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Ensaios Latino-americanos 3 .J;t< J ilé' !' . Fe d er ico Ne iburg

O S IN T E L E C T U A IS E A
I N V E N Ç Ã O D O P E R O N IS M O
E STU D O S D E AN TR O P O LO G IA
S O CIAL E C U LTUR A L

e
Tradução
Vera Pereira
Reitor Flávio l'ava de Moracs
Vicc-rcifora Myriam Krasilchik

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO l'AULO

Presidente Sergio Miceli Pcssôa de 13arros


Diretor Editorial Plinio Martins l'il ho
Editor-llssistcntc Heitor l'rr.12

Comissiio Editorial Scrgio Miceli Pcssôa cJe narras (Prc:,;idcnfc)


Davi Arrigucci Jr.
José Augusto Penteado Aranha
Oswaldo Paulo Forattini
Tupã Gomes Corrêa
22 OS I NTELECTUAIS E A I NVE NÇÃO DO PERON ISMO

•----------------
espaço determinado de tem po. A forma que encon trei para lidar com
um objeto de tamanha amplitude foi fazer pesquisas inter-relacionadas
sobre temas diferen tes, man tendo, porém, a mesma perspectiva. O re-
sultado pode ser lido na série de ensaios relativamente independentes
que formam os vários capítulos deste livro. RE PE RTÓR IOS
Os três primei ros capítulos analisam as discussões que, por volta
de 1955, tomaram o peronismo como objeto. No capítulo 1, apresen to PERO N!ZAÇÃO, DESPERON IZAÇÃO, REPERO N!ZAÇÃO
um mapa dos problemas e das posições que constituíram os debates; no
capítulo 2, faço um esboço da gênese social de alguns de seus principais
protagonistas e seus pontos de vista; no capítulo 3, examino a relaçi"to
entre as interpretações do peronismo e os relatos consagrados sobre a
nação argentina e sua história. Os três últimos capítulos têm uma pers-
pectiva mais historiográ(ica. No capítulo 4, estudo a relação entre alguns
setores das elites sociais e intelectuais entre os anos de 1930 e 1960,
reconstituindo a história de uma das instituições político-cul turais mais
importan tes desse período: o Colégio Livre de Estudos Superiores. O
capítulo 5 é dedicado ao estudo da invenção elo ponto de vista da "ciên- Quem freqüen tou os ambien tes políticos e intelectuais argenti-
cia social" sobre a realidade argen tina. Tomando como eixo a trajetó- nos durante os anos que se seguiram à Revolução Libertadora pôde
ria do "pai fundador" da "sociologia científica", Gino Gcrmani, procu- presenciar as incon táveis discussões realizadas nos mais diversos cená-
ro compreender as possibilidades que se abriam, por volta de 1955, para rios com a finalidade ele debater o futuro do país na nova etapa, a
a criação de novas perspectivas sobre a sociedade e a cultura argen tinas. partir das difcrc11tcs opiniões sobre as "origens e a natureza" elo frmô-
Estudando os concursos realizados na Universidade de Buenos Aires meno jJeronista.
logo após a Revolução Libertadora, o último capítulo analisa os con teú- Algumas dessas discussões ocorriam no in terior das organizações
dos sociais e ulturais elo processo de desperonizaçiio dessa i nstituição partidárias e freqüentemen te provocavam dissidências e a formação
central no campo da produção cultural do país. de novos grupos. Outras tinham um caráter público: eram debates e
Ao transf'ormar o n-,ue, ori(bTinalrncn tc, era u rna tese dirittr,icla a u m pú mesas-redondas convocados por agrupamentos políticos ou entidades
blico acadêmico (Nciburg, 1993) num livro destinado a um pú blico universitárias, como os diretórios estudantis ou as cátedras de algumas
mais amplo, não quis perder o rigor conceitua! e sociológico com o qual faculdades.
o trabalho foi concebido. Para oferecer u ma lei tura adaptada aos in te- Os convidados a participar desses eventos começavam então a
resses do leitor, decidi separar do texto principal o desenvolvimen to de ser conhecidos como especialistas cm um novo tema: o peronismo.
algumas diso1ssões teóricas e colocar nas notas de cada capítulo, bem Era,m eles os autores das interpretações consagradas em livros que re-
como nos Quadros incluídos no final do livro, o dctalhamcnto de várias cebim sucessivas reedições. Encontram-se referências a essas discus-
demonstrações empíricas. sões nas obras de caráter testemun hal e nos trabalhos que reconsti-
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i. tuem aspectos da história e do "clima" cultural do período posterior visto como um caso limite, baseado n uma retórica de qualificações e
' '4-··· a 19551 •
desqualificações, acusações e defesas, declarações de alianças e disscn-
Um leitor familiarizado com a literatura sobre o peronismo não sos. As distinções que cada participan te ou grupo de participantes esta-
reconhecerá em nenhum dos três livros que examinarei neste capítulo belece para definir sua particularidade fundamentam-se nas diferen tes
obras consagradas sobre o tema. No entan to, o grande méri to desses avaliações que cada um deles faz do seu lugar no sistema de diferenças
textos é ilustrarem algumas das dimensões constitu tivas dos sistemas de e, especialmente, baseiam-se na estratégia de avaliar positivamente o que
questões e diferenças de opinião construídos pel os participan tes dos os inimigos dcsgualificitm ou segregam 2• Trata-se de uma retórica de
debates sobre o peronismo após a Revolução Libertadora. Os três livros combate, que põe cm evidência algumas dimensões das lutas de classi-
foram pu blicados cm momen tos diferen tes: o primeiro apareceu cm ficação, travadas não só cm torno da representação do peronismo como
1956, o segundo, em 1959, e o terceiro, cm 1966. Cada um busca situar- também das diferentes posições que susten tavam os diversos pontos de
se cm um lugar diferen te, embora sempre se man tendo na fron teira vista sobre elc3•
entre a atividade política e a atividade intelectual. O primeiro é de um O primeiro texto a ser examinado é uma boa ilustração de um sis-
autor individual, o segundo é o resultado de um questionário aplicado tema de diferenças de opinião construído segundo esse registro. Seu
a um grupo de. indivíduos, e o úl timo é um sumário ele opin iões guc autor, Mario Amadco' graduou-se na Faculdade ele Direito da U nivcrsi-
transcreve os resultados de uma série ele mesas-redondas realizadas por dadc de Buenos Aires (UBA) , na década de 1930. Em 1938, fundou a
um grupo de "especialistas". revista Sol y Luna, gue, até 1943, publ icou dez n úmeros con tendo arti-
gos assinados por uma dezena de outros ensaístas tão identificados quan-
to ele com o nacionalismo, cm sua maioria também advogados ligados
As LUTAS DE CLASSIFICAÇÃO E O DISCU RSO DE BARRICADA a organizações católicas. Depois de apoiar o golpe ele Estado ele junho
de 1943 e de trabalhar no serviço diplomático, Amadeo rompeu com o
Ao contrário do que ocorre no discurso cien tífico e reflexivo, a governo militar, quando este assumiu uma posição favorável aos aliados
eficácia das representações políticas fundamen ta-se, em grande medida, na Segunda Guerra e no momen to em que a facção militar, encabeçada
no êxito com que ocul tam os pressupostos subjacen tes à sua própria por Pcrón, adquiriu maior notoriedade. Amadeo afastou-se então da
construção. Quanto mais explíci to é o caráter político de um discurso ação política direta e "refugiou-se" na universidade. Entre 1947 e 1955,
mais claramente se evidencia o sistema de diferenças de opinião que o foi professor das Faculdades de Ciências Econômicas e de Direi to da
separa de seus inimigos. Nesse sentido, o discurso de barricada pode ser UBA e diretor da revista editada por esta última4 • Por ocasião do golpe

