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| ENTREVISTA • MAURE PESSANHA


FOTO: FELIPE GABRIEL

|6 GVEXECUTIVO • V 17 • N 1 • JAN/FEV 2018


CHOQUE
DE REALIDADE
| POR ADRIANA WILNER E ALINE LILIAN DOS SANTOS

Q
uando fazia a faculdade de Administração de Empre-
sas na Universidade de São Paulo (USP), em 2000,
Maure Pessanha teve uma experiência transformadora:
foi uma das fundadoras do cursinho pré-vestibular da Fa-
culdade de Economia, Administração e Contabilidade da
USP (FEA-USP), que atualmente oferece 480 vagas ao
ano para estudantes de baixa renda. Foi nesse primeiro
empreendimento de impacto social que ela teve contato
com histórias como a de uma aluna que passava o dia
debruçada nos livros dentro dos trens do metrô, porque não tinha espaço
adequado em casa para estudar.
A partir daquele momento, decidiu que queria levar seu conhecimen-
to em gestão a organizações ligadas a causas sociais — um objetivo que
ficou ainda mais claro depois de ganhar uma bolsa para estudar por seis
meses na Universidade de Harvard, onde a discussão sobre modelos de
negócios em prol da sustentabilidade estava mais avançada.
Hoje diretora executiva da Artemisia, Maure é responsável por geren-
ciar essa organização sem fins lucrativos que é uma das principais disse-
minadoras e fomentadoras de negócios de impacto social no Brasil. Nos
últimos seis anos, a aceleradora da Artemisia selecionou mais de 100 ne-
gócios voltados à população de baixa renda.
Nesta entrevista à GV-executivo, Maure dá um choque de realidade em
quem quer entrar na área e se mostra entusiasmada com parcerias como a
realizada em uma disciplina da graduação da Escola de Administração de
Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP), em
que os alunos visitam Heliópolis, criam e alavancam projetos de negócios
na comunidade. “Essa vivência quebra o discurso cristalizado de merito-
cracia, contribui muito para o ‘quero ver você ali tendo aquela vida’”, diz.

