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2 A Ética em prática no ambiente escolar

A ÉTICA EM PRÁTICA NO
AMBIENTE ESCOLAR
4 A Ética em prática no ambiente escolar

IMAGEM DA CAPA:
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Célia Machado Benvenho
José Francisco de Assis Dias
José Luiz Giombelli Mariani
Nelsi Kistemacher Welter
Silmara de Oliveira Pereira
(Organizadores)

A ÉTICA EM PRÁTICA NO
AMBIENTE ESCOLAR

Primeira Edição E-book

Editora Vivens
O conhecimento a serviço da Vida!

Toledo – PR
2016
6 A Ética em prática no ambiente escolar

Copyright 2016 by
Organizadores
EDITORA:
Daniela Valentini
CONSELHO EDITORIAL:
Dr. José Aparecido Pereira – PUC-PR
Dr. José Beluci Caporalini - UEM
Dra. Lorella Congiunti – PUU - Roma
COMITÊ CIENTÍFICO:
Prof. Dr. Clademir Luis Araldi – UFPel – Pelotas – RS
Prof. Dr. Ivo da Silva Jr. – UNIFESP – SP
Prof. Dr. João Virgílio Tagliavini – UFSCar – SP
Prof. Dr. Stefano Buselato - Università di Venezia, Itália
REVISÃO ORTOGRÁFICA:
Prof. Antonio Eduardo Gabriel
DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:
Editora Vivens Ltda
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
A ética em prática no ambiente escolar. /
E84 organizadores, Célia Machado Benvenho ...
[et al.]. – 1. ed. e-book – Toledo, PR:
Vivens, 2016.
326 p.

Modo de Acesso: World Wide Web:


<http://www.vivens.com.br>
ISBN: 978-85-92670-16-0

1. Ética. 2. Escolas. 3. Filosofia. 4.


Relações Humanas. I. Título.

CDD 22. ed. 370.114

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi


Bibliotecária CRB/9-1610
Todos os direitos reservados com exclusividade para o território nacional.
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por
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SUMÁRIO

15
APRESENTAÇÃO.................................................................................

PRIMEIRA PARTE:
CONFERÊNCIAS

I = A ÉTICA NO MEIO ESCOLAR:


A RELAÇÃO ENTRE ÉTICA E EDUCAÇÃO
21
Alceu Cavalheiri.....................................................................................

II = ASPECTOS ÉTICOS NA EDUCAÇÃO:


DESAFIOS AO CONHECIMENTO EM TEMPOS INCERTOS
32
Reginaldo Aliçandro Bordin...................................................................

SEGUNDA PARTE:
TRABALHOS COMPLETOS

I = A ALTERIDADE NA ÉTICA EXISTENCIALISTA


DE SARTRE
Elizabeth Fortecki
49
Vanessa Furtado Fontana.....................................................................

II = A COMPREENSÃO ONTOLÓGICA DE ESPAÇO


EM MARTIN HEIDEGGER
Maria Lucivane de Oliveira Morais
56
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens.............................................................

III = A "GUERRA" DE MAQUIAVEL:


O EXAME DE UM CONCEITO
Douglas Antônio Fedel Zorzo
65
José Luiz Ames.....................................................................................

IV = A PEDAGÓGICA DA LIBERTAÇÃO:
CONSTRUINDO A LIBERTAÇÃO PEDAGÓGICA
A PARTIR DA CULTURA POPULAR
Luis Fernando de Carvalho Sousa
74
José Luiz Ames.....................................................................................
8 A Ética em prática no ambiente escolar

V = A VERDADE À LUZ DO SER-AÍ


Luana Borges Giacomini
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens.............................................................
86

VI = A VIRTUDE NO SENTIDO EXTRAMORAL


EM NIETZSCHE
Ana Claudia Barbosa Nunes
Célia Machado Benvenho......................................................................
95

VII = ALTERIDADE CONFLITANTE:


UMA ABORDAGEM DO OUTRO EM SARTRE
Ricardo Fabricio Feltrin..........................................................................
102

VIII = BERGSON: INTUIÇÃO, MÉTODO E VERDADE


Adeilson Lobato Vilhena
Claudinei Aparecido de Freitas da Silva................................................
124

IX = CRIADOR E CRIAÇÃO/ETERNIDADE E TEMPO:


SOBRE DIFERENÇA ONTOLÓGICA
NAS CONFISSÕES DE AGOSTINHO
Andressa dos Santos Cizini
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens.............................................................
132

X = DE REPENTE UM AÍ UMA RELEITURA


DA FACTICIDADE HEIDEGGERIANA AOS MOLDES
DA FIGURAÇÃO MÍTICO-POÉTICO-RELIGIOSA
Ezildo Antunes
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens.............................................................
138

XI = HERMENÊUTICA FILOSÓFICA:
MÉTODO OU ACONTECIMENTO DE COMPREENSÃO?
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens.............................................................
144

XII = O CONCEITO DE ALIENAÇÃO SEGUNDO OS


MANUSCRITOS ECONÔMICO-FILOSÓFICOS
DE KARL MARX
Gustavo Henrique Martins
Gilmar Derengoski.................................................................................
154
XIII = O EXISTENCIALISMO HUMANISTA
NA ÉTICA DE SARTRE
Tainá Helena da Silva Ratuchniak
Vanessa Furtado Fontana.....................................................................
170

XIV = O FETICHE DA MERCADORIA


EM O CAPITAL DE MARX
Gilmar Derengoski
Jadir Antunes.........................................................................................
178

XV = O ITINERÁRIO DA FUNDAMENTAÇÃO
DA METAFÍSICA DOS COSTUMES:
DA BOA VONTADE AO IMPERATIVO CATEGÓRICO
Tamara Havana dos Reis Pasqualatto
Luciano Carlos Utteich...........................................................................
191

XVI = O OUTRO E O CORPO PRÓPRIO


NA ÉTICA DE MERLEAU-PONTY
Patrícia Saori Kato Kawakami
Vanessa Furtado Fontana.....................................................................
199

XVII = PENSAR A DIGNIDADE HUMANA A PARTIR DO


ESCLARECIMENTO EDA EDUCAÇÃO DO SUJEITO
Marilda Pereira dos Santos...................................................................
207

XVIII = SÃO BOAVENTURA:


CONHECIMENTO EXPERIMENTAL DE DEUS
COMO UM SABOREAR DA DOÇURA DE DEUS
Kimberly Dinnebier Bandeca
Gilmar Henrique da Conceição..............................................................
214

XIX = HOMEM, SOCIEDADE E ESTADO:


APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS TEÓRICOS
ENTRE KARL MARX E ÉMILE DURKHEIM
Dhyovana Guerra
Thaluan Rafael Debarba Baumbach.....................................................
220

XX = A NATUREZA NA MUDANÇA QUALITATIVA


PROPOSTA POR MARCUSE
Cleberson Odair Leonhardt...................................................................
227
10 A Ética em prática no ambiente escolar

TERCEIRA PARTE:
RESUMOS EXPANDIDOS

I = JOÃO ESCOTO ERÍGENA:


RAZÃO EM FUNCÃO DA FÉ
Juliana Gilo Tibério
Gilmar Henrique da Conceição.............................................................
245

II = MONTAIGNE: O FILÓSOFO DA APARÊNCIA


E SUA SABEDORIA TRÁGICA
Gilmar Henrique da Conceição..............................................................
249

III = O APARECER NO MUNDO E O AMOR MUNDI


EM HANNAH ARENDT
Elissa Gabriela Fernandes Sanches
Gilmar Henrique da Conceição..............................................................
253

QUARTA PARTE:
RESUMOS SIMPLES

I = A ANALÍTICA EXISTENCIAL FACE À


ANTROPOLOGIA, PSICOLOGIA E BIOLOGIA
Katyana Martins Weyh
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens.............................................................
261

II = A ATUALIDADE DA FILOSOFIA DE MARX


Bruno Gonçalves da Paixão
Jadir Antunes.........................................................................................
263

III = A FUNÇÃO SOCIAL DO POVO E DA ELITE


NO PENSAMENTO DE MAQUIAVEL
Robson Alan da Rocha..........................................................................
267

IV = A PROVA DA EXISTÊNCIA DOS CORPOS


DE DESCARTES É INVENCÍVEL? A ANÁLISE DE
MALEBRANCHE A PARTIR DA “VISÃO EM DEUS”
Vanessa Henning
César Augusto Battisti...........................................................................
269
V = SANTO AGOSTINHO E O PROBLEMA DO MAL
Thiago Augusto Zanardi
Bernardo Alfredo Mayta Sakamoto........................................................
272

VI = HERMENÊUTICA, PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES


Lívio Paulo Michelson Junior
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens.............................................................
274

VII = JUSTIÇA E DIREITO EM NIETZSCHE


Mayara Luiza Schaefer Lermen
276
Celito de Bona.......................................................................................

VIII = KARL MARX: CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA,


LUTA DE CLASSES E A PERSPECTIVA DO COMUNISMO
Gerson Lucas Padilha de Lima
278
Rosalvo Schutz......................................................................................

IX = NOTAS SOBRE O PREFÁCIO


DE O PRINCÍPIO ESPERANÇA PRIMEIROS VESTÍGIOS
DE UMA ÉTICA BLOCHIANA
280
Anna Maria Lorenzoni............................................................................

X = O PROBLEMA EPISTEMOLÓGICO:
COMO CONHECEMOS A MENTE SEGUNDO
PAUL CHURCHLAND
Robson Martins do Amaral
Fabio Antônio da Silva...........................................................................
282

XI = O SENTIDO ORIGINÁRIO DO HUMANISMO


EM MARTIN HEIDEGGER
Neusa Rudek Onate
Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens....................................................
285

XII = PAUL RICOUER: A QUESTÃO DO SUJEITO


E A VISÃO DA PSICANÁLISE
Marcelo Barbosa
Rosalvo Schütz......................................................................................
289

XIII = MONTAIGNE:
ENTRE A FÉ, A RAZÃO E O COSTUME
Charles Eriberto Wengrat Pichler
Gilmar Henrique da Conceição.........................................................
291
12 A Ética em prática no ambiente escolar

QUINTA PARTE:
OFICINAS DIDÁTICAS

I = O INÍCIO DA FILOSOFIA: O CONCEITO DE PHÝSIS


E FILÓSOFOS DA NATUREZA
Francielle Festner
Natália Aparecida Pacheco Ferro
Thaylan Corassa……………………………………………………………. 297

II = ENTRE O CORPO E A ALMA


Eli Schmidtke
Josué do Nascimento
Patrícia Joca Martins
Nelsi Kistemacher Welter......................................................................
300

III = SARTRE: A CULPA NÃO É DAS ESTRELAS


Josiane Santos da Silva
Daniel Du Sagrado Barreto da Luz
Gabriel Arienti Barbieri
Kathiuska Lopes Medeiros
Lincoln Arthur Radons de Carvalho
Suzana Talita Tietz
Thaís Cristina da Silva
Marcia C. R. da S. da Conceição..........................................................
302

IV = KANT E O ESCLARECIMENTO:
A CÔMODA MENORIDADE
Ariella Kant Lavarda
Bárbara Bertoldo de Moraes
Bruno Eduardo Polli da Silva
Jackison Roberto dos Santos Pinheiro Junior
Pamela Antkiewicz Da Rosa Corrêa Elger
Sabrina Andrade Barbosa
Tiago Chioquetta Nogueira....................................................................
304

V = IMPULSO À VERDADE: SOBRE A VERDADE


E A MENTIRA NO SENTIDO EXTRA MORAL
Anderson Lucas dos Santos Pereira
Gilmar Alves dos Santos
Michel Kleber Hilbig..............................................................................
306
VI = A SUPERESTIMAÇÃO DO PRAZER
E A DEPRECIAÇÃO DA DOR: O PROBLEMA
DA EUTANÁSIA EM PETER SINGER
Leonardo Ribeiro de Souza Castro
Livio Paulo Michelson Junior
Matheus Gabriel de Oliveira..................................................................
308

VII = FILOSOFIA DA CIÊNCIA:


A EXPLICAÇÃO DO UNIVERSO
Diego Caneppele de Souza
Cleiton Aparecido da Silveira
Robson Martins do Amaral
Pâmela Antkiewicz da Rosa Corrêa Elger.............................................
310

VIII = NIETZSCHE: DA RAZÃO INADEQUADA


Abraão Lincoln Ferreira Costa
Ana Claudia Barbosa Nunes
Andressa dos Santos Cizini...................................................................
312

IX = ADESTRAMENTO NOTA 10:


A DINÂMICA DA SOCIEDADE DISCIPLINAR
NO COTIDIANO ESCOLAR
Lucas Paulo Orlando de Oliveira
Nelsi Kistemacher Welter.....................................................................
314

X = COMO A NATUREZA REAGE À AÇÃO HUMANA


DIANTE DO PROGRESSO TECNOLÓGICO:
O PENSAMENTO DE HANS JONAS
Lucas dos Santos Soares
Renato Junior Machado
Thiago Augusto Zanardi........................................................................
316

XI = O SENTIDO DA VIDA NA PERSPECTIVA


DE ALBERT CAMUS
Katyana Martins Weyh
Charles Eriberto Wengrat Pichler
Jhonatan Pereira de Queiroz.................................................................
318
14 A Ética em prática no ambiente escolar
APRESENTAÇÃO

A semana acadêmica de filosofia da UNIOESTE tem como


objetivo principal a formação e a capacitação dos professores de
nível médio, tendo em vista que nosso curso é uma licenciatura;
portanto, o tema abordado é sempre na linha da educação.
Neste ano, 2016, realizando a sua XIX Edição, o tema
abordado foi a ética e seu papel no ambiente escolar e na educação
de nossos jovens.
Além de palestras sobre esse tema, a Semana Acadêmica de
Filosofia propôs mesas redondas e de comunicações onde os
graduandos do curso de Filosofia da Unioeste e pessoas externas
apresentaram suas pesquisas em diversas áreas. Tivemos ainda
outra peculiaridade, as oficinas didáticas de Filosofia para o ensino
médio, desenvolvidas pelos acadêmicos do quarto ano de Filosofia
da Unioeste, aos jovens de diversos colégios estaduais de Toledo e
Região, sob a coordenação da Prof. Nelsi Kistemacher Welter.
Tivemos, como objetivo geral: desenvolver uma semana de
interação e de troca de experiências entre os alunos, ainda mais com
a presença de outros acadêmicos de outras instituições de ensino;
atividades culturais diversas que fomentam a arte e a cultura em
nosso campus.
Tivemos, como objetivos Específicos: trazer temas atuais,
principalmente a Ética que é tão cara à Filosofia e que, na
atualidade, está tão em voga: como transmitir aos alunos esses
conceitos e, além disso, como colocá-los em prática numa sociedade
que está acostumada com a corrupção?
Os frutos científicos da XIX Semana Acadêmica de Filosofia
foi uma abundante e consistente gama de trabalhos – conferências
(duas), trabalhos completos (vinte), resumos expandidos (três),
resumos simples (doze) e oficinas didáticas (onze) – que, aqui, neste
livro disponibilizamos ao grande público acadêmico.
O livro foi pensado em quatro partes, agrupando os trabalhos
apresentados, segundo o critério da “completude” científica. Na
primeira parte, oferecemos as CONFERÊNCIAS: A ética no meio
escolar: a relação entre ética e educação, do Prof. Alceu
Cavalheiri e Aspectos éticos na educação: desafios ao
conhecimento em tempos incertos, do Prof. Reginaldo Aliçandro
Bordin.
16 A Ética em prática no ambiente escolar

Na segunda parte, oferecemos os TRABALHOS


COMPLETOS: A alteridade na ética existencialista de Sartre, de
Elizabeth Fortecki e Vanessa Furtado Fontana; A compreensão
ontológica de espaço em Martin Heidegger, de Maria Lucivane de
Oliveira Morais e Roberto S. Kahlmeyer-Mertens; A "guerra" de
Maquiavel: o exame de um conceito, de Douglas Antônio Fedel Zorzo
e José Luiz Ames; A pedagógica da libertação: construindo a
libertação pedagógica a partir da cultura popular, de Luis Fernando
de Carvalho Sousa e José Luiz Ames; A verdade à luz do SER-AÍ, de
Luana Borges Giacomini e Roberto S. Kahlmeyer-Mertens; A virtude
no sentido extramoral em Nietzsche, de Ana Claudia Barbosa Nunes
e Célia Machado Benvenho; Alteridade conflitante: uma abordagem
do outro em Sartre, de Ricardo Fabricio Feltrin; Bergson: intuição,
método e verdade, de Adeilson Lobato Vilhena e Claudinei Aparecido
de Freitas da Silva; Criador e criação/eternidade e tempo: sobre
diferença ontológica nas confissões de Agostinho, de Andressa dos
Santos Cizini e Roberto S. Kahlmeyer-Mertens; De repente um aí
uma releitura da facticidade heideggeriana aos moldes da figuração
mítico-poético-religiosa, de Ezildo Antunes e Roberto S. Kahlmeyer-
Mertens; Hermenêutica filosófica: método ou acontecimento de
compreensão?, de Roberto S. Kahlmeyer-Mertens; O conceito de
alienação segundo os manuscritos econômico-filosóficos de Karl
Marx, de Gustavo Henrique Martins e Gilmar Derengoski; O
existencialismo humanista na ética de Sartre, de Tainá Helena da
Silva Ratuchniak e Vanessa Furtado Fontana; O fetiche da
mercadoria em o capital de Marx, de Gilmar Derengoski e Jadir
Antunes; O itinerário da fundamentação da metafísica dos costumes:
da boa vontade ao imperativo categórico, de Tamara Havana dos
Reis Pasqualatto e Luciano Carlos Utteich; O outro e o corpo próprio
na ética de Merleau-Ponty, de Patrícia Saori Kato Kawakami e
Vanessa Furtado Fontana; Pensar a dignidade humana a partir do
esclarecimento e da educação do sujeito, de Marilda Pereira dos
Santos; São Boaventura: conhecimento experimental de Deus como
um saborear da doçura de Deus, de Kimberly Dinnebier Bandeca e
Gilmar Henrique da Conceição; Homem, sociedade e estado:
aproximações e distanciamentos teóricos entre Karl Marx e Émile
Durkheim, de Dhyovana Guerra e Thaluan Rafael Debarba
Baumbach; A natureza na mudança qualitativa proposta por
Marcuse, de Cleberson Odair Leonhardt.
Na terceira parte, oferecemos os RESUMOS EXPANDIDOS:
João Escoto Erígena: razão em funcão da fé, de Juliana Gilo Tibério
e Gilmar Henrique da Conceição; Montaigne: o filósofo da aparência
Apresentação 17

e sua sabedoria trágica, de Gilmar Henrique da Conceição; O


aparecer no mundo e o amor mundi em Hannah Arendt, de Elissa
Gabriela Fernandes Sanches e Gilmar Henrique da Conceição.
Na quarta parte, oferecemos os RESUMOS SIMPLES: A
analítica existencial face à antropologia, psicologia e biologia, de
Katyana Martins Weyh e Roberto S. Kahlmeyer-Mertens; a
atualidade da filosofia de Marx, de Bruno Gonçalves da Paixão e
Jadir Antunes; A função social do povo e da elite no pensamento de
Maquiavel, Robson Alan da Rocha; A prova da existência dos corpos
de descartes é invencível? A análise de Malebranche a partir da
“visão em Deus”, de Vanessa Henning e César Augusto Battisti;
Santo Agostinho e o problema do mal, Thiago Augusto Zanardi e
Bernardo Alfredo Mayta Sakamoto; Hermenêutica, primeiras
aproximações, de Lívio Paulo Michelson Junior e Roberto S.
Kahlmeyer-Mertens; Justiça e direito em Nietzsche, de Mayara Luiza
Schaefer Lermen e Celito de Bona; Karl Marx: crítica da economia
política, luta de classes e a perspectiva do comunismo, de Gerson
Lucas Padilha de Lima e Rosalvo Schutz; Notas sobre o prefácio de
o princípio esperança primeiros vestígios de uma ética blochiana, de
Anna Maria Lorenzoni; O problema epistemológico: como
conhecemos a mente segundo Paul Churchland, de Robson Martins
do Amaral e Fabio Antônio da Silva; O sentido originário do
humanismo em Martin Heidegger, de Neusa Rudek Onate e Roberto
Saraiva Kahlmeyer-Mertens; Paul Ricouer: a questão do sujeito e a
visão da psicanálise, de Marcelo Barbosa e Rosalvo Schütz.
Na quinta parte, oferecemos as OFICINAS DIDÁTICAS: O
início da filosofia: o conceito de phýsis e filósofos da natureza, de
Francielle Festner, Natália Aparecida Pacheco Ferro e Thaylan
Corassa; Entre o corpo e a alma, de Eli Schmidtke, Josué do
Nascimento, Patrícia Joca Martins e Nelsi Kistemacher Welter;
Sartre: a culpa não é das estrelas, de Josiane Santos da Silva,
Daniel Du Sagrado Barreto da Luz, Gabriel Arienti Barbieri,
Kathiuska, Lopes Medeiros, Lincoln Arthur Radons de Carvalho,
Suzana Talita Tietz, Thaís Cristina da Silva e Marcia C. R. da S. da
Conceição; Kant e o esclarecimento: a cômoda menoridade, de
Ariella Kant Lavarda, Bárbara Bertoldo de Moraes, Bruno Eduardo
Polli da Silva, Jackison Roberto dos Santos Pinheiro Junior, Pamela
Antkiewicz Da Rosa Corrêa Elger, Sabrina Andrade Barbosa e Tiago
Chioquetta Nogueira; Impulso à verdade: sobre a verdade e a
mentira no sentido extra moral, de Anderson Lucas dos Santos
Pereira, Gilmar Alves dos Santos e
Michel Kleber Hilbig; A superestimação do prazer e a depreciação da
18 A Ética em prática no ambiente escolar

dor: o problema da eutanásia em Peter Singer, Leonardo Ribeiro de


Souza Castro, Livio Paulo Michelson Junior e Matheus Gabriel de
Oliveira; Filosofia da ciência: a explicação do universo, de Diego
Caneppele de Souza, Cleiton Aparecido da Silveira, Robson Martins
do Amaral e Pâmela Antkiewicz da Rosa Corrêa Elger; Nietzsche: da
razão inadequada, de Abraão Lincoln Ferreira Costa, Ana Claudia
Barbosa Nunes e Andressa dos Santos Cizini; Adestramento nota 10:
a dinâmica da sociedade disciplinar no cotidiano escolar, de Lucas
Paulo Orlando de Oliveira e Nelsi Kistemacher Welter; Como a
natureza reage à ação humana diante do progresso tecnológico: o
pensamento de Hans Jonas, de Lucas dos Santos Soares, Renato
Junior Machado e Thiago Augusto Zanardi; O sentido da vida na
perspectiva de Albert Camus, de Katyana Martins Weyh, Charles
Eriberto Wengrat Pichler e Jhonatan Pereira de Queiroz.

Boa leitura!

Organizadores
Apresentação 19

PRIMEIRA PARTE:

CONFERÊNCIAS
20 A Ética em prática no ambiente escolar
=I=

A ÉTICA NO MEIO ESCOLAR:


A RELAÇÃO ENTRE ÉTICA E EDUCAÇÃO

Alceu Cavalheiri

RESUMO:
O texto propõe a relação entre ética e educação, partindo do ponto
de vista de que não é um vínculo fácil de ser realizado, inclusive na
escola. Nesse sentido, as discussões querem mais provocar do que
responder e, para isso, propõe-se três momentos discursivos
concatenados, discorrendo, inicialmente, sobre as acepções das
palavras ‘relação’, ‘ética’ e ‘educação’. Após percorrer o sentido
etimológico dessas palavras, apresenta-se algumas perspectivas do
cenário atual, o qual está voltado para a ética do novo e do diferente.
Por fim, dizer que a relação entre ética e educação é possível
quando se busca um processo contínuo de formação humana, de
alargar mentes através do autodomínio, do diálogo, do respeito e de
ações conscientes.

PALAVRAS-CHAVE: Relação. Ética. Educação. Formação.

Na oportunidade do primeiro contato com o Acadêmico José


Luiz Giombelli Mariani1, membro da Comissão Organizadora da XIX
Semana Acadêmica de Filosofia da Unioeste, o qual lançou o convite
e o desafio de falar sobre o tema do evento, A ética em prática no
ambiente escolar, imediatamente se teve o propósito de desenvolver
a questão da relação entre ética e educação. Nesse ponto de vista,
busca-se saber quais as perspectivas norteadoras do vínculo entre
ética e educação e como ocorre, na prática, essa relação. Assim,
esta fala quer mais provocar do que responder e, por isso, parte-se
da hipótese de que a relação entre ética e educação, em muitas
situações no ambiente escolar, não é um vínculo fácil de realizar.

 Professor da Faculdade Palotina de Santa Maria – RS e doutorando do Programa


de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria – RS. E-
mail: alceucavalheiri@gmail.com
1 Em agradecimento especial, também, ao departamento de Filosofia da Unioeste e

aos acadêmicos Lucas Antônio Vogel, Gustavo Henrique Rondis Cruvinel e Silmara
de Oliveira Pereira pela acolhida, cordialidade e sentimento de amizade.
22 A Ética em prática no ambiente escolar

1.1 ELUCIDAÇÕES INICIAIS

Conforme dito acima, não se pode pensar que a relação entre


ética e educação seja um vínculo tranquilo de ser realizado, que
aconteça de modo fácil e direto, que tenha uma fórmula do tipo ‘o
que você precisa saber para colocar em prática a relação entre ética
e educação’. Além dessa dificuldade, se junta a ela o problema que é
próprio da ética, não ter a certeza do que é de fato o correto. Nessa
perspectiva, Zygmunt Bauman adverte:

Nessa vida, precisamos de conhecimento e capacidades morais


com mais freqüência, e com mais urgência, que de qualquer
conhecimento das "leis da natureza" ou de capacidades técnicas.
Todavia, não sabemos onde consegui-los; e quando (se) se nos
oferecem, raramente estamos seguros de que neles podemos
confiar com firmeza. (1997, p. 24)

Assim, para dar início a essa conversa, faz-se necessário


esclarecer a acepção que as palavras relação, ética e educação
apresentam para, posteriormente, propor algumas perspectivas
sobre esse vínculo fundamental para formação humana.
O termo ‘relação’ deriva do latim relatio, onis, o qual significa
compreender dois ou mais relativos em um só ato intelectual. Na
qualidade de categoria, remetendo-se à sétima categoria de
Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.)2, para ser expressa, toda relação
depende de outros relativos, conceitos ou objetos. Então, para que
ocorra a relação, é necessário que ao menos um relativo seja
dependente, mesmo que em parte, de outro.
Nessa sequência, dentre as várias propriedades da relação, a
simultaneidade e a dependência são determinantes no vínculo entre
ética e educação. Cabe observar que a simultaneidade é de ordem
natural e cognitiva. Para esclarecer melhor a propriedade da relação
de simultaneidade natural o exemplo elucidativo que se pode
oferecer é o vínculo entre pai e filho, se bem que, na ordem natural, o
pai é sempre anterior ao filho; e, a simultaneidade cognitiva é a
propriedade da relação que acontece quando dois ou mais relativos
são captados em um mesmo ato cognitivo, ao passo que um relativo
se define pelo outro.

2 A referência é da seguinte edição: ARISTÓTELES. Das categorias (Organon).


Tradução, notas e comentários de Mário Ferreira dos Santos. 2.ed. São Paulo:
Matese, 1965.
Conferências 23

Por conseguinte, o exemplo da simultaneidade natural que


ocorre entre pai e filho, que admite a anterioridade do primeiro em
relação ao segundo, é lógico! No caso da relação entre ética e
educação, não se pode, pelo menos por hora, afirmar o que vem
antes e o que vem depois. O que se pode afirmar para essa
exposição, de início, é que ética e educação são relativos
simultâneos e dependentes em parte, no sentido de formar, conhecer
e caracterizar.
Quanto ao termo ‘ética’, é de conhecimento da maioria que
ele deriva do grego éthikós, o qual significa a ciência dos atos, usos
e costumes humanos (éthos). A princípio, essa definição é um tanto
externa ao indivíduo, já que permanece apenas no campo dos feitos
humanos e não tanto ao exercício de autocontrole das disposições
afetivas, intelectivas e comportamentais do indivíduo (êthos).
Nessa exposição, para relacionar a ética com a educação,
valer-se-á do termo ética nas duas acepções, éthos e êthos. A
primeira no sentido de que a educação está vinculada a um conjunto
de costumes e hábitos fundamentais tanto no âmbito do
comportamento (de instituições e afazeres) quanto no da cultura
(valores, ideais e crenças) de uma determinada coletividade, época
ou região. A segunda, que a educação está relacionada não apenas
com a ciência dos costumes, mas também com a prática de hábitos
sensatos, ou seja, uma educação vinculada com a ética voltada às
disposições do indivíduo, que busca dentro de si mesmo o
autocontrole de suas inclinações afetivas, comportamentais e
intelectuais. Então, pode-se já indicar que, para colocar a ética em
prática no ambiente escolar, é preciso vincular os costumes da época
(contexto) com o exercício constante de hábitos individuais
ponderados para o convívio.
Para encerrar essa primeira parte de esclarecimentos
terminológicos, basta definirmos o termo ‘educação’. Assim, parte-se
do ponto de vista que educação é sinônimo de urbanidade e
formação. Sabe-se que a etimologia da palavra ‘educação’ procede
do latim, educatio, onis, derivado da forma nominal do verbo latino
educatum– supino (forma nominal de sentido ativo) de educare no
sentido ativo e de educatu no sentido passivo, como adjunto de
adjetivo. Em sentido próprio, o verbo educare significa cuidar, criar,
fazer crescer, alimentar; e, em sentido amplo, indica formar,
doutrinar, ensinar.
Vale dizer que o verbo educare tem uma energia significativa
que quer dizer extrair, sacar fora trazer à luz o que está dentro e
oculto. Essa energia significativa desse radical expressa melhor o
24 A Ética em prática no ambiente escolar

conceito característico da ação educativa e é determinante para as


nossas provocações nessa discussão, já que consiste em retirar de
dentro para fora de uma criança, de um adolescente ou mesmo de
um homem em germe, o homem adulto e perfeito como tal
(EDUCACIÓN, 1933, p. 111). Eis o que pode ser o vínculo
simultâneo entre a ética e a educação, relação que não visa outra
coisa senão aperfeiçoar e elevar o homem à condição mais elevada,
através de ações excelentes.
Em vista disso, a ação educativa não tira seu efeito do nada,
nem tampouco transforma algo inerte, como um pedaço de madeira
que se entrega de modo inanimado nas mãos de um artesão, mas
aperfeiçoa o homem vivo, sujeito, cuja condição goza de atividade
própria. Portanto, a ação educativa há de estar condicionada ao
efeito de cooperar para o aperfeiçoamento de um ser pessoal, ou
seja, a educação contribui no sentido figurado de aquilatar, de tornar
melhor, de formar verdadeiros homens. Ao mesmo tempo, os
conhecimentos adquiridos também precisam tornar-se força
formativa e colocados a serviço da educação do homem.
De acordo com Werner Jaeger, a concepção de que a
educação é conforme a arte, que modela e esculpe, foi própria e
determinada pelos antigos gregos. Destarte, ele confirma:

[...] como o oleiro modela a sua argila e o escultor as suas pedras, é


uma idéia ousada e criadora que só podia amadurecer no espírito
daquele povo artista e pensador. A mais alta obra de arte que o seu
anelo se propôs foi a criação do Homem vivo (1994, p.13).

Isto posto, a educação é um processo que se constrói de


modo consciente e ético. A ética não está à parte da educação
quando se pensa a ação educativa como um processo de construção
consciente, de autodomínio, de aperfeiçoamento e tolerância.
Entretanto, nas circunstâncias atuais, esta relação parece ter sido
repudiada.

1.2 REPÚDIO, CRISE OU MUDANÇA ÉTICA?

A reflexão sobre as circunstâncias atuais inicia com a


constatação paradoxal de que o cenário cultural contemporâneo,
marcado pela subjetividade, pelos apelos individualistas, hedonistas
e consumistas, tem separado as referências normativas do ato de
educar, entretanto, nunca se cogitou tão intensamente a necessidade
urgente de uma educação para a ética. Nesse sentido, sentencia
Conferências 25

Bauman: “de muitas coisas podemos afirmar que quanto mais delas
se necessita tanto menos facilmente estão disponíveis” (1997, p. 23).
Alguns autores até afirmam a ‘emergência da ética’3 devido à
velocidade e ao desenvolvimento das tecnologias, bem como a crise
de legitimação oriunda das práticas políticas, sociais, culturais e
científicas no mundo contemporâneo, “o desenvolvimento econômico
e tecnológico ocasionou uma transformação social e a formação de
uma nova mentalidade” (BARTH, 2007, p. 90). Que mentalidade é
essa? Segundo o próprio Barth é a mentalidade do novo e do
diferente. “É um tempo de mudança, de crise, de morrer ao
tradicional, de abandonar o velho e abraçar o novo, de quebrar
paradigmas e estabelecer novas formas de vida e valores” (2007, p.
90).
São vários os fatores que formam o processo atual de
mudança, mas ao mesmo tempo de crise de valores. Entre os
fatores, podemos destacar a industrialização, a massificação dos
meios de comunicação e transporte, a informatização e a
eletronização. Soma-se a isso as mudanças sociais realizadas
através do desenvolvimento econômico, urbanização crescente e o
consequente surgimento de grandes cidades, protestos, lutas sociais,
quebras de tabus e preconceitos, secularização etc. São inúmeros os
fatores de mudança, entretanto, segundo o mesmo Barth, tem-se
“um retorno ao sentimento, a explosão religiosa e a um novo
comportamento diante do mundo, do outro, de si mesmo e de Deus"
(2007, p. 90).
Nesse sentido, é interessante destacar as considerações de
Enrique Rojas4 em O homem light, no qual, já no prólogo, observa
que a sociedade ocidental, abastada e pautada no bem-estar de
vida, “é uma sociedade, em certa medida, que está enferma, da qual
emerge o homem light, um sujeito que carrega a bandeira de uma
tetralogia niilista: hedonismo-consumismo-permissividade-
relatividade. Todos eles engendrados pelo materialismo” (2005, p.
11)5.

3 Conferir o artigo de CASALI, Alípio. Ética como fundamento crítico da educação


humanizadora. In: COSTA, Antônio Amélio Dalla; ZARO, Jadir; SILVA, Jolair da
Costa (Orgs.). VI Congresso internacional
de educação: educação humanizadorae os desafios éticos na sociedade pós-
moderna. Santa Maria: Biblos, 2015.
4 Catedrático de psiquiatria em Madri e diretor do Instituto Espanhol de Investigações

Psiquiátricas. Enrique Rojas pertence à geração de médicos humanistas.


5 “Es una sociedad, en cierta medida, que está enferma, de la cual emerge el

hombre light, un sujeto que lleva por bandera una tetralogía nihilista: hedonismo-
26 A Ética em prática no ambiente escolar

Observa-se que a descrição de Rojas sobre o homem atual


assume certos contornos negativos, pois, para ele, o indivíduo que
carrega a bandeira da tetralogia niilista se parece muito com os
produtos light de nossos dias, sem calorias, sem gosto e sem
interesse. Trata-se de um homem sem muito conteúdo, artificial e
que busca o poder, a fama, o êxito e gozo ilimitado. O diagnóstico de
Rojas é de que “o homem light carece de referentes, tem um grande
vazio moral e não é feliz, ainda tendo materialmente quase tudo”
(2005, p.11-12)6. Para o médico espanhol, este caminho é errado e
tem um final triste e bastante pessimista, por isso, ao longo de sua
obra, descreve as características do homem atual e também sugere
algumas saídas para os eventuais vazios moral e de vida sem
sentido.
A importância dos escritos de Rojas para esta exposição é de
que, também para ele, não há um progresso humano sem relação
com a moralidade. Isso faz lembrar o próprio Albert Schweitzer 7
(1875-1965) quando analisa a cultura contemporânea dizendo que
ela passa por um processo de degeneração de modo fatual: a cultura
se desenvolveu mais no campo material do que propriamente no
intelectual e humano. Não houve um desenvolvimento equilibrado
dessas duas esferas. Nesse sentido, o elemento ético exige do
homem um abandono dos interesses egoístas e a busca de ideais
realizáveis, atitude que se degenerou no mundo contemporâneo.
Para Schweitzer, é necessário desenvolver um otimismo ético a partir
da regeneração do espírito humano, saindo do egoísmo para a
prática de atos de humanidade (SCHWEITZER, 2013).
Para finalizar esta parte do colóquio que visa apresentar
algumas características da situação contemporânea, é importante
retomar Rojas e analisar a tetralogia niilista, presente na vida do
homem pós-moderno. A primeira delas é o hedonismo. A máxima

consumismo-permisividad-relatividad. Todos ellos enhebrados por el materialismo”


(ROJAS, 2005, p.11).
6 El hombre lightcarece de referentes, tiene un gran vacío moral y no es feliz, aun

teniendo materialmente casi todo (ROJAS, 2005, p.11, grifo do autor).


7 Albert Schweitzer nasceu em 1875 na Alsácia e foi teólogo, músico, filósofo e

médico. Após formar-se em medicina, partiu para a África, mais especificamente


para Lamberéné, no Gabão. Em 1952 recebeu o Prêmio Nobel da Paz e morreu em
1965 na própria Lamberéné. Além dos escritos filosóficos, Schweitzer escreveu
sobre música, temas biográficos e autobiográficos, teologia e generalidades.
Também, produziu diversos trabalhos de diferentes temas como partes de obras e
inúmeros artigos. Sobre a vida e obras de Schweitzer, conferir a sua autobiografia:
SCHWEITZER, Albert. Minha vida e minhas idéias. Tradução de Otto Schneider.
São Paulo: Melhoramentos, [1931?].
Conferências 27

hedonista é o prazer acima de tudo, custe o que custar. O homem


pós-moderno busca uma série de sensações novas e excitantes,
resultando num prazer fugaz, frenético e sem restrições. Uma coisa é
desfrutar a vida com ideais e projetos, outra é buscar o prazer,
possuir, gastar e comprar sem projeto algum. Isso sem falar da
busca constante do prazer sexual, o qual se tornou passageiro,
sensual, sem compromisso e sem amor.
Segundo Rojas, do hedonismo surge outro vetor muito forte, a
saber, o consumismo. Querendo ou não, o consumismo é a fórmula
pós-moderna de liberdade. Os objetos de consumo já são produzidos
para serem substituídos constantemente, às vezes ainda em perfeito
estado de uso, por outros cada vez mais atrativos, sofisticados e
funcionais. É só observar o consumo de iPphones, computadores,
eletrodomésticos [...]. A propaganda, repleta de linguagem
conotativa, desperta o interesse e o desejo de possuir, incentivando
a substituição do velho pelo novo. Tem-se aqui uma cultura do
desperdício e do ultrapassado. Colocar-se contra essa ética é a
mesma coisa que assumir a falta de domínio e de posse das novas
tecnologias e a insignificância diante do mundo econômico e fugaz.
O ser é definido pelo ter. ‘Tenho, logo, sou e estou’.
O consumismo frenético gera crises econômicas e
ambientais, as quais apontam para uma ética do permissivismo que,
para Rojas, é o ponto “central dessa pseudo-ideologia atual [...], não
há proibições ou territórios proibidos, sem limitações” (2005, p.
23)8.O permissivismo acaba com os melhores propósitos e ideais, já
que substitui os axiomas morais pela ideologia de atrever-se a tudo,
ir cada vez mais longe. Tudo se torna bom, desde que se sinta bem.
A ética do permissivismo não deixa de ser uma metafísica do nada,
pois tudo é relativo, desde que seja bom. Nesse sentido, esse modo
de agir não deixa de manifestar certa suspensão do juízo ou
indiferença, já que o certo e o errado são definidos pelo consenso da
maioria.
Por fim, para Rojas, o relativismo não deixa de ser um filho
natural do permissivismo (2005, p. 24). Todos sabem que nessa ética
a subjetividade é quem dita as regras. A verdade oscila e, portanto,
nada é absoluto. A opinião da maioria é determinante para apontar o
que é bom e o que é ruim. Qualquer análise pode ser positiva e
negativa e, por isso, tem-se uma tolerância interminável da qual
nasce a indiferença pura (20015, p. 24). Para Rojas, vivemos uma

8 “[…] central de esta seudoideología actual […], sin prohibiciones ni territorios


vedados, sin limitaciones” (ROJAS, 2005, p.23).
28 A Ética em prática no ambiente escolar

‘apoteose de incoerências’, pois, por um lado, o homem pós-


moderno fala e defende a liberdade e os direitos humanos, de
conseguir aos poucos uma sociedade mais justa, ordenada, aberta e,
por outro, tem-se posições ambíguas e fundamentalistas que não
fazem o homem mais humano e nem o conduzem aos grandes
ideais.
A perspectiva que esta reflexão quer apontar, e que Rojas
determina muito bem, é de que essa tetratologia niilista pós-moderna
tem como pano de fundo uma ética materialista. Adquirir é a moda do
momento, atitude que não mede esforços e, se preciso, cancelam-se
inclusive valores éticos para se ter o progresso material. No entanto,
sabe-se “que o progresso material em si não satisfaz as aspirações
mais profundas de quem se encontra hoje com fome de verdade e de
amor autêntico9” (ROJAS, 2005, p. 25).

1.3 A RELAÇÃO ENTRE ÉTICA E EDUCAÇÃO

Até aqui se pode dizer que a ética pós-moderna é a ética do


novo e do diferente. Conforme escrito anteriormente, muitas são as
conotações negativas ou sombrias que esse tipo de ética adquire. No
entanto, tenta-se aqui indicar alguns pontos positivos ou luzes e
relacioná-los com a educação, numa visão de processo formativo
constante do homem pós-moderno.
Dentre os pontos positivos dessa nova ética, pode-se
destacar que o homem pós-moderno possui e projeta uma infinidade
de possibilidades de viver, é autoconfiante, cercado de farturas de
alimentos e que resolve de modo fácil seus problemas econômicos.
O seu bem-estar tornou-se direito o que, em tempos remotos, era
questão de sorte ou reservada a poucos afortunados na vida.
Certamente é um homem agraciado pelas inovações tecnológicas e
vive voltado e compromissado com o futuro.
O homem atual vive em meio às constantes mudanças
sociais as quais são marcadas pela liberdade, democracia e
produção industrial. Todo o aparato social está voltado para o seu
crescimento. É o momento em que se resgata e muito o valor da
subjetividade pela qual o campo emocional é mais interessante que o
racional. A liberdade é marcante e garantida pelo direito. Como bem

9 “[…] que el progreso material por sí mismo no colma las aspiraciones más
profundas de aquél que se encuentra hoy hambriento de verdad y de amor
auténtico” (ROJAS, 2005, p. 25).
Conferências 29

diz Norberto Bobbio10, ‘vivemos uma era dos direitos’. Nunca se teve
um desenvolvimento tão acentuado de uma consciência progressiva
dos direitos como se tem agora, tanto individual quanto social, que
tornam os homens iguais legalmente. Tais homens exigem
expressão e não se sujeitam a qualquer ideologia. Nesse sentido,
enuncia Bauman, temos um grande poder nas mãos com bem pouca
instrução para manuseá-lo (1997, p. 23-45).
Relacionando esses sinais de luz da ética pós-moderna com
a educação, pode-se afirmar que esta relação ocorre de modo
satisfatório quando colocados a serviço de uma formação humana.
Para isso, torna-se necessário resgatar a noção de domínio de si ou
autodomínio (enkrateia), no sentido de viver os valores de fato. As
novas tecnologias, assim como muitas outras conquistas, estão à
disposição da formação do homem e não para aniquilar ou escravizá-
lo. O verdadeiro homem livre é aquele que sabe dominar os inimigos
que se aninham em sua alma, como por exemplo, a arrogância de
tudo ter, o egoísmo e a indiferença. Não basta apenas ensinar
conceitos e valores, pois eles precisam ser vivenciados,
experimentados no convívio escolar e social.
O vínculo da educação com a ética dá-se à medida que cada
um toma consciência dos seus atos, tendo autocontrole, respeitando-
se e respeitando as pessoas com as quais se convive. A educação
comporta a dimensão ética e vice-versa, buscando a formação
humana. Nesse ponto de vista, o cultivo de si mesmo, da relação
com os outros e com o mundo é um processo permanente. A
formação humana não se reduz aos atos de instruir e nem de
aprender, mas implica a pessoa como um todo, na formação de seu
caráter e de seu aprimoramento (CENCI; DALBOSCO, 2014, p. 470-
488).
Não se pode ignorar que a comunidade escolar – técnicos,
professores e alunos – tem o poder de formar cidadãos e, portanto,
por mais que estejamos vivendo o diferente e o novo, tem-se uma
responsabilidade ética no ensinar, transmitir e opinar. Desse modo, o
educador é o primeiro assumir a postura ética e a formação de
pessoas com mentes alargadas e não fundamentalistas. Todos os
dias os membros da comunidade escolar são desafiados eticamente,
desde um pedido de arredondamento de notas nas avaliações,
plágios, até a possibilidade de desvio de verbas da escola. O desafio
é romper com o reducionismo técnico-científico e com o egoísmo,

10 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 11. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
30 A Ética em prática no ambiente escolar

tornando o homem livre, apto a viver e conviver de modo


responsável.
Nesse sentido, no ambiente escolar e também no social, o
homem pós-moderno precisa cultivar a liberdade autêntica pela qual
a vida tem mais sentido. Os jovens precisam ser ajudados, pois,
como diz Rojas (2005), a verdadeira liberdade não vai de acordo com
a direção do vento. Trata-se de uma busca de crescimento interior
que visa saber usar o cabedal de informações sem renunciar a
formação. Em vista disso, as escolas precisam formar crianças,
jovens e adultos que saibam administrar o conhecimento, que
aprendam a somar e a partilhar suas ideias. Para isso, o fundamental
é educar para o diálogo, o qual rompe com todo o relativismo,
neutraliza as intolerâncias e torna a vida menos virtual.
Enfim, fica aqui a provocação de querer dizer mais, mas
também o desafio de praticar em maior número ações de
humanidade, respeito e diálogo, em detrimento dos
fundamentalismos, do egoísmo e da indiferença. Muito obrigado.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Das categorias (Organon). Tradução, notas e


comentários de Mário Ferreira dos Santos. 2. ed. São Paulo: Matese,
1965.

