiras, tentamos também,
neste trabalho, superinterpretar. Encontramos no livro de Eco passagens que parecem indicar
o universo de Asterix, e que apresentamos em forma de crônica, para maior fluidez e melhor
representação estética.

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um golpe formidável: o outro rola pelo chão e cai na rua, depois
de arrebentar a porta.” Para alguém dar um soco que cause tanto
estrago só tomando uma dose da poção mágica gaulesa.
Nos bosques de Eco há muita névoa. Seria a névoa que
se vê em Asterix entre os bretões? Mas não é tudo! Lembrando a
Bretanha e Londinium, temos na página 94 a citação de Hamlet,
de Shakespeare, um autor inglês. Na página 105 aparece o
submarino amarelo – “Quem foi que inventou aquele submarino
amarelo?” – yellow submarine, que é o nome de uma canção famosa
dos Beatles, que aparecem no álbum dos bretões! Mas, mais do
que isso, Ielosubmarina é o nome da esposa de Ordenalfabetix, o
peixeiro da aldeia. Não é incrível?!
Eco ainda faz menções frequentes a dois livros franceses:
Sylvie e Os três mosqueteiros. No primeiro, detém-se na viagem do
narrador a sua aldeia natal. Viagem pelo bosque lembra o quê?
Asterix! Além disso, Eco menciona Júlio César na página 137:
“... como se tivéssemos testemunhado o nascimento de nossa mãe
(e também o de Júlio César)”, e a floresta dos druidas aparece na
página 134: “... um bosque tem de ser emaranhado e retorcido
como as florestas dos druidas”. E até os piratas das histórias de
Asterix são mencionados, pois a marca registrada de um dos
piratas são as citações em latim, e o que vemos na página 08?
“Superior stabat lupus, longeque inferior agnus”.
Asterix está aí. Só não sabemos por que Eco não o
apresentou de uma vez por todas em vez de mantê-lo sob uma
névoa...

***

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 11-32 – jan./jun. 2017 29
Voltando do passeio, é possível dizer que a crônica acima
é um ótimo exemplo de superinterpretação. O primeiro motivo
para desconfiar disso é justamente o fato de Asterix não ser citado
no livro de Eco. Não há sequer uma alusão do tipo “os gauleses”,
ou “poção que dá força sobre-humana”, ou mesmo “bretões” nos
Seis passeios. Outro fator que mostra ser inverossímil a hipótese de
leitura proposta é que, dos personagens principais do mundo de
Asterix, só apareceria uma referência indireta em mister X. Mas e
Obelix, Panoramix, ou Ideiafix? Eco iria fazer referências indiretas
a uma personagem menos conhecida, Ielossubmarina, e a um dos
piratas também pouco conhecidos, e não a outros personagens
mais evidentes? Pouco provável.
O fato de alguns lugares e celebridades da Inglaterra
aparecerem no livro de Eco tampouco indica especificamente
que se está falando de Asterix. Londres, Hamlet e os Beatles são
famosos e citados em diversas outras obras literárias ou não. E
num filme, o poder de um soco sempre é mais exagerado do que
na vida real. Com isso, eliminamos a hipótese de leitura proposta
na crônica, e demonstramos que a superinterpretação pode levar
alguém a encontrar ideias que não necessariamente estão presentes
num texto.

Considerações finais

As histórias de Asterix exigem um leitor-modelo muito


elaborado, do tipo que Umberto Eco muito aprecia: alguém que
conhece variadas culturas, músicas, histórias de países, línguas
e literaturas e que é capaz de perceber tais aspectos histórico-
socioculturais nas diversas críticas e referências que aparecem
nos quadrinhos, ainda que de formas sutis em muitos casos.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 11-32 – jan./jun. 2017 30
Esse conhecimento prévio é necessário para o entendimento
da narrativa, das críticas, dos trocadilhos e piadas. Como
muitos quadrinhos, as HQs de Asterix pretendem também ser
engraçadas e o autor-modelo espera que o leitor-modelo ria dos
acontecimentos narrados.
Acreditamos que este trabalho pode enriquecer muito
a ideia de interpretação textual para pessoas em geral e para
alunos especialmente, fugindo um pouco da Hermenêutica dura
e às vezes inescrutável que encontramos em muitos textos sobre
o tema. Como dito no início deste trabalho, saber interpretar
textos, sejam estes quais forem, é uma habilidade fundamental,
que precisa ser estimulada nos jovens alunos. E as histórias em
quadrinhos, enquanto textos intersemióticos, se apresentam como
ótimo material para interpretação pois, como mostrado aqui,
representam visões de mundo, tanto de povos como de alguns
indivíduos, e isso através de palavras, imagens e outros símbolos
inerentes a essa literatura/arte.

Referências

BARTHES, Roland. A morte do autor. In O rumor da língua. Tradução


Mario Laranjeira. 2a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

DANÇAR comigo, Vem. Direção: Baz Lhurmann. Título original:


Strictly Ballroom. Austrália/1992. DVD (94 min).

ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. Tradução MF. São


Paulo: Martins Fontes, 1993.

________. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. Hildegard Feist. São
Paulo: Companhia das Letras 1994.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 11-32 – jan./jun. 2017 31
________. Os limites da interpretação. Trad. Pérola de Carvalho. 2. ed.
São Paulo: Perspectiva, 2004.

FISH, Stanley. “Is there a text in this class?” (Chapter 13 of Is there a text
in this class?). Tradução Rafael Eugênio Hoyos. Alfa, v. 36. São Paulo,
1992. p. 189-206.

FOUCAULT, Michel. What is an Author? Tradução Josue V. Harari.


In: HARARI, J. V. Textual Strategies: Perspectives in Post-Structuralist
Criticism. Ithaca/NY: Cornell University Press, 1979. p. 141-160.

GOSCINNY, René; UDERZO, Albert. Uma aventura de Asterix o


gaulês: Asterix entre os Bretões. Tradução Jorge Faure Pontual. Rio de
Janeiro: Record, 1985a.

GOSCINNY, René; UDERZO, Albert. Uma aventura de Asterix o


gaulês: Asterix na Hispânia. Tradução Cláudio Varga. Rio de Janeiro:
Record, 1985b.

KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia H. F.


Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 1974.

PEREIRA, Marcos. E; ORNELAS, Tuta. Estereótipos e destinos


turísticos: o uso de estereótipos nos folders de uma agência de fomento
ao turismo. Caderno virtual de turismo. Vol. 5, nº 3. 2005. Disponível
em http://www.ivt.coppe.ufrj.br/caderno/index.php/caderno/ article/
view/91. Acesso em 19/06/2017.

SENTIDO da vida, O. Direção: Terry Jones / Terry Gilliam. Título


original: The meaning of life. Inglaterra/1983. DVD (107 min). Coleção
Cinemateca Veja.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 11-32 – jan./jun. 2017 32
O ENSINO E A GESTÃO FRENTE
ÀS RECOMENDAÇÕES PARA O
ENSINO MÉDIO E PROFISSIONAL

Eliane Cleide da Silva Czernisz1


Angela Maria de Sousa Lima2
Juliana Bicalho de Carvalho Barrios3

RESUMO: Este texto apresenta uma reflexão sobre o ensino e a gestão frente às
recomendações para o processo de aprendizagem no Ensino Médio e Profissional.
Discute, com base em dados bibliográficos e análise de documentos que normatizam
o Ensino Médio e Profissional, as recomendações para formação do homem, cidadão e
trabalhador num contexto em que predominam a organização e a gestão do trabalho
flexível e competitivo. Problematiza a necessidade da compreensão do trabalho como
princípio educativo e apresenta os desafios que visam ultrapassar a esfera da adaptação
de adolescentes, jovens e adultos à sociabilidade produtiva capitalista. Sugere o estudo
e o trabalho coletivo como formas de aprimorar a compreensão das opções políticas para
a formação do homem, cidadão e trabalhador emancipado.
PALAVRAS-CHAVE: ensino médio e profissional; trabalho; ensino; gestão.

ABSTRACT: This text presents a reflection regarding teaching and management in the
face of the recommendations for the learning process in High and Professional School.
Based on bibliographical data and analyses of documents that regulate High and
Professional School, it discusses the recommendations for the formation of the man as a
citizen and worker, in a context in which the organization and management of flexible
and competitive work predominates. It problematizes the need for understanding of
work as an educational principle, and it presents the challenges of the need to exceed
the adaptation sphere of teenagers, youngsters, and adults in the productive capitalistic
sociability. It suggests study and collective work as ways to improve the understanding
of political options for the formation of man, citizen and the emancipated worker.
KEY WORDS: High and Professional School; work; teaching; management.
1
Doutora em Educação pela UNESP/Marília, pós-doutorado pela Universidade Federal
de São Carlos. Professora associada da Universidade Estadual de Londrina. Coordenadora
do Programa de Mestrado/Doutorado em Educação. Contato: eczernisz@uel.br
2
Doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP/Campinas. Professora de Metodologia de
Ensino de Sociologia da Universidade Estadual de Londrina. Contato: angellamaria@uel.br
3
Pedagoga do Programa Universidade Sem Fronteiras, Subprograma Incubadora dos
Direitos Sociais - Projeto Patronato. Mestranda em Educação pela Universidade Estadual
de Londrina. Contato: juliana_bcb@hotmail.com

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 33-62 – jan./jun. 2017 33
Introdução

O Ensino Médio e Profissional, desde meados dos anos


de 1990, vem passando por mudanças que têm influenciado a
concepção de formação, a constituição curricular do curso e a
ampliação do atendimento a um crescente número de adolescentes
e jovens. Entre as propostas formativas em curso, algumas têm
objetivado dotar o homem, cidadão e trabalhador, de uma
educação que contemple os desafios do contexto competitivo,
num sentido adaptativo, enquanto outras têm buscado assegurar-
lhe uma formação omnilateral vislumbrando a emancipação
social e humana. Nesse contexto, torna-se fundamental uma
gestão pedagógica capaz de proporcionar o desenvolvimento da
escolarização necessária à formação. Infere-se, a partir de Paro
(1997), que a gestão está relacionada à utilização de recursos
escolares para tornar realidade o objetivo precípuo da escola: o
ensino. Trata-se de uma tarefa difícil de ser desempenhada. Isso
porque a gestão pedagógica no Ensino Médio e Profissional
requer o conhecimento aprofundado do desenvolvimento e dos
pressupostos das práticas pedagógicas que sustentam o ensino e,
principalmente, de suas concepções norteadoras. É com tal intuito
que, neste texto, organizado com base em dados bibliográficos e
análise de legislação, pontuam-se aspectos do Ensino Médio e
Profissional no cenário brasileiro, considerados os desafios para
gestores e professores que nele atuam. Afinal, para que devem
ser formados os alunos do Ensino Médio e Profissional? Qual a
tarefa no âmbito da gestão e do ensino?

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 33-62 – jan./jun. 2017 34
Um olhar sobre o percurso do ensino médio e profissional

O Ensino Médio tem sido discutido a partir da


diferenciação do tipo de formação que nele é oferecida: geral
ou profissionalizante? Trata-se de um questionamento que
tem norteado as discussões, as propostas e o encaminhamento
dos cursos nessa etapa de escolarização. A profissionalização
tem tido, como traço característico, o fato de ser destinada aos
pobres, como se se tratasse de uma segunda categoria educativa,
particularidade que tem sido problematizada nas obras de Cunha
(2000a; 2000b), de Kuenzer (1997; 2002), de Manfredi (2002),
ao comentarem sobre a profissionalização desenvolvida no século
passado. A diferenciação da educação feita pela dissociação entre
formação geral e formação profissional expressa, como se percebe
em Kuenzer (1997), a realidade da distinção entre classes sociais,
denominada pela autora de dualidade estrutural. A divisão entre
o ensino geral e o ensino profissional tornou-se concreta nos
anos de 1990, quando da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional – LDBEN nº 9394/96 que trazia, em
seu texto legal, a separação entre o Ensino Médio e Profissional
(BRASIL, 1996). A profissionalização ficou à parte, fora da
Educação Básica como uma modalidade e foi regulamentada
pelo Decreto nº 2.208/97 e organizada nos níveis básico, técnico
e tecnológico (BRASIL, 1997). Percebe-se, a partir de então, que
a Educação Profissional foi desenvolvida de formas distintas no
que diz respeito à carga horária, organização curricular e níveis.
Com a aprovação das Diretrizes Curriculares para o Ensino
Médio (BRASIL, 1998), e para a Educação Profissional (BRASIL,
1999), passou a ocorrer nova orientação, tendo como referência o
contexto competitivo e a necessidade de uma formação adaptativa,

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aspecto que pode ser verificado no texto do artigo 35 da LDBEN
nº 9394/96, ao tratar do Ensino Médio. Estes encaminhamentos
expressam uma adaptação da formação média e profissional aos
interesses do mundo produtivo, designando à escola a tarefa de
formar para o mercado. Ressalta-se a ocorrência de manifestações
contrárias, cujos gérmens já estavam presentes no momento
em que o projeto de LDB, aprovado em 1996, era discutido,
aspecto comentado por Saviani (1997). Observa-se que o assunto
também era fruto de debate na Secretaria da Educação Básica
que promoveu, no final dos anos de 1990, um seminário que
originou a coletânea “Politecnia no Ensino Médio” (GARCIA e
CUNHA, 1991). Tais reações primavam pela formação integral
em contraposição à formação fragmentada e instrumental própria
para atendimento ao sistema de acumulação capitalista.
A revogação do Decreto nº 2.208/97 e aprovação do
Decreto nº 5154/2004, assunto tratado por Frigotto, Ciavatta
e Ramos (2005), expressam o descontentamento com os rumos
tomados pelo Ensino Médio e pela Educação Profissional.
A base para os questionamentos esteve pautada na recusa de
uma formação aligeirada, realizada em forma de treinamento
para o trabalho, dissociada dos componentes curriculares que
possibilitam a formação geral com saberes oriundos da cultura
geral, dos conhecimentos humanísticos, da ciência que subsidia os
conhecimentos técnicos e os do trabalho. Percebe-se que o Decreto
nº 5154/2004 representou, nessa contenda, a possibilidade de
integração entre Ensino Médio e Profissional, fato avaliado como
um ganho, considerando-se que grande parte dos alunos do Ensino
Médio já são trabalhadores ou estão buscando uma formação para
o exercício profissional futuro (BRASIL, 2004). Com a integração,
ser-lhes-ia proporcionado, além de conhecimentos específicos do

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fazer profissional, dos códigos da cultura elaborada, um acervo
historicamente construído pela humanidade. Ressalta-se que a
integração desenvolve-se em um cenário capitalista, e, mesmo
sendo uma formação vista no horizonte utópico de transformações
sociais, constitui-se uma estratégia mais adequada, quiçá mais
valiosa para os alunos que se encontram em formação.
Com a possibilidade de integração entre a Educação
Profissional e o Ensino Médio pelo Decreto nº 5154/2004,
somada aos questionamentos sobre a formação vislumbrando-
se torná-la mais sólida, fizeram-se necessárias novas diretrizes
orientadoras do Ensino Médio e Profissional. A base são as
Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais (BRASIL, 2010), as
quais entende-se aqui, estabelecem linhas comuns para a educação
escolar de estudantes dos 04 aos 17 anos, buscando também
garantir o acesso e a permanência do aluno numa escola que
possibilite um ensino de qualidade e a gestão democrática.
Esses dados indicam a necessidade de repensar o Projeto
Pedagógico, cujo objetivo, na proposta que procura superar o
aligeiramento e o adestramento para o trabalho, é formar o
homem, cidadão e trabalhador, visando à emancipação humana
e social, defesas muito diferentes das propostas de formação do
homem adaptado ao mercado de trabalho, ressaltando-se que,
sob esta última perspectiva, o homem a ser formado deveria
simplesmente receber treinamento. A escola que realiza o trabalho
com este enfoque buscaria, como norte, a eficiência própria
dos discursos que sustentam o neoliberalismo de onde deriva a
procura pela qualidade com conotação de mercado, conforme se
verifica na análise realizada por Paro (2001). Depreende-se que
o resultado, no caso deste viés, seria a redução das possibilidades
de questionamentos sobre as causas das desigualdades e injustiças

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sociais, assim como a impossibilidade de projetar e construir
um mundo e uma escola mais justos. Ressalta-se aqui que a
diferença entre a formação voltada para as necessidades do
mercado com a que se pretende humana é que esta privilegia a
ética, a solidariedade e o respeito ao homem enquanto pessoa, ser
humano, considerando-se que estes princípios são fundamentais
para a convivência e sobrevivência da humanidade. Com tais
argumentos, questiona-se a formação que visa apenas a uma
adaptação ao trabalho produtivo e que poderá nos levar a outro
extremo: a competitividade exagerada e o aniquilamento do
homem enquanto ser humano.
Como resultado no ensino, destaca-se que este processo
origina a formação de uma sociabilidade competitiva e
individualista, que desvirtua o sentido político que deveria ter
a cidadania, a participação, o questionamento e a reivindicação
passando a ter por base ações fundamentadas em atos de piedade
e de dó. De modo geral, os resultados do exercício da boa vontade
vão substituir a luta pela garantia de direitos básicos por estratégias
paliativas, como ajuda financeira, e demais ações consideradas
próprias de pessoas boas que irão remediar, mas não resolver os
problemas escolares, conforme destacaram Fitoussi e Rosanvallon
(1997), em seus debates sobre as democracias ocidentais no
período posterior à queda do Muro de Berlim.
Observa-se que na gestão, não é possível simplesmente
eliminar a participação política, como expressão da cidadania, já
que as atividades escolares são demarcadas por opções políticas.
Como foi afirmado por Paro (1997), há a necessidade de integrar
as atividades administrativas da escola com as práticas políticas,
o que pode induzir a comunidade a participar nas instâncias
colegiadas que são consultivas, deliberativas e fiscais, atividades

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imprescindíveis no contexto democrático. A substituição dessa
prática pelas ações em que predomina a boa vontade pode ser
exemplificada com as contribuições voluntárias em dinheiro
ou prestação de serviços por parte da comunidade. Tal forma
de entendimento da participação aniquila o poder político das
instâncias colegiadas e dos conselhos que terão como segunda
tarefa a avaliação do trabalho realizado pela escola.
Para o Ensino Médio e Profissional, essa reflexão é
imprescindível, já que a resolução de problemas vinculados à
questão social é reforçada pela pedagogia das competências,
aspecto presente nas Diretrizes Curriculares de 1998, e que, apesar
de não vigorarem mais, podem ainda ser reproduzidas nas escolas.
Essas competências reforçam o “saber ser” como saber que, se
por um lado permite o desenvolvimento de qualidades sociais
necessárias ao convívio entre seres humanos, por outro possibilita
também a conformação com situações de vida em que predominam
a exclusão social e a pobreza. Nessa linha da conformação, o
desenvolvimento de tais competências também se constitui
chave para o desenvolvimento do empreendedorismo capitalista,
apontado como estratégia para resolução do desemprego, mas
que deixa de resolver os prejuízos provocados pela flexibilização
do trabalho, e pelos trabalhos precários e insalubres, tornando a
sobrevivência futura cada vez mais questionável. Na sequência
em que há a aparente valorização do capital humano, também se
concretiza um processo de responsabilização pessoal pelo fracasso.
Há que ser ressaltado que, com a aprovação das Diretrizes
Curriculares de 2012, algumas questões podem ser consideradas
destoantes do documento orientador do ensino médio aprovado em
1998. Verifica-se, a partir das análises de Moehlecke (2012), haver,
nas diretrizes atuais, uma alteração com relação à subordinação

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do Ensino Médio ao mundo da produção, a incorporação de um
referencial teórico que expressa a crítica a este aspecto presente
nas antigas diretrizes. A novidade, conforme a autora, é “[...] a
indicação de diversos programas do governo federal na área da
educação, apresentados como exemplos para a adoção do modelo
curricular [...].” (MOEHLECKE, 2012, p. 53). Acredita-se que a
relação estabelecida entre as Diretrizes Curriculares, recentemente
aprovadas, com o encaminhamento de programas de governo, está
relacionada à visão sistêmica com a qual tem sido organizada a
educação desde a apresentação do Programa de Desenvolvimento
Educacional – PDE do Governo de Luís Inácio Lula da Silva,
segundo foi comentado por Saviani (2007). Observa-se também
que, desde 2002, tal governo empreende ações que reforçam a
inclusão social, sendo que a ênfase no segundo mandato iniciado
em 2006 teve como mote trabalhar em prol do desenvolvimento,
conforme pode ser verificado no ‘Programa de Governo (2007-
2010) Lula de Novo com a Força do Povo’ (Lula..., 2013, p. 5) que
observa a “[...] distribuição de renda e educação de qualidade”,
um encaminhamento que, como pode ser verificado, está sendo
reforçado no governo Dilma Rousseff.
Percebe-se, desse modo, que o fato de as Diretrizes
Curriculares conterem um referencial teórico crítico que coincide
com as críticas feitas às diretrizes curriculares aprovadas e
implementadas em 1998 que, aparentemente, subordinavam
a educação ao campo da produção, constitui-se um avanço,
mas não eliminam do documento a intencionalidade em aliar
desenvolvimento econômico e educação, não desvelando as
contradições presentes na relação capital e trabalho. Opta-se,
então, pelo encaminhamento de programas que buscam amenizar
os efeitos dessa relação, o que permite inferir que, ao não se

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contemplarem as relações contraditórias entre capital e trabalho,
desconsideram-se os problemas daí decorrentes. Os resultados se
desdobram não apenas numa concepção sobre a qual as escolas vão
trabalhando, mas no processo educativo que envolve adolescentes
e jovens que passam pelo Ensino Médio e Profissional. Conforme
discutiram Neves e Sant’Anna (2005), no século XX foi-se
constituindo um bloco histórico que até os dias atuais vem
mantendo, no plano econômico, suas características de reprodutor
do capital de forma ampliada, o qual reproduz o emprego da mão
de obra, assim como as formas de expropriação do trabalho e de
extração de mais-valia. No plano político, se desenvolve “[...]
um Estado que intervém nos rumos da produção e nas relações
político-sociais com vistas à legitimação dos padrões de relações
sociais vigentes” (NEVES e SANT’ANNA, 2005, p. 20).
Para Neves e Sant’Anna (2005), este é o papel pedagógico
exercido pelo Estado educador. A escola é o local onde se processa
esta educação, ou melhor, onde ocorre esta forma de hegemonia,
pois ela possibilita, a partir do trabalho escolar e da implementação
das diretrizes curriculares, a adaptação a essa sociabilidade
capitalista que irá exigir do trabalhador o atendimento a requisitos
como a competitividade, a produtividade e a resolução rápida
de problemas, características que expressam a predominância
da produção flexível, assunto tratado por Harvey (1994). Pelo
exposto, comprova-se a difícil tarefa de pensar a formação no
Ensino Médio e Profissional num contexto de manutenção das
relações sociais, em que é comum o discurso em prol da formação
de um homem autônomo, consciente e responsável que transforme
a sociedade. Verifica-se que o desenvolvimento da sociabilidade a
partir da dimensão pedagógica exercida pelo Estado, na escola e
no campo do trabalho, permite, ao contrário, a formação adaptada.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 33-62 – jan./jun. 2017 41
Recomendações e desafios para o ensino médio e profissional

Analisar o papel do Ensino Médio e Profissional hoje requer


situá-lo no contexto de mudanças do atual padrão econômico e
político. Em relação a isso, verifica-se no cenário internacional
um processo iniciado em meados de 1970 que tem ajustado
as formas de organização e gestão do trabalho explicitando a
constituição de um novo padrão produtivo denominado toyotista,
segundo Kuenzer (2005). Buscou-se aprimorar as formas de
produção e, para isso, o foco passou a ser também a educação do
trabalhador que está dentro ou fora do mercado de trabalho. Ao
tecer considerações sobre esse processo, Kuenzer (2005) salienta
a existência da exclusão includente, ou seja, formas de inclusão
precárias do trabalhador no mundo do trabalho barateando as
contratações. De acordo com observações de Frigotto (1995), não
se pode ignorar que está em curso a valorização de qualidades
como abstração, autonomia, liderança, vinculadas a um projeto
de formação abstrata e polivalente, embora ele destaque que tais
requisitos também compõem uma lógica excludente, a qual tem
se apresentado a partir do trabalho desenvolvido pela escola.
Kuenzer refere-se a este processo, dizendo que vem ocorrendo a
inclusão excludente no campo educacional, por meio de estratégias
de inclusão em níveis e modalidades diversos sem que tenha, no
entanto, qualidade. Kuenzer (2005, p. 93) utiliza como exemplo,
nessa discussão, a “[...] ciclagem, aceleração de fluxo, progressão
automática, classes de aceleração”, ao passo que nós destacamos,
neste texto, a profissionalização no Ensino Médio e Profissional.
Essas políticas correspondem às ações que, no novo projeto
societário, buscam produzir a convicção de que “não haveria
excluído, e sim aquele não incluído” (NEVES e SANT’ANNA,

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2005, p. 33). O fortalecimento em prol da inclusão, visando à
aceitação deste projeto societário, passa pela construção de uma
base valorativa que vem sendo estimulada e consolidada pelas
reformas educativas processadas a partir da década de 1990. Este
é o caso do Ensino Médio e Profissional para o qual se requerem
alunos, futuramente trabalhadores e cidadãos, que saibam aprender,
conviver e empreender. Considera-se que as características
demandadas dos trabalhadores e cidadãos combinam não só
com a cidadania produtiva, mas também com a política de bons
sentimentos, aspecto aqui já mencionado. Verifica-se haver
no Ensino Médio e Profissional reforço à formação de uma
sociabilidade permitindo aos formados comportar-se da maneira
necessária ao sistema de acumulação, servindo, ora ao processo de
‘inclusão excludente’, ora à ‘exclusão includente’. Infere-se que,
deste modo, a inserção ou não no mercado de trabalho contribui
para o reforço à sociabilidade produtiva.
Os Organismos Internacionais têm trabalhado nesta frente,
buscando amenizar a pobreza que resultou dos ajustes econômicos
e políticos que alteraram a forma de produção, encaminhado
sugestões aos países em desenvolvimento para que priorizem a
Educação Básica, pretendendo melhorá-la. Com a mundialização
da economia e com seus resultados sentidos na disseminação
da pobreza, estas sugestões têm aumentado. Isso porque tais
mudanças foram desenvolvidas em consonância com as mudanças
do Estado, conforme podemos verificar em Anderson (1995), ao
comentar sobre a difusão das ideias neoliberais. O Consenso de
Washington, expressão desse período, se traduz num conjunto de
ideias norteadoras das decisões e encaminhamentos que, no plano
econômico, iriam redirecionar as questões sociais, entre elas, o
papel do Estado e o papel da educação. Constata-se como marco

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 33-62 – jan./jun. 2017 43
para o desenrolar dessa proposta, a Conferência de Jomtien, que
sugere a extensão da Educação Básica para todos, e, no Brasil,
termina com a publicação do Plano Decenal da Educação (Brasil,
1993) cujo objetivo era universalizar o Ensino Fundamental em
dez anos. Há que ser observado, como assinalou Melo (2004,
2005), que o Programa de Educação para Todos esteve voltado
à formação das massas, de trabalhadores que desenvolveriam
trabalho simples no decorrer da vida. Em outra obra, intitulada
“Educação e Conhecimento: Eixo da Transformação Produtiva
com Eqüidade” (CEPAL e UNESCO, 1995), a educação e o
conhecimento são considerados caminhos importantes para
buscar a transformação produtiva. Para tanto, assinala-se que
a escola precisa passar por mudanças, assim como é necessário
rever os sistemas educacionais com o objetivo de formar o novo
trabalhador que vem sendo requerido.
As ideias da Cepal e da Unesco encontram respaldo no
Relatório Delors (2001) que, demarcando as competências
básicas a serem desenvolvidas em forma de aprendizagem na
vida social e produtiva, bem como da educação permanente,
também reforçam as considerações traçadas no Relatório Faure
(1972), que, na década de 1970, valorizava o aprender como
requisito importante para a vida social e produtiva. Alguns
postulados, como a solidariedade entre os povos e os governos,
o desenvolvimento integral do homem e cidadão, a educação
como chave da democracia, já eram destacados como importantes
para o homem. A continuidade da aprendizagem, enfatizada
nos documentos citados como importante pela dinamicidade do
contexto produtivo, traz demandas pedagógicas à escola exigindo
que esta esteja constantemente se atualizando.
Como resultado, tais propostas pretendem a formação que
leva ao empreendedorismo, visando a dotar o homem de condições

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de sobrevivência, como destacou Melo (2005). Acredita-se que,
com a capacidade de empreender, é possível encontrar estratégias
de superação da pobreza mediante a prestação de serviços básicos e
a realização de atividades comerciais com produtos industrializados
no entorno em que ele vive. A questão é que a pobreza é um fato
e a forma de superá-la deve ser o recurso daquele que precisa
sobreviver. Disso deriva uma concepção de cidadania considerada
cidadania produtiva que se mantém muito aquém da atenção
merecida por aquele que está em situação de vulnerabilidade social.
Esta é a face da conformação social que cumpre com a agenda de
governação da qual é parte central a hegemonia obtida pelo Estado
a partir de seu papel pedagógico, a exemplo das análises de Neves
e Sant’Anna (2005). O desafio para a educação básica hoje, com
as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio,
é entender os pressupostos que fundamentam o Ensino Médio
de qualidade social: o trabalho, a ciência, a tecnologia e a cultura,
precisam ser compreendidos como dimensões importantes da
formação humana. Dentre estas dimensões, destaca-se a reflexão
acerca do trabalho, o qual é conceituado, neste documento, “[...]
na sua perspectiva ontológica de transformação da natureza, como
realização inerente ao ser humano e como mediação no processo
de produção da sua existência” (BRASIL, 2012, p. 19). Por isso,
a “[...] concepção do trabalho como princípio educativo é a base
para a organização e desenvolvimento curricular em seus objetivos,
conteúdos e métodos” (BRASIL, 2012, p. 21). Conforme um
trecho das DCNEM:

Considerar o trabalho como princípio educativo equivale a dizer


que o ser humano é produtor de sua realidade e, por isto, dela
se apropria e pode transformá-la [...] Em síntese, o trabalho é
a primeira mediação entre o homem e a realidade material e

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social. [...] Na base da construção de um projeto de formação
está a compreensão do trabalho no seu duplo sentido: ontológico
e histórico. [...] Pelo primeiro sentido, o trabalho é princípio
educativo à medida que proporciona a compreensão do processo
histórico de produção científica e tecnológica, como conhecimentos
desenvolvidos e apropriados socialmente para a transformação
das condições naturais da vida e a ampliação das capacidades, das
potencialidades e dos sentidos humanos. O trabalho, no sentido
ontológico, é princípio e organiza a base unitária do Ensino Médio.
Pelo segundo sentido, o trabalho é princípio educativo na medida
em que coloca exigências específicas para o processo educacional,
visando à participação direta dos membros da sociedade no trabalho
socialmente produtivo. [...] (BRASIL, 2012, p. 21).