2. A respeito das estratégias de sqregação próprias ,, retórica panfletária, cf. Pinto [1984). Sobre as
1. Ve1; por exemplo, as descrições·rle Goldar (1980, Cap. 1] e Halperín Donghi (1986, Cap. 4). Ver estratégias de desqualificação, características do discurso político, ver Yinonet [1984].
também o interessante depoim11to do propriet;írio de uma editora que se expandiu na época 3. Pierre Bourdien (1982, pp. 137-140] definiu as lntas de c/assifica(';io como "lulas pelo monopólio
g:r.1ç;1s ao interesse pelas publicações de autores da "esquerda nacio11alist;1" sobre o rema: Pcria Lillo
ele fazer ver e fazer crer, ele fazer conhecer e fazer reconhecer, de impor as divisões lcg"ilimas do
(1988, PP· 8!} e ss.); outro testemunho pode ser encontrado em Virias (1981]. A respeito das dis-
muido social", e, dadas as suas pretensões perform,ttiv,ts, "de fazer e desfazer os grupos sociais",
cussões entre os grupos "nacionalistas" no /1ns-J1mmi.11nn, ver Alvarez (1975, pp. 547 e ss.J. Na pro- bus uHlo impor "uma visão do mundo soci;il por meio dos princípios de di\'isão".
dução de caráter mais acadêmico, encontram-se referências em Sarlo (1985, p. 2); Terán [1991, 4. Amadco conta que, depois de ter se afastado do overno, "retirei-me para uma guintl nos <lITc-
Cap. 2] e Siga! (1991]. ·
dores de San Isidro e ali passei dois anos, quase sem vi; ar a Buenos Aires, inteiramente entregue
2G OS INTELECTUAIS E A I NVENÇÃO DO PERONISMO R EPERTÓRIOS 27

de Estado de setembro de 1955, Amadco foi nomeado ministro das Re- está exasperada e ressen tida; contempla com hostil e desdenhosa indi-
lações Ex teriores, cargo ao qual ren u nciou com a deposição do general ferença o movimen to que jogou por terra seu ídolo, e ref ugia-se em
)
1 '
Lonardi, cm novembro do mesmo ano. Daí em dian te, dirigiu a revista uma fé irracional e cega em que logo voltará a ser o que era antes. Seu
!
!
Azul y Blanco, que, em sua primeira fase, se preocupou em expressar a lema e seu grilo de guerra é 'Perón voltará'" [p. 90].
posição elos grupos de nacionalistas con trários à política liberal do gover- Amadeo constrói seu texto segundo a lógica do discurso ele barri-
no, cuja intenção desjJeronizadora consideravam excessivamen te radical". cada. Descreve sua própria posição desqualificando as posições con trá-
Seu livro Ayer, Hoy y Manana foi publicado em abril de 1956 e, nes- rias e mostra que seu pon to de vista é uma das alternativas oferecidas
se mesmo ano, teve quatro edições. A primeira parte ("Aycr") possui um pelo conjun to limitado de possibilidades abertas ao fu turo do país no
tom autobiográfico: começa em 1943, relatando o primeiro con tato do pós-peronismo. Desse modo, oferece uma radiografia do reper tório de
autor com o então coronel Perón e descreve seu posterior rompimen to definições e do sistema ele oposições que susten tavam tais alternativas.
com o que viria a ser o peronismo. Na segunda par te ("Hoy"), Amacleo Depois de afirmar que "o êxito ou fracasso na união elo país de-
dedica-se explicitamente ao exame ela questão ela desperonização, que pendem, em boa medida, ela maneira como se interprete o fato pero-
considerava "o mais grave e urgen te problema do momen to" [p. 89]. nista", Amadeo passa a expor as diferentes versões e suas corresponden-
Procu rava defender a alternativa fracassada, liderada por Lonarcli , q ue tes "alter nativas" de ação. Começa pelas duas varian tes ela versão dos
se opunha a "levar a fundo a despcronização" [p. 81). Fren te às preten- "setores socialmen te conservadores", uma simplista e ou tra complexa.
sões ela "tendência liberal", Amadeo afirma que "liquidar a etapa pcro- Segundo suas próprias palavras, a pri meira não enxergava no peronis-
nista" deveria significar: "[...] a assimilação d esse grande setor ela popu- mo senão um pesadelo, um fenômeno de psicologia patológica, diag-
lação argen tina, que tinha deposi tado suas esperan ças na figura que nostic;wel como uma doença. Por conseguinte, para seus defensores,
emprestou seu nome ao regime derrubado, e que, apesar de seus erros desperonizar o país parecia ser o mesmo que curá-lo, e o tratamento
e de suas culpa, contin ua sendo-lhe fiel" [p. 89). não podia ser outro senão a "extirpação" [p. 91]. A variante complexa
Na opinião de Amacleo, "o perigo de colocar esse setor à margem da versão conser vadora reconhecia, por outro lado, que "o peronismo
ela tarefa ele reconstrução nacional" era enorme, porque: "Essa massa tinha alcançado profu nda repercussão na opinião popular, mas fizera-
o por venaliclade ou pelo apelo exclusivo aos mais baixos instin tos da
plebe". Assim como a primeira, a varian te complexa "também não iden-
1 leitura, :lmeditaç,lo e ao estudo. Retomei um con tato assíduo com os chí.ssicos e familiarizei-me
com os problemas do direito internacional. [...) Em meados de J 9-17, foi aberto nm conrnrso para tifica nada de bom ou positivo no peronismo", que nada mais seria se-
0 cargo de professor acnnto de Direito Internacional, na Faculdade de Ciências Econômicas e, não "um fruto da iguorância, equivalen te à superstição". Por essa razão,
pouco depois, na de Direi to. Candidatei-me aos dois concursos e ganhei as cátedras, depois de
para a variante complexa, desperonizar significava "reeducar con una
preencher todos os requisitos regulamentares. [...)" [p. 24). Seu relato descreve bem um meca-
nismo que abordarei repetida vezes neste livro: a oscifação de alguns indivíduos entre suas ativi- dosis de lena" ["reeducar pelo porrete"]. E, comparando as duas varian-
dades no campo político e no 9mpo intelectual. Quando fracassavam na política, "retiravam-se" tes conser vadoras, Amadeo acrescen ta: "na cabeça dos peronistas de
e investiam no campo intelectuat na esperança de futuramente converterem o capital acumula-
do nesse campo crn capital político. Halperín Donghi [1985, p. 12) referiu-se sutilmente a esse direita, clesperonizar equivale a desratizar" [p. 92].
1
Jrocesso corno uma base da criação do "revisionismo histórico" entre grupos de inteiect11ais-poJí- 1Amacleo dedica menos atenção à segunda versão, a da "esquerda
t1cos derrotados na política e que, a partir de então, "se refugiaram" na história.
5. Ai'.iado foi ''.' dos que promoveram a chapa Arturo Frondizi-Rogerio Frigerjo por ocasião das
liberal", segundo a qual "Perón e os pcronistas eram nazistas totali tá-
1
pruneiras de1çoes presidenciais realizadas após a Revoluç,io Libertado,-,,,. rios" e, portan to, "despcronizar equivale a desnazificar" [p. 92]. Em
28
OS INTELECTUAIS E A INVENÇÃO DO PERONISMO
R EPERTÓR IOS 29