BARTH, Wilmar Luiz. O homem pós-moderno, religião e ética.


Teocomunicação, Porto Alegre, v. 37, n. 155, p. 89-108, mar. 2007.

BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. Tradução de João


Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1997.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 11. ed. Rio de Janeiro:


Campus, 1992.

CASALI, Alípio. Ética como fundamento crítico da educação


humanizadora. In: COSTA, Antônio Amélio Dalla; ZARO, Jadir;
SILVA, Jolair da Costa (Orgs.). VI Congresso internacional
de educação: educação humanizadora e os desafios éticos na
sociedade pós-moderna. Santa Maria: Biblos, 2015.
Conferências 31

CAVALHEIRI, Alceu; ENGERROFF, Sérgio Nicolau; SILVA, Jolair da


Costa (Orgs.). As novas tecnologias e os desafios para uma
educação humanizadora. Santa Maria: Biblos, 2013.

CENCI, Ângelo Vitório; DALBOSCO, Cláudio Almir. Ética e


educação. In: TORRES, João Carlos Brum (Org.). Manual de ética:
questões de ética teórica e aplicada. Petrópolis: Vozes; Caxias do
Sul: EDUCS, BNDS, 2014, p. 470- 488.

EDUCACIÓN. In: ENCICLOPEDIA Universal Ilustrada Europeo-


Americana. Madrid: Espasa-Calpe, 1933. v.19. p. 111-122.

JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. 3. ed. São


Paulo: Martins Fontes, 1994.

ROJAS, Enrique. El hombre light: una vida sin valores. Buenos


Aires: Editorial Booket, 2005.

SCHWEITZER, Albert. Filosofia da civilização: queda e


reconstrução da civilização. Cultura e ética. Tradução de
PetêRissatti. São Paulo: Editora UNESP, 2013.

______. Minha vida e minhas idéias. Tradução de Otto Schneider.


São Paulo: Melhoramentos, [1931?].
32 A Ética em prática no ambiente escolar

= II =

ASPECTOS ÉTICOS NA EDUCAÇÃO:


DESAFIOS AO CONHECIMENTO EM TEMPOS INCERTOS

Reginaldo Aliçandro Bordin*

2.1 INTRODUÇÃO

As reflexões que empreendemos neste texto procuram situar


alguns desafios presentes na relação estabelecida entre a ética e a
educação, temas sempre atuais. Em momentos como o nosso, a
importância que os assuntos propostos para o presente evento
trazem, obriga-nos também, a limitá-lo na abordagem visto a
amplitude do assunto. Quando examinado em sua historicidade
constata-se que os mais reconhecidos autores que compunham a
constelação do pensamento filosófico e sociológico se ocuparam
tanto de um quanto de outro. Isso se deve ao fato de que,
historicamente, procuravam responder às demandas do tempo em
que redigiram seus tratados e da compreensão que a educação
assume ao pretender formar o ser humano segundo necessidades
materiais e espirituais. Dessa maneira, o entendimento da educação
e dos princípios a ela correspondentes se alargam quando tomamos
por referência obras consideradas clássicas porque a partir delas é
possível conhecer a dinâmica da história e da história da educação
para reconhecer a elaboração das ideias e valores que direcionam o
homem com vistas aos ideais e fins pretendidos (BORDIN; MELO,
2010). Nessas formulações os conflitos humanos, as diferenças
sociais e os princípios que fundamentam as práticas educacionais e
éticas se mostram mais amplos quando compreendidos e inseridos
na dinâmica histórica em que foram elaborados.
Por conseguinte, ao pôr em discussão assuntos complexos
como os pretendidos por esta exposição, cumpre dimensionar o
momento histórico em que eles devem ser examinados a fim de não
cometer injustiças para com filósofos de outros tempos, tais como

* Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Maringá e professor de


Filosofia da PUCPR-Maringá. Pesquisador do Instituto Cesumar de Ciência,
Tecnologia e Inovação (ICETI). Professor permanente do PPGGCO da
UNICESUMAR: Programa de Pós-graduação em Gestão do Conhecimento nas
Organizações.
Conferências 33

Platão, Erasmo de Rotterdam, Kant, Marx e Durkheim, entre outros.


Enquanto sínteses das sociedades em que viveram e produziram,
presenciaram (e teorizaram) as oposições, os conflitos e os modelos
de ser humano defendidos e negados. Cada um deles, a seu modo,
lugar histórico e referencial teórico por meio do qual compreenderam
a educação, dimensionaram a seriedade do assunto e ofereceram
contribuições para pensar a educação ou a falta de atenção às
necessidades sociais no âmbito da formação e do ensino. Essa
compreensão sugere um aspecto importante: o presente, tomado em
seu recorte temático aqui proposto, traz consigo sempre os
elementos do passado, que nos permitem entender os caminhos
pelos quais a educação e a ética foram elaborados.
Assim, é possível situar quais aspectos mais urgentes podem
ser enfrentados pela filosofia e, mais especificamente, pelos
educadores, no devir dos acontecimentos. De fato, o presente
momento tem revelado a educação como um campo de batalha onde
posições teóricas, políticas e éticas mostram-se bastante
divergentes, contraditórias. Em face a essa realidade reveladora, a
pergunta sobre a função da escola – sempre em épocas de crise –
assume novo vigor. Longe de querer indagar a esse respeito,
constata-se, atualmente, a presença de diversos setores sociais a se
organizarem para discutir modelos formativos cotejados como ideais
e compreendidos como respostas aos problemas apresentados fora
da escola. Por isso, ela é sempre requisitada pela sociedade para
pôr em movimento valores e comportamentos; e, por esse mesmo
motivo, os educadores devem avaliá-los para não incorrer no risco de
irresponsabilidade teórica que respaldem procedimentos que possam
ser assumidos pela educação. Portanto, em tempos de incertezas,
cumpre avaliar os princípios acolhidos pela educação e aqueles
manifestados na sociedade. Se são tempos de grande perigo em que
aparecem os filósofos, tal como afirmou Nietzsche, eles são
novamente estimulados a pensar um contexto educacional e ético
problemático e desafiador, em seus princípios.

2.2 EDUCAÇÃO E ÉTICA: PROVOCAÇÕES A ENFRENTAR EM


TEMPOS DUVIDOSOS

É em ocasiões de alterações sociais e incertezas políticas,


que demandas por novos modelos educacionais comparecem com
maior vigor. A cada momento histórico, problemas se apresentam e
as possibilidades de resolvê-los são dadas no âmbito da educação,
da ciência e da ética, por exemplo. Verifica-se essa condição
34 A Ética em prática no ambiente escolar

quando, de tempos em tempos, propostas pedagógicas surgem com


a promessa de solucionar aquelas situações consideradas insolúveis
ou para apresentar outras, sob a pressuposição de modernizar a
educação, colocando-a em sintonia com exigências (mercadológicas)
mais atuais e ao gosto do freguês (consumidor). Seja como for,
algumas provocações podem ser apontadas na direção do tema
proposto e se revelam problemáticas para o contexto educacional.
Na primeira delas propõe-se retomar a construção da
educação pública brasileira para situar o fato de que mudanças
educacionais e reflexões sobre comportamentos humanos se
articulam e extrapolam os limites da escola. Essa perspectiva
aponta para uma direção teórica-metodológica que possibilita a
compreensão da educação e dos valores difundidos: ao mesmo
tempo em que ela tem a finalidade de formar indivíduos para
reproduzir sua existência material, sua prática encontra-se
fundamentada na vida social. Portanto, essa concepção alude para o
caráter histórico da educação e indica que ela também se move no
sentido de atender as necessidades apresentadas. Nesse sentido, a
compreensão do homem é ampliada quando a investigação
considera os conflitos e diversidade de comportamentos, colocando-
o em face das lutas e contradições do tempo em que está inserido.
Além do mais, os distintos comportamentos devem ser estudados em
correlação com as necessidades sociais geradas no processo
histórico as quais requerem novas posturas em relação ao cotidiano.
Assim, velhos e novos comportamentos são observados em luta,
permitindo comprovar que isso ocorre na mesma medida em que são
contraditórias as preocupações e as necessidades humanas que
caracterizam as relações sociais (PEREIRA MELO, 2010).
Respaldado por essa interpretação, busca-se situar a
educação na dinâmica dos acontecimentos da história do ensino
brasileiro. Nele, verifica-se que passados pouco mais de 80 anos da
publicação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova,
reconhecido como um marco histórico nos avanços em direção a
uma educação pública, pode-se afirmar que a educação brasileira se
encontra, hoje, amplamente difundida. Essa constatação, no entanto,
não significa que alguns velhos problemas tenham sido superados.
Naquele momento de transição econômica, resultante do
esgotamento da agricultura escravocrata para a formação de uma
burguesia cafeeira e industrial, as diversas forças econômicas se
expressaram na mudança da configuração do Estado Brasileiro. Com
efeito, a Revolução de 1930 que deu início à Era Vargas e a
Constitucionalista, dois anos após, respondiam, segundo Florestan
Conferências 35

Fernandes (2008), à necessidade de implantar novas formas de


organização do poder na sociedade brasileira, capazes de expandir e
de acelerar as transformações requeridas pelo que se chamou de
revolução burguesa. O fato a se constatar é que, no desenvolvimento
dessa nova força econômica e social, modelos formativos foram
requisitados, em face às demandas apresentadas.
Na dinâmica das alterações históricas brasileiras, a educação
passou a ser orientada pelos ideais e valores que correspondiam
com o momento interno e também aqueles presentes na conjuntura
mundial, marcada pela Revolução de Outubro (1917), Primeira
Guerra Mundial (1914-1918) e ascensão do Nazismo, em 1932.
Internamente, a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública,
em 1930, aludia para o entendimento da educação como questão
nacional, convertendo-se em objeto de regulamentação nos seus
diversos níveis e modalidades (SAVIANI, 2007). Para além disso, o
entusiasmo pela educação universalizada ganhou o debate no
terreno de justificativas e pressupostos, ancorados em uma
concepção de filosofia, o pragmatismo de Dewey e das ideias
liberais. As formulações educacionais dessa nova tendência foram
elaboradas pelos signatários do Manifesto de 1932, documento
articulado com as referidas demandas e que consagrou os ideais de
uma escola nova, com vistas a pôr em andamento um ideal de
sociedade. Entre os aspectos que subscrevem esse documento,
constam a oportunidade igual de educação para todos, sem privilégio
de classe, a laicidade, a gratuidade bem como as atribuições do
Estado na garantia e ampliação da educação pública (SAVIANI,
2007).
Naquele momento, se pretendia, por meio da renovação da
educação, superar os antagonismos pelos quais a sociedade
brasileira fora erigida. O fortalecimento de uma cultura educacional,
em todas as suas etapas, que vinculasse a ciência e a vida produtiva
era apontado como o músculo central de desenvolvimento político e
social da nação (MANIFESTO, 1984). Constata-se, portanto, o
entendimento que tinham da necessidade de uma cultura múltipla,
oferecida pela escola, que servisse de mola propulsora para uma
reforma social possibilitada pelo alargamento da educação e da ação
dela sobre os indivíduos. Essa compreensão, porém, não estava
alheia ao que era concebido fora do território nacional, na ambiência
educacional. A fé na educação como instrumento de
desenvolvimento econômico e social era compartilhado naquele
momento, como também no atual, pelo Ocidente; tentava-se
reproduzir e levar educação às massas para inseri-las na ordem
36 A Ética em prática no ambiente escolar

econômica e produtiva, isto é, no mercado de trabalho (LASCH,


1983).
Esse redirecionamento repercutia nos debates educacionais,
quando eram apontados os supostos limites de uma formação
denominada livresca, desconectada das atividades produtivas
capitalistas. Aqui se constitui o segundo ponto: as categorias da
educação e da cultura são definidas a partir de demandas e
critérios econômicos1. A reforma educacional no Brasil dos anos
1930 foi pensada com a finalidade de promover o desenvolvimento
econômico e social, segundo o ideário burguês liberal. No momento
atual, essa concepção recebeu uma nova roupagem: ela passou a
estar orientada para cumprir as metas da sociedade globalizada,
exigente de um outro modelo formativo. O mote defendido e
incorporado nas políticas educacionais liberais é o da relação entre o
trabalho, a inovação e a educação, identificadas na perspectiva das
competências e habilidades2. Nele estão contidos pressupostos que
afirmam a esfera do trabalho como elemento de realização da vida.
Para o cumprimento dessa meta, o perfil necessário mediante as
mudanças promulgadas pelo modelo de produção flexível é o

1 Por exemplo, cidadania e democracia não são definidas a partir de critérios


políticos, tais como a Grécia Clássica havia elaborado. Quando se estabelece a
definição de sociedade como sociedade do conhecimento ou da informação, ser
cidadão é estar plenamente inserido na aldeia global, possibilitado pela Internet.
Democracia é tornar disponíveis os meios de acesso à rede. A exclusão social
também não é pensada em termos de pobreza econômica, mas “info-excluídos”
(LIVRO VERDE, 2000).
2 Expressões dessas novas orientações inseridas na educação, podem ser

reconhecidas no chamado Livro Verde, publicado em 2000. Neles estão contidas as


articulações entre a chamada Sociedade do Conhecimento com a Educação.
Pensada a partir do que intitulam sociedade da informação, isto é, a produção de
bens e serviços, a educação é entendida como o “elemento-chave na construção de
uma sociedade baseada na informação, no conhecimento e no aprendizado. Parte
considerável do desnível entre indivíduos, organizações, regiões e países
deve-se à desigualdade de oportunidades relativas ao desenvolvimento da
capacidade de aprender e concretizar inovações. Por outro lado, educar em uma
sociedade da informação significa muito mais que treinar as pessoas para o uso das
tecnologias de informação e comunicação: trata-se de investir na criação de
competências suficientemente amplas que lhes permitam ter uma atuação
efetiva na produção de bens e serviços, tomar decisões fundamentadas no
conhecimento, operar com fluência os novos meios e ferramentas em seu trabalho,
bem como aplicar criativamente as novas mídias, seja em usos simples e
rotineiros, seja em aplicações mais sofisticadas. Trata-se também de formar os
indivíduos para “aprender a aprender”, de modo a serem capazes de lidar
positivamente com a contínua e acelerada transformação da base tecnológica”
(LIVRO VERDE, 2000, p. 45, grifos nossos).
Conferências 37

trabalhador inteligente e supostamente politécnico, multifuncional. A


educação está, sob esse modelo, restrita à instrução utilitária
aplicada ao trabalho e não requisita a tradição intelectual
historicamente elaborada (ZORZAL, 2006).
Com esse fim, o desenvolvimento educacional posterior, que
passava pelo entrelaçamento dos meios produtivos com a educação,
atuaria a princípio em duas frentes: para superar problemas tidos
como obstáculos aos fins pretendidos (econômicos, políticos etc.) e
na defesa e execução de um ideal de escola e de homem/mulher que
representasse os compromissos assumidos pelos setores sociais e
produtivos emergentes. Para isso, urgia reorientar os fundamentos
filosóficos da educação (a superação das teorias fundadas numa
visão aristotélico-tomista de mundo e de pessoa para uma
compreensão utilitarista, prática, tecnicista e hedonista), que
passariam a incorporar no indivíduo (aluno, professor) a possibilidade
de ser “criador de si mesmo”, “auto-reflexivo”, ou “construtor de seu
próprio saber”, princípios que não se coadunam com a expectativa
de condutas previamente padronizadas. No âmago das concepções
neoliberais o mito do indivíduo autocriador se acirra na pedagogia,
carregando, com tal lógica, as contradições na teoria e na prática
educativa da atualidade (NAGEL, S/D).
Dessa maneira, verifica-se a diluição dos padrões regulares
intelectuais nas propostas educacionais que enfatizam mais a vida
produtiva do que a especulativa e literária, pressupostos que não
encontraram ecos na sociedade de mercado. Essa constatação nos
leva compreender que o ensino de massa substituiu a formação
intelectual para privilegiar o trabalho e o treinamento. Para examinar
essa perspectiva, no entendimento de Christopher Lasch (1983), o
projeto de democratização do ensino não foi capaz nem de reduzir as
contradições sociais e econômicas, nem o fosso entre pobreza e
riqueza. Isso ocorreu porque a escola estava orientada a partir do
pressuposto de recrutamento industrial, de seleção e de certificação,
isto é, a explícita função de adequar o indivíduo para o trabalho. Os
currículos foram esvaziados de conhecimentos clássicos e
preenchidos com perspectivas que valorizavam as experiências, a
prática, o “aprender fazendo”. Foram também incrementados por
instruções morais que exaltavam a pontualidade e a autoconfiança.
Acrescente-se a proliferação de assuntos nada acadêmicos, tais
como aqueles referentes à cidadania, programas de atletismo,
atividades extracurriculares, entre outros, que refletiam a concepção
de formar uma criança integral. Essa perspectiva, no entanto,
38 A Ética em prática no ambiente escolar

contribuía para preencher o tempo dos alunos e conservá-los


contentes, com baixas exigências e cobranças (LASCH, 1983).
Entretanto, essas medidas subordinadas ao ideário neoliberal
de economia e educação, contribuiu para o declínio do pensamento
crítico e para a erosão dos padrões intelectuais, levando-nos a
considerar, como afirmam posições conservadoras, a possibilidade
de que a educação das massas é incompatível com a manutenção
da qualidade educacional. De qualquer modo, para Lasch (1983), o
declínio da aptidão literária não pode ser imputado unicamente à
escola. A relação que Lasch estabelece é o de que as escolas, nas
sociedades modernas, foram reorientadas para treinar pessoas para
o trabalho e, elas mesmas, deixaram de exigir altos níveis de
competência técnica e intelectual. A sociedade industrial não mais
repousaria em uma população madura para realizações mais
amplas. Ao contrário, requer uma população estupidificada,
resignada a um trabalho que é trivial e mal desempenhado,
predisposta a procurar sua satisfação no tempo que lhes resta para o
lazer (LASCH, 1983).
A referida declaração, que identifica a mudança das
orientações do ensino e o declínio de um tipo de conhecimento, leva
ao que Lasch chamou de atrofia da competência. Com efeito,
mudanças sociais radicais são apontadas como causas da
deterioração do sistema escolar e universitário e a consequente
difusão da estupidez. A promissora proposta de educação universal
terminou por reduzir os critérios e exigências escolares, muito em
função do tratamento do aluno como cliente, e o resultado pode ser
observado de modo abrangente tais como: o declínio dos padrões de
ensino, a simplificação dos livros escolares, as novas formas de
analfabetismo, a incapacidade de reconhecer fatos históricos, o
declínio da incompetência intelectual, a inadequação da linguagem, a
difusão de conhecimentos esotéricos acompanhados pelo
estranhamento dos grandes clássicos da literatura, ignorados pela
geração criada pelo cinema e tv. (LASCH, 1983).
Os critérios e exigências não foram modificados apenas na
educação porque não é apenas ela que está articulada com os
arranjos produtivos. A cultura, tomada em seu sentido mais amplo,
também se mostra vinculada às profundas transformações sociais e,
como tal, sugere alterações no pensamento. Com efeito, as novas
gerações indicam particularidades quando o assunto é a cultura de
massa, que também tem efeito formador. Segundo Eric Hobsbawm
(2014), novas expressões artísticas emergirem após a Segunda
Guerra Mundial com a colaboração da tecnologia. As artes buscaram
Conferências 39

renovação e experimentação, vinculando-se a novas utopias ou


mesmo pseudoteorias, de modo que as referências modernas
praticamente eram desconhecidas ou acessíveis a um público mais
velho. A perspectiva apontada é a transformação da arte em
mercadoria, em produto de massa, como a Escola de Frankfurt, em
seus principais representantes, havia apontado. Mesmo o referido
historiador britânico reconhece o triunfo da sociedade de consumo e,
como tal, a expansão do entretenimento comercial. O que entrava
nos lares eram os sons do pop comercial. Esse é um dos aspectos
cruciais que levaram Adorno e Horkheimer (1985), em 1947, quando
publicaram a Dialética do Esclarecimento, a estabelecer a crítica à
cultura de massa. Segundo eles, o cinema e o rádio não precisam se
apresentar como arte: não passam de um negócio usado como uma
ideologia destinada a legitimar o lixo propositalmente produzido. Tais
instrumentos padronizam os gostos; uniformizam porque
transformam o espectador em agente passivo, em consumidor do
que lhes é servido cotidianamente.
De acordo com os referidos teóricos da Escola de Frankfurt,
não se trata apenas de o produto chegar às pessoas, intermediado
pelos meios de comunicação, mas quem os controla. Lasch (1986),
na obra O mínimo eu, informou que na cultura de massa, a
tecnologia mais avançada compreende deliberadamente um sistema
unilateral de gestão e comunicação. Concentra o controle político e
econômico e, cada vez mais, o controle cultural nas mãos de um
grupo de planificadores de corporações e analistas de mercado,
especializados em transformar as escolhas pessoais (selecionadas e
orientadas segundo fins mercadológicos) em produtos de bens de
consumo. Assim, a cultura de massa, produzida em larga escala,
passa a ser um sistema de controle dos gostos tanto quanto político.
A cultura de massa, como expressão da produção capitalista com o
exercício repetitivo de estímulos e imagens, mobiliza o consumismo
e contribui para obscurecer a capacidade de julgamento tanto de si
mesmo quanto do mundo do qual faz parte. Para Lasch (1986), uma
nova autoconsciência surge na medida em que o indivíduo aprende a
avaliar-se face aos outros e ver a si próprio por meio de olhos
alheios. Ele aprende o caso da própria imagem ser mais valorosa do
que as habilidades e experiências adquiridas. Portanto, uma
personalidade hedonista, narcísica, se apresenta não somente como
traço psicológico (o desejo de satisfação, de vazio interior, por
exemplo), mas também como subproduto de uma época de
mudanças nos padrões de produção, de consumo e das relações
humanas.
40 A Ética em prática no ambiente escolar

A afirmação de Lasch (1983) é partilha por outros estudiosos


que aprofundam o tema e reconheceram o declínio de estudos
humanísticos em detrimento de uma educação menos rigorosa,
ancorada na gestão e na flexibilidade pedagógica. Marc Fumaroli
(2006), na conferência L’Umanesimo e la crise contemporanea
dell”Educazione, proferida aos estudantes do I’Instituto Italiano per gli
Studi Filosofici de Napoli, identificou uma tendência generalizada de
marginalização e até mesmo de desprezo dos clássicos, relegando
os estudos a seminários tidos por especializados. Um dos fatores
apontados por ele, que leva à marginalização da educação clássica,
é a diminuição do tempo de crianças, jovens e mesmo adultos
dedicados à leitura de livros em geral. A redução do espaço e tempo
cultivados a essa atividade é possibilitada por um tipo de ‘democracia
comercial’ que privilegiou uma cultura midiática. Além do mais, o
arrefecimento da leitura favoreceu o declínio da memória e da
atenção. Fumaroli (2006), explica essa redução ao pontuar o triunfo
de uma atitude muito precoce de negação da educação, isto é, desde
a infância as mentes são expostas às imagens rápidas, barulhentas e
esparsas das telas de televisão, absorvendo-as. A televisão se torna
o novo poder presente no ambiente doméstico, cujos pais estão
retidos pelo trabalho ‘longe de casa. As imagens “pré-embaladas”
dificultam o desenvolvimento natural da imaginação; corrói, de um só
golpe, as habilidades de concentração, o senso de realidade e reduz
o gosto individual antes mesmo do ingresso na escola.
Assim, a defesa de uma educação humanista e filosófica que
extrapole a dimensão econômica, é dificultada nas propostas
educacionais atuais em razão das diretrizes políticas da educação e,
sobretudo, pela desvalorização desse tipo de formação no mercado
de trabalho. Os projetos políticos pedagógicos compreendem a
educação a partir de critérios mercadológicos e utilitários. Por essa
razão, reduzida a educação a um processo de capacitação para o
negócio e aplicações técnicas, em detrimento às humanidades, o
risco é o da fragilização das democracias e fortalecimento de
regimes autoritários como sugeriu Martha Nussbaum (2012). Com
efeito, para Nuccio Ordine (2016), nesse contexto, a utilidade dos
saberes tidos por inúteis contrapõe-se radicalmente à utilidade que,
em nome de um interesse exclusivamente econômico, está
progressivamente matando a memória do passado, as disciplinas
humanas, as línguas clássicas, a educação, a livre pesquisa, a arte,
o pensamento crítico e o horizonte civil que deveria inspirar toda a
atividade humana. No universo do utilitarismo reinante, um martelo,
segundo ele, tem mais valor do que uma sinfonia, uma faca mais do
Conferências 41

que um poema. É mais fácil compreender a eficácia de uma


ferramenta do que entender para que podem servir a literatura ou as
obras de Platão, Dante Alighieri ou Rabelais.
Ancorada pelos ideais de eficácia produtiva, essa ordem de
preferências indica o nível de desafios a que os educadores
enfrentam, não apenas no Brasil, demostrados em eventos
recentes3, como também a violência praticada pelo Estado aos
professores de Oaxaca, México, por exemplo. O tratamento dado aos
que defendem princípios igualitários, isto é, uma educação pública de
qualidade, é revelador de contradições sociais: se por um lado o
discurso político enfatiza a modernização da educação, segundo os
aspectos já mencionados, por outro, os educadores são tratados
como caso de polícia quando se opõem à precarização do magistério
e dos conteúdos. Dessa maneira, na esteira do pensamento de
Adorno (1995), é preciso considerar que, para evitar tais atos,
necessitamos compreender a estrutura da sociedade que os movem.
Além disso, é fundamental reconhecer os mecanismos que tornam
as pessoas capazes de cometer ações de barbárie. Na situação
mundial vigente, segundo o entendimento de Adorno (1995), a
barbárie implica no preconceito delirante, na opressão, no genocídio
e na tortura que, parece, insiste em permanecer.

Suspeito que a barbárie existe em toda a parte em que há uma


regressão à violência física primitiva, sem que haja uma vinculação
transparente com objetivos racionais na sociedade, onde exista,
portanto, a identificação com a erupção da violência física. Por outro
lado, em circunstâncias em que a violência conduz inclusive a
situações bem constrangedoras em contextos transparentes para a
geração de condições humanas mais dignas, a violência não pode
sem mais nem menos ser condenada como barbárie (ADORNO,
1995, p. 159-160).

Com efeito, a violência não pode ser tratada apenas nas suas
manifestações físicas tampouco restritos à esfera escolar, fato que
nos leva a um terceiro desafio enfrentado pelos educadores:
refere-se ao fato de que o século passado e o atual parecem revelar
uma ruptura drástica nos padrões civilizatórios, em outras palavras,

3Faço referências às agressões sofridas pelos professores do Estado do Paraná,


em abril de 2015 e também aos mais recentes conflitos entre alunos e polícia, em
São Paulo e outros Estados. Os encaminhamentos políticos direcionados para a
educação apenas confirmam as opções referidas por esse texto, isto é, o utilitarismo
pedagógico e o seu proposital esvaziamento teórico. Expressão dessa diretriz é o
PLS 193/2016, o projeto que propõe uma “escola sem partido”.
42 A Ética em prática no ambiente escolar

nos princípios mantenedores dos vínculos comuns dando lugar a


comportamentos em que essas mesmas conexões basicamente
desaparecem. Os longos momentos de guerras que sacudiram o
século XX contribuíram para formar um mundo instável em suas
relações econômicas, políticas ou ideológicas. Crises econômicas
sucessíveis, agitações sociais de toda ordem caracterizaram o
conturbado século XX. Em face disso, houve um fenômeno social
apontado por muitos estudiosos desse período, a exemplo de Eric
Hobsbawm (2014), parece ter se expandido: caiu por terra os
sistemas que previam ou limitavam o barbarismo. A violência
generalizada indicou a fragilização do sentido humano e dos
sistemas políticos e jurídicos os quais não conseguiram garantir
mínimos os padrões de coesão. Para o historiador britânico, as
últimas décadas do século passado conheceram uma crise moral
que abalou os padrões modernos de convivência humana e as
estruturas históricas de relações coletivas. Elas foram arruinadas em
detrimento de princípios relativos ou individualistas, de modo que os
indivíduos não conseguiram ter o outro como referencial político ou
ético.
Centrando em si mesmo, o indivíduo clama constantemente
por auto-realização. Egocentrado, particularista e hedonista, busca
viver intensamente o momento, desprezando o passado e
negligenciando o futuro. Fascinado pelo espetáculo da tecnologia e
da mídia, busca constantemente por novas realizações e acredita
poder dizer e fazer quase tudo. Esse habitante da sociedade
contemporânea é caracterizado, segundo Maria de Fátima Vieira
Severiano (2001), como alguém que persegue a fama e a
celebridade, concebendo-os como direitos naturais, além de
manifestar profundo desprezo e apatia com relação às questões
coletivas, não mais se identificando com a luta pelo bem comum. Seu
interesse principal parece residir no consumo irrefreável de bens e
serviços de acordo com demandas particulares, expressas na
realização de estilos individuais.
Uma das características que parece predominar nesse tipo de
personagem diz respeito à perda do sentido histórico, quer dizer dos
laços que vinculam nossas experiências às relações anteriores.
Lasch (1983), no livro A cultura do narcisismo, afirmou que viver para
o momento é a paixão predominante. Viver para si, sem pensar nas
gerações posteriores, indica a perda acelerada do sentido de
continuidade histórica, do senso de pertencermos a uma sucessão
de gerações originadas no passado e que se prolongarão no futuro.
O resultado dessa perspectiva bastante comum reside no fato do
Conferências 43

indivíduo perder o senso de pertencimento a um grupo, filiação


teórica ou mesmo a pessoas: para ele/ela, o tempo cristaliza-se no
presente de modo que não se sente obrigado (a) a agir projetando o
futuro, considerado mera abstração. Viver para si, satisfazendo
desejos irracionais e injustificados, converte-se na norma de
realização da vida. Egocentrada, contemplando a si mesma nas
inúmeras selfies expostas diariamente no Facebook, a pessoa nada
reconhece a não ser a própria onipotência e pretensa imortalidade.
Nesse contexto narcísico, também as relações humanas se tornaram
triviais, inclusive a familiares: os pais se veem desobrigados à
responsabilidade de educar os filhos, fragilizando-os e infantilizando-
os com mimos. Ao que parece, ninguém mais deseja ser considerado
responsável, como afirmou Pascal Bruckner (1997).
Por fim, os três aspectos referidos neste texto, indicam a
complexidade dos desafios enfrentados pelos educadores. Os
docentes defrontam-se com eles dentro e fora da sala de aula, uma
vez que pertencem à construção social e não exclusivamente ao
ambiente escolar. Quando as relações sociais são examinadas
historicamente, constata-se que a mercantilização da educação, a
espetacularização e as mudanças nos padrões de civilidade e na
percepção do tempo histórico são questões nos quais educadores
parecem enfrentar e devem responder. Em face das transformações
históricas verificadas durante o século XX e XXI, a educação e a
ética podem ser pensadas a partir das demandas sociais e
econômicas que estabeleceram questionáveis modelos e perfis
atribuídos à escola. Como espaço destinado à produção de
conhecimentos e valores, a escola não pode perder as bases para a
execução de sua função educativa e nem se render a projetos
mirabolantes de ajustes econômicos e políticos. Em tempos de
desregulamentação e mercantilização da educação, conteúdos
(clássicos) foram excluídos enquanto outros foram selecionados para
formar o consumidor e o cliente com um perfil dinâmico e desenvolto,
mas politicamente castrado. A educação cabe aos educadores no
sentido mais amplo e não a setores sociais despreparados que
imaginam a formação nos limites da informação e eficiência técnica
ou da pretensão de despolitizá-la. O que diria Platão e Aristóteles em
resposta ao projeto de uma "escola sem partido"?
Em suma, nesta exposição foram apontados alguns aspectos
que aludem para as direções tomadas no âmbito da educação. Ainda
que tenhamos clareza dos seus limites e reconhecimento de outros
graves desafios, eles podem revelar as opções assumidas pela
sociedade, demostradas nos encaminhamentos das políticas
44 A Ética em prática no ambiente escolar

educacionais. Os referidos aspectos (mercantilização, mudanças no


padrão de civilidade, negação da temporalidade histórica e um perfil
hedonista) se impõem à educação e à ética e, como tais, precisam
ser refletidos e avaliados. Assim, o desafio maior parecer ser a
universalização da educação sem incorrer no esvaziamento teórico e
sem negar a necessidade da articulação da formação com a vida
produtiva, política, estética, entre outros aspectos necessários para a
formação da pessoa. Os desafios educacionais e éticos, tanto do
passado quanto do presente, são sempre permanentes e exigentes
de criticidade.

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trabalho e a educação em tempos neoliberais: a história reeditada
46 A Ética em prática no ambiente escolar

como farsa? 2006, 320 f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) -


Universidade Federal de São Carlos, São Paulo, 2006. In.
https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/2179?show=full
Conferências 47

SEGUNDA PARTE:

TRABALHOS COMPLETOS
48 A Ética em prática no ambiente escolar
=I=

A ALTERIDADE NA ÉTICA EXISTENCIALISTA DE SARTRE

Elizabeth Fortecki*
Vanessa Furtado Fontana**

RESUMO:
O problema do outro na obra o “Ser e o Nada” de Jean Paul Sartre
se configura como um paradigma existencial. Para alcançar a plena
consciência de si mesmo é necessário reconhecer o Outro como
fundamento ontológico, situação essa geradora de conflitos. Pensar
a alteridade à luz do pensamento sartreano prescinde do
estabelecimento de uma relação entre as liberdades de consciência,
surgindo, assim, uma reflexão de ordem ética.

PALAVRAS-CHAVE: Existencialismo; Eu-Outro; Consciência;


Sartre.

Jean Paul Sartre escreveu a obra “O ser e o nada” em 1943.


A ousadia de suas ideias, sem dúvida, causou enorme polêmica no
início do século passado e, ainda hoje, causa estranheza ao
pensamento mais conservador. Publicado no Brasil apenas em 1997,
o livro propõe uma reviravolta em relação à tradição filosófica
defendida por muitos filósofos até então. A proposta do
Existencialismo não vai admitir a dualidade e sim defender que a
aparência das coisas é parte integrante de sua própria essência: as
coisas são o que são e não são meras representações de uma
verdadeira essência escondida por trás dos fenômenos. Admitir a
não existência de ideias ditas universais que norteiem nossas
condutas parece ser muito difícil, uma vez que dessa forma
precisaremos nos colocar como responsáveis por nossas próprias
escolhas: não possuímos uma essência a ser alcançada, a cada ato,
a cada decisão, a cada escolha estamos totalmente livres para
demonstrar o que somos. Desse modo, pensar em uma ética
sartreana é pensar sobre os conflitos entre liberdades, entre o Eu e o

* Serviço Social, UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Francisco


Beltrão-PR; bfortecki@gmail.com
** Professora da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
50 A Ética em prática no ambiente escolar

Outro, na medida em que também pensamos a grande antítese


debatida por Sartre que é o Ser e o Nada.
Para fundamentar o estudo proposto, buscamos partir da
terceira parte da obra, intitulada “Ser para Outro”, que traz como
tema central, exatamente, o Outro e a forma como este se relaciona
com o Para-si. O Projeto de pesquisa em questão está sendo
desenvolvido a partir de leituras das obras com o intuito de discutir
acerca do Existencialismo de Sartre e sua relação com o conceito de
alteridade, bem como as suas implicações éticas. No decorrer do
trabalho também foram feitas pesquisas em obras fundamentais
acerca do pensamento sartreano e de comentadores renomados
para um melhor aprofundamento do tema.
Nossa discussão se inicia com o conceito de liberdade em
Sartre. A liberdade para este pensador tem um sentido ontológico e
é, por primazia, constitutiva do ser. O ser ontológico se manifesta no
mundo concreto onde se vive, ou seja, na vida cotidiana dos homens.
Portanto, a liberdade implica no surgimento de uma consciência
permanentemente em situação, comprometida com o mundo onde se
insere. Nada pode fugir à consciência, pois saber é saber que se
sabe, ao passo que ser consciente é ter consciência disso. Na
medida em que nos tornamos conscientes da nossa própria
consciência, nos deparamos com o pesado fardo de sermos livres
para fazer o que queremos de nossas vidas, já que só existimos se
existirmos para nós mesmos. Não temos um inconsciente para culpar
como diria Freud e nem um mundo das ideias para alcançar como
acreditava Platão, nos tornamos totalmente responsáveis pela nossa
liberdade.
A partir deste pressuposto, se torna necessário debruçar-se
sobre a condição humana de um ser que vive em comunidade (Para-
si), e que compartilha costumes e até mesmo objetivos. O conceito
de Sartre sobre liberdade estaria no fundamento da construção de
uma vida coletiva, pois a vida social só é possível, na medida em que
tomo consciência da relação eu-outro: refletir sobre a condição
humana depende do estabelecimento desta relação. Trata-se, então,
de abordar a existência de um ser constituído na convivência com os
outros.

[...] sua essência deve ser a referência a uma relação primeira de


minha consciência com a do Outro, na qual este deve me aparecer
diretamente como sujeito, ainda que em conexão comigo - relação
essa que é a relação fundamental, do mesmo tipo de meu ser-Para-
outro. (SARTRE, 2007, p. 327)
Trabalhos completos 51

Nesse sentido, colocamo-nos a pensar sobre algumas


indagações: até que ponto o homem é livre para atuar sobre o outro?
Quais são os limites da liberdade humana? Até que ponto o exercício
de minha liberdade implica na liberdade do outro? Como saber que
meu agir livre não está cerceando a liberdade do outro?
Sartre mesmo já nos disse que “O inferno são os outros”. Na
verdade, a problemática da liberdade para além do campo social tem
na subjetividade dos sujeitos uma categoria de análise que não pode
ser deixada de lado. Na relação eu-outro existe um conflito constante
de consciências, pois o eu possui valores, desejos, objetivos, etc. em
relação ao outro. Por sua vez, o outro também possui em sua
consciência os mesmos valores, desejos e objetivos em relação ao
eu. É uma via de mão dupla, “[...] as estruturas do meu ser-para-
outro são idênticas às do ser do outro para mim” (SARTRE, 2007, p.
428), pois ao mesmo tempo em que alimento expectativas em
relação ao outro, o outro também as nutre em relação a mim e nesta
convivência, frequentemente a consciência do eu não está alinhada
com a consciência do outro, gerando conflitos.

O Outro, como unidade sintética de suas experiências e como


vontade, tanto como paixão, vem organizar minha experiência. Não
se trata da pura e simples ação de um númeno incognoscível sobre
minha sensibilidade, mas da constituição, por um ser que não sou
eu, de grupos conexos de fenômenos no campo de minha
experiência. (SARTRE, 2007, p. 294-295)

Na busca do homem em realizar sua felicidade, este não se


dá conta que um determinado projeto de vida pode ir de encontro
com outro projeto, de modo que este se submeta ao primeiro. A
liberdade do eu fica condicionada pela liberdade do outro. Afirmar a
liberdade do eu tratando o outro como mero objeto ou meio para a
realização dos desejos e objetivos do eu, sem levar em conta que
esses mesmos desejos e objetivos podem causar o cerceamento da
liberdade do outro é, no mínimo, irresponsável. Estamos falando de
um outro que também possui liberdade e que não pode subjugá-la
em relação a mim, ou vice e versa.

Mas, precisamente porque existo pela liberdade do Outro, não


tenho segurança alguma, estou em perigo nesta liberdade; ela
modela meu ser e me faz ser, confere-me valores e os suprime, e
meu ser dela recebe um perpétuo escapar passivo de si mesmo.
Irresponsável e fora de alcance, esta liberdade proteiforme na qual
me comprometi pode, por sua vez, comprometer-me em mil
52 A Ética em prática no ambiente escolar

maneiras diferentes de ser. Meu projeto de recuperar meu ser só


pode se realizar caso me apodere desta liberdade e a reduza a ser
liberdade submetida à minha. (SARTRE, 2007, p. 457)

Para Sartre este conflito nunca vai se resolver, pois é ele


mesmo a razão de ser de sua existência, a essência da relação entre
consciências. Mas então como resolver o problema? A resposta está
na análise do sentido da escolha como ato de liberdade e como
compromisso do eu na convivência com o outro. A afirmativa é
certeira: somos totalmente responsáveis por nossas escolhas e
devemos parar de culpar os outros pelas consequências.
O homem possui a capacidade de assumir escolhas, livre
para escolher como vai conduzir sua vida, sua postura frente ao
mundo. Sartre não acredita na existência de um Deus ou de uma
força oculta que determine os destinos e, por isso mesmo, as
escolhas trazem consigo responsabilidades que dizem respeito tanto
ao sujeito que escolhe como para os outros. Assim, na medida em
que não estamos sendo determinados, o homem se joga numa
incessante busca de vir-a-ser, de dar sentido à sua existência.
Somos totalmente livres, ao mesmo tempo estamos condenados à
liberdade. Não há escapatória.
Se estamos livres e disso não podemos fugir, nossas
escolhas devem levar em conta uma liberdade responsável, onde o
sentido da alteridade em Sartre se concretiza. A consciência do
homem precisa reconhecer a consciência de seus pares. Ele agora
sabe que não decide somente por si, mas também pelo outro. Tudo
que escolher afetará diretamente o Outro. Qualquer “liberdade” que
não considere a responsabilidade como premissa se torna sem
sentido, pois de nada adianta querermos ser livres suprimindo a
liberdade dos outros. É somente a responsabilidade que torna o
sujeito verdadeiramente livre.
Exemplificando: tanto vemos as pessoas, principalmente as
mais jovens, falarem em liberdade, mas pouco se pensa sobre o
verdadeiro sentido do termo. É comum ouvirmos por aí que ser livre
é fazer o que bem entender sem se importar com as consequências
e nem dar satisfações. Esquece-se que o simples fato da pessoa
admitir sua liberdade recai sobre as outras pessoas e
acontecimentos, os quais elas mesmas não escolheram. Essa
liberdade sem responsabilidade acaba comprometendo a liberdade
de outros, no momento que uns passam a escolher pelos outros.
O Outro é determinante na construção da minha liberdade. Só
manifesto minha existência em relação ao Outro, assim como o olhar
Trabalhos completos 53

do Outro me determina. A tese de Sartre, na verdade, quer dizer que


ter consciência de minha própria objetividade é um estado de
consciência possível perante a presença do outro. O outro se torna
um mediador para a tomada de consciência de mim mesmo, isto é,
eu apreendo o outro pela possibilidade de ser visto por ele a todo
momento.

O Outro é, nesse plano, um objeto do mundo que se deixa definir


pelo mundo. Mas esta relação de fuga e ausência do mundo com
relação a mim é apenas provável. Se é ela que define a objetividade
do Outro, então a qual presença original do Outro poderá se referir?
Podemos responder logo: se o Outro-objeto se define em conexão
com o mundo como o objeto que vê o que vejo, minha conexão
fundamental com o Outro-sujeito deve poder ser reconduzida à
minha possibilidade permanente de ser visto pelo outro. É na
revelação e pela revelação de meu ser-objeto para o Outro que
devo poder captar a presença de seu ser-sujeito. Porque, assim
como o Outro é para meu ser-sujeito um objeto provável, também
só posso me descobrir no processo de me tornar objeto provável
para um sujeito certo. (SARTRE, 2007, p. 331)

Pensar a ética nesta perspectiva é ter no Outro uma série de


possibilidades e saber que minhas escolhas sempre vão incidir sobre
o outro e somente eu sou o responsável no final.
A ética sartreana vem trazer a ideia de que nossa existência
não é pautada por nenhuma determinação objetiva. Configura-se em
uma ilusão a crença de que qualquer tipo de valor exista
objetivamente no mundo, ao contrário, eles são criados e significados
pelas escolhas do homem. Dessa maneira, nossas escolhas
individuais precisam ser analisadas partindo da premissa de que são
autenticamente nossas e nada as determina além de nós mesmos.
Propagar preconceitos, usar de violência contra o outro, tolher a
autonomia das pessoas por meio de escolhas que se faz ou de
tomada de decisões erradas, passa pela plena consciência do que se
está fazendo ou decidindo.
A constatação de que somos totalmente livres e de que
estamos completamente sozinhos gera uma forte angústia. Por isso,
usamos desculpas, mentimos na tentativa de nos livrar dessa
liberdade, configurando o que Sartre chamaria de Má-fé1.