Verifica-se aqui que o trabalho mencionado está distante


e se diferencia do entendimento do trabalho como emprego,
aspecto comentado por Frigotto (2009), ao discutir a polissemia
da categoria trabalho. Nessa direção, “[...] a identidade do Ensino
Médio se define na superação do dualismo entre propedêutico
e profissional” (BRASIL, 2012, p. 29). Nesta etapa da Educação
Básica, como define o mesmo documento, “a profissionalização
é uma das formas possíveis de diversificação”, sendo alternativa
e não única vertente a ser oferecida aos estudantes. Afinal, o
Ensino Médio tem compromissos com todos os jovens, “[...] em
situações de aprendizagem variadas e significativas, com ou sem
profissionalização com ele diretamente articulada” (BRASIL,
2012, p. 30).
Por isso, diante da complexidade e variedade de desafios
que este debate abre para o trabalho docente e para os rumos do
Ensino Médio e Profissional, entendido como um “direito social”
importante para os filhos das classes trabalhadoras, intentamos
problematizar, de forma bastante recortada, apenas duas
recomendações, considerando-se, sobretudo, o bojo das mudanças

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pós-reestruturação produtiva que trouxe tantos impactos na
formação do homem, do cidadão e do trabalhador, sacudindo
a escola nesta difícil tarefa de repensar os pressupostos de suas
práticas pedagógicas. Nosso foco, então, está em: a) que tais
reflexões acerca da perspectiva ontológica do trabalho realmente
se constituam em conteúdo relevante nos espaços de formação
continuada dos professores nas escolas de Ensino Médio e
Profissional; b) que o debate ontológico sobre o trabalho passe a
compor, de forma mais decisiva, a formação de adolescentes, jovens
e adultos do Ensino Médio e Profissional, fazendo interfaces com
todas as disciplinas, não só as que já o contemplam como conteúdo
estruturante, como o caso da Sociologia.
Não se trata aqui de problematizar o trabalho enquanto
tema transversal. As duas recomendações acima caminham
em outra direção: concretizar a proposta do trabalho enquanto
princípio educativo, como nos recomendam as Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Brasil, 2012) e as
Diretrizes Estaduais para o Ensino Médio do Estado do Paraná
(2008). Tais recomendações não se constituem em novidade para
os estudiosos da área, mas precisam ser enfatizadas cada vez que
nos debruçamos sobre a temática, que é sempre atual para a práxis
pedagógica. Reafirmar que o debate, crítico e aprofundado, sobre
a perspectiva ontológica do trabalho deve compor a formação
continuada dos docentes, da equipe pedagógica e a formação
inicial dos estudantes do Ensino Médio e Profissional – e por
que não dizer dos demais membros da comunidade escolar -,
significa relembrar o papel criativo e decisivo da participação
ativa de todos estes sujeitos históricos no processo educativo. Para
Dayrell (2001, p. 137):

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 33-62 – jan./jun. 2017 47
[...] o processo educativo escolar recoloca a cada instante a
reprodução do velho e a possibilidade da construção do novo, e
nenhum dos lados pode antecipar uma vitória completa e definitiva.
Esta abordagem permite ampliar a análise educacional, à medida
que busca apreender os processos reais, cotidianos, que ocorrem no
interior da escola, ao mesmo tempo em que resgata o papel ativo
dos sujeitos, na vida social e escolar.

Assim, a primeira recomendação nos permite repensar as


práticas de gestão e de formação continuada de professores do
Ensino Médio e Profissional. Isso ganha sustentação quando
lembramos as relações que as Diretrizes Curriculares Nacionais
para o Ensino Médio (2012) fazem entre atividades integradoras
e o trabalho. Conforme as Diretrizes:

[...] é importante que as atividades integradoras sejam concebidas


a partir do trabalho como primeira mediação entre o homem e a
natureza e de suas relações com a sociedade e com cada uma das
outras dimensões curriculares reiteradamente mencionadas. Desse
modo, sugere-se que as atividades integradoras sejam desenvolvidas
a partir de várias estratégias/temáticas que incluam a problemática
do trabalho de forma relacional (BRASIL, 2012, p. 45).

Sem anular as diferentes concepções pedagógicas, às vezes


tão divergentes na escola - apesar dos consensos registrados,
muitas vezes de forma mecânica, no Projeto Pedagógico - parece-
nos relevante inserir, sempre que possível, os debates teórico-
metodológicos sobre o trabalho no seu sentido ontológico, de forma
a instigar os professores a reelaborar conjuntamente concepções
sobre o próprio trabalho docente, debatendo intencionalidades
tanto da macro quanto da micro política educacional, de maneira
mais explícita, para criarem juntos ferramentas que os encorajem
no engajamento de processos permanentes de mudança. Afinal,

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 33-62 – jan./jun. 2017 48
“[...] o princípio da unidade entre pensamento e ação é correlato
à busca intencional da convergência entre teoria e prática na
ação humana” (BRASIL, 2012, p. 20) e nos espaços de formação
continuada de professores este princípio não pode ser diferente.
Estas mesmas considerações apontam para a necessidade de
também repensarmos os espaços de reflexão dos pressupostos do
Projeto Pedagógico, como momentos privilegiados de debate, de
planejamento e de formação continuada, mirando sempre um
projeto de formação mais ousada, ou seja, emancipadora. Por
isso, ressalta-se que:

A relação entre teoria e prática se impõe, assim, não apenas como


princípio metodológico inerente ao ato de planejar as ações,
mas, fundamentalmente, como princípio epistemológico, isto é,
princípio orientador do modo como se compreende a ação humana
de conhecer uma determinada realidade e intervir sobre ela no
sentido de transformá-la (BRASIL, 2012, p. 20).

Dizemos isso porque concordamos com a ideia de que;

[...] pensar uma educação escolar capaz de realizar a educação em


sua plenitude, implica em refletir sobre as práticas pedagógicas
já consolidadas e problematizá-las no sentido de produzir a
incorporação das múltiplas dimensões de realização do humano
como uma das grandes finalidades da escolarização básica (BRASIL,
2012, p. 25).

Quantas vezes os espaços de formação nas “Semanas


Pedagógicas” das escolas de Ensino Médio e Profissional ficam
restritos ao debate dos mesmos e repetidos temas, fechados em
um processo quase que de conformação a um contexto social
e educacional aparentemente harmônico, desvalorizando o
poder político das suas instâncias colegiadas. A questão mais

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relevante nem são os temas, mas o modo como são muitas vezes
compreendidos, com foco na individualização das ações ou
na responsabilização ora de um sujeito, ora de um grupo, sem
problematizar criticamente os conflitos, as contradições e os
diferentes contextos socioculturais e econômicos tão pulsantes
nas escolas. Poucas vezes se debatem temas e procedimentos
metodológicos nos espaços de formação continuada de professores
tendo o trabalho como princípio educativo e a totalidade como
alternativa de ação. Poucas vezes manifestações com organicidade,
contrárias ao projeto formativo abstrato e de polivalência dos
estudantes, assim como dos próprios profissionais da educação,
tornam-se pontos de pauta nestes momentos de formação
nas escolas. Ao contrário, muitos professores e gestores ainda
defendem a valorização do capital humano, em detrimento
do debate do trabalho como princípio educativo, e é onde
se proliferam ações que acabam por concretizar, em regras e
práticas pedagógicas, o processo de responsabilização pessoal dos
estudantes e das famílias pelo fracasso escolar, compreendidos
erroneamente como “clientelas” competitivas e “empregáveis” em
alguns Projetos Pedagógicos do Ensino Médio e Profissional.
Não se intenciona aqui dizer que outras temáticas sejam menos
relevantes que o trabalho nos espaços de formação continuada de
professores, mas ressalta-se a importância da inserção de temas
mais amplos nos debates que permeiam a gestão e a formação
docente. Afinal,

[...] na medida em que a produção, a elaboração e a disseminação


do conhecimento não são neutras, planejar a ação educativa, melhor
definindo, educar é uma ação política que envolve posicionamentos
e escolhas articulados com os modos de compreender e agir no
mundo (BRASIL, 2012, p. 39).

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 33-62 – jan./jun. 2017 50
A segunda recomendação nos faz imergir diretamente nas
práticas curriculares do Ensino Médio e Profissional. Para isso,
recorremos novamente à reflexão sobre as atividades integradoras
explicitadas nas Diretrizes Nacionais do Ensino Médio (Brasil,
2012), enfatizando que;

[...] a cada tempo de organização escolar as atividades integradoras


podem ser planejadas a partir das relações entre situações reais
existentes nas práticas sociais concretas (ou simulações) e os
conteúdos das disciplinas, tendo como fio condutor as conexões
entre o trabalho e as demais dimensões [...] Este modo de organizar
o currículo contribui, não apenas para incorporar ao processo
formativo, o trabalho como princípio educativo, como também
para fortalecer as demais dimensões estruturantes do Ensino Médio
(ciência, tecnologia, cultura e o próprio trabalho), sem correr o
risco de realizar abordagens demasiadamente gerais e, portanto,
superficiais, uma vez que as disciplinas, se bem planejadas, cumprem
o papel do necessário aprofundamento (BRASIL, 2012, p. 45).

Remetemo-nos a estas contradições curriculares, lembrando


Dayrell (2001, p. 139), quando diz que muitas vezes os
conhecimentos escolares estão “materializados nos programas
e livros didáticos, como ‘objeto’ ou ‘coisa’ a ser transmitida [...],
justificando-se a desarticulação existente entre o conhecimento
escolar e a vida dos alunos”. As Diretrizes Curriculares Nacionais
do Ensino Médio (BRASIL, 2012) trazem dados a este respeito,
quando destaca que:

Os conhecimentos escolares são reconhecidos como aqueles


produzidos pelos homens no processo histórico de produção de
sua existência material e imaterial, valorizados e selecionados pela
sociedade e pelas escolas que os organizam a fim de que possam ser
ensinados e aprendidos, tornando-se elementos do desenvolvimento
cognitivo do estudante, bem como de sua formação ética, estética
e política (BRASIL, 2012, p. 39).

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E não há conteúdo mais vivo e integrador que o trabalho,
se considerado em sua totalidade ontológica, para concretizar
esta articulação entre os saberes científicos e os saberes da
realidade dos estudantes, sobretudo nesta etapa da formação em
que já são trabalhadores ou anseiam pela inserção no mercado
de trabalho. E a escola precisa cumprir o papel de problematizar
epistemologicamente o mundo do trabalho, não no sentido de
oferecer uma formação adaptativa a esse contexto competitivo,
com enfoques e conteúdos também adaptativos que zelam pela
orientação individualizante, como se seu desígnio fosse unicamente
cumprir a tarefa de formar para o mercado. Ao contrário, a escola
pode contribuir para materializar a formação humana, crítica e
integral dos estudantes do Ensino Médio e Profissional, fazendo
do trabalho princípio educativo e eixo norteador do planejamento
de suas práticas pedagógicas. É imprescindível dizer que a
dialética se apresenta como o caminho didático-metodológico
mais importante para efetuar tal articulação, sobretudo ao
primar pelo olhar aprofundado dos contextos históricos, sociais,
políticos e econômicos que circundam as análises críticas sobre
o trabalho. Do contrário, corre-se o risco de se criar interfaces
vazias ou “recomendações empreendedoras” que, supostamente
bem intencionadas, podem individualizar as percepções sobre
o conteúdo e as práticas escolares, responsabilizando, inclusive
de forma precoce, os próprios estudantes do Ensino Médio e
Profissional pelo “sucesso ou fracasso” no mundo do trabalho,
ao desconsiderar a totalidade histórica e política das dimensões
humanas da vida desses sujeitos. 
A problematização crítica sobre o trabalho é, afinal, matéria
prima a partir da qual a juventude pode articular, de forma não
estereotipada e menos homogeneizante, vários saberes sobre o

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mundo que a circunda e atribuir mais sentido social, cultural e
político aos conteúdos curriculares, às vezes tratados de modo tão
abstrato com os estudantes do Ensino Médio e profissional em
algumas escolas. Estas considerações, ousadas no sentido de serem
intituladas como ‘recomendações’, são apenas problematizações
pedagógicas e sociológicas de uma das muitas faces e desafios
enfrentados na reflexão sobre o complexo contexto do Ensino
Médio e Profissional no Brasil. Mesmo porque há que pensar
que, se por um lado as relações produtivas e de trabalho podem
ser alteradas - e a escola é parte integrante desse processo mais
amplo - , por outro, mantêm-se as relações sociais desiguais
pela desigualdade presente na relação entre capital e trabalho.
Mas, recordando Neves e Sant’Anna, a possibilidade de contra-
hegemonia existe:

[...] Os excluídos desse projeto, contingente mais direta e


negativamente afetado pelo neoliberalismo, constituiriam um
nítido potencial de protesto e insubmissão ao status quo, podendo,
pois, representar a tentativa de estabelecimento de uma contra-
hegemonia [...] (NEVES e SANT’ANNA, 2005, p. 33).

Dizemos isso, porque entendemos que:

[...] a educação escolar, embora não tenha autonomia para,


por si mesma, mudar a sociedade, é importante estratégia de
transformação, uma vez que a inclusão na sociedade contemporânea
não se dá sem o domínio de determinados conhecimentos que
devem ser assegurados a todos (BRASIL, 2012, p. 25).

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 33-62 – jan./jun. 2017 53
Algumas considerações

Os aspectos destacados até aqui demonstram a importância


desta discussão para a formação, para o ensino e para a gestão.
Desenvolver a gestão pedagógica no Ensino Médio e Profissional é
uma tarefa complexa, que exige posicionamento político por parte
daqueles que pretendem construir uma escola em que os processos
educativos propiciem aos adolescentes, jovens e adultos aprender
e serem capazes de colaborar para a transformação do mundo
em que vivem. Esse processo passa pelo convencimento de toda
equipe pedagógica de que o seu esforço não pode ser menor. Pelo
contrário, é necessário um engajamento político que desmonte
a formação da sociabilidade conformada ao contexto capitalista
responsável pela reedição da teoria do capital humano, pelo qual
a escola vem formando o homem, cidadão e trabalhador adaptado
ao mercado. Para isso, uma das tarefas é o conhecer e discutir os
documentos que respaldam o desenvolvimento do Ensino Médio.
Nesse sentido, os desafios mais significativos em torno dessa
temática materializam-se atualmente nos retrocessos advindos
da Lei n°13.415, de 16/02/2017, originária de uma Medida
Provisória n° 746/2016, já no Governo de Michel Temer. Todas
as desigualdades socioeducacionais que marcam o Ensino Médio
público no Brasil foram estrategicamente esquecidas como se
pudessem ser resolvidas apenas por alterações curriculares, sem
mudanças nas estruturas, onde residem realmente as defasagens:
baixos salários para professores; ausência de concursos; falta
de escolas; excesso de estudantes por turma; pouco tempo
de preparação de aulas; quantidade excessiva de contratos
temporários, etc. Gaudêncio Frigotto explicita bem essas questões
paradoxais:

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A escola que exclui é a escola degradada em seus espaços, sem
laboratórios, sem auditórios de arte e cultura, sem espaços de esporte
e lazer e com professores esfacelados em seus tempos trabalhando
em duas ou três escolas em três turnos para comporem um salário
que não lhes permite ter satisfeitas as suas necessidades básicas,
levando-os frequentemente ao adoecimento. A medida provisória
joga uma cortina de fumaça sobre esta realidade e ainda a agrava.
[...] Além disso, a falta de professores de algumas disciplinas pode
vir a ser um parâmetro de definição dos sistemas de ensino sobre
qual itinerário oferecer. Este problema ficaria remediado com a
total desresponsabilização do poder público com a realização de
concursos e efetivação de novos professores. (FRIGOTTO, 2016,
p. 03).

Longe de pensar o trabalho como princípio educativo e a


formação integral, a Lei n°13.415/17 aprofunda as desigualdades
e as dualidades entre a formação do trabalhador e a formação
daqueles que pretendem dar continuidade aos estudos, com
ofertas restritas, aligeiradas e limitadas, propagando flexibilização
e autonomia para as juventudes na escolha dos itinerários
formativos de maior carga horária, quando na realidade promove
esvaziamento de conteúdos, maior abertura para a privatização
e o ensino a distância, além da desregulamentação da profissão
docente com a possibilidade de contratação pelo “notório saber”
no ensino profissional.
Há de se destacar ainda todos os retrocessos para o ensino
noturno, para a Educação de Jovens e Adultos (EJA), para a
diversidade cultural e linguística desse país com a valorização
apenas da Língua Inglesa, para a desvalorização das Ciências
Humanas transformando-as em “estudos e práticas” e para o
beneficiamento de intuições privadas na oferta de educação
profissional, isto é, “uma agressão frontal à constituição de 1988
e a Lei de Diretrizes da Educação Nacional que garantem a

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universalidade do ensino médio como etapa final de educação
básica”. (FRIGOTTO, 2016, p. 329).

[...] Desta forma, o ensino médio reduz a formação básica a


um mínimo e sonega aos estudantes o direito de ter acesso ao
conhecimento em suas mais diversas áreas, o que lhes proporcionaria
a compreensão dos fundamentos da realidade produtiva, social,
econômica, política, ética e estética da vida, para estreitar sua
formação desde muito cedo. (FRIGOTTO, 2016, p.02).

Portanto, é preciso estudo e compreensão das mudanças


assim como a natureza delas. Deve-se reconhecer que há ainda uma
educação desarticulada, pois a formação voltada para a autonomia,
a criticidade e a participação política não se concretizam
fundamentadas nas equivocadas concepções capitalistas que
têm permeado tanto a elaboração e desenvolvimento do Projeto
Pedagógico quanto o encaminhamento das atividades de ensino.
Faz-se necessário valorizar também o trabalho docente, já que é o
professor que irá possibilitar os conhecimentos através da prática
pedagógica, como foi afirmado por Paro (2001, p. 21), para quem
o “[...] educador é um guia para esse mundo praticamente infinito
da criação humana”. Esse processo precisa ser discutido e estudado
para um bom encaminhamento e requer formação continuada. Do
mesmo modo, é preciso que a direção da escola realize, e bem, suas
atividades as quais, como observamos, nos estudos de Paro (1997),
envolvem práticas administrativas, organização espaço tempo da
escola e mobilização de todos os docentes e funcionários, assim
como o estabelecimento de relações com a comunidade.
É imprescindível, para as decisões sobre o encaminhamento
e avaliação desse processo, cumprir com o princípio da gestão
democrática e ouvir os adolescentes e jovens da escola e os seus

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 33-62 – jan./jun. 2017 56
professores, buscando definir coletivamente um projeto de escola.
Afinal, com a participação nas decisões é possível implementar, de
fato, a democratização da escola, um importante meio para discutir
o ensino médio e profissional, reivindicar a educação de qualidade,
um preceito constitucional. Deve-se possibilitar aos alunos da
educação média e profissional um ensino que, efetivamente, os
instrumentalize para o desenvolvimento de uma sociabilidade que
permita aos adolescentes, jovens e adultos ultrapassar a barreira
da conformação a com uma sociedade alheia às reivindicações
e à luta política que tem caracterizado a nova forma de ser da
cidadania. Esta tarefa envolve a gestão e o ensino, espaços em que
as ações respaldam e estruturam a organização escolar para que a
aprendizagem se processe, de fato, na escola.

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DIÁLOGOS COM GUSTAVE COURBET E
MACHADO DE ASSIS EM A ORIGEM DO MUNDO,
DE JORGE EDWARDS

Diogo da Silva Nascimento1


Telma Maciel da Silva2

RESUMO: O quadro A origem do mundo, de Gustave Courbet, é ponto de partida


da trama do romance homônimo do escritor chileno Jorge Edwards. Trata-se de uma
imagem realista do corpo de uma mulher, cujo rosto está oculto, o que confere ainda
mais destaque às partes íntimas desnudas. Durante muito tempo se investigou a
identidade da modelo pintada por Courbet e várias hipóteses foram discutidas, sem que
nenhuma delas fosse considerada definitiva. A trama de Jorge Edwards gira em torno,
basicamente, de questões da mesma natureza. Além da interdiscursividade entre quadro
e romance, existem ainda relações intertextuais com Dom Casmurro, de Machado de
Assis, na medida em que o escritor chileno toma de empréstimo certos elementos do
enredo machadiano. Pretende-se, pois, analisar aqui as relações estabelecidas entre as
duas obras literárias e o quadro de Courbet.
PALAVRAS-CHAVE: Intertextualidade. A origem do mundo. Dom Casmurro.

ABSTRACT: Gustave Courbet’s painting The origin of the world is the starting
point of the homonymous novel’s plot by the Chilean writer Jorge Edwards. This is a
realistic picture of the body of a woman whose face is hidden, which gives even more
prominence to the naked private parts. For a long time, the identity of the model painted
by Courbet was investigated and various hypotheses were discussed, but none of which
were considered final. Jorge Edwards’s plot basically revolves around issues of the same
nature. In addition to interdiscursivity between the painting and the novel, there are
intertextual relationships with Dom Casmurro by Machado de Assis, as the Chilean
writer borrows certain elements of the Machadian plot. It is intended here, therefore,
to analyze the relations between the two literary works and Courbet’s picture.
KEYWORDS: INTERTEXTUALITY; A origem do mundo; Dom Casmurro.

1
Mestre em Letras – Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Estadual de Londrina. E-mail: nascimento.diogo@hotmail.com.
2
Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista (Assis). Professora de Literatura
do Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual
de Londrina. E-mail: telmaciel@gmail.com.

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São mais numerosas, Lucílio, as coisas que nos amedrontam do que aquelas
que verdadeiramente nos fazem mal, e com mais frequência nos afligimos
com o que supomos do que com os próprios fatos. (Sêneca)

Jorge Edwards nasceu em Santiago do Chile, em 1931. É


um dos escritores contemporâneos mais importantes da literatura
chilena e de língua espanhola, conquistando inclusive o Prêmio
Cervantes em 1999. Foi também diplomata, exercendo sua função
em Cuba por alguns meses e, por discordar do sistema político de
Fidel Castro, acabou sendo expulso do país. Proibido de entrar na
ilha novamente, Jorge Edwards publica o polêmico registro sobre
suas experiências em Cuba, Persona non grata (1973). Pouco tempo
depois, exilou-se também do Chile por ser contrário ao golpe
militar de Augusto Pinochet. Viveu por um tempo na França e
na Espanha, retornando ao seu país posteriormente.
A relação de Jorge Edwards com o regime comunista – e
o sistema político, em geral – influenciou de maneira deliberada
a sua literatura. Entre alguns dos títulos da extensa produção
do escritor chileno, estão os romances Los convidados de piedra
(1978), El museo de cera (1981) e La mujer imaginaria (1985).
Além de romances, escreveu também livros de contos, ensaios
e um memorial, Adiós poeta (1990), sobre o escritor e seu amigo
Pablo Neruda. Admirador da literatura brasileira, Jorge Edwards
publicou ainda Machado de Assis (2002), um estudo aprofundado
da obra machadiana.
O livro A origem do mundo foi publicado originariamente
em 1996, contudo, só foi traduzido para o português e publicado
no Brasil em 2014, pela Cosac Naify. O romance narra a história
de três chilenos – Patricio Illanes, Felipe Díaz e Silvia – que se
exilaram em Paris depois do golpe de Pinochet. A narrativa tem
como fio condutor o ciúme repentino e obsessivo de Patricio

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Illanes, após desconfiar que Silvia, sua esposa, o traiu com Felipe
Díaz, seu melhor amigo. O estopim desse ciúme exacerbado de
Patito (epíteto de Patricio Illanes, médico e ex-membro do partido
comunista) se deu quando, em uma visita ao Musée d’Orsay,
contemplando o quadro A origem do mundo, de Gustave Courbet,
percebeu uma semelhança do corpo da mulher do quadro com
o de sua esposa.
Essa aproximação entre os dois corpos que começou como
uma brincadeira de Patricio veio, em pouco tempo, “a adquirir
matizes mais inquietantes, menos leves. Matizes mais escuros,
digamos assim” (EDWARDS, 2014, p. 7). Tudo começou, pois,
com uma criação imaginária de Patrício e que, talvez, de fato, só
tenha existido em sua cabeça. O médico, que sempre fora racional
e equilibrado, mostra-se, no auge dos seus setenta e poucos anos,
totalmente fora de controle depois de ele mesmo ter provocado
e criado toda a fantasia, desencadeando atos irracionais que
apontam, ao mesmo tempo, para o fracasso (de ideais políticos
e profissionais) e o impulso sexual (libido que havia se apagado
com a velhice e, neste momento, voltou a acender).
Após o suicídio de Felipe Díaz – que aconteceu alguns dias
depois da visita de Patricio e Silvia ao museu –, desencadeou em
Patricio uma série de desconfianças de adultério da esposa com o
amigo. Há dois motivos principais que provocaram a desconfiança
no protagonista: a reação de Silvia diante do cadáver de Felipe
e duas fotos (uma 3x4 de Silvia e a de um corpo feminino, em
uma espécie de releitura de A origem do mundo) encontradas por
Patricio em uma gaveta no quarto de Felipe Díaz. O médico sai
então em uma busca desenfreada de provas mais concretas que
comprovem o adultério de sua esposa com o seu melhor amigo.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 63-80 – jan./jun. 2017 65
Para arquitetar a trama de A origem do mundo, o escritor
chileno estabeleceu um diálogo com duas obras, como já
mencionado, que também provocaram muita controvérsia: o
próprio quadro de Gustave Courbet, que possui o mesmo título
do romance; e Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis. O
romance tem como base, portanto, a construção a partir dessas
relações dialógicas e intertextuais, exibindo, inclusive, marcas
pontuais da obra de Machado de Assis.
Jorge Edwards, ao retomar a obra machadiana em seu
romance, recupera a memória da própria literatura. Esse é
justamente o caminho que a professora Tiphaine Samoyault
percorre em seu livro A intertextualidade, afirmando que a
intertextualidade é, com efeito, a “memória que a literatura tem
de si mesma” (SAMOYAULT, 2008, p. 10). E complementa essa
ideia afirmando que

A literatura se escreve com a lembrança daquilo que é, daquilo


que foi. Ela a exprime, movimentando sua história e a inscrevendo
nos textos por meio de um certo número de procedimentos de
retomadas, de lembranças e de re-escrituras, cujo trabalho faz
aparecer o intertexto (SAMOYAULT, 2008, p. 47).

O trabalho com a intertextualidade é, desse modo,


o trabalho de recuperação da memória do próprio passado
literário. Não em um sentido amplo e generalizado de que, como
expressou Julia Kristeva, “todo o texto se constrói como mosaico
de citações” (KRISTEVA, 1974, p. 64), mas a intertextualidade,
no sentido mais estrito, dá-se por meio do trabalho não apenas de
recuperação, mas também, e principalmente, de transformação em
relação ao texto-fonte. Nesse sentido, o professor Laurent Jenny
afirma que essas “obras literárias nunca são simples memórias –
reescrevem as suas lembranças, influenciam os seus precursores,

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 63-80 – jan./jun. 2017 66
como diria Borges. O olhar intertextual é então um olhar crítico”
( JENNY, 1979, p. 10).
A prática intertextual pressupõe, desse modo, dois aspectos
fundamentais: ela “permite uma reflexão sobre o texto, colocado
assim numa dupla perspectiva: relacional (intercâmbio entre
textos) e transformacional (modificação recíproca dos textos que
se encontram nesta relação de troca)” (SAMOYAULT, 2008, p.
67). A intertextualidade consiste, desse modo, na reavaliação do
passado que, em geral, se dá em uma via de mão dupla: de um
lado há uma espécie de homenagem a esse passado e do outro,
estabelece-se um olhar crítico, reflexivo.
A intertextualidade se propõe, então, a “uma poética
inseparável de uma hermenêutica: trata-se de ver e de
compreender do que ela procede, sem separar esse aspecto das
modalidades concretas de sua inscrição” (SAMOYAULT, 2008, p.
47). Percebem-se em A origem do mundo marcas de Dom Casmurro
como a aproximação entre os temas, os enredos e as personagens.
Há ainda marcas mais pontuais em determinados trechos, isto é, as
relações se dão de forma mais direta nesse trabalho de retomada
e transformação.
O conceito de intertextualidade nasceu com Julia Kristeva,
seguido dos estudos sobre dialogismo e polifonia, de Mikhail
Bakhtin. O diálogo literário, para o teórico russo, pode ser
estabelecido de várias maneiras e em vários níveis. As relações
dialógicas podem, por exemplo, estar no cerne de um enunciado,
inclusive estar presente em uma única palavra de um enunciado:

As relações dialógicas são possíveis não apenas entre enunciações


integrais (relativamente), mas o enfoque dialógico é possível a
qualquer parte significante do enunciado, inclusive a uma palavra
isolada caso esta não seja interpretada como palavra impessoal da
língua, mas como signo da posição interpretativa de um outro. Por

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isto, as relações dialógicas podem penetrar no âmago do enunciado,
inclusive no íntimo de uma palavra isolada se nela se chocam
dialogicamente duas vozes (BAKHTIN, 1981, p. 159-160).