seguida, o livro menciona a versão da "esquerda an tiliberal e marxista", mudar a lealdade ele uma massa que, nesse momen to, se encontrava
que é associada aos grupos trotskistas. Na opinião de Amadeo, esses "disponível':para novas adesõesr;.
grupos "reprovam no peronismo a pessoa do seu chefe, vendo nele uma O maior mérito do livro ele Amadeo é tornar explícitas as relações
forma crua e primitiva, embora eficaz, ele l uta con tra o imperialismo entre cada uma das interpretações cio peronismo e cada uma elas al ter-
[ ...] Dispõem-se a superar Perón nas reformas sociais, porque entendem nativas de rlesj1eronizaçâo; é ilustrar com clareza o sistema ele diferenças
que seu maio1'. defei to é ter sido pouco radical". E é esta a origem de sua que ordenava as diversas opiniões e os mecanismos de reconhecimen-
fórmula: "Perón mais x". Desperonizar equivale, no en tender dessa es- to do caráter particular ele cada posiçfo. Dessa maneira, se alguns
querda, a "ocupar o lugar cio 'líder' cio proletariado que ficara vago" polemistas não conseguiram se reconhecer em nenhuma das variantes
com a derrota de Perón [p. 93].
listadas no livro, cm compensação todos efetivamente reconheceram o
Por úl timo, Amadeo expõe os fundamen tos de sua posição, fina- sistema ele classificação em que elas se apoiavam, utilizando as mesmas
lizando a terceira parte cio livro ("Maüana") com a proposta ele um pro- oposições para criticar, como Amacleo, os pon tos ele vista dos demais e
grama político. Sua principal crítica aos adversários retoma um tema construir a especificidade ele sua própria posição.
comum às diversas formulações do peronismo: os outros não souberam Para além do conjunto ele questões e posições que sustenta a exis-
perceber "a complexidade do fato peronista". Amacleo começa decla- tência ele algo reconhecicló como um problema comum, um objeto le-
rando não acei tar "que o peronismo seja visto exclusivamente como um
signo ele inferioriclacle, ou como um primitivismo renascido, ou, menos
1
'
gítimo de opinião e polêmica, a consagração desse objeto implica a
interiorização ele um tipo particular ele senso comum, de uma especial
ainda, como a adoção artificial de uma ideologia estranha à nossa idios-
capacidade de orien tação que permi te aos polemistas reconhecerem
sincrasia". Depois, desculpa-se pel os circunlóquios que se vira obrigado
(classificarem ) não só a posição ele quem fala, em cada circunstáncia
a fazer para explicar o que, a seu juízo, era a origem e a na tureza do
particular, como tam bém a posição daqueles aos quais o polemista se
peronismo - pela "profundidade sociológica da análise objetiva e desa-
refere para construir o espaço ele sua diferença. Essa capacidade, que
paixonada ele quem observa o problema sin ira et stwlio" [pp. 99-100].
guia os reconhecimen tos das diferenças mútuas, baseia-se exata mente
Assim descreve Amacleo sua própria alterna tiva, fundada exatamen te
no reconhecimen to unánirne do sistema ele classificações em que cada
nessa mesma idéia de complexidade: para ele, uma coisa complexa exi-
um demarca sua posição. A particularidade cio discurso de barricada, ou
gia pond eração, o que significava "discriminar entre os elemen tos po- ela retórica paníletária, é ser, a tal ponto, construído pelo apelo direto
sitivos e os elemen tos negativos". "A clesperonização cio povo não será a esse tipo de reconhecimen to que transforma em argumento principal
alcançada pela maciça acumulação ele vitupérios e pela farta exposição a mera exposição ele uma série de qualificações e desqualificações.
cios abusos conieticlos. Erro profundo que comprova a perda de con tato
Ayer, Hoy y Manana foi cliscu ticlo, às vezes rejei tado, outras vezes
com as forças ela alma popular" [ p. 123] .
aceito, mas o objeto ela polêmica sempre se ]imitou às avaliações elas
O problema principal era este: "a perda ele contato cios dirigentes
com o povo". Por isso, a ú'nica possibilidade de urna alterna tiva ser vito-
riosa era in tegrar o povo, e essa in tegração somen te poderia ser realiza- 1
G. Repj·oduzindo 11111 argumento usado por Perón desde 1944, e antecipando uma imagem qne, al-
da por quem fosse capaz ele "interpretar o povo, falando-l he ao coraç,io" gun anos depois, se generalizaria em certos setores, Amadeo formula uma advertência sobre a
necessidade de evitar qne uma di:s/1errmiu,,ün radical levasse à substituição do problema do /1ernnirnw
[p. 168]. Por fim, na opinião ele Amacleo, desperonizar é ·sinônimo ele
pelo problema do rmnuni,mo.
30 OS I NTELECTUAIS E A INVE NÇÃO DO PERONISMO R EPERTÓRIOS 31

opiniões cio seu au tor. Foi essa a posição colocacla em clebate e não o REPERTÓRIO DE QUESTÕES E ESPAÇOS DE DESACORDOS

sistema de diferenciações no qual todas as posições buscavam um lugar.