1 Diferente do sentido dado à Má-fé no senso comum, para Sartre ela refere-se a
uma mentira que contamos para nós mesmos, mas que, no fundo, sabemos ser
mentira, no intuito de aliviar nossas angustias advindas da nossa condenação à
liberdade.
54 A Ética em prática no ambiente escolar

Justificamos os acontecimentos a todo momento: família, falta de


tempo, classe social, acontecimentos do passado, fingindo acreditar
que nada é resultado de nossas escolhas.
Costumeiramente transferimos aos outros a culpa de nossos
próprios atos. Não queremos que a culpa faça parte de nossa
essência, ao outro caberá o fardo, não a mim. Acontece uma
seletividade, ou seja, as implicações positivas de minhas escolhas
são assumidas sem pesar, ao passo que a negatividade advinda
delas é repassada ao outro. Ao contrário, para Sartre só podemos
condenarmos a nós mesmos pelo que fazemos.
A consciência da escolha que parte de mim mesmo é a
própria personificação da minha existência em uma relação concreta
com o mundo onde existo. Pode-se dizer que a escolha consciente
implica um entendimento de mundo e de si mesmo, marcada por
uma intencionalidade dos sujeitos. Daí emerge, o conceito sartreano
de engajamento2, derivado do processo de escolha que compromete
os homens na construção de um projeto coletivo.
O homem só existe na medida em que se reconhece no
mundo fazendo a transposição do Em-si para o Para-si. Nessa
passagem, o sujeito nega-se a si mesmo descobrindo que não é
nada antes de existir concretamente e, do mesmo modo, o Outro
surge como possibilidade: nós reconhecemos no Outro. Dentro da
relação Eu-Outro, o Outro é condição necessária para nossa
existência e não somos nada sem a perspectiva do Outro. É preciso
que entendamos o Outro para entendermos a nós mesmos.

O Outro é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo: sinto


vergonha de mim tal como apareço ao Outro. E, pela aparição
mesmo do Outro, estou em condições de formular sobre mim um
juízo igual ao juízo sobre um objeto, pois é como objeto que
apareço ao Outro. (SARTRE, 2007, p. 290)

Refletir sobre a alteridade a partir dos escritos de Sartre é


refletir sobre a defesa de um projeto ético para a existência humana
rumo a construção de um projeto de vida. Esse projeto tem, na minha
relação com o outro, um constate conflito na busca de um sentido,
sempre pautada na concretude da vida. A liberdade necessita de
responsabilidade.

2O sentido sartreano de engajamento está no comprometimento com um projeto de


existência. Sartre acreditava no engajamento político como a mais completa
expressão do Existencialismo.
Trabalhos completos 55

Numa realidade onde delegamos, somente aos outros,


nossas responsabilidades, nada se torna possível, pois as negando,
negamos nossa própria existência. O homem que não assume as
consequências de suas escolhas anula a si mesmo no momento que
não admite seu comprometimento com o Outro, negando também a
humanidade inteira. A conclusão a que chegamos é que viver
significa existir, existir nos traz uma constante angústia provocada
pela nossa liberdade e, para a angústia, só nos sobra a
responsabilidade.

REFERÊNCIAS

ALVES, Pedro M. S. Empatia e ser-para-outrem: Husserl e Sartre


perante o problema da intersubjetividade. In: Estudos e pesquisas
em psicologia, UERJ, ano 08, número 2, p 334-357, 1º semestre,
2008.

PERDIGÃO, Paulo. Existência e liberdade: uma introdução à


filosofia de Sartre. Porto Alegre: LP&M, 1995.

SARTRE, J.P. O ser e o nada. Ensaio de ontologia fenomenológica.


Petrópolis: editora Vozes, 2007.
56 A Ética em prática no ambiente escolar

= II =

A COMPREENSÃO ONTOLÓGICA DE ESPAÇO EM


MARTIN HEIDEGGER

Maria Lucivane de Oliveira Morais*


Roberto S. Kahlmeyer-Mertens**

RESUMO
Esta comunicação tem o objetivo geral de demonstrar a
compreensão ontológica do espaço presente no § 22, na obra Ser e
tempo, publicada por Martin Heidegger. As análises já tecidas sobre
o espaço demonstram, de forma nítida, que as definições tradicionais
que o vinculam apenas ao uso e produção são insuficientes para
compreender a forma como o ser-aí se lança para múltiplas
possibilidades do seu existir. Encontramos na referida obra os
subsídios necessários para fundamentar a compreensão do espaço a
partir de bases fenomenológico-existenciais, afinal o ser-aí
ontologicamente compreendido é espacial, pois sua vida é sempre e
necessariamente determinada por sua atitude em relação a um
espaço circundante, continuamente descoberto e recriado pelo ser-
aí, na medida em que existe e se abre como possibilidade. A
justificativa para a escolha dessa temática deve-se à compreensão
de que Heidegger promoveu avanços significativos nos estudos
sobre o espaço indo para além da postura utilitarista e determinista
mantida pelas ciências humanas que o pensam de maneira ôntica.
Como metodologia foi realizada uma análise bibliográfica da obra Ser
e tempo e em artigos publicados por alguns comentadores, cujos
resultados prévios são apresentados a seguir.

PALAVRAS-CHAVE: Heidegger; Espaço; Fenomenologia.

* Mestranda em Filosofia Moderna e Contemporânea, UNIOESTE – Universidade


Estadual do Oeste do Paraná; maria_lucivane@hotmail.com
** Professor da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná;

kahlmeyermertens@gmail.com
Trabalhos completos 57

2.1 INTRODUÇÃO

Como anunciado anteriormente, esta comunicação propõe


uma compreensão, ainda que sucinta, do conceito fenomenológico
de espaço a partir da obra Ser e tempo, de Heidegger, para isso,
serão apontadas as definições da espacialidade do Ser-aí e do
espaço descrito em § 22.
A Heidegger importa perguntar sobre o sentido do ser, o
papel que desempenha na dimensão espacial da existência e qual é
o significado ontológico do espaço que, até então, era considerado
apenas como espacialidade fática. Critica as ciências humanas que
lhe atribuem definições rígidas e vinculadas ao caráter imediato e
utilitário da existência, aos objetivos que tornam o espaço familiar e
habitável, sendo apenas uma base física sobre a qual se manifesta a
existência humana.
Estas definições não permitem compreender o sentido
fundamental do espaço, tampouco tecer considerações sobre o
modo como o ser-aí delineia sua cotidianidade mediana, construindo
valores, socializando-se, suprindo suas necessidades básicas,
relações utensílios, dentre outros. Será sobre o espaço que a
existência humana se estrutura, pois ela necessita dele para se
desdobrar, afinal o ser-aí, ontologicamente compreendido, é
espacial, pois sua vida é sempre e necessariamente determinada por
sua atitude em relação a um espaço circundante.
Diante dessas compreensões iniciais, tem-se a necessidade
de aprofundar tais discussões que são de interesse tanto para
geógrafos quanto para filósofos. A justificativa para a escolha dessa
temática também pode ser ilustrada pelos poucos estudos publicados
no país, tendo como referência as considerações heideggerianas que
nos permitem compreender o espaço como muito mais do que
apenas dimensões físicas, sendo descoberto e recriado pelo ser-aí,
na medida em que existe e se abre como possibilidade, afinal o ser-
aí também é espacial por natureza.
Para aprofundar tais análises, a seguir delineou-se uma
investigação sobre o conceito de espaço por meio de uma pesquisa
teórica pautada na análise bibliográfica da obra Ser e tempo, de
Heidegger (especialmente no § 22 que discorre sobre a temática
fenomenologicamente) e, ainda, em textos de importantes
comentadores.
58 A Ética em prática no ambiente escolar

2.2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Nos últimos anos, a obra de Heidegger, sobretudo, Ser e


tempo, ao discutir fenomenologicamente o espaço (na forma de
espacialidade), trava um embate com a ideia positiva de espaço
vigente em ciências como a Geografia. No seio dessa, o espaço
emerge como uma categoria na qual ele é interpretado como algo
possível de ser definido, utilizado e modificado pelo homem de
acordo com suas necessidades e os limites oferecidos pela natureza.
Em contrapartida a essa interpretação, por meio da
fenomenologia, Heidegger aponta, continuamente, que as ciências
humanas atribuem definições rígidas ao espaço, vinculando-o ao
caráter imediato e utilitário da existência e, portanto, precisam ser
repensadas urgentemente. Afinal, é numa certa interação com o
espaço que o ser-aí executa seu projeto existencial e exerce seu
caráter de poder-ser. A teoria heideggeriana nos mostra que o
espaço não é independente do ser-aí e de sua existência porque ele
é essencialmente espacial (ARISAKA, 1995).
Com sua fenomenologia existencial, o filósofo nos permitirá
compreender o espaço como o campo de jogo do ser-no-mundo que
somos e este como o ente que se lança para múltiplas possibilidades
do seu existir. Algo assim, entretanto, apenas se tornaria possível a
partir da utilização da analítica existencial, projeto fenomenológico
subordinado à ontologia fundamental de Heidegger e que
compreende, entre seus muitos passos programáticos, a
decomposição da faculdade do entendimento, não em elementos,
mas a recondução de uma unidade (síntese) da possibilidade
ontológica do ser dos entes.
Segundo Heidegger (2013):

[...] a finalidade da analítica é, pois, evidenciar a unidade original da


função da capacidade de compreensão. A analítica trata de um
retroceder a uma “conexão em um sistema”. A analítica tem a tarefa
de mostrar o todo de uma unidade em condições ontológicas. A
analítica como analítica ontológica não é um decompor de
elementos, mas a articulação da unidade de uma estrutura. (p. 141)

Portanto, a analítica do ser-aí pergunta por sua constituição


fundamental ontológica (existencial), não descrevendo simplesmente
os fenômenos ônticos, mas possibilitando a compreensão da
estrutura do ser-no-mundo como horizonte no qual torna possível a
análise de questões existenciais e, sobretudo, em seu modo de
Trabalhos completos 59

ligação com o sentido do ser (é esta a questão à qual Heidegger


dedicou sua vida).
Assim, por meio de tal analítica, torna-se possível uma
investigação que culminará em uma ontologia fundamental, na qual o
sentido do ser e do ente que nós somos é analisado. Tal análise
ontológico-existencial nos mostra que o ser do ser-aí está sempre em
jogo, pois sua essência está em sua própria existência e nos
possíveis modos de ser. Desse modo, para “[...] uma interpretação
ontológica desse ente, a problemática de seu ser deve ser
desenvolvida a partir da existencialidade de sua existência”.
(HEIDEGGER, 2013, p. 44).
Nesse âmbito é que encontramos, no § 22 da obra Ser e
tempo, a abordagem que Heidegger faz desse espaço de realização
do ser-aí e elementos que facultam, não apenas a crítica às
concepções tradicionais de espaço (como as conjugadas por
ontologias regionais, como é o caso da Geografia), quanto oferece
subsídios para fundamentar uma compreensão de espaço em bases
fenomenológico-existenciais.
O espaço, enquanto possuidor de estrutura existencial é
próprio ao ser-aí e não pode ser separado deste que é compreendido
como um ser-ativo-no-mundo. Como existencial do ser-aí, o espaço
permite a insurgência de múltiplas relações que propiciam a
construção de fenômenos, sentidos e possibilidades existenciais que
mudam ao longo da história em virtude das reinvenções do trabalho,
do capital, das relações sociais, da cultura e do próprio existir de
cada indivíduo.
De modo fenomenológico-existencial, o espaço é um
existencial do ser-aí, composto por entrelaçamentos de significações
que dão sentido a este ente, portanto, não pode ser pensado apenas
de forma utilitária e/ou determinada fisicamente de forma métrica,
perpassado pela técnica, pela tecnologia e pela própria história
constitutiva de um Estado (ELDEN, 2005).
Nas palavras de Heidegger (2013, p.167): “A descoberta do
espaço puramente abstrato, destituído de circunvisão, neutraliza as
regiões do mundo circundante, transformando-as em puras
dimensões”. Dessa forma, o espaço, existencialmente compreendido
não é algo empírico constituído por entes e coisas simplesmente
dadas. Para o filósofo, mesmo que as ciências humanas sejam
constituídas por inúmeras definições e conceitos elaborados por
meio de pesquisas e hipóteses, ainda falta ao espaço uma “[...]
clareza de princípio a respeito das possibilidades de ser e sua
interpretação ontológica”.
60 A Ética em prática no ambiente escolar

A autocompreensão da existência do ser-aí se dá por meio do


espaço no qual está mergulhado em sua vida fática e, por meio dela
estabelece a compreensão sobre a forma como a espacialidade
ocorre, atribuindo sentidos aos fenômenos e aos lugares que o
circundam. Ao espacializar o meio em que vive, o ser-aí
compreende-se como abertura/possibilidade; nutre o sentimento de
pertencimento e identidade além de executar seu projeto existencial
até que alcance suas possibilidades mais próprias” (SARAMAGO,
2008).
Portanto, o espaço corresponde a um fenômeno no qual o
ser-aí compreende sua essência e projeta sua existência, afinal,
está-no-mundo e é-no-mundo descobrindo-o e se relacionando com
os entes que nele se encontram, logo, o ser-aí é espacial em sentido
originário, alcançando os entes em sua espacialidade por meio de
sua ação espacializante; atribuindo, por exemplo, lugares específicos
para os diversos utensílios que o circundam (BRASIL, 2005, p. 84).
O espaço, como constitutivo do ser-no-mundo, permite sua
abertura por meio da condição de possibilidade que lhe é inerente,
tornando evidente sua constituição ontológica fundamental, bem
como a auto-interpretação de sua possibilidade de existir, ao passo
em que torna possível se relacionar consigo mesmo e com os
demais entes que o cercam (BOLLNOW, 2008).
Ao habitar um determinado espaço o ser-aí promove arranjos,
vivencia distintas situações nas quais põe à prova sua autenticidade,
fragilidade e vulnerabilidade. A existência ultrapassa a cognição, ao
mesmo tempo, em que lança o ser-aí para a facticidade e as diversas
possibilidades que se tornarão constitutivas de seu ser
(THOIBISANA, 2008).
É sabido que, de modo cotidiano, o ser-aí interpreta o
fenômeno do espaço como espaço físico, contudo, é necessário
pensá-lo de maneira fenomenológica compreendendo-o como um
existencial do ser-aí. Trata-se da já mencionada espacialidade
(Räumlichkeit) dele. Afinal, no “aí” (Da) do mundo, espaço é sempre
espaço de jogo (Spielraum) e nunca um espaço previamente dado (=
hipostasiado) (KAHLMEYER-MERTENS, 2008). Portanto, é no
horizonte do espaço fenomenal que o ser-aí existe.
No interior de Ser e tempo, por meio de uma fenomenologia-
existencial, Heidegger demonstra que não existem determinações,
mas elementos condicionantes, plenos de possibilidades que se
refletem sobre a existência do ser que existe segundo a facticidade
de seu mundo. Ao integrar, ontologicamente, o espaço no qual
realiza todas as dimensões de sua vida; o ser-aí pode ser
Trabalhos completos 61

compreendido como um ser-no-mundo que se relaciona com outros


sujeitos, compartilha sua existência e atribui sentido às
possibilidades do poder-ser sobre o espaço no qual se projeta.
Portanto, “[...] o Dasein existe e enquanto existe” (NUNES, 2010, p.
48).
A realidade do ser-aí é espacial por natureza, uma vez que
cria espaços, arrumando e desarrumando-os, de acordo com sua
cultura e objetivos, aproximando e fazendo uso dos entes que irão
constituí-lo, ao mesmo tempo em que se experimenta como
possibilidade ao se relaciona com o mundo e delinear as estruturas
essenciais que determinam o sentido de seu ser.
Por ser espacial, o ser-aí destitui a dualidade trazida pela
tradição na qual homem/mundo emergem dissociados, pois, para
Heidegger ambos são constitutivos um do outro e, por isso, permitem
a realização de múltiplas possibilidades; assim, o ser-aí é, existe e
habita buscando sentido para seu ser, na medida em que executa
seu projeto existencial – como já mencionado (HEIDEGGER, 2001).
Dentre as críticas já tecidas sobre a compreensão
fenomenológica de espaço aos modelos físico-descritivo e de espaço
habitado, cita-se a obra de Saramago (2008), na qual se evidencia
que a Heidegger importa perguntar sobre o sentido do ser, o papel
que desempenha na dimensão espacial da existência e qual é o
significado ontológico do espaço que, até então, era considerado
apenas como espacialidade fática.
O filósofo teceu importantes críticas às ciências humanas que
atribuem ao espaço definições rígidas e vinculadas ao caráter
imediato e utilitário da existência, aos objetivos que tornam o espaço
familiar e habitável, sendo apenas uma base física sobre a qual se
manifesta a existência humana. Diante de tais definições, não é
possível entender o sentido fundamental do espaço, tampouco tecer
considerações sobre o modo como o ser-aí delineia sua
cotidianidade mediana, construindo valores, socializando-se,
suprindo suas necessidades básicas, relações utensílios, dentre
outros (SARAMAGO, 2008).
Será sobre uma experiência fenomenal do espaço, enquanto
campo de jogo, que a existência humana se realiza; afinal, o ser-aí,
existencialmente compreendido, é espacial, pois sua vida é sempre e
necessariamente determinada por sua atitude em relação a um
espaço circundante. Assim, o espaço é necessário para as múltiplas
possibilidades de existência sobre a qual o ser-aí se lança.
Para Bollnow (2008), a compreensão cotidiana do espaço
como apenas uma base física, com demarcações específicas
62 A Ética em prática no ambiente escolar

tratadas pela tradição, não é suficientemente precisa para explicar a


amplitude da existência do ser-aí e de sua temporalidade. Pensar o
espaço de maneira desvinculada do ser-aí, como as primeiras
correntes do pensamento geográfico fizeram, implica, no mínimo, em
tomar como verdade uma reflexão superficial. Existe uma relação
única entre ser-aí e espaço que, por sua vez, é algo que lhe é
constitutivo e fundamental, portanto, o ser-aí se realiza
existencialmente ao se lançar sobre o espaço e suas possibilidades
de existenciais que vão além de um espaço previamente
determinado.
A autocompreensão da existência será a base sobre a qual
se assenta a compreensão heideggeriana do espaço, no qual o ser-
aí mergulha em sua vida fática e estabelece sentido para a
espacialidade. Como resultado seu registro e compreensão, devem-
se ao que lhe é mais próximo em seu cotidiano, seu espaço de ação,
bem como as regiões que se estendem para além delas
(SARAMAGO, 2008).
Em decorrência do que se tem discutido, parece-me claro que
a aplicação da fenomenologia nos estudos constitutivos da
Geografia, permite repensar o espaço - uma de suas categorias - não
apenas como algo que pode ser determinado por meio de análises
ônticas, mas como constitutivo da essência do ser-aí.
A descrição fenomenológica do espaço mostra a existência
de uma categoria conceitual sobre o ser dos entes e a forma como
se dão no espaço, através de análises ontológicas; afinal, é
construído atrelado à existência do ser-aí. Como resultado, irá
adquirir distintas especificidades segundo a temporalidade e as
relações mantidas que ultrapassam a mera espacialidade territorial,
pondo à mostra suas relações, vínculos afetivos, domínios, técnicas
e imagens construídas a partir de suas experiências.

2.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio dos breves apontamentos anteriores, verifica-se que


a espacialidade denota o espaço e a forma como o ser-aí se
experimenta de maneira existencial-fenomenológica. Heidegger nos
mostra claramente que o espaço medido e mensurável implica em
sua compreensão ôntica, físico/metafísica trazida pelas ciências
humanas; acabam obscurecendo sua compreensão.
Em contrapartida a isso, a obra filosófica de Heidegger torna
possível pensar uma experiência fenomenológico-existencial do
espaço (diferentemente do modelo de espaço fisicamente
Trabalhos completos 63

constituído, superando, portanto, a compreensão ôntica ali


comumente reproduzida). Por meio da fenomenologia torna possível
ampliar o entendimento do espaço para além das compreensões de
espaço físico (locativo), propriedade, de uso e de produção que é
comum entre as ciências humanas as quais o filósofo nos permite
criticar.
Essas breves considerações nos dão indícios de que
Heidegger construiu uma obra densa, capaz de corroborar para que
as ciências humanas tomem novos rumos, inclusive a Geografia, ao
tratar do espaço – uma de suas principais categorias de interesse.
Por isso, é fundamental a ampliação de estudos como o que aqui
proponho, ainda que de forma extremamente sucinta e, que se
constitui em objeto de interesse em minha dissertação de mestrado
que se encontra em construção.

REFERÊNCIAS

ARISAKA, Yoko. On Heidegger's Theory of Space: A Critique of


Dreyfus. Inquiry 38:4. December 1995. p. 455-467

BRASIL, Luciano de Faria. A espacialidade do Dasein: Um Estudo


sobre o § 24 de Ser e Tempo. [Dissertação Mestrado] Porto Alegre:
PUC-RS, 2005.

BOLLNOW, Otto Friedrich. O homem e o espaço. Trad. Aloísio


Leono Schmid. Curitiba: UFPR, 2008.

DUARTE, Matusalém de Brito; MATIAS, Vandeir Robson da Silva.


Reflexões sobre o espaço geográfico a partir da fenomenologia.
Caminhos de Geografia 17 (16), p. 190-196, out/2005.

ELDEN, Stuart. The Place of Geometry: Heidegger’s


mathematical excursus on Aristotle. HeyJ XLII, 2005, p.311-328.

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Trad. Marcia Sá


Cavalcante Schuback et al. Petrópolis: Vozes, 2001.

________. Ser e tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback.


Petrópolis: Vozes, 2013.
64 A Ética em prática no ambiente escolar

KAHLMEYER-MERTENS, Roberto S. Como Heidegger interpreta o


começo da metafísica em Ser e Tempo? In: Ítaca (UFRJ), v. 9, 2008,
p. 174-181.

NUNES, Benedito. Heidegger & Ser e tempo. 3 ed. Rio de Janeiro:


Zahar, 2010.

SARAMAGO, Ligia. A topologia do ser: lugar, espaço e linguagem


no pensamento de Martin Heidegger. Rio de Janeiro: PUC-RJ; São
Paulo: Loyola, 2008.

________. Sobre a arte e o espaço, de Martin Heidegger. Rev.


Arte filosofia, Ouro Preto, n.5, p. 61-72, jul. 2008.

THOIBISANA, Akoijam. Heidegger on the Notion of Dasein as


Habited Body. Indo-Pacific Journal of Phenomenology, Volume 8,
Edition 2 September 2008, p.1-5.
Trabalhos completos 65

= III =

A "GUERRA" DE MAQUIAVEL:
O EXAME DE UM CONCEITO

Douglas Antônio Fedel Zorzo*


José Luiz Ames**

RESUMO:
A teoria política de Nicolau Maquiavel é atravessada, em toda a sua
extensão, por uma preocupação constante sobre a guerra. Os
conflitos armados aparecem como uma realidade desagradável, mas
sempre possível para as relações internacionais. A argumentação
maquiaveliana nos situa diante de uma característica inextirpável da
política. A guerra é uma perspectiva que não pode ser afastada do
horizonte governamental: a organização militar e a possibilidade para
confrontos armados ocupam um espaço crucial na reflexão de nosso
autor. Nesse sentido, a partir da dimensão que os problemas sobre a
guerra alcançam na teoria política do Secretário florentino, nosso
artigo possui dois propósitos centrais. Em primeiro lugar, realizar um
breve mapeamento da recorrência textual do conceito "guerra" nas
principais obras de Maquiavel. Isto é, nosso propósito é o de
ressaltar que a alta incidência dessa noção pode ser um atestado
para a posição central que a questão bélica ocupa no interior dos
problemas de Estado. Em segundo lugar, a partir do cotejamento
realizado previamente, buscamos apresentar uma definição para o
conceito de "guerra".

Palavras-chave: Maquiavel; Teoria militar; Guerra e política;


Filosofia da guerra.

3.1 INTRODUÇÃO

A teoria política de Nicolau Maquiavel está imbricada de


maneira indissociável à sua teoria militar. Guerra e política fundem-
se em um laço inerente no interior do pensamento do autor

* UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná;


douglasfedel@hotmail.com
**
Professor da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
66 A Ética em prática no ambiente escolar

renascentista que é um marco para a Filosofia Política Moderna e


Contemporânea. Os conflitos armados aparecem como uma
realidade desagradável para as relações internacionais. Conforme
sintetiza Felix Gilbert; para o Secretário florentino a guerra "é a
atividade mais importante da vida política". Em obras que sagraram o
nome de nosso autor nas páginas da história, como O Príncipe e os
Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, "não encontramos
nada sobre a conveniência da paz", mas a guerra "aparece como
uma inevitável, grandiosa e aterradora força"3. Com efeito, reforça o
intérprete, todo o pensamento de Maquiavel "gravita inevitavelmente
em torno da indagação da função do poder militar na vida política" 4.
Nesse sentido, considerando a importância e a dimensão que
os problemas acerca da guerra alcançam na teoria política
maquiaveliana, nosso artigo possui dois propósitos centrais. Em
primeiro lugar, realizaremos um breve mapeamento da recorrência
textual do conceito "guerra" nas principais obras de Maquiavel. Isto é,
tentaremos ressaltar que a alta incidência dessa noção também pode
ser um atestado para a centralidade que a questão bélica ocupa no
interior dos problemas de Estado. Em segundo lugar, a partir do
cotejamento realizado previamente, buscaremos apresentar uma
estruturação e uma interpretação sobre aquilo que Maquiavel deixa
entrever por "guerra". Aqui, nossa preocupação central estará em
articular esse termo com outros conceitos relevantes para a
compreensão do pensamento de nosso autor.

3.2 A INCIDÊNCIA E A RECORRÊNCIA TEXTUAL DA "GUERRA"

Inicialmente, é interessante notarmos a incidência textual da


terminologia que aqui buscamos analisar. O substantivo feminino
"guerra [guerra]" aparece nas principais obras de Maquiavel 5, com
exceção dos escritos a cargo da função de Segundo Chanceler da
República de Florença e das correspondências – pessoais, ou
também a serviço –, em ao menos 728 ocasiões. Em sua forma no
plural, as "guerras [guerre]" são encontradas, por sua vez, em, no
mínimo, 123 oportunidades.

3 GILBERT, 1986, p. 25, tradução nossa.


4 GILBERT, 1977, p. 254, tradução nossa.
5 O vocábulo é analisado nas seguintes obras: Ai Palleschi, L'Asino, Capitoli, Clizia, I

Decennali, Dell'arte della guerra, Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, Discorso
o dialogo intorno alla nostra lingua, Istorie fiorentine, Mandragola, Novella di Belfagor
arcidiavolo, Il Principe e La vita di Castruccio Castracani da Lucca.
Trabalhos completos 67

Para estabelecermos um parâmetro, convém observar que,


dentro do campo terminológico utilizado por Maquiavel, a
habitualidade desse vocábulo é realmente expressiva.
Alguns conceitos chaves para a compreensão do pensamento
maquiaveliano, como, por exemplo, a clássica díade de "virtù" e
"Fortuna [fortuna]" podem ser identificadas em, respectivamente, 433
e 414 momentos distintos. Aliás, a reincidência da "guerra" fica atrás
tão somente de outras entradas muito específicas no léxico
empregado pelo Secretário florentino. É o caso, por exemplo, do
substantivo feminino "cidade [città]", presente 1.073 vezes. Ou o
substantivo masculino no plural "homens [uomini]", com 910
ocorrências. Ou, ainda, o "Estado/estado [stato]", tanto em sua forma
de substantivo masculino, preanunciando embrionariamente o
Estado maiúsculo moderno, quanto no particípio passado do verbo
"ser [essere]", corriqueiramente empregado na conjugação verbal da
gramática italiana6, recorrente em 851 passagens.
Convém notar que, ainda nessa espécie de ranking
conceitual, situam-se outros termos que orbitam ao redor do eixo
temático da "guerra". É caso do substantivo masculino singular
"exército [esercito]", com 689 ocorrências; da sua forma plural,
"exércitos [eserciti]", presente em 241 oportunidades; e o verbete
genérico "armas/exército/exércitos [armi]", recorrente 414 vezes.
Entretanto, qual seria a importância desses números para a
compreensão do pensamento de Maquiavel? Ora, verificar a intensa
reincidência dessa terminologia pode nos fornecer uma medida,
razoavelmente concreta ou confiável para estabelecermos a
pertinência dessa temática no corpus teórico do Secretário florentino.
Para um autor cravado na História, como um pensador
substancialmente político, a insistência sobre a guerra evidenciada
através da comparação com outros conceitos fundamentais, não
parece ter uma posição marginal e tão somente secundária. Na
realidade, a temática, como exemplificado por sua expressão
numérica, cumpre uma função singular na dilatada teoria política
maquiaveliana.
A partir disso, como Maquiavel compreende a guerra e as
atividades militares? Qual é o papel desempenhado pelos confrontos

6 A forma do particípio passado do verbo "essere" é empregue na formação de


alguns tempos verbais para a primeira, segunda e terceira pessoa do singular na
gramática italiana. É o caso, no Indicativo, do Passato prossimo [io sono stato], do
Trapassato prossimo [io ero stato], do Trapassato remoto [io fui stato] e do Futuro
anteriore [io sarò stato]; na Condizionale, do Passato [io sarei stato]; e, no
Congiuntivo do Passato [che io sia stato] e do Trapassato [che io fossi stato].
68 A Ética em prática no ambiente escolar

armados na teoria política maquiaveliana? Isto é, qual é a definição


que o Secretário florentino atribui para a guerra e qual a sua relação
com o elemento que sagrou o nome de Maquiavel nos clássicos da
teoria política?

3.3 UMA DEFINIÇÃO E O OBJETIVO DA GUERRA

Afinal, que coisa é a guerra?


O significado de "guerra", em si, não sofreu alterações
consideráveis no decurso dos séculos. O que não nos autoriza a
dizer, é claro, que se trata de um conceito imutável. Porém, a
essência de sua significação permanece razoavelmente a mesma.
Podemos definir a guerra da seguinte maneira: a guerra é o
conflito, direto ou indireto, entre dois ou mais grupos distintos,
organizados em Estado ou não, que buscam resolver dissidências
originadas por diversas motivações – econômicas, étnicas, religiosas,
ideológicas, geopolíticas – através do exercício da violência por meio
do uso de instrumentos armamentistas e/ou psicológicos. Em outras
palavras, a guerra é o confronto entre grupos dessemelhantes,
ordenados militar ou paramilitarmente, por intermédio da qual se
busca ou a imposição do elemento motivacional que subjaz e impele
à agressão ou a total aniquilação do adversário.
Certamente a conceituação, aqui esboçada, é generalista,
mas nosso intuito é o de realizar uma definição adequada ao
fenômeno bélico de maneira satisfatoriamente universal: fenômeno
que finca raízes na História da Humanidade, revelando-se como uma
característica permanente no desenvolvimento das civilizações.
Embora exista um interesse crescente no campo jurídico e no campo
das relações internacionais para a compreensão de episódios
sempre mais particulares dos conflitos armados – sobretudo como
consequência do despreparo do Direito e da Diplomacia nas guerras
do Século XX –, o pano de fundo para uma definição de guerra
permanece.
Talvez a mudança mais notável na acepção "guerra" esteja
na diversidade das adjetivações que acompanham o desenrolar da
história dos conflitos, acrescentando ou subtraindo detalhes
peculiares ao substantivo principal. Como demonstrativo dessa
singela maleabilidade temos, por exemplo, a guerra tribal, a guerra
civil, a guerra internacional, a guerra inter-regional, a guerra regional,
a guerra preventiva ou preservativa, a guerra ofensiva, a guerra
crônica, a guerra relâmpago, a guerra de guerrilha, a guerra fria, a
Trabalhos completos 69

guerra revolucionária, a guerra santa, a guerra total (e a correlata,


guerra absoluta), a guerra limitada, etc.
Ora, não é surpreendente que o pensamento militar de
Maquiavel mantenha inalterada a espinha dorsal dessa noção. Mas,
enfim, como podemos entender a guerra e a sua organização na
reflexão maquiaveliana?
Maquiavel possui duas referências centrais para a guerra: [a]
a guerra civil e [b] a guerra entre potências.
[a] As guerras civis são as hostilidades conduzidas por
indivíduos de um mesmo Estado. São os episódios de conflito
armado em que os adversários são, ao mesmo tempo, semelhantes
e dessemelhantes: semelhantes enquanto súditos ou cidadãos de
um mesmo domínio político, mas dessemelhantes quanto aos
interesses que os impelem ao campo de batalha civil.
Para Maquiavel, as guerras intestinas [guerre intestine]
possuem uma feição altamente corrosiva para o tecido social e
político. Certamente, o Secretário florentino tem em mente os
eventos que antecederam a queda da República Romana e que
também atravessaram parte da história de Florença. Em cada caso,
a refrega entre os próprios romanos e os próprios florentinos esteve
na base do esfacelamento da coesão interna e no enfraquecimento
das instituições públicas.
No exemplo romano, a guerra civil entre grandes e povo,
diferente dos tumultos e das dissensões que haviam gerado a
liberdade republicana e estavam no centro do seu poderio militar,
arrastaram a república em direção ao Império7. Na ocasião, o conflito
suscitado entre a plebe e o Senado, em decorrência do reavivamento
da Lei Agrária8, abriu o precedente para a instituição da tirania de
César e para a morte das instituições republicanas.
Em Florença, as guerras civis representam um entrave ainda
mais marcante para o desenvolvimento político da cidade. Conforme

7 Cf. sobretudo Discursos, I, 4.


8 Tal Lei despertou "tanto ódio entre a plebe e o senado que se chegou ao conflito
armado e ao derramamento de sangue, fugindo a qualquer modo e costume civil". A
guerra civil se instaura inequivocamente quando a plebe e o senado estabelecem
"cabeças" para assegurarem a defesa de cada "facção": a plebe, recorrendo ao
consulado de Mário e a nobreza ao consulado de Sila. Depois de muito
derramamento de sangue, argumenta o Secretário florentino, "a vitória ficou com a
nobreza". Porém, os mesmos humores foram ressuscitados no tempo de César e
Pompeu, "porque, como César assumisse o comando do partido de Mário, e
Pompeu, o partido de Sila, quando ambos entraram em luta a vitória coube a César,
e ele foi o primeiro tirano de Roma; de tal modo que nunca mais a cidade foi livre"
(Discursos, I, 37, p. 115).
70 A Ética em prática no ambiente escolar

relata nas primeiras páginas de a História de Florença, de modo


diverso ao que acontecia na República de Roma, onde a desunião
entre nobres e plebe originou bons efeitos, na pátria de Maquiavel
"primeiro os nobres se dividiram entre si, e depois houve a divisão
entre os nobres e o povo, e, por último, entre o povo e a plebe".
Catastroficamente, "muitas vezes ocorreu que uma dessas partes,
tendo vencido, dividiu-se em duas, e de tais divisões tiveram origens
tantas mortes, tantos exílios, tantas destruições de famílias, como
nunca ocorreu em nenhuma cidade de que se tenha memória"9.
Em ambos os casos, a guerra civil revela-se como uma
doença para o organismo político. Embora toda cidade, conforme
argumenta o Secretário florentino, seja naturalmente cindida entre
grandes e povo, isso não significa que o conflito armado seja
inevitável. De fato, é uma competência política dar saídas
institucionais para essa tensão que é uma característica da dinâmica
estatal10.
[b] Entretanto, embora a importância das guerras civis não
seja pequena para a reflexão maquiaveliana, é a segunda
modalidade de guerra que ocupa maior espaço em sua
argumentação: as guerras externas, os empreendimentos militares
travados contra potências que ameaçam os interesses "nacionais".
Sobre isso, em A Arte da Guerra, Maquiavel pondera que "o
fim [il fine] de quem quer fazer guerra é poder combater com o

9 História de Florença, Proêmio, p.8 Aliás, Maquiavel censurava o trabalho de


Lionardo d'Arezzo e de Poggio justamente por ignorarem os conflitos internos que
engessaram e corroeram a civilidade florentina. De acordo com o Secretário
florentino, "percebi que foram muitíssimos diligentes na descrição das guerras
travadas pelos florentinos contra os príncipes e os povos estrangeiros, mas que, no
que se refere às discórdias civis e às inimizades internas, bem como aos seus
efeitos, eles se calaram de todo uma parte e descreveram a outra com tanta
brevidade que nela os leitores não podem encontrar utilidade nem prazer" (História
de Florença, Proêmio, p. 7).
10 Sobre o conflito dos umori, cf., por exemplo, GEUNA, Marco. Machiavelli ed il

ruolo dei conflitti nella vita politica. In: ARIENZO, Alessandro; CARUSO, Dario (org.).
Conflitti. Napoli: Libreria Dante & Descartes, 2005. p. 19-57. Ainda do mesmo autor,
cf. o artigo "Ruolo dei conflitti e ruolo della religione nella riflessione di Machiavelli
sulla storia di Roma". In: CAPORALI, R; MORFINO, V; VISENTIN, S. (org.).
Machiavelli:tempo e conflitti. Milano: Mimesis, 2012, p. 107-140. É singular o trabalho
de Marie Gaille-Nikodimov em Conflit civil et liberté: la politique machiavélienne entre
histoire et médecine. Paris: Honoré Champion, 2004. No Brasil, cf. a discussão com
ADVERSE, Helton. Maquiavel, a república e o desejo de liberdade.
Trans/Form/Ação, São Paulo, v. 30, nº 2, p. 33-52, novembro de 2007. E AMES,
José Luiz. Liberdade e conflito: o confronto dos desejos como fundamento da ideia
de liberdade em Maquiavel. Kriterion. Belo Horizonte, nº119, p. 179-196, junho de
2009.
Trabalhos completos 71

inimigo em campo aberto e vencer uma batalha". Afinal, "é para isso
que cumpre ordenar um exército"11. Em A História de Florença, a
teorização é esclarecida sob o seguinte argumento: "o objetivo [il
fine] de quem faz guerra sempre foi – e é razoável que assim seja –
enriquecer-se e empobrecer o inimigo". Na realidade, não existe
outra razão para a "busca da vitória" e para o "desejo de conquistas"
senão "fortalecer-se e enfraquecer o adversário". Por isso, aquele
que se "empobrecer com a vitória ou se enfraquecer com a conquista
só poderá ter ido além ou ficado aquém do fim [quel termine] pelo
qual as guerras são feitas"12. Nos Discursos, ao salientar o caráter
inevitável dos movimentos militares, arrazoava que "são duas as
razões [cagione] pelas quais se trava guerra contra uma república:
uma é querer assenhorear-se dela; outra é ter medo de ser
dominado por ela"13.
Portanto, o objetivo de um Estado ao organizar-se
militarmente e ao empreender-se em guerras é aquele de impor a
vitória sobre qualquer inimigo nos campos de batalha,
enfraquecendo-os em termos bélicos, econômicos e políticos. A
motivação que subjaz o ato extremo da violência armada, ao
fracassarem as medidas diplomáticas, é ambivalente: por um lado,
pode ser ofensivo, para conquistar ou reconquistar um território ou a
influência sobre um domínio; por outro, pode ser defensivo, para
precaver-se e adiantar-se contra uma potencial ameaça14.

11 A Arte da Guerra, I, p. 21.


12 História de Florença, VI, 1, p. 351. Nos Discursos, Maquiavel, ao pensar em
termos sobretudo econômicos – isto é, o financiamento das guerras e sua relação
com o erário público –, afirmava que "a intenção de quem trava guerra por escolha,
ou seja, por ambição, é conquistar e conservar o que foi conquistado; e, para tanto
procede de tal modo que enriqueça, e não empobreça, sua terra, sua pátria. Logo,
tanto para conquistar quanto para conservar, é necessário não gastar; aliás, fazer
tudo para utilidade do tesouro público" (Discursos, II, 6, p. 203).
13 Discursos, I, 6, p. 31. Nas Parole da dirle sopra la provisione del danaio, facto un

poco di proemio et di scusa, Maquiavel afirmava que "toda cidade, todo Estado, deve
reputar como inimigos todos aqueles que possam tratar de ocupá-lo e aqueles
contra os quais ele não pode se defender. Jamais existiram nem um Senhor nem
uma República sensatos que quiserem manter seu Estado a mercê dos outros, ou
que mantendo-o acreditassem havê-lo seguro" (MAQUIAVEL, 1997, p. 12).
14 Em seu controverso posicionamento aclerca da artilharia, Maquiavel apresenta

disjuntivamente essa consideração: "[...] digo que a guerra é feita para a defesa ou
para o ataque, e é preciso antes examinar em qual desses dois tipos de guerra ela
[a artilharia] é mais útil ou mais danosa" (Discursos, II, 17, p. 237).
72 A Ética em prática no ambiente escolar

3.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim, en passant, identificamos na obra do Secretário


florentino uma adjetivação peculiar e uma compreensão própria para
o fenômeno da guerra. Com efeito, Maquiavel apresenta uma
teorização particular acerca da maneira como os Estados devem se
portar para a efetivação de suas máquinas bélicas.
No pensamento maquiaveliano, a guerra ganha contornos
significativos: [a] a guerra deve ser apreendida como uma realidade
necessária e inelutável na dinâmica política internacional: os
interesses de um Estado, cedo ou tarde, entrarão em choque com os
interesses alheios. Um mundo pacífico, fundado em uma diplomacia
apaziguadora, plenamente eficiente pode até ser uma perspectiva
atraente e inebriante, mas, no entanto, isso não condiz com a
realidade histórica da política15. [b] se a guerra é uma sempiterna
possibilidade, ela deve ser monopólio do Estado. Ou seja, tão
somente às ordenações políticas deve caber a responsabilidade pela
regulação, ordenação e treinamento das forças armadas16. [c] a
guerra, portanto, compreendida em seu aspecto de infindável
iminência, transforma a paz em uma pressuposição para momentos
de conflitos: a paz não significa a ausência da guerra, mas a
preparação para ela. Ou melhor, a paz não pode ser assimilada a um
estado pleno e permanente, mas tão somente como uma condição,
um prelúdio para a guerra17. [d] enfim, a guerra que torna-se justa

15 Conforme afirma o Secretário florentino nas Parole (1997, p. 14), se "entre os


homens privados são as leis, os escritos e os pactos o que fazem observar a fé"
dada, entre os "senhores somente as armas a mantém". Com efeito, a guerra se
configura como um fato inelutável no pensamento maquiaveliano. Se não a guerra
efetiva, ao menos a guerra iminente: no campo internacional existe sempre uma
ininterrupta tensão entre os atores políticos. Os interesses estatais podem ser
resguardados apenas quando escorados em um substancial destacamento militar.
Em síntese, a guerra aparece como necessária quando a consideramos em seu
aspecto potencial: existe um risco permanente às hostilidades militares. Acerca da
inevitabilidade da guerra, cf. O Príncipe, III, p. 15. Sobre a diferença política entre
atores armados e desarmados, cf., na mesma obra, o capítulo XIV, p. 69-70.
16 A guerra, quando compreendida como uma necessidade intrínseca à ação

política, deve transformar-se em monopólio do Estado. Ou seja, tão somente às


ordenações políticas deve caber a responsabilidade pela regulação, ordenação e
treinamento das forças armadas. Conforme Maquiavel expõe exemplarmente no
conjunto da A Arte da Guerra.
17 No capítulo XIV de O Príncipe, por exemplo, Maquiavel ressaltava a importância

de não desdenhar-se o exercício militar durante os períodos de calmaria


internacional. Um príncipe deve, afirma em um tom insuflado, "não ter outro objetivo,
nem pensamento, nem tomar como arte sua coisa alguma que não seja a guerra,
sua ordem e disciplina, porque esta é a única arte que compete a quem comanda" 17.
Trabalhos completos 73

quando é necessária e na qual todos os estratagemas são


considerados válidos para a manutenção da liberdade do Estado18.

REFERÊNCIAS

GILBERT, Felix. Machiavelli e il suo tempo. Traduzione di Alda de


Caprariis e Gustavo Gozzi. Bologna: Mulino, 1977.

______. Machiavelli: The Renaissance of the Art of War. In: PARET,


P. Makers of Modern Strategy. 2ª ed. Princeton: Princeton Universty
Press, 1986.

MACHIAVELLI, Niccolò. Opere. A cura di Corrado Vivanti. Torino:


Einaudi-Gallimard, 1997, 3 volumes.

______. Tutte le Opere. A cura di Mario Martelli, Firenze: Sansoni


Editore, 1971.

MAQUIAVEL, Nicolau. A Arte da Guerra. Tradução de MF. São


Paulo: Martins Fontes, 2006.

______. História de Florença. Tradução de MF. São Paulo: Martins


Fontes, 2007.

______. O Príncipe. 2ª ed. Tradução de Maria Júlia Goldwasser.


São Paulo: Martins Fontes, 1998.

______. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio.


Tradução de MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

Nesse sentido, "um príncipe não deve jamais afastar o pensamento do exercício da
guerra e, durante a paz, deve praticá-la ainda mais do que durante a guerra".
Conforme ratifica nos Discursos (I, cap. 19-20), uma cidade bem ordenada, ao
contrário, é justamente aquela "que em tempos de paz não negligencia as
ordenações da guerra".
18 Sobre a relação entre a "guerra justa" e a "necessidade", cf. O Príncipe, XXVI, p.

124; Discursos, III, 12, p. 364; História de Florença, V, 8, p. 295.


74 A Ética em prática no ambiente escolar

= IV =

A PEDAGÓGICA DA LIBERTAÇÃO:
CONSTRUINDO A LIBERTAÇÃO PEDAGÓGICA A PARTIR DA
CULTURA POPULAR

Luis Fernando de Carvalho Sousa*


José Luiz Ames**

RESUMO:
O presente ensaio tem por intuito abordar a pedagógica de Enrique
Dussel e sua relação com a cultura popular. Optou-se por dissertar
sobre esse tema pelo fato de o modelo de educação que se tem no
Brasil (seja formal ou informal) ser devedor do modelo burguês,
sobretudo, pautado no Emílio de Rousseau. Sendo assim, visamos
apontar um modelo de educação comprometido com o povo e suas
demandas. Dividiremos a exposição em três momentos distintos.
Primeiramente, procuraremos definir a pedagógica da libertação de
Enrique Dussel e sua relação com a totalidade pedagógica. Nesse
primeiro momento, serão lançados os fundamentos do pensar
dusseliano e a crítica aos modelos hegemônicos. Em seguida,
pontuaremos a importância da exterioridade como método filosófico-
pedagógico em contraposição a modelos que resumem o outro
dentro da totalidade. Por fim, trataremos da cultura popular como o
outro da educação e princípio interpelador da totalidade, provocando
o diálogo com a alteridade e sinalizando o horizonte da libertação.

