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O Sofrimento Psíquico de Agentes Comunitários

de Saúde e Suas Relações com o Trabalho


The Psychological Distress of Community Health Agents and
its Relations to Working Conditions

Alcindo José Rosa Resumo


Professor Doutor do Curso de Psicologia da Universidade Federal
de Mato Grosso/Campus Universitário de Rondonópolis. O estudo tem a finalidade de analisar aspectos que,
Endereço: Rua A112, nº19, CEP 78735-482, Rondonópolis, MT, quando presentes nas condições e relações de traba-
Brasil. lho de Agentes Comunitários de Saúde (ACS), podem
E-mail: alcindorosa@uol.com.br
relacionar-se ao desencadeamento de sofrimento
Ana Letícia Bonfanti psíquico nestes profissionais e, consequentemen-
Graduada em Psicologia na Universidade Federal de Mato Grosso/ te, impedir que tenham uma postura profissional
Campus Universitário de Rondonópolis.
ativa e mediadora, tanto para a garantia do direito
Endereço: Rua das Paineiras, 98, CEP 78740-590, Rondonópolis,
MT, Brasil.
à saúde quanto para a operacionalização dos ser-
E-mail: analeticiabonfanti@hotmail.com viços de saúde. Para o delineamento conceitual e
caracterização do fenômeno estudado, recorreu-se
Cíntia de Sousa Carvalho
ao corpus de conhecimentos produzidos por Dejours,
Mestre e doutoranda em Psicologia pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. que ofereceu, nas últimas décadas, importantes
Endereço: Avenida Padre Leonel Franca, 261/607 (Edifício Marquês contribuições para a compreensão da Psicodinâmica
de São Vicente), Gávea, CEP 22451-000, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. do Trabalho e suas consequências. A pesquisa foi
E-mail: cintiapsicologia_51@hotmail.com realizada durante uma intervenção em unidade de
saúde da Estratégia Saúde da Família do município
de Rondonópolis (MT); para a coleta de dados foram
realizados os seguintes procedimentos: grupos
de conversa e entrevistas abertas com agentes co-
munitários de saúde, observação do trabalho que
realizavam e entrevistas abertas com a população
usuária das unidades. A apreciação dos resultados
partiu do registro cursivo e análise dos discursos
captados durante as atividades e foi feita por meio
de categorias, que foram analisadas. Considerou-se
que há situações que caracterizam a sobrecarga de
trabalho do ACS em vários âmbitos. Duas consequên-
cias foram apontadas, uma relacionada com a perda
das especificidades da profissão, o que parece levar
ao desvirtuamento das atribuições profissionais, e a
outra associada à insalubridade das condições e rela-
ções de trabalho. Ambas parecem estar relacionadas
com a produção de sofrimento psíquico nos agentes
comunitários de saúde, o que pode ser minimizado
com maior empoderamento destes profissionais.
Palavras-chave: Sofrimento Psíquico; Profissional
de Saúde; Sobrecarga de Trabalho.

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Abstract Introdução
This work intends to analyse some aspects that, Este estudo tem a finalidade de analisar aspectos
when they are present in community health agents’ que, quando presentes nas condições e relações de
working conditions and relationships, can be linked trabalho de Agentes Comunitários de Saúde (ACS),
to the onset of psychological distress in these profes- podem estar relacionados ao desencadeamento de
sionals. Consequently, they can impede them from sofrimento psíquico nestes profissionais. Vários
having an active and mediating attitude, both for the estudos (Martines e Chaves, 2007; Wai, 2007; Pu-
guarantee of the right to health and for the operation pin, 2008; Jardim e Lancman, 2009) indicam que
of the health care services. For the conceptual design grande parte destes profissionais trabalha com
and characterisation of the phenomenon in ques- circunstâncias de agravos à saúde da população que
tion, we based ourselves on the knowledge produced transcendem suas possibilidades de resolutividade e
by Dejours, who has offered, in the last decades, mesmo suas atribuições profissionais. Por um lado,
important contributions to the understanding of the entram em contato com diversas vulnerabilidades da
Psychodynamics of Work and its consequences. The população, e, por outro, deparam-se com as questões
research was carried out during one intervention técnico-administrativas que, geralmente, limitam a
in a health care unit of the Family Health Strategy, efetividade de suas ações, mantendo-os, portanto,
in the city of Rondonópolis, State of Mato Grosso numa posição paradoxal.
(Central-western Brazil), and for data collection we Tal situação tem sido descrita como sobrecarga
adopted the following procedures: talk groups and de trabalho do ACS e tem sido relacionada à vulnera-
open interviews with community health agents, bilidade destes profissionais ao sofrimento psíquico
observation of their work and open interviews with (Martines e Chaves, 2007; Wai, 2007; Pupin, 2008).
users of the health care units. The appraisal of the De acordo com Pupin, a sobrecarga de trabalho se
results started from the written register and analy- caracteriza pelo conjunto de altas exigências impos-
sis of the discourses produced during the activities tas ao trabalho dos ACS, pela pouca valorização do
and it was performed through the construction and trabalho e pelo intenso envolvimento emocional com
analysis of categories. We consider that there are os usuários. Este cenário pode trazer um quadro de
several situations that characterise the community exaustão física e psíquica, e, consequentemente, o
health agent’s work overload in many spheres. Two desinteresse pelo trabalho (Benevides-Pereira, 2002;
consequences have been identified: one is related to Wai, 2007).
the loss of the profession’s specificity, and the other Tal como apontado nas investigações de Wai
is associated with the insalubrity of working condi- (2007), o estudo leva em consideração que, diante de
tions and relationships. Both of them seem to be tais circunstâncias, os agentes comunitários de saú-
related to the production of psychological distress in de desenvolvem mecanismos de enfrentamento que
community health agents, which can be minimized amenizam as dificuldades do trabalho e que podem,
with the empowerment of these professionals. portanto, torná-lo prazeroso e produtivo. Entretanto,
Keywords: Psychological Distress; Health Profes- fizemos um recorte e optamos apenas pela análise
sional; Work Overload. da conjuntura que circunda o exercício da profissão,
suas características e os sentidos atribuídos.
Assim, considerando que o cenário de acentua-
das contradições não colabora para a espontanei-
dade do trabalho e nem para que seja gratificante,
perguntamo-nos se tais condições de trabalho são
indutoras de sofrimento psíquico em agentes comu-
nitários de saúde e quais correspondências podem
ser estabelecidas.
Estes questionamentos surgiram durante uma
intervenção com estagiários de Psicologia em uni-