A resposta do escritor Ernesto Sábato [1956] ao livro é uma boa de- O segundo texto a ser examinado neste capítulo é produto de
monstração desse mecanismo. Sábato começa afirmando que "não são uma repor tagem organizada cm fins de 1958 por um jovem formado
poucas as idéias em torno das quais coincidimos [Amadeo e ele], mas pela Faculdade de Direito da UilA, Carlos Strasser, e publicada em for-
temos algumas divergências radicais". Para apresen tá-las, Sábato esbo- ma de livro um ano depois [Strasser, 1959]. Um de seus objetivosjá está
ça uma "brev, história" nacional em que, entre ou tras coisas, explica o implícito no próprio título da obra, Las !zquierdas en el Proceso Político
peronismo pelo ressen timen to e pela descrença de uma população ex- Argmitino: recor tar o espaço da esqu erda den tro do campo político!',
cluída e não reconhecida pelos dirigentes. Recorrendo ao mesmo elen- justamente a posição oposta à de Maria Amadeo, que, nesse momento,
co de motivos u tilizado por Amadco - e não sé> por ele, como teremos podia ser classificado pela esquerda como u m "nacionalista aristocr:t ti-
oportunidade de ver -, Sábato faz referência à "culpa de todos" pelo co" ou "de direi ta" 10• A reportagem que originou o livro contin ha uma
que tinha aco1Úecido no país [p. 34], fala da "vacância do cargo de lí- dezena de pergun tas, que abrangiam desde "o que é a esquerda?" e
der dos dcspossuídos" para explicar a ascensão do "obscuro coronel" "quando se está na esquerda?", passando pelo pedido de que se fizes-
Pcrón [pp:1925], e termina expondo sua proposta: mais do que des- se um balanço da posição das esquerdas no processo político argen ti-
peronizar, tra.tava-se de "compreender o povo" para, dessa maneir:1, no desde 1916, tocando até nos assun tos de política internacional que,
1;
poder "avaliar i a grau de justiça de suas demandas e a razão de ser do na opinião de Strasser, exemplificavam o c01tjunto das questões em dis-
1; fervor de sua fé" [p. 57]. cussão entre as esquerdas latino-americanas no início da década de
l
li1 . Não fossem as passagens de crítica explícita ou a transcendência
que a polêmica assumiu7, seria difícil para uma pessoa alheia ao calor
entre intelectuais em vias de peronizaç;°io. Este estilo de crítica se caracterizava por transpor p;ira
dos debates reconhecer, hoje em dia, a magnitude do esforço de dife- a literatura os debates que sacudiam o campo da política. O melhor exemplo talvez se encontre no
1 renciação realizado por Sábato. O lugar que ele procurava construir livro em que Ernesto Goldar [1971] articula seu discurso sobre o peronismo enquanto faz a "críti-
!
situava-se a meio caminho entre a "falta de tolerância de Amadeo" e o ca" ela produç;lo litcr;lria qne, no seu entender havia tornado esse fenômeno como oleto ou como
cenário. Goldar levou até o limite a idéia de que a literatura é um "reflexo cios debates políticos
"perigo" de transformar o peronismo de então, ou o do passado, em entre grupos sociais qtte dela se utilizam para cbr expressão aos seus interesses de classe" [p. 22].
"um motivo de orgulho". Sábato reivindicava para si uma possibilidade Dentro dessa óptica, Golda r fez urna revis,10 da produção literária argenti na desde 1945,
polemizando com cada autor e, especialmente, com as atitudes de cada um dos seus personagens,
aberta pelo sistema de diferenças que ele próprio compartilhava com partindo da idéia de qne eles seriam portadores das posições de seus criadores. Assim, por inter-
Amadeo: uma posição intermediária entre a desj1eronização do povo - a médio de uma sucessão de qualificações e desqualificaçiíes, Goldar construiu wna versão do pero-
seu ver, "compreensivelmen te peronista"- e a peronização de si mesmo, o nismo e, principalmente, um mapa das diferentes opiniões dentre as quais procurou reivindicar
11
para si um lug 1r diferente: 0nacionalismo ele direita sonha", "o escritor libcn:d relat,t", 0 artista
11

intelectual Sábato, até então um empedernido antiperonista 8•


emorional descreve de modo sentimentalista", "o stalinismo vernáculo grita histericamente", "os
universalistas natos se equivocam", "a esquerda aliadófila delira", "a palermiee fubista peca" etc.
9. Um espaço que a parecia da esquerda que procura\:, se aproximar do peronismo tentava construir
7. O debate entre Arnadeo e Sábatci alcançou grande repercuss;,o pública na época. Seus ecos se fi- em ?posição à hegemonia cio Partido Comunista. Cf., p. e., iQuhs la !z.q11i1mlr,? [19GI] e tam bém
zeram sentir, por exemplo, na polémica suscitada entre Sábato eJorge Abelardo Ramos. Ver os as re,ferências a essas disputas em Siga! [1991, pp. 132-133].
adendos .l segunda, edição de Ramos [1961] e tarnbérn jauretcl1e [1967, pp. 37-39]. 10. Algdmas categorias empregadas pelos anrore.s que participaram das lutas de classificação em to,0
8. Outro exemplo dos mecanismos cio discurso de barricada na constrnç,io elas diferença., ele opinião no cio nacionalismo podem ser encontradas, por exemplo, cm Alvarez [1975], Navarro [l 9(i8],
é a crítica literária, ou melhor; certo estilo de crítica literária, usual desde os fins da déc1da de ]950 Buchrncker [1987] e Rock [1993].
32 OS INTELECTUAIS E A I NVENÇÃO DO PERONISMO R EPERTÓRIOS 33