PALAVRAS-CHAVE: pedagógica; libertação; exterioridade; outro;


cultura popular.

4.1 INTRODUÇÃO

O presente ensaio tem por intuito abordar a pedagógica de


Enrique Dussel e sua relação com a cultura popular. Optou-se por
dissertar sobre esse tema pelo fato de o modelo de educação que se
tem no Brasil (seja formal ou informal) ser devedor do modelo
burguês, sobretudo, pautado no Emílio, de Rousseau. Sendo assim,

* UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná; luisffilo@hotmail.com


** Professor da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Trabalhos completos 75

visamos apontar um modelo de educação comprometido com o povo


e suas demandas.
Dividiremos a exposição em três momentos distintos.
Primeiramente, procuraremos definir a pedagógica da libertação de
Enrique Dussel e sua relação com a totalidade pedagógica. Nesse
primeiro momento, serão lançados os fundamentos do pensar
dusseliano e a crítica aos modelos hegemônicos. Em seguida,
pontuaremos a importância da exterioridade como método filosófico-
pedagógico em contraposição a modelos que resumem o outro
dentro da totalidade. Por fim, trataremos da cultura popular como o
outro da educação e princípio interpelador da totalidade, provocando
o diálogo com a alteridade e sinalizando o horizonte da libertação.

4.2 A PEDAGÓGICA DA LIBERTAÇÃO E SUA RELAÇÃO COM A


TOTALIDADE PEDAGÓGICA

A pedagógica na filosofia de Enrique Dussel caracteriza-se


pela relação face-a-face de transmissão de conhecimento que
envolve as relações: pai-filho, mestre-discípulo, professor-aluno e
assim por diante. Tal relação perpassa o que pode ser denominado
como horizonte do ensino e transmissão de saber (DUSSEL, 1977a).
Qual é o ponto de partida da pedagógica da libertação? Para
Dussel toda a proposta de libertação parte da crítica a algum modelo
de dominação. No caso da pedagógica, para se conhecer a proposta
pedagógica da libertação é necessário problematizar a relação
pedagógica da chamada totalidade19 – totalidade pedagógica – para
apontar a perspectiva libertária (DUSSEL, 1977b).
A questão que é recorrente nos escritos de Dussel e nos
chama especial atenção quando relacionada ao campo pedagógico é
a dimensão da totalidade pedagógica, em que se inserem as
relações sócio-políticas. O esforço do filósofo argentino é mostrar
que determinadas estruturas de poder e dominação são construídas
e justificadas a partir de discursos ancorados em pressupostos
(simbólicos, metafísicos, políticos, éticos) que legitimam seus papéis
hegemônicos e opressores em relação ao outro – que não tem sua
alteridade reconhecida, sendo reduzido ao horizonte de o mesmo.
Essa é uma das principais críticas do pensamento dusseliano: a
totalidade como padrão universal.

19 Para Dussel os modelos de dominação que reduzem o outro a condição de


mesmo são tidos como modelos de totalidade, uma vez que, não cedem espaço à
alteridade (DUSSEL, 1977b).
76 A Ética em prática no ambiente escolar

A supressão da alteridade, no que tange à pedagógica,


encontra no viés simbólico sua forma primitiva de opressão. As
figuras do pai-mãe-filho (do triângulo edípico freudiano) são
aplicadas por Dussel ao campo pedagógico, como exemplo de
opressão totalizadora, uma vez que essa é a fórmula que o “pai da
psicanálise” utiliza para entender a opressão presente, sobretudo, na
sociedade moderna. Dentro dessa dinâmica, a dominação cultural
pode ser expressa da seguinte maneira: o pai encenaria a figura do
Estado; a mãe, a cultura e o filho, fruto dessa relação. Tal prática
expressa a violência pedagógica, uma vez que “o pai como Estado
se opõe à mãe como cultura”, numa relação falocrática, gerando uma
prática de dominação e opressão, fazendo com que aquele que é
produto dessa relação experimente em seu ser a agonia do drama de
reconhecer-se como alguém distinto, uma vez que “o filho traz em
seu ser a bipolaridade agônica do pai-mãe, violência-cultura”
(DUSSEL, 1977b, p. 155).
Essa exemplificação, a partir do triângulo edípico, é utilizada
por nosso filósofo para ilustrar a dinâmica da transmissão do
conhecimento em sua pedagógica. O filho20, como resultado dessa
forma de transmissão do conhecimento, é o outro do casal “é o filho
dos pais de um povo” (DUSSEL, 1977a, p. 96) e, enquanto outro, é a
exterioridade cultural, ou seja, está à margem da totalidade,
passando a ser reconhecido como sujeito somente quando se integra
ao sistema de forma definitiva, isto é, quando absorvido pela
totalidade.
As figuras podem ser substituídas ou ter suas funções,
temporariamente, alteradas, mas o símbolo permanece o mesmo, ou
seja, a prática de dominação e supressão da alteridade é a forma
característica do modelo denominado hegemônico (totalidade
pedagógica); constituindo-se, assim, num dos grandes entraves para
se pensar uma prática libertadora que, realmente, esteja
comprometida com uma cultura que seja estranha à totalidade (como
a cultura popular, por exemplo) e que vise a emancipação do
educando de forma completa.
Há algum vestígio na história que expresse essa relação?
Pode-se afirmar positivamente a essa indagação. Quando se pensa

20 Filho na perspectiva de Enrique Dussel representa o fruto da relação dialética pai-


mãe no que tange a transmissão do conhecimento. No caso formação dos povos
latino-americanos o pai é representado pelo Estado; a mãe pela cultura e o filho
como fruto desse produto. Já no que tange ao ensino formal escolar o pai é
representado pelo professor, o aluno como o objeto do saber e o filho dessa relação
o saber produzido (DUSSEL, 1977a).
Trabalhos completos 77

o continente latino-americano, observa-se que, desde sua


colonização, houve uma prática de dominação que fez com que o
colonizado perdesse sua identidade por não ter sua própria cultura
preservada e sua identidade respeitada.

O latino-americano filho de Malinche (a índia que trai sua cultura) e


de Cortés (pai da conquista e das virtudes do Estado dependente,
porque Cortés não é o Rei), não quer ser nem índio, nem espanhol.
Também não quer descender deles. Nega-os. E não se afirma como
mestiço, mas como abstração. É um homem. Torna-se filho do nada
[...]. (DUSSEL, 1977b, p.155-156)

Tal posição reflete a redução do colonizado à categoria de o


mesmo do europeu, ou ainda, a negação da cultura popular ou do
saber de um povo e a afirmação do modelo imperial europeu, como
padrão universal. Essa é uma das maneiras que Dussel trata a
totalidade: sistemas hegemônicos dominadores que não levam em
conta a alteridade. Uma das críticas ao modelo pedagógico feita por
nosso filósofo é referente ao Emílio21 de Rousseau. Para Dussel o
modelo defendido pelo filósofo iluminista, foi tomado como
paradigma de educação, ou ainda, “o protótipo da educação
burguesa revolucionária” (DUSSEL, 1998, p. 411). Tal modelo, nada
mais representa do que a mentalidade burguesa e eurocêntrica de
educação que se impôs, sobretudo, em continentes como a América
Latina (e outros, sobretudo do Hemisfério Norte) em que os povos
foram tratados como “tábulas rasas”, depositários do saber, objetos
da educação, simplesmente receptores, sem que fossem levados em
conta sua alteridade e condição de outro, isto é, sua cultura, tradição
ou saber popular.
A partir do modelo do Emílio, as mais diferentes formas do
saber foram padronizadas, tendo o paradigma burguês europeu
como universal e reduzindo as demais culturas e modos de
transmissão do conhecimento a esse eixo (mesmo totalizado). O
resultado disso? Os Emílios (objetos do modelo de educação

21Em Emílio Rousseau estabelece um padrão de educação visando a superação do


que denomina “educação negativa”. Para ele a educação deveria prepara o ser
humano para viver em sociedade a partir de valores éticos (ROUSSEAU, 1995).
Para Dussel esse modelo foi utilizado em favor do ideal burguês e serviu de base
para a conquista e dominação das colônias europeias ao redor do mundo,
estabelecendo o paradigma burguês como universal. Nesse sentido critica o
paradigma do Emilio, apontando para a pedagógica da libertação (DUSSEL, 1977b;
1998).
78 A Ética em prática no ambiente escolar

burguesa) que tiveram suas culturas e saberes suprimidos e


aniquilados pelos padrões imperiais (DUSSEL, 1998).
É importante salientar que a dimensão pedagógica proposta
pela filosofia da libertação dusseliana não se restringe somente à
educação formal, mas insere-se num âmbito maior e mais amplo,
abarcando todas as dimensões de transmissão do conhecimento
humano que implicam numa construção de projeto político (DUSSEL,
1977a). Dentro dessa lógica de pedagógica descrita por Dussel,
somente há dois caminhos possíveis e antagônicos. O primeiro
relaciona-se com a proposta hegemônica; a favor da cultura imperial
de dominação dentro da totalidade dos sistemas sócio-políticos:
“entendemos por cultura imperial ou de centro aquela que domina na
ordem vigente [...] esta é a cultura com a qual se pretende medir todo
o grau cultural” (DUSSEL, 1977a, p. 98). E o segundo, comprometido
com as vítimas da totalidade, relaciona-se com os oprimidos que
almejam sua libertação.
Dussel opta pelo segundo modelo por ser um projeto
filosófico de uma libertação que se ancora numa premissa ética que
opta pela vida. Vida de quem? Das vítimas do sistema capitalista (ou
dos sistemas dominadores: imperiais, totalitários, absorsores de
minorias) que necessitam ter seus valores reconhecidos, sobretudo,
valores culturais e de conhecimento empírico no que tange ao
processo pedagógico. Por isso a pedagógica da libertação insere-se
num contexto de “contra-discurso”, pois se trata de uma maneira de
pensar e expressar as relações de conhecimento a partir da periferia
dos centros de poder, levantando-se contra os sistemas de exclusão
e mundialização de um saber que se pretende universal. Em suma é
um discurso ético. Numa ética que privilegia a vida. Trata-se “de uma
ética cotidiana, desde e em favor das imensas maiorias da
humanidade excluídas da globalização, na <<normalidade>>
histórica vigente presente” (DUSSEL, 1998, p. 15).
O movimento hegemônico, imperial ou totalidade pedagógica,
quando assumido como padrão universal, torna-se perigoso por seu
caráter totalizador. Isso pode ser observado quando “instituições
burocráticas educativas e de comunicação de massa” (DUSSEL,
1977b, p. 181) passam a pautar-se por esse padrão (imposto como
universal), não reconhecendo nada além dele como conhecimento
válido. As instituições pedagógicas que não se comprometem com a
libertação, tornam-se reprodutoras de uma ideologia perigosa que faz
com que os valores culturais e conhecimentos populares sejam
diminuídos e compreendidos à luz do que se estabelece como
padrão mundial (total, absoluto). Dussel faz a seguinte consideração
Trabalhos completos 79

sobre essa maneira pedagógica. Ela é perigosa por dois motivos:


“por ser uma cultura repressora enquanto tal e por significar uma
opressão da cultura nacional por parte de outra nação mais poderosa
(econômica, política e militarmente falando)” (DUSSEL, 1977b, p.
181). Portanto, a pedagogia para exercer, de fato, sua função
libertadora, necessita estar de acordo com os valores populares da
cultura da população local de onde se insere.

4.3 A EXTERIORIDADE COMO MÉTODO FILOSÓFICO-


PEDAGÓGICO

Para definirmos exterioridade no pensamento de Dussel,


precisamos pontuar, ainda que de forma sucinta, as premissas de
dois filósofos clássicos que ele critica para, então, construir sua
noção de exterioridade como método; trata-se de Hegel e Heidegger.
Um dos esforços de Enrique Dussel foi analisar a filosofia de
Hegel, sobretudo, no tocante à dialética. A conclusão que chegou foi
que o método proposto pelo filósofo europeu acaba por confundir o
método com o objeto. Nesse sentido, há a fundição entre meio e fim.
Pode-se observar isso de forma inequívoca em Fenomenologia do
Espírito (HEGEL, 1992) em que, inicialmente, o conhecimento é
apesentado como meio e subsequentemente como fim. O que se
depreende disso? Que Hegel não abre espaço para a exterioridade,
resumindo todo o processo dialético em o mesmo. Quando faz
considerações sobre a dialética hegeliana, Dussel pontua: “Hegel
mostra então dois níveis: no primeiro dão-se as oposições
(universais, abstratas, objeto-sujeito) e no segundo nível tais
oposições são superadas por uma compreensão abarcante, as
supera numa unidade” (DUSSEL, 1974, p. 67). Em síntese, Hegel
resume as contradições dentro da totalidade, não cedendo espaço
para o outro diferente do sistema.
Vejamos como Dussel trata a exterioridade em Heidegger.
Para nosso autor, apesar de Heidegger criticar o pensamento de
Hegel (DUSSEL, 1974), não resolve a questão da exterioridade. Seu
empreendimento consistiu em apenas recolocar a questão da
dialética, mas não se propôs a construir um pensamento que
contemplasse a alteridade do outro, ou ainda, a exterioridade como
tal. Para Dussel há uma totalização que se faz no ser. Heidegger
reconhece a existência do outro? Dussel responde de forma
condicional. Se o reconhece o faz “na perspectiva do ser” (DUSSEL,
1974, p. 159). Sendo assim, o outro apresentar-se-ia como ente que
só existe no ser (HEIDEGGER, 1979). Nesse sentido, volta-se à
80 A Ética em prática no ambiente escolar

questão da totalidade: ponto (crítico) de partida da filosofia da


libertação e da exterioridade como método filosófico.
Para Dussel, o outro se encontra na exterioridade do sistema.
Por isso deve-se pensar a pedagógica a partir dele, para que se
vislumbre seu horizonte de libertação. Ainda dentro da dinâmica da
totalidade o filósofo propõe a dialética para superação dos entraves.
Entretanto, como se parte da exterioridade seu método foi
denominado de analética (ou ana-dialética).
A analética é constituída a partir de um ponto que vem além
da dialética, ou seja, num ponto exterior à totalidade, uma vez que a
dialética surge desde a totalidade e encerra-se nela. A opção
analética ancora-se num ponto exterior, a partir do outro, visando à
superação da contradição do sistema.

O próprio do método analético é que é intrinsicamente ético e não


meramente teórico, como é o discurso ôntico das ciências ou
ontológico da dialética. É dizer a aceitação do outro como outro
significa já uma opção ética. (DUSSEL, 1974, p. 183)

A partir de sua realidade concreta negada, a vítima da


totalidade se afirma como sujeito de direitos e sujeito autônomo, que
necessita de seu reconhecimento como ser dentro de um sistema
que insiste em lhe negar. Sem essa afirmação, é impossível criticar o
sistema opressor.
O método analético é, essencialmente, crítico pelo fato de
fundar-se no reconhecimento da dignidade negada do outro a partir
de uma dimensão específica. No caso da pedagógica, consiste em
afirmar a condição de outro do sistema a partir de uma cultura, um
saber popular ou um conhecimento empírico.
Afirmar a condição de outro do sistema é reconhecer o ser
humano desde seu valor fundamental, a vida; entendendo-o a partir
de sua vulnerabilidade traumática. De maneira que e voltar para seu
estado empírico negativo é reconhecer sua dignidade negada,
constituindo na premissa do momento analético (DUSSEL, 1998).
A afirmação analética se dá de forma cabal quando a vítima
se reconhece como o outro “encoberto” do sistema, afirmando sua
identidade. A partir disso, reivindica seu direito de participar do
sistema de forma plena, gozando de seus direitos básicos, como vida
e dignidade que lhe foram negados e suprimidos dentro de um
modelo social excludente e totalizador que não reconhece sua
alteridade.
Trabalhos completos 81

A negação da alteridade revela a realidade do outro da


pedagógica em toda a acuidade de sua exterioridade; isto é, a partir
da analética, irrompendo como distinto, não incorporado ao sistema
ou, ainda, como extraordinário, “como o pobre, o oprimido, aquele
que, à beira do caminho, fora do sistema, mostra seu rosto sofredor”
(DUSSEL, 1977b, p. 49) e aponta para a necessidade de se
relacionar com aquele que chama desde a exterioridade, ou seja,
provoca desde suas necessidades à tomada de posição frente a sua
condição de expropriado pela totalidade. Nesse sentido, a
perspectiva da pedagógica de Dussel é pensar o outro a partir de sua
alteridade; justificando, dessa maneira, seu método filosófico-
pedagógico.

4.4 A CULTURA POPULAR: O OUTRO DA EDUCAÇÃO - A


EXTERIORIDADE DO SISTEMA

A definição de cultura constitui-se em uma tarefa demasiado


complexa. Definir cultura popular faz com que esse exercício se torne
mais complexo ainda. Entretanto, para melhor exposição e
exploração de nossa proposta, precisamos, minimamente, pontuar o
que doravante denominaremos como cultura popular. Para isso
continuaremos seguindo o referencial dusseliano. Nosso autor define
cultura popular da seguinte maneira: “a cultura popular é o fruto do
compromisso e da história do povo” (DUSSEL, 1997, p. 147), ou
ainda, a construção coletiva de valores simbólicos e saberes que
possibilitam a identificação de um povo.
Quando se pontua, por exemplo, que a pedagógica da
libertação necessita brotar da periferia do sistema, procura-se afirmar
que a crítica à totalidade é imprescindível para o processo de
libertação pedagógica. Assumindo o papel de outro da totalidade, o
sujeito da educação “implora como mestre, como pro-feta que mostra
o caminho futuro que chama à “vocação” de alteridade” (DUSSEL,
1977b, p. 190). Nesse sentido, faz com que seja visto como distinto
da totalidade e propiciador de um novo momento, quando ouvido e
tido como aquele que provoca de forma não totalizada; não
emilizada.
Pensar a cultura popular e as relações no seio do Estado, por
exemplo, (sejam através das relações pedagógicas formais
escolares; sejam através da pedagógica informal dissolvida em seus
aparatos) faz com que esta, quando vista como distinta da totalidade,
interpele o sistema e sinalize um projeto de libertação pedagógica,
quando ouvida e acolhida como distinta.
82 A Ética em prática no ambiente escolar

Qual é o papel atribuído à cultura popular por Dussel? “Em


primeiro lugar, a cultura popular é revolucionária” (DUSSEL, 1997, p.
221). Revolucionária pelo fato de procurar subverter, sobretudo, a
ordem totalizadora; em muitos casos, vinculada à ideologia burguesa
a serviço de interesses externos aos povos locais. Esses interesses
são descritos por Dussel ora como imperialistas (1977b; 1997), ora
como hegemônicos (1998), mas ambos expressam o mesmo sentido:
dominar os povos, suprimindo sua cultura e “educando” a população
por meio de sistemas opressores que não levam em conta a cultura
popular.
No que diz respeito à educação formal e suas faculdades,
como se portam, vistas sob o prisma da pedagogia da libertação? A
serviço da manutenção da ordem do sistema e submissão a
interesses estrangeiros não emancipadores (DUSSEL, 1977b). Por
isso a proposta de libertação necessita estar de acordo com as
necessidades do povo.
Quando se afirmar a condição de exterioridade do sistema
através da analética, reafirmar-se-á a consciência e o valor do
reconhecimento da cultura popular e do papel do povo como o outro
do sistema chama a totalidade à consciência da alteridade. Não
somente isso; quando o povo afirmar sua função social tornar-se-á
agente de transformação.

O “povo” se transforma, assim, em ator coletivo político, não em um


“sujeito histórico” substancial fetichizado. O povo aparece em
conjunturas políticas críticas, quando toma consciência explícita do
hegemón analógico de todas as reivindicações, de onde se definem
a estratégia e as táticas, transformando-se em um ator, construtor
da história de um novo fundamento. Tal como expressam os
movimentos sociais: “O poder se constrói de baixo”. (DUSSEL, 2007
p. 94)

Uma vez o poder deve ser “construído de baixo”,


pressupõem-se a educação a partir do outro. No caso exposto, a
cultura popular, que necessita ser colocada pré-condição para que se
possa pensar uma emancipação a partir do sujeito da educação, o
outro que a perspectiva totalizadora insiste em reduzir à categoria de
o mesmo.
Dussel afirma quer assumir a pedagogia da libertação tendo
como elemento interpelador a cultura popular; significa colocar-se a
serviço de um projeto “educativo-cultural” de compromisso com a
história e os interesses desse próprio povo (DUSSEL, 1997). Isso,
indubitavelmente, leva à adoção de papel crítico e proativo em
Trabalhos completos 83

relação à condição de exterioridade e de outro do sistema e,


consequentemente, da educação que nele se insere.
Quando se busca a operacionalização do projeto, Dussel
aponta que não se pode reproduzir a mesma lógica divisionista da
totalidade. Inicialmente é necessária a crítica do sistema e a
“negação da negação” (DUSSEL, 1977b, p. 145), mas não se pode
manter a lógica de oposição. O filósofo passa a pensar na
perspectiva da complementariedade em que discípulo e mestre
interagem mutuamente. O mestre assume o papel de “um sujeito pro-
criador, fecundante do processo desde sua exterioridade” (DUSSEL,
1977b, p. 246) e o discípulo, por sua vez, “con-verge assim para
seus condiscípulos, para exterioridade para re-conhecer seus
próprios valores (de filho, povo de geração distinta como juventude,
de cultura popular própria)” (Idem, p. 247).
A libertação pedagógica vai possibilitando a construção de
uma nova ordem em que as relações e os espaços de conhecimento
vão sendo pouco a pouco moldados e passam a servir aos
interesses do povo, dos interesses coletivos da maioria da
população. De maneira que, os próprios sistemas de ensino podem
ser remodelados para atender as reais necessidades da população e
não os interesses imperiais, hegemônicos, totalizadores. A escola,
universidade, tecnologia, meios de comunicação passam servir o
povo e não o manipular.
Um dos pilares apontados por Dussel é que a relação
pedagógica seja constantemente revista ou relocada, sendo assim, a
relação mestre-discípulo deixe de ser pai-filho (do triângulo edípico),
para se tornar irmão-irmão, ou seja, abre-se precedente para o
crescimento e construção mútua do saber e do rompimento com a
lógica de dominação. Uma vez que, o processo de libertação
pedagógica esteja ancorado na cultura popular representa a
libertação da identidade “comunitária do povo” (DUSSEL, 1997, p.
227).
Afirmar a cultura popular como o outro e exterioridade é partir
da premissa da alteridade como ponto de apoio para a libertação e a
superação dos entraves impostos pelo sistema totalizador. Dessa
maneira, a educação que visa reproduzir interesses hegemônicos e
comerciais, não comprometida com as demandas populares,
necessita ser problematizada para que a partir da pedagógica da
libertação possa-se construir um saber democrático ancorado nos
interesses populares.
84 A Ética em prática no ambiente escolar

4.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pedagógica interpela o modelo de educação centrada na


transmissão exclusiva do conhecimento e provoca pensar numa
perspectiva popular e comunitária para se vislumbrar um horizonte
de libertação. A contribuição de Enrique Dussel é abrangente uma
vez que não restringe a educação ao ambiente escolar, mas sinaliza
para a construção de um projeto em que as demandas da população
sejam contempladas e pensadas a partir de sua própria realidade.
Nesse sentido, faz-nos questionar o modelo de sociedade que
queremos. Será que temos apenas reproduzido um modelo de
sociedade com interesses que não nos são peculiares? Ou temos
trabalhado em favor de um projeto de libertação popular? Esses
questionamentos servem para nos situar e impulsionar nossas
futuras ações no que diz respeito à pedagógica.

REFERÊNCIAS

DUSSEL, Enrique. 20 teses de política. Buenos Aires. São Paulo:


CLACSO; Expressão Popular, 2007.

_______. Ética de la liberación: em la edad de la globalización y de


la exclusión. Madrid: Editorial Trota, 1998.

_______. Filosofia da libertação na América Latina. Loyola: São


Paulo, 1977 (a);

_______. Método para una filosofia da la liberación: superación


analéctica de la dialéctica hegeliana. Sígueme: Salamanca, 1974.

_______. Oito ensaios sobre cultura latino-americana e


libertação. São Paulo:

Paulinas, 1997.

_______. Para uma ética da libertação latino-americana III: erótica


e pedagógica. Loyola: São Paulo, 1977 (b);

HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes,


1992.
Trabalhos completos 85

HEIDEGGER, M. Que é isto – a filosofia? In: ______. Conferências


e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

ROUSSEAU, J.J. Emílio ou da Educação. Rio de Janeiro: Bertrand


Brasil, 1995.
86 A Ética em prática no ambiente escolar

=V=

A VERDADE À LUZ DO SER-AÍ

Luana Borges Giacomini*


Roberto S. Kahlmeyer-Mertens**

RESUMO:
A noção de verdade à luz do ser-aí (Dasein) é o tema do presente
trabalho. Procuraremos investigar como Heidegger compreende a
noção de verdade originária (verdade à luz do ser-aí). Neste modo de
compreender a verdade, Heidegger leva em conta a constituição
ontológico-existencial em face do ente que nós mesmos somos (ser-
aí). Com vistas à obra Ser e tempo (1927), podemos indicar que a
verdade, compreendida de modo originário, diz respeito àquilo que
instaura a relação do ser-aí com o mundo que o circunda, isto é, a
uma estrutura primária. Esta estrutura que dizemos como primária, é
prévia, porque possibilitante de toda e qualquer relação que o ser-aí
mantém com o mundo. Heidegger afirma a necessidade de
fundamentar a verdade no âmbito existencial pelo fato de toda a
tradição filosófica não ter tematizado, de modo satisfatório, a ligação
ontológica entre o caráter de poder-ser do ser-aí e a verdade.

PALAVRAS-CHAVE: Heidegger; ser-aí; verdade; ser e tempo.

6.1 INTRODUÇÃO

O tema da verdade, de maneira geral, mostra-se em sua


relevância não apenas porque parece perpassar todo o pensamento
heideggeriano, mas porque é um dos principais temas com os quais
a filosofia se ocupou. Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes e
mesmo toda a investigação científica são bons exemplos da
preocupação filosófica com o tema em questão.22 Não foram apenas

* UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná,


luanagiacomini@hotmail.com
** Professor da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
22 Podemos ver que é com o filósofo grego que a preocupação em responder sobre

qual é o lugar da verdade entra em jogo. É com Tomás de Aquino, por sua vez, que
a verdade como adequação do intelecto com a coisa passa a ser pensada. E
Descartes, como principal representante do período moderno, afirmou, nas
Trabalhos completos 87

esses os filósofos, contudo, que o pensaram, mas também


Heidegger tratou desses diversos modos de compreender e
conceber a verdade em seus escritos. Nesses modos, ele enfatiza a
necessidade de ultrapassar toda e qualquer relação presente naquilo
que pode ser dito como verdadeiro (como adequação, conformidade)
e perguntar sobre o que permite tal relação, perguntar, em última
instância, pela essência da verdade. Essa questão o leva à análise
do que ele chama de “alétheia” (verdade enquanto desvelamento).
Heidegger desloca a questão da verdade para a estrutura do ser-aí,
porque ser-aí é o âmbito do desvelamento, da verdade originária.
Isso significa que a verdade deslocada de sua tradicional residência
(proposição), habita o ser-aí (desvelamento).
Para melhor esclarecer esse deslocamento da verdade de
seu lugar proposicional à estrutura do ser-aí, devemos compreender
o sentido ontológico-existencial da afirmação que diz: “o ser-aí é e
está na verdade” (HEIDEGGER, 2012, p. 291). Esse sentido pode
ser compreendido a partir de quatro estruturas: 1) Abertura
(Erschlossenheit); 2) Estar-lançado (Geworfenheit); 3) Projeto
(Entwurf) e 4) Decadência (Verfallen).
É preciso compreender, de início, que, segundo Heidegger,
dizer que ser-aí é e está na verdade “não significa que onticamente o
ser-aí tenha sido introduzido sempre ou algumas vezes “em toda a
verdade”, mas indica que a abertura de seu ser mais próprio
pertence à sua constituição existencial” (HEIDEGGER, 2012, p. 292).
O ser-aí é e está na verdade, porque ele é o âmbito do
acontecimento da verdade enquanto tal: “O ser-aí está
originariamente na verdade, na medida em que é sua própria
abertura, abertura do mundo, descoberta das coisas e dos outros”
(DUBOIS, 2004, p. 47). Neste caso, Heidegger está pensando a
verdade no âmbito existencial, pois esta diz respeito àquilo que há de
constitutivo em ser-aí; e que, portanto, doa luz aos entes (âmbito
ôntico). Portanto, só há o ôntico, pois o ontológico está “doando luz”
para tal aparecimento/presentificação. A verdade, aqui, é pensada
como que deslocada de sua tradicional residência, que é a
proposição. Ela, no sentido heideggeriano, se situa no ser-aí. No
entanto, podemos dizer também que o ser-aí está situado na
verdade, pensando a abertura do ser-aí como o domínio do
manifesto, do “iluminado”.

Meditações metafísicas, que o verdadeiro é aquilo que pode ser concebido clara e
distintamente. A partir desses exemplos citados, aqui, cremos conseguir mostrar,
minimamente, a presença do tema da verdade na história.
88 A Ética em prática no ambiente escolar

5.2 OS SENTIDOS EM QUE SER-AÍ PODE SER TENDO SUA


RESIDÊNCIA NA VERDADE

Mesmo em vista do que foi dito acima, dizer que “o ser-aí é


está na verdade” não é auto-evidente, dependendo de uma análise
fenomenológico-existencial. Essa necessidade requer que
investiguemos o ser-aí. Tal tarefa se impõe, pois, este é o ente que
nós mesmos somos e que se mostra, ontologicamente, como o ente
ôntico-ontológico aberto, a partir do qual os demais entes aparecem.
Dizendo de modo claro: como aquele que é o mundo. Além disso, o
ser-aí se acha lançado no mundo, como aquele que sempre aparece
num “contexto”; ele se dá como um projeto, mas, ao mesmo tempo,
como um projetado e é decadente, porque não se reconhece como
um ente privilegiado na maioria das vezes. Uma explicação mais
pontual dessas ideias ainda compactas é o que teremos a partir de
agora.
1. “A abertura em geral pertence essencialmente à
constituição de ser do ser-aí” (HEIDEGGER, 2012, p. 292). Com
essa passagem, Heidegger nos diz que a abertura (erschlossenheit)
diz respeito à totalidade da estrutura ontológica do fenômeno do ser-
aí. A essa estrutura Heidegger também chama de cuidado (Sorge).
Esse sentido, a partir do conceito de angústia, nos é esclarecido por
Benedito Nunes (2012): “é o sentimento de angústia que efetua esse
abrir originário, expondo na unidade que liga entre si os existensivos
fundamentais – a existencialidade, facticidade e a queda -, o
fenômeno do cuidado, em que o ser do Dasein se descobre” (p. 107,
grifo do autor). Quando o fenômeno da angústia se abate sobre o
ser-aí, este se reconhece em sua situação ôntico-ontológica como
ente que é o mundo, na medida em que abre para o sentido, mas
também como um ente que está no mundo. Ainda que o tema em
questão não seja a angústia, a esclarecemos minimamente apenas
para tratarmos dos “existensivos (= existenciais) fundamentais”, dos
quais fala Nunes, em sua íntima relação com o cuidado.
Clarificaremos este último termo agora.
Heidegger diz, compreendendo ontologicamente o ser-aí
como cuidado, que: “O ser-aí é um ente que, sendo, está em jogo
seu próprio ser” (HEIDEGGER, 2012, p. 258). Ser-aí é cuidado, ou
seja, é um ente que por preceder a si mesmo a cada vez, pode lidar
com seu ser de algum modo. Anteceder significa estar sempre na
possibilidade ou ser a própria possibilidade de decisão, o ter que
decidir sobre si a cada vez. Nas palavras de Dubois (2014): “Ele é,
assim, a condição de possibilidade, a abertura necessária, o espaço
Trabalhos completos 89

de jogo para fenômenos como o querer, o desejar, a propensão, a


inclinação” (p. 43). A existência do ser-aí é sempre um antecipar-se a
si mesma ao já ser em um mundo.
É pelo fato de o ser-aí ser ultrapassagem (= antecipação)23 –
enquanto o ente que compreende os entes intramundanos
(innerweltliches Seiendes) nas diversas modalidades de ser – que
ele pode lidar com estes de algum modo e, inclusive, com seu
próprio ser. Em sua analítica existencial, Heidegger pensa o ser-aí
como uma existência “em aberto”; portanto, a essência deste ente
está no existir, no ter-de-ser, na existência. Essa existência em
aberto, contudo, não se dá ou não acontece sem mundo, sem um
espaço no qual o ser-aí mesmo aparece enquanto o ente que é (=
abertura). A necessidade de um espaço nos leva ou requer o
esclarecimento de uma outra estrutura. Heidegger a chama de
“lançado”. É isso que veremos no passo subsequente.
2. “O estar lançado pertence à constituição de ser do ser-aí,
como constitutivo de sua abertura. Nele desvela-se que o ser-aí já é
sempre meu e isso num mundo determinado e junto a um âmbito
determinado de entes intramundanos. A abertura é em sua essência
fática” (HEIDEGGER, 2012, p. 292), pois abrir mundo já significa se
“deparar” com uma facticidade específica. Apenas depois que
abertura se dá algo como um mundo fático tem lugar. O ser-aí,
originariamente, é possibilidade de ser, mas que, em abrindo mundo,
sempre conta com uma facticidade específica. Ela é determinante da
existência do ser-aí e, ao mesmo tempo, como é possibilitadora da
existência do ser-aí (a experiência que somos é ser-no-aí, este aí é a
facticidade), porque não há existência sem facticidade, existir é
sempre existir em facticidade. Isso significa que o ser-aí, ao mesmo
tempo em que é-junto dos demais entes e se situa numa facticidade,
não pode ser ao modo dos “entes-do-interior-do-mundo”, porque ele,
diferente destes, é responsável pelo seu próprio ser. Esta
responsabilidade é, em última instância, marcada por seu caráter de
ter que ser a cada vez. O mencionado “ter que ser” só se dá em um
projeto. É sobre isto que nos debruçaremos agora.
3. “O projeto pertence à constituição de ser do ser-aí: do ser
que se abre para o seu poder-ser” (HEIDEGGER, 2012, p. 292).
Tendo em vista essa passagem de nosso filósofo, já adiantamos, no

23Heidegger chama transcendência de ultrapassagem. Não temos condição aqui de


tratar desse tema de maneira justa, no entanto, em nosso mínimo entendimento,
ultrapassagem mostra a constituição mesma do ser-aí; isto quer dizer, somente o
ser-aí poder ir em direção ao ente, compreendê-lo em seu ser, retornar a si mesmo
se reconhecendo como puro espaço da compreensão de ser.
90 A Ética em prática no ambiente escolar

capítulo anterior, que o ser-aí é marcado pela ex-sistência. Por ex-


sistir o ente que sempre e a cada vez somos está adiante de si
mesmo como o puro espaço para o ente. Essa antecipação a si
mesmo é o que Heidegger chama de projeto. Por isso, afirma Ernildo
Stein (2011) que: “como existência – ek-sistere – o homem já está
sempre projetado para frente, sempre se antecipa: o ser-aí é um ‘ser-
adiante-de-si-mesmo’. Como facticidade, um estar-sempre-jogado, o
ser-aí é um ‘já-ser-no-mundo’” (p. 68). Ou seja, por ser-aí precisar
decidir sobre si a cada vez, ele sempre conta com as possibilidades
já inerentes ao seu projeto (porque ele aparece num projeto e é o
“projeto projetante” no qual todas as outras coisas podem aparecer24,
num contexto determinado e condicionante). Por ser-aí ser em
situação ele pode tomar-se, inautenticamente, como um ente entre
os outros, ou autenticamente como o ente que compreende ser, que
se dá junto aos entes. Nele, esses dois modos de ser sempre estão
em jogo.
A constituição ôntica-ontológica do ser-aí o coloca na
oscilação entre autenticidade e inautenticidade, ou seja, por ser e
estar-no-mundo, ele precisa conquistar, a cada vez, seu modo
autentico de ser, a consciência de seu ser projetivo, de seu poder ser
em detrimento de se tomar, simplesmente, com um ente entre outros,
como um ente determinado. Como, no entanto, é possível que, em
meio à propriedade, surja a impropriedade? Ou, inversamente, como,
em meio à impropriedade, é possível que surja a propriedade como
algo a ser conquistado? A tentativa de tornar isso compreensível é o
que se segue, partindo do que Heidegger chama de decadência
(Verfallen).
4. “A decadência pertence à constituição de ser do ser-aí”
(HEIDEGGER, 2012, p. 292). Isto significa que, no início (desde
abertura) e na maioria das vezes, o ser-aí se toma como um ente no
“mundo”, isto é, o ser-aí é originariamente decaído (afastado da sua
constituição fundamental de ser-aí como ser-no-mundo).
Lançado no mundo, o ser-aí se compreende a partir de seu
ser junto às coisas, tal tipo de compreensão diz respeito à
impessoalidade do ser-aí. Neste caso, o ser-aí não “possui a si-
mesmo” e se interpreta como mais um ente entre outros. Com isso,
não se dá conta da dimensão do existir enquanto um ser de

24“Mas a nulidade, o nada, é experimentado também junto ao projeto. Já sempre


sou condicionado a optar por uma possibilidade e a deixar de lado as outras. Meus
projetos se limitam para serem realizados. O meu estar jogado já sempre limitou
meus projetos” (STEIN, 2011, p.71).
Trabalhos completos 91

possibilidades (não percebe o quanto existir é decisivo). Tudo isso,


porém, só pode acontecer porque o ser-aí é e está na “não verdade”,
porque é decadente, de algum modo.
Ser decadente quer dizer lidar com a inautencidade, mesmo
que o ser-aí seja o aberto e esteja na abertura. O fechamento (=
impessoalidade) e encobrimento (= aparência) de que fala o próprio
Heidegger se devem à facticidade, estão implícitos nela. “Do ponto
de vista ontológico-existencial, o sentido completo da sentença: “o
ser-aí é e está na verdade” também inclui, de modo igualmente
originário, que “o ser-aí é e está na não-verdade” (HEIDEGGER,
2012, p. 292). Ou seja: na medida em que o ser-aí se abre ele
também se fecha, no sentido de ser tanto a abertura do âmbito de
aparecimento dos entes quanto no sentido de se tomar como um
ente determinado, ao modo dos entes intramundanos. É constitutivo
do ser do ser-aí, como já dissemos, oscilar entre a autenticidade
(verdade) e a inautenticidade (não-verdade). O modo verdadeiro
(autêntico) do ser-aí se dá na medida em que o ser-aí se depara
enquanto pura possibilidade de ser e percebe as coisas, como
possibilidades que se apresentam numa facticidade específica que
ocorre a síntese, isto é, a síntese diz respeito a uma única estrutura,
ser-aí como ser-no-mundo. Em outras palavras, “a expressão
composta ‘ser-no-mundo’, já na sua cunhagem mostra que pretende
referir-se a um fenômeno de unidade” (HEIDEGGER, 2012, p. 98).
Ser-no-mundo (ser-aí e mundo) não diz respeito a duas instâncias
que existem em conjunto, mas à constituição do ser-aí que se dá
como “o” mundo, isto é, um único fenômeno.
O ser do ser-aí é vir-a-ser enquanto, projetado na existência,
ocupa-se com as coisas e os demais seres-no-mundo. Tal ocupação,
no entanto, provoca um distanciamento dele consigo mesmo. Em seu
existir, o ser do ser-aí é oculto para si mesmo, justamente por não se
tratar de uma entidade transcendental, possuidora de propriedades
ou atributos subjetivos. Deve-se ressaltar que este ocultamento que
o ser-aí possui com relação ao seu ser é constitutiva e característica
de seu existir. No entanto, este ocultamento que ocorre no início e na
maioria das vezes em ser-aí, só é possível porque este ente “é”
aberto, inclusive, para este velamento. É pelo fato de ser-aí ser
compreensão de ser (abertura) que ele pode “lidar” com seu ser,
tanto no âmbito do velamento quanto no do desvelamento (alétheia).
Como já falamos, desvelamento é verdade. A interpretação
ontológico-existencial desse fenômeno nos possibilita compreender
que a verdade originária diz respeito à abertura do ser-aí que
possibilita a descoberta dos entes intramundanos, mas, também, que
92 A Ética em prática no ambiente escolar

ao ser-aí está aberta a possibilidade de ser e estar na não-verdade.


Mas não só isso: sabemos que desvelamento é abertura e enquanto
abertura é aquilo que permite que qualquer coisa seja entendida.
Justamente por este motivo, o sentido tradicional de verdade (que
tem a ver com adequação) da mesma forma que a não-verdade e
tudo que há, só pode ser compreendida quando se mostra que a
verdade enquanto concordância tem sua origem na abertura. Deve-
se ressaltar que “o próprio modo de ser da abertura propicia que,
primeiro, faça-se visível sua modificação derivada e que vigore a
explicação teórica da estrutura da verdade” (HEIDEGGER, 2012, p.
294). Pois, no início e na maioria das vezes, ser-aí não reconhece
aquilo que há de originário no fenômeno e isso se deve à
decadência, que implica em “esquecimento de ser25”.
O ser-aí oscila, constitutivamente, no velamento e no
desvelamento. Isto está intimamente ligado com a noção de alétheia
que é produto de uma negação, ou seja, alétheia é a negação do
encobrimento, por isso des-velamento. O ser-aí só pode ser
descobridor porque também está no encobrimento e isso tem a ver
com facticidade. Então, quando dissemos que ele deixa ver o ente no
seu estar descoberto, ou seja, o ente numa modalidade de
descoberta (já numa facticidade específica), dissemos, de certa
forma, que um velar do ente na sua totalidade também acontece. O
ente fica velado em sua totalidade, na medida em que a sua
descoberta só se dá numa perspectiva, isto é, sempre se descobre o
ente desde o seu aparecimento numa circunstância específica. É isto
que perseguiremos a partir de agora: a estrutura da facticidade
enquanto possibilidade do sentido circunstancial do ente, mas, ao
mesmo tempo, velamento do ente na sua totalidade – ser dos entes.

5.3 SER-AÍ E NÃO-VERDADE

Ser-no-mundo diz respeito à transcendência, pois “esse


manter-se no ser-no-mundo, esse apoiar-se nele pertence
necessariamente à transcendência porque ela é determinada
essencialmente pela essência de apoio” (HEIDEGGER, 2008, p.
366). É esse mundo que permite ao ser-aí jogar com sua existência,
na medida em que ele “se constrói” desde uma história no mundo. A

25 “Esquecimento do ser significa, então, o seguinte: o encobrir-se da proveniência


do ser que é distinto entre o-que-é e o fato-de-ser em favor do ser que ilumina o ente
enquanto ente e permanece inquestionado enquanto ser". (HEIDEGGER, 2007, p.
309).
Trabalhos completos 93

nulidade (o caráter de ser apenas possível do ser-aí) que ser-aí é


constitutivamente, no sentido de que não há nada prévio ao seu dar-
se num mundo, é a pura abertura; esta necessita do mundo para que
este ente possa lidar com seu ser. Há, nisso, uma inter-relação entre
ser e mundo; a existência só é possível desde um mundo, desde
uma facticidade que torna possível ao ser-aí jogar com seu ser, lidar
com seu ser; mas o que isso tem a ver com
encobrimento/velamento/não verdade?
O fato do ser-aí contar com facticidade implica que o ente na
sua totalidade não se torna manifesto. Nas palavras de Vattimo
(1996, p. 82): “Justamente, enquanto o deixar-ser o ente na particular
relação em que entra com o seu relacionar-se e assim o revela,
justamente então vela o ente na sua totalidade”. Isto quer dizer que,
uma vez lançado no mundo, o ser-aí já conta com um modo que é
“prévio” ao seu aparecimento do mundo e que, portanto, o posiciona
em circunstâncias que já estão determinadas. É por isso que há
necessidade quanto à hermenêutica da facticidade para que o
fenômeno da verdade originária se manifeste. Sendo o ser-aí um
ente que desde abertura é tanto “cadente” quando “decadente”, mas
porque conta com uma facticidade, o encobrimento existencial é um
modo do ser-aí ser no mundo. Nas palavras de Heidegger: “em sua
constituição de ser, o ser-aí é e está na “não verdade” porque é, em
sua essência, decadente” (HEIDEGGER, 2012, p. 293), porque, no
início e na maioria das vezes, não se reconhece como um ente
privilegiado. Portanto, o modo como o ser-aí lida com seu ser no
início e na maioria das vezes é encobridor daquilo que há de
constitutivo no mesmo; e este encobrimento se deve à facticidade.

REFERÊNCIAS

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução revisada e


apresentação de Marcia Sá Cavalcante Schuback; posfácio de
Emmanuel Carneiro Leão. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

______. Nietzsche II. Tradução: Marco Antônio Casa Nova. Rio de


Janeiro: Forense Universitária, 2007

______. Introdução à filosofia. Tradução de Marco Antonio


Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

DUBOIS, Christian. Heidegger: Introdução a uma leitura. Trad.


Bernardo Barros Coelho de Oliveira. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
94 A Ética em prática no ambiente escolar

NUNES, Benedito. Passagem para o poético: filosofia e poesia em


Heidegger. São Paulo: Loyola, 2012

STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger.


Porto Alegre: ediPUCRS, 2011.

VATTIMO, Gianni. Introdução a Heidegger. Trad. João Gama.


Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
Trabalhos completos 95

= VI =

A VIRTUDE NO SENTIDO EXTRAMORAL EM NIETZSCHE

Ana Claudia Barbosa Nunes*


Célia Machado Benvenho**

RESUMO:
Na obra “Além do bem e do mal”, Nietzsche critica os filósofos que
fundamentaram o saber e o mundo por meio de conceitos
metafísicos. Essa filosofia metafísica fundamenta a moral que, por
sua vez, restringe-se às atitudes corretas ou erradas. Nietzsche
indica que os preconceitos dos filósofos foram universalizar suas
vivências individuais, esquecendo que cada indivíduo possui uma
realidade diferente. Os homens condenam e julgam quem não segue
a moralidade imposta. Essa moralidade implica numa virtude
embasada no utilitarismo, em que a virtude deve alcançar e
beneficiar o maior número de pessoas. Vivemos segundo a moral
imposta pelos governantes, em que a massa deve obedecer e viver
de acordo com a moral, quem não obedecer a essa moral é punido e
julgado por todos. Criticando essas correntes filosóficas, Nietzsche
propõe uma virtude inovadora, virtude que não está atrelada à
moralidade, mas além do bem e do mal, ou melhor, uma virtude no
sentido extramoral.

PALAVRAS-CHAVE: Moral; Virtude; Nietzsche; Extramoral.

6.1 CRÍTICAS DE NIETZSCHE À FUNDAMENTAÇÃO DA MORAL

Nietzsche, em sua obra “Além do bem e mal”, apresenta uma


série de críticas aos filósofos que buscaram fundamentar seu saber e
o mundo a partir de conceitos e noções metafísicas. Para Nietzsche
a filosofia se mostrou com os mesmos preconceitos dogmáticos que
apenas eram apresentados em cada momento de uma maneira
diferente. A filosofia, para o filósofo, é a história do erro em que os
filósofos, guiados pela necessidade e crença nas oposições de

* UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná,


anabarbosa_ab@hotmail.com
** Professora da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
96 A Ética em prática no ambiente escolar

valores, separaram o mundo em dois, um “mundo verdadeiro” e um


“mundo sensível”.

Como poderia algo nascer do seu contrário? Por exemplo, a


vontade do erro? Ou ainda a vontade de verdade da vontade de
engano? Ou altruísmo do egoísmo? Como poderia a contemplação
pura e resplandecente do sábio nascer da cobiça? Tais origens são
impossíveis; quem as admite é tolo, ou algo pior; as coisas de valor
elevado devem ter outra procedência, uma origem própria - não
podem derivar desse mundo efêmero, enganador, ilusório e
mesquinho, desse labirinto de erros e desejos! Ao contrário, é no
íntimo do ser, no imperecível, na divindade oculta, na “coisa em si” -
que deve encontrar-se a sua razão de ser, e em nenhum outro
lugar! Esse processo de avaliar constitui o preconceito típico pelo
qual se reconhecem perfeitamente os metafísicos de todos os
tempos; esse tipo de avaliação está por trás de todos os seus
métodos lógicos; partindo deste seu “crer” é que pretendem chegar
ao “saber”, algo que, no fim, é solenemente batizado de “verdade”.
A fé fundamental dos metafísicos é a crença nas oposições de
valores. (NIETZSCHE, 2005, p. 14)

Para os filósofos metafísicos, algo valoroso não poderia surgir


de algo que eles determinavam como enganoso, baixo, mas deveria
surgir de algo mais estimável no qual estão presentes as ideias e
conceitos verdadeiros, que explicava e garantia a existência do
mundo sensível; assegurando, assim, que o mundo sensível é
desordem, não possui a essência das coisas e, por isso, deve ser
negado e também desvalorizado, negando tudo o que está presente
nesse mundo, inclusive a vida que nega o mundo; o “mundo
sensível” é um mundo de aparências e erro em que vivemos e que
devemos buscar corrigi-los. Estamos no mundo sensível, no erro,
devemos buscar a verdade, viver segundo essa verdade, seguindo
os que sabem da verdade (filósofos).
O que Nietzsche apresenta em sua crítica genealógica da
moral é que as morais foram, ao longo da história, compreendidas
como algo contra as paixões, pois estas deveriam ser evitadas,
abandonadas em troca de um conhecimento. Como consequência
desse modo de valorar, tudo o que se contrapõe ao que é
estabelecido como verdadeiro e correto, será considerado como falso
e errado. Desse modo, a filosofia metafísica fundamenta uma teoria
moral, corrigindo o mundo por meio da moralidade, com verdades e
certezas absolutas, fazendo com que os homens sejam
essencialmente morais. Utilizando a verdade para terem autoridade,
Trabalhos completos 97

construindo a moral conforme o que consideram correto e útil; a


moral, assim, restringe-se a atitudes corretas ou erradas. Os homens
julgam e condenam todos os que não seguem a moralidade por eles
proferida. A Filosofia moral tende ao utilitarismo da moral, em que o
maior número de pessoas será beneficiado por essa moralidade. Os
filósofos fundamentam por meio de suas convicções a moral;
pretendem, assim, universalizar a sua moral que é de acordo com
sua vivência, para todos os demais homens.

[...] os filósofos da moral apenas conheciam os fatos morais


grosseiramente, por extratos arbitrários ou como abreviações
casuais, por exemplo, como moralidade do seu meio ambiente, da
sua classe, da sua Igreja, do espírito da sua época, do seu clima e
da sua região [...]. (NIETZSCHE, 2005, p. 111)

Nietzsche critica essa filosofia moral porque os valores morais


devem ser criados a partir de uma necessidade de um povo, de uma
cultura e devem ser renovados com o passar do tempo. Cada
comunidade deve fundamentar uma moral que seja de acordo com
suas vivências e sua época. Os filósofos não podem, assim,
fundamentar uma moral universal, mas uma moral para sua realidade
e para a comunidade em que está incluso. O preconceito dos
filósofos foi universalizar suas vivências individuais, esquecendo que
cada ser humano é único e vive de acordo com seus costumes. Os
filósofos teriam uma multidão (rebanho) em que eles explicam e
descreve sua moral, qual virtude é própria do homem e os demais
devem segui-lo, porque o filósofo é o detentor da verdade.
Essa filosofia da moral era tida como detentora da verdade,
os filósofos eram os dominantes, o povo era o rebanho, dominados.
O que o filósofo falava era uma lei, criador de valores morais; ele,
enorme homem, dono do espírito da sabedoria não poderia, nem
deveria ser questionado, por ser simplesmente o sábio, aquele que
sabe de tudo, correto.

6.2 VIRTUDE NO SENTIDO EXTRAMORAL

Nietzsche propõe uma compreensão de virtude inovadora,


tenta desconstruir a moral como a conhecemos e estabelecer uma
nova moral, de acordo com a natureza do homem, tal como ele
observa ao longo da história. Ao longo da história a virtude foi
utilizada como moralidade por diversas correntes filosóficas, todas
essas correntes filosóficas implicam no utilitarismo inglês, que afirma
98 A Ética em prática no ambiente escolar

que a virtude deve alcançar o maior número de pessoas. Mas, para o


filósofo, essa corrente apenas prega isso para os povos, e que
apenas quer a felicidade para seu povo. Utilizando os demais povos
apenas como seu rebanho humano, querendo ter seus seguidores e
formando homens somente morais. Nietzsche, contudo, pensa a
virtude no sentido extramoral, para além do bem e do mal, uma
virtude que supera toda a moralidade, pois não está nesse âmbito,
mas uma virtude como uma força, uma vontade própria do homem.
Antes de entendermos Nietzsche, é importante e necessário
explicar a virtude na tradição para conseguir compreender o
pensamento do filósofo. Na tradição filosófica a virtude foi utilizada
de diversas formas: “[...] Hedonismo, pessimismo, utilitarismo,
eudemonismo: todas essas maneiras de pensar que medem o valor
das coisas pelo prazer e pelo sofrimento que elas proporcionam, [...]”
(NIETZSCHE, 2005, p. 166). A teoria do hedonismo é a corrente
filosófica que considera o prazer como único bem possível, sendo o
princípio e o fim da vida feliz. O homem deve, assim, buscar o prazer
para conseguir ser feliz. Já o pessimismo é a negação de qualquer
possibilidade de progresso na vida. Independente do ser humano
buscar algo melhor, tentar algum progresso, não vai conseguir
porque a vida é algo ruim, é dolorosa, tende a cada vez ficar pior.
Para o eudemonismo a felicidade é o princípio e fundamento da vida.
Assim, o homem deve procurar todos os modos de ser feliz, a
felicidade é de suma importância. O utilitarismo deve buscar ter o
prazer para o maior número de pessoas, o homem em sua vida deve
buscar o prazer para si e para o maior número de pessoas.
Segundo Nietzsche, todas essas correntes filosóficas tendem
ao utilitarismo, em que a virtude deve alcançar o maior número de
pessoas. Esse utilitarismo é utilidade do rebanho em que uns
poucos dominam, determinam o que é certo ou errado e o rebanho,
escravos da moralidade, obedecem; por meio dessa obediência mais
e mais pessoas são beneficiadas, tendo utilidade para o bem-estar
da comunidade.

[...] o “bem-estar” não é um ideal, um alvo, um conceito definível,


mas apenas um vomitório - que o que é justo para um, não pode ser
justo para o outro, que a exigência de uma moral para todos é um
prejuízo especialmente para os homens superiores, enfim, que há
uma ordem hierárquica entre os homens e, conseqüentemente,
entre as morais. (NIETZSCHE, 2005, p. 170-171)
Trabalhos completos 99

Quando nascemos somos incluídos em uma moral utilitária,


aceitamos e obedecemos. Os legisladores comandam nossa vida
segundo as leis; nós, os dominados, acabamos por obedecer, sendo
escravos de uma moral ultrapassada e pensada conforme outros
princípios; princípios esses que não são de acordo com nossa
realidade. Essa moral é um meio de controlar a população. Não
tendo significado de justiça, mas hierarquia entre os que comandam
e os que obedecem; essa hierarquia também faz com que uma moral
seja melhor que a outra ou, ao menos, assim que determinam. Ao
descrever o que é certo ou errado, criando leis e regras, todos são
manipulados para aceitarem essa moral. Ainda na infância, já
vivemos sobre a moral de nossos familiares, moral essa que
corresponde ao que alguém já pensou e determinou como moral; por
meio da moralidade é que vivemos em acordo, somos exaltados ao
sermos morais e discriminados, humilhados, quando não
correspondemos com as expectativas da sociedade. Desse modo, ao
obedecermos beneficiamos a todos, não prejudicaremos e
manteremos a ordem social. “É provável que também nós tenhamos
as nossas virtudes, embora obviamente não sejam aquelas virtudes
ingênuas e robustas por amor das quais honramos, mas também
afastamos de nós os nossos avós” (NIETZSCHE, 2005, p. 156).
Nietzsche determina que nossa virtude não seja como dos
nossos antepassados, uma virtude fundamentada na moral; os
filósofos incluíram a virtude na moral, na qual todos os homens
morais eram virtuosos. Não devemos aceitar o que nossos
antepassados e a sociedade nos impõem, devemos determinar
nossa moral, conforme nossas necessidades e prioridades, a moral
não pode ser algo pronto, mas sim renovada a cada dia. Os homens
construíram a história como se existissem fenômenos morais, mas,
segundo Nietzsche, o que existe são as interpretações morais dos
fenômenos. Ou seja, o homem ao conviver, necessariamente,
estabelece um valor, baseado em sua perspectiva, que é subjetiva,
não pode ser universalizada.
Para Nietzsche a virtude não está condicionada a uma moral,
é algo próprio do homem e que está antes do âmbito moral, ou seja,
extramoral. Virtude não é um conceito que podemos definir como
felicidade, prazer, mas é antes uma força que move todo vivente,
uma vontade de potência. A vontade se efetiva na expansão, em
fazer-se mais forte, potência é o que quer na vontade, o que se
efetiva, diz sim para a vontade. O mundo é vontade de potência,
todas as forças procuram sua expansão, seu crescimento, buscam
superar-se. Vida é vontade de potência, procura expandir-se,
100 A Ética em prática no ambiente escolar

superar-se, crescer, não só se conservar; a vida nunca é a mesma,


ela cresce, aumenta, quer isso.
Nietzsche critica os fisiologistas que definiam o instinto de
autoconservação como algo fundamental dos seres, pois o que
caracteriza qualquer ser vivo é o querer expandir sua força. “Os
fisiologistas deveriam pensar duas vezes antes de considerar o
instinto de autoconservação como instinto fundamental de todo o ser
orgânico. Antes de tudo, qualquer ser vivo deseja expandir a sua
força - a própria é vontade de poder [...]” (NIETZSCHE, 2005, p.
156). A própria vida, segundo o filósofo, é instinto de crescimento, de
acumulação de forças de potências. Tudo que vai contra isso, ou
seja, toda moral que não procura elevar a verdadeira natureza dos
homens, que é força, vontade, caracteriza-se como uma
degeneração, pois vai contra a vida ao exigir uma renúncia do que é
próprio do homem.
Para a sociedade pensar em viver em uma virtude que não
está no âmbito moral é um desafio, estamos habituados à aceitação
e convivência com certos conceitos. Nossa sociedade é ordenada
por meio da moral, com essa moralidade os superiores (governantes)
dominam a massa (rebanho). Assim como Nietzsche descreveu,
essa moralidade é ultrapassada e não corresponde com o
aperfeiçoamento que a cada dia que passa e acontece em nossa
volta. Essa massa populacional está cada vez mais aprisionada na
moral, por vezes pensam e agem como se não existisse moralidade,
porém, são punidos por não viverem segundo a moral escolhida por
alguns.
Se cada indivíduo ousar expandir, crescer, multiplicar sua
vontade de potência, não preferir ficar apenas na facilidade da vida,
mas procurar aumentá-la, superando cada dia o que se é. Assim
desconstruir os conceitos morais históricos e construir uma
moralidade que corresponda à sua realidade, moralidade que estará
sempre em construção, não aceitando o que já foi imposto, mas
pensando o que pode fazer para melhorar a sua vida e da
comunidade que está incluso. Cada comunidade terá sua moral para
assim ter o bem-estar e manter a sobrevivência de todos. A
moralidade como sobrevivência leva a pensar que todos almejam a
mesma coisa, portanto, pensando em sua sobrevivência e na dos
que estão ao seu redor, respeitam também a dos outros povos.
Definição do que se pode ou não fazer, será determinada por cada
povo, a moralidade não será universal.
A moral sempre existiu e sempre existirá, o importante é que
não seja estabelecida por alguns e obedecida por muitos. Não
Trabalhos completos 101

devemos aceitar a moralidade que foi imposta e que está dada antes
mesmo de nascermos, todos devem pensar, questionar e construir
juntos a moralidade para sua comunidade, a moral desse modo está
sempre em construção, sua renovação acontece todos os dias. Os
indivíduos que procurem entender e expandir a vida que é próprio de
sua natureza.
Os espíritos que querem expandir-se são os espíritos livres,
os filósofos do futuro, os espíritos que amam a sabedoria, sacrificam
pelo conhecimento, que não aceitaram a moralidade imposta e que
sempre buscarão sua própria moralidade, formando uma moralidade
de sua comunidade.

REFERÊNCIAS

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal. Trad.


Heloisa da Graça Burati. São Paulo: Rideel, 2005.

_____. Genealogia da Moral. Ed. Brasiliense, São Paulo, 1987.


102 A Ética em prática no ambiente escolar

= VII =

ALTERIDADE CONFLITANTE:
UMA ABORDAGEM DO OUTRO EM SARTRE

Ricardo Fabricio Feltrin*

RESUMO:
Ao tratar da subjetividade fenomenológica, Sartre teve uma
preocupação particular em descrever como ela deve ser
compreendida, amparando-se na conexão do mundo vivido, de sua
história, de sua facticidade subsumida na temporalidade do pretérito
da vida humana e de sua relação com o futuro. Neste contexto
remete à intersubjetividade enquanto personificação de uma
personalidade oposta da de cada sujeito. Neste arranjo
desarmonioso a subjetividade é parametrizada na relação
incontornável da convivência, não sendo possível afugentar o Outro,
pois a simples referência à sua existência é condição suficiente para
ele mediar as ações individuais, fazendo com que o homem se
reconheça nos olhos de outra pessoa. Na dimensão do “ser visto” há
uma ligação necessária transcendendo a redução deste Outro a um
objeto, é o olhar dele apoderando-se de mim como um veneno para
o qual não há antídoto, a convergência de olhares é enigmática e
translúcida, concomitantemente. É obscura por que o domínio sobre
o alter-ego é irreal, isto é, o ser humano não detém meios para
restringir a sobreposição, contudo, é transparente porque apreende
aquilo que é no seu projeto posicional, o Outro não pode apenas
direcionar o seu olhar a mim como se estivesse atento a um objeto
qualquer, contudo ele é dono de uma consciência capaz de me
afetar, sua influência direta ocasiona a mudança inevitável de
comportamento, de ação. A convivência torna-se infernal, porque ela
revela a incompletude humana, mostra sua nudez, o quanto a vida é
inautêntica. O inferno não pode ser um lugar físico, no sentido
condenatório, mas é necessariamente o Outro, porque as outras
pessoas possuem um poder “mágico” de denunciar o quanto foi
inadequado e inautêntico o comportamento humano e a punição
remete à atuação carrasca do Outro num processo de denúncia da

* UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, rffeltrin@hotmail.com


Trabalhos completos 103

personalidade. O castigo nada mais é que o surgimento de um


espaço de hostilidade marcado pela luta e pelo conflito. Sartre
resgata a necessidade de o sujeito viver autenticamente, mas esta
condição não é suficiente para suprimir a convivência conflituosa,
pois o olhar do Outro devolve à convivência o poder de reduzir à
nulidade o desejo de representar.

PALAVRAS-CHAVE: Outro; Infernalidade; Cerceamento;


Intencionalidade.

7.1 O SURGIMENTO DO OUTRO

Ao tratar da subjetividade fenomenológica, Sartre teve uma


preocupação particular em retratar como ela deve ser compreendida,
amparando-se na conexão do mundo vivido, de sua história, de sua
facticidade e toda a consequência trazida por este aspecto,
subsumida na temporalidade do pretérito da vida humana e de sua
relação com o futuro. Em suma, o objetivo de compreensão do ser-
Para-si é prerrogativa imprescindível do enunciado, a saber: a
característica paradoxal de ser aquilo que não é e não ser o que é na
significância de a transcendência atentar para a busca incessante de
mutilar o princípio da negação interna da consciência, a fim de
alcançar a positividade plena.
Por ora, percebe-se que Sartre não permanece
exclusivamente absorto no emaranhado enigma existencial
estabelecido pelas imbricações da consciência para com o mundo
fenomênico, agora a problematização abrange expressivo tema –
não menos importante da subjetividade concebida em termos de
consciência intencional – trazendo para esta cena do palco
existencial o ser-Para-outro. Nós não preenchemos o mundo por
meio de uma consciência solitária, o homem existe no mundo,
dividindo sua presença com a multiplicidade humana. O mundo é
constituído intersubjetivamente e as experiências cotidianas surgem
diante de nossos olhos como o desvelamento da realidade do Outro.
Caso tomemos uma expressão emocional, o fato de estarmos
encolerizados ou possuídos pela ira – embora Sartre nos chame a
atenção no sentido de os sentimentos não serem um estado,
contudo propriamente uma intencionalidade – este sentimento não
será sobre nós-mesmos, mas sempre relacionado ao Outro, a
vergonha sentida constantemente constituirá uma vergonha diante
do Outro, relacionando o reconhecimento de “si” atrelado ao crivo da
alteridade.
104 A Ética em prática no ambiente escolar

Esta apropriação feita de nós pelo Outro é intrigante e


desafiadora, representa, metaforicamente, certo exercício revestido
de caráter “violento” porque apodera-se de uma liberdade não lhe
pertencida. É possível instaurar-se situação de insegurança diante
do Outro por que ele pode fazer de nós, hipoteticamente, aquilo que
lhe aprouver enquanto estivermos alheados à sua objetivação. A
liberdade é tíbia porque aquele Outro pode fazer de mim um
instrumento para os seus possíveis. Quando o ser humano se
envereda para esta condição, torna-se indefeso, pois o julgamento
emitido pelo Outro é instrumento combativo instantâneo a cercar a
liberdade alheia, devolvendo a si (eu) o reflexo não refletido no seu
próprio espelho. Encontra-se aí o objetivo profundo e onto-
fenomênico da privação de liberdade, porque visa restringir a ação
“libertadora” do homem, não há escapatória nem local para onde
fugir, somos sempre transcendência-transcendida. Ilustrativamente,
faz-se profícuo resgatar a discussão ocorrida no texto Entre Quatro
Paredes, pertinentes à tese central d’O Ser e o Nada, a questão do
Outro. A dramaturgia, apresentada no texto, desenvolve-se em um
ambiente desolador, onde a realidade passa a ser concebida a partir
da alegoria do inferno – logicamente distinto do pretenso inferno
cristão – acredito que supostamente Sartre se reporte ao inferno
para retratar o oposto da plenitude ou do “céu”, luminosidade pura
onde todos os seres conviveriam harmoniosamente em um processo
de realização profunda. No inferno, as coisas não transcorreriam da
mesma maneira, pois esta condição revela a incompletude do ser-
Para-si e à condição inaceitável de sê-lo desta maneira. Antes dos
personagens habitarem aquele local, havia apenas a metáfora da
existência marcada pela frustração de mascararem seus projetos
tornando menos sôfregas as suas vidas. Quando do acontecimento
de sua morte, estão lançados naquele ambiente, não podendo mais
esconder sorrateiramente o fracasso de suas vidas, a convivência
torna-se infernal.
Na peça Entre Quatro Paredes, Sartre procura despertar no
leitor a compreensão de que a situação vivida pelos personagens:
Garcin, crente de em sua vida inteira ter manifestado atitudes de
herói, quando na verdade sempre foram de covarde; Estelle, para a
qual a sua vida esteve imersa na imoralidade, ao ponto de
assassinar o próprio filho, desejava que os outros mortos (Garcin e
Inès) não a culpassem, mas depositassem a culpa pelo infanticídio
nas circunstâncias; e, por último, Inès, sua vida foi uma autenticidade
verdadeira, pois foi capaz de provocar a sua e a morte do amante
por causa de um pacto de suicídio. Estando os três no além-túmulo,
Trabalhos completos 105

estariam “nus”, embora tentassem obstar o projeto que foram


quando em vida, por meio da má-fé; ali não havia possibilidade, a
presença de Inès, dona de uma personalidade autêntica, não os
deixaria agir de tal forma. Todos os eventos passaram a ocorrer por
um lapso temporal ininterrupto, não havendo noite, nem dia, a
convivência se estabelecia no âmbito da temporalidade contínua.
Estariam eles vivendo no suposto inferno, e, após a confissão geral
dos três protagonistas da peça, cada sujeito toma conhecimento da
maldade praticada por cada um e a punição os acomete sem
escapatória, cada vítima passa a ser carrasco do Outro num
processo de denúncia da personalidade, desmascarando-a,
enquanto suas vidas tinham se produzido numa espécie de
“falseamento”. Agora este “manto” já não os protegia e a vivência
inalienável prefigura-se como a dimensão de ser visto e encerrado
pelo Outro. O inferno não pode ser um lugar físico, no sentido
condenatório, opondo-se ao paraíso como recompensa por uma vida
autêntica; o inferno é, necessariamente, o Outro porque as outras
pessoas possuem um poder “mágico” de denunciar o quanto foi
inadequado, inautêntico no comportamento humano. Como na peça,
o olhar devassa cada indivíduo e isto torna a existência do Outro
insuportável, o

Inferno é o espaço em que o conflito desencadeia o reencontro com


forças ocultas em cada um dos condenados. Garcin sofre com a
estátua, anúncio eterno do herói que ele não foi. Estelle com a
perda gradativa de sua condição de imagem congelada, que a
tornava estátua social. E Inês funciona como espelho deformador
para os outros e para si mesma. Dessa forma, os cristais passivos
dos espelhos são substituídos pelo olhar sempre crítico do outro,
por sua presença constante e impiedosa, não podendo haver
maneira de se afastar deles, pois o inferno é o espaço pequeno de
uma cela de prisão. (SARTRE, 2005, p. 15)

A punição assevera, de forma contumaz, o verdadeiro


problema da intersubjetividade; o castigo nada mais é que o
surgimento de um espaço de hostilidade marcado pela luta e pelo
conflito. Sartre resgata a necessidade de o sujeito viver
autenticamente, mas esta condição não é suficiente para suprimir a
convivência conflituosa, pois o olhar do Outro é conhecedor, como
se nota ao revisitar as páginas da peça já citada. A convivência tem
o poder de reduzir à nulidade o desejo de representar, a ficção do
drama da intersubjetividade fundamentado por Sartre, mostra
exatamente isto, o verdadeiro projeto humano, especialmente de
106 A Ética em prática no ambiente escolar

Garcin e Estelle no inferno, é desvelado e nítido ao ponto de ser


translúcido, não havendo maneira de escamoteá-lo. De acordo com
Sartre, todo sujeito pode se refugiar no esconderijo moral –
entendido, aqui, como o conjunto de valores no qual o sujeito está
inserido; a ética sartriana suplanta tal nominação em prol de uma
moral a ser produzida pelo próprio indivíduo, concatenando a
autenticidade e a responsabilidade – depositando na moralidade
vigente todas as desculpas possíveis para negar o projeto original; a
vivência moralizante persegue um ideal de sujeito; o imaginário
fantasioso surgido confunde-se com aquele desejo do ser-Para-si
em tornar-se ser-Em-si, mas no inferno se sucumbem todas as
suposições e torna-se presente, escancarado aos olhos de todos e o
Outro lhe surge com características próprias de um autêntico
castigador. Nesta peça os personagens não têm escapatória e, por
estarem falecidos, o mascaramento ou má-fé tornaram-se
prescindíveis, aliás, não são comportados.
No ambiente infernal não há como voltar-se a si, no sentido
de restituir aquela imagem primeira no seu devir vital, não há
espelhos, faltam referências para um reconhecimento imediato,
como vemos bem nas palavras de Garcin: “Que droga: tiraram tudo
que pudesse lembrar um espelho” (SARTRE, 2005, p. 42). Talvez a
referência ao objeto físico tenha uma implicação perspicaz no
pensamento sartriano: não estaria ele se referindo à consciência
como um grande espelho, no qual é possível o retorno sobre si,
refletindo como estou, se aquela projeção me agrada ou então se
estou a reprová-la? De fato, no ambiente do inferno, a consciência,
se entendida como reflexividade ou exclusividade de retorno sobre si
mesma, comprova o quanto é fracassado o projeto humano,
intimamente o sujeito sabe-se conhecedor do abismo desolador da
crueza de uma existência inconsolável. Emergentes do nada, estão
ausentes os motivos a priori de suas escolhas, por isso a
personalidade feita a partir de traços morais na tentativa de
autojustificação do para-si-em-si é destruída, permanecendo
unicamente a existência ou, como nos fala em A Náusea, a
contingência.
Sartre passa a elucidar certa tese de dureza da vida humana
enraizada na dificuldade de assumir a existência, incluindo a
convivência de forma comprometida com o ideário de uma liberdade
levada às últimas circunstâncias, vazia de qualquer pressuposto
fundamental, descobrindo-se por meio de um processo de auto-
reconhecimento através do processo intersubjetivo é preferível,
Trabalhos completos 107

como nos diz Estelle, “acreditar que a gente está aqui [no inferno]26
por engano”? (SARTRE, 2005, p. 59). Esta predileção em retornar ao
mundo vivido é o desejo de recobrir a liberdade aspirando ao sentido
de atribuir algum significado à vida, na tentativa de dirimir o
cataclismo existencial; é nostálgico poder regressar porque a este
retorno o sujeito poderá novamente descansar sob o escudo de uma
moralidade “aceitável” e justificável. Sendo assim, o enlace daquele
ambiente infernal destitui a soberania de um sujeito feito a partir da
moralidade: pois ali ocorre a desconstrução de toda ordem de
pressupostos valorativos totalizantes. Mesmo aquele determinismo
possivelmente considerado aceitável, a exemplo daquele incutido
pelas religiões, comprometeria no indivíduo alguma obrigação de
seguir determinada imposição social; empreendendo a desfiguração
essencial da humanidade; a supressão da liberdade em sentido
ontológico.
Em Entre Quatro Paredes, esta escusa não se torna possível:
a polidez e a cerimônia são evasivas, o homem é de uma nudez
translúcida, como diz Garcin: “Entre nós”! Daqui a pouco vamos
estar nus feitos minhocas” (SARTRE, 2005, p. 76). Mas por qual
razão é utilizada tal exemplificação? Poderia ser simplesmente a
enunciação ao despir humano, mas tal comparação configura-se
radicalmente, pois no anelídeo há uma transparência peculiar
permitindo inclusive a visualização de seu interior. A nudez, na obra
mencionada, tem tal característica, o aparecimento humano na
intersubjetividade repousada sobre o Outro faz com que ele seja
sabedor de nós mesmos, ao ponto de nos conhecermos por
intermédio dele. É aceitável de que esta condição nada tenha de
sobrenatural, porém, como efetuamos nosso projeto via intencional e
cada um de nossos atos remete ao projeto original, passaremos a
viver à sombra da alteridade carrasca, aquela judicativa e capaz de
tornar a convivência um inferno. É um sofrimento sem igual: “É
melhor levar cem mordidas, chibatadas, ácido sulfúrico do que este
sofrimento mental, este fantasma de sofrimento, que acaricia e
nunca dói o bastante” (SARTRE, 2005, p. 117).
Por fim, o reconhecimento e a definição de todo o contexto
sofrível, que não é posto gratuitamente por Sartre, são expostos
praticamente nas últimas páginas da trama, de sobressalto são
pronunciados em tom conclusivo, partindo dos próprios
personagens: “Então, é isto o inferno. Eu não poderia acreditar....
Vocês se lembram: enxofre, fornalhas, grelhas.... Ah! Que piada.

26 Grifo meu.
108 A Ética em prática no ambiente escolar

Não precisa de nada disso: o inferno são os Outros” (SARTRE,


2005, p. 125). Sartre está expondo sua teoria da intersubjetividade,
remetendo à personificação de uma personalidade oposta à de cada
sujeito, é o não-ser-consciência-si; todavia, o autor, de forma tênue,
radicaliza este conceito; não é necessária a presença física, mas a
simples possibilidade de haver um observador é capaz de despertar
atenção no sujeito, no cuidado como o Outro irá transcender a minha
facticidade. Neste arranjo desarmonioso a subjetividade compõe-se
pelo seguinte: o homem encontra-se em uma relação incontornável
da convivência e para aviltar tal evidência procura formas de negá-la.
O isolamento apresenta-se como alternativa possível de fuga; a tese
seria, assim, mais simples e de pouca complexidade. Todavia, não
há como fugir do Outro, mesmo nos rincões mais longínquos, no
deserto, por exemplo, onde a única presença são componentes
naturais, ainda o pensamento sobre a possibilidade do segundo
olhar surge como instância limitadora, pois a simples referência à
existência de Outro já é condição suficiente para ele mediar as ações
individuais: “o homem não é nada além do olho existencial, visando
outrem, nada além do pensamento incolor que te pensa” (SARTRE,
2005, p. 122). Como se observa, a noção do olhar do Outro sobre as
relações humanas deflagra a ruína da existência, a escolha pela má-
fé tem o objetivo de mitigar a intransigência do olhar alheio, mas, em
contrapartida, impede ao indivíduo a vida em autenticidade, por uma
questão de probidade consigo mesmo, em ser aquilo-que-tem-de-
ser, nisto consiste o apelo à boa-fé, a “salvação” da subjetividade.
Vejamos uma das contribuições emergentes, encontradas no bojo da
obra Entre Quatro Paredes,

[...] outro fato é salientado no diálogo entre Inês e Garcin. Este, em


sua má-fé, invoca a falsidade (como Sartre a vê) do essencialismo
para apoiar sua pretensão de que, conquanto tenha cometido atos
covardes, possui um caráter, essência ou alma valente. Cabe a
Inês ensinar-lhe a dolorosa mensagem existencialista de que o
homem é o que faz e nada mais. Garcin não possui essência para
ser valente. Ele é covarde por que suas ações são covardes.
(CRANSTON, 1966, p. 90)

Diante da construção conceituada, desenvolvida nas


questões da alteridade, ser nobre ou covarde, bom ou mau, enfim,
qualquer batalha travada por estas dicotomias, ora tendendo ao
“bem”, ora tencionando ao “mal”, não incorre, necessariamente, em
nenhuma teoria de meritocracia, mas unicamente em assumir,
incondicionalmente, a situação da vida humana contaminada,
Trabalhos completos 109

incessantemente, pelo nada. Ilustrativamente a trama dramatúrgica


nos apresenta três personagens e Sartre tem por pano de fundo o
objetivo dialógico evidente de elucidar quão desastrosa pode ser a
convivência humana – embora a condição tripartite seja insuficiente,
pois nenhum número obsta a má-fé, nem nenhum acordo subtrai de
todo o “inferno”. Considerando a peculiaridade de a
intersubjetividade fluir e demandar o Outro, o convívio poderia ser
perfeito se estivessem, simetricamente, apenas dois sujeitos porque
aí os pares poderiam acordar-se e novamente um falseamento
obnubilando a liberdade fundamental entraria em vigor, sob a
representação, um simulacro de aparências reportando à
superficialidade. É o caso de Garcin e Estelle, pois o intento deles
era o despertar de um desejo amoroso, conservando uma relação
afetiva contínua, alicerçada na procura mútua do impossível, uma
terceira personalidade atuando neste projeto o implodiria, já que a
presença de Inês, distintamente dona de uma inteligência arguta e
de igual honestidade desmascara-os. Tudo bem, mas não podemos
afastar a hipótese de que também três pessoas poderiam firmar um
acordo, moralmente a sociedade faz isso ou, então, igualmente,
duas personalidades entram em desacordo; porém, alegoricamente,
para Sartre é a exigência de acordo com a qual um “Outro” nos
recordará do vazio absoluto de nossas existências; cada vítima
passa a figurar-se austeramente, assemelhando-se àquela
personagem aflitiva de seus companheiros. Assim, “as outras
pessoas são um inferno porque a sua presença faz-nos recordar
como foi inadequado o nosso comportamento” (THODY, 1974, p.
74).
A contribuição existencialista conduz para o seguinte
desfecho: o homem só pode se reconhecer, ontologicamente, aos
olhos de outra pessoa; é a dimensão do “ser visto”, há uma ligação
necessária transcendendo a redução deste Outro a um objeto além-
objeto; é o olhar dele apoderando-se de mim como um veneno para
o qual eu não tenho antídoto, esta convergência de olhares é
enigmática e translúcida, concomitantemente. É obscura por que o
domínio sobre o alter-ego é irreal e o ser humano não detém meios
para restringir a sobreposição, contudo, é transparente porque
apreende aquilo que sou no meu projeto posicional; o Outro não
pode apenas direcionar o seu olhar a mim, como se estivesse atento
a um objeto qualquer, ele é dono de uma consciência capaz de me
afetar. De acordo com Bornheim:
110 A Ética em prática no ambiente escolar

[...] O ser-visto-por-outro impõe-se como uma experiência


irredutível, rebelde a qualquer tentativa de dedução. A todo instante
o outro me olha, e esse olhar não pode ser elucidado com o auxílio
da categoria do objeto; de fato, quando apreendo o olhar, cesso de
perceber os olhos que me veem. [...] o ser-visto como que perturba
a pureza da percepção, suplanta a relação sujeito-objeto; o olhar
cai sobre mim sem distância, e, ao mesmo tempo, me mantém à
distância. Embora se manifeste nos olhos do outro, o olhar me
devolve a mim mesmo e a experiência absorvente que passo a ter
deriva desse ser-visto. (BORNHEIM, 1984, p. 86)

Se dependentes do olhar do Outro, surge aí uma espécie de


princípio regulatório intersubjetivo; a ideia da culpa emergente por
uma reprovação de seu comportamento passa a ser o agravamento
contínuo na estrutura contingencial, obnubilando a autenticidade.
Este parece ser um verdadeiro problema. Segundo as
reflexões de Thody, estudioso da filosofia existencialista em questão,
em Sartre nenhum ser humano “tem possibilidade de manter um
relacionamento autêntico e positivo com seus semelhantes”
(THODY, 1974, p. 75). Caso houvesse uma forma de realmente ser
autêntico e positivo ao mesmo passo, ainda assim elementos
agressivos fariam parte deste contexto, ser autêntico implica num
projeto de sinceridade ontológica, não somente para consigo
mesmo; pois todo ato sincero intersubjetivo o despe de todas as
armaduras constituídas em falseamento e por isto torna-se
agressivo, já é desolador suportar a angústia de ser um projeto sem
fundamento, ainda mais temerário é o de estar, de certa forma, sub
judice de outrem, não podendo neutralizar aquele olhar penetrante e
revelador. De igual forma, ninguém poderá ser virtuoso ou constituir-
se hierarquicamente melhor se comparado a Outro, embora
estejamos todos lançados em algum modelo de moralidade ou
modus vivendi; a condição humana deverá desconsiderar o
intervencionismo determinista de todos os traços moralizantes ao
ponto de fazer “nascer”, no cerne de sua ontologia, a austeridade e a
responsabilidade para consigo mesmo. Sendo assim, nós mesmos
somos os únicos capazes de voltarmo-nos sobre nós mesmos,
responsabilizando-nos, pois, as boas intenções jamais nos salvariam
da dimensão existencial e contingente. Não haverá salvação
enquanto o homem não for honesto o bastante para com o seu
projeto, apenas o encontro direto e assertivo de que manobras
realizadas por pensamentos introspectivos de negação da condição
original nadificante conduzem à simulação e, desta feita, estão
fadados ao fracasso.
Trabalhos completos 111

Por este motivo, o Outro pode ser visto como objeto em sua
aparição diante de mim. Na trajetória argumentativa desenvolvida em
A Transcendência do Ego, o autor é explícito ao afirmar a existência
dele como objeto singular, surgindo diante do sujeito; é a cogitação
da consciência de segundo grau que, por sua atividade reflexiva,
acaba por engendrá-lo. É explícito para o filósofo francês que, em
uma teoria autossuficiente da subjetividade, ela olharia para si
mesma e estaria plena de seu autoconhecimento, primeiramente,
voltar-se-ia para sua singularidade e, em seguida, lançar-se-ia em
direção a outras consciências. Desde A Transcendência do Ego, os
meandros para evidenciar uma consciência fenomenológica se
seguem por outra dimensão: toda consciência voltada para o sujeito
a respeito de si, de alguma forma, está minada pela presença da
consciência de outras pessoas.
A concepção do Outro desde uma perspectiva idealista, não
se torna possível, ou seja, por mais que sejamos levados a pensar
em um determinado objeto, como uma cadeira, por exemplo,
encontraremos todas as formas possíveis de sua aparência, ainda
assim não se poderia argumentar de tal forma para a consciência do
Outro. Parece inalcançável tomar conhecimento acerca daquilo que
se passa com o Outro. Mesmo no intento de ultrapassar suas
aparições fenomenológicas, em um processo reflexivo constante,
mesmo assim não haveria como reclamar a si a clareza de outra
consciência, se isto for possível, esta característica permanece no
âmbito privativo, só posso apreender as manifestações fenomênicas
apresentadas a mim. O conhecimento do Outro não é proveniente da
interioridade reflexiva, ele se origina a partir das experiências, a
premissa mostra-se como razão pela qual o existencialismo se
propõe antagonicamente ao solipsismo, pois este implicaria uma
definição da subjetividade limitada em si mesma, ancorada na
perspectiva da consciência, como o olho onipotente capaz de tudo
ver e de desvendar as entranhas insondáveis pertencentes a outrem.
Sartre não se furta de enfrentar a discussão acerca do
solipsismo, argumentando no sentido de o Outro dever ser
observado como representação de uma unidade unificante de todas
as suas experiências; na proporção de sua maneira de agir,
influenciar a vida ou a história subjetiva e suas decisões. Portanto, a
atuação de outrem se estrutura como espelho e seu julgamento
fornece elementos consideráveis na formalização do conhecimento
acerca daquilo que eu sou. Sartre procura mostrar que o solipsismo,
a característica de pensar ontologicamente a consciência ou o Outro,
como um conjunto de representações apenas, não daria cabo do
112 A Ética em prática no ambiente escolar

Outro, pois ele se trata “da constituição de um ser que não sou eu,
de grupos conexos de fenômenos no campo de minhas
experiências” (SARTRE, 2011, p. 295).
A referência sartriana defende o pressuposto no qual as
consciências enfrentam uma negação externa, no sentido em que eu
não sou você. Como observamos no texto O Ser e o Nada, a fonte
de toda negação só pode ser a consciência, como sua própria
origem, especialmente do nada, pois o ser-Em-si jamais poderá
originar algo ou comportar em si a negatividade, porque representa a
positividade total na qual não há fenda alguma para deslizar o nada.
Para tanto, sendo amparada exclusivamente por uma negação
apenas externa, passa a ser imprescindível a terceira personagem,
prefigurando como testemunha, isto é, outra consciência
confirmando ou constituindo o eu e o Outro, nesse caso demandaria
a presença contínua da outra personalidade, atuando a partir de um
princípio multiplicador, podendo, inclusive, ser exponenciado ao
infinito. Embora a alternativa apresente-se com a proposta de
esgotar todas as possibilidades da multiplicidade intersubjetiva,
mantendo conexão com a negação externa, ainda assim estaria
pendente pelo seu caráter inexequível; e a negação externa não
daria conta de resolver, adequadamente, o problema. Para Sartre,
deve haver uma superação, a negação externa somente seria
possível amparada por uma negação interna, tão logo a consciência
apresenta-se enquanto ponto convergente e catalisador da trama da
alteridade. A superação do solipsismo não se dá do solipsismo
“burguês” de O Ser e o Nada para a descoberta da alteridade, em
obras posteriores. A passagem é da apropriação da temporalidade
para a historicidade – o ser-Para-si não é intencionalidade corporal
junto a outras intencionalidades corporais temporalizadas, mas um
projeto histórico-dialético de apropriação (no formar-se próprio,
capaz de fornecer significações a si, diante do nada e como situado).
A dimensão do alter-ego está ligada também ao atualismo de
certos sentimentos, segundo esta suposição devem ser
experienciados pelo ser-Para-si. Contudo, a carga emotiva só terá
sentido na exata medida em que o Outro existir, o termômetro para a
emoção quantifica e qualifica quais de meus atos comportam-se
vergonhosamente, por exemplo. Em si mesmo não há razão alguma
para o indivíduo se envergonhar de seus atos, mas tal nivelamento
comportamental abrange aquela esfera quando há a presença de
Outro efetuando seu julgamento. A presença física não é
necessária, a simples possibilidade cognoscitiva da existência do
Outro é razão suficiente e originária quanto ao surgimento do
Trabalhos completos 113

sentimento de vergonha. Em algum estágio, todavia, o contato pode


se dar por meio da presença física e a consciência singular se
orienta ao corpo; ele é o instrumento pelo qual encontro o Outro. A
forma como surjo nesta esfera é a constituição de não me ver como
sujeito, mas sim como objeto. Sendo distinto, por exemplo, de uma
cadeira ou de uma mesa; estou restrito à dimensão objetiva
composta por uma consciência, pois ela pode me ver, olhar-me,
razão pela qual me faço sabedor de minha realidade singular. É
justamente esta a tal dimensão apresentada no texto sartriano,
auxiliando-nos a compreender o Outro ou a importância de sua
existência, pois o conhecimento do sujeito, no sentido da vivência,
da Erlebniss é explicitamente a contemporaneidade dele na
articulação com os seus atos.

O Outro é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo: sinto


vergonha de mim tal como apareço ao Outro. E, pela aparição
mesmo do Outro, estou em condição de formular sobre mim um
juízo igual ao juízo sobre um objeto, pois é como objeto que
apareço ao outro. (SARTRE, 2011, p. 290)

Além do mais, no contexto social, a percepção da presença


do Outro assume a propriedade de ser instrumento por meio do qual
minhas ações são validadas, reconhecidas ou desprezadas, pela
supremacia deste olhar estrangeiro aos meus domínios. A situação
indesviável e agonizante é a certeza de não haver recurso ou
quaisquer possibilidades remetidas a ele na tentativa de intimidação,
ou ainda, por um viés menos hostil, concordando acerca daquele
enunciado a respeito de sua singularidade, ainda assim o inferno não
deixaria de ser os Outros. Embora, em seu romance Entre Quatro
Paredes, Sartre tenha tratado do tema, seu objetivo é destacar
justamente isto: a presença do Outro origina em mim um conflito
contínuo, pois pertence à esfera classificatória de ser gerenciado
pelo domínio do Outro, ele infringe a minha liberdade, a ultraja; e,
visto não haver poder mágico capaz de aniquilar sua atuação sobre
o projeto individual, resta-lhe a aceitação ativa ou passiva.
A partir do ser-Para-si, vislumbrado na ótica da negação
interna, Sartre transmuda esta característica peculiar de sua forma
de pensar a subjetividade e passa a conceber o Outro de acordo
com o seguinte postulado: “o Outro é o eu que não sou eu [...] é
aquele que não é o que eu sou e que é o que não sou” (SARTRE,
2011, p. 300). Não é apenas um princípio de não-identidade, mas
implica sumariamente no desvelamento da subjetividade que
114 A Ética em prática no ambiente escolar

perenemente se busca, quer se encontrar, persegue obstinadamente


sua identidade inalcançável. O projeto humano continua sendo um
enigma, um fragmentado quebra-cabeça para o qual o
reconhecimento será iluminado tangencialmente por meio do alter-
ego, mesmo ele jamais pode fornecer verdades límpidas, claras,
visando um conhecimento totalizador daquilo que poderemos
balbuciar do ser humano. A Transcendência do Ego é significativa,
pois, o caminho para o cogito não se efetiva pela concepção da
unilateralidade da subjetividade, ou seja, do eu para si mesmo, mas
é por meio do Outro que tramita o eu individual. Assim, o cogito é
visualizado

como o momento abstrato em que o eu se apreende como objeto


[...] o caminho da interioridade passa pelo outro. Mas o Outro só
tem interesse para mim na medida em que é Outro Eu, um Eu-
objeto para Mim, e, inversamente, na medida em que reflete meu
Eu, ou seja, enquanto sou objeto para ele. Por esta necessidade
que tenho de não ser objeto para mim salvo lá adiante, no Outro,
devo obter do outro o reconhecimento de meu ser. (SARTRE, 2011,
p. 307)

Adicionado a esse conceito, faz-se necessário assinalar


como é compreendida pelo filósofo francês a importância e a
participação do corpo devido à sua inerência situacional engendrada
pelo olhar.