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dade de saúde da Estratégia Saúde da Família (ESF) que o trabalhador, geralmente, está submetido aos
do município de Rondonópolis (MT). Ao longo das constrangimentos do trabalho (Dejours, 1993).
atividades, fomos nos tornando conscientes das Assim, somente podemos considerar como nor-
queixas dos agentes comunitários de saúde e perce- malidade o precário equilíbrio adotado pelas defesas
bemos que tinham como eixo a insatisfação com as psíquicas do trabalhador diante das adversidades
condições em que realizavam o trabalho. Notamos do trabalho, situação na qual tem sua subjetividade
ainda que, para além da sobrecarga de trabalho, restringida pelo trabalho, o que gera sofrimento (De-
existiam dificuldades nas relações interpessoais jours e col., 1994; 1999). Neste sentido, o trabalhador
no ambiente de trabalho que também pareciam se é vítima de seu próprio trabalho, pois, nesta situa-
relacionar ao desprazer relatado. ção, não obterá a gratificação outrora vislumbrada,
Tendo em vista o enorme e repetitivo conjunto de mas tão somente sofrimento (Dejours, 1998).
queixas expressas pelos ACS, como “não sei o que Outra importante contribuição da Psicodinâmi-
fazer”, “me sinto impotente”, “assim não dá”, “fico ca do Trabalho refere-se à concepção de que laços
cansada”, “é difícil”, “não dá certo”, “estou no limite”, afetivos são estabelecidos com o trabalho. Assim,
“tenho que estar bem para poder trabalhar bem”, quando caracterizado por aspectos gratificantes, o
dentre outras, passamos a ponderar que se tratava trabalho produz bem-estar e prazer; entretanto, de
de modos de expressar as situações de sofrimento outro modo, quando a subjugação está presente, o
psíquico e que estas mantinham interfaces com o resultado é a produção de sofrimento, que pode ser
trabalho. expressa a partir da matriz amor e ódio, compondo
binômios, como alegria ou tristeza, entusiasmo ou
desânimo, entre outros. Neste sentido, a persistente
Referencial Teórico identificação da díade trabalho/sofrimento pode
A Psicodinâmica do Trabalho levar à desafetação do trabalhador pelo trabalho,
o que pode torná-lo intolerável (Codo e col., 1993;
Com o fito de compreendermos conceitualmente o
Dejours, 1999).
fato delineado acima e caracterizá-lo, recorremos
A partir deste referencial, podemos considerar
ao corpus de conhecimentos produzidos por De- que as queixas dos agentes comunitários de saúde
jours (1998), que ofereceu, nas últimas décadas, revelam certo estado de sofrimento no trabalho e
importantes contribuições para a compreensão da demonstram o mal-estar psíquico vivenciado por
Psicodinâmica do Trabalho. De maneira geral, o estes trabalhadores frente às tarefas do cotidiano
autor afirma que, no modelo taylorista, era o corpo e à impossibilidade de obter, a partir delas, algum
do trabalhador, dócil e disciplinado, que primeiro foi bem-estar e identificação.
identificado como sofredor. Foi apenas a partir do
desenvolvimento técnico e industrial, situação na O ACS: a invenção de um profissional de saúde
qual a força física perdeu importância no âmbito da Com o advento do arcabouço legal do Sistema Único
produção, que outras dimensões humanas se mos- de Saúde (SUS), proclamado pela Constituição, em
traram necessárias para a realização do trabalho e 1988, e a consequente descentralização nos anos
que se revelaram as especificidades do sofrimento vindouros das ações de saúde para os estados e mu-
mental e suas relações com a organização do traba- nicípios, evidenciou-se a necessidade de os serviços
lho (Dejours, 1998). locais se organizarem para que houvesse maior
Dejours considera que o sofrimento psíquico no efetivação dos serviços de saúde. Dessa forma, em
trabalho sinaliza o espaço de luta que ocorre, por um 1994, foi criado o Programa Saúde da Família como
lado, pela busca do bem-estar e, por outro, pela pos- maneira de operacionalizar as mudanças da atenção
sibilidade de adoecimento mental. Destaca, ainda, básica que, desde o início da Reforma Sanitária,
que, na contemporaneidade, o equilíbrio mental nas vinham sendo preconizadas. Em 2006, por meio da
organizações de trabalho deixou de ser a regra e se Portaria nº 648/GM, estabeleceu-se que o Programa
tornou a exceção, impossibilitando a consideração Saúde da Família seria uma estratégia de Estado,
de que haja normalidade psíquica no trabalho, já por meio da qual o país organizaria a atenção bási-