1970: a viabilidade do socialismo nacional, os movi mentos nacionais da tificar o que os socialistas e comunistas classificavam como "neoperonis-
África e da Ásia, considerações sobre a URSS, a China ou a Iugosl;ivia mo". Havia ainda representantes da chamada "esquerda independen te"
e previsões a respei to da possível dcílagr:1ção de uma nova guerra mun- e expoentes de conhecidas trajetórias no movimen to estudantil reformis-
dial. A parte substan tiva da reportagem, no entan to, concentrava-se cm ta, em que fizeram oposição ao governo pcronista. En tre estes encon tra-
duas questões; as únicas a merecer títulos cm separado e que reuniam vam-se alguns dos que, na esquerda, haviam apoiado com en tusiasmo o
mais de uma dúzia de pergun tas cada uma. A primeira recebeu o títu- candidato Arturo Frondizi (antes de este se tornar presiden te da Repú-
lo de "Peronismo", a segunda, de "Frondizismo". blica, cm 1958) e que, nesse momen to, lideravam o coro dos que se sen-
O estatuto diverso de cada uma dessas questões transparece já na tiam "traídos" por ele 12•
apresen tação do livro. As palavras de Strasser mostram muito bem que, O aspecto mais interessante do livro de Strasser não reside, porém,
se o frondizismo era um tema de caráter mais conjuntural, que come- no sumá rio pretensamen te exaustivo das diversas interpretações do
çava a fazer parte do passado, uma possibilidade frustrada de despero- peronismo contidas nas respostas, e sim no que se pode perceber pelo
nização na qual alguns setores da "esquerda não-peronista" haviam con- exame do conteúdo das pergu ntas da reportagem. Ao con trário elo li-
fiado' 1, o assun to principal continuava sendo o peronismo. O prólogo vro ele Amadeo, que tornava claro o campo dos pontos de vista permi-
começa com a afirmação de que: "Acreditamos ser imprescindível uma tidos por um sistema de clàssificação, a reportagem de Strasser ilustra
análise profunda do peronismo dian te de tudo o que este fenômeno, o co1jun to de questões que alimen tava esse sistema e, especialmen te,
por assim dizer, vem significando na vida do país e que, de uma maneira os espaços nele concedidos à polêmica, à construção das diferen tes
ou de outra, vem lhe causando grandes pertu rbações" [p. 16]. opiniões.
O questionário foi aplicado a uma dezena de indivíduos que repre- Sob a rubrica "Peronismo", a reportagem incluía as seguintes perguntas:
sentavam, segundo Strasscr, as diferen tes tendências da esquerda argen-
tina no imediato pós-peronismo. Uma representação que, por sinal, os a) <JHC raz,;es econôm ico-político-sociais lhe deram origem? Seu surgimen to
obedeceu a algmna wusa ou fator internacional?; b) qual foi o sig;nificado da Un ião
próprios entrevistados legitimavam, respondendo ao questionário e con-
Democr:ítica?; c) q uanto ao triu nfo de Perón em fevereiro de 1946: devíamos esperar
sen tindo em aparecer jun tos na mesma publicação. En tre os en trevista- q ue ocor resse como u rna conseqüência lógica? Foi um fato im previsto? A que se
dos havia porta-vozes autorizados dos chamados partidos tradicionais da deveu?; d ) a pol ítica econôm ico-social elo peron ismo J,orle s,,r r.onsitlemda de esquer-
esquerda argen tina, Socialista e Comunista, e também de suas an tigas d a? Foi fascism o? Foi u m bona partism o, n as con d i ções d a época? Pod e ser
irlentijiwrla com a de Yrigoyen por um a l inha popular com um? Pode ser r.nmparada .i
dissidências formadas ua década anterior, que sempre se colocaram à
d os movimen tos d e libertaç;io n acional da África e da Ásia?; e) a i nd ustrialização
frente de frações que propunham uma atitude "mais compreensiva" e de preconizada pelo peronismo, foi ,:arreia nn .wa execu f,io? Teria tido apenas d efeitos?
maior aproxiriiação com o peronismo. Havia igualmen te porta-vozes àos
grupos trotskistas que, ,nessa época, começavam a adquirir notoriedade 12. Tratava-se de um grupo hcteroêneo, com idades, origens sociais e formações distintas: o mais velho
'
j ; no país, alguns deles defendendo atitudes menos complacen tes dian te era ele 18'l7, o mais novo, de 1!)30; entre eles havia autodidatas, provenientes ele famílias de clas-
1! 1
se média abastada, médicos, advog1dos e conradores. Responderam à rcporttgem Silvio Frondizi,
do peronismo,' além de outros setores - identificados como "nacionalis-
1Jl
1
tas de esquerda" - que susten tavam uma posição "revisionista" para jus-
Rodolfo Ghioldi, A. M. 1-lnrtado de Mendoza, Ahd Alexis Latendorf, Nehucl Moreno, Rodolfo
Puiikrós, Quebracl,o (Liborio.Justo),.Jorge Abelardo Ramos, Esteban Rey e Ismael Vi,-1as. Os edi-
tores'.)nformam em uma nora, sem mais explicaç<)cs, <pie "os seg-uintes convidados pediram descul-
pas p,;r não participar'": Victoria Codovilla, Isidoro.[. Odcna,.José e Marisa Liccaga, Luis V. Som mi,
11. Cf. D. Viiias [1962], Tcr:in [1991] e Allamirano (1992]. .Juan.José llernfü1dcz Arregni e Maestre Wilkinson.

r
1
1
1
l 34 OS I NTELECTUAIS E A I NVENÇÃO DO PERONISMO R EPERTÓRIOS 35

j; Teria sido mal _executada?; f) teria sido correta, do ponto de vista j10lítico, a oposição Aproximadamente na metade cio questionário aparece uma série

'!:
q uase absol uta das esquerdas a Pcrón?; g) corno exf'lirar o Estado policial no governo
peronista? Em j stificável ?; h) que saldo positivo teria deixado o peron ismo? Os a.</Hc- tos
de perguqtas formuladas a partir de alguns pressupostos. A pergu nta J,
negativos foram mais n umerosos?; i) o que tr:ria acontecido, no plano cconôm i co- político- por exemplo, pede uma opinião a respeito do "acerto" das políticas da
i social,-se Perón não tivesse caído?; j) í]Uais os motivos da queda ele Perón? É possível esquerda frente a Perón e abre a possibilidade de uma gama limitada de
associá-la ao im perialismo inglês?; l) qual é a J1ossibilidade e a importânâa rio peronismo no respostas, também distribuídas entre um pólo negativo e outro positivo.
momento atual ?" [p. 23, grifos meus].
1,
No primeiro pólo, situavam-se as críticas da oposição frontal que a maior
1: parte ela esquerda havia feito ao governo pcronista, que afirmavam, por
A chav7 para a comprcens;10 dos princípios subjacen tes a essas
!
1 pergun tas está na inversão de sua ordem, começando pela avaliaçiio
exemplo, que essa esquerda "não soubera identificar os traços populares
! cio regime" (Puiggrós, Ramos, Rey e Vi11as). No pólo oposto, posiciona-
i política elo peronismo (quan to à sua importância e possibilidades no
vam-se os que defendiam tal atitude crítica da esquerda e alertavam con-
l
1 ,'
momen to at{1al) e terminando pela exposição mais geral das razões de
seu surgime1 t. As perguntas que aparecem na primeira parte da repor-
tra os riscos de identificar "popular" com "votos" ou com o mero êxito de
1
uma política "demagógica" [Ghiolcli, na p. 57]. A pergunta e - que soli-
1 ' tagem abordam os clissensos mais graves, são temas que servem ele sín-
citava uma avaliação das políticas do Estado peronista -dirigia-se funda-
i
1
tese e englobam a sucessão de diferenças parciais: ou mais sutis, permi-
mentalmen te àqueles que, ao mesmo tempo, avaliavam mais negativa-
tidas pelas demais. Por exemplo, a valoração positiva ou negativa dos
mente a oposição da esquerda a Perón e mais positivamente a experiên-
saldos deixados pelo peronismo (pergun ta h) figurava entre os princi-
cia peronista, visto que demandava uma resposta formulada a partir do
pais motivos de discordância, pois solicitava que se fizesse uma avalia-
próprio peronismo. Assim, por exemplo, até mesmo os que consideravam
ção do que havia restado elo peronismo após sua derrota, gravitando
incorreta a industrialização promovida pelo Estado peronista - geralmen-
mais dirctanentc cm torno das esperanças políticas cios entrevistados.
te sob a alegação de que não se oferecera um estímulo suficiente à indús-
Assim, limitar a avaliação positiva a uma afirmação genérica a respeito
tria pesada [p. e., Ramos, na p. 200] - sustentavam que o peronismo ti-
da "incorporação das massas na vida política ativa" [Fronclizi, na p. 31) 13
nha sido uma tentativa mais ou menos fracassada de desenvolvimento do
era mui to diferente de defender que essa incorporação significasse, ao
mesmo tem p,uma "nacionalização" (ou "criollización ") da consciência capitalismo nacional. E, nesse momen to, era evidente para todos que
do proletaria<lo [Ramos, na p. 197]. Nessa mesma linha, era bem dife- qualificar o peronismo como um "ensaio de capitalismo nacional", ou
rente atribuir os traços negativos do peronismo à "imaturidade da classe como uma "revolução democrático-burguesa abortada", permitia propor
operária" [Ghioldi, na p. 57 e, de modo um pouco distinto, Viüas, na alternativas corretivas para o futuro [Puiggrós, na p. 160). No mesmo
p. 205] do que atribuí-los à "imaturidade do país" [Puiggrós, nas pp. sentido, na pergun ta g, o Estado policial peronista podia ser cri ticado
157-58 e Raos, na p. 205 ] . Nos dois primeiros casos, estavam os que como um símbolo de totalitarismo (Ghioldi) ; caracterizado como traço
avaliavam ele 'modo mais negativo a experiência pcronista, e nos segu n- típico ele um governo bonapartista origi11;1rio de um Estado cm que a
dos, aqueles que manifstavam apreciações mais positivas. burguesia, por sua fraqueza, fora substituída pelo Exército (Frondizi); ou
!1 : celebrado como uma manifestação, embora imperfei ta e exagerada, de