Se o conceito de intertextualidade, de acordo com


Samoyault, restringe-se apenas às relações entre textos literários,
o dialogismo pode ser estabelecido com outras manifestações
textuais e artísticas. Assim, “numa abordagem ampla das relações
dialógicas, estas são possíveis também entre outros fenômenos
conscientizados desde que estes estejam expressos numa matéria
sígnica. Por exemplo, as relações dialógicas são possíveis entre
imagens de outras artes” (BAKHTIN, 1981, p. 160). Bakhtin
defende ainda que “as relações dialógicas são possíveis também
entre os estilos de linguagem, os dialetos sociais, etc., desde que
eles sejam entendidos como certas posições interpretativas”
(BAKHTIN, 1981, p. 160).
Nesse sentido, A origem do mundo, de Edwards, dialoga com
a obra de Courbet na medida em que, além da relação estabelecida
pelo título, o quadro do pintor realista incide significativamente
sobre o enredo do romance e a construção das personagens. O
quadro é, portanto, no romance, um elemento fundamental cuja
relação dialógica é entendida sob uma posição interpretativa da
qual argumenta Bakhtin.
Considerando que uma obra de arte é, para além de quem
a fez, o que fizeram dela em seu curso, o quadro de Courbet
tornou-se o que fizeram dele no decorrer desse século e meio: a
imagem que representa uma espécie de relação entre o corpo e a
culpa (tendo em vista o seu histórico de camuflagem pelos seus
donos e o horror do público diante do retrato de uma vagina).
Desde o primeiro dono – e, inclusive quem a encomendou –, o
diplomata turco Khalil-Bey, que escondia o quadro no banheiro
atrás de uma cortina, até o último dono, o psicanalista Jacques

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Lacan, que escondia em sua casa de campo camuflado atrás de
uma outra tela. Só nos anos 1990 o quadro foi exposto no Musée
D’Orsay, em Paris, sem nenhum véu ou camuflagem.
O romance de Edwards, em certa medida, soma-se a toda
essa construção do quadro, do que fizeram dele nesse percurso.
Isto é, o romance não se relaciona apenas a uma vagina e um par
de coxas, mas estabelece uma relação com o que fizeram dessa
imagem: uma obra que provoca em muitos ainda hoje, ao mesmo
tempo, o fascínio e o horror diante do corpo enigmático de uma
mulher. A revista Paris Match anunciou, em uma reportagem no
início de 2013, que alguém havia encontrado em 2010, em uma
loja de antiguidade, o rosto que supostamente pertenceria ao corpo
do quadro de Courbet. Em 2012, depois de algumas pesquisas e
análises, peritos afirmaram que, de fato, tratava-se da continuação
de A origem do mundo, porém essa parece ser ainda uma afirmação
duvidosa e outras instituições, como o próprio Musée D’Orsay,
refutou essa declaração.
A jornalista e escritora Eliane Brum também publicou um
artigo, na revista Época, sobre a suposta continuação do quadro
de Courbet e, contrariamente à excitação da Paris Match, Brum
questionou algumas afirmações sobre o novo quadro e o que
realmente esse rosto representa:

Mas o que, afinal, essa cabeça significa? Caso a hipótese se mostre


verdadeira, o que ainda é bastante duvidoso, ninguém pode negar
que a história seja quase irresistível. [...] Por que  A Origem do
Mundo  precisaria de um rosto? Entre as várias polêmicas que o
quadro gerou ao longo de século e meio, uma delas era a acusação
de que ao pintar uma vagina sem rosto, braços ou pernas, Courbet
estaria esvaziando a história da mulher, reduzindo-a a um órgão
sexual. Ela nem teria identidade, nem movimento, muito menos
protagonismo. Seria apenas um objeto inerte, à mercê do desejo
do homem (BRUM, 2013).

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Se em mais de um século a polêmica girou em torno da
representação realista de uma vagina, agora a polêmica é de outra
ordem: a quem esta vagina pertence? Quais são os traços do
rosto dessa mulher? Saber a identidade desse corpo realmente
tem importância? Altera o significado ou a representatividade da
obra? Questionamentos como esses geraram muita controvérsia
após a notícia do suposto rosto. E, aproximando o romance de
Edwards a esse fato, os questionamentos que o médico Patricio
Illanes começa a formular após ter encontrado as duas fotografias
no apartamento de seu amigo, Felipe Díaz, são questionamentos
da mesma natureza. O rosto de sua mulher, em uma foto 3x4,
pertence ao corpo registrado na releitura fotográfica de A origem
do mundo? Se, de fato, o corpo pertence à Silvia significa realmente
que ela o traiu com o seu melhor amigo?
Patricio busca, portanto, desvendar o enigma que ele próprio
criou. É nessa busca obsessiva em descobrir se realmente houve
uma traição que o romance de Edwards se aproxima também de
Dom Casmurro. Há semelhanças muito próximas entre as três
personagens principais de ambos os romances, bem como a relação
entre elas. Dessa forma, Bentinho e Capitu estão para Patrício
e Silvia, como também Escobar está para Felipe Díaz, tanto em
relação às posições das personagens na trama como também em
relação a algumas características de suas personalidades.
Patricio e Bentinho se mostram, durante a narrativa, duas
pessoas inseguras. Essa insegurança leva as duas personagens a
um confinamento em si mesmas a ponto de não acreditarem em
ninguém e enxergarem apenas aquilo que acreditam ser verdadeiro,
ou seja, aquilo que eles criaram em suas imaginações. A relação
de ambos os protagonistas com os seus melhores amigos também
se dá de forma muito parecida: há uma admiração e, ao mesmo

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tempo, inveja – que, por sua vez, transforma-se em ódio – em
relação aos aspectos físicos e o modo de vida de Escobar e Felipe.
Assim eles são descritos por Patricio e Bentinho, respectivamente:

Embora tivesse o rosto visivelmente deteriorado pelos excessos


alcoólicos e de toda ordem, sem excluir as ocasionais cheiradas de
cocaína — e, talvez nos últimos tempos, não tão ocasionais assim
—, Felipe Diaz ainda conservava sua bela estampa, realçada por
alguns detalhes de apuro no vestir (EDWARDS, 2014, p. 21).

Apalpei-lhe os braços, como se fossem os de Sancha. Custa-me esta


confissão, mas não posso suprimi-la; era jarretar a verdade. Não só
os apalpei com essa ideia, mas ainda senti outra coisa; achei-os mais
grossos e fortes que os meus, e tive-lhes inveja; acresce que sabiam
nadar (MACHADO DE ASSIS, 2008, p. 137).

Os dois excertos deixam notar que há um processo


de aproximação e de distanciamento entre as duas obras. Ao
mesmo tempo em que Diaz e Escobar se aproximam pelo ciúme
doentio que seus respectivos amigos sentem deles, há também
distinções importantes. A primeira delas diz respeito à idade das
personagens: enquanto em Machado de Assis, estamos diante de
dois homens jovens, em Edwards se dá o oposto. Há também que
notar a diferença entre as perspectivas de vida: Diaz, viciado em
drogas e deprimido, mata-se; enquanto Escobar morre no auge
da força física, enquanto nadava no mar.
Patricio e Bentinho caracterizam-se também pela
introspecção, são personagens mais reservadas e os seus históricos
de relações com mulheres são opostos aos de Escobar e Felipe.
A diferença entre os protagonistas e seus amigos junta-se às suas
inseguranças, fazendo-os enxergar as outras personagens e os
acontecimentos de uma forma turva. Aliás, a questão do olhar é

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 63-80 – jan./jun. 2017 71
bastante significativa em ambos os romances. É o olhar deturpado
que os leva a fazer conjecturas, culminando na obsessão, bem
como é o olhar das esposas que alarmam Bentinho e Patricio do
possível adultério.
Percebe-se que esse olhar turvo e, ao mesmo tempo, acusador
perpassa vários momentos da narrativa. Um desses momentos, nos
dois romances, revela-se por meio da fotografia. Em Machado,
a fotografia faz Bentinho acreditar haver semelhanças dos traços
de Escobar, a partir de um retrato do amigo em seu escritório,
com os traços de seu filho. Esse episódio encontra-se no capítulo
139 – A fotografia:
 
Palavra que estive a pique de crer que era vítima de uma grande
ilusão, uma fantasmagoria de alucinado; mas a entrada repentina de
Ezequiel, gritando: “- Mamãe! Mamãe! É hora da missa!” restituiu-
me à consciência da realidade. Capitu e eu, involuntariamente,
olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro.
Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele;
havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria
o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porém, não confessou nada;
repetiu as últimas palavras, puxou do filho e saíram para a missa
(MACHADO DE ASSIS, 2008, p. 186).

O leitor, porém, não pode ter certeza dessas semelhanças


entre Escobar e o filho de Bentinho, nem mesmo da reação
desconcertada de Capitu – da sua confusão, segundo o
protagonista, que se fez confissão –, uma vez que o narrador
é o próprio Bentinho e o leitor só tem acesso ao seu discurso
que, assim como os seus olhos, também pode estar alterado,
corrompido. Já em A origem do mundo, a fotografia está no centro
do enredo, ela é o estopim da desconfiança de Patricio:

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 63-80 – jan./jun. 2017 72
No pacote havia dois tipos de fotografia: aquelas
presenteadas pelas interessadas e aquelas tiradas pelo próprio
Felipe. Entre as segundas, as tiradas por ele, encontrei poses
insinuantes, divertidas, obscenas, grotescas, absurdas, românticas e
uns quantos nus bem mal fotografados. [...] Encontrei, porém, uma
mulher mais gordinha, bem constituída, com o rosto escondido
debaixo dos lençóis em desordem e de pernas abertas, um sexo
feminino fotografado em primeiro plano, curiosamente parecido
com A origem do mundo, o quadro de Gustave Courbet que Silvia
e eu acabávamos de visitar e que tinha sido exposto a mais de
um século no Musée d’Orsay. [...] Debaixo dessa réplica mal
fotografada, mas não mal pensada, de A origem do mundo, réplica
provavelmente inconsciente, simples coincidência com aquele
suposto modelo, encontrei uma pequena fotografia, tamanho três
por quatro, descolada de forma tosca de um documento velho.
- Silvia! – exclamei em voz alta, muitíssimo pálido, trêmulo,
com o pulso a mil, a boca seca (EDWARDS, 2014, p. 70-71).

Eis a passagem em que Patricio encontra as duas fotografias que o


faz acreditar no adultério de sua esposa com o amigo. Contudo, na
verdade, essas fotografias funcionam apenas como um elemento que
justifica a desconfiança que já despontava em Patricio, como uma
necessidade humana contraditória, um certo mal-estar voluntário,
provocado pela própria personagem. O escritor Mario Vargas Llosa,
em seu texto no apêndice da obra, faz exatamente essa leitura:
“entendemos que o sensível Patito não descobre nem associa nada,
ele inventa tudo para preencher-se de emoções e sentimentos e
para viver outra vez. Porque sofrer, atormentar-se, é também uma
forma – heroica – de resistir à velhice” (LLOSA, 2008, p. 153).

Essa necessidade de se sentir vivo, de lutar contra a velhice,


reflete também na necessidade de provocar a sua esposa, de ser

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enxergado por ela, bem como de movimentar e reativar a relação
do casal. Provocações que Bentinho, em certa medida, também
faz a Capitu, talvez por outras razões, ao descrever, por exemplo,
os “olhos de ressaca”, olhos “de cigana oblíqua e dissimulada” da
esposa, isto é, acusando-a, por meio de metáforas, de vil e astuta.
E o olhar se faz presente em outro momento bastante
expressivo, momento em que Bentinho e Patricio reparam no
modo como suas esposas observam os cadáveres de seus amigos,
Escobar e Felipe. Há, pois, o olhar das esposas diante do cadáver e
o olhar sobre elas – turvo e acusador, como foi dito anteriormente
– dos protagonistas. Em Dom Casmurro:

Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu,


amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra,
queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu
olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente
fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e
caladas... [...] Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram
o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas
grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse
tragar também o nadador da manhã (MACHADO DE ASSIS,
2008, p. 171).

Em A origem do mundo:

A imagem da mulher nua do quadro, como se fosse mais real,


mais vigente que todo o resto voltou a dançar na minha cabeça e
imaginei Felipe, o imaginei então, antes de ter observado as reações
descontroladas de Silvia diante de seu cadáver, e imagino-o com
mais razão agora, depois daquele episódio, abrindo as pernas dela,
colocando-as na mesma posição (EDWARDS, 2014, p. 17).

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 63-80 – jan./jun. 2017 74
A narrativa de Edward, por vezes, beira a narrativa
machadiana, estabelecendo uma relação mais estreita entre os
episódios. Este é um desses momentos. Bentinho e Patricio,
já entregues em suas obsessões, observam as reações de suas
esposas diante dos cadáveres e, pode-se notar que, na verdade, não
importa qual seja a reação delas, tudo o que for feito ou dito por
elas significará algo – inclusive, as duas tiveram reações distintas,
Capitu conteve-se e Silvia, por sua vez, mostrou-se mais emotiva.
Qualquer reação, ação ou fala, portanto, significará algum tipo
de revelação para os maridos, dado que estão com a ideia fixa da
traição.
Outro elemento que A origem do mundo estabelece uma
relação com Dom Casmurro é um tecido: o lençol em um; em
outro, o lenço. Além de voltar-se também para a obra de Courbet.
No quadro realista, o lençol é o véu que cobre o rosto da mulher
e um dos seus seios, omitindo a sua identidade e tornando-a,
assim, enigmática. Esse é, junto ao título do quadro (que ironiza
o discurso religioso), uma das provocações de Courbet, ao omitir
o rosto e a identidade da mulher e representar apenas o sexo dela,
de forma realista. No entanto, para Patricio, o rosto e a identidade
da mulher importam, sim.
Patricio quer, de qualquer maneira, puxar o lençol, retirar
esse véu que cobre o rosto da foto e revelar a identidade da modelo.
Já em Dom Casmurro, o pedaço de tecido aparece de forma mais
singela – com um pedaço menor de tecido, um lenço, e em uma
referência a uma outra obra:

Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente


Otelo, que eu não vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e
estimei a coincidência. Vi as grandes raivas do mouro, por causa de
um lenço, — um simples lenço! — e aqui dou matéria à meditação
dos psicólogos deste e de outros continentes, pois não me pude

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 63-80 – jan./jun. 2017 75
furtar à observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de
Otelo e compor a mais sublime tragédia deste mundo. Os lenços
perderam-se, hoje são precisos os próprios lençóis (MACHADO
DE ASSIS, 2008, p.231).

O lenço aparece, então, na obra machadiana quando


Bentinho vai assistir à peça Otelo, de Shakespeare, outra história
que retrata o ciúme avassalador de um homem. Nesse sentido,
esse elemento aparece aqui como uma sugestão, como algo que
impulsiona o protagonista a refletir sobre o ciúme. Um simples
lenço bastou a acender os ciúmes em Otelo, e é justamente o lençol
que cobre o rosto da modelo da foto que acendeu os ciúmes e
perturba Patricio.
O lençol também é um elemento que está intimamente
ligado, no imaginário coletivo, ao ato sexual, uma vez que a cama
é um dos lugares mais comuns a essa prática. E isso justifica a
fala de Bentinho de que “os lenços perderam-se, hoje são precisos
os próprios lençóis”, no sentido aqui de se descobrir uma traição.
Contudo, em A origem do mundo, o lençol é o elemento que não
revela a traição, pelo contrário, é justamente o lençol que não
permite essa revelação.
No auge do seu desespero, e encaminhando-se para o fim
da narrativa, Patricio pega a foto e compara com o corpo de sua
esposa, colocando-a na cama na mesma posição da releitura de
A origem do mundo:

Não quer ficar na mesma posição da mulher da foto? Não respondi


nada também. Ele, então, levantou os lençóis, que mal se podia
suportar por causa do calor, e cobriu o meu rosto. Depois separou
minha perna esquerda. Olhou para mim, acho, porque eu não o via,
durante algum tempo, e provavelmente me comparou com a foto. -
É você - sussurrou, subindo em cima de mim, me penetrando, sem
deixar que tirasse o lençol do rosto (EDWARDS, 2014, p. 142).

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 63-80 – jan./jun. 2017 76
É interessante notar, para além da cena provocativa, a
questão do narrador. Este é o último capítulo da obra de Edwards
e quem narra é Silvia. O romance possui onze capítulos, alterando
entre três narradores. Dos onze capítulos, oito são narrados pelo
próprio Patricio, dois são narrados por um narrador em terceira
pessoa e extradiegético, e o último capítulo narrado por Silvia. É
muito interessante essa troca de narradores em A origem do mundo
e mais significativa ainda o fato de Silvia narrar, de ter o direito à
voz. É como se, de certa forma, reivindicasse o direito à voz para
Capitu, isto é, o direito de se defender, de apresentar a sua versão,
uma vez que em Dom Casmurro esse direito é negado.
Em A origem do mundo é concedido à Silvia o direito
de narrar e contar os fatos a partir da sua perspectiva. E isso
se mostra revelador, pois da mesma da forma que, ao longo da
narrativa, o leitor vai percebendo o jogo estabelecido por Patricio,
Silvia também percebe e acaba também entrando nesse jogo, já
que entende ser inútil qualquer forma de tentar provar que nada
aconteceu entre ela e Felipe:

Estive apaixonada como louca por Felipe, repetia a mim mesma,


quase com assombro, mas ninguém soube, nem o doutor nem
ninguém e, claro, nem o próprio Felipe, que passava por cima dessas
coisas e nem percebia, o desgraçado! E o doutor, Patito, eu amo
profundamente, tenho por ele um carinho cada dia maior. Oxalá
viva muitos anos mais. [...] Por outro lado, penso que a fantasia de
Patito é perigo, veneno, doença da cabeça, e que ao mesmo tempo
é vida (EDWARDS, 2014, p. 144).

Silvia, ao não revelar para o marido que, de fato, nunca o


traiu com Felipe, alimenta e contribui para a continuação desse
enigma inventado por Patricio que, por sua vez, é um impulso
de vida para o marido. A personagem, assim, em uma direção

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 63-80 – jan./jun. 2017 77
oposta ao que se esperaria dela, revela a “não-traição” apenas ao
leitor, o que também é significativo, tendo em vista a autonomia
e capacidade da personagem em decidir os direcionamentos da
sua história e, consequentemente, da narrativa.
Em vias de conclusão, retornando ao assunto da suposta
continuação do quadro de Courbet e ao artigo de Eliane Brum,
a jornalista faz a seguinte reflexão:

O rosto da mulher nunca foi o enigma. Nem me parece que a


possibilidade de imaginá-lo seja o ganho ao se manter o mistério. O
enigma é de outra ordem – e está em lugar diverso. É a capacidade
de representar o enigma que tornou esse quadro tão polêmico, na
medida em que ele não representa o irrepresentável – o sexo da
mulher. O que ele representa é justamente o enigma. Esta é a sua
transgressão. Esta é a razão de provocar um incômodo que atravessa
o tempo (BRUM, 2013).

Apesar de não haver uma relação – consciente – entre


o romance de Edwards e a suposta continuação do quadro de
Courbet, uma vez que o livro é anterior à “descoberta”, essa
questão do enigma parece ser justamente a discussão no romance
do escritor chileno. E é também a capacidade do romance de
representar esse enigma e de, além disso, discutir questões de
outras ordens – como a desilusão política e profissional, o pavor
da velhice e a questão do corpo feminino, da mulher e os seus
direitos – que faz de A origem do mundo, um romance admirável.
Dessa forma, a princípio, o tema da traição pode saltar aos
olhos do leitor e, se este continuar a fazer uma leitura superficial,
a única questão relevante da história se restringirá a esse tema,
da mesma forma que, por muito tempo, foi feita a leitura de Dom
Casmurro. No entanto, a grandeza da obra de Edwards, como se
tentou mostrar neste trabalho e, parodiando agora a fala de Brum,

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 63-80 – jan./jun. 2017 78
é de outra ordem e está em lugar diverso. Mais do que o enigma da
traição, em Edwards é estabelecido o enigma da condição humana,
da alteração brusca de comportamento, de uma obsessão criada a
partir do “nada” e que sai do controle, das relações humanas e os
jogos necessários para a sobrevivência dessas relações.

Referências

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Escala, 2008.

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de


Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.

BRUM, Eliane. A cara da vagina. 2013. Disponível em: <http://


revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2013/02/cara-
da-vagina.html>. Acesso em: 16 jul. 2015.

EDWARDS, Jorge. A origem do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

JENNY, Laurent. A estratégia da forma. In: Intertextualidades – Poétique


(nº 27). Tradução de Clara Crabbé Rocha. Coimbra: Almedina, 1979.

KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lucia Helena


França Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 1974.

LLOSA, Mario Vargas. A origem do mundo. In: EDWARDS, Jorge. A


origem do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 149-155.

SAMOYAULT, Tiphaine. A intertextualidade. Tradução de Sandra


Nitrini. São Paulo: Hucitec, 2008.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 63-80 – jan./jun. 2017 79
Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 63-80 – jan./jun. 2017 80
O ESTADO BRASILEIRO COMO “ESTADO
PATRIMONIALISTA”: ALGUMAS CONTROVÉRSIAS

Elsio Lenardão1

RESUMO: Neste artigo, são apresentados alguns contra-argumentos à sugestão,


predominante na imprensa e no senso comum, de que ainda estaria em vigência no
Brasil um Estado de tipo patrimonialista. Ou seja, nossas relações estatais seriam
definidas pelas presenças de um “estamento estatal”, da apropriação privada da coisa
pública, da corrupção, por um Estado “gigante e perdulário”, pela interferência do
Estado nos negócios privados etc. Tendo como referência certas imagens caricaturais
desse suposto Estado patrimonialista, que aparecem na imprensa, serão postos em
destaque, neste artigo, dados comparativos a respeito da burocracia brasileira atual
(profissionalização, estabilidade, remuneração) e do Estado (tamanho, gastos), visando
relativizar e desmistificar, nesses aspectos, a “hipótese patrimonialista”.
PALAVRAS-CHAVE: Estado brasileiro; Patrimonialismo no Brasil; Burocracia
estamental no Brasil

ABSTRACT: In this article, counter-arguments are presented to the suggestion that


there would still be a patrimonialist State in force in Brazil, which prevails on the
press and common sense. That is, our state relations would be defined by the presence
of a “stratum Estate”, the private appropriation of the public object, corruption, by
the interference of a “giant spendthrift” Estate in private businesses etc. As reference,
certain caricatures of this supposed patrimonialist State, displayed on the press, will be
emphasized in this article with comparing data on the actual Brazilian bureaucracy
(professionalization, stability and wage) and the Estate (extent and expenditures), to
relativize and demystify, therefore, the “patrimonialist hypothesis”.
KEYWORDS: Brazilian Estate; Patrimonialism in Brazil; Estate Bureaucracy in
Brazil.

Introdução2

A imagem a respeito do funcionamento do Estado brasileiro


que predomina no jornalismo e no senso comum, sugere que o

1
Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina/Pr.
2
Uma versão resumida deste artigo foi apresentada no “V Simpósio Nacional Estado e Poder”
– Universidade Estadual do Oeste do Paraná/Campus de Marechal Cândido Rondon - 20 ago.
2015 (LENARDÃO, Elsio. Crítica à ideia do caráter patrimonialista do Estado brasileiro atual).

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 81-108 – jan./jun. 2017 81
Estado no Brasil seria, ainda hoje, regido pelo “patrimonialismo”,
derivando desse traço os dramas e percalços que comprometem a
realização do republicanismo e da justiça social no país. Chega-se
até, a sugerir que o conceito de patrimonialismo seria, atualmente,
o “(...) conceito central da reflexão brasileira [sobre o Estado], a tal
ponto que é repetido (...) não só pela maioria dos intelectuais, na
universidade e fora dela, mas também pela mídia e pelos cidadãos
comuns nos bares de esquina do Brasil afora” (SOUZA, 2008, p.
46). Ou seja, impõe-se na mídia e até mesmo em parte importante
da academia uma interpretação sobre o Estado brasileiro que é
quase que única e unânime.
Essa imagem costuma propor que o Estado brasileiro se põe:
a) como patrimônio “possuído” por segmentos do funcionalismo
público – que se comportariam à semelhança de estamentos3 --;
b) ou se põe possuído por agentes políticos, identificados como
uma “classe política” que vêm a ocupar ocasionalmente cargos no
aparelho de Estado. Por vezes, aparece também nessa interpretação
a indicação de que o caráter patrimonialista do Estado brasileiro
se revelaria pelo fato de ele ser “tomado”, direta ou indiretamente,
por certos empresários, pequenos grupos ou setores restritos da
elite empresarial brasileira, que moveriam seus negócios a base de
subsídios, benesses ou a base de relações escusas com o Estado.
É assim que a noção atual de patrimonialismo, quase sempre,
indica “(...) uma suposta ação parasitária do Estado e de sua ‘elite’
[o estamento] sobre a sociedade” (SOUZA, 2008, p. 44). Dessa
maneira, o suposto Estado patrimonialista brasileiro decorreria,
principalmente, de “desvios de comportamento” de uma suposta

3
O uso do termo estamento sugere que estaríamos diante de uma “comunidade”, mais ou
menos, organizada em torno de uma identidade por ocupação e interesses de reprodução, de
tal modo que as implicações do pertencimento a essa comunidade se sobreporiam a outros
fatores como a origem de classe ou a posição político-ideológica de cada membro dela.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 81-108 – jan./jun. 2017 82
“burocracia estamental” ou de uma “classe política” corrupta4 ou,
ainda, de desvios de certos empresários corruptos. A definição a
seguir representa com clareza esse modelo de interpretação que
sugere ser o Estado brasileiro de tipo patrimonialista:

(...) uma forma de governar que atendia essencialmente aos


interesses do estamento dirigente formado pelo grupo de poder
(governantes, tecnoburocratas – incluindo aqui os ministros de
Estado –, membros do Poder Legislativo, do Poder Judiciário,
administradores públicos etc) O patrimonialismo estatal –
entendido como uma estrutura de mando e de decisão na qual não
há separação entre a esfera pública e a esfera privada – continua,
de diversas maneiras, vivo e dando as coordenadas básicas para o
modo de agir dos novos dirigentes no século XXI” (REZENDE,
2008, p. 37). (grifos nossos)

Destaca-se, nessa interpretação, que o caráter do Estado


seria dado pelos seus próprios agentes internos.
Neste artigo, a interpretação, exposta acima, sobre o Estado
brasileiro e sobre seu funcionamento, será denominada como
“hipótese patrimonialista”.5 Ela costuma aparecer no varejo,
pondo em destaque ora um, ora outro traço de um possível
patrimonialismo que definiria nossa organização política. No
entanto, quando olhado no atacado, um olhar que junte esses traços
numa visão mais geral, tem-se a formatação de uma “interpretação
sobre o Brasil” atual. Por exemplo, pode-se ler na imprensa:

No dia 18 de dezembro, em sua diplomação, a presidente Dilma


fez um discurso em que denunciou as condições patrimonialistas
vigentes no Brasil. (...) Dilma definiu patrimonialismo como o
regime ‘cujo traço mais marcante é a não dissolução plena dos laços
4
Para uma melhor consideração a respeito desta sugestão, ver LENARDÃO (2015).
5
O texto clássico que sugere a hipótese do patrimonialismo é Os donos do poder, de
Raymundo Faoro (1989).

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nocivos entre o que é público e o que é privado’. Enfim, a presidente
criticou a enorme confusão que prevalece por aqui entre o interesse
público e o interesse privado. Daí a corrupção, todas as formas de
apropriação dos recursos públicos para proveito próprio e o avanço
sobre a máquina do Estado.6 (grifos nossos)

O sistema partidário brasileiro é produto do paternalismo e do


patrimonialismo que historicamente predominam na organização
social e política do País. O paternalismo se manifesta na convicção
generalizada (...) de que cabe exclusivamente ao governo resolver
todos os problemas do País. (...) Desse paternalismo decorre
quase que naturalmente o patrimonialismo, entendido como a
inexistência de distinção entre o público e o privado, que faz a alegria
dos políticos [classe política] inescrupulosos para quem a atividade
pública é facilitadora, quando não apenas um meio eficiente para
a acumulação de riqueza material.7 (grifos nossos)

Nota-se, também, que parte importante das análises de


acadêmicos que intervêm na imprensa insiste em lidar com a
ideia de patrimonialismo. No caso dessas análises, vê-se que são,
certamente, mais cautelosas e preferem falar em “certas heranças”
da colonização, ou em “arcaísmos” ou “forças do atraso” que
sobrevivem no tempo e dominam temporariamente o cenário
político. Porém, não deixam de se apoiar fortemente no uso da
chave de interpretação baseada na “hipótese patrimonialista”,
conforme descrita anteriormente. Para ilustrar alguns dos termos
com os quais essa abordagem aparece em autores bem conhecidos
na academia, seguem alguns exemplos.

Assim como ainda não nos livramos dos resíduos estamentais,


também ainda lutamos contra o patrimonialismo. O Estado é forte

6
MING, Celso. Raízes do patrimonialismo 1. Disponível em: http://economia.estadao.com.
br/blogs/celso-ming/2015/01/24/raizes-do-patrimonialismo-1/. Acesso em: 24/01/2015.
7
Editorial. O Estado de S. Paulo. 16 jun. 2013, p. A3.

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demais para ser ignorado, ou desafiado, pelas empresas, sobretudo
as que dependem de concessão. De novo, nem capitalistas somos.8
(grifos nossos)

(...) corrupção já é outra coisa, dinheiro que os mandões


desde os tempos do Império podiam aplicar em benefício dos
desamparados, dos pobres e carentes. Não havia distinção, e em
muitas partes continua não havendo, entre o público e o privado,
conceitos provenientes de sociedades que tiveram outra história.
A República se fez à custa da transigência em relação a esses e
outros limites. Quem ataca a corrupção acaba atacando os pilares
da persistente política brasileira do clientelismo e do populismo, os
fundamentos da dominação patrimonial. Mesmo em nossas grandes
e supostamente modernas cidades, esse é o meio pelo qual milhões
de brasileiros têm acesso a algum benefício público. Mesmo para
ter direitos assegurados em lei, milhões de brasileiros dependem
do patrocínio e da proteção de algum pai da pátria e sua rede de
dependentes e serviçais, até mesmo no supostamente burocrático
e neutro guichê de repartição pública. Em parte, o Congresso
Nacional é a instituição que reflete esse Brasil real.9 (grifos nossos)

O conceito de parentela é um ótimo atalho para refletirmos sobre


o que vem nos preocupando (e envergonhando) nos últimos dias
por conta das notícias sobre contratações e atos secretos no Senado.
Parentela liga-se a nepotismo e ambos são carne e osso do Estado
patrimonial que construímos, a exemplo de muitos outros países,
mas que resistimos bravamente a desmontar.10 (grifos nossos)

Nesse caso, a noção de patrimonialismo, como é tomada


nessas análises de acadêmicos, aparece como uma espécie de
“mal de origem” da atuação do Estado brasileiro. A imprensa, por
8
Entrevista com José Murilo de Carvalho. Folha de S. Paulo, Caderno Brasil, 09 mar. 2006,
p. A11.
9
MARTINS, José de Souza. A ordem sem progresso e a corrupção. O Estado de S. Paulo.
Caderno Aliás. 18 set. 2005, p. j5.
10
D’ARAÚJO, Maria Celina. O atavismo da parentela. O Estado de S. Paulo. Caderno Aliás,
05/06/2009, p. J3.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 81-108 – jan./jun. 2017 85
sua vez, informa-se também nas contribuições da academia. No
entanto, as apropriações que ela faz parecem apontar para uma
preocupação bem menor em relativizar ou moderar tal hipótese.
Sob o predomínio dessa interpretação, o debate a respeito do
caráter do Estado brasileiro fica girando em torno dos seguintes
termos: privilégios de uma suposta “burocracia estamental” e/ou
da “classe política”, relação público-privado, corrupção, tamanho
do Estado, gasto estatal, interferência do Estado nos negócios
privados etc.