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ca de modo a possibilitar o acesso da população ao saúde quanto para a operacionalização dos serviços
SUS e garantir a consolidação de seus princípios e de saúde.
diretrizes. Neste sentido, Nogueira e colaboradores (2000)
Acerca do surgimento do agente comunitário afirmam que a mediação realizada pelos ACS é um
de saúde, embora desde o final da década de 1970 modo de facilitação do acesso aos direitos de cida-
houvesse propostas semelhantes ao atendimento dania. De maneira semelhante, Bornstein e Stotz
de demandas de saúde por agentes comunitários, (2008) dizem que a mediação ocorre apenas quando
foi apenas em 1987, no estado do Ceará, como parte há um compartilhamento de conhecimentos e maior
de um programa emergencial de trabalho, que tal permeabilidade dos serviços de saúde para acolher
experiência foi realizada com sucesso. Os objetivos as necessidades e demandas da população.
que norteavam a prática estavam ligados às questões Em relação a esta temática, Silva e Dalmaso
de agravos à saúde decorrentes da seca, como a mor- (2002) afirmam que o trabalho do ACS desenvolve-
talidade materno-infantil. Em 1991, essa atividade se em dois âmbitos: um técnico (biomédico) e outro
foi institucionalizada com a criação do Programa político. Este último resgata um compromisso
Nacional de Agentes Comunitários de Saúde (Brasil, social com a cidadania dos usuários do SUS e é um
1991) que, posteriormente, se estendeu para outros dos meios de garantir à população o acesso aos
estados brasileiros. A partir de 1994, o Programa serviços de saúde, especialmente às camadas mais
Agente Comunitário de Saúde (PACS) integrou-se ao vulneráveis.
Programa Saúde da Família (PSF). Um dos objetivos Temos, portanto, que, embora a profissão do ACS
do PACS era o atendimento da população que, por tenha nascido no contexto brasileiro a partir de uma
diversos motivos, não procurava o serviço público situação inusitada, os desdobramentos que ocor-
de saúde, demanda, até aquela época, praticamente reram com o desenvolvimento da implantação do
negligenciada pelos serviços públicos. SUS, ela tem se caracterizado como uma experiência
Apesar do considerável aumento das unidades de revolucionária e capaz de inverter a lógica centrada
saúde da família nos anos que se seguiram à criação no saber médico-assistencialista.
do PSF e, consequentemente, a massiva contratação Apesar disso, a massificação da profissão tem
de ACS, foi apenas em 2002 que legalmente se reco- distorcido suas atribuições, servindo, muitas ve-
nheceu a profissão do ACS que ocorreu por meio da zes, como cabos eleitorais e, em outras, como ad-
Lei 10.507, de 10 de julho de 2002. De acordo com ministradores de demanda em saúde, aspecto que
seu art. 2º, a profissão de ACS caracteriza-se pelo foi criticado por setores contrários à estratégia de
exercício da atividade de prevenção de doenças e de saúde da família, chamando-a de saúde de pobre para
promoção de saúde, mediante ações domiciliares ou pobres, conforme relatado por Pupin (2008). Além
comunitárias individuais ou coletivas, desenvolvi- dessa questão, que numa das pontas parece ser ideo-
das em conformidade com as diretrizes do SUS e sob lógica, tem chamado a atenção a forma da gestão do
supervisão do gestor local (Brasil, 2002). trabalho do ACS e, consequentemente, a qualidade
Desde então, o profissional ACS tem sido visto dos serviços de saúde oferecidos pelos e para os ACS.
como um elo importante nas políticas de saúde Assim, é nesta interface que surge a necessidade de
e imprescindível para o SUS. Entretanto, com a investigações dos aspectos que prejudicam a efici-
massificação da profissão e extensão da Estratégia ência do trabalho destes trabalhadores, o que vem
Saúde da Família aos diversos rincões do país, pre- sendo feito por vários grupos de pesquisa.
dominou a visão de que o ACS é mero transmissor
de informações, profissional passivo a serviço da
administração de demandas em saúde e outros
Método
interesses, por vezes, político-eleitorais. Contrário O estudo é de natureza qualitativa e resulta da siste-
a esta ideia, a concepção do trabalho do ACS prevê matização de um conjunto de informações que foram
que deve configurar-se por uma postura profissional obtidas por meio de: (a) realização de sete “grupos
ativa e mediadora, tanto para a garantia do direito à de conversa” com seis ACS; (b) entrevistas abertas