7.2 O ESTATUTO DA CORPOREIDADE E A DIMENSÃO DO


OLHAR COMO PRINCÍPIO MORAL

Sartre é incisivo naquele poder outorgante do Outro


direcionado ao sujeito. Além deste, porém, há, no contexto presente,
outra peculiaridade: o surgimento do olhar concebido sob a ótica de
pretensa moralidade. O exemplo trazido por ele em O Ser e o Nada
é significativo porque nos faz compreender a dimensão do destaque
do Outro, como ser capaz de produzir-se na singularidade a partir da
penetrabilidade do olhar. Vejamos bem: se curiosamente sentimos o
desejo de descobrir o que se passa por detrás de uma porta de um
quarto e nos colocamos a olhar por alguma fresta ou buraco da
fechadura, sedentos de observar todos os acontecimentos dados
internamente, procurando ater-nos a todos os movimentos, a todos
os gestos, às palavras, à entonação da voz, às agitações abruptas,
enfim, visando reafirmar a intenção de apreender a liberdade do
Outro, então, o significado é dado por intermédio do olhar
Trabalhos completos 115

intrometido, de forma invasiva sem que quem esteja do outro lado


me veja. Em contraposição, repentinamente, passos passam a
figurar no cenário e a simples possibilidade eminente da existência
do Outro, não necessariamente presente fisicamente ali naquele
momento, passa a ser suficiente para escravizar e infestar aquele
sujeito praticante de uma atitude de observância por um sentimento
de insegurança, um estado vexatório, por isso a vergonha é uma das
primeiras inclinações nestas situações, o Outro é capaz de
neutralizar a minha ação e de torná-la algo sujo.
Além de roubar meu mundo, o Outro afeta meu ser, sua
influência direta ocasiona nele a mudança inevitável de
comportamento, de ação. Na interioridade da reflexividade a
característica da consciência, enquanto ser-Para-si, que é o que não
é e não é o que é, deixa de ocorrer quando se está na esfera do
alter-ego. Neste âmbito, acaba por emergir o eu, um ser definível,
um ser esquivado às definições de sua própria autoria, pois, é por
meio do ser-Para-outros, compreendido e sendo também possível
incluí-lo socialmente, que o eu é para o Outro e não para si mesmo.
Há em si certa perda de controle como um momento embaraçoso e
desagradável, pois lhe escapa do domínio toda tentativa de alteração
deste quadro, logo, a condição presente aos atos de alteridade
sempre será alienante, subsumindo-se poderes coercitivos e
neutralizadores da maneira como o ser-Para-outro vislumbra o meu
ser.
Se nos voltarmos ao texto sartriano, perceberemos o peso de
tal constatação, ou seja, “[...] o olhar é, antes de tudo, um
intermediário que remete de mim a mim mesmo” (SARTRE, 2011, p.
334). Minhas possibilidades também são mediadas a partir de uma
condição imposta, irremediavelmente, pelo Outro; seu atualismo
interfere na maneira como minhas ações, na medida da consciência
irrefletida, são observadas pelos sinais emitidos por ele, se observo
sua ação veloz em minha direção posso presumir que seu desejo
pode ser o de me assaltar, toda minha ação necessita
imediatamente de uma resposta visando a fuga ou o embate. De
qualquer modo, o exemplo simplório evidencia a presença do Outro
como determinante de minha escolha no espaço da facticidade e
para além dela. Seu olhar mantém certa ponderação sobre o meu
projeto de forma exclusiva. O fato de surgir a vergonha como
sentimento de profunda limpidez verossímil daquilo que sou naquele
momento também evidencia o dado de eu ser visto objetivamente
pelo Outro, como prova da presença real e possível interagindo na
minha história. Então,
116 A Ética em prática no ambiente escolar

em todo olhar, há uma aparição de um Outro objeto como presença


concreta e provável em meu campo perceptivo, e, por ocasião de
certas atitudes deste Outro, determino-me a captar meu “ser-visto”
pela vergonha, a angústia etc. Este “ser-visto” como a pura
probabilidade de que eu seja neste momento esse isto concreto –
probabilidade que só pode extrair seu sentido e sua natureza
mesmo de provável de uma certeza fundamental de que o Outro
está sempre presente a mim na medida em que sempre sou Para-
outro. (SARTRE, 2011, p. 360)

O ser-Para-si tem de ser, interinamente, corpo e consciência.


Sartre é enfático neste quesito; destacando a condição pela negativa
de uma concepção híbrida, a consciência não poderia se unir ao
corpo, mas ela o é integralmente. Assim, “o ser-Para-outro é todo
inteiro corpo; não há aqui ‘fenômenos psíquicos’ a serem unidos a
um corpo; nada há detrás do corpo. Mas o corpo é todo inteiro
‘psíquico’” (SARTRE, 2011, p. 388). É unicamente por meio de
minha consciência de ser visto pelo Outro que ele se torna motivo
para mim, é experimentado diretamente, neste momento meu ser é
objeto para um sujeito eminente de seu olhar fático. O corpo deve
ser analisado sob os auspícios de sua contingência indelével, ou
seja, não devemos buscar por um princípio metafísico visando o
surgimento e a justificação de uma totalidade, de um fundamento. A
dimensão do corpo põe ênfase na seguinte questão: ou sou objeto
para o Outro ou este se faz objeto para mim, esta manifestação só
pode ser apreendida por que o ser-Para-si o capta na forma de
corpo, a res extensa, aqui, impossibilita o aparecimento das duas
consciências às claras, sua comunicação em sentido pleno. Quando
a subjetividade é resgatada, o corpo deve ser concebido na sua
união à consciência de forma unificante. Preterindo a dicotomia,
assim como todos os atos da consciência, são também do corpo,
estão reunidos sob a corporeidade num segundo momento ao ato
psíquico; além do mais, o acesso à facticidade e à contingência só
pode ser mediado igualmente por meio do corpo, pois é também a
condição única pela qual posso ser vislumbrado enquanto ser-no-
mundo. O status do corpo, todavia, ganha densidade na perspectiva
do olhar do ser visto, o problema da intersubjetividade; do “ser visto”
emana toda teoria conflituosa, as relações estão em atrito constante
em vista, justamente, de ele apoderar-se do olhar. Esta propriedade
do corpo,

[...] deriva da análise do olhar: eu existo para mim como conhecido


por outro. Com a aparição do olhar do outro tenho a revelação do
Trabalhos completos 117

meu ser objeto, sou conhecido pelo outro como corpo. O olhar faz
com que se revele para mim a existência do meu corpo como um
exterior, como um em-si para o outro; minha facticidade é
objetivada, meu corpo é alienado. Na timidez, por exemplo, sinto-
me embaraçado pela minha realidade corpórea enquanto ela é para
o outro. (BORNHEIM, 1984, p. 99)

De qualquer forma, a preocupação sartriana procura não se


ater no embate filosófico em busca de provar ou não a existência
real do Outro, mas infinitamente evidenciar as circunstâncias de
ação de um determinado Outro dentro dos limites de minha própria e
única perspectiva subjetiva. Se voltarmos a atenção para o exemplo
do olhar reclinado na fechadura, ao ser tomado de vergonha e
angústia por ouvir passos no corredor com a proeminência de
alguém lhe perceber, exatamente naquela situação; e,
repentinamente, constatar não haver ninguém vindo ao seu
encontro, então notaremos que mesmo a presença irreal deste Outro
eu torna-se capaz de produzir na subjetividade tomada por objeto a
atuação vergonhosa de si mesma. O sentimento originado só pode
ser um reconhecimento no qual o Outro me vê e desta constatação
não há escapatória. De outro modo, o ser-Para-si assume a lacuna
da responsabilidade diante de tal configuração, como outorgante de
sentido e mesmo da originalidade do mundo em seu contexto, pois
pela sua negação o mundo torna-se possível e o estágio
transcendente de suas possibilidades e dos utensílios, – enquanto o
meio instrumental afeto ao sujeito na concretização do seu projeto,
como são enumeradas pelo autor – passam a compor o sentido e o
significado atribuído pelo indivíduo. Por tal motivo, o corpo vem
agregado na capilaridade constituinte do mundo. Não podendo ser
fundamento de si, por que há um nada potencialmente atuante e
nadificante, em seu âmago o corpo deve ser concebido no mesmo
nível do ser-Para-si, o corpo é

estrutura consciente de minha consciência [...] precisamente porque


é o ponto de vista sobre o qual não poderia haver ponto de vista,
não há, no plano da consciência irrefletida, consciência do corpo. O
corpo pertence, pois, às estruturas da consciência não tética (de) si.
(SARTRE, 2011, p. 416)

Conceitualmente, a corporeidade também pode ser declinada


de sua facticidade; ela carrega traços de meu passado, visto
comportar toda a história humana, unifica estes traços sempre
recorrentes entre o passado e o futuro e, mesmo a denominação do
118 A Ética em prática no ambiente escolar

circuito de ipseidade, não muito clara nos textos sartrianos, permite


remontar e analisar as relações entre o antes, o agora e o depois.
Essa condição corporal apresenta-se como ser-Em-si,
circunstancialmente eu sou, mas sem a necessidade exclusiva de
sê-lo. E por esta razão o corpo é “condição de fato de toda ação
possível sobre o mundo” (SARTRE, 2011, p. 413). Amplamente
possível, representa a totalidade das relações significantes com o
mundo, todo perfil reacionário torna-se possível por que a
constituição de seu ser é imbuída pela consciência-corporal. O corpo
sempre será a facticidade como transcendência-transcendida, além
do mais, o fato de eu captar este Outro como corpo é uma maneira
de tomar o meu corpo como certo centro de referência indicado pelo
Outro.
Para Sartre, o corpo não é apenas matéria ou figura inerte,
mas a consonância com a consciência deve ser vista como um todo;
aqui o homem não pode ser concebido de forma dicotômica, pois o
todo é o responsável por cometer a mais simples atividade, como
correr, dirigir, digitar um texto e assim por diante. O ser-Para-si é,
concomitantemente, corpo indiviso imbuído da consciência,
compreendendo uma unicidade unilateral, ele é todo psíquico. Por
essa razão, rejeita a ideia da consciência como algo separado do
corpo. Parece-nos evidente a particularidade de a consciência e o
corpo estarem dissociados, mas a indicação está fundamentada no
sentido de indicar o corpo como sabedor de sua ação,
exemplarmente, ao executar determinada música em um instrumento
musical, ao som orquestrado de uma bela melodia no arpejo de um
violão, ele sabe como fazer, não age mecanicamente ao estímulo de
uma consciência orquestrando sua maestria. Além disso, o corpo
sente quando um descuido pode lhe causar dor ou qualquer situação
perigosa, o corpo sempre será a profunda dimensão existencial da
própria consciência.
Assim, a consciência é toda difundida no corpo, o qual, por
sua vez, assume a característica de ser algo vivido, mas jamais
conhecido por mim mesmo, pois diante de meus olhos não está
compreendida a totalidade corporal. Há músculos, pele, ossos e
posso experimentá-los na medida da aplicabilidade de minha força
para carregar uma pedra muito pesada em um terreno íngreme, visto
haver nesta situação um teste profícuo de resistência do mundo e
das coisas. De qualquer forma, o corpo não é assimilado como prova
existencial dos objetos físicos, mas parece ocorrer, aqui, exatamente
o contrário; tais objetos fornecem dados para o conhecimento de
meu corpo. É por tal motivo que não conheceremos o corpo focando
Trabalhos completos 119

diretamente nele, mas nas condições materiais alocadas no tempo e


no espaço, pelos utensílios como forma de conhecimento sobre ele.
Ao remeter ao atualismo e à perspectiva do futuro no qual
está lançada incontornavelmente a condição humana, percebe-se a
atuação do corpo em tal âmbito – o corpo é o ponto de partida e o
meio pelo qual atinjo esta particularidade – o corpo é aquilo que sou
a partir do engajamento dos projetos possíveis. Uma vez que para
Sartre não há liberdade sem escolha, ou seja, a liberdade prefigura-
se como a experiência imprescindível de sua possibilidade
nadificadora de projetos em detrimento de outros ou de escolhas
significativas singulares, então o corpo contém intrinsecamente a
dimensão de tornar a consciência possível em sua própria liberdade,
isto é, na escolha. O corpo também é vislumbrado analogamente na
perspectiva do ser-Para-outro deparado com o eu pela denominação
sartriana de transcendência, irrompendo a singularidade da
subjetividade para algo que não si mesma, resultando na
constituição própria de significações e interesses para cada projeto.
Em todo caso, o Outro é feito objeto por mim a partir da
transcendência-transcendida. O corpo do Outro passa a ser
elucidado na gama infindável de objetos lançados no mundo e,
concomitantemente, cabe ao eu a possibilidade de enumerá-lo,
examiná-lo, analisá-lo, enfim, dimensioná-lo a partir do meu olhar.
No encontro com este estrangeiro, passo a ser visto e
avaliado como determinado objeto, conferindo a transcendência da
subjetividade para a objetividade passiva embora reflexiva ou o
sujeito propriamente dito. Acaba-se por perder a autonomia ou o
domínio sobre o corpo transcendido pela liberdade de outrem,
alienando-se dele. O exemplo da timidez parece nos ajudar a
elucidar por que nos alienamos de tal corpo. A pessoa tímida,
quando na companhia de outrem, apresenta alguns sinais deste
sentimento; inicialmente seu corpo não é concebido da maneira
como tal ela percebe, porém, sua preocupação está no limiar acerca
da reflexão alheia, o corpo insciente, se tratando de ser-Para-outro,
está fora de alcance. A tentativa de dominar é suplantada, pois, por
meio do Outro poderemos acessar nossa objetividade. “[...] existo
para mim como conhecido pelo Outro – em particular, na minha
própria facticidade. Existo para mim como conhecido pelo Outro a
título de corpo” (SARTRE, 2011, p. 441). Segue daí intermediado
por aquilo que passo a conhecer de meu corpo, por meio das
informações fornecidas e dispersadas pela condição inerente deste
Outro, instantaneamente, passo a atuar reflexivamente adotando o
ponto de vista alheio em relação ao meu corpo, passando a ser
120 A Ética em prática no ambiente escolar

captado como se eu fosse o Outro, voltando-se para si


objetivamente. Daí decorre que apreendemos o sentido único das
relações concretas com o Outro.

7.3 DAS RELAÇÕES CONCRETAS COM O OUTRO.

O tema das relações concretas nos auxilia na compreensão


das articulações da filosofia proposta por Sartre: sabemos que uma
consciência não pode ser vista como um objeto da forma de ser-Em-
si, ao menos neste viés, porém, unicamente como relação. A
consciência está sempre por se fazer, está sempre a caminho, a
seguir em frente no âmbito de suas preferências, exige o processo
seletivo e, nesse rol, a aspiração de possuir a liberdade do Outro
atua na base do meu ser, a prerrogativa de fascinar ou mesmo
seduzir o Outro, mesmo porque sou aquilo que apareço ao Outro.
Desse modo, estamos sempre reféns desse ser visto, os nossos
projetos convergem ao estado de simulacro no sentido de sermos
vistos como desejamos; assim, devemos o nosso ser a outrem. Em
si o sujeito quer reivindicar isso com o objetivo de absorver a
liberdade da outra pessoa deixando ainda livre o âmbito de sedução

[...] Se posso fazer o outro aceitar-me como o supremo em-si da


sua própria existência (dele ou dela), a liberdade do outro é
preservada, e minha própria facticidade não é ameaçada. Ao
mesmo tempo, não quero ser tão identificado comigo mesmo de
modo a que minha própria transcendência não possa nunca
emergir. Por isso, procuro defender minha própria subjetividade
enquanto o outro me vê como um objeto. Como sedutor, posando
de objeto, tento capturar a subjetividade do outro. (CRANSTON,
1966, p. 75)

Nas relações concretas ocorre exatamente desta maneira.


Pode-se iniciar a reflexão por aquele sentimento denominado por
amor. Amar outra pessoa significa o empreendimento do sujeito
tentando fazer a outra pessoa amá-lo, pela via do fascínio, do
encantamento. Desde logo, o sentimento está fadado ao fracasso,
mesmo por que a liberdade não pode ser possuída totalmente. Os
objetos podem ser assumidos por tal definição, mas um objeto não é
a base na busca pela fundamentação de meu ser. Na tentativa de
controle da liberdade do Outro, ela não pode ser submetida ao
domínio de outrem; poderá ser tomada de forma objetiva, mas não
como justificativa da negação da qual nos fala Sartre. A atitude
pretensa de possuir o Outro com a privação da liberdade é, assim,
Trabalhos completos 121

inútil. Porquanto, apenas as palavras não têm capacidade de


satisfação, por exemplo, nas juras de amor, há aí uma exigência em
troca do amor, toda atenção dispensada pelo amante é vã, visto que
se a ação não lograr êxito, todo esforço de cotejamento desabará no
fracasso, então toda sua ação é inútil. Como pano de fundo, o
interesse é possuir ou mesmo controlar o Outro de uma forma e de
outra permanecer livre. Em todo caso, no reconhecimento de minha
incapacidade de apreender a liberdade do Outro, o amor tende a
falhar. Por ora, o exemplo do desejo sexual é pertinente, pois a
tentativa no ato de possuir o Outro se dá pelo motivo de aniquilação
da consciência e, em seguida, do seu corpo, fracassa por que após a
realização do primeiro momento do desejo outro se repete e assim
sucessivamente por todo o tempo.
Por esta razão, tendo fracassado, o desejo sexual pode
conduzir ao sadismo, sempre na tentativa de trazer a si ou de
contrair a posse da outra consciência e de sua possível encarnação,
o objetivo do sádico não é apenas se servir do Outro como objeto,
mas como transcendência encarnada, o ato de torturar tem, por fim,
fazer regressar ao torturado fazendo reconhecer-se como carne
torturada. Obviamente, o sadismo acaba por falhar, pois não há
nenhuma maneira de capturar a consciência. A indiferença é outro
sentimento presente neste rol reflexivo. A razão sentimental tem por
intento escapar do olhar do Outro, sendo indiferente com outras
pessoas acaba-se por recusar o reconhecimento da subjetividade
alheia. É uma forma de cegueira negando o fato de que sou
observado por Outro. Já o ódio é a tentativa de supressão de outras
consciências, visa à extinção, ao aniquilamento totalizante, também
é igualmente fracassado por ser tentativa desesperadora de
apropriar-se do Outro por meio de sua morte, de seu desfalecimento,
embora o falecimento possa torna-lo em ser-Em-si, ainda assim,
jamais anulará o fato daquele indivíduo não ter existido. Atitudes
iniciais para com o Outro remetem à condição do amor, da
linguagem e mesmo do masoquismo. Todas as tentativas são
relativas ao desejo de posse do Outro, pois tais sentimentos visam
dirimir e controlar sua liberdade, motivo insustentável como se vê
nas razões apresentadas até então. Claro, poderá haver uma
privação momentânea, porém, a liberdade pode ser recuperada pelo
indivíduo a qualquer instante, por isso aqueles sentimentos sempre
fracassarão; de qualquer maneira,

se partirmos da revelação inicial do Outro como olhar, devemos


reconhecer que experimentamos nosso inapreensível ser-Para-
122 A Ética em prática no ambiente escolar

outro na forma de uma posse. Sou possuído pelo Outro; o olhar do


Outro modela meu corpo em sua nudez, causa seu nascer, o
esculpe, o produz como é, o vê como jamais o verei. (SARTRE,
2011, p. 454)

Voltando-nos ao amor, se ele se mostra como impossível, a


tendência do sujeito é ao masoquismo. O sentimento atualizado tem
uma exata relação ao surgimento da culpa no sentido de que a
queda e o retorno sobre mim representem minha alienação, também
é fracassado porque, quanto mais ele tenta desfrutar de sua
objetividade enquanto se vítima, a consciência de sua subjetividade
o infesta. O desejo parece ser a forma mais intensa na tentativa de
tocar a liberdade do Outro, faço dele um instrumento, um utensílio, a
sexualidade não deve ser compreendida no sentido exclusivo de
possessão corporal, ela transgrede a necessidade de apenas se
obter prazer. Ela tem um objeto transcendente, é retorno à sua
subjetividade, conscientização revelando meu corpo, não somente
na intersubjetividade, mas também se voltando para o eu. O desejo,
tão logo, deve fracassar igualmente às outras denominações na
esfera das relações concretas, se acaso o desejo findar com o
prazer representa a inação do próprio desejo, tem um limite, um fim,
porém, há processos anteriores responsáveis e ocasionadores do
princípio prazeroso, por exemplo, nas relações sexuais o carinho, as
carícias precedem o ato.
Diante deste panorama surge-nos um questionamento
inevitável: por qual razão se procura aniquilar a liberdade alheia?
Qual o motivo de ela apresentar-se como limite para o exercício de
nossa ação? A problematização surge significativamente, no entanto,
o enredo sartriano incita a refletir sobre a questão a partir de uma
perspectiva egoísta. Em todo caso, refere-se à pretensão de
validação de uma subjetividade empastada na sua solidão aspirando
à superioridade de forma sedenta em realizar todas as suas
vontades – no aspecto de manifestação livre sem sofrer a influência
taxativa de outrem, correspondendo à dimensão de apropriação da
liberdade de outrem. Para Sartre, a relação concreta visa o próprio
descobrimento, ele salienta,

[...] É diante do Outro que sou culpado. Culpado, em primeiro lugar,


quando, sob seu olhar, experimento minha alienação e minha nudez
como um caimento que devo assumir; este, o sentido do famoso
‘eles descobriram que estavam nus’ da Escritura. (SARTRE, 2011,
p. 508)
Trabalhos completos 123

Embora sejamos medidos por tal condição, na qual


encontramos o crivo alheio do olhar do Outro, ainda há um segundo
viés: o fato de ser sujeito compreende exclusivamente a capacidade
subjetiva, portentosa de decisão, de exercício pleno de sua liberdade
e, esta última característica parece ser o ponto crucial desta filosofia
denominada do existencialismo.

REFERÊNCIAS

BORNHEIM, Gerd A. Sartre: Metafísica e existencialismo. 2a ed.


São Paulo: Perspectiva, 1984.

CRANSTON, Maurice. Sartre. Trad. Octavio Alves Velho. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. Trad. Alcione Araújo e


Pedro Hussak. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

_____. O ser e o nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Trad.


Paulo Perdigão. 19ª ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

THODY, Philip. Sartre: uma introdução biográfica. Trad. Paulo


Perdigão e Amena Mayall. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1974.
124 A Ética em prática no ambiente escolar

= VIII =

BERGSON: INTUIÇÃO, MÉTODO E VERDADE

Adeilson Lobato Vilhena*


Claudinei Aparecido de Freitas da Silva**

RESUMO:
Bergson busca estabelecer uma relação estrita entre método e
conhecimento; para tanto propõe uma forma nova de pensar a
verdade, naquilo que ela tem de essencial. Sua proposta é o método
intuitivo, haja visto que é mediante esse método que a filosofia pode
ultrapassar as amarras da inteligência na qual a metafísica antiga,
até então, prendeu-se. Assim, o intelectualismo é posto de lado para
se proceder pelo método que não se contentasse, simplesmente,
com a análise e fragmento da verdade, mas que a buscasse em sua
inteireza.

PALAVRAS-CHAVE: Bergson; Intuição; Método.

Verdade e método no âmbito do conhecimento possuem uma


estreita relação. Indiscutivelmente, o método torna-se indispensável
para a difusão do saber, seja ele científico ou filosófico. Tal relação
deixou marca indelével na filosofia de Henri Bergson, principalmente
porque a verdade, segundo nosso autor, é inteiramente dependente
das condições em que é posto o método. No ver de Bergson, a
conduta metodológica da metafísica antiga é pouco confiável, uma
vez que o que ele busca é um ideal de precisão, mas isso parecia
não se sustentar no seio daquele método.
A questão do procedimento metodológico aparece, então, na
filosofia de Bergson, também como uma forma de resolver os
equívocos cometidos pela tradição filosófica, haja visto que eram
sustentados por um uso da linguagem pouco próprio para a difusão
da verdade. Franklin Silva nos alerta:

* UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná;


advilhena@yahoo.com.br
** Professor da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Trabalhos completos 125

A preocupação bergsoniana com o método filosófico passa


certamente pelo questionamento das relações entre as condições
metódicas do conhecimento e as respostas filosóficas aos
problemas que historicamente se propõem aos vários autores.
(SILVA, 1994, p. 29)

Percebe-se que há, por parte de Bergson, um exame


minucioso das condições em que um problema era apresentado. Ele
adverte que, ao se tratar um problema filosófico, o que deve ser
priorizado não é tanto a busca de sua solução, mas, sobretudo, como
é elaborado e apresentado: “Mas a verdade é que se trata, na
filosofia e mesmo alhures, de encontrar o problema e, por
conseguinte, de pô-lo, muito mais do que de resolvê-lo” (BERGSON,
2006a, p. 54, grifo do autor).
É notório, segundo o autor francês, que os equívocos
cometidos pela filosofia se deve a inversão dessa questão, pois havia
uma atenção maior para a solução do problema, antes mesmo de
descobri-lo; o que, claramente, pode ser visto como uma
incongruência; o que também esgotaria o verdadeiro sentido do
pensar filosófico. Para ele o método deve possibilitar a investigação
inicial do problema colocado, isto é, deve haver uma primazia da
questão em relação à antecipação dos resultados, desse modo
estaria em face à abertura da experiência real em sua totalidade.
Perante o panorama que perpassava a filosofia, Bergson vê a
necessidade de realizar uma restauração metodológica, para tanto,
era necessário assumir uma postura de recusa à posição
intelectualista de se sustentar uma possível verdade, assim, abriria
mão de um método que conduzia à fragmentação do saber, para
legitimar o conhecimento naquilo que fosse possível resgatar a
capacidade de se ter contato com o real.
Bergson, com a proposta de método, busca realizar uma
destruição das ilusões da inteligência que permeiam a história da
filosofia, isto é, a carga conceitual e abstrata, é vista por ele, como
uma crosta que esconde a verdade. Desvendá-la, torna-se uma
necessidade para o filósofo. Assim, o método bergsoniano, diríamos,
ocupa o papel de condução à raiz dos equívocos para, assim, fazer
nos depararmos com os falsos problemas e, consequentemente,
dissolvê-los em verdadeiras questões que tangem o real.
As severas críticas de Bergson acerca da posição
metodológica recaem também à ciência moderna, isso porque ela se
coloca como propagadora do método metafísico, equivocando-se
enquanto a diferença de natureza e grau: onde a questão é de
126 A Ética em prática no ambiente escolar

qualidade, compreende-se por quantidade; onde é sucessão afirma-


se como justaposição. O germe desses equívocos, uma vez
devidamente identificado (procedimento intelectivo), deveria ser
demolido.
A destruição enquanto qualidade do método, não assume
uma função extremamente excludente. Depurar os equívocos,
desintegrar o falso, equivale em constituir o verdadeiro. Também, de
modo algum serve de ponto de alerta na demarcação na esfera do
conhecimento como é visto em Kant. No autor francês os problemas
são dissolvidos, não simplesmente separados.
O dualismo sujeito-objeto perde sua tonalidade na concepção
begsoniana. Franklin L. Silva, deixa sua impressão acerca disso:

Na concepção bergsoniana do método supõe-se, pois, que a


verdade do conhecimento depende da adequação entendida como
certa homologia entre condições do conhecimento e objeto a
conhecer. Isto faz com que o correlato ontológico do método passe
a ser considerado de maneira diferente da filosofia tradicional.
Adequação não significará mais certa correlação entre a forma do
conhecimento (seja ela real como em Platão e Aristóteles ou lógica
como em Kant) e a estrutura do objeto, não importa se dependente
ou não do sujeito. (SILVA, 1994, p. 33-34)

Nesses termos, o método proposto por nosso filósofo é


unificador; as condições do conhecimento não estão restritas tão
somente ao sujeito detentor das formas de adequação, mas há uma
relação de simpatia entre o sujeito e objeto.
Diante do que foi exposto, surge a seguinte interpelação: visto
que Bergson é caracterizado como filósofo da liberdade,27 pelo fato
de abordar questões essencialmente inerentes ao acontecer vital:
fluidez, mobilidade, consciência e tempo enquanto duração,
confrontar essas realidades com um método de conhecimento, não
torna sua filosofia condicionada e mesmo mecânica, já que traz
inscrito em si a ideia de mediação? A preocupação de Bergson com
um método cognoscente não pode engessá-lo ao metodismo, sua
compreensão de método aponta para a inserção do pensamento no
âmbito mesmo da liberdade. Não se trata, portanto, de uma
mediação racional digna de análise, mas sim de um esforço ao nível
de consciência que possibilite o sentido de experiência vivida.
Método e rigor intelectual sempre andaram de mãos dadas;
Bergson, no entanto, tenta atribuir ao método de teor filosófico uma

27 Assim como teria dito seu aluno Péguy. Cf, MERLEAU-PONTY, 1991, p. 201.
Trabalhos completos 127

identidade nova. Diante disso cabe a pergunta: que procedimento


metódico escapa às amarras da inteligência? Deleuze nos dá uma
resposta enfática ao dizer que:

A intuição é o método bergsoniano. A intuição não é um sentimento


nem uma inspiração, uma simpatia confusa, mas um método
elaborado, e mesmo um dos mais elaborados métodos da filosofia.
(DELEUZE, 1999, p. 07, grifo do autor)

Dessa forma, via ao método intuitivo, Bergson acaba por


estreitar a relação entre investigação filosófica e veracidade do
conhecimento. Quando Deleuze atenta que se trata de um dos
métodos mais elaborados da filosofia é porque observa a
preocupação de Bergson para erigir seu pensamento. O próprio
Bergson teve o cuidado necessário para abordar essa questão:
“‘Intuição’ é, aliás, uma palavra frente a qual hesitamos longamente.
De todos os termos que designam um modo de conhecimento, ainda
é o mais apropriado” (BERGSON, 2006a, p. 27, grifo do autor).
Vemos Bergson frente a uma empreitada que tem por missão,
possibilitar uma experiência nova na filosofia. Experiência essa que
carrega o rigor metodológico como forma de não ser evasiva e que
escape das contradições possíveis do pensamento, mas que
também, não se limite, tão somente, aos parâmetros técnicos do
saber científico.
Fazendo alusão às posições metodológicas que sustentaram
os equívocos da filosofia, Bergson observa que existem duas formas
de se conhecer a realidade: uma é pela inteligência e outra pela
intuição. Uma permite, apenas, um conhecimento superficial e a
outra, um conhecimento mais profundo. “A primeira implica que se
dêem voltas ao redor dessa coisa; a segunda, que se entre nela”
(Idem, op. cit., p. 184). Tal distinção, de antemão, permite-nos
observar que a intuição é uma via consistente por onde deveria
enveredar a filosofia. Por ela a integridade do conhecimento é
restaurada, uma vez que nos possibilita o contato com o absoluto da
realidade a ser conhecida, visto que se trata de um conhecimento de
dentro e, não obstante olhá-la simplesmente de fora. Bergson deixa
claro que se trata de um ato de coincidência do pensamento com o
objeto, o que exclui qualquer possibilidade de um conhecimento
relativo, portanto, superficial.
Bergson efetiva o rompimento com o método que tem por
ferramenta a inteligência, visto que ela, naturalmente volta-se para a
matéria. Ali, realiza análise e articulações, difundindo um saber
128 A Ética em prática no ambiente escolar

superficial. “Analisar consiste, portanto, em exprimir uma coisa em


função daquilo que não é ela” (Idem, op. cit., p. 187), posiciona-se
Bergson. A análise, digamos ainda, assemelha-se a uma tradução
imperfeita, deixando muito aquém de sua originalidade o resultado aí
obtido. Não compete, portanto, a esse método transmitir o real no
que ele tem de próprio, uma vez que, tão somente, manipula e
fragmenta o conhecimento.
A intuição é, assim, o método que Bergson recomenda aos
filósofos. Diferente de uma visão parcial, a intuição possibilita o
contato com a realidade tal como ela é em si, haja visto que intuir é
conhecer, ou seja, é afirmar como as coisas realmente são; não se
tratando, enfim, de rondar, tão simplesmente, a realidade; mas, sim,
de adentrar nela e perceber como realmente é em sua mobilidade
constante. Nessa perspectiva, Bergson confere à intuição um
estatuto ontológico privilegiado: ela possibilita o acesso ao real.
Trata-se, no fundo, de nos inserir no próprio fluxo da vida, na fluidez
real do tempo como duração. Frisa Bergson: “Desse modo, nós nos
reinstalaríamos no fluxo da vida interior, do qual a filosofia com muita
frequência não nos parecia reter mais que o congelamento
superficial” (Idem, op. cit., p. 22).
A vida interior será, no entanto, a primeira visada da intuição;
aliás, é ali que se opera o retorno à realidade concreta. A experiência
do imediato, assim, dá-se, primeiramente, em um plano subjetivo, já
que é o contato conosco mesmos que tal experiência proporciona.
Em seu Ensaio, Bergson se propõe em dissipar a confusão
estabelecida pelos parâmetros científicos que tinham como
pretensão exteriorizar o domínio da liberdade, isto é, a consciência.
As questões levantadas pelo filósofo francês são genuinamente
ontológicas, já que ele preconiza a ideia da experiência mesma
naquele campo. Assim, o que requer Bergson é que um olhar atento
às vivências interiores seja priorizado. Dessa forma, nos diz Tsukada
(1995, p.38):

A intuição opõe-se às doutrinas provenientes da inteligência [...]. E


essas doutrinas são o determinismo, o paralelismo psicofisiológico,
o mecanismo e o finalismo radical no evolucionismo, ideia do nada
e de desordem.28

28L’intuition oppose aux doctrines issues de l’intelligence [...] Et ces doctrines sont le
déterminisme, le parallélisme psychophysiologique, le mécanisme et le finalisme
radical dans l’évolutionisme, l’idée de néant et de désordre. Tradução nossa.
Trabalhos completos 129

Isso porque elas obstruíam com conceitos intelectuais o


campo de tais vivências ou, melhor, deformavam a realidade em sua
essência em favor do espaço.
Bergson está preocupado em fazer ver, via intuição, os graus
mais profundos da consciência; quer que a alma se mostre como é
em si, para tanto, não hesitou em se posicionar contra o
determinismo psicológico que buscava, constantemente, ornamentá-
la de fragmentos provenientes do campo sensível.
O sentido de uma experiência real em Bergson, portanto,
aparecerá mediante a demolição dos entraves metodológicos, por ele
encontrados nas ciências psicológicas; o que nos leva a concluir que
uma psicologia que se limita em um procedimento aos moldes da
linguagem, está longe de possibilitar uma experiência fenomênica da
realidade interior.
Não é aleatório o embate de Bergson com os paradigmas
psicológicos de orientação positivista e associacionista. A psicologia
“é tão-somente uma abertura à ontologia, trampolim para uma
‘instalação’ no Ser” (DELEUZE, p. 60. Grifo do autor), referencia
Deleuze. Dessa mesma forma, Bergson pensa um conhecimento,
originalmente, metafísico aquele que busque as essências das
coisas e a psicologia, uma vez germinada pela metafísica, deveria
acercar-se dos fenômenos reais, sem serem interpolados pelo
pensamento.
Portanto, um retorno à experiência mesma das coisas é
operado, primeiramente, em Bergson, por um viés psicológico; não
no sentido estrito de uma psicologia técnica, de um psicologismo que
põem em risco o sentido vivo do que se apresenta no interior da
consciência. A relação de Bergson com a psicologia é descrita de
uma forma coesa por Diamantino Martins (1946, p. VIII): “A descida
bergsoniana às profundidades psicológicas não se opera através de
convulsões violentas, mas de sondagens friamente analisadas,
fenomenologicamente”.
O caminho para pensar as realidades da consciência é,
portanto, o intuitivo. Uma psicologia filosófica essencialmente
intuitiva é, no pensar de Bergson, a que possibilita a abertura para o
real, o caminho para nos instalar no interior do ser e vivenciá-lo em
sua inteireza. Tratar-se-ia de coincidir com os fenômenos reais da
consciência. Dessa forma, é possível pensar em um traço
fenomenológico na filosofia de Bergson, já que as realidades que se
passam no interior da consciência devem ser vividas,
experimentadas naquilo que elas possuem de próprio: o tempo,
duração e movimento. Realidades, essas, que são puros
130 A Ética em prática no ambiente escolar

acontecimentos, possibilidades reais que jorram em um rio de


liberdade.
O estatuto ontológico da intuição estreita-se com o significado
de experiência, isto é, para se efetivar a experiência real é
necessário ultrapassar o campo da aparência. O campo da visão
intelectual. Nos diz Bergson: “Desfazendo o que essas necessidades
fizeram, restabeleceríamos a intuição em sua pureza primeira e
retomaríamos contato com o real” (BERGSON, 2006b, p. 215-216).
Deleuze (1999, p. 18) acrescenta: “A intuição nos leva a ultrapassar
o estado da experiência em direção às condições da experiência”. No
sentido bergsoniano, a experiência encontra-se em uma
profundidade ontológica, haja visto que é perpassando o interesse da
razão especuladora que o contato com o real se torna possível.
Novamente Bergson nos diz: “Seria ir buscar a experiência em sua
fonte, ou melhor, acima dessa virada decisiva em que ela, infletindo-
se no sentido de nossa utilidade, torna-se propriamente experiência
humana” (BERGSON, 2006b, p. 215. Grifo do autor).

REFERÊNCIAS

BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da


consciência. Tradução de João S. Gama. Lisboa: Edições 70, 1988.

_____. Matéria e Memória. Tradução. Paulo Neves. São Paulo:


Martins Fontes, 2006b.

_____. O pensamento e o movente: ensaios e conferências.


Tradução de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006a.

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução. Luiz B. L. Orlandi. São


Paulo: Editora 34, 1999.

MARTINS, Diamantino. Bergson: a intuição como método na


metafísica. Porto, Livraria Tavares Martins, 1946.

MERLEAU-PONTY, M. Signos. Tradução. Maria E. Galvão Gomes


Pereira. São Paulo: Martins Fontes 1991.

SILVA, F. L. Bergson: intuição e discurso filosófico. São Paulo:


Loyola, 1994.
Trabalhos completos 131

TSUKADA, S. L’immédiat chez H. Bergson et G. Marcel. Louvain:


Editions de l’Institut Supérieur de Philosophie,1995.
132 A Ética em prática no ambiente escolar

= IX =

CRIADOR E CRIAÇÃO/ETERNIDADE E TEMPO:


SOBRE DIFERENÇA ONTOLÓGICA NAS CONFISSÕES DE
AGOSTINHO

Andressa dos Santos Cizini*


Roberto S. Kahlmeyer-Mertens**

RESUMO:
Entre as principais obras de Agostinho está a Confissões, longa
meditação que busca colocar a nu suas vivências, narrando seus
acertos e erros, com intuito de confessar-se a si mesmo, em face de
Deus e perante aos homens. Em forma de relato, o filósofo aborda,
ali, seu passado, presente e futuro, naquele instante em que se
confessa. Nota-se, aqui, que tanto a ideia de relato quanto a de
confissões em Agostinho, possuem clara relação com o tempo. As
confissões deixam patente como os fatos de sua existência se
mostram no sentido de um passado, um presente e um futuro. Isso
servirá de caminho ao nosso autor a fim de ressaltar o conceito de
tempo, a partir da obra Confissões. Abordar este problema inicial,
intrínseco tanto para a filosofia quanto para a teologia agostinianas,
implicará a apresentação de noções que trazem subsídios a este
conceito. Entre elas, a temporalidade e a eternidade; o Criador e a
criatura; o tempo (que sofre mudanças) e o eterno (que é imutável).
A consideração desses conceitos e sua distinção serão de suma
importância para a caracterização do tema do tempo à luz da
diferença ontológica, como pode ser entrevista na obra de Agostinho
e como será explorada por nós aqui.

PALAVRAS-CHAVE: Agostinho; Confissões; diferença ontológica;


tempo; Criador e criatura.

* UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná,


andressa.cizini@hotmail.com
** Professor da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Trabalhos completos 133

9.1 INTRODUÇÃO

Santo Agostinho29 foi um pensador da antiguidade tardia que


contribuiu de forma significativa para a filosofia (neoplatonismo) e
teologia (patrística) de sua época. Seu pensamento, ao fim e ao
cabo, destaca-se por influenciar o Ocidente e boa parte de seus
escritos filosóficos merecem a atenção das gerações posteriores por
serem dedicados a temas ontológicos como é o caso da questão do
tempo. Sobre o fenômeno do tempo (presente na obra Confissões,
com destaque nos livros X e XI), Agostinho meditará acerca dos fatos
relacionados ao passado, ao presente e ao futuro, com o intuito de
confessar-se a si, em face de Deus e perante aos homens. Este
caminho percorrido em sua obra terá relação direta com o tempo
(MARROU, s.d.).
Tal experiência é de suma importância, pois, na medida em
que se confessa, Agostinho vivencia, naquele momento presente,
todo o seu passado no presente. Para tocar, mais especificamente,
na questão do tempo, nos referidos livros, Agostinho ressalta a
diferença ontológica entre criatura e Criador. Esta diferença é
fundamental, pois permite aos homens (na condição de criaturas)
vivenciarem o tempo em suas três “ekstases” (passado, presente e
futuro) desde o momento presente, este no qual Agostinho retrata um
tempo que remete a mudanças temporais. Portanto, Deus seria o
princípio fundamental por estar no âmbito do Criador que proporciona
a compreensão dos entes criados, sem se confundir com essas
criaturas. Como também teremos oportunidade de mostrar, Deus
pertence à eternidade imutável enquanto as criaturas são temporais
(ou seja, estão no curso do tempo). Essas relações servirão de
suporte para uma investigação desta diferença ontológica entre
criatura e Criador (isto é, entes e seu fundamento), na qual toda a
discussão será orientada pela diferença entre a eternidade e o tempo
a fim de ressaltar que essa diferença faz com que o homem,
enquanto criatura, possa compreender sua finitude em face do
Criador.