Aqui [no empreguismo na máquina pública] reside uma das mais


expressivas manifestações do patrimonialismo, que viria formatar a
‘alma’ do Estado brasileiro (a partir de 1822). (...) A redemocratização
(1985) não alterou as coisas e, (...) viu confirmarem-se como nunca
as variadas categorias de servidores públicos em corporações
organizadas e reivindicadoras de privilégios. A arrecadação
nacional acabou destinada em grande parte a cobrir nada mais do
que obrigações decorrentes desta situação: um Estado privatizado
por dentro (interesses da burocracia) e por fora (beneficiários e
parasitários do tesouro).11 (grifos nossos)

(...) como Raimundo Faoro mostrou magistralmente, há [no Brasil]


a dominância de um ‘estamento burocrático’ (e seus permanentes
aliados políticos), verdadeiros donos do poder.12 (grifos nossos)

Vê-se, portanto, que a hipótese patrimonialista oscila entre


ora enfatizar o elemento de uma suposta “burocracia estatal”,
ora destacar a relação estritamente favorável que o Estado
manteria com alguns empresários ou grupos empresariais muito
específicos. Importa anotar que, de qualquer modo, as duas análises
11
Disponível em: http://institutoavantebrasil.com.br/patrimonialismo-e-aparelhamento-
do-poder-publico-mais-de-600-mil-cargos-comissionados/. Acesso em: 12/08/2015.
12
NAKANO, Yoshiaki. A agenda para uma reforma do Estado. Carta Capital. Edição 781,
jan. 2014, p. 12-15.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 81-108 – jan./jun. 2017 86
acabam por fiar-se num discurso de “demonização” do Estado
(SOUZA, 2009). A primeira pela acusação de excesso de Estado
consumindo as riquezas da nação e a segunda pela denúncia
da intromissão nociva do Estado no livre jogo da concorrência
negocial. Deriva, também, dessas premissas a indicação de que
algumas mudanças administrativas e de funcionamento dos órgãos
estatais devolveriam o Estado à retidão “neutra” e “universal” de
suas políticas. E, dessa maneira, o fundo público, por exemplo,
seria direcionado, igualmente, à toda a população e não a grupos
restritos dela. Como resultado desse monopólio do eixo explicativo
patrimonialista, raramente emergem outras perspectivas de análise
e quase nada se diz sobre outros elementos importantes de reflexão
a respeito da política brasileira, por exemplo, sobre a pequena
participação popular nas decisões públicas, sobre o caráter de
classe do Estado na distribuição do fundo público etc.
Por outro lado, pode-se sugerir que talvez seja exagerado
referir-se à vigência de uma “estrutura estatal de tipo patrimonialista”
no Brasil de hoje. Parece ser mais razoável tentar verificar os
elementos de mudanças que afetaram o Estado e a sociedade
brasileira nas últimas décadas e que podem ajudar a definir melhor
seu caráter – por exemplo, entre outras, alterações na composição
e funcionamento dos agentes do Estado (sua burocracia), a
real dimensão dos gastos estatais em termos comparativos
internacionais, etc. A observação de tais mudanças permitiria
tratar certos “vícios” da administração pública (corrupção,
fisiologismo, nepotismo, apossamento privado de bens públicos
etc.) como práticas de tipo patrimonialista que sobrevivem sim no
Estado brasileiro, mas acomodadas e sendo até funcionais a uma
estrutura de organização estatal que está muito mais para liberal
do que para patrimonialista.

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Neste artigo, são apresentados alguns contra-argumentos à
ideia da presença de um Estado de tipo patrimonialista no Brasil,
tendo como referência “imagens caricaturais” a respeito desse
suposto Estado patrimonialista, que aparecem na imprensa. Serão
postos em destaque dados comparativos a respeito da burocracia
brasileira atual (profissionalização, estabilidade, remuneração) e
do Estado (tamanho, gastos), visando relativizar e desmistificar,
nesses aspectos, a “hipótese patrimonialista”.

Estamento burocrático ou burocracia profissionalizada?

O Brasil continua preso à visão dos tempos do patrimonialismo


português, quando as glórias das conquistas ultramarinas conviviam
com a concessão dos empregos públicos aos nobres, o loteamento
do governo pelo estamento burocrático e a concessão do orçamento
público com as posses do rei.13 (grifos nossos)

Estado cleptocrata [como seria o Estado brasileiro atual] não


é apenas o reconhecidamente governado por corruptos, senão
também o governado ou cogovernado por aqueles que buscam
extrair da coisa pública vantagens pessoais ou partidárias decorrentes
do patrimonialismo, que significa o estatismo abusivo, a confusão
entre público e privado, (...) o empreguismo (sobretudo dos
cabos eleitorais e apoiadores), (...) o nepotismo, o parentismo, o
amiguismo, o filhotismo (...).14

Se existisse uma cidade chamada Cargolândia, habitada por


ocupantes de cargos de livre nomeação à disposição do governo
Dilma Roussef, ela teria cerca de 7 mil moradores, população
superior à de 1.967 municípios brasileiros.15

13
NÓBREGA, Mailson da. O atraso persiste. Veja, n. 2213, 20 abr. 2011, p. 26.
14
Disponível em: http://institutoavantebrasil.com.br/patrimonialismo-e-aparelhamento-
do-poder-publico-mais-de-600-mil-cargos-comissionados/. Acesso em 12/08/2015.
15
BRAMATTI, Daniel. Futuros ministros poderão nomear 7 mil funcionários sem concurso.
O Estado de S. Paulo. Caderno Nacional, 28 nov. 2010, p. A4.

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Quando a hipótese patrimonialista insiste na figura do
estamento (burocracia estamental), de olho no seu comportamento
predatório frente aos recursos públicos, costuma insinuar uma
situação de ausência de critérios meritocráticos na seleção
e na atividade regular da burocracia estatal brasileira atual,
tomando por base dois possíveis pressupostos: primeiro, o de
que parte importante dos servidores públicos seria constituída
por indicados e/ou protegidos de políticos, o que os ligaria, no
seu comportamento profissional, antes de tudo, ao atendimento,
junto à administração pública, das demandas privadas de seus
padrinhos. O segundo pressuposto deslocaria o núcleo da predação
patrimonialista para aquela fração menor da “alta burocracia”
portadora de posições de poder decisório que, na hipótese em foco,
teria seu comportamento escuso derivado do fato de ocuparem
cargos na função de delegados dos políticos que os colocaram
ali com o objetivo de, mais à frente, direcionar facilidades ou
benefícios para estes últimos e, também para si próprios.

(...) o clientelismo e o fisiologismo têm falado mais alto no Brasil.


Mesmo nos órgãos nos quais passou a funcionar o mérito na escolha
dos quadros técnicos, o critério político costuma prevalecer na
indicação de dirigentes.16 (grifos nossos)

O cenário que a hipótese patrimonialista insinua, ao


generalizar alguns casos, indicaria, então, uma constante troca
e renovação de servidores conforme a ascensão e queda dos
grupos políticos no comando do Estado. Do ponto de vista do
comportamento político, o problema aqui seria a sujeição da
burocracia a estritos interesses de certos políticos, de pequenos
grupos privados ou do próprio servidor, em detrimento do
16
NOBREGA, Mailson da. O atraso persiste. Veja, n. 2213, 20 abr. 2011, p. 26.

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interesse público. Isto é, a burocracia do Estado deixaria de mediar
as variadas demandas frente ao aparelho estatal com base em meios
isonômicos e legítimos.

Estabilidade da burocracia

Dados à disposição apontam para a necessidade de se


relativizar os pressupostos colocados anteriormente, ao menos
quanto ao setor federal. A análise da comparação da variação
entre a ocupação de cargos daquelas posições de atividade-meio
da burocracia (aquelas ligadas especificamente à administração
pública e compostas pela média e pequena burocracia) e a variação
na renovação dos grupos parlamentares ou das presidências
da República, revela que não há correspondência evidente que
indique que tal fração dos servidores esteja exposta ao controle
clientelista (à nomeação por indicação de políticos ou de grupos
de interesse).
Quer dizer, não há dados que confirmem um suposto
controle, imediato e direto, dos políticos ou de grupos de interesse
privados sobre o ingresso no emprego público do grosso da
burocracia. Noutros termos, a taxa de renovação geral dos quadros
burocráticos se mantém num patamar regular e estável quando
comparada às mudanças presidenciais e no parlamento. Não
haveria “explosões” de contratações nem qualquer outra variação
numérica significativa nos períodos eleitorais, por exemplo
(SANTOS, 2006, cap. V). Provavelmente por razões que passam
pela consolidação da entrada no serviço público por exames, testes
e concursos (recrutamento tecnocrático e não clientelístico), da
adoção do critério de ascensão profissional interna por mérito
e, ainda, por causa da relativa autonomia detida por aquelas

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ocupações burocráticas que são exigentes de especialização técnica
e de know-How.
A hipótese de uma burocracia funcionando como
estamento poderia supor também que ela se comportaria de
tal modo que poderia vir a desejar e seria capaz de fazer-se
crescer numericamente, isto é, ter o controle sobre o próprio
crescimento. É razoável supor que, para os parâmetros do Estado
brasileiro atual, tal capacidade não existe. De fato, seu tamanho
apresenta sim variações no tempo, mas tanto para baixo quanto
para cima, respondendo, antes de tudo, ao perfil ideológico
das gestões presidenciais em vigência. Por exemplo, sob uma
gestão federal tipicamente neoliberal nos anos 1990, houve uma
considerável redução do número de servidores do Executivo da
União. Passaram de 705.548, em 1988, para 532.000 em 1997.
Já em 2010, com outro governo à frente do Executivo Federal,
mais pró-desenvolvimentista, o número havia subido para 601
mil (MORAES; SILVA; COSTA, 2010, p.5). Além do quê,
esses números precisam ser colocados ao lado do aumento da
população geral atendida pelo Estado no mesmo período. Ou seja,
a variação no número de servidores está relacionada à concepção
que a coalizão no poder tem quanto ao papel do Estado e suas
obrigações e não a interesses clientelistas imediatos ou particulares.
Por razões óbvias, o mesmo não se aplica àqueles chamados
“cargos de confiança”, que compõe uma reserva de controle
do Executivo, indispensável à montagem de equipes de gestão
ajustadas aos seus programas de governo, da qual participam as
bases aliadas com suas indicações de ocupantes. Neste caso, é
grande a variação nos seus ocupantes ocasionais. Porém, mesmo
nesse caso, pode-se notar que os quase 22.000 cargos de confiança
dos quais dispunha, em 2010, o poder Executivo Federal, 70%

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 81-108 – jan./jun. 2017 91
eram ocupados por servidores efetivos da administração direta
ou requisitados junto a autarquias, fundações ou outros órgãos
do aparelho estatal.17 Quer dizer, embora os cargos de confiança
sejam de livre provimento, observa-se que a grande maioria é
ocupada por funcionários concursados pertencentes ao quadro
funcional do Estado brasileiro, mesmo nos mais altos escalões.
Outra proporção reveladora da estabilidade do quadro de
servidores é a demonstrada pela consideração de que, por exemplo,
em 2006, em razão da limitação imposta por um decreto assinado
em 2005 pelo governo Lula, dos 520 mil servidores públicos civis
na ativa do Poder Executivo, pouco mais de 6.400, ou 1,2%, podiam
ser livremente indicados para servir ao governo por determinado
período sem necessidade de ter passado por concurso público
(KERCHE, 2006). Mesmo sendo mais suscetível ao controle
clientelístico, o caso daquelas posições do topo da administração
pública que se referem aos cargos de direção técnica e gerenciais,18
quando submetidas ao mesmo tipo de comparação com a variação
das mudanças no parlamento e nas presidências do Executivo,
parecem indicar que sua instabilidade, embora nada desprezível,
é menor também do que supõe a hipótese patrimonialista. Esses
cargos de confiança ou à disposição do Executivo, por sua vez,
apresentam de fato maior variação nos seus ocupantes ocasionais, o
que poderia sugerir, uma aproximação com algumas das indicações
da hipótese patrimonialista, ainda que de modo relativo e com
ressalvas. No entanto, o quadro exposto anteriormente, parece
apontar, também neste caso (cargos de confiança), para a tendência
de profissionalização do serviço público no Brasil. Seria possível
afirmar, então, que a ocupação da maior parte daqueles postos
17
Serviço público se profissionaliza, afirma governo. O Estado de S. Paulo, 28 nov. 2010, p. A4.
18
Trata-se daquelas posições verdadeiramente estratégicas e ocupadas por funcionários
concursados, dotados de alta qualificação técnica e de alto conhecimento da máquina pública.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 81-108 – jan./jun. 2017 92
de importância estratégica dos aparelhos de Estado estaria,
atualmente, afetada também por padrões de mérito e competência.
Por certo que a referida profissionalização não é garantia
do expurgo das práticas patrimonialistas no aparelho estatal.
Tanto que são inúmeros os casos de envolvimento de servidores
concursados em práticas de corrupção. No entanto, é sabido,
também, que a estabilidade no emprego e a qualificação crescente
do funcionalismo público são pré-condições para as tentativas de
diminuição da presença de tais práticas.

O “gigantismo” do Estado Brasileiro (O Estado “inchado”)

‘Funcionalismo inchado e caro’. Uma das características da


administração federal nos últimos anos é o inchaço da máquina
estatal, com o aumento do quadro do funcionalismo e o
consequente aumento dos gastos com pessoal. (...) O resultado, em
lugar de um Estado mais eficiente, é uma máquina mais inchada e
cara (...).19 (grifos nossos)

Faz parte também da caracterização do Estado brasileiro


como patrimonialista a acusação de seu “gigantismo” que
se manifestaria, por exemplo, no enorme contingente de
empregados públicos de toda ordem: estatutários, celetistas, da
administração direta e indireta. Os números, porém, revelam
que, comparativamente, o qualificativo dado acima talvez não
caiba ao Estado brasileiro atual. Informações de 2008 davam
conta de que o emprego público no Brasil representava cerca de
12% do total das pessoas ocupadas no mercado de trabalho. Por
comparação, na França era perto de 28%, nos Estados Unidos de
15%, na Alemanha 14,7%, no Uruguai de 15% e no México, 14%
(MORAES; SILVA; COSTA, 2010, p.4).
19
Editorial. O Estado de S. Paulo. 06 jan. 2013, p. A3.

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Dados divulgados, em 2010, pela Organização para
a Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE),
indicavam que, comparada com os 31 países mais desenvolvidos do
mundo, a proporção de servidores públicos brasileiros em relação
à população total de trabalhadores não era elevada. Enquanto
naquele grupo de 31 países (OCDE) a força de trabalho pública
representava perto de 22% do total de empregos, no Brasil, esse
número era a metade, entre 10 e 11%, segundo a OCDE.20
De qualquer modo, tais comparações para serem
razoáveis deveriam levar em conta a consideração a respeito das
obrigações estatais para com a sociedade de cada país analisado,
especialmente nas questões sociais (saúde, educação, previdência,
assistência social, habitação, transporte, cultura e segurança), e nas
responsabilidades ligadas à promoção do desenvolvimento das
cidades e da infraestrutura do país em foco. Alguns países, por
exemplo, não garantem assistência universal à saúde e à escola,
onde a população paga ao setor privado para obter vários serviços.
Outros, por seu lado, o fazem, necessitando, é obvio, de uma carga
tributária mais elevada e de um número maior de servidores
públicos para responder a esses compromissos.

O funcionalismo como a “torradeira” do fundo público

(Manchete do jornal O Globo): “Em 88% dos empregos,


setor público paga mais”21
20
Disponível em: http://www.secom.gov.br/sobre-a-secom/nucleo-de-comunicacao-publica/
copy-of-em. Acesso em: 24/03/2011. Ver também: MATTOS, Fernando A. Mansor de.
Emprego público nos países desenvolvidos: evolução histórica e diferenças nos perfis. IPEA-Texto
para discussão, nº 1578, fev. 2011; IPEA-Comunicados do IPEA nº 110. Ocupação no
setor público brasileiro: tendências recentes e questões em aberto. 08 set. 2011.
21
BENEVIDES, Carolina e GOIS, Antônio. Em 88% dos empregos, setor público paga
mais. Disponível em: oglobo.globo.com/pais/em-88-dos-empregos-setor-publico-paga-mais.
Acesso em 20 mai. 2013.

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A redemocratização (1985) (...) viu confirmarem-se como nunca
as variadas categorias de servidores públicos em corporações
organizadas e reivindicadoras de privilégios. A arrecadação
nacional acabou destinada em grande parte a cobrir nada mais do
que obrigações decorrentes desta situação: um Estado privatizado
por dentro (interesses da burocracia) e por fora (beneficiários e
parasitários do tesouro).22

Também acompanha a hipótese patrimonialista a ideia de


que o funcionalismo público seria a “torradeira” dos recursos do
Estado por causa dos altos salários que receberia. Há, de fato, entre
os servidores públicos salários altíssimos, mesmo para padrões
internacionais, porém, a grande maioria dos funcionários tem
remuneração dentro de padrões razoáveis, embora não pareça,
dada a mesquinhez do valor médio dos salários do setor privado
brasileiro. Por exemplo, pode-se afirmar com tranquilidade que
o salário distribuído entre a grande maioria dos servidores do
poder Executivo Federal (que inclui, por exemplo, funcionários
e professores das universidades e escolas federais, pesquisadores,
auditores, policiais federais, analistas, advogados e diplomatas)
não é “patológico” ou fora dos padrões do setor privado, quando
considerados, para comparação com o setor privado, indicadores
como escolarização e qualificação técnica.
Para dados de 2005, época em que o funcionalismo não
havia se recuperado ainda do arrocho salarial imposto pelos
governos de acentuada perspectiva neoliberal dos anos 1990,
notava-se que mais de 40% dos funcionários públicos federais
recebiam até 3 salários mínimos e 80% até 7 salários mínimos.
Considerando-se o valor depreciado do salário mínimo no

22
ANDRADE, Leo Rosa de. Patrimonialismo e empreguismo. Disponível em: http://
institutoavantebrasil.com.br/patrimonialismo-e-aparelhamento-do-poder-publico-mais-
de-600-mil-cargos-comissionados/. Acesso em: 12/03/2015.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 81-108 – jan./jun. 2017 95
Brasil à época, destacava-se, até, a modéstia da grade salarial
dos servidores públicos (SANTOS, 2006, p. 96; BENDER e
FERNANDES, 2009). Da metade da primeira década dos anos
2000 até hoje, houve significativa melhora na remuneração dos
servidores federais, alterando um pouco a distribuição salarial. Em
2015, por exemplo, 50% dos servidores do Executivo recebiam
até 7 salários mínimos e 60% até 8 salários mínimos, conforme
tabela que segue.23

a) De R$ 1.140 a R$ 3.500 = 22% (1,5 a 4,5 salários


mínimos/sm)24
b) De R$ 3.501 a R$ 4.500 = 14% (4,5 a 5,5 sm)
c) De R$ 4.501 a R$ 5.500 = 14,2% (5,5 a 7 sm)
d) De R$ 5.501 a R$ 6.500 = 10% (7 a 8 sm)
e) De R$ 6.501 a R$ 8.500 = 11,5% (8 a 10,5 sm)
f ) De R$ 8.501 a R$ 10.500 = 9,5 %
g) Acima de R$ 13.000 = 12%

Levantamento do Jornal O Globo, com dados do Censo de


2010, mostrava que os trabalhadores do setor público ganhavam
mais do que os do setor privado na grande maioria das 338
ocupações comparadas. Porém, a análise sugeria inúmeras ressalvas
a essa consideração. Por exemplo, a de que parte da diferença
entre as remunerações se devia à escolaridade mais elevada dos
funcionários públicos (que responderia por 70% da diferença de
salários) e aos processos exigentes de seleção para a entrada na
carreira.
23
Dados aproximados conforme informações do Boletim Estatístico de Pessoal e Informações
Organizacionais/Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria de Gestão
Pública. Brasília: MP. vol. 20. n. 226, fev. 2015. Ver também, IPEA (2009).
24
Para facilitar a visualização, o valor do salário mínimo, à época, (R$ 788,00) foi arredondado
para R$ 800,00.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 81-108 – jan./jun. 2017 96
Esse levantamento revelava também que, conforme subia
a escolaridade no setor privado diminuía a diferença salarial
entre os setores. Mesmo assim, de fato, quando eram levadas
em conta escolaridade e gênero, no geral o trabalhador do setor
público recebia, em média, 20% a mais do que quem estava na
iniciativa privada. No entanto, a verificação dos salários reais
pagos nos dois setores relativizava bastante a ideia de vantagem
do setor público. Por exemplo: entre os professores do ensino
fundamental, a diferença era de 11% a favor do setor público. Já
entre ocupações administrativas, por exemplo a de escriturários,
a diferença chegava a 74%. Mas, neste caso, embora a média
salarial no setor público fosse maior, ela não era em termos
monetários efetivamente alta, correspondendo, em valores de
2010, a algo próximo de 3 salários mínimos e meio do período.
No setor privado, nesta ocupação (escriturário), a remuneração
era de R$ 1.166,00 e entre o funcionalismo, o valor inicial era de
R$ 2.025,00. Atente-se para o fato de que essa última ocupação
representava perto de 40% do total de ocupações no setor público,
à época. 25

A alta escolaridade a favor da burocracia

Convém ressaltar um importante item de profissionalização


e qualificação da força de trabalho pública, o de sua escolaridade.
A favor da burocracia brasileira, ao menos a do nível federal
(servidores públicos do Executivo), poderia ser anotado o
elevado grau de instrução formal de seus servidores. Neste item
os servidores se encontram em posição bem mais favorável que
a população geral do país e os trabalhadores do setor privado.
25
BENEVIDES, Carolina e GOIS, Antônio. Em 88% dos empregos, setor público paga mais.
Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/em-88-dos-empregos-setor-publico-paga-
mais-5361837. Acesso em: 30/06/2012

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Em 2012, os indicadores mostravam que 14% dos
trabalhadores do setor privado possuíam diploma de nível superior
contra 45% entre os funcionários públicos do Executivo federal.26
Já entre a população geral, apenas 6,8% haviam concluído o ensino
universitário.27 Informações para o ano de 2012 mostravam que
seria favorável, também, a situação desses servidores públicos
quanto à distribuição etária, onde expressiva maioria, perto de
70%, situava-se entre aqueles de 36 a 55 anos e próximo de 15%
ficava abaixo do piso de 36 anos. Quer dizer, parte importante do
funcionalismo encontrava-se no melhor período de produtividade
e capacidade (ENAP/Estudos, 2015). Números como os acima
citados parecem indicar que o tamanho da burocracia brasileira e
os gastos com ela não poderiam ser considerados como “fora do
comum”, como sugere a hipótese patrimonialista.

O Estado brasileiro como “Estado gastador”

Faz parte, ainda, da ideia de gigantismo da máquina estatal


o argumento de que o Estado brasileiro gastaria demais com
funcionalismo e despesas correntes. É controversa essa sugestão
em razão dos termos de comparação, sendo sempre cercada de
muita cautela (MENDES, 2015; IPEA, 2015). O total de gastos
do setor público brasileiro (com funcionalismo e custeio, excluídos
investimentos), para 2010, girava em torno de 19% do Produto
Interno Bruto (PIB). Este índice era próximo da média dos gastos
dos países da Zona do euro, que estava perto de 20% (SANTANA,

26
Boletim Estatístico de Pessoal e Informações Organizacionais/Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão. Secretaria de Gestão Pública. Brasília: MP. vol. 20. n. 226, fev. 2015.
27
Estudo revela perfil dos servidores públicos federais do Executivo. Disponível em: www.
brasil.gov.br/governo/2013/09/estudo-revela-perfil-dos-servidores-publicos-federais-
do-executivo. Acesso em: 31/07/2015.

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2012, et al, p.253). Passados alguns anos, em 2013, no Brasil, os
gastos teriam sido da ordem de 21% do PIB, ou seja, continuavam
num nível dentro da média internacional (SCHNEIDER, 2013).
Outra forma de abordar o argumento de que o Estado
brasileiro seria “gastador” é tomar em conta o balanço primário,
calculado como a diferença entre as receitas totais e as despesas
não financeiras, isto é, excluindo-se o pagamento de juros sobre
a dívida pública das despesas gerais do governo. Neste quesito, o
Brasil é um dos poucos países que vêm há muito tempo produzindo
superávit primário. Isto é, gasta menos do que arrecada. Na maior
parte dos países, os gastos primários são maiores do que as receitas
do setor público, gerando o que se denomina déficit primário.
Não seria este o caso do governo brasileiro nos últimos
anos. Por exemplo, 2014 teria sido, em 18 anos, a primeira vez
que as contas do governo teriam apresentado déficit primário.28
Conforme dados do FMI para 2013, entre uma série volumosa de
países, o Brasil apresentava o terceiro maior superávit primário em
relação ao PIB. O Brasil só passaria à situação de déficit quando é
incluído o pagamento de juros, até porque o país pagava em torno
de 5% do PIB de juros sobre a dívida pública – principalmente
em razão das elevadas taxas de juros que pesam sobre sua dívida
– percentual muito maior do que a média internacional. Mesmo
incluindo esta rubrica (juros), o déficit nominal do governo
brasileiro estaria bem próximo da média internacional.29 Com base
nessa perspectiva, não seria acertado acusar o governo brasileiro
de gastador.

28
Disponível em: http://g1.globo.com/economia/noticia/2015/01/em-ano-eleitoral-
governo-tem-deficit-fiscal-inedito.html. Acesso em: 20/03/2015.
29
Ve r d a d o s e m h t t p : / / b r a s i l d e b a t e . c o m . b r / o - g o v e r n o - b r a s i l e i r o - e -
gastador/#sthash.8Iwam8VO.dpuf

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 81-108 – jan./jun. 2017 99
Alguns limites da crítica de tipo liberal ao suposto Estado
patrimonialista brasileiro

A observação dos números e do perfil do Estado e da


burocracia no Brasil ajuda a rever alguns mitos, permitindo que
se mantenha a impressão exposta por Santos (2006, p. 96-97) de
que, ao menos,

(...) a burocracia federal brasileira, como afluente do poder


executivo, é comparativamente reduzida, corresponde a reduzida
porcentagem da força de trabalho nacional, se aparenta a uma ilha
cada vez proporcionalmente menor, face à totalidade do emprego
privado, é madura, sem graves desvios etários em qualquer direção,
educacionalmente bem qualificada, tendo em sua vastíssima
maioria, ingressado no serviço público através de exame, ou seja,
por mérito, e se apropria de discreta parcela da renda nacional,
sob a forma de salários modestos, por comparações internacionais.

Ou seja, o Estado brasileiro e sua burocracia estariam


bem longe da ideia de “Estado estamental” sugerida pelas várias
imagens e análises propostas pela imprensa.
As imagens e as análises que se apresentam na
imprensa brasileira e no meio acadêmico enfatizando o caráter
patrimonialista do Estado brasileiro aparecem, invariavelmente,
na forma da crítica liberal a esse traço. Isso significa a presença
entre seus argumentos de algumas premissas básicas como,
por exemplo: a) a expectativa de que o Estado possa vir a ser
um aparelho institucional que funcione como “árbitro neutro”
frente aos diversos interesses de grupos, de frações ou de classes
que emergem da sociedade de classes, situando-se acima desses
interesses. Ou, ainda, a expectativa de que o Estado possa vir a
se comportar como independente frente aos fatores de poder –

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como o poder econômico, por exemplo –, presentes na sociedade
de classes; b) a consideração de que na análise da relação do
Estado com a sociedade deve-se priorizar o comportamento dos
indivíduos e seus interesses privados ou dos grupos de indivíduos
e seus interesses particulares de grupo (vistos como camadas ou
estamentos). Dentro dessa perspectiva liberal, seriam esses os
interesses mais importantes a afetar a estrutura e o funcionamento
do Estado, conforme ilustram as citações que seguem.

Qual o mecanismo que produziu e garantiu as condições de


reprodução desta situação de privatização (patrimonialista) do
Estado? Mais do que a privatização do Estado, foi o enfraquecimento
das instituições públicas e o fortalecimento de indivíduos (ou grupo
de indivíduos). Isso insulta o próprio conceito de república. (...)
As crises [político-econômicas] resultam de desacertos entre os
indivíduos privados controladores das instituições. [Resultam] dos
interesses particulares alojados nas entranhas do Estado.30

A permanência no poder a qualquer custo aprofunda a cultura


do patrimonialismo, que retalha o Estado, suas instituições e
orçamentos em feudos partidários, grupais ou até mesmo pessoais.31

O novo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, prometeu ‘arrancar os


traços do patrimonialismo’ da gestão econômica. Ao tomar posse,
ele criticou o uso do poder público para favorecer interesses privados
e defendeu o respeito ao princípio da impessoalidade.32

Nesse caso, interesses das classes sociais ou de suas frações,


são secundarizados frente àqueles interesses individuais ou grupais.
30
Disponível em: http://institutoavantebrasil.com.br/patrimonialismo-e-aparelhamento-
do-poder-publico-mais-de-600-mil-cargos-comissionados/. Acesso em: 12/08/2015.
31
Entrevista com Marina Silva. O fim da política como projeto para o país. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/212874-o-fim-da-politica-como-projeto-para-
o-pais.shtml. Acesso em: 31/07/2015.
32
FRANCO, Bernardo Mello. Os amigos do rei. Disponível em: http://www1.folha.uol.
com.br/fsp/opiniao/203001-os-amigos-do-rei.shtml. Acessado em 31/07/2015.

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E, ainda, estes interesses de grupos são tomados como interesses
privados e egoístas dos indivíduos que pertencem ao grupo, frente
a um suposto interesse geral (público) do conjunto da população
tomada como homogênea. Isto é, aqueles interesses de grupo
nunca são tomados como interesses de fração de classe ou de
classe, ou considerados à luz de uma sociedade que é dividida em
classes sociais conflituosas ou antagônicas. Na lógica da hipótese
patrimonialista, o Estado brasileiro é patrimonialista porque se
permite ser aparelhado por certos empresários individuais ou por
grupos muito específicos do empresariado – como ilustrariam,
por exemplo, o caso dos apoios estatais recebidos, na montagem
de seus negócios, pelo empresário Eike Batista, pelo frigorífico
JBS33 –, deixando de agir de maneira isonômica em relação aos
demais setores empresariais.
Curiosamente, aqueles que mobilizam a hipótese
patrimonialista não incluem como patrimonialistas as práticas
empresariais de sonegação de tributos, de lavagem de dinheiro e
nem todas aquelas iniciativas de política econômica voltadas ao
favorecimento de certas frações da burguesia como, por exemplo, a
política de juros altos (favorável ao setor financeiro da burguesia),34
as várias medidas de ajuda ao setor industrial, como as políticas
de empréstimos subsidiados do BNDES (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social)35 e dos Bancos Regionais

33
MING, Celso. Raízes do patrimonialismo 2. Disponível em: http://economia.estadao.
com.br/blogs/celso-ming/2015/01/24/raizes-do-patrimonialismo-2/. Acesso em:
24/01/2015.
34 FATORELLI, Maria Lucia. Banqueiros capturaram o Estado brasileiro. Disponível em:
www.viomundo.com.br/denuncias/maria-lucia-fatorelli.html. Acesso em: 16/05/2016.
35
Por exemplo, de 2008 a 2014, o BNDES teve uma atuação contundente na estratégia do
governo Lula de enfrentamento da crise financeira internacional de 2008, repassando aos
empresários empréstimos baratos da ordem de mais de 100 bilhões de reais por ano. Ver:
FERNANDES, Adriana e GRANER, Fabio. BNDES atua como orçamento paralelo. O
Estado de S. Paulo, Caderno Economia, 11 jul. 2010, p. B5.