l:1.
:1
violência revolucionária (Puiggrós e Ramos).
13. Os nomes citados nesla parte do texto são de indivíd uos que responderam ,, reportagem de \Uma análise aten ta da reportagem permite entrever a imagem de
Strasser; as páginas indicadas, em cada caso, cor respondem a Strasser [195!)]. uma squcrda que passava por uma situação dramática no pós-peronis-
1-
i
i
1
36 OS I NTELECTUAIS E A I NVE NÇÃO 00 PERONISMO R EPERTÓ RIOS 37
1

mo, um drama cttjos termos eram substancialmente semelhantes aos elas das obras anteriores, esse terceiro texto teve origem no próprio campo
demais forças que, depois de 1955, se enfrentavam no campo da polí- universitário, cm uma de suas áreas tradicionalmente mais "politizadas":
tica. No fundo, havia dois problemas. Um deles era explicar uma ade- a Faculdade de Direito ela Universidade de Buenos Aires. Trata-se de uma
são popular que nenhum dos entrevistaclos jamais merecera. O outro publicação organizada pela Cfttedra ele Direito Político, c1tjo titular era
era propor caminhos mais adequados para obter essa adesão. As alter- en tão Carlos I-I. Fayt. O objetivo ela apresentação de La Naturaleza del Pe-
nativas para explicar esse desencontro com o povo distribuíam-se entre ronismo era "reunir material para entender o quê e o jJOrquê do peronis-
dois extremos. De um lado, criticar a esquerda -, no caso dos militan- mo""'. Para tanto, a obra foi dividida cm três partes. Na primeira, Fayt faz
tes mais jovens ou dos recém-chegados à esquerda - ou fazer sua uma exposição de suas "hipóteses de trabalho", uma descrição do "fato
autocrítica - no caso dos velhos militantes -, por ni'io terem sabido iden- pcronista", e apresenta suas conclusões sobre o quê e o porquê do pero-
tificar a dimensão positiva da adesão popular a Perón, nem eventual- nismo, formulando três hipóteses: 1. "Perón é simplesmente Perón e o
men te radicalizá-la. De outro lado, criticar o povo por ter embarcado peronismo é produto de sua von tade de poder"; 2. "o peronismo é a ver-
numa aventura demagógica, au tori tária ou populista (que também não são a rgentina elo fascismo italiano"; e 3. "o peronismo foi a resposta po-
era incompatível com certa dose de "autocrítica", por não terem sabi- lítica ;is condições sociais e econômicas vigen tes na Argentina de 194,
do criar as "cmclições subjetivas" que poderiam ter impedido tamanho uma necessidade histórica·ettja missão foi cumprida por ter facilitado o
surto de falsa consciência popular). No primeiro caso; abria-se o cami- acesso do proletariado à cena política" [Fayt, 1967, pp. 15-17). Após uma
nho para a /1eronizaçiio da esqiwrda, no segundo, propunha-se a despero- extensa exposição sobre a "história e a sociologia do peronismo", Fayt
nizaçrlo do povo. termina a primeira parte do livro com uma série de "definições":

I. O peron ismo é uma for ma de at1toritarismo baseado no porler das massas


[...]; II. icleolo?;ica men te, o peron ismo é in imigo do liberalismo [...]; lll. seus dois
DISTÂNCIA E PROXIMIDADE: 0 PERONISMO COMO 'FENÔMENO' E COMO 'EXPERIÊNCIA'
braços são a justiça social (Pcrón ) e a assistência social (Eva) e com eles pretende
ii, t1nir o povo n um abraço de justiça e amor [...]; IV. o peronismo não teria existido
O tercefro texto foi publicado em 1967, dentro de um clima políti- sem o apoio do Exército, da Igreja e da classe opcr;íria, e tam pouco sem o desam-
co e cultural ,substancialmen te diferente do que havia predominado no paro das massas popt1lares a rgen tinas (...l ; V. assemell ra-se ao fascismo [e] mostra
semelha nças com o bonapartismo [...]; VI. o proletariado adscrito ao peronismo não
momento da 'edição dos livros de Amadeo e de Strasser, cerca de uma
é an tidemocrático [...], mas se man tém n uma ati tude de profu nda passividade, fei-
década antesi Sua publicação ocorreu depois que o golpe de Estado lide- ta de nostalgia e espera, acostu mado a receber tudo elo poder, sem esforço e sem
rado pelo ge1iral Onganía .interrompera a experiência de democracia futuro [pp. 155-158).
limitada vivida pelo país sob o governo elo presidente I1ia 11• O novo gol-
pe procedeu com especial violência no campo da produção cultural; o O carfttcr pelo menos eclético das conclusões de Fayt (que apre-
Exército intereio nas irniversidades nacionais pondo u m li m ao regi me sen tam uma série de traços, mas não se preocupam cm defini r seus
de autonomijniciado ,pós a Revolução Libertadora. Mas, ao contrário
l!,. Fa'yt [ l \Hi7, p. 1 :-1, ,:rifo do orii;i nal]. Na aprcsrn1aç:io lamhém se diz que o lrnhallto foi pai roei·
\ 1 , ; ; ;
n,lt'.lo pdo C:enlro Arg-entino pel,1 Lihcrdadc da Cultura (órgão <]llC se carnctc.:rizava por fazer
14: Uso 'o acietivo, ,",limitada", porque o governo rtdical de Arruro Ilia nasceu de eleições em que o op'sição à pulílica cultur.il do governo Perón e que identific1Va o peronismo como uma mani
; \ . Partido Peronista ainda estava proscrito. fcstaçiio local do fascismo europeu).
', \' '
38 OS I NTELECTUAIS E A I NVE NÇÃO DO PERONISMO R EPERTÓ RIOS 39

