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Jürgen Habermas e a
virtualização da publicidade
the theses developed in this work have a Horkheimer. No percurso de sua in-
tendency to receive less attention, once tensa carreira intelectual, com saldo
obliterated by the following unfolding of próximo a quarenta livros alguns
the German philosopher research program dos quais indispensáveis para uma
and, more specifically, by the own
reconstituição da história contemporâ-
definition of publicity as a communicative
flux. That is, of course, inside the field of nea da teoria e ciências sociais , as
his theory of communicative action. The reflexões de Habermas foram se des-
following pages offer a reconstructive dobrando em diversos flancos até as-
analysis of this category, present in the sumir o perfil definitivo de um progra-
Habermas research program. It is ma de pesquisa voltado para equacionar
defended that the evolution of this category no plano da teoria geral os grandes de-
is double-faced: even though the pro- safios da modernidade.
gressive gains and abstraction has led to Independentemente do mérito ou
notable conquests in the process of the most
dos alcances e limites desse programa
influent in macro-theory in the last quarter
de pesquisa, é fato isento de controvér-
of the 20th Century. Such conquests have
imposed the duty of separating this sia que esse autor conquistou a posi-
category from its sociologically richer ção de interlocutor obrigatório em dis-
components, trimming its most critical tintos campos da análise social: ora por
analytical implications. suas propostas no terreno da epistemo-
Key-words: public sphere; civil society; logia ou da ética, ora por seus aportes
publicity; Jürgen Habermas. no âmbito das teorias da democracia
ou do direito, ora pelas implicações do
seu pensamento para a compreensão da
A trajetória intelectual de Jürgen ação social ou das tarefas da filosofia e
Habermas começou há mais de quaren- da teoria, mas normalmente graças às
ta anos, se considerado como ponto potencialidades heurísticas de sua
inicial o ano da edição de seu primeiro pragmática universal de índole comu-
livro: Leituras (1958). Ainda nessa dé- nicativa. As páginas que se seguem ela-
cada publicou Estudantes e política boram uma interpretação reconstrutiva
(1959); todavia, a primeira obra do pen- da trajetória intelectual de Habermas
sador alemão a se tornar referência ca- quanto a uma peça-chave do seu pro-
nônica no debate acadêmico, no últi- grama de pesquisa, a saber, a catego-
mo quartel do século XX, viria à luz ria publicidade. O arco de tal itinerário
pouco tempo depois. Com efeito, sua não obedece a uma lógica linear e se-
reconstrução conceptual e seu diagnós- quer a uma evolução necessária, entre-
tico sobre as transformações estruturais da tanto, parece claro que sua reconstru-
publicidade burguesa (1962) introduzi- ção dentro dos limites destas páginas
ram-no nos circuitos internacionais seria improcedente sem lançar mão de
como expressão renovada da origina- certa estilização analítica. Pretende-se
lidade analítica da Escola de Frankfurt elucidar não apenas o conteúdo dessa
mesmo a despeito das críticas de categoria não raro sujeita a mal-
sendo a última opção de uso corrente sociedade civil burguesa, edificada sobre
em português e, aliás, também em in- uma robusta esfera privada, e distinta
glês.3 Os motivos para não verter lite- de outras formas de publicidade como
ralmente Öffentlichkeit como publicida- a plebéia ou a feudal chamada por
de são claros, pois, ao longo do século Habermas de representativa.6
XIX, e sobretudo do XX, o vocábulo per- Na medida em que os traços histó-
deu qualquer referência a seu sentido ricos específicos da publicidade bur-
original, submetido a uma progressiva guesa se inscrevem no multifacetado
ressignificação dentro do campo se- processo de autonomização do social,
mântico da mídia e da propaganda co- eles exprimem uma constelação de fa-
mercial.4 Ainda assim, as soluções es- tores fortemente entrelaçados, porém
colhidas prestam-se a possíveis enga- irredutíveis entre si expansão do
nos. No contexto do trabalho de 1962, mercado, emergência da família nuclear,
a publicidade burguesa conota a um tem- urbanização, proliferação do hábito
po o intrincado processo histórico de social da leitura e auge da imprensa,