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com seis ACS; (c) acompanhamento, na condição dução de sofrimento psíquico gravitavam em torno
de observador, de cinco visitas domiciliares feitas de alguns eixos, que foram elencados em quatro
por dois ACS; (d) entrevistas abertas com cinco categorias, referentes (I) às expectativas dos ACS
usuários de dois Núcleos de Saúde da Família (NSF) acerca do que seria a profissão; (II) à forma que fo-
da Secretaria Municipal de Saúde de Rondonópolis ram capacitados para o exercício profissional; (III)
(MT) (este município localiza-se a cerca de 210 km ao envolvimento afetivo com a população e seus
de Cuiabá (MT) e, segundo estimativas do IBGE, para problemas; (IV) à culpabilização, tanto por parte da
o ano 2010 sua população ultrapassará a marca de população quanto da administração, por eventuais
180 mil habitantes. Destaca-se economicamente insucessos das ações de saúde do NSF.
como importante polo agropecuário e agroindus-
trial, congregando outros 18 municípios da região
sul-mato-grossense).
Discussão dos Resultados
A realização dos grupos de conversa foi pautada A. Ninguém aqui sonhava em ser agente de saúde
pelo uso de recursos técnicos derivados do trabalho quando era pequeno... ou sobre as expectativas
com grupos operativos, tal como foi classicamente ao iniciar-se na profissão
descrito por Pichon-Rivière (1982). Segundo o au-
De certa maneira, os ACS mostraram-se desiludidos
tor, o grupo operativo é uma técnica que pressupõe
com o próprio trabalho, processo que parece ter
que a organização do campo grupal é fluída e está
início nas primeiras experiências na profissão. A
em constante movimento, e, quando diante de uma
este respeito, a fala da ACS Juliana foi ilustrativa:
tarefa, adota certa configuração que mobiliza a
“Estou neste trabalho faz um tempão, uns dois anos.
expressão dos aspectos pessoais dos participantes
No início, achava que iria resolver os problemas do
do grupo. Aos participantes do grupo estudado foi
bairro. Tive que tomar cuidado porque a agente que
proposto que expressassem reflexões acerca da
temática “ser ACS”. estava antes de mim entrou em depressão por causa
Com a apresentação do Termo de Consentimen- da profissão e tentou se suicidar, ela pensava igual-
to Livre e Esclarecido (TCLE), que, entre outros zinho a mim, achava que ia resolver os problemas
aspectos éticos, garantiu o anonimato no caso de do mundo. Fico muitas vezes decepcionada, nem as
publicação, todos os participantes das atividades o pessoas e nem a equipe reconhece meu trabalho, às
assinaram e se disponibilizaram voluntariamente, vezes, dá vontade de jogar tudo para o alto”.
consentindo livremente o uso das informações que, Percebe-se que as expectativas de Juliana ao
quando reportadas a um ou outro, foram identifica- iniciar-se na profissão não contemplavam a real
dos com nomes fantasia. As informações obtidas dimensão dos problemas que iria encontrar em seu
(narradas e observadas) foram transcritas em diário bairro. Ela imaginava que seria capaz de resolvê-
de campo. Ao final da fase de coleta de dados, o mate- los, mas, além de não conseguir resolvê-los, não
rial transcrito compôs o documento de pesquisa e foi se sente reconhecida com o trabalho que consegue
submetido à análise de conteúdo, tal como proposto fazer. Em relação a este aspecto, Tomaz (2002) afir-
por Bardin (1997). Conforme operacionalização indi- ma que a excessiva responsabilização no trabalho
cada por Franco (2005), após a seleção de unidades sobrecarrega os profissionais e é um dos maiores
de registro, contexto e leitura flutuante, foi feita a responsáveis pela geração de sofrimento em ACS.
exploração e tratamento do material, que culminou Criou-se uma imagem “romantizada” desse profis-
na elaboração de categorias, que, em seguida, foram sional, que é sustentada tanto pelos próprios ACS,
analisadas. por causa dos afetos envolvidos na relação com a
população assistida, quanto pela própria população,
que compartilha do envolvimento. Além disso, os
Resultados demais membros da equipes os responsabilizam por
A exploração do material foi demonstrando que as questões que, muitas vezes, não estão no escopo de
temáticas relativas às condições de trabalho e pro- suas atribuições.

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Tomaz (2002) acrescenta que o ACS não deve ser modelo biomédico, enquanto que no trabalho do ACS,
um super-herói; suas atribuições devem ser clara- estas dimensões têm uma natureza diferenciada,
mente estabelecidas como profissional participante que se pauta pelo paradigma da produção social
de uma equipe de saúde. Seu papel deve ser mais da saúde, concepção que, geralmente, não gravita
claro e específico. Também Fortes (2004) acrescenta de maneira efetiva nas representações da saúde
que esta é uma questão central nas queixas dos agen- nos profissionais da área e nem nas expectativas
tes de saúde, pois, muitas vezes, a não delimitação da população. Aponta-se, portanto, que este dilema
técnica de sua área de atuação pode acarretar um vivenciado pelo ACS está muito próximo da cisão,
trabalho sobrecarregado. se não da própria divisão, que também caracteriza
Outra questão surgida referiu-se às condições o campo da saúde pública versus saúde coletiva
de escolha da profissão de ACS. A maioria disse que e que dificilmente chega a ser esclarecido a estes
não desejava ser agente de saúde. Parte afirmou que profissionais ao longo da formação.
estava trabalhando como ACS apenas temporaria- Bachilli e colaboradores (2008) constataram
mente, pois pretendia ter outra profissão. Outros que a opção pela profissão de ACS decorre muito
afirmaram que precisavam trabalhar de ACS para mais das limitações e lacunas das escolhas feitas
ter um meio de subsistência. anteriormente do que pela apropriação consciente
A este respeito, Josemara disse: “Na verdade, eu desse espaço profissional. Assim, tal como os dados
não escolhi ser ACS, surgiu uma oportunidade e eu encontrados, as condições e expectativas de entra-
precisava muito do emprego. Eu não quero ser um da na profissão parecem estar relacionadas com
ACS, isto é passageiro. Não gostaria de ser um ACS o considerável volume de queixas de insatisfação
nem se o salário fosse muito alto”. Vera, por sua vez, com o trabalho, de tímido prestígio social e pouco
disse: “Não sou apaixonada por ser ACS, mas gosto reconhecimento profissional.
de trabalhar com pessoas. Se você entra no PSF como Apesar de a ACS Vanda expressar que sentia que
ACS, vai morrer ACS. Se eu não precisasse trabalhar, seu trabalho era mal remunerado, foi observado que
não seria uma ACS”. De maneira semelhante, o agen- a valorização profissional não passaria apenas pela
te comunitário Pedro disse: “Eu trabalho para ajudar melhoria salarial, diferentemente dos estudos feitos
meus pais, que me sustentam enquanto eu estudo; é por Wai (2007), em que os baixos salários são apon-
difícil porque eu tenho pouco tempo de estudar, às tados como um aspecto mobilizador de sofrimento
vezes, sinto inveja do povo da minha sala que não no trabalho. Neste estudo, a questão salarial não foi
precisa trabalhar”. Pareceu-nos, então, que os ACS tematizada como produtora de sofrimento e com a
não se identificavam com o trabalho que realizavam, mesma importância dada a outros aspectos, como
nem mesmo o relacionavam a uma profissão, mas a a valorização social da profissão. Nas atividades
um emprego. grupais, os ACS chegaram à conclusão de que mes-
Referindo-se a esta temática, a agente comunitá- mo se houvesse salário melhor, ainda assim não
ria Vanda disse: “Eu gosto muito da área da saúde, escolheriam novamente a profissão de ACS, só opta-
fiz um curso técnico de Saúde Coletiva, mas aqui riam outra vez pela profissão se não houvesse saída
não tem lugar para trabalhar, por isso decidi ser melhor. Acentuou-se com isso o caráter provisório
ACS, mas em breve vou fazer outro curso, talvez de dado ao exercício da profissão até o surgimento de
técnico de enfermagem, quero trabalhar na saúde, outra ocupação melhor.
porque eu gosto muito, mas ser ACS não dá, é mui- Relativo ainda à escolha da profissão e diante da
to desgaste para pouco reconhecimento e pouco situação de que um dos participantes das atividades
dinheiro também”. era do sexo masculino, surgiu a questão de que a
Nesta situação, a agente comunitária reconhe- profissão tem sido ocupada predominantemente
ce uma especificidade profissional no trabalho do por mulheres. O ACS Pedro disse: “Na realidade é
técnico de enfermagem, mas não a observa no seu. muito difícil ser agente homem; as pessoas ficam
Provavelmente, porque, no primeiro, as funções e encabuladas, não gostam de falar de seus problemas,
rotinas estejam bem delimitadas e associadas ao principalmente quando é de preventivo”.