1: conteúdos, nem em estabelecer seus nexos) prende-se cm boa medida clistauciamen to com relação às paixões do debate político e aos interes-
t f,
ao fato de que, na realidade, a primeira parte do livro pretende ser não ses valorativos. Essa percepção encontrava reforço no cenário onde trans-
/
j, só a exposição de seus próprios pon tos de vista, mas tam bém uma es- corriam os debates, a própria universidade, e na sua instància organiza-
1
pécie de síntese das outras duas partes em que a obra se divide. Nessas dora, a cátedra de uma das faculdades. Entretanto, a descon tinuidade
1
1 :
outras partes, Fayt apresenta um inven tário, no seu entender bastan te assinalada no texto de Fayt nada tem a ver com a simples substituição de
exaustivo, de autores, interpretações e debates sobre o peronismo. O uma percepção política do peronismo por outra de natureza acadêmica.
que me interessa ressaltar aqui sáo alguns pressupostos revelados por Trata-se ele uma descontinuidade mais sutil e complexa, que ilustra de
essa intenção e essa característica de sua obra. que maneira o peronismo havia deixado de ser percebido como um pro-
Na úl tima parte, in titulada "Confrontações", Fayt transcreve os blema eminentemente político e passara a ser visto como um problema
resultados de cinco mesas-redondas promovidas pela Faculdade de Di- ao mesmo lCTnpo político e acadêmico. Ao final de uma década, o peronis-
reito da UBA, para as quais foram convidados cerca de vin te "especia- mo surgia como uma questão duplamente legitimada: podia tanto ser
listas" com a finalidade ele discutir diversos aspectos do "fenômeno pe- discutido por f 1olíticos em esf1aços e em termos acadêmicos quanto por acadê-
ronista": sindicatos e peronismo; as condições sociais e econômicas da micos em termos e espaços políticos.
Argentina depois de 1943; o sistema de valores ela sociedade argen tina A percepção do peronismo como algo passível de discussão acadê-
em 1943; o sistema de lealdades políticas no país cntre·1943 e 1916; e mica ( e, por ta n to, o recon heci mento ela existência ele uma perspectiva
a Igreja e o peronismo. acadêmica sobre o peronismo) in trod uziu u rna nova dimensão no sis-
Embora La Naturaleza de[ Peronismo tenha sido publicado dez anos tema elos diferentes pon tos de vista a seu respeito. O maior mérito do
depois ela Revolução Libertadora, a melhor demonstração elo caráter livro ele Fayt é:justamente oferecer algumas pistas para a compreensão
político elo "problema peronista", ainda nesse momen to, encontra-se no dessa nova dimensão das diferenciações, na qual o pon to de vista aca-
conteúdo da primeira mesa-redonda, significativamen te dedicada ;1s re- dêmico foi reconhecido, represen tado, distinguido e dotado de atribu-
lações en tre sindicalismo e peronismo. As duas questões cen trais desse tos específicos.
debate davam contin uidade às preocupações de uma década a trás: de Isso se torna mais claro na segunda par te do livro, in ti tulada "In-
um lado, a existência ele uma base social peronista e, ele ou tro, a existên- terpretações". Ao longo de sessen ta páginas, Fayt expõe um inven tário
cia de uma potencial liderança nào-peronista. O problcm'.l que todos de autores e obras, uma coleção ele definições e avaliações sobre o pe-
concordavam cm debater era, como an tes, as causas e a natureza ele u rna ronismo. Sua in tenção é enumerar os "diversos juízos formulados sobre
adesão, e as possíveis alternativas para substituí-la ou transformá-la. a essência e o conteúdo do peronismo". São cerca ele quaren ta i tens,
No entanto, apesar ele demonstrar o in teresse político que o pero- cada um e1cabeçado pelo nome ele um indivíduo, com referências a
nismo ainda cleper tava o texto de Fayt chama a atenção para uma des- suas obras consideradas mais relevan tes sobre o tema e incluindo um
con tinuidade cm relaçãd,_às percepções an teriores, exemplificadas pelos resumo dos argumen tos tidos por Fayt corno essenciais. Não cabe ava-
textos de Amacleo e Straser. Embora as mesas-redondas não con tassem liar até que ponto sua descrição de cada uma dessas interpretações é
apen as com universitários, mas tam bém incluíssem represen tan tes da correta, mas sim destacar o sentido geral que organiza a compilação. A
Igreja, sindicalistas e mili tantes políticos, as questões propostas aos de- retórica de que se utiliza Fayt oferece urna primeira indicação: o cuida-
batedores aparen tavam um tom acadêmico, pretendiam ·manter certo do cm resenhar "objetivamen te" cada uma elas pmições surte o efeito
40 OS I NTELECTUAIS E A INVENÇÃO DO PERONISMO R EPERTÓRIOS 41