29 Santo Agostinho nasceu em Tagaste, norte da África, estima-se que em 13 de


novembro de 354. Seu pensamento marcou o final da Idade Antiga e a transição à
Era Medieval. Considerado o filósofo mais crente entre os medievais, Agostinho
nunca chegou a propor uma prova de existência de Deus (como propuseram
Anselmo e Tomás de Aquino), uma vez que parecia já estar convencido da evidência
do Mesmo enquanto um princípio teológico fundamental. Veja-se mais sobre a
biografia de Agostinho na admirável obra de Brown (2005). Cf. Referências
Bibliográficas.
134 A Ética em prática no ambiente escolar

9.2 CRIADOR E CRIATURA, ELEMENTOS PARA SE PENSAR O


TEMPO

Num primeiro momento, Agostinho deixa bem claro a


diferença entre criatura e criador. Para o Santo de Hipona: “[...]
existimos por que somos criados; mas não existíamos antes de
existir, portanto não podíamos ter criado a nós mesmos”
(AGOSTINHO, 1997, p. 333). Devido a isso, tudo indica que há um
criador, pelo qual todas as criaturas foram criadas; que se encontra
no âmbito divino, o qual não se confunde com as criaturas terrenas.
Assim, pode-se afirmar que toda e qualquer criatura só existe devido
a uma vontade divina; e esta mesma vontade permite que uma
criatura específica possa compreender as demais. Essa criatura que
compreende a si e aos demais entes é o homem. Ora, se isso já
torna possível distinguirmos o que faz o homem diferente dos demais
entes, caberia ainda perguntar: Mas o que é de essencial no homem
que faz diferente do seu criador?
Essa questão é importante, pois, ao que tudo indica, “[...] o
tempo começou com a criação” (AGOSTINHO, 1997, p. 341); por
isso podemos afirmar que o tempo é condição tão somente da
criatura, na qual se pode experimentar e vivenciar as coisas
temporais já em um registro de tempo. Com vistas a isso, nos diz
Agostinho:

[...] Que tempo poderia existir, se não fosse estabelecido por ti? E
como poderia existir, esse tempo transcorrer, se nunca tivesse
existido? Portanto, sendo tu o criador de todos os tempos – se é
que existiu algum tempo antes da criação do céu e da terra – como
se pode dizer que cessavas de agir? De fato, foste tu que criaste o
próprio tempo, e ele não poderia decorrer antes de o criares [...].
(AGOSTINHO, 1997, p. 341)

O tempo, segundo Agostinho, remete sempre à criatura e,


este, só é possível vivenciar, pois pertence à criação de Deus.
Sendo também o tempo uma criação, sua existência está no
âmbito das criaturas, pois o tempo é o movimento dos entes e,
portanto, também ele muda. Para Agostinho o tempo é sempre
experimentado no presente, ainda que no instante presente o
homem experimente seu passado e seu futuro, não por acaso o
confessar-se, que se dá em tempo presente, revela-me essas três
dimensões de tempo (presente, passado e futuro) (KNUUTTILA,
2016). Segundo Agostinho “seria talvez mais justo dizer que os
Trabalhos completos 135

tempos são três, isto é, o presente dos fatos passados, o


presente dos fatos presentes, o presente dos fatos futuros”
(AGOSTINHO, 1997, p. 349). Mas como podemos experimentar o
tempo no passado, o qual já se passou, e o futuro que ainda não
existe? Disserta Agostinho:

[...] Se o futuro e passado existem, quero saber onde estão. Se


ainda não consigo compreender, todavia sei que, onde quer que
estejam, não serão futuro nem passado, mas presente. Se aí
fosse futuro, não existiria ainda; e se fosse passado, já não
existiria. Por conseguinte, em qualquer parte onde estiverem,
seja o que for, não podem existir senão no presente. Quando
narramos os acontecimentos passados, que são verdadeiros,
nós os tiramos da memória. [...]. Minha infância, que não existe
mais, está no passado, que também não mais existe. Mas a
imagem dela, quando a evoco e é objeto de alguma conversa,
eu a vejo no presente, por que está ainda na minha memória.
[...] quando empreendemos e começamos a realizar o que
premeditávamos, então esse ato existirá, pois não será mais
futuro, e sim presente. (AGOSTINHO, 1997, p. 347)

Como Agostinho nos mostra, é por meio da nossa


lembrança que podemos acessar o tempo, tempo este que só é
possível experimentar por meio da memória. A memória é um
fator importantíssimo para esse filósofo medieval, pois remete às
três condições de tempo. O tempo é o ordenador da memória e
está presente em sua ação na medida em que vivenciou o
momento presente de um objeto, exemplo disso é quando
recordamos algo que aconteceu na nossa infância (FILHO, 2007).
Podemos lembrar-nos de momentos de tristeza, alegria,
sofrimento, algo que realmente nos marcou, e por isso se tornam
presentes em nossa memória. Este “lembrar” constitui o ser.
Sendo o tempo o movimento da criatura que, por meio do
tempo presente, pode recordar-se de lembranças que já teve no
passado e o futuro antecipar o que será, no momento presente,
cabe ao momento preparar essas três dimensões de tempo, a fim
de prepará-las no instante presente. Diante disso, podemos
questionar: se o tempo é algo que sofre mudanças conforme seu
movimento e é o que há de essencial no homem, o que seria a
condição do Criador?
Essa questão, sem dúvida alguma, remete-nos à
eternidade, pois, para Agostinho, Deus se encontra na infinidade,
na qual o tempo não atua promovendo mudanças. A eternidade
136 A Ética em prática no ambiente escolar

pertence, assim, à ordem do Criador e é considerado como o


“verbo eterno”, aquilo que não tem fim, eternidade significa então
aquilo que não tem tempo, que permanece imutável; esta
condição de eternidade permite ao Criador uma diferença
ontológica fundamental referente às suas criações. Isso pode ser
sustentado por meio da interpretação de Costa (2013), quando o
comentador ressalta que:

Este mundo não é coeterno com Deus, por que este mundo não
é da mesma eternidade que Deus [...] Não são eternos os
tempos como Deus é eterno; porque Deus, criador dos tempos,
existe antes do tempo. (P. 55)

Deus, como fundamento de todas as criaturas, permite ao


homem uma compreensão de sua condição de ente. O fato de
“compreender” faz com que o ente criatura (ser) tenha uma
diferença das demais criaturas. O homem é o único ente que
pode compreender essa distinção referente à criatura e o Criador;
e reconhece ser uma figura inferior, ou seja, Agostinho
compreende como criatura a sua tamanha pequenez diante do
seu criador (BRACHTENDORF, 2012).

9.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo o que foi apresentado até aqui, podemos


concluir que Deus, para Agostinho, é o princípio ontológico
fundamental por proporcionar uma compreensão do ser; o homem,
por sua vez, é único ente que pode perguntar sobre os demais entes
e também tem a compreensão do fundamento do todo que é Deus.
Só esse fundamento pode, de fato, fazer com que as criaturas se
compreendam como tal devido a sua condição de finitude e
temporalidade. Somente Deus está no domínio onde o tempo não
arrebata; por isso não se confunde com a criatura. Toda criatura tem
princípio e fim; e durante sua transição passou por mudanças que
pertence à condição temporal. A mudança pela qual sofre o tempo se
refere sempre às criaturas. Já a eternidade do criador será sempre
presente; não há mudança temporal.

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. Maria Luiza Jardim


Amarante. São Paulo: Paulus,1997.
Trabalhos completos 137

______. A Doutrina Cristã. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo:


Paulus, 2002.

BROWN, Peter. Santo Agostinho: Uma Biografia. Trad. Vera


Ribeiro. Record: Rio de Janeiro; São Paulo, 2005.

BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho. Trad.


Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2012.

COSTA, M. R. N. 10 lições sobre Santo Agostinho. 3 ed.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

FILHO, Moacyr Ayres Novaes. O tempo como enigma. In: A razão


em seu exercício: Estudos sobre a filosofia de Agostinho. São
Paulo: Discurso Editorial, 2007, p. 253-288.

MARROU, Henri. Santo Agostinho e o agostinismo. Trad. Ruy


Flores Lopes. Col. Mestres Espirituais. s.ed.; s.l.; s.d.

KNUUTTILA, Simo. Tempo e criação em Agostinho. In: Agostinho.


(Org.) David Vincent Meconi; Eleonore Stump. São Paulo: Ideias &
Letras, 2016, p. 113-130. [Cambridge Companion to Augustine]
138 A Ética em prática no ambiente escolar

=X=

DE REPENTE UM AÍ
UMA RELEITURA DA FACTICIDADE HEIDEGGERIANA AOS
MOLDES DA FIGURAÇÃO MÍTICO-POÉTICO-RELIGIOSA

Ezildo Antunes*
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens**

RESUMO:
Ao recorrermos ao texto de Ser e Tempo, encontramos,
especificamente no § 29, como título sugestivo “A constituição
existencial do aí”. Esse aí se configura como o aí, isto é, a facticidade
do ser-aí enquanto ser-no-mundo. O existencial possibilitador da
experiência da facticidade é exatamente as tonalidades afetivas e
sua relação com a afinação. O que propomos aqui é uma releitura da
facticidade, até então, possível através das tonalidades afetivas, a
partir de uma perspectiva mítico-poético-religiosa aos moldes do que
é apresentado no livro do Gênesis, a saber, a engenhosa e
manipuladora voz da ‘serpente’ para que a primeira mulher coma o
fruto proibido. Isso possui uma relação direta com reflexão
heideggeriana a partir de sua exposição do conceito de “homem” na
tradição bíblica, no § 4 de sua obra Ontologia – Hermenêutica da
Facticidade.

PALAVRAS-CHAVE: Facticidade; aí; figuração mítico-poético-


religiosa.

Dentro do projeto filosófico da chamada analítica existencial,


Heidegger (1889-1976) opta por um único ente privilegiando dentre
todos os outros e atribui e este ente privilegiado a possibilidade de
questionar o sentido do ser. Este ente privilegiado, por ele descrito, é
o ser-aí. Mas ‘quem’ é o ser-aí? Como ele se configura? É Heidegger
mesmo que responde esse questionamento quando escreve:
“Designamos com o termo ser-aí30 esse ente que cada um de nós

* Unioeste – Universidade Estadual do Oeste do Paraná,


ezildo.antunes@yahoo.com.br
** Professor da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
30 O termo utilizado já de início ser-aí é uma derivação conceitual aplicada ao termo

original de Heidegger: Dasein. No texto desse trabalho vai se utilizar o termo ser-aí
Trabalhos completos 139

mesmos somos e que, entre outras coisas, possui em seu ser a


possibilidade de questionar” (p. 42-43).
Diante dessa designação e enfatizando os termos ‘nós
mesmos somos’, pode-se dizer que o ente privilegiado proposto por
Heidegger é mesmo o ‘homem’, embora Heidegger por várias vezes
evite o uso dos termos homem, humano, vida... para falar da
‘essência’ desse ente que é sua própria existência. Isso fica mais
claro quando lemos em Ontologia - Hermenêutica da Facticidade, na
qual Heidegger (2013) escreve: “Na determinação indicativa que
fizemos do tema da hermenêutica, ou seja, da facticidade = nosso
ser-aí próprio em cada caso, foram evitadas inicialmente expressões
como ser-aí ‘humano’ ou ‘ser do homem’” (p. 28).
Segundo a caracterização desse ente, ele é constituído por
várias estruturas chamadas de existenciais que vão formar o todo de
sua existencialidade. Isso significa dizer que a partir da existência
que como já assinalamos antes é a ‘determinação ontológica
exclusiva do ser-aí’, isto é, ‘A “essência” do ser-aí [...]’, este se
movimenta permeado sempre de múltiplas estruturas, múltiplos
existenciais.
Um destes existenciais é, exatamente, a constituição desse
ente como ser-no-mundo. Ser-no-mundo (escrito de forma hifenada)
indica uma unidade desse (ser-aí) com o mundo; tendo em vista que
Heidegger propõe um novo conceito de mundo, isto é, afastando-se
da tradição, mundo não é o que o sujeito constata por meio de
representação; ou seja, mundo não é mera apreensão de algo
externo ao ser-aí. No entanto, para que se haja existência é
necessário sim um mundo, pois seria pouco provável pensar um ente
constituído de existência sem mundo. Portanto, cada ser-aí é a partir
do mundo que é dele, isto é, ser-aí não pode existir sem sua
dimensão locativa: o aí.
O que ocorre, na maioria das vezes, é que o ser-aí não
consegue, de primeira mão, realizar o descerramento do mundo
enquanto tal, isto é, o ser-aí não capta a mundaneidade do mundo,
ou seja, a estrutura ontológica do mundo. Por que isso acontece?
Por que o primeiro comportamento do ser-aí é a partir de diversos
modos de ocupação; é de distrair-se diante do uso que faz dos mais
diversos utensílios que estão postados em sua circunvisão. Além das
mais variadas lidas que este trava com os utensílios, ser-aí também
possui a caracterização de ser-com, no sentido de estar junto aos

mesmo nas citações retiradas da tradução brasileira de Sein und Zeit (Ser e tempo)
realizada por Márcia Sá Cavalcante Schuback .
140 A Ética em prática no ambiente escolar

outros que se configuram igualmente a ele, a saber, o outro ser-aí.


Essa ‘convivência’ com o outro implica duas questões relevantes
para o ser-aí: em primeiro lugar, o ser-aí vai tecer sempre uma
relação de preocupação com o outro no sentido de cuidar ou afastar-
se do outro. Em segundo lugar o ser-aí é segundo o que os outros
são, isto é, o si-mesmo do ser-aí passa a ser o impessoalmente-si-
mesmo, ou seja, ser-aí passa a experimentar a determinação
ditatorial do impessoal.
Desta maneira, podemos dizer que o ser-aí então está fadado
a permanecer na confortante lida com os utensílios e existir sempre
na impropriedade, assim como também não conseguir desvencilhar-
se da força tutelar que o impessoal lhe impõe e dessa maneira existir
de forma inautêntica? Não! Como muito bem escreve Kahlmeyer-
Mertens (2015): “[...] impropriedade significa um não próprio e não a
negação da existência possível” (p. 94). Isso quer dizer que, trazendo
outra estrutura ontológica do ser-aí: ente-de-poder-ser, ser-aí, pode
sim como ente de possibilidades que é, buscar a partir do mundo que
é dele novos projetos de sentido. Mas como ele realizaria isso? Qual
caminho tomaria o ser-aí para ‘resgatar’ o seu si-mesmo ‘perdido’,
em certo sentido, em sua cotidianidade mediana?
Diante das questões acima suscitadas, pode-se dizer que
mesmo que ser-aí não possa existir sem um mundo onde tudo se dá,
não significa dizer que não possa realizar uma experiência de, como
escreve Kahlmeyer-Mertens (2015): “(...) distanciamento das
operações requisitantes do mesmo e das operações consolidadas,
livrando-se, assim, dos influxos da cotidianidade mediana” (p. 96).
Portanto, será necessário agora procurar, na esfera ontológica das
múltiplas estruturas do ser-aí, qual delas poderia ser aquela que
pudesse auxiliá-lo na empreitada de encontrar-se no mundo,
recuperando, assim, seu caráter de propriedade.
Segundo o que se pode ler no texto de Nunes (2012), são
“(...) três dimensões igualmente originárias da abertura: a disposição
(Befindlichkeit), o compreender (Verstehen) e o discurso (Rede) (...)”
(p. 98). Das três dimensões indicadas por Nunes e seguindo a
mesma linha de pensamento desse autor, a primeira delas, isto é, a
disposição31, é a que pode genuinamente indicar a maneira pela qual
o ser-aí é aberto ao mundo.

31Escrevemos aqui seguindo a linha de pensamento do autor citado acima, mesmo


que em alguns textos de outros comentadores da obra heideggeriana, seja
defendido que ser-aí é no mundo a partir de um modo compreensivo-afetivo, isto é, o
compreender vige adjunto à afinação.
Trabalhos completos 141

A disposição é o modo pelo qual o ser-aí se vê afinado com o


mundo, isto é, é o modo que este é afetado sempre por uma
tonalidade afetiva (Stimmung) que designa o modo com o qual ser-aí
se encontra no mundo. Encontrar-se no mundo não é, como já
explicamos antes, uma mera constatação gnosiológica entre sujeito
cognoscente e mundo externo, mas é, antes de tudo, entrar em
contato com a própria facticidade, isto é, experimentar o caráter de
estar-lançado. Portanto, tal experiência leva o ser-aí a compreender
que ele só pode ser a partir de um mundo que é dele, ou seja, ser-aí
só pode movimentar-se em um aí no qual ele fora lançado. Não há
neste sentido a possibilidade de escolha do próprio ser-aí sobre o
seu aí, não há força de decisão anterior ao seu lançamento, ou seja,
ser-aí não lança a si mesmo, é lançando. O fato de “que é” e o “ter
de ser” em determinado aí independe da escolha ou decisão do ser-
aí e por isso mesmo este não é fundamento de si mesmo.
Encontrar-se em determinada tonalidade afetiva é entrar em
contato com a própria responsabilidade em ter que ser, a partir da
sedimentação fática imposta pelo aí ao qual ele foi lançado. Como
explica Casanova (2009), “Há muitas coisas que o ser-aí pode fazer
como ser no mundo que ele é, mas ele não pode não se realizar a
partir de um modo específico de se encontrar no mundo” (p. 107). Eis
aí o primeiro modo32 de abertura do ser-aí através da compreensão,
qual seja, o caráter de estar-lançado, isto é, assumir-se na
facticidade.
Assim e bem incipientemente, apresentamos a forma com
que Heidegger pensa a constatação do ser-aí de sua experiência, a
qual também é um traço constitutivo do ser-no-mundo, isto é, a de
estar-lançado ou jogado (Geworfenheit) em um aí. Isto é, a
facticidade do ser-aí é revelada através da disposição em que ser-aí
se encontra, de certo modo, a partir do mundo fático que é o dele.
A partir da exposição acima, podemos agora indicar uma
possibilidade para além do viés fenomenológico e tentar caracterizar
o aí (mundo fático do ser-aí) através da figuração mítico-poético-
religiosa. Para isso, declamemos o seguinte:

Estavam eles tão passivamente dispersos e distraídos com o ato do


Criador e eis que de repente surge uma voz inebriante e sagaz que
disse:

32 Existem outros dois modos de abertura descritos por Heidegger em Ser e Tempo,
especificamente no § 29, quais sejam: “a abertura do ser-no-mundo em sua
totalidade e ainda a abertura em que o mundo do que já se abriu deixa e faz com
que o ente intramundano venha ao encontro.” (p.196).
142 A Ética em prática no ambiente escolar

__ Coma deste fruto!


De início, a mulher disse, não! E retrucou: __ Estamos em total
conforto e abundância do todo. Não carecemos desta fruta!
Mas a voz insistiu:
___ Comais já deste fruto e sentirás que o seu humor vítreo te
esconde algo muito mais sublime do que agora vês.
A mulher, então, em sua cuidadosa intuição e perspicaz
desejo indagou:
___ Algo mais sublime? O que pode ser mais sublime do que a
doçura da obediência e a certeza da vida?
A voz investiu de vez - pois quando se pergunta por algo é
dado o primeiro passo pelo interesse completo!
___ Doçura?! Você mulher não sabe mesmo de doçura! O doce
dessa fruta contém o doce mais saboroso de todos os sabores dos
doces.

A mulher impetuosa e com a curiosidade exalando, com a


pele inteira enrubescida esticou as veias dos braços e num ato quase
encantado, com as duas mãos estendidas tomou para si aquela fruta
e usando mesmo seus sentidos, sentidos perfeitos do criador, fez
estalar os dentes naquela fruta maçuda, naquela fruta carnuda, foi
quase um ato de amor.
O homem por sua vez estava ali extasiado, bem
descompromissado, nu sem ter o que fazer. Mas de repente em um
toque, sentiu a mulher chegar e quando ele pôs-se a olhar, olhou-a
bem diferente, com aquela fruta nos dentes mordia cada vez mais, e
sem perguntar por nada, se viu por ela abraçado, quisera ter
recusado, mas tempo não dava mais. Então também desejoso, talvez
até corajoso mordeu a fruta de fato. Sentiu o doce sabor, contava as
mastigadas e a mulher nele abraçada dizia somos um par.
Então queriam mais fruta, mas a voz que era astuta disse
daquela já não tem mais. De fato, não tinha mesmo, pois bastava
uma delas, era fato consumado e os dois desconfiados viram algo
diferente, seus rostos estavam quentes, sentiram o húmus da terra e
como se numa guerra sentiram tanta vergonha, mas claro ninguém
se oponha, pois nesta cena medonha eis que de repente um aí.
Por fim, após essa aproximação ou não de fenomenologia e
mito-bíblico, podemos indicar pelo menos três temas para o debate:
(1º) Partindo da frase bíblica: “Então abriram-se os olhos dos
dois, e eles perceberam que estavam nus” (p. 16). O ato simbólico de
abrir os olhos pode ser aproximado de uma abertura de mundo
enquanto tema fenomenológico?
Trabalhos completos 143

(2º) Homem e mulher bíblicos são criados e aí postados. O


ato de criação adere a si os atos de proteção, tutela (imposição
numinosa ‘sobreaviso’) e por isso mesmo falta aos personagens
bíblicos possibilidade e liberdade? E isso pode estar relacionado com
o estar-lançado, o caráter de jogado e que por isso mesmo indica ao
mesmo tempo a dura responsabilidade em ter que ser e
possibilidades múltiplas?
3º) O aí narrado acima (se este realmente se constitui) em
que medida se aproxima de facticidade já que os dois parecem
indicar constatação de mundo enquanto tal?
São essas, a meu ver, questões suscitadas a partir do que foi
apresentado acima. Não objetivamos aqui respondê-las, mas elencá-
las como aprofundamento temático possível.

REFERÊNCIAS

Biblia Sagrada. Edição Pastoral. São Paulo, SP: Paulus, 1990.

CASANOVA, Marco Antonio. Compreender Heidegger. Petrópolis,


RJ: Vozes, 2009.

HEIDEGGER, Martin. Ontologia (Hermenêutica da Facticidade).


Tradução de Renato Kirchner. 2ª Ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

_______. Ser e tempo. Tradução revisada e apresentação de Márcia


Sá Cavalcante Schuback; posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. 4.
ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

KAHLMEYER-MERTENS, Roberto S. 10 lições sobre Heidegger.


Petrópolis, RJ: Vozes.

NUNES, Benedito. Passagem para o poético: Filosofia e poesia em


Heidegger. São Paulo: Edições Loyola, 2012.
144 A Ética em prática no ambiente escolar

= XI =

HERMENÊUTICA FILOSÓFICA:
MÉTODO OU ACONTECIMENTO DE COMPREENSÃO?

Roberto S. Kahlmeyer-Mertens*

RESUMO
O presente trabalho pretende uma introdução ao tema da
hermenêutica. Com essa, indicaremos o itinerário que nos leva da
proposta schleiermachiana de uma hermenêutica universal à
aplicação dessa mesma ao projeto de fundamentação das ciências
humanas (Dilthey), e ainda buscaremos mostrar como Heidegger se
apropria da hermenêutica metódica dando a ela cariz
fenomenológico, para só então caracterizar o que, nas mãos de
Gadamer, tornar-se-ia, propriamente, hermenêutica filosófica. Em
nosso esforço de tematização, as noções de método e de
acontecimento (sobretudo a primeira) nos fornecerão fios condutores
para nossos desenvolvimentos teóricos. Sendo esses conceitos
caros à Verdade e método, principal obra de Hans-Georg Gadamer,
é majoritariamente sobre seus contextos que nos apoiaremos.

PALAVRAS-CHAVE: hermenêutica filosófica, método,


compreensão, fenomenologia, Heidegger, Gadamer

11.1 INTRODUÇÃO

A hermenêutica é uma só ou seria correto falar em


“hermenêuticas”? O que seria hermenêutica clássica? Esta traduziria
uma hermenêutica filológica, metódica por excelência? Existe uma
hermenêutica propriamente fenomenológica? A hermenêutica
filosófica seria esta de fenomenologia? O que está por sob a
distinção de filosofia hermenêutica e hermenêutica filosófica? Tais
problemas se evocam quando o tema é o pensamento hermenêutico.
Desta sorte, o propósito dessa comunicação acadêmica é apresentar
rudimentos do referido modo de pensar e a maneira com que estes

* Professor da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná,


kahlmeyermertens@gmail.com
Trabalhos completos 145

se engastam no solo da filosofia contemporânea. Para atingir tal


objetivo, dependeremos de caracterizar minimamente a
hermenêutica em suas origens históricas, em suas primeiras
sistematizações, em sua aplicabilidade e, por fim, nos
desdobramentos que apontam para sua realização como filosofia
autônoma. Seguir este programa requererá de nós um resumo da
temática hermenêutica junto a pensadores como Dilthey, Heidegger
e Gadamer. A consideração de temas com tal envergadura nos
permite entrever o quanto o capítulo terá caráter introdutório e,
portanto, panorâmico. Julgamos poder adiantar que o leitor deverá
ter condições de compreender a hermenêutica em suas linhas mais
insinuantes e reconhecer a articulação entre os pensadores que se
ocuparam dessa “doutrina-do-compreender”.

11.2 A HERMENÊUTICA METÓDICA

Hans-Georg Gadamer (1983) nos diz que: “A hermenêutica é


uma velha questão” (p. 57). Isso nos posiciona ante ao amplo cenário
que remonta pelo menos ao século XVIII, quando, com Friedrich D.
E. Schleiermacher, vemos a tentativa de criação de uma
hermenêutica geral, ainda com caráter metódico e muito próxima da
ciência filológica. Desse modo, essa “arte-da-compreensão” parecia
exercer, inicialmente, a tarefa de auxiliar na interpretação de textos
bíblicos e, com o tempo, foi deixando de ter uma lida exclusivamente
textual, para voltar-se à tradição oral e dilatando-se, ao fim, para tudo
que é cabido ao humano.
Conhecendo essa possibilidade, o filósofo alemão Wilhelm
Dilthey, encampa um projeto de fundamentação das ciências
humanas, usando a hermenêutica como o método para chegar a este
propósito. Com isso, o filósofo pretende evitar que as ditas ciências
sócio-históricas se adulterassem ao operar com métodos apenas
compatíveis com as ciências naturais (MAKKREEL, 1975). Esse
projeto buscava um critério regulador para as ciências humanas,
dependendo, portanto, de uma investigação que indicasse o solo
humano sobre o qual se alicerçariam as ciências ocupadas de
conhecer a vida histórica da humanidade. A hermenêutica, assim, na
economia desse projeto, ainda seria concebida à maneira da
filologia, tornando possível pensar a compreensão como atividade do
espírito em questão nas ciências históricas e, por extensão, às
demais humanas (RODI, 1985).
Para Dilthey, a hermenêutica seria, enquanto “doutrina-da-
arte-do-interpretar”, o método que viabilizaria uma justificação do
146 A Ética em prática no ambiente escolar

modo de atuar das ciências humanas. Estas operariam de maneira


compreensiva, buscando apropriar-se de seus objetos, diferindo das
naturais, que explicam seus objetos de maneira dedutiva e, portanto,
lógico-causal (KAHLMEYER-MERTENS, 2012). Como se pode
presumir, essa distinção entre explicar e compreender, em Dilthey,
ainda é marcada pelo preceito de colocar as ciências humanas em
termos de igualdade com as ciências positivas. Assim, a
hermenêutica permitiria a Dilthey interpretar a história, como quem
depreende de um texto sua significação. Desse modo, dizendo
categoricamente, a hermenêutica diltheyana ainda é filológica,
portanto, tradicional, clássica; mas ainda não “filosófica” na acepção
rigorosa desta palavra.

11.3 HERMENÊUTICA DA FACTICIDADE

Martin Heidegger fora leitor dos escritos diltheyanos e, a partir


desses, o autor de Ser e tempo enxergaria caminhos diversos do
metodologismo neokantiano ou de uma fenomenologia
transcendental aos moldes husserlianos. Contudo, Heidegger está
desde sempre interessado na questão do sentido do ser, esta que
perpassaria de algum modo todo seu pensamento e, como seria de
esperar, ofereceria o ensejo para a hermenêutica se introduzir em
sua obra. A princípio, os preparativos para a abordagem de tal
questão compareceriam não em sua principal obra, Ser e tempo
(1927), mas num projeto que a subsidiaria. Com a hermenêutica da
facticidade, projeto corporificado na preleção de verão de 1923,
nosso fenomenólogo se apropria da ideia de compreensão,
enraizando-a na “vida fática”, enquanto contraposição a uma
atividade abstrata e teórica (KAHLMEYER-MERTENS, 2016).
Pensada pela hermenêutica fenomenológica da facticidade de
Heidegger, a compreensão iria além do uso que Dilthey faz dela ao
sobrepujar o mero caráter de psiquismo ativo. Seguiria, assim, mais
adiante também da requisição de submeter a compreensão às
clausuras do metodologismo imperante nas ciências. Deste modo, a
ciência e a atividade cognitiva, o paradigma do neokantismo bem
como da fenomenologia, não são mais do que modos secundários do
existir que prendem o ser-aí. Considerando assim, seria lícito afirmar
que, em Heidegger, a compreensão é tratada como um existencial,
ou seja, ela é concretização de uma possibilidade ontológica do ser-
aí no projeto de seu existir. Assim, evidenciamos que a compreensão
passa a referir-se à própria dinâmica de existência do ser-aí; e isso
implica dizer que o ser-aí não é um ente que, ocasionalmente, tem
Trabalhos completos 147

compreensão, mas que ele é compreensão, fundamentalmente


(HERRMANN, 2005).
O caráter ontológico da compreensão, assim, evidencia-se.
Embora sejam inquestionáveis as contribuições filosóficas que
Heidegger forneceu à doutrina-da-compreensão, é preciso asseverar
que, para este filósofo, o que importa não é tanto a hermenêutica,
mas as determinações fáticas e a historicidade própria ao mundo que
ela torna pensável e, ainda, que o que temos é uma filosofia
hermenêutica ou, mais precisamente, uma hermenêutica
fenomenológica da facticidade. A hermenêutica heideggeriana, no
entanto, ainda não preenche a estrita qualificação de hermenêutica
filosófica. A hermenêutica enquanto um modo de pensar só chegaria
a este ponto com Gadamer.
Ainda que sabendo dos ganhos expressivos de uma
hermenêutica da vida fática e retendo traços fenomenológicos,
Gadamer não perseguiu o projeto heideggeriano da ontologia
fundamental. Retomando, por um lado, Dilthey, em sua preocupação
com o método e Heidegger, no tocante à sua fenomenologia
existencial, Gadamer abrirá seu próprio caminho à hermenêutica.

11.4 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA

Se Wilhelm Dilthey confrontou os postulados positivistas e o


influxo que eles exerciam sobre os métodos das ciências humanas,
Gadamer enfrenta um positivismo científico aparatado com os
elementos do criticismo neokantiano. Este, no entanto,
diferentemente daquele, compreende que não se resolvem os
problemas das ciências humanas fazendo valer um método em
substituição a outro. Pretender isso, em última instância, ainda seria
mover-se no circuito fechado de um metodologismo, transigindo com
suas especificidades e contraindo suas dificuldades (GRONDIN,
2003).
Gadamer, agindo assim, deseja sustentar que não é apenas
com o método que se chega à verdade. Sustentar a premissa
contrária, afinal, seria ainda partilhar a ideia de que a compreensão
da coisa dependeria de uma “distância ótima” do espectador
científico ante seu objeto. Das mãos de Heidegger, Gadamer herda a
evidência fenomenológica de que a compreensão não é um processo
psíquico, mas um modo de ser-no-mundo. Isso faz significativa
diferença frente à mais que consagrada ideia de sujeito responsável
pelo conhecimento e determinante do posicionamento reificador da
coisa (tal como concebida pela filosofia e ciência modernas) (HAHN,
148 A Ética em prática no ambiente escolar

1997). Tendo clareza quanto ao fato de a compreensão existencial


não necessitar de uma depuração metodológica para conhecer,
tampouco de nutrir a pretensão de neutralidade científica, Gadamer
sabe que qualquer interpretação conta sempre com a antecipação da
compreensão do mundo fático desde o qual já sempre estamos. Isso
nos permite acrescentar que, com Gadamer, a compreensão passa a
ser uma dimensão irredutível e insuperável e, por isso mesmo,
originária. Seria a compreensão que abriria a possibilidade dos
comportamentos do ser-no-mundo junto a tudo o que o cerca; com
vistas a isso, o filósofo se volta a pensar o movimento do
compreender e a especificidade de sua situação hermenêutica
(JUNG, 2001).
Diferentemente da hermenêutica da facticidade, a
hermenêutica de Gadamer tem em vista o acontecimento da
compreensão e o horizonte de possibilidade da interpretação que
apenas é possível a partir de tal acontecer. Dessa maneira, não há
interpretação que se faça na ausência de estruturas compreensivas
prévias das quais partimos para todo e qualquer interpretar. Isso é o
que Gadamer chama de confrontação interpretativa por meio da qual
o novo surge mediado pelo antigo (GADAMER, 1998). A ideia de
“compreensão existencial” apresentada acima é herdada de
Heidegger. Uma hermenêutica filosófica, assim, é distinta das outras,
pois, tendo descoberta a linguagem como o terreno da experiência
ontológica fundamental, lastreia-se nessa experiência ontológico-
linguística desde a qual o ser-no-mundo compreende a si mesmo.
Embora Gadamer tivesse em vista, de início, a compreensão e a
interpretação das ciências humanas, o que ele acabou por conquistar
com sua hermenêutica universal da linguagem superou em muito
essa expectativa anterior.

11.5 O COMPREENDER E O INTERPRETAR ENTRE A


HERMENÊUTICA METÓDICA E A FILOSÓFICA

Chegando ao tópico que mais propriamente toca no tema


anunciado no título da comunicação, vemos que a hermenêutica
filosófica é uma criação gadameriana. Dizer isso não significa que
não tenha havido filosofias hermenêuticas antes de nosso autor. No
entanto, é preciso constatar que a hermenêutica de Gadamer parte
das filosofias hermenêuticas que a precederam para alçar-se a uma
posição, sem dúvida alguma, mais extrema do que as outras. Tal
radicalidade, como vimos, deveu-se ao fato de não ser mais uma
metodologia aplicada, mas uma doutrina-do-compreender que chega,
Trabalhos completos 149

por meio da linguagem, ao fundamento ontológico que é condição


imprescindível para qualquer compreender (GRONDIN, 2003). Ao
levar a hermenêutica a limites ontológicos, Gadamer altera
significativamente a situação hermenêutica de sua época, fazendo
com que os pensadores que o antecederam fossem, doravante,
vistos como preparadores do caminho que com ele se incrementa.
Com isso, é possível estimar o quanto nosso autor, ao tratar de
hermenêutica, ainda se deixa instigar pelo problema do método,
chegando a fazer dele o ponto de partida crítico de sua filosofia
(FIGAL, 2002). Tal afirmativa requer, entretanto, que nos adiantemos
prudentemente numa elucidação: Gadamer não desconsidera o
papel do método quando está em pauta o conhecimento;
reconhecendo sua importância, também não é um opositor ao
mesmo.
Gadamer tem clareza quanto ao fato que o método é um
expediente que viabiliza a compreensão em jogo no fazer de ciência.
Nosso autor sabe, contudo, que aí está envolvida a ciência, mas
também a verdade; por isso, a censura quanto à pretensão de que
quaisquer saberes, para que sejam considerados válidos, tenham
que, necessariamente, ser submetidos a operações metodológicas.
Tomemos o exemplo dos métodos de interpretação. Ora, é certo que
estejam disponíveis e é lícito que os usemos; no entanto, é preciso
perguntar se a distância entre o sujeito e seu objeto, que os métodos
pressupõem e se a autonomização que promovem possibilitam,
verdadeiramente, uma apropriação do texto ou se, em vez disso,
colocam-se como anteparo ao mesmo mais o obstruindo do que
permitindo sua compreensão.
Embora reconhecidamente eficientes em seus processos e
eficazes em seus resultados na área das ciências naturais, seria
lícito pretender a universalidade dos métodos? Gadamer responde a
essa questão pela negativa, afinal nosso filósofo sabe o quanto seria
inconveniente a universalização de determinado modelo de saber
(nesse caso, o metódico), extinguindo ou, pelo menos, relegando a
uma espécie de limbo outras formas de saber que não operem do
mesmo modo (TIETZ, 2005).
Dessa maneira, nosso filósofo não é um opositor ao método,
exatamente por isso não podemos dizer que seja antimetódico.
Gadamer apenas avalia como injustificada a intenção de se eleger o
modelo da racionalidade metódica das ciências como único padrão
para a totalidade do conhecimento humano, premissa vigente no seio
do projeto emblemático da modernidade inaugurada com o
cartesianismo, no século XVII; amadurecida no caldo de cultura do
150 A Ética em prática no ambiente escolar

esclarecimento, no século XVIII; e coroado pela doutrina do


positivismo, a partir da segunda metade do século XIX. Por isso
mesmo, afirma que: “A filosofia deve exigir da ciência e do método
que reconheçam sua parcialidade no conjunto da existência humana
e de sua racionalidade” (GADAMER, 1975, p. 482).
Em face de este cenário, é possível indagar se os métodos
em vigor nas ciências naturais trariam luz às humanas. A sanha por
assegurar-se de certeza, em vigor no projeto científico da
modernidade, seria compatível com o saber acerca do humano? A
verdade própria ao humano se submeteria à doutrina-do-método? A
verdade tal como pensada pela filosofia (terreno cujas experiências
são as mais afins às ciências humanas) seria um resultado obtido
mediante verificação metódica? Para Gadamer, a verdade (que
sustenta o fenômeno da compreensão e a ideia das ciências
humanas) não é apenas questão de método. Desse modo, a conduta
que aposta tão somente no modelo metódico dá mostras de ignorar
que o fenômeno da compreensão, em sua polissemia, possui a
significação de um estar à altura de algo, no sentido de saber fazer
algo em nível prático, de compreender-se capaz (GADAMER, 1998).
É assim que nós nos compreendemos, por exemplo, capazes de
aprender um novo idioma ou de traduzir um texto.
Ao pensar a compreensão, como um projeto da existência,
Gadamer se apropria de uma posição da filosofia de Heidegger.
Desde tal ponto, a compreensão não seria traço de um psiquismo
ativo sintetizador de vivências. Ao contrário disso, o homem é
pensado como um ser cuja existência se confunde com a
compreensão e consiste em um ente cujo existir é essencialmente
compreensivo. Com isso, vemos o homem (em sua experiência
fundamental de ser-aí) como um aberto ao compreender, de sorte
que quaisquer de seus comportamentos se dariam previamente
desde o acontecimento desse horizonte de compreensão. Essa
primazia do compreender sobre o interpretar é indício do caráter
ontológico-existencial da compreensão, pensado nessa nova tópica;
o que só corrobora o quanto, para Gadamer, essa compreensão é
tão inevitável quanto originária.
Mas se pensada como algo afim à dinâmica própria à
existência do ser-aí a ponto de falarmos mesmo em um projeto
existencial, caberia questionar: para onde se projeta a compreensão?
Esse projeto é algo que se daria do nada e para o nada? Na situação
de um ente cujo existir se dá como “projeto” à realização, esse ente
também já se encontra sempre e a cada vez como um “lançado” no
mundo. Destarte, é como um “projeto lançado” que o ser-aí se dispõe
Trabalhos completos 151

a um espaço mundano de jogo. Esse projeto de compreensão conta,


portanto, com estruturas prévias obtidas desse mundo fático que, em
boa medida, condicionam, nossas interpretações e nossos demais
comportamentos.
Gadamer parece estar ciente do quanto essa maneira de
interpretar a compreensão soaria inusitada mesmo para as
hermenêuticas tradicionais, que dirá com relação às ciências que
pretendem chegar ao compreender pela via metódica. Isso soaria
como provocação porque, em seu ímpeto por asseguramento de
validade e certeza, o cientificismo metódico não permite que as
ciências às quais serve tenham olhos para a evidência de que o
“compreender-se capaz” é o que se dá como um acontecimento de
verdade.
Essa última afirmação, que reúne as noções de verdade e de
acontecimento para pensar as ciências humanas, agravaria mais o
problema por contrapor ao domínio epistemológico das ciências
modernas (para as quais a verdade seria apenas o produto da
concordância entre os conteúdos ideais de um juízo e o caráter real
de um objeto empírico) os saldos de outras apropriações que
Gadamer faz do pensamento heideggeriano. Tal agravo se dá
porque, se até o presente momento víamos a hermenêutica
gadameriana tratar a compreensão à luz do projeto existencial do,
assim chamado, primeiro Heidegger, agora também é observado
aqui o conceito de acontecimento apropriador (Ereignis), repertório
do pensamento heideggeriano adiantado. Desse modo, na síntese
gadameriana, temos o Heidegger da ontologia fundamental e o
Heidegger da filosofia do acontecimento apropriador.
Talvez tenha sido por desatenção a esse caráter de
acontecimento da verdade da compreensão que as ciências de
matriz moderna, em sua aposta na metodologia para a obtenção do
conhecimento objetivo, tenham desqualificado os modos de pensar
que passam pelo acontecer da verdade, rejeitando, igualmente, o
contributo valoroso de suas tradições. A propósito disso, Grondin é
oportuno ao lembrar-nos da seguinte passagem de Gadamer em
Verdade e método:

Quando adiante se tornar patente o quanto o acontecer é operante


em toda compreensão e quão pouco a ciência moderna conseguiu
fragilizar as tradições em que estamos, não se farão com ela
prescrições às ciências ou à vida prática, mas se tentará corrigir
uma falsa ideia do que ambas sejam. (GRONDIN, 1975, p. 50)
152 A Ética em prática no ambiente escolar

Tal passagem, atendendo ao propósito de nossa exposição,


acena para o caminho que a filosofia gadameriana percorrerá no
intuito de ressaltar o quanto a compreensão é o que se dá desde um
acontecimento de verdade e reabilitar o sentido de certas tradições.
Para tanto, Gadamer se põe à busca de um modo de pensar que, ao
não se submeter à relação modelar com as metodologias científicas,
sirva ao propósito de evidenciar o caráter de acontecimento da
verdade ao compreender.

11.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A comunicação pretendeu caracterizar a hermenêutica em


seus traços-força. Portanto, laboramos por torná-la compreensível
junto a autores como Dilthey, Heidegger e Gadamer, bem como o de
demarcar as diferenças que essa possui junto a esses pensadores;
neste caso, a diferença mais marcante foi a existente entre a
hermenêutica clássica e a filosófica, tal como concebida por
Gadamer. A diferenciação e a consideração destes contextos
específicos nos permitiram entrever as suas linhas mais insinuantes
e reconhecer a articulação desses que se ocuparam de pensar tal
doutrina-do-compreender e do interpretar. Julgamos poder concluir
que a hermenêutica de Gadamer diferencia-se das posições de
Dilthey e de Heidegger por ter se elaborado na chave de uma
“hermenêutica da linguagem” e, com isso, ter tomado a linguagem
como fundamento ontológico do que pode ser compreendido.
Portanto, podemos afirmar que a hermenêutica gadameriana é
aquela que mais propriamente constitui uma hermenêutica filosófica,
não mais incorrendo no gesto metódico da hermenêutica tradicional,
nem mesmo se propondo à maneira da hermenêutica
fenomenológica de Heidegger.

REFERÊNCIAS

FIGAL, G. Gadamer: the doing of the thing itself: Gadamer’s


hermeneutics ontology of language. In: DOSTAL, R. J. (Org.). The
Cambridge Companion to Gadamer. Cambridge: Cambridge
University Press, 2002. p. 102-125.

GADAMER, H.-G. A razão na época da ciência. Rio de Janeiro, RJ:


Tempo Brasileiro, 1983 [Trad. Ângela Dias].
Trabalhos completos 153

______. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro, RJ:


FGV, 1998 [Trad. Paulo César Duque Estrada].

______. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen


Hermeneutik. Tubingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1975.

GRONDIN, J. Introducción a Gadamer. Barcelona: Herder, 2003


[Trad. Constantino Ruiz-Garrido].

HAHN, L. W. The philosophy of Hans-Georg Gadamer. Chicago


and LaSalle; Illinois: Open Court, 1997.

HEIDEGGER, M. Interprétations phénoménologiques


d’Aristóteles. Paris, 1976 [Trad. de J.-F. Courtine].

HERRMANN, F.-W. v. Hermeneutische Phänomenologie des


Daseins: Ein Kommentar zu Sein und Zeit. Vol. 2. Frankfurt am Main:
Vittorio Klostermann, 2005.

JUNG. M. Hermeneutik zur Einfürung. Hamburg: Junius, 2001.

KAHLMEYER-MERTENS, R. S. Wilhelm Dilthey nos limites da


hermenêutica clássica e filosófica. Revista Portuguesa de
Filosofia. Braga: RPF, 2012, n. 68, v.1-2. p. 189-204.

______. Hermenêutica da facticidade: contraprojeto à


fenomenologia transcendental? In: FERRER, D.; UTTEICH, L. (Org.).
A filosofia transcendental e sua crítica – Idealismo, fenomenologia,
hermenêutica. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra,
2015. p. 235-257.

MAKKREEL, R. A. Dilthey: philosopher of the human studies.


Princeton: Princeton University Press, 1975.

RODI, F. Hermeneutics and the meaning of life: a critique of


Gadamer’s interpretation of Dilthey. In: ILHDE D; SILVERMANN, H.
J. (Org.). Hermeneutics & desconstruction. New York: SUNY, 1985.
p. 82-90.

TIETZ, U. Hans-Georg Gadamer zur Einführung. Hamburg: Junius,


2005.
154 A Ética em prática no ambiente escolar

= XII =

O CONCEITO DE ALIENAÇÃO SEGUNDO OS MANUSCRITOS


ECONÔMICO-FILOSÓFICOS DE KARL MARX

Gustavo Henrique Martins*


Gilmar Derengoski**

RESUMO:
Karl Marx em sua obra intitulada Manuscritos econômicos e
filosóficos apresenta-nos o conceito de alienação. Porém, para o
pleno desenvolvimento de tal conceito, afirma ele que o trabalho é
uma exteriorização do ser humano é a objetivação da essência
humana, é algo que quando executado transforma não só a
natureza, mas também a si mesmo. Tal transformação é o fator
principal que nos difere dos animais. Partindo da importância que
Marx elencou ao trabalho enquanto exteriorização da essência
humana e como parte fundamental da estrutura econômica é
possível analisarmos o conceito daquilo que ele chamou de
alienação; que em resumo define-se como a exteriorização da
essência humana e do não reconhecimento do trabalho enquanto
atividade desenvolvida pelo indivíduo. Ou seja, ao final do processo
de fabricação, o trabalho se torna estranho ao seu produtor,
parecendo até que possuir vida própria. A partir disso, objetivamos
investigar nesse trabalho como Marx chega ao conceito de
Alienação, bem como as características fundamentais das quatro
formas de alienação elencadas por Marx, tais quais: em relação ao
produto do trabalho; no processo de produção; em relação à
existência do indivíduo enquanto membro do gênero humano e, por
fim, com relação aos outros indivíduos. E, por fim, demostrar os
reflexos da alienação para o trabalhador que acaba por se tornar um
sujeito vazio, descaracterizado da própria humanidade, sujeito esse
que se vê como acidente e não como determinante, ou seja,
destituído de tudo que lhe é próprio, inapto para assumir a
responsabilidade de guiar a sociedade junto com seus
contemporâneos.

* UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Campus Toledo/PR,


dj_kiko_rock@hotmail.com
** UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Campus Toledo/PR.
Trabalhos completos 155

PALAVRAS-CHAVE: alienação, estranhamento, proletários,


burgueses.

14.1 INTRODUÇÃO

O filosofo alemão Karl Marx, ao desenvolver a maioria de


suas obras, teve como objetivo principal tecer críticas ao sistema
capitalista burguês. Na obra intitulada “Os manuscritos econômicos –
filosóficos de 1844”, Marx procurou, em especial, demonstrar como
se dá a relação entre os capitalistas (donos dos meios de produção)
com os trabalhadores (detentores da força de trabalho) e como essa
relação transforma a força de trabalho em mercadoria; gerando,
assim, inúmeros reflexos negativos para o desenvolvimento do
trabalhador enquanto indivíduo de uma sociedade capitalista. Para
elucidar com clareza esse movimento, Marx apresenta-nos o
conceito de alienação ou também chamado de estranhamento. Para
o pleno entendimento de tal conceito é de fundamental importância
analisar as bases utilizadas por Marx para chegar às suas
conclusões e, a partir delas, entender o significado e a diferença
entre os quatro tipos de alienação que Marx apresenta na referida
obra.