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de Desenvolvimento, as políticas de subsídio à grande agricultura e
ao agronegócio, as reiteradas medidas de renúncia fiscal favoráveis
à parcelas numerosas de empresários36 etc. Nesses casos, nas
análises da crítica liberal ao patrimonialismo brasileiro, o viés
privatista do Estado não é posto em discussão, não é encaixado
na matriz patrimonialista.
Por que será que tal interpretação faz esse recorte? Uma
inferência possível poderia sugerir que isso ocorre porque mesmo
a crítica de viés liberal à ação privatista do Estado é cautelosa
quanto à certa forma de ação com exagerado viés classista por
parte do Estado. Esses limites estariam colocados, por exemplo, em
situações nas quais as disputas “normais” entre as frações burguesas
pelo fundo público ficam comprometidas pela voracidade de
setores individuais ou muito restritos dessas frações. Talvez,
do ponto de vista da crítica liberal ao suposto patrimonialismo
brasileiro, o limite ideal do aparelhamento do Estado por parte da
burguesia, em conjunturas onde vigora certo Estado democrático
de direito, deva girar, predominantemente, em torno das disputas
entre as frações de classe e não entre indivíduos ou setores muito
restritos dessas frações.
Daí que atender prioritariamente à fração bancária
financeira do capital ou à fração industrial e comercial, como no
caso da ação do BNDES, viria a ser uma situação conjuntural
de disputa intra-classe aceitável e até prevista como resultado
possível no jogo de interesses privados em torno do Estado. Já
aquelas iniciativas de privilegiamento muito específicas não seriam
toleráveis. Provavelmente, até, porque estas escancaram o caráter
de classe do Estado, o que deve sempre ser evitado.
36
SOUZA. Leonardo e BÔAS, Bruno Villas. Dilma deu R$ 458 bilhões em desonerações.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/09/1678317-dilma-deu-r-
458-bilhoes-em-desoneracoes.shtml. Acesso em: 30/03/2017.

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Portanto, quanto ao argumento, recorrente em algumas
interpretações da hipótese patrimonialista, que enfatiza a
presença de atores/setores restritos da economia privada com
um tratamento privilegiado junto ao Estado, seria possível opor
uma outra interpretação, que não seja de viés patrimonialista. Por
exemplo, sugerir que tais mecanismos ou procedimentos de relação
entre o público e o privado não são estranhos ao próprio modelo de
Estado liberal moderno que sucedeu, em alguns casos, a formas
patrimonialistas anteriores. Tais mecanismos ou procedimentos
poderiam ser lidos à luz do rol de estratégias dos grandes grupos
econômicos ou das frações de classe da burguesia para disputar
o poder político estatal e, por consequência, o fundo público, ou
seja, práticas de tipo liberal e não patrimonialistas.

Conclusão

Nesse sentido, parte relevante daquelas práticas denominadas


por muitos como patrimonialistas seriam, de fato, procedimentos
próprios dos Estados sob o regime de classes no capitalismo.
Esses Estados tanto seriam “privatizados” (apropriados) no
geral pelas classes dominantes, quando se prestam à reprodução
estrutural do modo de produção e da formação social, quanto
seriam “privatizados” de modo imediato por setores, grupos e
frações das classes dominantes, conforme denunciam a presença
de grande empresários e banqueiros nas listas de financiadores
das campanhas dos partidos.
Daí ser “normal” a sujeição do fundo público e de inciativas
da máquina estatal às disputas entre as frações de classe e entre
grandes grupos empresariais. Isso ocorre por parte do Estado,
por exemplo, na forma de concessões de crédito, renúncias fiscais,

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 81-108 – jan./jun. 2017 104
inúmeras formas de subsídios, cessão de infraestrutura para a
montagem de parques industriais, iniciativas de representação
diplomática de caráter comercial, etc. Da parte dos setores
privados, também não são estranhas ao Estado de tipo liberal,
práticas como a de sonegação de impostos, evasão de divisas,
lavagem de recursos não declarados ao fisco etc.
Colocar dessa forma o problema, sugere questionar uma
premissa básica da “hipótese patrimonialista” que é a de que seria
possível o Estado, sob o regime de classes sociais, funcionar como
Estado universal, acima dos interesses de classe. Por exemplo, em
2015, o então Ministro da Fazenda do Brasil, em seu discurso de
posse, anotou que investiria contra o patrimonialismo brasileiro
definido pela presença de políticas de Estado que favorecem
interesses privados. Sugeriu na ocasião, que “[a] antítese do
sistema patrimonialista [em vigência no país] é a impessoalidade
nos negócios do Estado”.37
Talvez esteja presente aqui uma espécie de “ilusão” a respeito
da possibilidade de desaparecimento dos interesses privados da
vida pública.38 Ilusão porque o domínio dos interesses privados
no Estado sob sociedades de classes seria algo inerente a esse
Estado, como denuncia, por exemplo, o caso norte-americano, no
qual se destaca a força decisiva de lobbies poderosos que atuam
sobre o Estado.39 E, verdade seja dita, uma “ilusão” bem útil ao
mascaramento do mais profundo caráter do Estado brasileiro que
é o seu caráter classista.

37
Disponível em: http://www.1.folha.uol.com.br/mercado/2015/01/1570968-levy-indica-
que-impostos-devem-subir.shtml
38
Ver Bobbio (1986). O autor discute o entrecruzamento dos interesses públicos e privados
como problema não resolvido na democracia liberal.
39
Ver GILENS, Martin e PAGE, Benjamin I. (2014).

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 81-108 – jan./jun. 2017 105
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Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 81-108 – jan./jun. 2017 108
REFERENCIAÇÃO E ARGUMENTATIVIDADE:
ALIADOS DA PRODUÇÃO TEXTUAL

Eva Cristina Francisco1

RESUMO: Produzir um texto significa muito mais que emitir sons ou escrever palavras,
frases, parágrafos. O texto como um produto final fez parte de um processo de construção
que contou com os mais variados tipos de conhecimentos referentes à língua. Nesse
sentido, o presente trabalho objetiva apresentar alguns elementos responsáveis por um
gênero bem construído. Para tanto, utilizamos estudos feitos pela Linguística Textual
no que diz respeito à referenciação dentro de um texto, bem como a importância da
argumentatividade para o processo. O estudo tem como base uma pesquisa bibliográfica,
além de análises de textos autênticos publicados.

ABSTRACT: Producing a text is much more than making sounds or writing words,
phrases, paragraphs. The text as a final product has taken part of a construction process
which relied on the most varied kinds of knowledge referring to the language. Thus,
this paper aims presenting some elements responsible for a well constructed genre. For it,
studies by the Textual Linguistics were made to show the referral element. In addition
the argumentation importance is presented. The research has its base in a bibliographic
study, besides analysis of published authentic texts.

Introdução

A produção de textos compõe uma das áreas do ensino


da Língua Portuguesa e muito se discute em relação a novos
modelos a serem adotados ao se produzir um gênero e do próprio
comportamento dos escritores durante esse processo. Bons
escritores pensam sobre o que vão escrever, traduzem em palavras
e, sobretudo, voltam sobre o já produzido julgando sua adequação,
ou seja, desenvolvem um complexo processo de transformação de
seus conhecimentos em um texto. Considerando o texto como
objeto de estudo da Linguística Textual e os elementos que o

1
Docente no Instituto Federal de São Paulo – Campus Avaré

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 109-130 – jan./jun. 2017 109
compõem, vale discutir sobre alguns deles, bem como os efeitos que
contribuem para a construção de sentido e a coesão. Desta forma,
o presente trabalho justifica-se devido à importância da elaboração
bem feita de um texto, abordando, mais especificamente, o texto
produzido no contexto da aprendizagem escolar.
O principal objetivo deste estudo é apresentar algumas
contribuições da Linguística Textual no ensino, considerando a
produção de sentido do texto, bem como os fatores da textualidade
por meio de elementos linguísticos. Para tanto, serão abordadas
considerações essenciais sobre tal ciência, sua trajetória e a
apresentação de elementos responsáveis pela construção textual,
tais como: referenciação e argumentação.
A pesquisa embasou-se na análise textual, por meio de
leituras referentes à produção do texto, bem como obras que
abordam a Linguística Textual. O levantamento bibliográfico
possibilitou maior conhecimento e análise das contribuições
culturais, ou científicas, existentes a respeito do assunto abordado,
conduzindo a discussão do tema e definindo novas contribuições
a serem propostas.

A trajetória da Linguística textual

Ocupando o papel de uma das ramificações dos Estudos


da Linguagem, a Linguística Textual foi desenvolvida na Europa
a partir da década de 1960. Nas últimas décadas vem adquirindo
grande impulso em novas pesquisas. Como o próprio nome sugere,
a disciplina tem, como objeto de estudo, a natureza do texto e os
fatores que envolvem sua produção e interlocução. Assim, toma
como unidade base de investigação o texto propriamente dito e
não a palavra ou a frase, conforme era na prática tradicional.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 109-130 – jan./jun. 2017 110
Consoante Fávero e Koch (2002), a origem do termo
Linguística Textual pode ser encontrada em Coseriu (1955),
apesar de seu significado atualmente atribuído tenha sido
dado pela primeira vez por Weinrich (1966, 1967). A partir da
década de 1960, surge uma vasta bibliografia sobre o assunto,
dentro do qual os trabalhos se desenvolveram, sobretudo, em
equipes, concentradas em núcleos importantes como os de
Westfalia, Colônia, Hamburgo, entre outros. Devido a vários
conceitos de texto dentro da Linguística Textual, também houve,
consequentemente, uma grande variação das denominações
dadas à disciplina pelos autores. Além da análise transfrástica
e a gramática do texto, temos ainda, como definição, os termos:
Textologia (Harweg), Teoria de Texto (Schimidt), Translinguística
(Barthes), Hipersintaxe (Palek), entre outras.
Conte (1977) apresenta uma divisão da passagem da
teoria da frase à de texto em três momentos, deixando claro
que não se trata de uma divisão em sentido cronológico e sim
tipológica; cada momento é constituído de um tipo diferente
de desenvolvimento teórico. O primeiro momento é definido
como análise transfrástica, isto é, a que constitui a análise das
regularidades que ultrapassam os limites do enunciado; o segundo
momento se refere à construção das gramáticas textuais e o terceiro
momento diz respeito à construção das teorias de texto.
Na análise transfrástica a pesquisa encontra-se limitada a
enunciados ou sequências desses, que partem em direção ao texto,
tendo como objetivo estudar as relações que podem estabelecer os
vários enunciados que fazem parte de uma sequência significativa.
No primeiro plano, entre essas relações, estão as referenciais, mais
especificamente a correferência (processos catafóricos e anafóricos,
que dizem respeito às referenciações endofóricas encontradas no
interior do texto e contribuem para a coerência e coesão dele),

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 109-130 – jan./jun. 2017 111
podendo ser identificadas como fatores principais de coesão,
relacionada à conectividade do texto.Quando considerado como
unidade linguística superior, o texto, segundo Koch & Elias (2006,
p. 60), era conceituado como:

[...] uma sequência ou combinação de frases, cuja unidade e


coerência seriam obtidas por meio da reiteração dos mesmos
referentes ou do uso de elementos de relação entre seus vários
segmentos e o contexto era visto apenas como o entorno verbal,
ou seja, o co-texto.

No que diz resptio ao segundo momento da trajetória da


Linguística textual, ele tem início a partir da década de 1980.
É, nesse intervalo de tempo, definido como momento da virada
pragmática, no qual o texto deixa de ser visto como um produto
acabado, uma sequência de enunciados. A fim de traduzir
sistematicamente a evolução do conceito de texto, Koch (2003)
apresenta uma reflexão das várias concepções que fundamentaram
os estudos em Linguística Textual:

a) Texto como frase complexa ou signo lingüístico mais alto


na hierarquia do sistema lingüístico (concepção de base
gramatical); b) Texto como signo complexo (concepção de base
semiótica); c) Texto como expansão tematicamente centrada de
macroestruturas (concepção de base semântica); d) Texto como
ato de fala complexo (concepção de base pragmática); e) Texto
como discurso “congelado”, como produto acabado de uma ação
discursiva (concepção de base discursiva); f ) Texto como meio
específico de realização da comunicação verbal (concepção de base
comunicativa); g) Texto como processo que mobiliza operações e
processos cognitivos (concepção de base cognitivista); h) Texto
como lugar de interação entre atores sociais e de construção
interacional de sentidos (concepção sócio-cognitiva-interacional)
(KOCH, 2003, p. 03).

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Assim como os conceitos de texto, as concepções de contexto
variam de acordo com o tempo e com os diferentes pensamentos
dos autores, fica nítido que conceber uma definição única e precisa
é algo complexo, uma vez que o tema engloba fenômenos que
são definidos no uso. Para Goodwin & Duranti (apud Koch,
1997) são fenômenos que a análise do contexto deve recobrir: a)
Cenário; b) Entorno sociocultural; c) A própria linguagem como
contexto; d) Conhecimentos prévios; e) Contexto analisado como
modo de práxis interativamente constituído. De acordo com a
própria evolução das relações humanas, autores definem novas
orientações nos estudos do texto e do contexto. Houve mudanças
substanciais a partir da tomada de consciência de que todo fazer
(ação) é necessariamente acompanhado de processos de ordem
cognitiva, de que quem age precisa dispor de modelos mentais de
operações e tipos de operações. A concepção cognitivista apresenta
a cognição como um conjunto de várias formas de conhecimento,
sendo que não há possibilidades integrais de pensamentos ou
domínios cognitivos fora da linguagem.
Com base nesta concepção, amplia-se o conceito de
contexto. Antes visto apenas como cotexto, abrangendo em
seguida a situação comunicativa e, posteriormente, o entorno
sociocultural, ele passa a constituir a própria interação e seus
sujeitos. Há na relação entre texto e contexto uma determinação
recíproca, representando o contexto a formação discursiva de
uma determinada cultura. A noção de texto é processual, ou seja,
devem-se levar em consideração as intenções comunicativas
e sociais do falante, além de atribuir ao conceito de coerência
um princípio de interpretabilidade. O texto passa a ser um dos
elementos do ato comunicacional. A produção e a compreensão
de um texto derivam de uma competência específica de todos os
falantes: a competência textual.

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Qualquer falante de um idioma é capaz de distinguir um
texto coerente de uma quantidade incoerente de enunciados. Todo
falante tem a capacidade de parafrasear, resumir, perceber se um
texto está, ou não, completo ou incompleto, de criar um texto
a partir de um dado título. São essas habilidades do usuário da
língua que justificam a construção de uma gramática textual. O
sentido do texto, desse modo, é efetivado por meio da interpretação
pragmática (interação comunicativa), o que envolve princípios,
desejos e valores dos falantes. A coerência não é mais vista como
mera propriedade ou qualidade do texto, mas sim como um
fenômeno que se constrói em cada situação de uso, de interação
comunicativa.
Reiterando essa ideia, Charolles (1983 apud KOCH, 2004,
p. 20) expõe um novo conceito para a expressão “coerência textual”,
considerando-a agora um “princípio de interpretabilidade”. O
que, na visão de Koch (2004, p. 70), quer dizer que “não existem
sequências de enunciados incoerentes entre si, visto que, numa
interação, é sempre possível construir um contexto em que uma
sequência aparentemente incoerente passe a fazer sentido”.
Segundo Koch (2002, p. 71), a construção da coerência decorre
de uma multiplicidade de fatores das mais diversas ordens:
linguísticos, discursivos, cognitivos, culturais e interacionais.
Todos esses aspectos relacionam-se, direta ou indiretamente, com
o contexto de produção e veiculação das mensagens, local onde
o texto toma forma e significado. A coerência é estabelecida no
momento em que o receptor/leitor tem contato com o texto e
estabelece com ele relações de sentido.

O texto falado ou escrito, como enunciado de um todo significativo,


é a forma de expressão verbal mais comumente denominada
discurso e caracteriza-se por uma rede de conexões lingüísticas

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que o compõem, expressando um conteúdo. Texto não é apenas a
somatória de frases, mas uma construção que revela conexões entre
unidades lingüísticas e idéias, relações estas que fazem que ele seja
realmente um texto. (MARTINS, 1997, p. 35).

O autor também afirma que o processamento da


informação depende não só de características textuais, como
também de características dos usuários da língua, tais como
seus objetivos, convicções e conhecimento de mundo. Isto é, as
estratégias cognitivas são estratégias de uso do conhecimento. Em
cada situação o uso será adaptado aos objetivos do usuário, da
quantidade de conhecimento disponível a partir do texto e do
contexto, bem como de suas crenças, opiniões e atitudes. Sendo
assim, permite, no momento da compreensão, reconstruir, não
somente o sentido intencionado pelo produtor do texto, mas
também outros sentidos, não previstos ou mesmo não desejados
pelo produtor.
Desse modo, as atividades comunicativas, que se manifestam
por meio de textos, apresentam um contexto que permite perceber
quem são os envolvidos em tal produção e quais objetivos
sociocomunicativos esses envolvidos pretendem em determinada
situação.Os envolvidos no processo de comunicação já trazem
para a situação comunicativa determinadas expectativas e
ativam conhecimentos e experiências quando da motivação e
estabelecimento de metas, em todas as fases preparatórias da
construção textual. Logo, não interessa mais somente verificar
a relação de referenciação aos estudos do texto como lugar de
interação entre os sujeitos, mas sim descobrir os propósitos
comunicativos, os objetivos, a finalidade, o ‘para quê’ do texto.
Vilela e Koch (2001, p. 459) descrevem que para duas
ou mais pessoas poderem compreender-se mutuamente, é

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preciso que seus contextos cognitivos sejam, pelo menos,
semelhantes. Devem ser, em parte, compartilhados, sendo que
a cada momento da interação o contexto é alterado, obrigando
os parceiros a se adaptarem aos novos contextos que vão se
originando sucessivamente. Tais conceitos são fundamentais
para compreender como se dá o sentido e como as relações são
estabelecidas. O sentido de texto está justamente na inserção do
texto no contexto, e da atribuição de relevância contextual do que é
dito. Segundo Costa Val (1999, p. 04), o contexto sociocultural em
que se insere o discurso também constitui elemento condicionante
de seu sentido, na medida em que delimita os conhecimentos
partilhados pelos interlocutores. Toda manifestação de linguagem
ocorre no interior de uma determinada cultura, que valida usos e
costumes que devem ser praticados.
É desse modo que ganha destaque o contexto mediato –
que é o entorno sócio-histórico-cultural – e o contexto imediato
– que se trata dos participantes, local e tempo da interação verbal,
o objetivo da comunicação e seu meio de propagação.Quando se
tomou consciência, na década de 1980, de que todo fazer deve ser
necessariamente acompanhado de processos de ordem cognitiva,
os estudos se direcionaram ao processamento cognitivo do texto,
isto é, abordaram questões de compreensão e produção textual
ligadas à maneira como cada indivíduo irá representar e ativar
seus conhecimentos no momento do processamento, bem como
as estratégias sociocognitivas e interacionais envolvidas nesse
processo.
Todavia, é a partir da década seguinte que essa questão é
mais aprofundada: o início do terceiro momento da história da
Linguística Textual, o momento da virada cognitivista. O texto
passa a ser considerado o resultado do conhecimento cognitivo do

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falante, uma vez que traz consigo uma bagagem social, histórica
e cultural. Por isso, em uma situação de interação, o texto se
constrói por meio da ativação de conhecimentos e experiências
dos interlocutores. A coerência está na capacidade cognitiva de
cada indivíduo. Paulatinamente, assim, outro tipo de contexto
passou a ser relevante: o contexto sociocognitivo. Nas palavras
de Koch e Elias:

Para que duas ou mais pessoas possam compreender-se mutuamente,


é preciso que seus contextos sociocognitivos sejam, pelo menos,
parcialmente semelhantes. Em outras palavras, seus conhecimentos
(enciclopédico, sociointeracional, procedural, textual, etc) devem
ser, ao menos em parte, compartilhados, uma vez que é impossível
duas pessoas partilharem exatamente os mesmo conhecimentos.
(KOCH & ELIAS, 2006, p. 61).

Desse modo, de acordo com a concepção das autoras, o


contexto é indispensável para a compreensão e para a construção
do sentido do texto. Nesse viés, o contexto cognitivo dos
interlocutores engloba os demais, abarcando todos os tipos de
conhecimento arquivados na memória dos atores sociais, que têm a
necessidade de ser mobilizados no movimento da interação verbal.
Estamos falando dos conhecimentos linguístico, enciclopédico,
interacional e o referente a modelos textuais globais.
O conhecimento linguístico está relacionado ao código, ou
gramática. É necessário conhecer o sistema para que possamos
compreendê-lo, e ao léxico, que é o sentido dentro do contexto.
Já o conhecimento enciclopédico está relacionado ao “acervo”
armazenado na memória do ser humano, podendo este ser de
forma episódica ou determinado de maneira sociocultural. Em se
tratando do conhecimento sociointeracional, refere-se à interação
dos falantes através da língua. Diríamos que essas estratégias

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interacionais são determinadas, social e culturalmente, fazendo
com que as pessoas saibam o que podem e o que devem dizer
em uma determinada situação. Esse conhecimento abrange,
também, o conhecimento ilocucional, que diz respeito aos
meios diretos e indiretos que o emissor se utiliza para obter um
dado objetivo: o comunicacional, que, ligado ao conhecimento
ilocucional, encontra-se relacionado aos meios adequados para
atingir os objetivos desejados. Ademais, temos o conhecimento
metacomunicativo, visto como o conhecimento das várias
maneiras de utilizar o código para melhor entendimento do texto.
Esses conhecimentos podem ser considerados como
estratégias textuais que permitem aos interlocutores escolherem
o tipo de texto mais adequado ao contexto e, desse modo,
produzirem o efeito de sentido desejado. Por isso, podemos
definir tais estratégias textuais também como sociocognitivas e
interacionais. Finalmente, temos o conhecimento sobre estruturas
ou modelos textuais globais. Através desses, os receptores podem
reconhecer a generacidade ou tipologia textuais, atingindo mais
facilmente à função sociocomunicativa que tal texto pretende
exercer.
Logo, é dentro dessa concepção sociointeracional da
linguagem que os estudos do texto/contexto receberam um novo
enfoque dentro da disciplina da Linguística Textual e, inserido
nos estudos da linguagem. Segundo Koch (2004), (re) surge
uma série de questões: as diversas formas de progressão textual
(referenciação, progressão referencial, formas de articulação
textual, progressão temática, progressão tópica), que serão
apresentados nas análises dos textos, a dêixis textual ou discursiva,
que, segundo o dicionário de termos linguísticos, “diz respeito ao
uso de determinadas expressões num enunciado para referir uma

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parte anterior ou posterior do discurso”, os gêneros textuais, que
são as diversas formas de produção do texto; as questões ligadas
à intertextualidade, que se referem a textos inseridos em outros
textos implícita ou explicitamente, entre muitas outras. Por meio
de considerações sobre a trajetória da Linguística Textual, detecta-
se um longo caminho percorrido nos estudos do texto até essa
ciência se transformar em uma disciplina com forte tendência
interacional e sociocognitivista.

Breves análises

Após algumas considerações sobre a Linguística Textual


e sua trajetória, vale apresentar textos analisados com base nela,
considerando apenas alguns elementos constituintes desta,
mais especificamente questões de coerência, argumentação
e referenciação. Para tanto, será utilizado um fragmento de
texto da obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, para falar sobre
referenciação e sentido do texto com base na teoria de Koch e
Elias (2006). Na sequência, será apresentado um texto extraído da
Revista Veja, com o intuito de discorrer sobre a argumentatividade
na construção textual. Nessa última análise a base está nas palavras
de Fiorin e Savioli (2002).

Ele (Antônio Conselheiro) ali (num palanque improvisado) subia


e pregava. Era assombroso, afirmam testemunhas existentes. Uma
oratória bárbara e arrepiadora, feitas de excertos truncados das
Horas marianas, desconexa, abstrusa, agravada, às vezes, pela
ousadia extrema das citações latinas; transcorrendo em frases
sacudidas; misto inextricável e confuso de conselhos dogmáticos,
preceitos vulgares de moral cristã e profecias esdrúxulas...
Era truanesco e pavoroso...
Imagine-se um bufão arrebatado numa visão de Apocalipse...

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Parco de gestos, falava largo tempo, olhos em terra, sem encarar a
multidão abatida sob a algaravia, que derivava demoradamente, ao
arrepio do bom senso em melopéia fatigante.
Tinha, entretanto, ao que parece, a preocupação do efeito produzido
por uma mais incisiva. (CUNHA, 1979, p. 48).

As teorias textuais mais recentes assinalam a dimensão


procedimental da construção do referente e dos sentidos textuais:
ambos não constituem dados prévios, pois são determinados de
modo interativo durante o processo de interlocução. Explicitemos,
a seguir, os conceitos de sentido e referente e como ocorre a
construção de ambos, a partir do texto acima. Ao se deparar com
um texto oral ou escrito procura-se, sempre, colocar uma avaliação
diante dele: se faz sentido, se tem coerência. De forma geral busca-
se produzir sentidos para os textos, recorrendo aos conhecimentos
sociocognitivos, que se constituem interacionalmente. Desse
modo, pode-se dizer, com base em Koch e Elias (2006), que a
coerência é um princípio de interpretabilidade.
Para que o sentido do texto se construa, são necessárias
várias estratégias linguísticas, tais como os fatores pragmáticos
textuais e a referenciação, que também é responsável pela
coesão do texto. Além da coerência textual, o leitor buscará
marcas de coesão, ou seja, mecanismos de conexão interna entre
vários enunciados presentes no texto. É a coesão que garante a
apresentação dos vários enunciados organicamente articulados
entre si. Embora a coesão não seja totalmente responsável pela
coerência (que depende de fatores além da conexão textual), ela
é de extrema importância para a construção do texto e ocorre,
dentre muitas outras formas, por meio da referenciação e da
progressão referencial:

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Denomina-se referenciação as diversas formas de introdução, no
texto, de novas entidades ou referentes. Quando tais referentes são
retomados mais adiante ou servem de base para a introdução de
novos referentes, tem-se o que se denomina progressão referencial.
(KOCH & ELIAS, 2006, p. 123).

No que diz respeito à construção dos referentes textuais,


podemos contar com estratégias de referenciação tais como
a introdução (construção), a retomada (manutenção) e a
desfocalização. A primeira se manifesta quando algo, ainda não
mencionado no texto, é introduzido de modo a focalizar a expressão
linguística representada por ele, o que o faz saliente durante a
construção textual. A retomada se dá quando esse elemento,
introduzido inicialmente no texto, é recuperado por meio de outro
elemento linguístico a que se refere, mantendo, assim, o foco desse
elemento por todo o texto. Já a desfocalização acontece quando
um novo elemento é introduzido no discurso, tirando do foco o
elemento inicial e tomando sua posição. Contudo, o elemento
introduzido inicialmente fica parcialmente disponível para novas
retomadas no discorrer do texto. Ao aplicar as considerações acima
ao fragmento de texto de Euclides da Cunha, identificamos as
três estratégias de referenciação apresentadas.
Quando autor inicia o texto, introduz o personagem
Antônio Conselheiro e o espaço utilizado por ele por meio
dos dêiticos “Ele” e “ali”. Essa introdução torna os referentes
apresentados como foco inicial e principal do texto durante sua
construção. Em seguida, há uma desfocalização do referente
inicial, quando Cunha introduz o termo “oratória”, descrevendo-o
minuciosamente – o que transforma esse termo no foco do texto
do autor. Na sequência, detectamos a estratégia da retomada,
quando o autor recupera o elemento introduzido inicialmente ao
descrever o personagem: “Parco de gestos, falava longo tempo...”.

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Percebemos, por meio das observações encontradas
na análise desse texto, que esses elementos que também são
estudados pela Linguística Textual têm grande responsabilidade
na construção do texto, tornando-os coerentes e coesos. Além
da troca de universos (do texto e do leitor) e da coerência
conforme um princípio de interpretabilidade, vemos a necessidade
de elementos constituintes do sistema linguístico da língua
portuguesa para que, efetivamente, seja considerado um texto
bem construído, inteligível, tranmissor de mensagens.