de eliminar o caráter polêmico que agitava os debates sobre o peronis- As fon tes citadas por Fayt para resenhar as duas interpretações são os
mo - tal como se observou no caso cios inventários apresentados pelos livros publicados pelos autores, produtos dessa atividace acadêmica 17•
dois textos a nteriores, explici tamente mais politizados. No en tan to, o Lendo-se o livro de trás pa ra dian te, à interpretação ele Perón,'
fato ele a exposição elas diversas interpretações não respei tar o meca nis- seguem-se as ele Alberto J. Iturbe e Oscar Ivaniscvich. '.) primeiro era
mo ele atribuiçiio ele qualificações e avaliações u tilizado pelos inven tá- engen heiro, e o segundo, médico, ambos notoriamente políticos pero-
rios anteriores, não significa que sua com pilação não obedeça a uma nistas, com algum tipo de partici pação no governo e1 tre os anos de
ordem. É que essa ordem segue princípios diferen tes cios que são en- 1945 e 1955. /v; fon tes indicadas por Fayt não são livros produzidos no
contrados na retórica de tom combativo do discurso d e barricada, prin- âmbito u niversitário, mas depoimentos gravados, nos q1ais os dois re-
cípios esses que não se fundamen tam na proclamaçào das diferenças, latam suas experiências de militância e governo 18•
na retórica da den úncia ou do anátema. A ordem elo inven tário de Fayt faz uso ele um sistena de proximi-
Fayt abre a segunda parte de sua obra com a interpretação do dades e de clistàncias 1i•1 De um lado, as in terpretações des:ritivas, distan-
peronismo d e Seymour Mar tin Lipset e termina com a do próprio ciadas do peronismo, visto como um fenômeno, tan to cm cecorrência de
Juan Domingo Perón. Lipset era o único autor que aliava, à sua con- uma atitude objetivadora quan to de uma rejeiçào política por parte dos
diçiio de estrangeiro, o fato de não ter participado direta men te das l u que se identificavam como não-peronistas. De ou tro lad,), as interpre-
tas políticas , e intelectuais do país 11\ Aparen temen te movido pelo tações valorativas, próxi mas do peronismo, expressas peles que se iden-
simples in teresse cm analisar o fenômeno peronista, Lipset encarnava o tificavam como peronistas, e que o descrevem como una exjJeriência,
paradigma do: distanciamen to, da exterioridade e da neu tralidade uma iden tidade política posi tivamente definida.
valorativa. No extremo oposto, não há dúvida de que Fayt não poderia
encon trar ua
interpretação da experiência jJeronista mais antagônica à
Sem nunca tornar explícitos os princípios subjacen ts à sua orde-
nação, Fayt dispõe as in terpretações de modo nitidamente diferen te do
. de Lipset - por seu caráter valorativo, por sua proximidade - do que
a de Perón, como demonstra o fato ele que, mais do que expor uma
:j:.. 17. Em sua resenha da inlerprcta\ io de Germani, Fayt insiste n l idéia do pcronisno como um Jnm.t
in tcrpretaç.lo, · Fayt se vê obrigado a transcrever partes de seus discur-
'
i
de parlicipaç;io pop11lar, embora seu aldo posiiivo lenha sido o de "permilir < rcconht:cirnc1110
sos: ne11h uma voz estava mais autorizada a expor a doutrina jJeronista elas classes populares por parte ,!os demais sctor-es da sociedade" [Fayt, 19G7, tP· !G2-161]. Fayt
do que a elo póprio Perón. descreve a interpretação do peronismo de José Lnis Romero como uma "ditacura tot,lli1:1ria de
massas", baseada ítrncbmcntalmc1r tc 110 apoio do /1t111jll'l1jm1/timiat [F.1yr, 1907, t, ll>éí].
Seguindo;a ordem do repertório ele interpretações proposto pela 18. De acordo com Fayt, o primdro definia o peronismo como "a doutrina argcnti1a 11ue permite a
Jibert;1ção do povo arg-entino e estabelece um erp1ilíhrio real, positivo e vcnlaceiro entre os ex-
obra, logo depois de Li pset, aparecem as in terpre tações de Gi no
,1 i cessos elo liberalismo e do coletivismo" [pp. 205-206]. O segundo qualificava o rronismo "como
i: Germa11i e Joé Luis Romero, dois autores identificados como não-pe- nm;1 nova filosofia ele vida, simples, prár ica e popular, profundamente cristã,profundamente

j ronistas e que, man tendo diferen tes graus ele participação e in teresse lur mana" [p. 20:l).
1<). A lista com pleta dos alltores é a scr;ui n te: Seymour Martin Lipset, Gino Gennani, José Luis
l na política - um como spciólogo, ou tro como historiador -, tinham na
Romero, Alfredo Calctti, Sílvio Frondizi, Torcuato Di Tella, Jorge Abelardo bmos, Al berto
universidade e no mu ndo acadêmico uma área específica de atividades. Bclloni, Enricp1e River.1,.J11;u1.José Real.Juan José Hern;índcz Arregui, Ernesto i:íbalo, Rodolfo
1 Gh ioldi, Osra r E. Al birc tr, Agustín Roclrir;lles Araya, Ezeqlliel Martínez Etrada, Marcos
'i : Jl,l,archenky, Ernesto Palacio, Rml Damontc Taborda, Reynaldo Pasto,;Jorgc Luis llirges, Sebasti,\n
Soler, Eduardo Gonzales Lanuza, Carlos Mastronardi, Guillermo de Torre. León Rtzitdme, O.siris
16. Apesar de sua of ter sido us;1da como arg11rnento de a11toricbdc por 011tros_ autores f]lle, como
0 Tràiani, Ismael Virias, 'folio llalpcrín Donhi,Jtran José Sebrdi, Manuel T Cerras Alfredo Parcra
1' próprio Fayt, efetivamente participavam di rerarncntc das !mas intclccru.iis e políticas nacionais.

l
i
1
Dennis, Oscar lvaniscvich, Alberto Iturbe,Juan Domingo Perón.

1
i
!
OS INTELECTUAIS E A INVENÇÃO DO PERONISMO
2
·de ha_viam feito l'vhrio
' A ma. d eo e Carlos Strasser. Pode-se perceber que
I ·t·
Fayt• nao elimina' 'a5 c ass1 - usadas por estes: ele também mencio-
!Caçoes
na
. m . terpretações 'alicerçacl as
. ' . . mterpret 1· - positivas e negativas do pe-
1on1smo, arrola . cmd ava iaçocs
.
ª gama _
de possibilídad , açocs · t e dperornstas
" · e não-pero nistas (e ele toda
e 5 erme 1 ,m as) . Mas a esse sistema de classí-
ARGUMENTOS DE AUTORIDADE
ficaçao, fu ndado nas' avalia lil • . d b. .
. . _ . ' ' 'çoes o o eto peromsmo - e na construção
de distmçoes
• por me·1º da ava 1c1çao . • dos demais -, soma-se
1.. - elas pos1çoes
um sistema de difer b
enças aseac1o nos argumen tos d e autoridade de
que cada posição lança mã ..
' o para. 1cgit1mar ·sua. mterpretação. Visto que
se tratava t:i mbém e · · . J •
. , . , pnnc1pa men te, de distinções reivindicadas por
essas propnas posiç · d 11
o es, na a me 1or para compreender a ma neira
corno
.. . operavam
, do q . .
ue ana 1isar ª construção de seus princípios ele le-
g1tunidade· E este
• O00 · · od proximo
etivo , . capítulo.

Dois princípios governam a lógica da honra e elas lutas ele honra:


nm afirma que eles:ifiar indivíduos que ocupam posições de reconheci-
da superioridade na hierarquia social é uma forma de buscar ascensão
social; outro avisa que aceitar o desafio ele pessoas ele status inferior é
uma demonstração de fraqueza que põe em risco a posição de uma
pessoa na hierarq uia social. A con tradição en tre esses dois princípios
só pode ser evitada na situação ideal cm que os duelistas somente re-
conhecem como adversários legítimos os indivíduos de status seme-
lhan te. No entan to, o reconhecimento das hierarquias e elas posições
sociais não envolve tais unanimidades; as lutas de honra, que também
são lutas de status, revelam a natureza conflituosa, ambígua e fluida
das hierarq uias sociais, a dimensão simbólica do poder e dos princí- \
pios que legitimam as diferenças entre as posições elos indivíduos ,,
sociedade 1•
\
\

l. Pit t-Rivers [1%fi] e Bourdieu [1980, pp. l(i7-174 1

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