gestação do social e as suas conseqüên- entre outros. Nessa constelação, aqui-
cias políticas, quer dizer, o movimento lo que normalmente é designado co-
simultâneo da construção da autono- mo esfera pública corresponde, em
mia material e moral da burguesia, e Habermas, às instituições da publicidade
da projeção dessa autonomia para o consolidadas ao longo da segunda me-
convívio social publicidade literária tade do século XVII e de todo o XVIII;
e para a esfera política publicidade com maior precisão, trata-se de dois
política.5 De um lado, a publicidade re- tipos de cristalização institucional: pri-
mete em termos gerais ao estatuto da- meiro, a afirmação confiante da auto-
quilo que é público, à qualidade ou es- nomia burguesa em práticas e espaços
tado das coisas públicas; do outro, tra- de convívio dialógico clubes de lei-
ta-se de reconstruir a emergência e as tura, salões, casas de café e de chá, reu-
feições de uma publicidade própria da
bito privado, visto se tratar de uma pu- verdade, no plano histórico de longa
blicidade de pessoas privadas.8 duração, a diferença fundamental no
que diz respeito à publicidade repre-
Cabe antecipar que os desenvolvi- sentativa remete à progressiva desa-
mentos do programa de pesquisa de gregação das sociedades baseadas nu-
Habermas levaram-no a redefinir a ma lógica comunitária e na corporifi-
publicidade em termos de fluxos co- cação representativa do poder, e ao
municativos espontâneos, abandonan- correlativo surgimento da sociedade
do, pela abstração do conceito, qual- de indivíduos, da subjetividade mo-
quer pressuposto empírico notada- derna do íntimo, da privacidade e do
mente a existência de um suporte ins- interesse particular com seu corres-
titucional consolidado. Entrementes, pondente mundo do social.10 Aqui, uti-
quanto às ressalvas com relação à apli- liza-se o termo original publicidade,
cação anacrônica da idéia de esfera preservando-se a um tempo seu senti-
pública, os traços da publicidade bur- do histórico mais abrangente e sua co-
guesa recém-assinalados são especifi- notação de espaço de interação dialó-
camente modernos, e, de fato, induzi- gica atrelado a uma base institucional
ria a sérios equívocos de interpretação autônoma. Como será visto, à medida
falar em esfera pública representati-
va ou esfera pública plebéia, pois
inexiste nesses casos uma instituciona- um âmbito social, como uma esfera da publicida-
lidade privada, abonada social e poli- de; é mais algo assim como uma categoria de
status se permitido utilizar o termo nesse con-
ticamente como legítima em sua fun- texto. Historia y crítica, op. cit., p. 46.
ção de veicular e intermediar interes- 10. Aliás, é bem conhecido quanta atenção dedi-
ses oriundos da sociedade diante das cou Arendt para esquadrinhar as conseqüências
instâncias do poder político. Não se da constituição do social como oposto ao políti-
co, porém, também ao privado: [...] a aparição
trata de ressalva meramente hipotéti-
da esfera social, que a rigor não é pública nem
ca; na tradução ao português intitulada privada, é fenômeno relativamente novo, cuja ori-
Mudança estrutural da esfera pública en- gem coincidiu com a chegada da Idade Moderna
contram-se, por exemplo, expressões e cuja forma política foi encontrada na nação-
como as seguintes: esfera pública ple- Estado. ARENDT, Hannah. (1993), La condicion
humana. Barcelona, Paidós, p. 41. Para as diferen-
béia, esfera pública helênica, esfe- ças entre as sociedades comunitárias e a socieda-
ra pública de representação cortesã- de moderna, no que tange à configuração do es-
feudal ou, ainda, esfera pública em paço público, cf. CÓRDOVA, Arnaldo. (1984),
sua configuração representativa9. Na Sociedad y Estado en el mundo moderno, México,
Enlace/Grijalbo, pp. 21-68; MACHADO DE
ACEDO, Clemy. (1996), Individuo, sociedad,
8. HABERMAS, Jürgen. (1994), Historia y crítica, Estado: tensiones y oposiciones entre el interés
op. cit., p. 68. privado y el interés público. In: GARCÍA-
9. Tais expressões aparecem, respectivamente, nas PELAYO, Graciela Soriano de e NJAIM, Humberto.
páginas 10, 16, 21 e 25. Quanto à publicidade (eds.). Lo público y lo privado Redefinición de los
representativa, Habermas foi bastante explícito: ámbitos del Estado y de la sociedad. Caracas,
A publicidade representativa não se constitui como Fundación Manuel García-Pelayo, pp. 63-94.