A argumentatividade no processo de construção do texto

As pesquisas atuais sobre o funcionamento argumentativo


da linguagem apresentam enfoques variados que se distribuem por
diversas áreas de estudo, como: Análise do Discurso, Semântica
Argumentativa, Análise da Conversação, Linguística Textual,
entre outras. A argumentação, segundo Ducrot, está inscrita
na própria língua, e muitos procedimentos são responsáveis
pela trama persuasiva de um texto. De acordo com a teoria da
comunicação, para que um ato comunicativo se efetive, deve-se
levar em consideração seis fatores: o emissor, o receptor, o código,
o canal, a mensagem e o referente. Contudo, tal teoria simplifica
excessivamente o ato comunicativo, quando trata emissor e
receptor como polos neutros, com o dever de produzir, receber e
compreender a mensagem.
Bem diferente disso, comunicar e receber um texto é
muito mais que uma atividade passiva. O papel do emissor não
é simplesmente transmitir o conteúdo como se a aceitabilidade
dos interlocutores em geral fosse unânime. Muito além disso,
ao produzir/construir um texto, o emissor deve ter a consciência

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de que seu interlocutor deve crer no que está lendo ou ouvindo.
Mais que transmitir é fazer crer, persuadir, argumentar. Para que
isso ocorra, ao se produzir um texto oral ou escrito, deve-se ter
conhecimento e levar em consideração diversas estratégias que
podem levar o interlocutor a aceitar nosso texto como plausível,
coerente, verdadeiro.
Com base na teoria de Fiorin & Platão (2002), dentre
inúmeros recursos linguísticos utilizados com a finalidade
de convencer, são apresentados alguns tipos de argumento:
argumento de autoridade, argumento baseado no consenso,
argumento baseado em provas concretas, argumento com base no
raciocínio lógico e argumento da competência linguística.
O primeiro se refere à citação de autores renomados,
autoridades num certo domínio do saber, em alguma área da
atividade humana, também chamado de intertextualidade
explícita. Quando utilizamos, por exemplo, palavras de Alfredo
Bosi para argumentar sobre literatura, dá-se mais credibilidade
ao texto. Os argumentos baseados no consenso são as proposições
evidentes por si próprias ou aceitas universalmente que podem
auxiliar na persuasão do interlocutor. Ao se dizer, por exemplo, que
a família dá estrutura à educação, obtém-se uma aceitabilidade, de
modo geral dos receptores, de tal afirmação, por ela se tratar de,
praticamente, um senso comum. Em se tratando de argumentos
baseados em provas concretas são os que exigem pertinência,
adequação, fidedignidade. Não se pode, por exemplo, acusar
um político de corrupção, se não há dados que comprovem tal
acusação. Se se dispõe de algum documento, foto, depoimento do
político, comprovando a afirmação de corrupção, o texto se torna
muito mais convincente e verdadeiro, persuadindo efetivamente o
interlocutor. Em relação aos argumentos com base no raciocínio

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lógico contamos com “as próprias relações entre proposições e não
à adequação entre proposições e provas” (FIORIN & SAVILOI,
2002, p.289), isto é, a argumentação é baseada nas relações de
causa e consequência. Por fim, o argumento da competência
linguística diz respeito ao modo de transmissão do texto, oral
ou escrito, à variante da língua, à forma de expressão. Quando
é utilizado um vocabulário adequado voltado ao interlocutor,
há mais credibilidade ao texto emitido, provendo-nos de mais
persuasão e atingindo nosso objetivo na comunicação. A breve
análise a seguir diz respeito a questões de argumentação na
construção de um texto, elencando os recursos que comprovam
o encadeamento argumentativo:

Autocarbonização
Há segundos que duram um século. Há momentos que definem
uma vida inteira. Marta Suplicy, candidata do PT à prefeitura de São
Paulo, produziu um comercial de trinta segundos que incinerou sua
vida pública. O comercial insinua que o prefeito Gilberto Kassab,
candidato à reeleição pelo DEM, é homossexual. Com essa peça
de propaganda, Marta Suplicy não disparou um torpedo na sua
própria candidatura. Fosse apenas isso o estrago acabaria no dia 26
de outubro, quando o eleitor volta às urnas para votar no segundo
turno. Marta Suplicy, tendo construído uma carreira pública, na
qual se destacou como defensora de homossexuais exterminou seu
passado. Quando o presente destrói o passado, o futuro só revolve
escombros.
A difamação contra Kassab fere de morte a militância passada em
defesa da diversidade sexual, mas faz mais. Mostra a disposição
da petista de apelar para os instintos mais preconceituosos
do eleitorado, se isso lhe render votos. Como defensora que
já foi de gays e lésbicas, Marta deve saber que é fácil apelar
para a intolerância, a ignorância e a discriminação, porque são
primitivismos abundantes. Só não é decente.
A peça revela uma visão torpe de Marta sobre o que é, ou o que
pode ser, um homossexual. Prefeito não pode. Se Marta recorrer

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aos escombros de seu passado de apoio a gays e lésbicas para dizer
que não é isso que pensa deles, não vale. Porque foi a esse tipo de
pensamento obscurantista que quis dar eco. Quem diria: até o
movimento de gays, lésbicas e assemelhados, outrora admirador
cativo da candidata, protestou.
Confrontada com sua baixeza, Marta disse que “a decisão está
na mão do marqueteiro” e que nem viu “a campanha no ar”.
Desdobrando: não sabia de nada, o assunto não era com ela, nem
disse que ia ver a peça ou rever a decisão de divulgá-la. Relaxando
e gozando.
Marta Suplicy tem como salvar-se da autocarbonização? No
máximo, talvez falta salvar as aparências. Só há um jeito: vir a
público pedir desculpas a Gilberto Kassab (pela difamação), aos
homossexuais (pela desqualificação), aos seus eleitores de ontem,
pela traição, e aos eleitores em geral (pela suposição de que são todos
imbecis). Não é certo que todos aceitem as desculpas. Mas, pelo
menos, Marta teria discurso para... seguir discursando.
Marta Suplicy, contrariando os prognósticos do momento, pode
até se eleger no dia 26. Mas, será apenas um miasma emanado da
decomposição do que ela parece ter sido. Kassab, por caminhos
que jamais imaginara, esmagou Marta Suplicy. Ainda que perca a
eleição. (Revista Veja, 22/10/08, p. 87)

Quando o autor da revista Veja escreveu o texto


“Autocarbonização” para ser publicado, pensou em estratégias
que fizessem o leitor crer no que estava sendo dito sobre Marta
Suplicy e utilizou-se de alguns argumentos, explicitados acima.
Primeiramente, escreveu o texto com propriedade e argumento
baseado na competência linguística. Ao escrever para a referida
revista o autor já tinha em mente seu público alvo, leitores
acostumados com textos na variante culta da língua e que
estivessem basicamente atualizados quanto aos acontecimentos
políticos.
Outro argumento utilizado pelo autor foi o baseado no
consenso, quando inicia o texto com “Há segundos que duram um

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século. Há momentos que definem uma vida inteira”. Frases como
essas podem ser consideradas universalmente aceitas, já que se trata
de enunciados que causam reflexão e, simultaneamente, podem se
refletir em muitos dos receptores. Além disso, ele constrói o texto
todo com base nas duas primeiras frases, argumentando de formas
diferentes, desenvolvendo o texto de forma persuasiva e plausível.
Além desses argumentos, o autor ainda utilizou-se do
argumento baseado em provas concretas. Já no início do texto
ele comprova as acusações feitas à Marta Suplicy, citando e
descrevendo o comercial de trinta segundos produzido por ela
que “incinerara” sua vida pública. Isto é, a acusação à ex-prefeita
não poderia ser considerada em vão, havia algo gravado como
prova de sua conduta. O autor tenta (e consegue) mostrar a todo o
momento a discriminação de Marta à homossexualidade, e coloca,
reiterando, sempre, a contradição em que a ex-prefeita entra
quando recorda o leitor da reportagem que ela já fora “militante
em defesa da diversidade sexual”.
Ademais, o produtor segue repetindo o nome de Marta
por todo o texto, reforçando as ideias e denúncias expostas para
realmente convencer o leitor de sua argumentação. E, já no final
de sua composição, “refresca a memória” do leitor mais uma vez
com a frase “relaxando e gozando”, emitida por Marta tempos
atrás e responsável por grande polêmica. Por fim, para certificar-se
da persuasão de suas palavras, o autor ainda interage com o leitor
retomando o título do texto fazendo-o refletir sobre os argumentos
propostos. Notamos que a construção do texto em análise foi
pensada linha a linha, em um entrelaçamento harmonioso de um
léxico cuidadosamente selecionado para a obtenção do objetivo
do autor: provar sua tese, persuadir, convencer.

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Considerações finais

Os estudos com base na teoria da Linguística Textual


têm mostrado cada vez mais sua eficácia nas pesquisas sobre a
construção do texto. Com base no que foi discorrido nesse estudo
pôde-se perceber que ela passou por vários estágios para que
chegasse nesse bojo de contribuições aos estudos da linguagem. A
língua oferece funções e estratégias que se encontram disponíveis
para a utilização, a fim de que, por meio delas, obtenhamos a
comunicação e que o ato comunicativo seja eficaz, apresentando,
assim, textos coerentes, coesos, plausíveis, persuasivos.
Percebemos, ao delinear a breve análise textual, que a
argumentatividade na construção do texto deve estar presente
nas mais diversas atividades da comunicação humana. De nada
adianta transmitir opiniões, se nada há para comprovar ou reforçar
a tese exposta. Nesse sentido, o processo de produção de texto
pode adquirir melhorias se o autor tiver conhecimentos das
estratégias aqui apresentadas. Com apenas alguns conhecimentos
relacionados a elementos linguísticos, textuais e retóricos, é
possível produzir um texto dos mais diversos gêneros com maior
propriedade, mostrando a competência e potencial linguísticos.
Identificamos, aqui, como os elementos do texto, explorados
pela Linguística Textual, contribuem para com os fatores
pragmáticos da textualidade. Assim, compreendemos melhor os
sentidos do texto, bem como a utilização dos recursos oferecidos
pelo sistema linguístico brasileiro ao se produzir um texto, seja ele
oral ou escrito. Por meio das análises aqui realizadas, foi possível
visualizar uma parcela dos inúmeros recursos que podem ser
utilizados na durante a construção textual e, com proveito desses
conhecimentos, trazer maior efetividade, eficácia em nosso ato
comunicativo, considerando-o como prática interacional.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 109-130 – jan./jun. 2017 127
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EFEITOS DE SENTIDOS NO HUMOR POLÍTICO:
UMA ANÁLISE DISCURSIVA

Helena Cristina Lübke1 (PG-UEL)


lena.cl@terra.com.br
Talita Canônico e Silva2 (PG-UEL/ IFPR)
talita.canonico@gmail.com

“O humor salva a paciência, que salva o amor, que salva o mundo


inteiro” (post retirado do facebook)

RESUMO: A língua serve como instrumento de produção de sentidos, pois representa


tanto as práticas do indivíduo situado sócio-historicamente, como age sobre outros
indivíduos no processo de recriação da realidade. Em função dessas representações
acumuladas ao longo da vida, o ser humano constrói sua identidade linguística e a
emprega de acordo com as condições contextuais estabelecidas no momento da interação,
uma vez que a linguagem só tem sentido porque é voltada para o outro. Para ilustrar essa
afirmação, analisaremos duas piadas sobre dois políticos brasileiros, Anthony Garotinho
e Sérgio Cabral, ambos ex-governadores do Rio de Janeiro, os quais são investigados
pela Polícia Federal por serem acusados de corrupção.
PALAVRAS-CHAVE: Humor. Língua. Sentido.

ABSTRACT: Language is an instrument for the production of meanings, since it


represents both the practices of the individual situated on society and at the history,
and acts on other individuals in the process of re-creation of reality. Because of these
representations accumulated throughout life, the human being constructs his linguistic
identity and uses it according to the contextual conditions established in the moment
of interaction, since language only makes sense because it is focused to the other. To
illustrate the issue, we will analyze two jokes about two Brazilian politicians, Anthony
Garotinho and Sérgio Cabral, both former governors of Rio de Janeiro, who are being
investigated by the Federal Police for being accused of corruption.
Key-words: Humor. Language. Meaning.

1
Helena Cristina Lübke, Doutoranda do Programa de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Londrina – UEL – Londrina, Paraná, Brasil. Docente da
Católica de Santa Catarina – Campus Jaraguá do Sul, Santa Catarina, Brasil.
2
Talita Canônico e Silva, Doutoranda do Programa de Estudos da Linguagem da Universidade
Estadual de Londrina – UEL – Londrina, Paraná, Brasil. Docente do Ensino Básico, Técnico
e Tecnológico no Instituto Federal do Paraná – IFPR – Campus Londrina, Paraná, Brasil.

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Considerações Iniciais

A partir do entendimento de que a linguagem é o


resultado do processo de recriação que o homem faz por meio de
representações linguísticas e psicológicas do meio em que vive,
faz-se necessário compreender que todos os gêneros textuais
podem ser analisados linguisticamente, inclusive as piadas, pois
elas representam um material valioso para a compreensão de certos
mecanismos linguísticos em um dado tempo e em um dado espaço.
Há séculos o homem usufrui do humor como forma de
diversão para “brincar” diante dos impasses da vida e cada época.
Sendo ampliado, cada vez mais, seu leque de estudos, esse campo
tem como base teorias da Psicologia, da Sociologia e da Filosofia,
já que o humor faz críticas sociais expondo preconceitos e valores
ideológicos. Dessa forma, o humor tem grande valor para os
estudos linguísticos, principalmente para a Análise do Discurso
(doravante AD), pois, segundo Possenti (2010, p. 27), os textos
humorísticos sempre estão relacionados com os diversos tipos de
acontecimentos.
A Análise do Discurso é um campo abundante de
pesquisa e trata de questões em que é possível relacionar textos
humorísticos aos seus estudos, e, conforme Amaral (2002, p. 3),
esses textos trazem vestígios, por meio da linguagem, que indicam
assujeitamento imposto pela ideologia, as vozes transmitem o
discurso do sujeito que, por sua vez, é produzido em condições
preestabelecidas por certa formação discursiva.
Este trabalho pretende demonstrar, por meio da análise
de duas piadas relacionadas a um momento político brasileiro,
a função fundamental da Análise do Discurso e da ideologia da
interpretação de chistes, compreendendo, assim, o desempenho

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ativo da língua. Nosso objetivo é, além de ressaltar o funcionamento
linguístico de textos humorísticos, analisar, pelo viés da Análise
do Discurso, como a piada se constrói e revela sentidos.

A história do riso

De acordo com Mathias (2015), Georges Minois,


historiador francês e autor da obra História do Riso e do Escárnio,
estrutura a história do riso em três níveis: a) o riso divino; b) o
riso mefistofélico3; c) o riso humano.
O primeiro compreende a concepção de riso antropomórfico
dos deuses construída sob uma ótica mitológica, ela resguarda a
crença de que o riso é o gesto que ratifica a superioridade dos
deuses. O ato de rir, até então, era uma peculiaridade remetida aos
deuses, como é observado, na seguinte citação: “O riso, nos mitos
gregos, só é verdadeiramente alegre para os deuses. Nos homens,
nunca é alegria pura; a morte sempre está por perto, e essa intuição
do nada, sobre o qual todos estamos suspensos, contamina o riso”
(MINOIS, 2003, p 27).
O segundo não apresenta relação com o divino. O riso
passa, então, a mostrar todas as imperfeições humanas, é um riso
sarcástico, debochado, jocoso. Com a ascensão do Cristianismo,
houve o banimento do riso da porta das igrejas, o que contribuiu
para demonizá-lo de modo geral. Porém, em torno do século IV
d.C até aproximadamente o século VII, a restrição por parte da
igreja no tocante ao ato de rir sofre alterações positivas, tanto que

3
Segundo o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001, p 1880), mefistofélico que,
por seus atributos físicos e/ou morais, lembra Mefistófeles; pérfido; sarcástico; diabólico;
infernal; personagem considerado a personificação do diabo na lenda alemã de Fausto,
consagrado no drama homônimo de Goethe, como símbolo do demônio intelectual.
Diabólico; característico de mefistófeles: pacto mefistofélico; riso mefistofélico.

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se passa a investir no riso, dando-lhe nova roupagem, servindo,
inclusive, às manifestações populares.
O terceiro faz menção ao fisiologismo do riso, que
impulsionado pelo Renascimento, traz novos ares ao ato de rir,
pois o riso passa a ser tido como uma ação pura e essencialmente
humana, uma vez que só os humanos têm a capacidade de rir de
si, do outro e das situações a que são expostos.

O que é humor e como ele surge no Brasil

Para Bergson (1987), o homem não é somente um animal


que sabe rir, mas um animal que faz rir e “para compreender o
riso é preciso colocá-lo em seu meio natural, que é a sociedade;
e é preciso, sobretudo, determinar sua função útil, que é uma
função social” (BERGSON, 1987, p.6). O referido autor também
delimita alguns critérios para compreensão do riso como ato
indissolúvel de uma ação social, em outras palavras, a compreensão
do humor, como prática de valores de um grupo, está centrada em
um pensamento de Bergson: “Nosso riso é sempre o riso de um
grupo” (BERGSON, 1987, p.5). O humor, apesar de universal,
é atravessado pelos costumes, pelas ideias, pelos hábitos e pela
moral de uma sociedade específica à qual ela está inserida. Para
Bergson, o riso é conceituado em uma práxis social, que emerge
da identificação de elementos inanimados e elementos vivos.
No Brasil, o cenário humorístico tem sua estreia em fins
do século XIX e início do século XX, a chamada Belle Époque,
período em que houve relevantes mudanças nos campos científico,
tecnológico e cultural. Nessa época, destacam-se três obras
importantíssimas sobre humor: O riso (Bergson, 1899); Os chistes
e sua relação com o inconsciente (Freud, 1905); O humorismo

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(Pirandello, 1908), elas contribuíram significativamente para o
entendimento sobre o humor e a comicidade.
A obra O riso de Bergson surge justamente quando nascem
as primeiras produções cinematográficas de Lumière e Méliès,
que impulsionaram a experiência coletiva do tempo como
simultaneidade, ou seja, do rompimento do tempo cronológico
para um tempo psicológico, nos fundos brancos das primeiras
telas de cinema.
Para Saliba (2002, p.21),

[...] a Belle Époque representou um momento de crise e


desarticulação desses dois sistemas de valores da dimensão cômica:
a distinção entre o “bom” e o “mau” riso e a teoria da superioridade
e do distanciamento. [...] representou um momento de crise e
desarticulação dessas definições clássicas do humor.

Para Freud, em sua obra, Os chistes e sua relação com o


inconsciente, busca mostrar o sentido do jogo de palavras e o que
ele encobre em uma anedota. O riso, para a teoria freudiana, tem
o objetivo de liberar sentimentos reprimidos e se desenvolve da
compreensão do ilógico e do seu significado. Pirandello, em sua
obra sobre o humor, parte de uma ótica de distanciamento e de
superioridade sobre o que é risível.
De acordo com Saliba, o cenário humorístico no Brasil
pode ser dividido em quatro períodos distintos: 1) A Geração
Belle Époque – do humor parnasiano à publicidade (1890-1930);
2) Geração do rádio e das chanchadas (1930-1960); 3) A geração
da TV e a criação das personas humorísticas (1960-2001); 4) A
geração da internet e do stand-up4 (desde o início dos anos 2000).

4
Stand-up significa ficar de pé; levantar-se. Também é um tipo de espetáculo de humor,
em que o indivíduo faz sua performance em pé, por isso recebe esse nome.

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Vale considerar que foi com o advento da internet que houve
grande propagação do humor e do cômico, obviamente que, antes
da era tecnológica, também se fazia humor, mas foi a partir do
www (world wide web) que tudo se interligou.

Análise do Discurso e Ideologia

A linguagem é sempre atravessada por ideologias e por


subjetividades, pois nunca a utilizamos de modo despretensioso,
isto é, ela carrega consigo sempre alguma intenção. Isso não seria
diferente no contexto dos textos humorísticos, haja vista que a todo
discurso relacionado ao cômico há uma ideologia subjacente, seja
de preconceito ou de estereótipos5. Segundo Gruda (2010, p. 748),
“o discurso pode se manifestar de várias maneiras pretendendo
comunicar inúmeros sentidos e significações conforme o contexto
no qual se insere, às condições nas quais é produzido e, sobretudo,
conforme a ideologia à qual se vincula”.
Desde os anos 1960, a Análise do Discurso tem sido
fortificada como ciência com as contribuições, primeiramente,
de Michel Pêcheux, influenciado pelas ideias de Louis Althusser
(teoria marxista), Michel Foucault (conceito de formação
discursiva), Jacques Lacan (inconsciente estruturado pela
linguagem) e Mikhail Bakhtin (linguagem dialógica). A AD,
conforme salienta MAZZOLA (2009, p. 12), foi consagrada a
um campo de entremeio, tendo como vizinhanças históricas: a)
o materialismo histórico (teoria das ideologias); b) a linguística
(mecanismos sintáticos e processos de enunciação); c) a teoria

5
De acordo com Sá Martino (2009, p.21), “estereótipos são imagens mentais criadas pelo
indivíduo a partir da abstração de traços comuns a um evento previamente vivido. [...] Neste
sentido, o estereótipo é um conhecimento imediato e superficial, ganhando em tempo o que
perde em profundidade”.

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do discurso (determinação histórica dos processos semânticos).
As três áreas são atravessadas por uma teoria da subjetividade
(inconsciente).
Para a Análise do Discurso de linha francesa, a linguagem
é vista como trabalho simbólico, isto é, como mediação entre o
homem e a realidade natural e social e como resultado de processos
histórico-sociais, os quais são investigados/analisados pelo analista
de discurso com o objetivo de compreender a constituição dos
sentidos. Ainda, na AD, linguagem, história e sentido aparecem
sempre interligados.
O discurso atravessa os vários gêneros textuais que
circulam socialmente e é por meio da Análise do Discurso que é
possível realizar uma análise do texto. Ao analisarmos o discurso,
estaremos, sem dúvida, diante da questão de como ele se relaciona
com a situação que o criou, pois essa análise vai colocar em relação
o campo da língua e o campo da sociedade (apreendida pela
história e pela ideologia).
A ideologia é um conjunto de representações dominantes
em uma determinada classe dentro da sociedade. Como existem
várias classes, diversas ideologias estão permanentemente em
confronto na sociedade. Chauí (1994, p. 19) considera a ideologia
uma realidade constituída por ideias e representações que
dependem da relação do homem com o meio social. Em sociedade,
o homem participa de determinadas instituições, trabalho, igreja,
escola, entre outras, desenvolvendo seus pensamentos com base
nas teorias dos ambientes em que convive. Para a autora (1994,
p. 92), “a ideologia é o processo pelo qual as idéias da classe
dominante se tornam idéias de todas as classes sociais, se tornam
idéias dominantes”. A ideologia é, pois, a visão de mundo de
determinada classe social. Assim, a linguagem é determinada

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pela ideologia, pois não há neutralidade na língua, a isso Pêcheux
(2014) dá o nome de formação ideológica. Para Althusser,

a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos. Como a


ideologia é eterna, vamos suprimir a forma da temporalidade na
qual representámos o funcionamento da ideologia e afirmar: a
ideologia sempre-já interpelou os indivíduos como sujeitos, o que
nos leva a precisar que os indivíduos são sempre-já interpelados
pela ideologia como sujeitos, e nos conduz necessariamente a uma
última proposição: os indivíduos são sempre-já sujeitos. Portanto, os
indivíduos são «abstractos» relativamente aos sujeitos que sempre-já
são (ALTHUSSER, 1980, p. 102).

Na conjuntura sócio-histórica e ideológica, que compreende


os sujeitos, a situação e a memória discursiva (interdiscurso),
figuram as Condições de Produção (doravante CPs), abrangendo
o contexto externo do discurso, aquilo que ocorre no entorno da
enunciação. As condições de produção organizam o discurso,
pois os sujeitos representam lugares determinados em uma
certa estrutura social. Conforme Orlandi (2015, p. 28), as CPs
incluem o contexto imediato, que englobam sujeitos e espaço
propriamente ditos e o contexto sócio-histórico e ideológico, em
que ocorrem efeitos de sentido e a história e o acontecimento
passam a significar. A memória discursiva, como um já-dito em
outro lugar, influencia como o sujeito significa em uma situação
discursiva dada, havendo relação entre o já-dito e o que se está
dizendo.
Compreendemos por formações ideológicas a atitude do
sujeito que, inconscientemente e interpelado historicamente,
ocupa um lugar em uma classe e vários posicionamentos dentro
de sua classe social. Em uma sociedade, certamente, há várias
formações ideológicas e, a cada uma delas corresponde uma

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formação discursiva, ou seja, aquilo que se pode (ou não) dizer
em determinada época, em determinada sociedade; a formação
discursiva regula para que os sujeitos falantes, situados na mesma
conjuntura histórica, concordem ou não em relação a algo,
produzindo vários sentidos numa mesma língua. Em função disso,
os processos discursivos estão na fonte da produção dos sentidos e
a língua é o lugar da materialidade linguística, ou seja, é na língua
que se realizam os chamados efeitos de sentido.
O discurso faz parte da materialidade linguística e
ideológica e só tem sentido para um determinado sujeito quando
este se remete e se reconhece como pertencente a determinada
formação discursiva, pois “os valores ideológicos de uma
formação social estão representados no discurso por uma série de
formações imaginárias, que designam o lugar que o destinador e
o destinatário se atribuem mutuamente” (Pêcheux, 2014, p.18).
Segundo Fiorin (1990, p. 177),

o discurso deve ser visto como objeto lingüístico e como objeto


histórico. Nem se pode descartar a pesquisa sobre os mecanismos
responsáveis pela produção do sentido e pela estruturação do discurso
nem sobre os elementos pulsionais e sociais que o atravessam. Esses
dois pontos de vista não são excludentes nem metodologicamente
heterogêneos. A pesquisa hoje precisa aprofundar o conhecimento
dos mecanismos sintáxicos e semânticos geradores de sentido; de
outro, necessita compreender o discurso como objeto cultural,
produzido a partir de certas condicionantes históricas, em relação
dialógica com outros textos.

Portanto, analisar o discurso é determinar as condições


de produção do texto e proceder à análise do discurso significa
entender como se constrói o sentido de um texto e quais efeitos
de sentido ele produz. Também significa compreender como

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esse texto se articula com o contexto sócio-histórico em que
ele foi produzido, em outras palavras, podemos afirmar que o
discurso é um objeto linguístico, histórico e social, uma vez que,
para entendê-lo, são necessários esses três elementos: história,
língua e sociedade. Para este artigo, selecionamos um dos gêneros
textuais mais recorrentes socialmente, pois, com tantos meios de
comunicação, o gênero humorístico é altamente disseminado.

Os sentidos do humor

Para falarmos de humor, recorreremos a um dos grandes


mestres dessa área no Brasil, Sírio Possenti.
Para o autor (2014, p. 3),

o humor é um tema relevante desde sempre. Talvez não tenha


havido intelectual de relevo que não tenha dito alguma coisa sobre
o tema. Ele está presente em todos os antigos mestres da retórica,
pelo menos. É um tema multissecular. Os estudos do humor tal
como ele se manifesta na língua é tanto um caminho para entender
do que rimos quanto um caminho para estudar melhor as línguas.

Portanto, o humor sempre nos mostrará que não há


somente uma interpretação para o que foi dito na piada, na charge,
enfim, no texto que teve por intenção fazer rir, é o humorista que
vai nos propiciar perceber uma ambiguidade, um outro sentido.
Ressaltamos, também, que o humor tem sempre um
ingrediente cultural. Normalmente, só conseguimos interpretar
uma piada, uma charge, um texto humorístico se soubermos, por
exemplo, das questões políticas, culturais, religiosas e ideológicas
que acontecem no país naquele momento, ou seja, o humor está
sempre situado sócio-historicamente, num dado momento, num
dado espaço e numa dada ideologia.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 131-148 – jan./jun. 2017 140
Para Possenti, o humor deriva da técnica, não do conteúdo,
pois nenhum tema é, por si mesmo, criador de riso, ou seja, o
humor tem a ver com a produção de sentidos que o encadeamento
discursivo proporcionou.
Segundo o autor, quando se fala de humor, há que se levar
em conta duas questões: a) que os mesmos temas se repetem em
todas as culturas; b) que, com muita frequência, há também uma
repetição das técnicas. Das diferentes técnicas que compõem a
escrita de textos de humor, só não são gerais as que dependem
de peculiaridades linguísticas – trocadilhos, manipulação
de material fonológico ou morfológico, duplos sentidos ou
ambiguidades, idiomatismos tomados “literalmente” etc. Ainda,
para referido autor, o que faz que certos textos humorísticos não
sejam compreendidos diz respeito a dois fatores que não estão
relacionados ao “desempenho” particular de ouvintes ou leitores.
Eles são relativos ou à manipulação de material linguístico ou
aos eventos a partir dos quais os textos humorísticos funcionam.
Com base nesse texto de Possenti, o discurso humorístico,
nos diversos gêneros textuais em que se materializa, faz apelo a
um saber, a uma memória, mas não necessariamente a uma cultura
específica, para ele, o que faz um texto “falhar” é fundamentalmente
a ausência dessa memória ou desse saber, mas isso não é um
‘problema’ que acontece somente com o humor e, sim, quando
se lê um poema, um romance, um filme, etc. Também o que
pode ocorrer é de textos fazerem apelo a memórias diferentes,
de “prazo” diferente, seja em seu aspecto psicológico, seja em seu
aspecto histórico.
Passemos, agora, aos textos humorísticos que serão
analisados no presente artigo.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 131-148 – jan./jun. 2017 141
Humor em análise

O primeiro texto em análise trata de uma piada que


circulou na Revista Veja em novembro de 2016, quando Anthony
Garotinho e Sérgio Cabral foram presos. Ambos foram ex-
governadores do Rio de Janeiro e são investigados pela Polícia
Federal na Operação Calicute6, um desdobramento da Operação
Lava-Jato que está investigando fraudes em licitações e desvios
milionários em várias obras do Rio e uso eleitoral do programa
cheque-cidadão7 em Campos.
O texto foi retirado da Revista Veja8.

- Mamãe, lá no Rio se rouba desde garotinho?


- Não, meu filho. Se rouba desde Cabral.
Fonte: Veja, 23/11/2016, p. 54.

De acordo com a matéria publicada na revista, a piada estava


sendo divulgada durante a terceira semana de novembro de 2016
em redes sociais. E, assim, a partir do humor, o texto é iniciado.
Considerando as condições de produção da piada,
observamos o contexto político do Rio de Janeiro, em que dois
ex-governadores do Estado são presos, um em seguida do outro,
por motivo de corrupção. Assim, a piada faz sentido por causa da
6
O nome da nova fase da operação Lava-Jato, que prendeu o ex-governador fluminense
Sérgio Cabral, é uma referência à cidade de Calicute, na costa oeste da Índia. O local foi palco
de uma derrota do descobridor do Brasil, Pedro Álvares Cabral – um episódio conhecido
como a “A Tormenta de Calicute”. A chegada à cidade ocorreu logo depois da passagem de
Cabral pelo Brasil em 1500, ainda a caminho das Índias. Antes dele, Vasco da Gama já havia
passado pela região em 1498.
7
O Cheque Cidadão Municipal é um programa de transferência de renda temporário
implantado pela Prefeitura de Campos a fim de auxiliar famílias em situação de
vulnerabilidade social. O programa foi iniciado em 1º de maio de 2009, substituindo o
programa Vale Alimentação de 2004.
8
Revista Veja. A Festa Acabou. Edição 2505, 23/11/2016, ano 49, nº 47, p. 54.

