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Texto A

Lê com atenção o seguinte excerto da obra As Pequenas Memórias.

Contei noutro lugar como e porquê me chamo Saramago. Que esse Saramago
não era um apelido do lado paterno, mas sim a alcunha por que a família era
conhecida na aldeia. Que indo o meu pai a declarar no Registo Civil da Golegã o
nascimento do seu segundo filho, sucedeu que o funcionário (chamava-se ele
5 Silvino) estava bêbado (por despeito, disso o acusaria sempre o meu pai), e que,
sob os efeitos do álcool e sem que ninguém se tivesse apercebido da onomástica
fraude, decidiu, por sua conta e risco, acrescentar Saramago ao lacónico José de
Sousa que meu pai pretendia que fosse. E que, desta maneira, finalmente, graças
a uma intervenção por todas as mostras divinas, refiro-me, claro está, ao Baco,
10 deus do vinho e daqueles que se excedem a bebê-lo, não precisei de inventar
um pseudónimo para, futuro havendo, assinar os meus livros. (…) Entrei na vida
marcado com este apelido sem que a família o suspeitasse, e foi só aos sete anos,
quando, para me matricular na instrução primária, foi necessário apresentar
certidão de nascimento, que a verdade saiu nua do poço burocrático, com
15 grande indignação do meu pai, a quem, desde que se tinha mudado para Lisboa,
a alcunha desgostava. Mas o pior de tudo foi quando, chamando-se ele
unicamente José de Sousa, como ver se podia nos papéis, a Lei, severa,
desconfiada, quis saber por que bulas tinha ele então um filho cujo nome
completo era José de Sousa Saramago. Assim intimado, e para que tudo ficasse
20 no próprio, no são e no honesto, meu pai não teve outro remédio que proceder
a uma nova inscrição do seu nome, passando a chamar- -se, ele também, José
de Sousa Saramago. Suponho que deverá ter sido este o único caso, na história
da humanidade, em que foi o filho a dar o nome ao pai. (…)
Creio que a ocasião é boa para falar de um outro episódio relacionado com o
25 meu aparecimento neste mundo. (…) Na verdade, nasci no dia 16 de novembro
de 1922, às duas horas da tarde, e não no dia 18, como afirma a Conservatória
do Registo Civil. Foi o caso que o meu pai andava nessa altura a trabalhar fora
da terra, longe, e, além de não ter estado presente no nascimento do filho, só
pôde regressar a casa depois de 16 de dezembro, o mais provável no dia 17, que
30 foi domingo. É que então, e suponho que ainda hoje, a declaração de um
nascimento deveria ser feita no prazo de trinta dias, sob pena de multa em caso
de infração. Uma vez que naqueles tempos patriarcais, tratando-se de um filho
legítimo, não passaria pela cabeça de ninguém que a participação fosse feita pela
mãe ou por um parente qualquer, (…) e, para não ter de esportular a multa
35 (qualquer quantia mesmo pequena, seria excessiva para o bolso da família),
adiantaram-se dois dias à data real do nascimento (…). Sendo a vida na Azinhaga
o que era, penosa, difícil, os homens saíam muitas vezes a trabalhar fora durante
semanas, por isso não devo ter sido nem o primeiro caso nem o último culpado
destas pequenas fraudes.

José Saramago, As Pequenas Memórias, Editorial Caminho, outubro de 2006, pp. 47-52 (com supressões)

Responde às questões de forma clara e contextualizada.

1. Escolhe a opção correta para o significado dos termos sublinhados, tendo em conta o contexto em que
surgem.
1.1. “… ninguém se tivesse apercebido da onomástica fraude…” (linha 7)
a) relativa ao nome próprio.
b) gigantesca.
c) vergonhosa.
1.2. “… a verdade saiu nua do poço burocrático…” (linha 15)
a) profundo.
b) abismal.
c) administrativo.
1.3. “… sob pena de multa em caso de infração”. (linha 33)
a) condenação.
b) censura.
c) transgressão.

2. Assinala verdadeiro (V) ou falso (F), atendendo ao conteúdo global do texto.

a) Segundo o pai de Saramago, o funcionário do Registo Civil alterou o nome por despeito.
b) O pai do escritor nunca gostara da alcunha Saramago.
c) Quando se soube da troca do nome, José de Sousa, o pai, teve também de alterar o seu.
d) O registo de José Saramago foi feito tardiamente, pois a sua mãe não quis deslocar-se
à conservatória para registar o filho.

2.1. Corrige as afirmações falsas.

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3. Responde de forma clara e precisa às questões seguintes.


3.1. O registo de José Saramago na Conservatória ficou marcado por dois acontecimentos imprevistos.
3.1.1. Enumera-os.

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3.1.2. Aponta as razões que estão na origem de cada uma destas ocorrências.

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3.2. Explicita a ironia presente na expressão “… graças a uma intervenção por todas as mostras divinas…”.
(linha 9)

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3.3. Demonstra a humildade das raízes de Saramago.

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