tituições dessa publicidade não foi re- vos e regras do poder. Por essa via,
gida por cláusulas de hierarquia ou de estabelece-se vínculo forte entre a ca-
prestígio social, senão por uma solida- pacidade crítica do homem comum e a
riedade horizontal entre indivíduos razão como único parâmetro universal
contrapostos ao poder; mais: embora de acesso irrestrito, cujos efeitos me-
fossem pessoas privadas no sentido de diatos produziram resultados libertá-
possuidoras de propriedade, tais indi- rios ao erguer o imperativo da trans-
víduos reputavam-se representativos parência e da responsabilidade res-
dos interesses da sociedade e do ho- ponsável e responsivo diante das
mem em geral da paridade dos me- decisões da esfera política.18
ramente homens, conforme expresso Por fim, a opinião pública emana-
pela autocompreensão da época.16 Nes- da do conjunto de instituições sociais
se sentido, não há na distinção operante da publicidade, potencialmente aber-
entre homem e proprietário qualquer tas e animadas pelo agir dialógico de
quesito funcional; muito pelo contrá- seus integrantes, cristalizou sua própria
rio, trata-se de diferença encoberta por legitimidade como depositária da for-
uma identidade fictícia que alavancou ça democratizadora da razão; mas foi
efetivamente processos de emancipa- muito além disso e imprimiu o princí-
ção política, tornando viável resgatar pio da publicidade no funcionamento
o princípio universal da igualdade no das instituições políticas, conferindo-
plano da participação. 17 Segundo, a lhe o estatuto de condição sine qua non
substituição das hierarquias pelo exer- da democracia tal como mostrado,
cício do raciocínio e da concorrência de para Habermas, pelo caso paradigmá-
argumentos com pretensões de validez tico do parlamentarismo britânico.19 A
enquanto eixo na dinâmica das prá- partir do momento em que o princípio
ticas e instituições da publicidade , da publicidade tornou-se irrenunciável
descansa no pressuposto de os argu- para todo arcabouço institucional de-
mentos utilizados como fundamento mocrático, a esfera política não mais
serem passíveis de compreensão por pôde se manter hermética ante os re-
todo homem, sem mais exigências que clamos de uma opinião pública ativa, e
o uso da razão; isto é, os critérios de teve de desenvolver dispositivos sen-
validez do discurso em público pres- síveis aos consensos sociais emergentes
cindem do apelo à autoridade, do se- the sense of the people, the common
creto ou do aprendizado de saberes
exclusivos mediante a inserção dos in- 18. Ibid., pp. 115-123
divíduos em grupos vocacionados pa- 19. De certa forma, Reinhart Koselleck representa
ra entender e/ou questionar os moti- um contra-exemplo nesse ponto, pois, preocupa-
do como a relação entre crítica e crise política,
enfatizou na sua análise da gênese cultural da
16. HABERMAS, Jürgen. (1994), Historia y críti- ilustração o papel dos casos francês e alemão.
ca..., op. cit., p. 74. Cf. KOSELLECK, Reinhart. (1979), Le regne de la
17. Ibid., pp. 92-93. critique (1959). Paris, Les Editions de Minuit.
voice, the general cry of the people, the zão identificada com a sociedade como
public spirit, segundo as denominações única fonte de legitimação do poder e
utilizadas nos embates parlamentares de suas decisões, em face das formas
da Inglaterra do século XVIII 20. Em pré-burguesas de domínio público, nas
suma, os princípios da inclusão univer- quais a legitimidade da lei era emana-
sal, do juízo baseado em pretensões de ção direta da autoridade.