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época e da situação histórica que o país está vivenciando. O texto
pressupõe uma memória, um acontecimento e só terá coerência
para o indivíduo conhecedor do histórico dos ex-governadores do
Rio de Janeiro e atento às notícias midiáticas da época.
O diálogo evoca uma conversa entre mãe e filho. O sujeito
filho enuncia a partir da curiosidade, formação discursiva comum
e característica da idade infantil, ele coloca a mãe como foco,
considerando-a como fonte de confiança e, ao realizar perguntas,
espera por uma resposta convincente e que satisfaça suas
expectativas. A mãe prontamente responde à criança, rompendo
com a expectativa e gerando o humor.
O dêitico espacial “lá” indica que a conversa não ocorre
no Rio de Janeiro e, sim, em outro estado do Brasil. Então, é
possível interpretar que a criança ouviu falar, talvez pela mídia
ou no ambiente escolar, sobre a ocorrência de roubos no Rio
de Janeiro. A fala do filho não revela se “garotinho” refere-se
a indivíduos menores de idade que praticam roubo ou ao ex-
governador Anthony Garotinho; o uso do termo iniciado com
letra minúscula permite a ambiguidade. É possível considerar a
palavra “garotinho” como polissêmica, justamente pelo contexto
sócio-histórico em que a piada está sendo veiculada. A mãe,
por sua vez, considera a opção “garotinho” como o nome do ex-
governador que havia sido preso por corrupção e complementa
que o roubo no estado ocorre há muito mais tempo, ou seja, desde
o governo de Sérgio Cabral, que também foi para a prisão por
motivo de roubo. Ressaltamos que o nome “Cabral” faz referência
à época de Pedro Álvares Cabral, creditado como o descobridor
do Brasil. Verificamos que o nome “garotinho” e o nome “Cabral”,
são polissêmicos, pois ambos os nomes remetem a importantes
políticos brasileiros que desviaram dinheiro do Brasil e, ao pensar

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em Pedro Álvares Cabral, é possível compreender a ocorrência de
roubo no país desde seu descobrimento pelos portugueses, ou seja,
o roubo nunca deixou de existir, o que revela o humor do texto.
A ironia também provoca o humor, que será efetivo
em relação com o outro, o leitor, que necessitará ativar seu
conhecimento prévio para compreender o chiste. Compreendemos
que o Rio de Janeiro, principalmente sua capital, possui o
estereótipo de ser um lugar em que muitos roubos e assaltos
ocorrem provocados por marginais; a piada gera a suspeita de
que a delinquência passou dos limites e também é praticada por
quem está na liderança do governo do estado.
Uma charge, publicada pelo website www.humorpolitico.
com.br, no mesmo período (novembro de 2016) da veiculação da
piada na revista Veja, vem colaborar para o estudo da análise do
discurso no campo do humor.

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A condição de produção é a mesma da piada publicada
pela Veja, a prisão do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio
Cabral, por corrupção. O diálogo entre o padre e Cabral indica a
possível inocência do político, denotando o sentido de que todo
político, ao ser denunciado, recorre ao que for possível na tentativa
de livrar sua má repercussão, até mesmo persuadir representantes
religiosos. Conforme a formação ideológica do político, o sujeito
Cabral ocupa o lugar de político corrupto que se faz de inocente.
A formação discursiva regula o que pode ser dito, no entanto, a
posição do sujeito está em meio a tanta corrupção que é capaz
de mentir para o próprio ministro de Deus, na tentativa de
corrompê-lo também.
A resposta do padre é uma intertextualidade com o bordão
“Nem a pau, Juvenal”, proveniente de um comercial publicitário da
empresa de produtos alimentícios Sadia, em que uma senhora cita
a expressão ao vendedor de uma padaria, quando ele lhe oferece
um presunto de outra marca em vez de Sadia, o significado do
termo é “de jeito nenhum”.
O sujeito padre reconhece o sujeito preso no papel de
político corrupto, capaz de roubar e inventar histórias mentirosas,
promovendo-se como portador de boas condutas na tentativa
de persuadir o outro. O efeito de sentido da fala do clérigo é
proveniente do resgate na memória de que isso já foi dito em outro
lugar e ocasião, aqui sendo retomado e ressignificado. Há o jogo
fonético na rima entre “pau” e “Cabral” e, também, a repetição,
pelo padre, do pronome “seu”, revelando a ironia e provocando o
humor, que será reconhecido pelo leitor por meio da ativação de
seu conhecimento de mundo.
O leitor já possui em sua memória o já-dito de que a maioria
dos políticos é corrupta e que o padre é um representante de Deus

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(aquele para quem se confessa a verdade). Com base no evangelho
cristão, todos têm direito ao perdão divino, todavia, para o sujeito
presidiário, até o perdão lhe foi negado, nem o representante de
Deus (símbolo de bondade) acredita em suas palavras, o que
promove a quebra de expectativa da charge, gerando o humor.

Considerações finais

Neste trabalho, identificamos os elementos causadores


do humor em duas piadas. Para constatar os sentidos revelados
nos textos humorísticos, utilizamos como base os estudos da
Análise do Discurso e considerações a respeito da ideologia e do
funcionamento do gênero humor.
O discurso não pode ser pensado como uma unidade
fechada, pois tem relação com outros textos, com suas condições de
produção e com suas exterioridades constitutivas. Consideramos
as condições de produção determinantes dos dizeres e vão além
do entorno do texto, orientando os efeitos de sentido. Somos
atravessados por formações ideológicas e formações discursivas, o
que nos faz sair do mundo textual e adentrar no campo discursivo,
em que é preciso levantar hipóteses e considerar a memória e o
sentido.
É possível constatar, ainda, que os textos de humor
compõem um amplo material de análise que podem contribuir
para os estudos da língua e do discurso. Muitos elementos
caracterizam o universo humorístico, por isso não consideramos
que nosso trabalho está completo, pois muitas abordagens
poderiam ser realizadas, por exemplo, refletir a respeito do trabalho
com o gênero em sala de aula, capaz de explorar a atualidade e
diversos fatores da língua.

Boletim Cent. Let. Ci. Hum. UEL Londrina–nº 70 – p. 131-148 – jan./jun. 2017 146
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A ADAPTAÇÃO DE MENINOS DE KICHUTE,
DE MÁRCIO AMÉRICO, PARA O CINEMA:
COMO A CONSTRUÇÃO DOS MECANISMOS
INTERTEXTUAIS REVELA MOTIVADORES
IDEOLÓGICOS

Jaime dos Reis Sant’Anna (UEL)1

RESUMO: O objetivo deste artigo é discutir as relações dialógicas entre cinema e


literatura, conforme percebemos na adaptação do filme Meninos de Kichute (2010),
de Luca Amberg, baseada no romance homônimo de Márcio Américo, publicado em
2003. Após identificar os mecanismos intertextuais, nós analisamos a maneira como
eles revelam motivadores ideológicos utilizados no processo criativo, sobretudo no que
se refere ao resgate da memória coletiva de um grupo de crianças pobres de Londrina,
nos anos 1970. Para alcançar tal propósito, dialogamos com teóricos como Kristeva
(intertextualidade), Stam (cinema) e Halbwachs (memória).
PALAVRAS-CHAVE: Cinema; literatura; intertextualidade; memória; ideologia.

ABSTRACT: The aim of this article is to discuss the dialogical relations between
cinema and literature, as we see in Luca Amberg’s “Meninos de Kichute” (2010), based
on the novel by Márcio Américo, published in 2003. After identifying the intertextual
mechanisms, we analyze the way they reveal ideological motivators used in the creative
process, especially with regard to the rescue of the collective memory of a group of poor
children from Londrina in the 1970s. To achieve this purpose, we dialogue with theorists
such as Kristeva (intertextuality) Stam (cinema) and Halbwachs (memory).
KEYWORDS: Cinema; literature; intertextuality; memory; ideology.

O pontapé inicial: introdução

O presente texto apresenta algumas reflexões preliminares


acerca de uma pesquisa que propõe o estudo do romance Meninos
de Kichute, de Márcio Américo, publicado originalmente em
1
Professor de Metodologia e prática de ensino de Língua Portuguesa e Literaturas do
Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina.
Coordenador da pesquisa “Motivadores ideológicos na construção dos mecanismos de
intertextualidade na literatura infantojuvenil brasileira contemporânea e a formação de
leitores”.

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2003, comparando-o com o filme homônimo dirigido por Luca
Amberg, lançado comercialmente em 2010. O objetivo principal
é identificar os mecanismos de intertextualidade aplicados ao
processo de adaptação da obra literária para o cinema e, em
seguida, discutir a maneira como motivadores ideológicos atuam
no processo de criação e se revelam por meio destes mecanismos
intertextuais, sobretudo no que diz respeito à construção de signos
mnemônicos de representação coletiva da infância.
Para executar tal empreitada, optamos pela utilização
da teoria dialógica proposta por Claude Bouchè (1974) –
desenvolvida inicialmente para o estudo dos mecanismos
intertextuais empregados quando da transposição do texto
narrativo para a literatura dramática –, cujos postulados se
aplicam, como pretendemos demonstrar, também às transcriações
para o cinema. Para o autor, o processo paródico ocorre a partir
de determinados mecanismos transformadores dos elementos
narrativos do prototexto e recebem um tratamento no hipertexto,
de forma a evidenciar o que ele classificou como um jogo dinâmico
de supressão ou condensação, acréscimo ou ampliação, deslocamento,
translocução e inversão de cada um dos aludidos elementos da
narrativa.
Em outros termos, e apenas à guisa de exemplificação,
alguns personagens presentes no texto de partida podem ser
suprimidos do texto de chegada, podem ser condensados em um
único personagem que agregue suas principais características,
podem mesmo ser ampliados, ter algumas de suas qualidades
deslocadas para outra, ou mesmo sofrer a translocução de suas falas
para outros personagens. Processo similar ocorre também com as
situações episódicas do prototexto, as quais podem ser suprimidas
ou condensadas, podem ser ampliadas ou intensificadas, ou mesmo
ter seu deslocamento do início da narrativa para o fim ou o inverso.

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Na primeira etapa desse estudo, no entanto, para além do
simples exercício de identificação desses mecanismos intertextuais
– o que já nos pareceria uma contribuição importante para
compreendermos a estrutura do diálogo intertextual entre
literatura e cinema –, interessa-nos analisar os motivadores
ideológicos que norteiam o processo de construção de cada um
desses mecanismos intertextuais e os aspectos ideológicos que
neles se escamoteiam. A hipótese inicial dessa pesquisa repousa na
perspectiva de que as decisões acerca dos mecanismos intertextuais
apresentados por Bouchè podem revelar tanto a representação da
mundividência ideológica de seus elaboradores como também – e
de modo especial, no caso do romance/filme Meninos de Kichute –,
a criação ideológica de modelos comportamentais para crianças
e adolescentes.

Intertextualidades, motivadores ideológicos e a formação de


leitores literários críticos

Nos documentos que norteiam a formação de leitores no


Ensino Básico, tais como os PCN (1998), as OCEM (2006) e,
no caso do estado do Paraná, as DCE/PR (2008), lemos que
não apenas se pretende a capacitação da leitura em diferentes
“esferas discursivas em que os textos são produzidos e circulam,
bem como que se reconheçam as intenções e os interlocutores do
discurso”, mas também que sejam trabalhados em sala de aula os
instrumentos que permitam ao alunado o “reconhecimento das
vozes sociais e das ideologias presentes no discurso [que] ajude na
construção de sentido de um texto e na compreensão das relações
de poder a ele inerentes” (PARANÁ, 2008, p.57). Nesse sentido,
o presente artigo insere-se também no âmbito das preocupações

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com a formação de leitores literários críticos e busca contribuir
para a habilitação dos professores responsáveis por essa tarefa no
Ensino Básico.
A migração de textos literários para o teatro, cinema,
histórias em quadrinhos e recontos, exige a adaptação dos
principais elementos da narrativa, tais como personagens,
tempo, espaço e linguagem, revelando os diversos motivadores
ideológicos que agem no processo de construção dos mecanismos
de intertextualidade presentes nesse tipo de diálogo interartes. O
espaço restrito desse artigo, entretanto, nos impõe limites para a
abordagem mais abrangente da proposta; por isso, optamos nesse
primeiro momento, por um recorte que contemple a linguagem
do romance Meninos de Kichute – e mais especificamente a
representação do uso literário da língua falada – e as transformações
sofridas por essa linguagem quando da migração para a narrativa
fílmica homônima, adiando para outros trabalhos o estudo
dos demais elementos narrativos. Dessa forma, poderíamos
compreender a intensidade com que a linguagem do prototexto
é subvertida para atender às intenções ideológicas sub-reptícias
do produto cinematográfico.
Com tal estratégia pretendemos que a investigação nos
aponte a maneira pela qual as modificações da linguagem
do romance em relação à linguagem do filme obedecem não
somente às idiossincrasias próprias da linguagem do gênero
cinematográfico, mas também que demonstre que o emprego
dos mecanismos intertextuais, cujos signos presentes na
adaptação obedecem aos motivadores ideológicos responsáveis
pela transformação da essência da obra literária. Bakhtin (1986,
p.32), nesse sentido, afirma que a relação de mutualidade entre o
domínio do ideológico e o domínio dos signos faz com que todo
signo esteja “sujeito aos critérios de avaliação ideológica”.

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Para alcançar esse propósito, evocamos a perspectiva teórica
proposta por Robert Stam (2003), no que tange especificamente
ao processo de migração de textos literários para a linguagem
cinematográfica, como se verifica no filme de Amberg. Mas
entendemos que se faz necessário agregar ao estudo da linguagem
de Meninos de Kichute os fundamentos teóricos propostos por
Rodolfo Ilari (1974), no que se refere aos aspectos socioestilísticos
presentes no romance, sobretudo, no que tange à representação
das variantes linguísticas da oralidade de uma comunidade pobre
da cidade de Londrina-PR, no início dos anos 1970, como ocorre
na obra literária de Márcio Américo.
Por ora, vamos nos ater tão somente a algumas considerações
etnolinguísticas e lexicográficas sobre o “kichute” enquanto
signo polissêmico, e iniciar a discussão acerca da importância
da memória literária individual do narrador como expressão da
memória coletiva de toda uma geração. Uma breve análise de
dois episódios do romance em cotejo com sua transcriação para
as respectivas cenas do cinema será apresentada no final do artigo
como exemplo ilustrativo da proposta.

Na Londrina de Kichutes, “A Pátria de chuteiras”: coletivização


da memória da infância brasileira dos anos 1970

A história de Meninos de Kichute se passa quase toda na


Rua Ivaí, número 449, na Vila Nova, bairro da região central de
Londrina, no Paraná, para onde se muda a família do protagonista
e narrador Beto, então com quase seis anos. O ponto de ataque
com o qual se inicia a narrativa é 1969, época em que ainda
perduravam os pálidos resquícios da cultura cafeeira que fez a
opulência de alguns, mas às custas da pobreza da maioria de uma

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população que se instalava na cidade, acentuando o processo de
precarização habitacional de Londrina, como soer em quase todas
as cidades brasileiras de porte médio e grande (ARIAS NETO,
2008, p.183s).
A nova casa alugada – a quarta ou quinta habitação da
família, em menos de quatro anos –, não obstante a precariedade,
era melhor que as anteriores: velha, de madeira carcomida, cheia
de goteiras, tomada de baratas e percevejos, instalada num terreno
ocupado por outras habitações que compartilhavam o mesmo
inóspito banheiro; mas, tal qual um signo irônico da incipiente
ascensão social, não tinha frestas indiscretas nas paredes e o piso
tinha o luxo de não ser de terra batida. No entanto, o olhar infantil
do protagonista capta o que a nova casa trazia de especial – e que
se torna de vital importância para o desenvolvimento do enredo:
“O que mais me chamou a atenção foi o enorme quintal nos
fundos” (AMÉRICO, 2003, p.21). Trata-se de um espaço ocupado
inicialmente apenas por bananeiras, mas que concentra a carga
resumitiva da narrativa, doravante ocupado miticamente pelas
crianças da Rua Ivaí, revelando um misto de realidade e fantasia:

O quintal era grande demais pra minha cabeça acostumada a


casa do Parque Ouro Verde: ao fundo bananeiras que aos poucos
foram transformando-se em selva, em rios, em inimigos mortais, e,
finalmente, na sede do Clube Social Educativo e Esportivo Meninos
de Kichute que contava, um ano após nossa mudança, com mais
de 15 sócios com carteirinha e tudo. (AMÉRICO, 2003, p.25)

O kichute surge como metonímia da geração de crianças


pobres dos anos 1970. Na web, há depoimentos de diversos atletas a
respeito do início de suas carreiras, nos quais se menciona o kichute
como signo de representação da infância carente, a paixão pelos

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esportes, sobretudo o futebol praticado nos campinhos de terra.
Todavia, optei por destacar a natureza sígnica do Kichute em
três estudos acadêmicos de relevância: o primeiro, sobre um
clipe produzido para um rap dos Racionais MC; o segundo,
sobre o memorial de uma professora do Ceará; e, por fim, o
estudo realizado no âmbito das pesquisas que resultaram no Atlas
Linguístico do Paraná.
No artigo de Raquel Mendonça Martins, intitulado “Uma
reflexão a partir do rap ‘Vida Loka II’, do Racionais MC’s:
valorização do jovem negro pelos signos de poder econômico”,
a autora analisa o fenômeno da valorização da autoestima,
pela via do consumo, conforme foi traduzido musicalmente
pelos Racionais MC´s, por meio dos componentes estéticos
que configuram o objeto artístico em questão, quais sejam, o
videoclipe, a letra e a base musical. Se na letra do rap a autoestima
está metaforizada nos carros de marca Audi e Citroen com os
quais se fantasia passear no meio do “zé povinho” da periferia da
zona sul de São Paulo, acostumado a andar de coletivo, no clipe
dessa canção, produzido em 2004 – e disponível em https://
www.youtube.com/watch?v=Fu5kcgz73TY –, um flashback nos
reporta a 1983. A partir daí dramatiza-se o conflito gerado pela
humilhação sofrida por um adolescente que usa um par de Kichutes
em contraste com a autoestima de outros dois adolescentes que
calçam tênis da marca All Star.
No artigo de Maria das Graças de Oliveira Costa Ribeiro
sobre a memória da experiência escolar no interior do Ceará,
conforme relatos registrados pelas pesquisadoras Norma S. R. F.
Bezerra, Núbia F. Almeida e Maria das Graças de O. C. Ribeiro,
além do aspecto social, os kichutes também representavam, nos
anos 1970, a distinção emblemática tanto da faixa etária do usuário

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quanto a diferenciação de gênero: crianças e meninas usavam
conga, enquanto adolescentes, jovens e rapazes usavam kichute
(ALMEIDA, BEZERRA & RIBEIRO, 2015, p.5).
No estudo etnolinguístico realizado por Doiron e Aguilera
(2014), define-se o calçado de modelo Kichute como um

misto de tênis e chuteira, [que] foi lançado também pela São Paulo
Alpargatas Company na década de 70, na esteira do tricampeonato
de futebol conquistado pelo Brasil. De cor preta, o modelo, também
feito de lona, como as alpargatas, mas com cravos de borracha e
longos cadarços, alcançou grande popularidade entre os meninos,
sendo usado, especialmente, para jogar futebol. [...]. De custo baixo,
o Kichute era um calçado esportivo de preço acessível às classes
menos privilegiadas (DOIRON & AGUILERA, 2014, p.79, 82).

Não obstante o produto ser voltado para a população pobre,


como as crianças londrinenses em Meninos de Kichute, o marketing
da São Paulo Alpargatas Company se aproveitava para aproximar
o produto, quer da chuteira oficial dos tricampeões, quer dos
tênis importados, encarregando-se de fazer com que o kichute
se parecesse com um produto estrangeiro. Para as linguistas, nos
anos 1970,

era relativamente comum alguns produtos industrializados serem


escritos com letras ditas estrangeiras, ou seja, aquelas que não
constavam do alfabeto português. No exemplo do calçado Kichute,
a letra “K” fazia as vezes do advérbio “QUE”, geralmente utilizado
para introduzir orações exclamativas, com o sentido de “QUÃO”.
Assim, o Kichute aludia a um “que chute!”, tal qual o refresco Ki-
Suco, exemplo de outro produto da mesma época, reportava a um
“que suco!”. O emprego da letra “K”, bem como o “W” e o “Y”
em marcas de fantasia, muitas vezes tinham por função remeter a
palavras estrangeiras, sugerindo status e modernidade aos nomes
de coisas e de pessoas (DOIRON & AGUILERA, 2014, p.82).

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O narrador autodiegético de Meninos de Kichute assume a
perspectiva do adulto consciente de que a escrita memorialista que
busca restaurar a infância inevitavelmente interfere na construção
dos elementos narrativos. No pequeno, porém revelador texto
de abertura do romance, assinado por “O Autor”, explicita-se
a decisão de empreender o esforço para manter a essência do
“pivete que eu pensei ter morrido há muito tempo, mas descobri
que ainda ta aqui, me pentelhando, me enchendo o saco”. Dentre
os elementos da narrativa, a linguagem é a principal responsável
pela materialização da memória coletiva, alcançada por meio
da reprodução aproximativa dos atos de fala, não somente do
protagonista, mas de todas as crianças da vila, elegendo como
modalidade linguística predominante a língua falada, ainda que
em sua expressão literária. Em conformidade com tal assertiva,
esclarece: “e agora que lhe dei chance de falar, [o pivete] quer tomar
conta da situação, encher-me de Toddy, jogar figurinhas do álbum
Brasil Pátria Amada, ver Vila Sésamo, me levar às matinês que
não existem mais” (AMÉRICO, 2008, p.15).
Todavia, tal esforço extrapola para além da ilusória
possibilidade de mimetização individual da infância ou de
representação estática do memorialista. Pelo contrário, por meio
da linguagem o narrador coletiviza a memória de uma geração que
emerge metonimizada pelos “kichutes”. No romance, o calçado
preferido das crianças de uma determinada comunidade local de
Londrina se torna símbolo identitário do status de um grupo social,
cujas práticas organizativas transcendem para a representação
coletiva da infância pobre brasileira da geração dos anos 1970.
Além do aludido texto de abertura, outros quatro
paratextos que acompanham a primeira edição, de 2003 – todos
eles de natureza claramente pessoal –, evidenciando tratar-se a

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narrativa de Meninos de Kichute a expressão da memória coletiva.
Na primeira orelha do livro, o ator/humorista Lázaro Câmara
reconhece que “lendo Meninos de Kichute saquei que eu ainda sou
um menino de kichute, muitos ainda são meninos de kichute”;
no texto da segunda orelha, mais técnico, o editor Herman
Schmitz avalia que a obra “retrata e aborda a adolescência de
toda uma geração”; na quarta-capa, cujo texto geralmente visa a
seduzir/persuadir o público consumidor, o poeta Augusto Silva,
após a tentativa de identificar o leitor por meio de uma série de
suposições relacionadas aos traços comuns à infância típica dos
anos 1970, sugere que o calçamento de um kichute é metáfora
de identificação emotiva daquela geração.
O quarto paratexto, publicado à guisa de prefácio no miolo
do livro, foi escrito pelo dramaturgo, ator e diretor teatral Mário
Bortolotto –, cujo título “Caricatura do escritor quando menino
de kichute” sugere o reconhecimento da natureza formativa de
Meninos de Kichute. Nesse texto, produzido num tom próximo
do confessional, Bortolotto – também nascido em Londrina –
expressa o seu pertencimento ao mundo dos “meninos de kichute”
a partir de representações de mutualidade para com o autor
Márcio Américo, a quem chama de “Capitão Américo”. Nele, o
prefaciador reconhece a coletivização da experiência da Rua Ivaí
e vaticina: “A gente nunca conseguiu deixar de ser esses bostas
desses Meninos de Kichute [...]. Ainda vão nos enterrar calçados
com nossos amados kichutes e as mãos cruzadas sobre o álbum
Brasil Pátria Amada” (AMÉRICO, 2003, p.11, 13).
Dessa forma, por um lado, Meninos de Kichute reconstrói a
memória da infância vivida nos anos 1970, seja pela narrativa do
protagonista Beto, seja pelo autor Márcio Américo nele disfarçado;
por outro, configura-se também na reconstituição da infância

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dos anos 1970 compartilhada por Câmara, Schimitz, Silva e
Bortolotto, conforme indicam os paratextos citados. No entanto,
trata-se no final das contas, da reconstituição da memória coletiva
da infância de toda uma geração de meninos pobres dos anos
1970. Reconheço, na verdade – e com o cuidado para não irromper
para o campo pessoal e inapropriadamente confessional –, que a
narrativa de Meninos de Kichute reconstitui traços marcantes da
infância vivida por esse articulista, quando criança num bairro
periférico da Freguesia do Ó, em São Paulo. E mais: um garoto
cuja memória da infância se incorpora à coletivização da memória
individual do menino da Rua Ivaí, Londrina, Paraná, igualmente
envolvido nos “extremados debates sobre a melhor amarra dos
cadarços do Kichute”, (AMÉRICO, 2003, p.139): eu também
usava os cadarços dos kichutes amarrados na sola do calçado
quando ia para o campinho de terra batida jogar uma partida de
futebol valendo a conquista de veneradas flâmulas, mas com os
cadarços amarrados no tornozelo para ir à escola.
Dito de outra forma e em termos que nos remetem aos
estudos pioneiros sobre a memória coletiva, desenvolvidos
por Maurice Halbwachs [1950], 2013), os kichutes expressam
os vínculos com a comunidade afetiva com a qual se forja a
mentalidade, os hábitos e os signos necessários para se lembrar
enquanto membro de um grupo social. Para o sociólogo francês, a
reconstituição da memória ocorre a partir de noções comuns “que
estejam em nosso espírito e também no dos outros, porque elas
estão sempre passando destes para aqueles e vice-versa, o que será
possível se somente tiverem feito e continuarem fazendo parte de
uma mesma sociedade, de um mesmo grupo” (HALBWACHS,
2013, p. 39), coletivizando a experiência.

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A memória reconstituída em Meninos de Kichute,
dialogando com o presente do memorialista literário, incorpora
outros elementos formativos responsáveis pela coletivização da
memória. Ainda segundo Halbwachs, tanto o reconhecimento
quanto a reconstituição da memória dependem da existência de
um grupo de referência, tendo em vista que retomam relações
pessoais, agregam vivências, leituras, apropriando-se dos registros
de outros discursos. Daí, predomina no romance de Américo
as intertextualidades, sobretudo nos títulos de cada um dos 14
capítulos.
Não é objetivo prioritário desse artigo proceder ao exame
detalhado dos aspectos intertextuais dos títulos dos capítulos
de Meninos de Kichute, sobretudo porque ela é suprimida da
linguagem cinematográfica. Todavia, deve-se ater a eles para
realçar a polifonia que se encarna na memória da infância
construída no tempo presente do autor/narrador e que contribui
nesse processo de coletivização. Os títulos dos capítulos refletem
referências ou apropriações parafrásicas de fragmentos de letras
de canções, contos de fadas, filmes, romances, crônicas, peças de
teatro e histórias da bíblia sagrada. O resgate da infância produzido
por Américo revela um conjunto polissêmico de representações
culturais e/ou artísticas responsáveis por transformar a memória
da infância não apenas na malograda tentativa de recuperação
do tempo, mas sobretudo a projeção antropofágica de vozes de
outrem, reais ou ficcionalizadas, que se potencializam em nossas
mentes.
Dessa forma, o início da narrativa da infância de Beto
começa com a fórmula mágica do maravilhoso sugerida pelo
título “era uma vez” dos contos de fadas com que se começa o
capítulo 1; de modo similar, a vivência estudantil no Colégio Rui

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Barbosa remete à gênese da delinquência juvenil retratada no filme
estadunidense blackboard jungle; os conflitos familiares refletem
a reprodução de modelos de valores morais, políticos, religiosos
e culturais, são apontados pelo título da canção “como nossos
pais”; as transformações socioeconômicas da família de Beto e
da Vila Nova são sugeridos pela canção “pogréssio”; a seriedade
como era vivida a paixão pelo futebol é projetada na alusão ao
compêndio de crônicas esportivas rodriguianas em “a pátria de
kichutes”; a omissão ou participação cúmplice no episódio do
garoto mais fraco currado no banheiro da escola é o “fio da navalha”
para a consciência que avançou os limites éticos; o pitoresco
enfrentamento insólito com o sagrado revela a crise espiritual
alimentada pela rígida educação religiosa que precocemente
aguça a consciência perante o clássico dilema “crime e castigo;
as diversões cotidianas da meninada da vila, sobretudo o cinema,
são sublimadas no capítulo homônimo ao filme “brincando nos
campos do senhor”; a aventura extraconjugal do pai é narrada no
capítulo cujo título se apropria da história bíblica do adultério de
“davi e bate seba”; e o epílogo das memórias de Beto aproxima
a identificação dos meninos de kichute com a saga de ítalo-
americanos pobres de “espere a primavera”. Em suma, o que se
pretende enfatizar é que os títulos intertextuais de cada capítulo
contribuem para – além do propósito imediato de lançar luz
para os respectivos conteúdos – inserir a memória individual no
conjunto de expressões artísticas formativo da memória coletiva,
com suas implicações na reconstituição da memória que alarga o
horizonte de recordações referenciadas.