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De maneira semelhante, a usuária Fernanda Deste modo, ao analisarmos as condições que
disse: “Eu não gosto muito de falar as minhas coisas causam sofrimento nestes profissionais, podemos
para ele, primeiro que ele é homem e a gente tem considerar que para, além das dificuldades com a po-
medo de falar e depois ele sair aí falando da vida da pulação atendida, o trabalho do ACS é afetado pelas
gente, também ele é muito novo, eu não gosto que condições objetivas pelas quais escolheu a profissão
ele entra dentro da minha casa, porque tenho medo de ACS, assim como pelas suas expectativas em re-
do que os vizinhos vão pensar, na hora que ele vem, lação à profissão, aspectos que certamente podem
meu marido não tá em casa. O ruim dele ser homem é gerar insatisfação e sofrimento no trabalho. Neste
que não dá para falar de umas coisas, duns trem que sentido, Dejours (1998) aponta que um dos mais
a gente tem vergonha de contar até para o marido; duros golpes produzidos pelo trabalho refere-se ao
preventivo, por exemplo, tava precisando faz tempo, fato de que ele não atende às expectativas iniciais
como eu era parente de outra agente, falei para ela do trabalhador, frustrando-o.
marcar, mas para ele não tive coragem”.
B. De certo, vamos falar sobre a história do SUS na
Esta situação nos remete a pensar que as ques-
tões de gênero podem interferir na qualidade do casa das pessoas ou sobre a formação dos ACS
trabalho do ACS, aspecto também apontado por Wai No tocante à formação para a atuação como ACS, fo-
(2007). Observamos que se, por um lado, os agentes ram relatadas diversas dificuldades que denotavam
do sexo masculino têm dificuldades para trabalhar pouco conhecimento específico de questões referen-
com as mulheres, por outro o mesmo acontece com tes ao processo saúde-doença (conhecimentos sobre
os ACS do sexo feminino em relação ao trabalho com promoção da saúde, prevenção de agravos e doenças,
a população masculina. Portanto, as expectativas de noção de integralidade) e da natureza operacional
gênero em relação à profissão estão presentes no (agendamentos, encaminhamentos, contrarreferên-
cotidiano de trabalho destes profissionais e podem cia, rotinas, conhecimento da rede etc.). Pareceram
caracterizar um aspecto conflitivo. Certamente, indicar também a necessidade de formação que
isto interfere na efetivação do acesso aos usuários transcenda os aspectos biológicos da saúde e con-
a certos serviços, em especial, no caso de ACS do temple, com maior ênfase, os determinantes sociais
sexo masculino que precisam orientar mulheres no da saúde, as questões sociais e psicológicas.
tocante à saúde sexual e reprodutiva, aspectos que Em relação aos treinamentos, surgiram algumas
são tabus. Neste sentido, nos pareceu que o trabalho necessidades específicas, que não foram considera-
das ACS é de mulher para mulher, pois parece haver das pelos gestores e formadores. A agente comuni-
certa preferência das agentes por direcionar seu tária Carolina relatou: “As formações falam sobre
trabalho ao público feminino. a história do SUS, mas não fala sobre como nos
Assim, de certa forma, nas reflexões acerca das relacionar com as famílias, sobre como ter jogo de
estratégias de incentivo para os cuidados de saúde cintura. De certo, vamos falar sobre a história do SUS
e de comparecimento da população masculina às na casa das pessoas”. Do mesmo modo, Lúcia falou:
unidades de saúde, as políticas públicas devem “O ACS não tem muito preparo; o nosso seletivo teve
considerar que a comunicação entre a população um preparatório que só falaram do SUS, da profissão,
masculina e as ACS sofre interferências das expec- falaram que a visita tem que durar uma hora, mas
tativas relativas ao gênero. não falaram como tratar as pessoas e o que fazer
Finalmente, encontramos que a escolha da pro- nesta uma hora de visita”.
fissão de ACS se deu mais pela maleabilidade de Relataram, ainda, que as formações acontecem
horário que ela proporciona. Na maioria dos casos, de maneira questionável, pois não consideram
os agentes estavam se dedicando a outras atividades as peculiaridades de cada bairro e população, são
que poderiam lhes proporcionar, posteriormente, cansativas e não contam com a participação ativa
outro emprego, como cursos técnicos e universitá- dos ouvintes. Geralmente, acontecem no formato
rios, do que a uma compreensão do papel do ACS e/ de palestras e são ministradas pelas chefias, carac-
ou identificação com a profissão. terizando situações verticalizadas na abordagem