validez universais a razão versus o É bem conhecido que no mesmo
privilégio , e a adequação da esfera movimento de reconstrução conceitual
política a esses princípios sob os influ- da publicidade burguesa, do seu iné-
xos de uma crítica pública socialmente dito potencial para a autodetermina-
impulsionada subjazem no fundo da ção dos rumos da vida social median-
publicidade burguesa enquanto prin- te a articulação de fluxos comunicati-
cípios programáticos modernos: vos dirigidos a pressionar o poder, Ha-
bermas diagnosticou o desacoplamen-
O interesse de classe é a base da opi- to irreversível das condições estrutu-
nião pública. Durante aquela fase, ele rais que lhe deram sustento. Nessa
deve ter se confundido de tal forma, perspectiva, o curso da história com-
objetivamente, com o interesse geral, prometia a força emancipadora da pu-
que essa opinião pôde passar por opi-
blicidade moderna, pelo menos no
nião pública e racional possibilita-
da pelo raciocínio do público [...] À ba- quadro de seus pressupostos liberais
se do progressivo domínio de uma clássicos: um público raciocinante e
classe sobre a outra, esse domínio de- esclarecido; um âmbito privado ainda
senvolve, contudo, instituições políti- composto essencialmente por proprie-
cas cujo sentido objetivo admite a tários iguais o que, aliás, fez com
idéia de sua própria superação: que durante muito tempo a iniciativa
veritas, non auctoritas facit legem; a idéia privada fosse sinônimo da iniciativa
da dissolução da dominação naquela dos indivíduos particulares e não do
leve coação que apenas se impõe na
capital ; um Estado com severas res-
evidência vinculante de uma opinião
trições quanto ao espaço legítimo de
pública.21
sua intervenção; a inexistência de gran-
A passagem da frase auctoritas facit des corporações de classe, quer do la-
legem, formulada por Thomas Hobbes, do dos proprietários, quer do lado do
para sua subversão em veritas non auc- trabalho; e o teor verdadeiramente
toritas facit legem a verdade, não a representativo de uma opinião públi-
autoridade, é que faz a lei ilustra ca não mediatizada, cuja incipiente
de forma sintética a introdução da ra- base institucional não visava a mercan-
tilizar os veículos de transmissão co-
mo objetivo essencial.22 O exame des-
20. HABERMAS, Jürgen. (1994), Historia y críti-
se diagnóstico negativo, por via de re-
ca..., op. cit., p. 101.
21. Ibid., p. 122. 22. Ibid., pp. 173-260.
gra julgado como herdeiro da escola Não se sabe de verdade se esta so-
de Frankfurt, escapa aos propósitos ciedade cultural só reflete a força do
destas páginas; em todo caso, é fato belo profanada com fins comerciais e
que em sua trajetória intelectual o au- de estratégia eleitoral, e com isso uma
cultura de massas privatista e seman-
tor enveredou no plano da macro-
ticamente rarefeita, ou se a mesma po-
teoria para a resolução desses e de deria constituir uma caixa de resso-
outros problemas, aprimorando a es- nância para uma publicidade revi-
pecificação conceitual do seu modelo talizada, na qual a semente das idéias
de publicidade. de 1789 apenas estivesse por nascer.24
Porém, convém assentar que as
transformações estruturais apontadas Além do mais, tanto pela via do pro-
por Habermas, em e para além de sua cesso histórico de privatização das ati-
obra, salientam o caráter problemático vidades destinadas à reprodução social,
da publicidade moderna, pois, diferen- quanto pela via da emergência e con-
temente da centralidade do mercado, solidação de uma instância de su-
da secularização, da expansão da so- jeitos privados o mercado como
berania legítima do interesse indivi- questão de interesse para o conjunto
dual ou de outras tendências de longa da sociedade, essa publicidade respon-
duração já consumadas na moderni- de e é conformada, na sua origem, por
dade, ela, como de resto a própria de- exigências e transformações amadure-
mocracia, dista de ser um fato estável cidas no mundo privado. Trata-se de
e garantido; antes, encontra-se consti- exigências por certo conflitantes, pois,
tuído por campo de tensões que a um de um lado, aparece o problema da
tempo preserva e põe à prova seus al- integração social particularmente em
cances na realização do ideário políti- face da desagregação das formas de
co da modernidade.23 É emblemático vida comunitárias , enquanto, do ou-
que Habermas tenha enfatizado o ca- tro, coloca-se a necessidade de garan-
ráter ambíguo ou não garantido dessa tir e regulamentar a dinâmica econô-
dimensão social moderna depois do seu mica do mercado, precisamente res-
trabalho sobre a publicidade burgue- ponsável pelo problema moderno da
sa, e mais de um lustro após ter con- integração.25 Assim, aceita-se a recons-
cluído sua teoria da ação comunicativa:
Recebido em 19/8/2002
Aprovado em 30/10/2002