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No escurinho do cinema, na paixão do campinho: a linguagem
do romance e do filme Meninos de Kichute

Por ora, tomamos dois episódios ilustrativos do uso da


linguagem do romance e de sua transcriação para o cinema. O
primeiro é a sessão da matinê dominical do Cine Espacial, na
Rua Araguaia, cuja narrativa ocupa quase que integralmente o
capítulo 12, “brincando nos campos do senhor” e adaptada no
filme a partir de 38’15 até 39’25, com duração apenas de um
minuto. No romance, a sessão de cinema traz um dos filmes de
“Tarzan”, com a mocinha Jane e a macaca Cheeta; é o capítulo
em que se acentuam a violência verbal das crianças e o desejo
pela desordem. Para agredir fisicamente, atingem os demais
com cuspes, catarros, urina; estabelecem território, xingam-se
mutuamente com expressões chulas. Para produzir chistes, gritam
comentários obscenos sobre o filme: “Morde a pica dele”; “Enfia
o dedo no cu deste leão viado!”; “Passa a mão na bunda dela!”,
dentre outros (AMÉRICO, 2003, p.188).
Nada, infelizmente, que não se ouça num pátio de escola de
Ensino Básico dos dias atuais – ainda que, talvez, sem a mesma
intensidade. Mas, o aparecimento dessa linguagem em livro,
espécie de suporte sagrado do modo oficial de dizer o mundo
–, como bem afirmou Peter Hunt (2010, p.208), gera reações,
sobretudo porque “ impresso ainda tem uma qualidade especial
aos olhos de muita gente”. Por isso, registrado no papel, torna-se
pornográfico, justifica a censura.
No caso do cinema, a manutenção dessa linguagem se
tornaria um impeditivo para a classificação de censura livre
do filme (obra destinada a toda família). Provavelmente para
atender a demandas mercadológicas, para além da condensação

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do episódio – mecanismo intertextual comum nesse tipo de
migração dialógica – chama a atenção o tratamento dado para
com a linguagem cinematográfica da cena. A bagunça da turma
se restringe à desorganização da fila de entrada, aos lançamentos
de bolas de papel e pipoca na assistência e nos apupos estridentes.
Nos primeiros acordes do arranjo de Waldir Calmon para a canção
“Na cadência do samba”, de Luiz Bandeira que indicam o início
da projeção do cinejornal “Canal 100”: fiat lux. E instaura-se o
silêncio numinoso (na plateia ou no espírito do protagonista?),
quando a cena opta pela proeminência do sonho, o futebol na
tela grande do cinema como forma de projeção do escapismo da
personagem.
O outro episódio diz respeito à rotina diária do futebol ne rua
ou no campinho de terra, sobretudo conforme narrado no capítulo
9, intitulado “a pátria de kichutes”. Fatores condicionadores da
linguagem – como os cronotópicos, socioculturais ou situacionais
– estão presentes nos episódios narrados quer no romance, quer
no filme. Com maior profusão na obra literária, a linguagem em
sua expressão falada mantém-se com intensidade no filme, nas
cenas em que lida com a prática do futebol entre os meninos,
preservando-se limites: time encardido e bando de rebas; cabeça
de bagre; time com camisa e time sem camisa; cair de maduro;
e agora, caga na mão e joga fora; esse não pega nem resfriado;
Ôloooooooco; os capitães de time tiravam no já quem pô; o Tarzan
e bosta são a mesma coisa; tem prega é macho, não tem é capacho;
“o tempo medido por gols, cinco vira, dez termina”.
Mas, no geral, a linguagem obscena largamente usada
pelos garotos do romance é eliminada do filme. Para se verificar
isso, basta observar a maneira como se registra a oralidade de
competência linguística popular no seguinte diálogo extraído do

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romance, no episódio em os garotos se encontram no campinho
para o futebol, uma fórmula de uso comum nos anos 1970:
“Apresento o meu amigo / De onde (ou, de que terra) ele veio?”. As
sequências, criativas, provocavam a honra do envolvido: “Da terra
do arroz/ E o que que ele merece? A pica de nós dois; Da terra
do café/ E o que que ele merece? A pica do Pelé” (AMÉRICO,
2003, p.137-138).
Ao mesmo tempo em que expressam a paixão pelo futebol
de rua e a classe social de seus usuários, no romance de Márcio
Américo os kichutes conotam outras marcas identitárias, como
orgulho, honra, fibra, virilidade, malandragem: “Nada como calçar
um Kichute novo, com seus cravos de borracha nos elevando do
chão, dando a sensação de estarmos calçando uma chuteira Adidas”
(AMÉRICO, 2003, p.129). Mas era o kichute, também, uma
espécie de identidade coletiva de um grupo específico de garotos
da Vila Nova. No capítulo 9, intitulado “a pátria de kichutes”,
o narrador registra que por meio de uma simples “observação
empírica” se podia “facilmente identificar a procedência de um
garoto apenas mirando seus pés; a ponto de se elaborar “um
minucioso documento”, espécie de extrato psicossocial dos pés:

Tênis Adidas: rico, mio bundinha, não confiável, tem irmã bonita,
ganha presentes de natal, bebe leite todo dia, escola os dentes.
Kichute: pobre, legal, confiável, às vezes tem irmã gostosinha, às
vezes ganha presentinhos de natal, bebe leite, alguns escovam os
dentes.
Chinelo Havaiana: muito pobre, desonesto, não confiável, não tem
irmã e quando tem é meio vagabundinha, não ganha presentes de
natal, só bebeu leite materno, nunca escova os dentes.
Descalço: miserável, esperto, nada confiável, tem irmã puta,
rouba presentes de natal, já toma pinga e fuma, não tem dentes.
(AMÉRICO, 2003, p.130)

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No filme, as diferenças são pacificadas, rumo à idealização
utópica. Numa das derradeiras cenas (90’15), acompanhados em
off pelos versos “Este ano, quero paz no meu coração/ Quem quiser
ter um amigo, que me dê a mão” (da canção “Marcas do que se foi”,
executada por “Os Incríveis”, em disco de 1977), as crianças do
Clube Meninos de Kichute e do Time do Barriguinha se divertem
juntos amistosamente nas águas de um riacho, em pleno armistício.
Formando agora um grupo coeso, sem rixas, a realidade dá lugar à
idealização intensificada pelos versos da citada trilha sonora: “O
tempo passa / E com ele caminhamos todos juntos”. A segregação
social da Vila Nova é anulada momentaneamente, dando lugar à
utopia possível, a qual se consolida por meio da referida técnica
de translocução, condensadas pelas vozes de dois personagens –
um de cada grupo – negando as divisões e imprimindo novas
conotações sígnicas: “Time do Barriguinha, Time dos Meninos
de Kichute!?”; “De Kichute, de Conga, de chinelo, descalço, só
não vou ser menino de chuteira” (90’25).

Fecham-se as cortinas e termina o espetáculo: as considerações


finais

Na literatura infantojuvenil e no cinema brasileiros,


poucos são os títulos que se debruçam sobre a infância pobre.
Predominam, regra geral, as narrativas em que os conflitos da
classe média são retratados. Romances que tratam da infância
pobre – sejam aqueles com traços memorialistas, como o quase
esquecido Menino Felipe (1950), de Afonso Schimidt, e o Meu
pé de laranja lima (1962), de José Mauro de Vasconcelos; ou os
heterodiegéticos, como o precursor A rosa dos ventos (1972), de
Odette de Barros Mott, e A casa da madrinha (1978), de Lígia
Bojunga – são exceções.

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Por isso, a publicação de Meninos de kichute, em 2003, e o
lançamento do filme homônimo, em 2010, são marcos na tentativa
de representação literária deste seguimento marginalizado.
Movimentos culturais contemporâneos que focam as periferias
das cidades brasileiras começam a revelar seus espaços, seus
personagens e suas linguagens, até então estigmatizadas pela
violência, tráfico de drogas, temáticas recorrentes e norteadoras
das narrativas. Em Meninos de kichute – a partir da perspectiva da
criança moradora em uma comunidade pobre de Londrina/PR –,
traços comportamentais, idiossincrasias etnolinguísticas, conflitos
religiosos e fantasias pueris recorrentes são elementos que se
amalgamam no resgate mnemônico de um estrato social excluído,
seja do consumo básico de subsistência, seja da representação
cultural.

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RECURSOS LINGUÍSTICO-ARGUMENTATIVOS
NUMA CRÔNICA DE MACHADO DE ASSIS

Rita de Cássia Simões Martelini (CAPES/PG-UEL)1

RESUMO: Neste trabalho analisaremos uma crônica de Machado de Assis, de


1883, na qual o cronista traça um perfil do acionista da época, definindo-o como um
indivíduo indolente, desconhecedor de finanças e preocupado apenas com os dividendos
da companhia. O seu interlocutor, um carneiro de estimação, procura, então, convencê-
lo de que também é acionista, mesmo apresentando-se em forma de animal. A partir
dessa alegoria, verificaremos como certos recursos linguístico-argumentativos, entre eles, a
adjetivação; a seleção lexical; a metáfora e a ironia conferem argumentatividade à fala
dos interlocutores e contribuem para intensificar o sentido irônico do texto machadiano.
PALAVRAS-CHAVE: Recursos linguístico-argumentativos; acionista; crônica;
Machado de Assis.

ABSTRACT: In this work we’ll analyze a Machado de Assis’ chronicle, written in


1883, in which the chronicler traces a profile of the shareholder who lived in that
time, defining him as an indolent person, who doesn’t know about finances and is
only concerned on the dividends of the company. His interlocutor, a pet ram, then tries
to convince him that he is also a shareholder, even though he is presenting himself as
an animal. From this allegory, we will verify how certain linguistic-argumentative
resources, among them, the use of adjectives; the lexical selection; the metaphor and the
irony provide argumentativity to the interlocutors’ speech and contribute to intensify
the ironic sense in the Machado’s text.
KEYWORDS: Linguistic-argumentative resources; argumentativity; shareholder;
chronicle; Machado de Assis.

Introdução

A criação literária traz como condição necessária uma carga


de liberdade que a torna independente sob muitos aspectos, de tal
maneira que a explicação dos seus produtos é encontrada sobretudo
neles mesmos. Como conjunto de obras de arte a literatura se

1
Doutoranda em Estudos da Linguagem pela UEL. ritamartelini.uel@gmail.com

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caracteriza por essa liberdade extraordinária que transcende as
nossas servidões. Mas na medida em que é um sistema de produtos
que são também instrumentos de comunicação entre os homens,
possui tantas ligações com a vida social, que vale a pena estudar
a correspondência e a interação entre ambas.

Antonio Candido

Desde o século V a.C, os gregos já se preocupavam com a


divisão gramatical em classes. Platão foi o primeiro a sistematizar
esse estudo, seguido pelos romanos, após a decadência grega.
Hoje, a Gramática é estudada em suas cinco partes: Fonética,
Morfologia, Sintaxe, Semântica e Estilística, o que possibilitou
a análise do texto a partir de diferentes olhares, em busca
da construção do sentido. De acordo com Sparano (2011, p.
226): “Observar os aspectos gramaticais e sua expressividade
é, antes de tudo, considerar o valor da palavra, bem como o seu
entrelaçamento no universo discursivo”. É a Gramática que nos
fornece os mecanismos linguísticos pelos quais é possível verificar
os aspectos argumentativos, estilísticos, ideológicos, entre outros,
presentes num texto oral ou escrito.
Para o nosso estudo, escolhemos uma crônica de Machado
de Assis, publicada originalmente na série “Balas de Estalo”2, do
jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em 14 de outubro
de 1883. O objetivo é verificar como certos recursos linguísticos,
entre eles, a adjetivação, a seleção lexical, a metáfora e a ironia
reforçam a argumentação dos interlocutores, o cronista e seu
carneiro de estimação, a respeito da figura do acionista da época, e
2
“Balas de Estalo” foi uma série diária da Gazeta de Notícias e se encontra na Obra Completa
(Editora Jackson e Nova Aguillar). Também está incluída na coletânea de Magalhães Jr.,
Crônicas do Lélio. (Cf. Franco, 2008, p. 39).

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contribuem para intensificar o sentido irônico do texto. Seguindo
o conceito de Bakhtin (1929) sobre a presença da ideologia em
cada signo, entendemos que as impressões e o direcionamento do
sentido também dependem dos vocábulos selecionados, por isso,
faremos um levantamento de alguns itens lexicais que auxiliam
o cronista a corroborar a sua tese de que o acionista é indolente e
preocupado apenas com os lucros da empresa. Conforme explica
Carvalho (1996, p.18): “A palavra tem o poder de criar e destruir,
de prometer e negar (...)”. Segundo a autora, num contexto
argumentativo, a palavra “deixa de ser meramente informativa, e é
escolhida em função de sua força persuasiva, clara ou dissimulada”.
Tratando-se de um texto literário de Machado de Assis,
essa força persuasiva é invariavelmente revestida pela ironia,
figura de linguagem comum aos narradores machadianos e
responsável, em parte, pelo caráter humorístico e pessimista de
sua obra. Segundo Fiorin (2014, p. 69-70), a ironia trata de uma
predicação impertinente, ou seja, de uma inversão semântica em
que o texto não faz sentido ou tem o seu significado invertido.
Essa figura serve para intensificar o sentido, uma vez que finge
dizer uma coisa para se referir exatamente ao oposto. No entanto,
conforme explica o linguista, a compreensão da ironia exige do
leitor a percepção de uma impertinência predicativa, que nem
sempre se refere apenas a um termo ou expressão, mas requer
uma compreensão mais abrangente.
Não se lê uma crônica como se lê uma reportagem,
por exemplo. Isso porque a escrita literária, assim como a
linguagem da propaganda, distingue-se pela criatividade e por
constantemente buscar recursos linguístico-argumentativos
capazes de persuadir e de reforçar a argumentação (Sandmann
(1993, p. 12). Diferentemente de um texto jornalístico, cuja

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linguagem requer menos estilo e mais objetividade, a propaganda
e a literatura são livres para criar e atrair o consumidor ou o
leitor. Mais especificamente no texto literário, a construção do
sentido e dos argumentos necessários à persuasão está relacionada
à subjetividade, ao manejo com a língua e à possibilidade de
ancorar a narração em acontecimentos inverossímeis, como a
personificação de um carneiro.

“Carneiro sou, carneiro fico.”

Nas edições originais, as crônicas de Machado de Assis,


geralmente, não possuem título e são referidas apenas pela data
de publicação, salvo quando intituladas por algum crítico, a partir
de critérios particulares. Outra característica dessas crônicas é que
grande parte delas não foi assinada com o nome de seu autor, que
preferia usar pseudônimos, sobretudo, em épocas conturbadas
de transição do Império para a República. Machado usou o
pseudônimo “Lélio” para assinar as crônicas da série “Balas de
Estalo”; uma personagem que dá voz ao cronista e representa
uma espécie de analista econômico daquele momento histórico.
Na coletânea do ex-presidente do Banco Central, Gustavo
Franco, intitulada A economia em Machado de Assis: o olhar oblíquo
do acionista, as 39 crônicas machadianas que a compõem são
nomeadas a partir de uma “chamada” ou de um fragmento do
texto, cujo critério, segundo Franco (2008, p. 39), “foi o enredo, o
encadeamento temático proporcionado pelo conjunto, e o desejo
de orientar o leitor”. A crônica que analisaremos, por exemplo,
é nomeada na coletânea como “[o carneiro... acionista]”, em que
já sobressai, do ponto de vista linguístico, o uso de reticências. O
economista diz estar ciente de que as suas escolhas representam

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uma “interferência no conteúdo das crônicas”, por tratar-se de
dileção cuidadosamente guiada pela temática financeira, ou seja,
a partir de um motivo particular.
O recorte de Franco para o título da crônica tem valor
subjetivo e, portanto, revelador de um sentido, conforme as
palavras de Carvalho (1996, p.37) sobre a subjetividade da
linguagem e a questão das escolhas:

(...) todas as unidades da língua têm um valor subjetivo, porque


as palavras são recortes do mundo referencial e lhe impõem uma
forma particular de conteúdo. Afinal, nenhum falante descreve
a natureza com imparcialidade absoluta; mesmo que se imagine
neutro, é obrigado de alguma forma a imprimir sua interpretação.
Ao ver-se confrontado com a necessidade de descrever um objeto,
por exemplo, terá de selecionar unidades entre as que compõem
seu repertório, e sua escolha será sempre subjetiva – quer se trate
de termos lisonjeadores, quer de pejorativos.

As reticências favorecem duas possibilidades de classificação


morfológica dos termos “carneiro” e “acionista”. A partir do
trecho selecionado para o título, a tendência é dizer que temos
um substantivo e um adjetivo, respectivamente. Entretanto,
observando o contexto no qual o fragmento se insere [“(...) o
carneiro, seja ou não acionista, morre calado” (63-64) 3], constatamos
que é possível entender “acionista” como substantivo, que nomeia
o indivíduo ao qual o carneiro é comparado.
Segundo Fiorin (2014, p. 88), as reticências ou aposiopese
proporcionam “uma diminuição da extensão do enunciado,
com um consequente aumento de sua intensidade. Trata-se
3
Os termos em itálico nas citações da crônica são grifos nossos e o texto de referência
está em Franco, 2008, p. 49-51. Para facilitar a compreensão da análise, utilizaremos a
numeração de linhas da crônica digitalizada anexa, que aparecerá sempre entre parênteses,
ex. “acionista” (23).

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de uma difusão semântica, porque o espaço em branco ganha
significado”. O pesquisador explica ainda que as reticências são
um procedimento retórico muito utilizado, sobretudo, em textos
literários, por seu caráter subjetivo: “É mais forte dizer sem dizer
do que dizer dizendo”.
No início da crônica, Lélio menciona o não comparecimento
dos acionistas à assembleia geral do Banco Industrial e Mercantil,
argumento que o faz desacreditar na honestidade desses indivíduos:
“Este fato destruiu uma das minhas mais funestas ilusões” (7). O
adjetivo em destaque, proveniente do campo semântico da palavra
“morte”, deixa entrever que já não existe a última ilusão do cronista,
além de conferir humor à sua revelação: Lélio acreditava que o
acionista era uma criatura “obediente” e “pacata” (8), conhecedor
de “cinco até seis palavras da língua, e nenhuma negativa, salvo
quando uma negativa equivale à afirmativa” (9-10), como no
exemplo: – “Parece-lhe que temos andado mal? – Não, senhor.
– Acha que devemos entregar a prebenda a outros cavalheiros?
– Nunca!” (11-12).
Pelos termos em destaque, é possível verificar,
respectivamente, dois numerais unidos pela preposição “até”, o que
proporciona um efeito irônico e, ao mesmo tempo, argumentativo
à suposição do cronista: para ser acionista bastava conhecer
meia dúzia de palavras do idioma, entre elas “não, senhor” ou
“nunca”. Segundo Oliveira (2014, p. 192), esses operadores são
“elementos da gramática que, ligados a determinados enunciados,
encaminham o leitor a uma dada conclusão, intimamente ligada
às condições de uso”.
O jogo semântico instituído pelos termos “negativa” e
“afirmativa” institui uma antonímia, que se caracteriza pelo
emprego de dois termos com sentidos opostos. Na primeira vez

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em que é empregada, a palavra “negativa” (9) é morfologicamente
um adjetivo e refere-se ao termo implícito “palavra”. Aparecendo
pela segunda vez, o mesmo vocábulo, agora antecedido pelo artigo
indefinido “uma” (“uma negativa”), se transforma em substantivo,
estabelecendo uma relação antonímica com a palavra “afirmativa”
(10), também substantivo. Para Carvalho (1996, p. 55 e 57), os
pares antônimos realçam o valor do objeto por causarem impacto
e atraírem a atenção do leitor, sobretudo, quando o equilíbrio e
a regularidade de proporções estão aliados ao paralelismo que se
busca obter.
A partir de uma “alegoria instigante” (Franco, 2008, p. 48),
o cronista relembra como ocorreu a sua persuasão sobre a figura
do acionista. Estava ele com o seu carneiro chamado “Mimoso”
ao portão, quando soube por um vizinho que certa companhia
pagava dividendos; o bicho pôs-se a saltar e a querer sair rua afora.
Tendo sido dominado pelo dono, restou ao animal, para o espanto
do cronista, questionar o porquê de não poder ir, pois ele também
era acionista: “Os cabelos ficaram-me em pé, recuei aterrado,
mas ele tinha os olhos tão meigos, e a voz tão persuasiva, que a
primeira impressão passou” (30-31). O adjetivo “Mimoso”, cujo
significado é terno, afável ou dócil, adquire um sentido irônico na
crônica, por se referir a um animal tradicionalmente pacífico, mas,
ao mesmo tempo, interesseiro, quando na pele de acionista, pois
ele também queria ir receber os dividendos. Enquanto o outro
adjetivo, “aterrado”, instaura uma ambiguidade: estaria o cronista
assustado com a possibilidade de o carneiro falar ou causou-lhe
assombro a revelação de o bicho também ser um acionista?
Ressaltamos, nesse ponto, a capacidade expressiva
do adjetivo e sua eficácia para a intensificação do sentido,
impondo-se, muitas vezes, como termo indispensável ao lado

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do substantivo (Carvalho, 1996, p. 39-40). Dependendo do
contexto, o mesmo adjetivo pode adquirir significados diferentes,
revelando objetividade ou subjetividade, como explica Oliveira
(2014, p. 182): “O adjetivo, quando usado de forma elaborada,
instaura uma relação ideológico-argumentativa entre ele e o seu
referente, que permite constatar e avaliar os traços reveladores de
seu enunciador”. Quanto à ambiguidade, é preciso distingui-la
de imprecisão, pois

(...) quando algo é ambíguo, há dois ou mais modos possíveis de


interpretação; quando é impreciso ou vago, o receptor não pensa em
nenhuma interpretação definitiva, podendo ficar inseguro e confuso
a respeito do significado. Além disso, diferentemente da imprecisão,
a ambigüidade não é acidental. Na maioria dos casos, é resultado
de um cuidadoso planejamento (Carvalho, 1996, p. 58-59).

Outro recurso linguístico-argumentativo que confere


expressividade ao texto é a seleção lexical do cronista, que
evidencia o campo semântico da palavra “carneiro”, a saber:
“criatura obediente, pacata” (8), “Mimoso” (18, 26, 41), “olhos
doces” (27), “olhos tão meigos” (31), “brandura” (32), “focinho”
(41), “morre calado” (64). A afirmativa de Mimoso quanto a ser
acionista, invoca outros animais que, diferentemente da concepção
dicionarizada de carneiro, são vistos como astutos: “Nem creia o
senhor que haja muita onça, lobo ou leão, que compre ações; em
geral são os carneiros, e uma ou outra raposa” (37 a 39).
Como observa Carvalho (1996, p. 47), a seleção lexical
é raramente isenta de carga argumentativa e estabelece, além
do sentido ambíguo, oposição, jogo de palavras, metáforas e
paralelismos. Essas associações dependem, em parte, do receptor
da mensagem que relaciona a linguagem à sua percepção dos

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signos linguísticos. A resposta do carneiro, ao ser questionado
pelo fato de ser o único acionista que não aparece em forma
humana, revela algumas estratégias argumentativas, como o uso
de provérbio popular para validar uma ideia e a omissão de artigos,
para ratificar a preferência pela forma animal:

Nós, os acionistas, temos a faculdade de andar com a forma de


carneiro ou de homem. Eu prefiro a de carneiro, por achá-la mais
cômoda. Quem anda em dois pés, mais facilmente cai; por isso ando
em quatro. Além disso, há de minha parte, nesse procedimento,
um certo amor próprio; − não quero usar cara emprestada. Carneiro
sou, carneiro fico (43 a 47).

O provérbio refere-se, metonimicamente, ao homem,


representado pelos “dois pés” (45), enquanto “cai” (45), na verdade,
não indica queda, mas uma alusão aos insucessos dos seres
humanos, dos quais o carneiro está isento. Com essa tese, seguida
de um operador argumentativo, o carneiro-acionista justifica
sua aparência: “(...) por isso ando em quatro” (45). A ausência de
artigos em “Carneiro sou, carneiro fico” (47) reforça a essência
da palavra e a torna mais persuasiva: ser carneiro é melhor que
ser homem, o que também podemos inferir pelo teor pejorativo
do adjetivo “emprestada”, que qualifica a “cara” do homem. Para
Oliveira (2014, p. 191), “(...) a presença (ou ausência) do artigo
é determinada pela situação discursiva, pela intencionalidade do
enunciador, isto é, a forma como ele deseja transmitir o conteúdo
de seu texto (...)”.
A personificação ou prosopopeia é também um recurso
argumentativo usado por Lélio para persuadir o leitor: na voz do
animal, as confissões que denunciam a indolência do acionista
ganham mais relevância, além de conferir comicidade à situação.

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Para Sandmann (1993, p. 89), quando personificamos alguma
coisa, atribuímos-lhes propriedades que, por natureza, não existem
nela: “O efeito é, naturalmente, estilístico ou expressivo, com
destaque à exaltação das qualidades da coisa (...)”. Na crônica, a
impropriedade semântica, resultado da personificação, intensifica
o sentido e evidencia a conotação negativa que se pretende dar
à figura do acionista, pois, mesmo sendo carneiro, ele continua
interessado nos dividendos.
Da conversa que teve com o bicho de estimação, o cronista
saiu convencido de que o acionista poderia ser realmente um
“carneiro”. No entanto, ao recordar-se desse inusitado episódio,
descobre que a “singular persuasão” foi consequência de uma
“caçoada do animal” ou de uma “alucinação” (49). Lélio retoma,
então, a frustrada convocação do Banco Mercantil e Industrial,
assunto que iniciou a crônica, e argumenta que o acionista não
pode ser carneiro: “Na verdade o caso do Banco Industrial e
Mercantil prova que o acionista tanto não é carneiro, que não
obedece ao chamado. (...) chama-o uma vez, duas vezes, sem
conseguir que ele lá vá” (50-54). Novamente aqui, a escolha
lexical do cronista relaciona-se com o campo semântico da palavra
“carneiro”: obedecer ao chamado é próprio do animal. Se, em vez
disso, ele escrevesse que o acionista não “atende à convocação”,
por exemplo, o efeito de sentido seria prejudicado.
Recordando-se de outro momento de convocação
fracassada da companhia, sobre o qual consultou o carneiro, Lélio
recebe explicação “mais especiosa que verossímil” (63): “Disse-
me que o carneiro, seja ou não acionista, morre calado” (64-65).
Os adjetivos da linha 63 indicam que o cronista não acatou os
argumentos do animal, pois segue acreditando que acionista
não é carneiro, por não atender o chamado da companhia. No

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fragmento das linhas 64-65, a metáfora que permeia toda a crônica
é, finalmente, estabelecida: carneiro e acionista têm em comum o
fato de morrerem calados. A alusão à mudez do acionista relaciona-
se ao seu alheamento nas decisões econômicas da época, que eram
tomadas efetivamente apenas pelo Imperador.
É nesse ponto que chamamos a atenção para a ironia
mordaz do cronista machadiano, ao iniciar e finalizar a crônica
com o mote representativo da única fala que cabe ao acionista nas
assembleias: “– Parece-lhe que temos andado mal? – Não, senhor.
– Acha que devemos entregar a prebenda a outros cavalheiros? –
Nunca! A repetição tem efeito irônico e alicerça o argumento do
carneiro de que o acionista é indolente, importando-se apenas com
os dividendos. Ressaltamos, todavia, que a repetição, enquanto
figura de linguagem, significa “(...) um aumento da extensão de
um dado texto com o emprego, várias vezes, do mesmo segmento
textual (...), para intensificar o sentido expresso” (Fiorin, 2014,
p. 116).

Considerações finais

A crônica de Machado de Assis, sobretudo a que foi


escrita no período pré-abolicionista, revela-nos muito sobre
o funcionamento de instituições, leis e sistemas políticos e
econômicos do Brasil daquela época; é um material riquíssimo
seja do ponto de vista artístico quanto histórico. Machado dedicou
grande parte de sua vida literária e jornalística à crônica, gênero
que lhe rendeu mais de 600 textos, entre 1859 e 1900. Para Franco
(2008, p.13), “(...) ninguém melhor que este cronista para destilar
a grandeza do aparentemente efêmero, e dos aspectos laterais e
reveladores de nossas complexas e nada óbvias inflexões históricas”
[grifo do autor].

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Considerando a crônica machadiana um laboratório
de práticas linguísticas, optamos por explorá-la a partir dos
elementos da língua, explícitos e implícitos, que reforçam a
argumentatividade dos interlocutores e permitem uma leitura
pelo viés da ironia, sem desconsiderar as demais possibilidades
interpretativas.
Entre os recursos linguístico-argumentativos destacados
por nossa análise, enfatizamos a adjetivação, a seleção lexical, a
metáfora e a ironia, como condutoras do sentido e afirmadoras
do potencial artístico do escritor. De um modo geral, na obra
de Machado de Assis, o adjetivo não remete à subjetividade do
sujeito enunciador, antes, é adequadamente escolhido para reforçar
o efeito irônico. Sua função primordial, segundo Oliveira (2014,
p. 182), é “(...) tornar mais viva a manifestação de uma atitude
emotiva diante da realidade”, exteriorizando, assim, os sentimentos
e revelando a capacidade de expressão do ser humano.
A escolha lexical, por sua vez, favorece a compreensão
dos aspectos sociais da linguagem e seu uso está relacionado à
ideologia, pois escolher uma ou outra palavra é também posicionar-
se quanto ao sentido do texto. Termos como “onça”, “lobo”, “leão”
e “raposa” (37-39), por exemplo, empregados pelo cronista para
contrapor o significado de “carneiro”, denotam uma escolha
criteriosa e argumentativa: semanticamente, os quatro animais
estão associados à noção de astúcia e sagacidade, características
que faltam ao acionista e o faz aproximar metaforicamente de um
carneiro, bicho dócil e passivo. A metáfora, como procedimento
discursivo, estabelece, nesse caso, uma “compatibilidade predicativa
por similaridade”, como explica Fiorin (2014, p. 34):

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No eixo da extensão, ela despreza uma série de traços e leva em conta
apenas alguns traços comuns a dois significados que coexistem.
Com isso, dá concretude a uma ideia abstrata (...), aumentando
a intensidade do sentido. Poder-se-ia dizer que o sentido torna-se
mais tônico. Ao dar ao sentido tonicidade, a metáfora tem um valor
argumentativo muito forte.

Para o autor, se a metáfora trabalha com a igualdade


de um traço sêmico, a ironia, por sua vez, estabelece o sentido
pela “inversão semântica do que foi dito” (p. 69). Na crônica
machadiana, a ironia, aliada às escolhas lexicais, configura-se em
uma operação enunciativa solidificadora da argumentatividade:
Lélio não diz que imaginava o acionista como “um homem
submisso e tranquilo, de poucas palavras”, mas uma “criatura
obediente e pacata, sabendo cinco até seis palavras da língua”
(8-9). Além da habilidade do escritor no manejo com a língua,
a captação do sentido também depende da percepção do leitor;
muitas vezes, a dimensão de seus efeitos não se limita a um termo
ou expressão, mas refere-se à obra toda.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas


fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem 4ª ed.
Tradução por Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec,
1988.

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São


Paulo: Ática, 1987.

CARVALHO, Nelly. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo:


Ática, 1996.

FIORIN, José Luiz. Argumentação. São Paulo: Contexto, 2017.

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______. José Luiz. Figuras de retórica. São Paulo: Contexto, 2014.

FRANCO, Gustavo (Org.) A economia em Machado de Assis: o olhar


oblíquo do acionista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

OLIVEIRA, Esther Gomes de. Aspectos ideológico-argumentativos


em um conto de Judith Grossmann. In: OLIVEIRA, Esther Gomes
de; SILVA, Suzete (Orgs.). Semântica e Estilística: dimensões atuais
do significado e do estilo. Homenagem a Nilce Sant’anna Martins.
Campinas, São Paulo: Pontes Editores, 2014.

SANDMANN, Antônio. A linguagem da propaganda. São Paulo:


Contexto, 1993.

SPARANO, Magali Elisabete. Aspectos gramaticais e expressividade


no discurso poético viniciano. In: ANDRADE, Carlos; CABRAL, Ana
Lúcia Tinoco (Org.) Práticas linguístico-discursivas: alguns caminhos
para a explicação teórica. São Paulo: Terracota, 2011.

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ANEXO

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