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GV-executivo: O que é, genuinamen- saber: quais são as necessidades da po- ainda precisa validar o seu produto, tem
te, um negócio de impacto social? pulação de menor renda e quais são as empreendedor com questões societárias
Maure: Existem muitos negócios oportunidades de negócios que pode- para endereçar.
que têm impacto social e ambiental mos prospectar? Uma informação que
positivo para diversas classes sociais. chamou a nossa atenção foi que o defi- GV-executivo: Até que ponto é be-
Mas, na Artemisia, acreditamos que é cit qualitativo da habitação é duas ve- néfico transpor modelos de gestão
uma contribuição ainda mais relevan- zes maior que o quantitativo. Portanto, do setor privado para o setor social?
te buscarmos desenvolver soluções em uma empresa que oferecesse reformas Maure: Os negócios de impacto so-
escala para o jovem que depende da de baixo custo, como a Vivenda, pro- cial são empresas lucrativas. Então, as
escola pública, a pessoa que depende porcionaria um superimpacto. Fomos ferramentas de gestão são as mesmas.
exclusivamente do Sistema Único de proativamente buscá-la. Porque, no fim do dia, se o negócio não
Saúde (SUS) ou que está desprovida ficar de pé, se o dinheiro acabar, se o
de serviços financeiros. Apoiamos ne- GV-executivo: Quais são os pré-re- empreendedor não tiver validado o pro-
gócios viáveis economicamente que quisitos para um negócio ser acele- duto ou o mercado dele, a empresa mor-
resolvam o problema da população de rado por vocês? re. Há práticas de negócios que são as
menor renda. Nosso sonho é que 100% Maure: Tem que ser um negócio, mesmas de qualquer startup, mas tam-
dos brasileiros possam viver uma vida tem que existir um mercado e tem que bém há práticas próprias, como a teoria
digna e ter poder de escolha. resolver um problema social da popu- de mudança, que é uma ferramenta de
lação de menor renda. Além disso, o acompanhamento de indicadores que
GV-executivo: Quando um negócio empreendedor precisa querer mensurar tem a ver com a visão do impacto so-
chama a sua atenção? o impacto social do seu negócio e ser cial do empreendedor. É claro que, em
Maure: Quando o empreendedor cobrado por esses indicadores. A cultu- negócios de impacto, a questão da co-
quer resolver um problema que, às ve- ra organizacional precisa respirar essa erência e da missão tem de estar muito
zes, ele mesmo vivenciou. Um exemplo gestão. Trabalhamos com empresas em mais presente. Mas, na essência, é um
é a plataforma Diáspora Black, cria- estágio inicial, não com aquelas que já pensamento bem de negócio.
da por um empreendedor que sofreu captaram investimento nem com empre-
preconceito ao participar de portais de endedores que só estão na ideia. Tam- GV-executivo: O empreendedor às
hospedagem. Aconteceu de hóspedes bém avaliamos o time empreendedor, se vezes resiste às ferramentas de ava-
chegarem à casa dele, de frente para tem experiência prévia e se está 100% liação de impacto social?
o mar de Copacabana, e irem embora comprometido com o negócio. Maure: Os empreendedores mais
ao verem que ele era o dono da pro- maduros entendem que avaliar impac-
priedade e negro. Com base nessa ex- GV-executivo: Quais são as bases to não é custo, é investimento. Se, por
periência, que provavelmente é a de da metodologia da Artemisia? exemplo, você faz um jogo para ajudar
muitas outras pessoas, ele criou um Maure: Trabalhamos em duas esfe- as pessoas a compreenderem melhor
modelo de negócios que hoje é muito ras. Uma coletiva, baseada em empre- a matemática, verificar se o seu aluno
maior do que a hospedagem, pois tem endedores contribuindo uns com os está de fato aprendendo é o ponto base.
toda uma visão de fomento e valoriza- outros. Nada melhor do que um empre- O problema é que, às vezes, o empre-
ção da cultura negra e fazer com que endedor para saber as dores do outro. endedor quer só o número de usuários.
as raças dialoguem. Há também encontros temáticos sobre, Mas, se for inteligente, saberá que um
por exemplo, investimento, equipe, efi- investidor só vai se interessar pelo ne-
GV-executivo: Como os empreende- ciência e segurança de dados. E outra gócio se, além do número de usuários,
dores chegam à Artemisia? individual, com um plano de trabalho houver um bom engajamento por parte
Maure: Todo ano temos a abertura semanal personalizado para cada em- deles. No fim das contas, há uma con-
de inscrições para um processo sele- presa. Nossa equipe é um apoio, não vergência dos indicadores de impacto
tivo. Mas a maioria dos negócios nós vamos empreender pelo empreendedor. e dos indicadores do negócio.
garimpamos. Contamos com uma área Estamos lá ajudando a bater o bumbo.
de busca e seleção por setores em po- É um trabalho bem individualizado: tem GV-executivo: Hoje, quais são as
tencial. Por exemplo, se resolvemos es- empreendedor que está no momento de áreas mais promissoras no Brasil
tudar o setor de habitação, procuramos captar recursos, tem empreendedor que para os negócios de impacto social?

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Maure: Serviços financeiros e saúde.
Habitação também, embora seja uma
área bastante desafiadora. Em edu-
cação, há um caminho para tudo que
dialogue com habilidades socioemo-
cionais e preparar as pessoas para o
mercado de trabalho do futuro. Solu-
ções de saneamento e mobilidade ur-
bana também devem crescer.