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dos problemas, que não proporcionam o avanço do Parece-nos que se trata de uma simplificação do
conhecimento. potencial do trabalho do ACS, em especial da con-
Sobre isso, Juliana disse: “O povo da Secretaria cepção de territorialidade das ações e de vínculo
acha que colocar nós naquele auditório junto com com o usuário.
as ACS de toda a rede e dar palestra três dias basta. A respeito da qualidade da formação dos ACS,
Não quer dizer que não ajuda, é bom, mas não falam Tomaz (2002) constatou que o processo de qualifi-
das questões de cada unidade, em como eu faria cação destes profissionais ainda é desestruturado,
para abordar uma família. Deviam nos ensinar como fragmentado e insuficiente para preparar este sujei-
‘ganhar’ a família, para elas nos contarem as coisas to para uma adequada realização de sua função. E,
que acontecem com elas, confiarem; tem gente que embora tenhamos encontrado dados que corroboram
tem doença séria, a gente sabe que tem, está no pron- tal afirmação, há que destacar que este aspecto da
tuário, mas a gente pergunta e eles falam que está formação está sendo ajustado pelo Ministério de
tudo bem. A gente precisa ser mais bem treinada. A Saúde, que tem proposto programas específicos para
Secretaria só quer resultado, mas não treina a gente, a desprecarização do trabalho no âmbito do SUS.
é nisso que dá”. Destaca-se também que as capacitações em serviço
Neste sentido, a parcialidade das capacitações estão sendo cada vez mais utilizadas e oferecem
parece que está diretamente relacionada com a melhores resultados, pois colaboram para a ressig-
qualidade das visitas domiciliares realizadas pelos nificação das expectativas dos ACS em relação ao
agentes comunitários, pois foi muito comum, nas seu trabalho e profissão.
atividades realizadas, a fala de que não sabem o Temos, portanto, que a parcialidade da forma-
que fazer nas visitas. A agente comunitária Lúcia ção dos ACS é um aspecto que se relaciona com o
disse: “Muitas vezes, não sabemos o que falar nas sofrimento psíquico por eles descrito, afinal, grande
casas das famílias visitadas, faltam motivos para parte da impotência relatada deriva do pouco empo-
irmos até a casa das pessoas”. Também Juliana co- deramento político e técnico que possuem.
mentou: “As formações dadas pela Secretaria são
C. É muito difícil separar o pessoal do profissio-
insuficientes, aprendemos mais lendo os folhetos
do que nas formações”. nal ou o envolvimento emocional do ACS com os
Isto confirma a observação de que grande parte problemas da população
da rotina de trabalho dos ACS gira em torno da en- A obrigatoriedade do agente de saúde pertencer
trega aos usuários de agendamentos de consulta, ao bairro em que mora, conforme determina a Lei
exames e folhetins, e da coleta de assinatura que 10.057, de 10 de julho de 2002, faz parte da concep-
comprova as visitas. A fala da usuária Sílvia ilustra ção de que a familiaridade com o local de trabalho
como a população percebe a ineficiência do serviço: é um aspecto positivo para a prática profissional.
“Então, eu não gosto de ficar falando, mas eu sei que Pressupõe-se que a identificação do ACS com a po-
ela só vem aqui atrás da minha assinatura, pergun- pulação, e vice-versa, pode potencializar tal relação
ta como eu tô, e se eu falar que tô bem ou mal, ela e trazer benefícios. Entretanto, estas pressuposições
fala ‘então tá bom’, assina aqui... Nunca entrou na desconsideram que, ao exercer suas atribuições, o
minha casa”. ACS passa a ser observado, despertando as mais
Outro dado colhido entre os agentes comunitá- diversas impressões nos usuários, e estas devem ser
rios derivou das afirmações de que não sabem como tomadas como variável importante para o sucesso
proceder nas residências das pessoas que não usam ou não de seu trabalho.
o serviço de saúde, pois não há nada para ser entre- Ademais, é o ACS que entra em contato mais
gue ou comunicado para elas. Ou seja, a entrega de cruamente com as diversas formas de sofrimento
agendamentos, recados, avisos ou folhetos parece da população. Seu papel ultrapassa, portanto, as
constituir um instrumento de mediação, e até pode atribuições que lhe compete, afinal a vida no bairro,
ser um bom mediador da relação ACS – usuário, em suas diversas expressões, continua depois do ex-
mas não pode ser o único, nem o mais importante. pediente, nos feriados e nos fins de semana. Assim,