GV-executivo: Qual é o perfil dos


empreendedores apoiados pela Ar-
temisia?
Maure: De um lado, há uma nova
geração que já vem com o chip de que-
rer fazer a diferença no mundo. De ou-
tro, há um movimento de pessoas que
já viveram uma trajetória profissional
bem-sucedida e veem nos negócios de RAIO X
impacto uma forma de ganhar dinheiro Maure Pessanha.
Nascida em 08/07/1982.
e contribuir para a sociedade. O perfil
Formada em Administração
do empreendedor apoiado pela Artemi- de Empresas pela USP.
sia é bastante qualificado e acima dos Diretora executiva da Artemisia.
35 anos. É uma pessoa mais madura,
que já tem uma experiência profissio-
nal relevante. Embora na maioria dos
negócios as mulheres sejam as princi- diversidade. Por isso, estamos lançando principalmente para aqueles que pre-
pais clientes, usuárias ou tomadoras de uma aceleradora de negócios de impacto cisam entre R$ 500 mil e R$ 1 milhão.
decisão, 70% dos empreendedores são na periferia com a FGV EAESP e a pro- São desafios muito parecidos com os
homens. Muitos negócios são baseados dutora cultural e social Banca. A ideia de qualquer empresa privada, só que
em tecnologia, área em que, tradicio- é buscar soluções que possam escalar há uma quantidade menor de infor-
nalmente, há menos mulheres. Temos e ajudar empreendedores da periferia a mações de mercado em relação às
pouca diversidade de gênero, raça, re- dialogar com investidores profissionais. necessidades da população de menor
pertório e origem. Nossos empreen- renda. Não há tantas pesquisas sobre
dedores são concentrados em homens GV-executivo: Em sua visão, quais comportamento. E, dependendo do
brancos, na Região Sudeste. Isso é um são os desafios para o empreende- setor, para ter escala, é preciso dia-
desafio para um setor que se propõe a dor de negócio de impacto social logar com o governo.
resolver questões sociais. no Brasil?
Maure: Um deles é que, muitas ve- GV-executivo: Vocês têm parcerias
GV-executivo: Qual é a razão dessa zes, o empreendedor busca uma solu- governamentais?
concentração? ção para melhorar a vida de uma pes- Maure: Estamos com um projeto
Maure: Eu acho que é uma questão soa em uma realidade que não é a dele. com o Banco Interamericano de De-
estrutural. Para um empreendedor de Não funciona como qualquer empreen- senvolvimento (BID) para identificar
periferia, é tudo mais difícil. Já come- dimento, que você está sempre do lado os desafios dos clientes, públicos e pri-
ça quando ele está na barriga da mãe, de seu cliente para ver qual é a melhor vados, e conectá-los com negócios de
no número de palavras que ouve em solução. Às vezes, não é tão fácil acessar impacto que tenham soluções para eles.
casa. Em questões nutricionais e edu- determinada comunidade. A busca por Vamos supor que uma secretaria de edu-
cacionais, o buraco é bem embaixo. recursos financeiros, assim como para cação de um município tenha um desa-
Temos como desafio encontrar maior qualquer empreendedor, é um desafio, fio enorme de alfabetização dos jovens.

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Podemos pensar em conectar um em- Você tem seu plano de saúde e é aten- sites e produtos. Ainda nem entendeu
preendedor que desenvolve uma solução dido imediatamente, mas e quem não direito o problema que ele quer resol-
educacional voltada a jovens de menor tem? Precisa esperar seis meses por uma ver e já está apaixonado pela solução
renda com esse município. consulta. Muitas vezes, a inovação sur- que criou. Isso é sinônimo de fracas-
ge antes da lei. Agora mesmo, o Con- so, porque a pessoa gasta muito para
GV-executivo: Quais são os crité- selho Nacional de Medicina publicou criar aquela solução. Quem estuda o
rios de avaliação do sucesso de um uma portaria com uma série de regu- problema pode também chegar à con-
negócio de impacto social? lamentações para as clínicas. Na hora clusão de que o negócio não é viável,
Maure: Temos debatido bastante so- em que surge a inovação, a sociedade mas, pelo menos, não saiu gastando.
bre esse tema do caso de sucesso. Ine- tem de combinar o jogo.
gavelmente, é o de um empreendedor GV-executivo: A Artemisia é parceira
que conseguiu criar uma solução que GV-executivo: Quais são as tendên- da FGV EAESP em uma disciplina de
esteja em uma curva de prosperidade. cias para o setor? negócio de impacto social em que os
Empresas que conseguiram se conectar Maure: Uma grande tendência são alunos fazem uma imersão na comu-
com políticas públicas também são ca- essas parcerias intersetoriais: negócios nidade de Heliópolis e criam projetos.
sos de sucesso, em nossa visão. Temos, de impacto contribuindo para governos, O que essa experiência tem mostra-
por exemplo, o Vivenda, que talvez não entrando também na cadeia de grandes do a vocês?
esteja faturando R$ 50 milhões, mas já empresas. Por exemplo, o governo do Maure: Acho que ter os jovens de
criou muitas inovações, impactou o se- estado de São Paulo está trazendo o Heliópolis circulando pelos corredores
tor e inspirou outros empreendedores a Pitch Gov.SP, em que lança desafios da FGV tem muito valor, mútuo. Para
buscar soluções para reformar moradias em diferentes áreas para os empreen- esse jovem, ampliam-se o repertório e
de baixa renda. Em qualquer modelo dedores apresentarem seus projetos. o capital social. Para os alunos, aumen-
mental tradicional, um negócio que Outra tendência que vai continuar é ta o interesse em se dedicar ao empre-
está em uma linha de faturamento já é o crescimento de pessoas envolvidas endedorismo de impacto social. E essa
um caso de sucesso. Mas nós questio- e querendo trabalhar nesse setor. Por disciplina também contribui para rever
namos também: quais são as métricas fim, outra questão forte é como usar o discurso da meritocracia. Quando o
de impacto, o negócio está influencian- os dados de forma ética. aluno vai a Heliópolis, vê que a pessoa
do outro empreendedor, está educando não dormiu direito por causa da briga
as pessoas? GV-executivo: O que você recomen- dos vizinhos, que é um ambiente inse-
da para quem quer montar um ne- guro, que, às vezes, não dá para estudar
GV-executivo: Quais são as princi- gócio de impacto social? à noite, não por preguiça, mas porque
pais controvérsias na área de negó- Maure: Não precisa de cartão de vi- ficar no ponto de ônibus é perigoso. Essa
cios de impacto social? sita, de nome, de site, de escritório... vivência quebra o discurso cristalizado
Maure: A questão da distribuição ou Quem quer empreender na área deve de meritocracia, ajuda a formar a lide-
não de dividendos para os acionistas é se dedicar a compreender profunda- rança do futuro, contribui muito para o
controversa. Para nós, essa é uma deci- mente o problema que quer resol- “quero ver você ali tendo aquela vida”.
são dos empreendedores. Para Muham- ver, para só então pensar na solução. Você marca uma reunião às 8 horas. Se
mad Yunus, negócios sociais não devem Depois, sim, buscar as pessoas certas alguém chega atrasado, pensa: “Fulano
distribuir dividendos. Outro tema é: qual para fazer parte do time, ir atrás de re- é um vagabundo”. Mas você acordou
é a melhor forma de mensurar o impac- cursos. Isso não é trivial. Demorei dez 45 minutos antes da reunião, ele teve
to? Existe ainda o questionamento de anos para entender que esse é um dife- de acordar três horas antes. Tem gente
se esses negócios estão substituindo o rencial do empreendedor. Conheço his- que fala: “Quem quer faz”, mas não é
papel do Estado e das organizações so- tórias de empreendedores que gastaram bem assim.
ciais. Por exemplo, quando começaram uma fortuna para decorar o escritório,
a aparecer clínicas populares, como o que começaram a crescer e chamaram
Dr. Consulta, já estávamos prospectando os amigos para trabalhar junto. Não! ADRIANA WILNER > Editora adjunta da GV-executivo >
a área. Mas tem quem fale: “O SUS é É preciso saber a hora certa para cada adrianawilner@gmail.com
ALINE LILIAN DOS SANTOS > Jornalista da GV-executivo >
quem deveria oferecer essas soluções”. passo. Empreendedor adora ficar vendo aline.lilian@fgv.br

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