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há que se considerar que, geralmente, a atuação do lugar de trabalhar é o mesmo de morar? Como fazer
ACS está permeada de considerável envolvimento a delimitação de espaço, se os usuários do serviço
pessoal e interpessoal, o que pode trazer conflitos são as mesmas pessoas com as quais se convive e,
e desgaste emocional. até mesmo, são familiares?
A este respeito, a agente comunitária Vanda dis- Estas questões parecem evidenciar a dificuldade
se: “Eu moro no bairro desde pequena e, por isso, é de diferenciação entre a vida profissional e a pesso-
mais difícil separar o pessoal do profissional. Tem al. Com relação a isso, Juliana comentou: “É muito
casas em que eu chego e as pessoas começam a con- difícil separar o pessoal do profissional, porque
tar da sua vida, seus problemas, choram”. Vera, por tem dias que eu não estou bem, mas que preciso
sua vez, disse: “Quando as famílias têm confiança estar bem para entender bem as pessoas. Este é um
em você, eles te contam tudo: os problemas com o trabalho diferente de um trabalho mecânico numa
marido, a depressão, os filhos que estão dando tra- fábrica de montar carros”.
balho, as frustrações, as angústias, os sonhos que Temos, então, que a necessidade de estar bem
ainda não foram realizados”. para realizar adequadamente as atribuições de ACS
Outra questão interessante trazida pelos usuá- é mais um aspecto que os pressiona emocionalmente
rios e que guarda relação com esta temática referiu- e, provavelmente, está relacionado às queixas de im-
se à frequência com que as residências são visitadas potência e frustração. A indignação de Juliana parece
pelos ACS.Os usuários afirmavam que as visitas decorrer da percepção de que suas atividades são me-
ocorriam semanalmente e, em vários casos, até mais cânicas, sem espontaneidade. Diariamente, sai para
de uma vez por semana. Estas afirmações trouxeram as visitas, entrega folders e recados, faz orientações
uma contradição, pois os próprios agentes comuni- e colhe assinaturas até cumprir as me­­tas.
tários informaram que realizavam visitas mensais. Outro aspecto observado refere-se ao fato de que
Ao avaliar tal questão com os agentes, percebemos, não há espaço para a discussão das dificuldades
então, que mesmo os cumprimentos ligeiros eram encontradas no cotidiano de trabalho. O não saber,
considerados pela população como visitas. o não poder, o não conseguir, entre outras contra-
Esta indiferenciação por parte da população re- dições, não aparecem. Refletindo acerca disso, Vera
vela uma ligação muito familiar entre a população disse: “O mais difícil desta profissão é a necessidade
e agentes comunitários de saúde e apontam para o de estar bem comigo mesma para atender a família,
fato de que passam a fazer parte da rede afetiva de afinal eu represento o PSF naquela casa. Dependen-
muitos usuários. Levy e colaboradores (2004) sus- do da visita que eu faço, preciso parar e respirar um
tentam esta proposição e se reportam ao apoio emo- pouco, senão eu fico louca”. Também Lúcia desaba-
cional e psicológico oferecidos pelos ACS em suas fou: “Tem pessoa que, quando a gente chega, ela já
visitas. Também Nunes e colaboradores (2002) apon- começa a desabafar e a gente escuta tudo. Isso mexe
tam este aspecto e dizem que existe uma demanda muito com nosso psicológico, é estressante, às vezes.
da população que extrapola a busca da saúde física Você acaba carregando muitas coisas. Você tem que
e se expande para as necessidades afetivas, como ouvir as pessoas mesmo quando não está bem. E, no
carinho, companheirismo, amizade e cuidado. fim das contas, ninguém cuida da gente, só Deus”.
Tal proximidade, ao mesmo tempo em que traz Ou seja, neste âmbito, o trabalho do ACS é tomado
aberturas para o trabalho, por vezes suscita senti- como linear, unilateral, sem afetações humanas,
mentos de impotência nos profissionais. Neste senti- tal como numa linha de montagem. Nestes termos,
do, a agente Juliana disse: “Existe um sentimento de indagar por quem cuida do cuidador continua sendo
impotência, como, por exemplo, há uma professora uma boa pergunta.
da minha microárea que está sendo ameaçada pelos Temos, portanto, que cotidianamente os ACS são
alunos e o que eu posso fazer? Eu sempre saio de colocados em contato com muitas misérias humanas
lá melancólica”. A este respeito alguns questiona- (agravos de saúde, conflitos familiares, problemas
mentos surgiram em um dos grupos de conversa: sociais, entre outras), situações para as quais, mui-
como separar a vida profissional da pessoal, se o tas vezes, são os únicos representantes do Estado a

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saber, o que aumenta a responsabilidade individual do ACS, pois, em certos momentos, ele é visto como
e social. Nesse universo, dispõem de poucos recursos pertencente à equipe de enfermagem, por realizar
que ofereçam alguma solução ou alívio aos outros, cuidados de saúde, e, em outros, como um trabalha-
quem dirá a si mesmos. Compreende-se, assim, uma dor genérico, diferente dos típicos profissionais de
vez mais, possíveis motivações para as reiteradas saúde. Concordamos com o autor, pois tivemos a
queixas de impotência e descontentamento com o impressão de que a profissão de ACS está situada
trabalho. num limbo identitário, situação na qual o fazer do
ACS está sendo construído muito mais pelos parâ-
D. Se a família faz alguma coisa errada aqui no
metros daquilo que não deve fazer do que pelo que
PSF, respinga no ACS ou a responsabilização do pode praticar.
ACS pelas incongruências do NSF De modo semelhante, ao analisarmos as rela-
Segundo Tomaz (2002), de acordo com as Diretrizes ções de poder entre os ACS e o restante da equipe
para Elaboração de Programas de Qualificação e do Núcleo de Saúde da Família, observamos que,
Requalificação dos Agentes Comunitários de Saúde paradoxalmente, ao mesmo tempo em que são res-
(1999), as atribuições dos agentes podem ser resumi- ponsabilizados pelas incongruências e erros que
das no seguinte: identificação das situações de risco, acontecem na unidade, não ocupam o lugar de prota-
orientação das famílias e comunidades e encaminha- gonistas, nem fazem parte das tomadas de decisões
mentos às equipes dos casos identificados. que precisariam ocorrer para o aperfeiçoamento
No entanto, o que se observa no cotidiano de um dos serviços oferecidos. A agente Iara, indignada,
Núcleo de Saúde da Família (NSF) é a falta de clareza disse: “Essa atual administração não faz reunião
sobre quais são as atribuições dos ACS, o que parece com a equipe, somente reunião da enfermeira chefe
provocar a sobrecarga de funções e até de papéis, com os ACS”. Também Lúcia indignou-se: “As reu-
produzindo, assim, uma responsabilização excessi- niões feitas com as ACS são apenas para chamar a
va do ACS. Por um lado, sua equipe o responsabiliza atenção, não temos voz nessas reuniões”. Josemara
pela conduta dos usuários de sua microárea na uni- acrescentou: “Existe uma não integração dos ACS
dade e, por outro, é responsabilizado pelos usuários no posto, parece que não somos funcionários do PSF
pelas falhas nos atendimentos do NSF. como os outros profissionais da equipe. Não temos
Ao falar desta temática, Fernanda lamentou: voz na solução dos problemas, nossa opinião não é
“Se a família faz alguma coisa errada, respinga no levada em conta”. Vera, por sua vez, disse: “Certa vez,
ACS, ao mesmo tempo que, se o restante da equipe a enfermeira propôs uma premiação como forma de
faz alguma coisa errada, as famílias reclamam e, incentivo para trazer pessoas ao posto, não concor-
mais uma vez, respinga no ACS”. Também Carolina damos, mas não fomos nem consultadas sobre isso.
queixou-se: “O problema maior também é que se as Todo mundo fala que a nossa profissão é a principal
famílias chegam aqui com uma informação errada, função no PSF, mas o ACS não é valorizado, ele é
então é culpa dos ACS que deram a informação erra- cobrado e muito; as pessoas não veem o ACS como
da, a gente é culpada sem nem nos ouvir para saber parte da equipe do PSF”.
o que aconteceu”. Juliana também falou: “Certa vez, Pelo observado, não havia uma rotina formal de
era pra incentivar as mulheres para vir fazer o pre- trabalho em equipe. As reuniões ou eram simples-
ventivo em qualquer horário. Quando as mulheres mente para chamar a atenção ou se dispersavam
vieram até a unidade, o preventivo não foi feito. A em atividades comemorativas, ou seja, o exercício
enfermeira chamou a nossa atenção, e as mulheres do poder era verticalizado e não se distribuía. Lúcia
ainda disseram que não voltariam mais para fazer disse: “Estes dias falaram que ia ter reunião para bo-
o exame”. tar tudo em pratos limpos. Era para participar todos
Acerca das atribuições dos ACS, Nogueira e da unidade. Ficamos acreditando que dessa vez iria
colaboradores (2000) dizem que há uma dupla resolver muitas coisas, falar do que estava errado,
interpretação em relação ao perfil do profissional mas na hora só duas ou três pessoas falaram e logo

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veio um bolo de aniversário para os aniversariantes estudo indicam que parece razoável considerar que
do mês, e ficou por isso mesmo”. Pedro, por sua vez, o trabalho do ACS na forma que temos encontrado
falou: “Uma vez, tentamos expressar nossa opinião, possui uma dimensão insalubre, geradora de sofri-
fizemos uma pauta para uma reunião sobre o que mento, o que parece constituir um paradoxo, afinal,
não estava bom no PSF e o que precisava ser melho- o ACS é um cuidador que também requer cuidados.
rado, entregamos esta pauta para a enfermeira, mas Assim, convém considerar que há importantes
esta reunião nunca aconteceu”. ligações entre condições e relações de trabalho e o
Ou seja, parece não haver nas atividades cole- sofrimento psíquico descrito por estes profissionais,
tivas da equipe um caráter técnico de avaliação e o que pode ser atenuado pela efetiva profissionali-
correção de rotas. Comumente, observou-se que as zação e valorização desse trabalhador.
unidades interrompiam seus serviços para a reu- Finalmente, este estudo apresenta um limite im-
nião, mas grande parte da equipe ia embora. portante, o de não indicar a avaliação que os gestores
Assim, a responsabilização dos ACS pelos inci- fazem do trabalho dos ACS e do sofrimento neles
dentes ocorridos nas unidades parece se relacionar presente. Certamente, estudos seguintes podem
com o modo de gestão de pessoal pouco eficiente. explorar este aspecto, o que contribuirá para maior
Neste sentido, surgem dois aspectos a serem consi- entendimento da questão.
derados: o primeiro caracteriza-se pela parcialidade
da qualificação e precária formação continuada dos
ACS e o segundo, pela ineficiência dos mecanismos
Referências
de gestão e trabalho em equipe, o qual, predominan- BACHILLI, R.G.; SCAVASSA A.J.; SPIRI W.C. A
temente, tem se caracterizado por relações hierár- identidade do agente comunitário de saúde: uma
quicas verticalizadas e autoritárias. Compreende-se abordagem fenomenológica. Ciência & Saúde
assim que o sofrimento psíquico descrito pelos ACS Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 51-60, jan./fev.
também tem origem nas relações de poder inerentes 2008.
às condições de trabalho. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições
70, 1997.
Considerações Finais BENEVIDES-PEREIRA, A. M. T. Burnout: quando o
Este estudo apresenta contribuições na medida em trabalho ameaça o bem estar do trabalhador. São
que permitiu identificar uma série de situações que Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.
parecem caracterizar certa sobrecarga de trabalho BORNSTEIN V. J.; STOTZ E. N. Concepções que
dos ACS em vários âmbitos. Apontamos duas con- integram a formação e o processo de trabalho
sequências desse processo, uma relacionada com dos agentes comunitários de saúde: uma revisão
a perda das especificidades da profissão, o que leva da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de
ao desvirtuamento de suas atribuições, e a outra Janeiro, v. 13, n. 1, p. 259-268, jan./fev. 2008.
associada à insalubridade das condições e relações
BRASIL. Ministério da Saúde. Fundação Nacional
de trabalho, ambas concorrendo para a produção de
de Saúde. Programa Nacional de Agentes
sofrimento psíquico nestes profissionais.
Comunitários de Saúde. Manual do agente
Parece-nos que o trabalho deste profissional
comunitário de saúde. Brasília, DF, 1991.
está reduzido à entrega de agendamentos e mera
veiculação de campanhas, despotencializado-o de BRASIL. Lei n.º 10.057, de 10 de julho de 2002.
suas reais atribuições e de seu papel no cenário da Dispõe sobre a criação da profissão do agente
saúde pública. Portanto suas queixas de impotência comunitário de saúde. Diário Oficial da União,
e de não reconhecimento profissional estão relacio- Brasília, 10 jul. 2002. Seção I, p. 01.
nadas, em parte, à precarização da profissão desde o CODO, W. et al. Indivíduo, trabalho e sofrimento:
processo de escolha profissional e formação. uma abordagem interdisciplinar. Petrópolis, RJ:
As perspectivas que se apresentam ao final deste Vozes, 1993.

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Recebido em: 22/05/2010


Reformulado em: 22/02/2011
Aprovado em: 05/04/2011

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