14.2 O SALÁRIO

Marx afirma que o trabalhador, ao desenvolver suas


atividades para outrem, acaba por se tornar estranho ao produto de
sua atividade, dando poderes independentes de seu trabalho ao
produto por ele produzido, ou seja, independente de qual seja a
função do trabalhador no processo de fabricação, a mercadoria por
ele produzida não terá consigo nenhuma ligação direta. O Capitalista
se absorverá dela em troca de um salário pré-estabelecido
“livremente” entre capitalista e trabalhador. Marx define o salário
como sendo:

A taxa mais baixa e unicamente necessária para o salário é a


subsistência do trabalhador durante o trabalho, e ainda o bastante
para que ele possa sustentar uma família e para que a raça dos
trabalhadores não se extinga. (MARX, 2004, p. 24)

O salário pago ao trabalhador o impossibilita de desenvolver-


se economicamente fora da indústria, tudo que ele consegue fazer é
garantir sua subsistência e de sua família, ou seja, o trabalhador
156 A Ética em prática no ambiente escolar

existe como qualquer outra mercadoria, sua vida depende do


capitalista burguês.
O capitalista, ao se deparar com alguma situação econômica
de risco, tem a possibilidade de deslocar-se para outras áreas, de
produzir novos produtos; enfim, de se adequar às necessidades
impostas pelo mercado. Já os trabalhadores são obrigados a
sujeitarem-se às exigências impostas pelos burgueses, que detém os
meios de produção e o controlam de acordo com suas necessidades.
O trabalhador é considerado como uma mercadoria, que de certa
forma sofre os efeitos do mercado no que concerna às leis de oferta
e demanda como afirma Marx: “Se a oferta é muito maior que a
procura, então uma parte dos trabalhadores cai na situação de
miséria ou na morte pela forme” (MARX, 2004, p. 24). Os reflexos
das oscilações no cenário econômico afetam tanto ao capitalista
quanto ao trabalhador. O capitalista, de forma astuta, consegue criar
soluções, já o trabalhador, por não possuir nenhum meio que esteja
além de sua força de trabalho e de sua subsistência, sofre
diretamente os reflexos dessas oscilações.
“É preciso observar, enfim, que onde o trabalhador e o
capitalista sofrem igualmente, o trabalhador sofre em sua existência,
e o capitalista no ganho de seu Mamom33 morto” (MARX, 2004, p.
25). O trabalhador não tem de lutar apenas pelos seus meios de vida
físicos, ele tem de lutar pela aquisição do trabalho. Tem que vender
sua mercadoria (sua força de trabalho). “O trabalhador não precisa
necessariamente ganhar com o ganho do capitalista, mas
necessariamente perde quando ele perde” (MARX, 2004, p. 25). O
trabalhador sempre receberá um valor pré-estabelecido,
independente das oscilações de mercado, já o capitalista, se usufruir
bem de suas artimanhas poderá, com o mesmo capital humano, de
valor já estabelecido, aumentar seus lucros significativamente. Já em
caso de redução de seus lucros basta desvencilhar-se de parte de
seu capital humano ou desvalorizar o valor da mão de obra que,
quanto mais acessível, menos valor possui.
Quanto mais tempo o trabalhador permanecer na indústria,
menos será sua capacidade de desenvolver-se e maior será sua
dependência pelo trabalho estranhado:

Na medida em que sejam retirados das mãos do trabalhador cada


vez mais produtos seus, que o seu próprio trabalho se defronte
cada vez mais como propriedade alheia, e cada vez mais os meios

33 Ídolo – divindade – da Obsessão pelo Lucro.


Trabalhos completos 157

de sua existência e de sua atividade se concentram na mão do


capitalista, a acumulação do capital aumenta a divisão do trabalho,
a divisão do trabalho aumenta o número de trabalhadores,
inversamente, o número de trabalhadores aumenta a divisão do
trabalho, assim como a divisão do trabalho aumenta o acúmulo de
capitais. (MARX, 2004, p. 26)

Quanto mais a indústria se desenvolver, maior será a divisão


do trabalho e menor será a capacidade do trabalhador de
desempenhar alguma atividade que esteja para além dos olhos do
capitalista. O capitalista burguês, astuto como sempre, ao identificar
possibilidades de desenvolvimento de sua indústria, seja adquirindo
novos maquinários ou aperfeiçoando os meios de produção,
direciona seus esforços para isso gerando assim reflexos com
relação à demanda de mão de obra e na capacitação técnica dos
trabalhadores que acabam se tornando partes de uma máquina,
apêndices de um processo de produção que os transformou em
mercadoria, cada vez mais desvalorizada.
Os trabalhadores são prejudicados das mais variadas formas;
uma situação apontada por Marx, que deve ser levada em
consideração, diz respeito ao seguinte cenário: Determinados
empresários, já consolidados, elevam de forma significativa seu
desenvolvimento, com isso eles acabam prejudicando empresários
menores que, em muitas situações, são obrigados a abandonar suas
atividades e entrar no mercado vendendo sua força de trabalho;
sendo eles mais capacitados tomam o lugar de trabalhadores menos
qualificados que acabam ficando sem trabalho.
O que Marx procurou demostrar é que nas sociedades
capitalistas, independente da configuração do cenário onde o
trabalhador está inserido, os trabalhadores, em sua grande maioria,
jamais conseguiram desenvolver-se de forma livre.

Mesmo na situação de sociedade que é mais favorável ao


trabalhador, a consequência necessária para ele é, portanto, sobre
trabalho e morte prematura, descer à condição de máquina, de
servo do capital que se acumula perigosamente diante dele, nova
concorrência, morte por fome ou mendicidade de uma parte dos
trabalhadores. (MARX, 2004, p. 26)

Quando existe a falta de mão de obra no mercado, o


trabalhador até consegue elevar sua situação, mas jamais deixará de
ser servo do capital, pois, a infelicidade da sociedade é a finalidade
da economia burguesa.
158 A Ética em prática no ambiente escolar

A economia nacional considera o trabalho abstratamente como uma


coisa; o trabalho é uma mercadoria; se o preço é alto, a mercadoria
é muito procurada; se é baixa, [a mercadoria] é muito oferecida,
como mercadoria o trabalho deve baixar cada vez mais o preço; o
que força a isso é em parte a concorrência entre capitalista e
trabalhador, em parte a concorrência entre trabalhadores. (MARX,
2004, p. 35 e 36)

Como os trabalhadores não conseguem em grande medida


se desvencilhar dos processos produtivos acabam por travar
disputas de espaço entre eles mesmos, disputas essas que de forma
indireta acabam por favorecer de forma significativa os capitalistas,
pois canalizam esses esforços em função de seus objetivos próprios.

12.3 GANHO DO CAPITAL

O segundo ponto analisado por Marx está relacionado com os


processos produtivos e sua ligação com o capital que domina e
governa tais processos. O capital é, portanto, o poder de governo
sobre o trabalho e seus produtos. O Capitalista possui esse poder,
não por causa de suas qualidades pessoais ou humanas, mas na
medida em que ele é proprietário do capital (MARX, 2004, p. 39). O
capitalista é o regulador dos processos produtivos, a falta ou o
excesso de capital influencia, diretamente, na forma com que as
atividades são desenvolvidas.
A preocupação inicial do capitalista, ao empreender suas
forças em alguma atividade produtiva, está relacionada em extrair o
quantum necessário para garantir que os salários de seus
trabalhadores sejam pagos para, na sequência, galgar os ativos
relacionados à matéria prima adiantada, garantindo assim o
desenvolvimento contínuo do processo. “A taxa mais baixa de ganho
habitual dos capitais tem sempre de ser algo mais do que necessário
para compreender as perdas ocasionais às quais está sujeita toda
aplicação de capital. Este excedente é propriamente o ganho ou o
lucro líquido” (MARX, 2004, p. 40). O capitalista objetiva sempre
garantir a continuidade de seu processo com uma quantidade de
ativos que seja maior que todas suas despesas; possibilitando,
assim, a geração de valores excedentes – o lucro. Mas para que isso
seja realmente possível, além de desenvolver todo o processo
produtivo, é extremamente necessário conhecer a concorrência e
atuar de forma a encontrar seu espaço na imensidade de
possibilidades que é o capitalismo.
Trabalhos completos 159

Quando a concorrência for baixa, o capitalista, em certa


medida, possui algumas vantagens, podendo manter, como diz Marx,
o preço de uma mercadoria de forma honesta, acima do natural
através dos segredos comerciais, dos segredos de fabricação e de
algumas causas acidentais como a melhoria na elaboração das
mercadorias pelo trabalho humano. Fatores esses que não elevam
os salários, mas sim o capital passivo de ganhos (MARX, 2004):

As mais importantes operações do trabalho são reguladas e


dirigidas segundo os planos e as especulações daqueles que
aplicam os capitais; e o objetivo que eles pressupõem em todos
estes planos é o lucro. Portanto: a taxa de lucro não sobe, como a
renda da terra e o salário, com a prosperidade da sociedade, e não
cai como aqueles, com o declínio desta última. [...] O interesse
dessa classe não tem, portanto [...] a mesma ligação com o
interesse geral da sociedade. (MARX, 2004, p. 46)

A concorrência é o único socorro contra os capitalistas, “o


aumento dos capitais, que eleva o salário, tende a diminuir o ganho
do capitalista em virtude da concorrência” (MARX, 2004, p. 47).
Quanto mais capital estiver atuante no mercado, maior será a
concorrência e, por consequência, menor será o lucro; atingindo
fortemente o pequeno capitalista que não tem estruturas mais
consolidadas para lidar com essas oscilações. Enquanto os
capitalistas mais estruturados têm a possibilidade de transgredirem
para outras áreas, deslocando seu capital em busca de uma menor
concorrência, dando continuidade ao seu processo de
enriquecimento:

A proporção existente entre a soma dos capitais e dos rendimentos


determina por toda a parte a proporção em que se encontram a
indústria e a ociosidade, onde os capitais ganham, domina a
indústria, onde os rendimentos ganham, domina a ociosidade.
(MARX, 2004, p. 49)

Ainda:

Quanto mais fundos forem destinados à conservação do trabalho


produtivo, tanto maior será a procura por trabalho, os trabalhadores
encontram facilmente ocupação, mas os capitalistas têm dificuldade
em encontrar trabalhadores. A concorrência dos capitalistas faz
subir o salário e baixar os ganhos. (MARX, 2004, p. 50)
160 A Ética em prática no ambiente escolar

E ainda: o grande capitalista compra sempre mais barato do


que o pequeno, por que ele compra em grande quantidade. Portanto,
pode vender mais barato, sem prejuízo.

A concorrência não exprime outra coisa senão a troca facultativa,


que é ela própria, a consequência próxima à lógica do direito
individual de usar e abusar de todos os instrumentos de toda a
produção. Estes três momentos econômicos (o direito de usar e de
abusar, a liberdade de trocas e a concorrência arbitrária), os quais
constituem apenas um, produzem as seguintes consequências:
cada um produz o que quer, como quer, quando quer, onde quer,
produz bem ou produz mal, em demasia ou insuficientemente,
demasiado cedo ou demasiado tarde, demasiado caro ou
demasiado barato, cada um ignora se venderá, a quem venderá,
como venderá, quando venderá, onde venderá, e é o mesmo
quanto às compras. O produtor ignora as necessidades e os
recursos, a procura e a oferta. Vende quando quer, quando pode,
onde quer, aquém quer, ao preço que quer. E da mesma maneira,
compra. Em tudo isto, ele é sempre o joguete do acaso, o escravo
da lei do mais forte, do menos apressado, do mais rico... Enquanto,
num ponto, existe escassez de riqueza, noutro há excesso e
desperdício. Enquanto um produtor vende muito ou caro demais, e
tem um ganho enorme, o outro não vende nada ou vende com
perda... A oferta ignora a procura e a procura ignora a oferta. Vós
produzis acreditando num gosto, numa moda que se manifesta no
público dos consumidores, mas, quando estás prestes a fornecer a
mercadoria, a fantasia passou e fixou-se num outro gênero de
produto... consequências infalíveis, a permanência e a
universalização das bancarrotas, as fraudes, as ruínas súbitas e as
fortunas improvisadas, as crises comercias, o desemprego, as
saturações ou a escassez periódicas, a instabilidade e o aviltamento
dos salários e dos lucros, o desperdício ou o depauperamento de
riquezas, de tempo e de esforços na arena de uma concorrência
encarniçada. (MARX, 2004, p. 55)

De acordo com Ricardo em seu livro Renda da terra, as


nações são apenas oficinas de produção; o homem é uma máquina
de consumir e produzir; a vida humana, um capital, as leis
econômicas regem cegamente o mundo. Os homens são nada, o
produto, tudo. Estamos condicionados às oscilações do mercado; é
praticamente impossível atuar, de forma lucrativa, sem se adequar às
leis de mercado e às concorrências. Torna-se fundamental criar
novos produtos, novos meios, novas técnicas, conquistar novos
territórios, novos clientes, enfim, a mudança tem de ser algo
contínuo. Os grandes capitalistas têm maiores possibilidades de
Trabalhos completos 161

sucesso, enquanto os pequenos sentem diretamente os reflexos das


oscilações impostas pelo mercado. Quanto mais o sistema se
desenvolve, mais formas de produzir capital são criadas até que o
trabalho não possa:

[...] sofrer maiores subdivisões a não ser na produção em que os


capitais tenham se acumulado cada vez mais. Quanto mais o
trabalhador se decompõe em subdivisões, mais aumenta a
quantidade de materiais que o mesmo número de pessoas pode pôr
em operação, e, posta que a tarefa de cada trabalhador se encontra
cada vez mais reduzida a um maior nível de simplicidade, descobre
um conjunto de novas máquinas para facilitar e encurtar essas
tarefas. (MARX, 2004, p. 58)

Chegamos a um nível em que é impossível atuarmos no


mercado sem a criação de novos produtos e serviços. Se não
existissem tantas necessidades consideradas essenciais para a vida
humana, não seria possível manter o sistema e a produção de lucro,
pois os grandes capitalistas dominariam o mercado e boa parte da
população viveria no ócio e na pobreza.

12.4 RENDA DA TERRA

Marx analisa os rendimentos oriundos da terra, argumentando


que os homens, sem exceções, almejam multiplicar
proporcionalmente seus meios de subsistência. Independentemente
da proporção, a busca por alimento é algo constante. Segundo ele:
“O alimento poderá sempre comprar uma parte maior ou menor de
trabalho, e sempre encontrar-se-á gente disposta a fazer algo para
obtê-lo” (MARX, 2004, p. 67). Os produtos oriundos da terra são
sempre maiores que os necessários para a subsistência de quem os
produziu. O desenvolvimento de novas culturas e melhoramento das
técnicas aumenta, ainda mais, a renda obtida com esses produtos.
O que Marx quer demonstrar é que “os países se povoam não
com relação ao número que seu produto pode vestir e abrigar, mas
sim em relação àquele que seu produto pode alimentar” (MARX,
2004, p. 68). Os proprietários fundiários exploram as vantagens
dessa sociedade que a:

Cada melhoria na situação da sociedade tende, quer direta ou


indiretamente, a elevar a renda, a aumentar a riqueza real do
proprietário, isto é, o seu poder de comprar trabalho alheio ao
produto deste último... O incremento na melhoria dos terrenos e do
162 A Ética em prática no ambiente escolar

cultivo tende diretamente nesse sentido. A parte do proprietário no


produto aumenta necessariamente com o aumento do produto... A
alta no preço real dessas espécies de matérias-primas, por
exemplo, a subida no preço do gado, tende também diretamente a
elevar a renda da terra numa proporção ainda maior. (MARX, 2004,
p. 69)

A renda da terra tende a aumentar por inúmeros fatores, mas


o principal deles está relacionado com o aumento de sua população
e, consequentemente, de suas carências, fatores esses que
estimulam o desenvolvimento de melhorias da força produtiva do
trabalho, dos equipamentos de produção, dos transportes, enfim, tal
processo funciona como uma cadeia interligada pela demanda por
produtos essências a subsistência humana. Determinados
produtores conseguem desenvolver-se a ponto de manufaturar sua
matéria prima a ponto de atender a demanda, já outros que não
tiveram o mesmo desenvolvimento são obrigados a trocar sua
matéria prima por quantidades menores de produtos manufaturados,
tendo uma desvalorização de sua renda.

Tudo o que diminui o preço real da primeira espécie de produto


eleva o preço real da segunda. A mesma quantidade do produto
bruto corresponde então a uma quantidade maior de produto
manufaturado, e o proprietário fundiário encontra-se capacitado a
conseguir para si uma grande quantidade de comodidades, adornos
e objetos de luxo. [...] O proprietário fundiário está interessado no
bem da sociedade, o que significa, segundo as proposições
fundamentais nacional-econômicas, que ele está interessado no seu
progressivo povoamento, na produção artística, no aumento de
suas necessidades, numa palavra, no crescimento da riqueza; e
esse crescimento é segundo nossas considerações até aqui,
idêntico ao crescimento da miséria e da escravidão. (MARX, 2004,
p. 70-71)

O pequeno proprietário fundiário que trabalha para si próprio


encontra-se, dessa maneira, diante de um grande proprietário
fundiário na mesma relação de um artesão que possui um
instrumento próprio, para com o dono da fábrica. A pequena posse
fundiária tornou-se mero instrumento de trabalho. A renda da terra
desaparece totalmente para o pequeno possuidor fundiário. (MARX,
2004, p. 72)

O preço é regulado pelas empresas mais prolíferas.


Obrigando as outras a venderem por preços que não condizem com
Trabalhos completos 163

o seu contexto. Algumas são absorvidas por elas por não


conseguirem acompanhar seus preços. O mesmo ocorre com a terra,
quanto mais às pessoas conseguem lucrar com seus produtos mais
ela vale e vice-versa. Com o passar do tempo os proprietários
fundiários deixam de existir dando lugar a apenas duas classes: os
trabalhadores e os capitalistas. Segundo Marx a indústria tinha que
se arruinar na forma do monopólio e na forma da concorrência para
aprender a acreditar no ser humano.

12.5 TRABALHO ESTRANHADO E PROPRIEDADE PRIVADA

O sistema capitalista burguês, ao estruturar-se de forma a


dividir a sociedade em classes, acaba gerando uma infinidade de
reflexos negativos na forma com que o homem se desenvolve tanto
no âmbito individual (subjetivo) quanto na coletividade:

A partir da própria economia nacional, com suas próprias palavras,


constatamos que o trabalhador baixa à condição de mercadoria e à
demais miserável mercadoria, que a miséria do trabalhador põe-se
em relação inversa à potência e à grandeza de sua produção. [...]
no fim a diferença entre o capitalista e o rentista fundiário
desaparece, assim como entre o agricultor e o trabalhador em
manufatura, e que, no final das contas, toda a sociedade tem de
decompor-se nas duas classes dos proprietários e dos
trabalhadores sem propriedade. (MARX, 2004, p. 79)

Os economistas burgueses, ao objetivar o pleno atendimento


de seus interesses, não se preocupam em pensar outras formas de
estruturação da sociedade que não seja aquela dividida por classes e
pautada na propriedade privada, criam mecanismos para garantir
que as propriedades continuem nas mãos de poucos e que os
proletários continuem trabalhando sem a possibilidade de
desenvolver-se tanto técnica quanto intelectualmente.

A economia nacional parte do fato dado e acabado da propriedade


privada. Não nos explica o mesmo. Ela percebe o processo material
da propriedade privada, que passa, na realidade, por fórmulas
gerais, abstratas, que passam a valer como leis. (MARX, 2004, p.
79)

Os burgueses, se realmente desejassem, poderiam modificar


a sociedade de forma a melhorar as condições de vida de toda a
sociedade, porém, pelo contrário: “As únicas rodas que o economista
164 A Ética em prática no ambiente escolar

põe em movimento são a ganância e a guerra entre gananciosos, a


concorrência” (MARX, 2004, p. 79).

Agora temos, portanto de conceber a interconexão essencial entre a


propriedade privada, a ganancia, a separação do trabalho, capital e
propriedade da terra, de troca e concorrência, de valor e
desvalorização do homem, de monopólio e concorrência etc., de
todo o estranhamento como sistema dinheiro. (MARX, 2004, p. 80)

Marx não se remete a um estado primitivo segundo ele


imaginário, mas sim de um fato nacional-econômico presente:

O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza


produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão.
O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais
mercadoria cria. (MARX, 2004, p. 80)

Quanto mais o mundo das coisas se valoriza, mais o mundo


dos homens é desvalorizado. O trabalho não produz apenas
mercadorias, produz a si mesmo e ao trabalhador como uma
mercadoria:

O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se


coisal, é a objetivação do trabalho. A efetivação do trabalho é a sua
objetivação. Esta efetivação do trabalho é a sua objetivação. Esta
efetivação do trabalho aparece ao estado nacional-econômico como
desefetivação do trabalhador, a objetivação como perda do objeto e
servidão ao objeto, a apropriação como estranhamento, como
alienação. (MARX, 2004, p. 79)

O trabalhador ao inserir-se no processo de efetivação do


trabalho é desefetivado até não possuir mais condições de
subsistência dignas de um ser humano. A objetivação surge como
perca do objeto que o trabalhador é despojado. Quanto mais objetos
o trabalhador produzir, mais ele ficará sob o domínio de seu produto
e por consequência do capital:

Quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando, tanto mais


poderoso se torna o mundo objetivado, alheio, que ele cria dentro
de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, [e]
tanto menos [trabalhador] pertence a si próprio. (MARX, 2004, p.
81)

O trabalhador encerra sua vida no objeto:


Trabalhos completos 165

Quanto mais, portanto, o trabalhador se apropria do mundo externo,


da natureza sensível, por meio de seu trabalho, tanto mais ele se
priva dos meios de vida segundo um duplo sentido: primeiro, que
sempre mais o mundo exterior deixa de ser um objeto pertencente
ao seu trabalho, um meio de vida do seu trabalho; segundo, que [o
mundo exterior sensível] cessa, cada vez mais, de ser meio de vida
no sentido imediato, meio para a subsistência física do trabalhador.
(MARX, 2004, p. 81)

Quanto mais o trabalhador usufruir de sua força tanto física


quanto intelectual para desenvolver seu trabalho para outrem,
menores serão as possibilidades desse trabalhador produzir sua vida
a partir dos frutos de seu trabalho; quanto mais tempo o trabalhador
se ocupar produzindo riqueza para outrem, menores são as chances
de ele produzir para além de sua própria subsistência:

A economia nacional oculta o estranhamento na essência do


trabalhador porque não considera a relação imediata entre o
trabalhador (o trabalho) e a produção. O trabalho produz maravilhas
para os ricos, mas produz privação para o trabalhador. Produz
palácios, mas cavernas para o trabalhador. Produz beleza, mas
deformação para o trabalhador. Substitui o trabalho por máquinas,
mas lança uma parte dos trabalhadores de volta a um trabalho
bárbaro e faz da outra parte máquinas. Produz espírito, mas produz
imbecilidade, cretinismo para o trabalhador. (MARX, 2004, p. 82)

Nossa análise demonstrou, até aqui, apenas a exteriorização


do trabalho em relação com os produtos do trabalho humano, cabe
agora analisar como se dá esse processo de estranhamento /
exteriorização na atividade produtiva, no ato de produção.

O trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser,


que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele,
que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma
energia física e espiritual livre, mas modifica sua physis e arruína o
seu espírito. (MARX, 2004, p. 82)

O trabalhador só se sente à vontade quando está em casa, o


seu trabalho não é voluntário, é forçado. O trabalho não é a
satisfação de uma carência, mas sim de uma necessidade. O
trabalho aparece como pertencente a outro, não a si mesmo. É a
perda de si mesmo.
Chega-se à conclusão de que o homem só se sente como ser
livre e ativo em suas funções animais: comer, beber e procriar. Em
166 A Ética em prática no ambiente escolar

suas funções humanas se sente como animal. O animal se torna


humano e o humano, animal.
Na sequência, temos a terceira determinação do trabalho
estranhado a extrair das outras duas, vistas até aqui. O homem se
torna um ser genérico:

O homem vive da natureza significa: a natureza é seu corpo, com a


qual ele tem de ficar num processo contínuo para não morrer. Que a
vida física e mental do homem está interconectada com a natureza
não tem outro sentido senão que a natureza está interconectada
consigo mesmo, pois o homem é uma parte da natureza. (MARX,
2004, p. 84)

O trabalho, a atividade vital, a vida produtiva aparece ao


homem apenas como meio de satisfação de uma carência, a
necessidade de manutenção de uma carência física. A vida produtiva
é a vida genérica. A atividade consciente e livre do homem é seu
caráter genérico. A vida aparece apenas como meio de vida. A
atividade é atividade livre “O trabalho estranhado inverte a relação a
tal ponto que o homem, precisamente por que é um ser consciente,
faz da sua atividade vital, da sua essência, apenas um meio para sua
existência” (MARX, 2004, p. 85).
A diferença fundamental entre o homem é o animal está no
fato de que o animal produz lateralmente, já o homem
universalmente. O animal se forma apenas à medida e carência da
espécie a que pertence, já o homem produz segundo a medida de
qualquer espécie:

O objeto do trabalho é, portanto, a objetivação da vida genérica do


homem: quando o homem se duplica não apenas na consciência,
intelectualmente, mas operativa, efetivamente, comtemplando-se
por isso, a si mesmo, num modo criado por ele. (MARX, 2004, p.
85)

Como consequência, quando arrancado homem o objeto de


sua produção, o trabalho estranhado arranca-lhe sua vida genérica,
sua efetiva objetividade genérica e transforma sua vantagem em
relação ao animal na desvantagem de lhe ser tirado o seu corpo
inorgânico, a natureza.
O trabalho estranhado do ser genérico do homem, um ser
estranho a ele, um meio de sua existência individual. Estranha do
homem o seu próprio corpo, assim como a natureza fora dele, tal
como a essência espiritual, a essência humana. Quando o homem
Trabalhos completos 167

está frente a si mesmo, defronta-se com ele outro homem. O que é


produto da relação do homem com o seu trabalho, produto de seu
trabalho e consigo mesmo, vale como relação do homem com outro
homem, com o trabalho e o objeto do trabalho de outro homem.
Cada um deles está estranhado da essência humana.
Se minha própria atividade não me pertence, é uma atividade
estranha, forçada; a quem ela pertence, então? A outro ser que não
eu. Quem é este ser?

Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, um poder


estranho que está diante dele, então isto só é possível pelo fato de
o produto do trabalho pertencer a outro homem fora do trabalhador.
(MARX, 2004, p. 85)

Se ele não se relaciona com a sua própria atividade não livre,


então ele se relaciona com ela como a atividade a serviço de, sob o
domínio, a violência e o jugo de outro homem. A relação do
trabalhador com o trabalho engendra a relação com o trabalho.

12.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A principal crítica de Marx ao sistema de produção capitalista


está, diretamente, relacionada ao fato de que a força de trabalho
humano se torna mercadoria nas mãos do capitalista burguês e os
produtos oriundos do dispêndio do trabalho humano ganham vida
própria, longe de seus reais produtores. Na relação dual do sistema
capitalista, os proletários produzem muito e recebem pouco e os
burgueses trabalham pouco e recebem muito. Nessa perspectiva a
grande maioria da sociedade desenvolverá suas atividades
produtivas apenas em prol de sua subsistência, não tendo tempo
assim para aperfeiçoar-se, nem rendimentos suficientes buscarem
condições contrárias a isso. Já os capitalistas, em caso de riscos ao
seu empreendimento, têm a possibilidade de migrarem para outras
áreas, pois o capital acumulado e a detenção dos meios de produção
possibilitam-lhes maiores possibilidades. Quanto mais a indústria se
desenvolver, tanto maior será a divisão da sociedade em classes; os
burgueses lutam, cada vez mais, por espaço com sua concorrência e
os proletários disputam com os próprios operários melhores
oportunidades, porém, a distância entre ambas é praticamente
intransponível.
É evidente que nenhum capitalista desenvolverá suas
atividades sem obter o lucro desejado, para isso estão sempre em
168 A Ética em prática no ambiente escolar

busca de meios que lhe garantam isso, mesmo que suas ações
reflitam diretamente nas condições de existência de seus
trabalhadores. Criam-se cada vez mais necessidades; a condição de
existência da população se torna cada vez mais aguçada; o sistema
precisa lucrar, cada vez mais, e garantir a continuidade de suas
atividades produtivas. O homem é uma máquina de consumir e
produzir. A subsistência da grande maioria está condicionada a
essas condições.
Outro fator analisado por Marx está relacionado com a
propriedade e a renda fundiária. Segundo ele quanto mais a
sociedade se desenvolve, mais necessidades ela cria, necessidades
essas que, para serem sanadas em grande medida, necessitam de
processos de manufatura. Determinados proprietários fundiários, ao
identificarem isso, acabam por alienar os pequenos produtores;
produtores esses que não têm a capacidade de manufaturar seus
produtos, sendo obrigados a direcionarem sua produção a um
intermediário que transforma commodities em mercadorias e absorve
boa parte do lucro. O produtor que realiza a maior parte do trabalho
vê seu lucro desaparecer e sua liberdade ficar condicionada. Essa
característica tem reflexos significativos na divisão da sociedade em
classes, pois o pequeno produtor passa a atuar como trabalhador
estranhado e o proprietário fundiário, como capitalista burguês que
está interessado no bem da sociedade, desde que gere suas
riquezas.
Os burgueses não almejam, de forma alguma, lutar contra a
forma com que a sociedade está estruturada, pois assim seus
objetivos serão atendidos de forma contínua. Já o trabalhador encera
sua vida no objeto de seu trabalho e quanto mais ele produzir para
outro, menores serão suas chances de viver a partir dos frutos de
seu trabalho; condicionando sua subsistência apenas em função do
salário. Segundo Marx o trabalhador se torna alienado por quatro
vertentes distintas que, de certa forma, interligam-se:
Primeiramente, o homem se torna alienado com relação aos
produtos de seu trabalho, pois sua subsistência depende disso. O
produto do trabalho humano se torna algo estranho a seu produtor,
porém, sem essa produção o trabalhador não vê possibilidades de
sobreviver. O homem sente-se livre apenas em suas funções
animais: comer, beber e procriar, sua essência é transformada em
seus meios de subsistência.
Na sequência podemos elencar a alienação na atividade
produtiva, no ato de produção. O indivíduo não tem alternativa para
sobreviver se não a de se submeter ao trabalho privado, sem
Trabalhos completos 169

atividade produtiva exteriorizada suas possibilidades de subsistência


é quase nula. A divisão do trabalho nas indústrias desqualifica o
trabalhar, que ao sair sente-se obrigado a voltar, pois não tem
condições de desenvolver-se, seja pela falta de recursos, seja pela
falta de capacidade técnica.
Como terceira forma de alienação, temos a relação de
existência do indivíduo enquanto membro do gênero humano. Onde
a essência humana é definida apenas pelos seus meios de vida. O
homem, um ser consciente, faz de sua atividade vital, de sua
essência apenas um meio para sua existência; torna-se um ser
genérico. A única preocupação do trabalhador é de como ele
garantirá sua subsistência, sendo sua vida pautada apenas nesse
objetivo.
Por fim, o trabalhador, ao objetivar apenas sua subsistência,
acaba obrigado a relacionar-se com outros trabalhadores, condição
essa essencial para o desenvolvimento dos processos produtivos
pelos quais ambos não conseguem desvincular-se. Os reflexos da
alienação para o trabalhador são devastadores, o ser humano acaba
por se tornar vazio descaracterizado da própria humanidade, sujeito
que se vê como acidente e não como determinante. É destituído de
tudo que lhe é próprio, inapto para assumir a responsabilidade de
guiar a sociedade junto com seus contemporâneos.

REFERÊNCIAS

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução Jesus


Ranieri, São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.

SIQUEIRA, Vinícius. O que é alienação em Marx. Colunas Tortas –


Mais que uma opinião. Disponível em:
http://colunastortas.com.br/2014/02/05/o-que-e-alienacao-em-marx/.
Acessado em: 08/07/2016
170 A Ética em prática no ambiente escolar

= XIII =

O EXISTENCIALISMO HUMANISTA NA ÉTICA DE SARTRE

Tainá Helena da Silva Ratuchniak*


Vanessa Furtado Fontana**

RESUMO:
Sartre é o maior expoente do existencialismo, sua filosofia afirma que
a existência precede a essência. Ela é a doutrina que dá sempre ao
indivíduo a possibilidade de escolha. E afirma que escolhemos
mesmo quando decidimos não escolher nada. Diz o existencialismo
que ser covarde ou herói é somente questão do que se projeta ser,
somente questão do que escolhe ser. Somos livres e, ao passo que
realizamos nossas escolhas, escolhemos quem querermos ser.
Somos o que fazemos de nós: covarde ou herói. Tal doutrina coloca
o homem como o único responsável por si mesmo e,
simultaneamente, responsável pelos outros homens; enfim, por toda
a humanidade.

PALAVRAS-CHAVE: Liberdade; Humanismo; Existencialismo.

Jean-Paul Sartre, famoso intelectual do século XX, ficou


conhecido por ser o maior expoente do existencialismo criado por
Søren Kierkegaard. Sartre, que possui raízes no empirismo de Hume
e no racionalismo de Descartes, foi fortemente influenciado pela
fenomenologia de Husserl e pelas ideias de Heidegger;
desenvolvendo, assim, a doutrina existencialista que veio a ganhar
espaço e destaque na sociedade, principalmente, após a Segunda
Guerra Mundial.

Primeiro, ele se tornou porta-voz do existencialismo no momento


oportuno – quando essa filosofia preencheu o vazio espiritual em
meio às ruínas da Europa após a Segunda Guerra Mundial. E,
segundo, mais tarde, sua adoção de uma postura revolucionária

* UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná,


tainaratuchniak@hotmail.com
** Professora da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Campus

Toledo/PR.
Trabalhos completos 171

contra a autoridade fez vibrar uma corda sensível na era de Che


Guevara, da agitação estudantil mundial e de uma simpatia
sentimental pela Revolução Cultural na China comunista.
(STRATHERN, 1999, s.p.)

Dentre suas publicações recebe destaque o romance


intitulado “A náusea”, publicado em 1938, no qual, através da
personagem Roquentin e da sua vida sem sentido, Sartre apresenta
suas primeiras investigações fenomenológicas. De acordo com
Strathern, pouca coisa acontece, mas é talvez o melhor retrato da
“condição existencial”. Sartre coloca a questão “o que eu sou?” Mas
se recusa a responder de forma intelectual. Ainda segundo Strathern
a “busca fenomenológica atinge o clímax numa passagem famosa
em que Roquentin examina e ‘experimenta’ uma raiz de castanheiro”
(STRATHERN, 1999, s.p.).
A sua obra prima foi o livro filosófico intitulado “O ser e o
nada”, publicado em 1943 e fortemente influenciado por Heidegger.
Nela o filósofo trabalha a ideia da consciência humana e a ideia do
ser. Já “O existencialismo é um humanismo”, publicado em 1946, é a
obra na qual Sartre objetiva explicar que a doutrina existencialista
ateísta é mais moral que as próprias doutrinas morais religiosas.
Sartre diz que: “Concebemos o existencialismo como uma
doutrina que torna a vida humana possível e que, por outro lado,
declara que toda a verdade e toda ação implicam um meio e uma
subjetividade humana” (SARTRE, 1970, p. 2). Mas afinal, o que é o
existencialismo?
Primeiramente, é preciso saber que existe dois tipos de
existencialismos e ambos, segundo Sartre, consideram que “a
existência precede a essência, ou, se preferir, que é necessário partir
da subjetividade” (SARTRE, 1970, p. 3). Entende-se, por isso, que é
preciso existir, estar no mundo para somente depois conseguir criar
sua essência, a sua personalidade.
Sartre explica que no existencialismo cristão, ao
concebermos um Deus criador, admitimos que Deus, quando cria,
sabe precisamente o que está criando. Desse modo, o homem
individual materializa certo conceito que existe na consciência divina.
Já o existencialismo ateu, representado por ele, afirma que o
homem é um ser que se define com suas escolhas, que o homem é o
que ele quer ser, o que ele faz de si mesmo. Nas palavras de Sartre
“se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência
precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido
por qualquer conceito: este ser é o homem” (SARTRE, 1970, p. 4).
172 A Ética em prática no ambiente escolar

“O homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só


posteriormente se define” (SARTRE, 1970, p. 4); “O homem nada
mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro
princípio do existencialismo” (SARTRE, 1970, p. 4).
O filósofo continua dizendo que

a dignidade do homem é maior do que a da pedra ou a da mesa.


Pois queremos dizer que o homem, antes de qualquer coisa, existe,
ou seja, o homem é, antes de tudo, aquilo que se projeta num
futuro, e que tem consciência de estar se projetando no futuro.
(SARTRE, 1970, p. 4)

Esta é a concepção de projeto no qual Sartre explica o


homem como sendo um ser incompleto. Segundo Monteiro “Sartre
pensa o ser humano como projeto que se realiza em cada ato que se
efetiva por meio de sua livre escolha e ação” (MONTEIRO, 2011, p.
38). Projeto seria então um conjunto de ideias, segundo as quais, o
homem estabelece as diretrizes que pretende seguir durante toda a
sua existência. Sartre esclarece que “o homem será apenas o que
ele projetou ser” (SARTRE, 1970, p. 6). Cabe dizer que a liberdade é
uma característica marcante do projeto, pois ele é a escolha e a
consequente ação, ambas sendo livres de qualquer concepção que
queira por ventura o determinar. É criado por cada homem, ditando
como ele se concebe para o seu próprio futuro.

O existencialismo, de modo geral, não admite a verdade da história


nem da história natural em geral, nem mesmo da história humana;
e, no entanto, é a história que faz os indivíduos; é a sua própria
história, a partir do momento em que são concebidos, que faz com
que os indivíduos não nasçam e não apareçam num mundo que
lhes confere uma condição abstrata, mas surjam num mundo do
qual sempre fizeram parte, para o qual estão condicionados, e que
eles próprios contribuem para condicionar – do mesmo modo que a
mãe condiciona seu filho e que esse filho a condiciona desde a
gestação. (SARTRE, 1970, p. 22)

Como se pode perceber, as ideias do existencialismo de


Sartre que responsabilizam, unicamente, o próprio homem por suas
escolhas, não param nas consequências que uma escolha
equivocada terá na vida do sujeito. Todas as minhas escolhas vão
além de mim, atingindo outros sujeitos e engajando a todos.
Quando o homem se escolhe, ele também escolhe toda a
humanidade; nas palavras de Sartre, “ele é responsável por todos os
Trabalhos completos 173

homens” (SARTRE, 1970, p. 5). Ou seja, somos todos responsáveis


pelas mazelas e desamores do mundo já que estas são
consequências de nossas atitudes, do nosso agir, ou seja, de nossas
escolhas. Somos os responsáveis pela imoralidade, pela pobreza e
pela crise política.
Segundo a filosofia de Jean-Paul Sartre, somos responsáveis
por tudo o que acontece na sociedade de nossa época, isso porque,
tudo acontece a partir de nossas escolhas. Sartre disse “escolhendo-
me, escolho o homem” (SARTRE, 1970, p. 5) e, como consequência,
escolho também o mundo em que vivo. As perfeições e imperfeições
existentes são produzidas também a cada vez que o homem toma
uma escolha para si, a cada vez que um projeto de vida é colocado
em prática.
Quando realizo determinada escolha sobre algo, a mais
simples que seja, não estou escolhendo somente a minha
personalidade, mas também a “personalidade” de toda a
humanidade. “Na verdade, devemos sempre perguntar-nos: o que
aconteceria se todo mundo fizesse como nós?” (SARTRE, 1970, p.
6).
O que aconteceria, por exemplo, se todo mundo resolve dirigir
seu carro a 120 km/h, desrespeitando as regras de trânsito e o dever
objetivo de cuidado só porque está atrasado para uma reunião
importante? O que aconteceria se todo mundo, numa bela manhã de
segunda-feira, resolvesse por não ir ao trabalho porque está com
muita preguiça ou com ressaca da noite anterior? O que aconteceria
se todo mundo jogasse aquele papelzinho de bala ou o chiclete que
acabara de mascar, diariamente, nas calçadas de sua cidade, só
porque imagina que o lixeiro está longe?
Podemos perceber que “Em O existencialismo é um
humanismo, a compreensão sartriana da liberdade individual assume
um aspecto social: para Sartre, essa liberdade agora implicava
responsabilidade social” (STRATHERN, 1999, s.p). Strathern afirma
que “toda a filosofia de Sartre se articula a partir da liberdade de
escolha do indivíduo. Ao escolher, ele escolhe a si mesmo”
(STRATHERN, 1999, s.p). E continua dizendo que a filosofia de
Sartre “é um reflexo do homem, com sua crença apaixonada na
liberdade e na independência pessoal. Também é um reflexo do
contexto histórico” (STRATHERN, 1999, s.p).
Esta liberdade existencialista, segundo Correa:

É o compromisso com o seu próprio projeto de ser. Pois, sabe-se


que o homem é suas ações, suas escolhas e as consequências das
174 A Ética em prática no ambiente escolar

mesmas, ou seja, não há uma essência humana ou natureza


humana e sim um fazer-se, ou melhor, dizendo uma construção do
que significa ser homem. (CORREA, 2015, p. 15)

Sartre explica que “não existe determinismo, o homem é livre,


o homem é liberdade” (SARTRE, 1970, p. 7), isso porque Deus não
existe e, por conseguinte, estamos desamparados, estamos sós no
mundo. É daí que vem a expressão de Sartre “o homem está
condenado a ser livre” (SARTRE, 1970, p. 7).
Somos livres e escolhemos como queremos ser; e a escolha
é somente do indivíduo que escolheu. Não há nada no mundo que
possa vir a nos guiar,

nenhuma moral geral poderá indicar-lhe o caminho a seguir; não


existem sinais no mundo. Os católicos arguirão: sim, existem sinais.
Admitamos que sim; de qualquer modo, ainda sou eu mesmo que
escolho o significado que têm. (SARTRE, 1970, p. 9)

Somos tão simplesmente e somente o que fazemos de nós


mesmos. E temos a liberdade de fazer de nós o que quisermos. Não
existe nada que possa nos segurar ou nos obrigar a agir de tal forma.
Nossas escolhas são somente nossas. E, mesmo em situações
difíceis, devemos escolher:

A doutrina que lhes estou apresentando é justamente o


contrário do quietismo, visto que ela afirma: a realidade não
existe a não ser na ação; aliás, vai mais longe ainda,
acrescentando: o homem nada mais é do que o seu projeto;
só existe na medida em que se realiza; não é nada além do
conjunto de seus atos, nada mais que sua vida. (SARTRE,
1970, p. 11)

Sartre explica que “o que as pessoas, obscuramente, sentem,


e que as atemoriza, é que o covarde que nós lhes apresentamos é
culpado por sua covardia. O que as pessoas querem é que
nasçamos covardes ou heróis” (SARTRE, 1970, p. 12). Ou seja, o
que as pessoas querem é uma justificativa para minimizar a dor por
sua infelicidade, por seu insucesso, enfim, algo no qual possam se
apoiar e dizer: se não deu certo, o erro não foi meu. O que as
pessoas, em geral, buscam são teorias que expliquem o sucesso e o
fracasso alheios, sem que a culpa recaia sobre os indivíduos.
O filósofo continua argumentando que “o que o existencialista
afirma é que o covarde se faz covarde, que o herói se faz herói;
Trabalhos completos 175

existe sempre, para o covarde, uma possibilidade de não mais ser


covarde, e, para o herói, de deixar de o ser” (SARTRE, 1970, p. 12).
Isso, na visão de Sartre, é um otimismo. É sempre possível fazer
diferente, porque não existe nenhuma teoria sobrenatural que me
determine dizendo que estou condenado a ser e a agir de tal modo;
que a minha sina é, de fato, ser um covarde fadado ao insucesso.
Há, de acordo com a filosofia existencialista, sempre a possibilidade
de mudança de se fazer diferente e de ser diferente.
Sartre segue falando que há uma universalidade do homem
que é permanentemente construída. Construo o universal,
escolhendo-me; construo-o entendendo o projeto de qualquer outro
homem. “O homem encontra-se numa situação organizada, com a
qual está engajado; pela sua escolha, ele engaja toda a humanidade
e não pode evitar essa escolha” (SARTRE, 1970, p. 14). Isso porque,
mesmo quando decide ficar na inércia e omitir-se diante de
determinadas opções, acaba consequentemente escolhendo algo.
Não fazer nada também é uma escolha possível ao indivíduo.
Ao passo que o homem engaja outros homens, ele é
atingindo por um sentimento de angústia. E é com o determinismo
moral, segundo Monteiro, que Sartre procura enfrentar o problema de
assumir uma postura de consciência que tente escapar à angústia:

Se a liberdade humana se construiu no projeto de ser ela mesma o


fundamento da moral e dos valores, posso não querer assumir essa
essência do ser humano em vista de uma essência que
desconsidere tal construção e formulação de um compromisso ante
os valores: Sartre dirá que sustentamos no nosso ser os valores.
(MONTEIRO, 2011, p. 96)

Monteiro ainda diz que nós construímos os valores segundo


nossos interesses e a justificativa para tal é que “a moral é uma
construção na história, uma condição para nos manter vinculados à
verdade da realidade humana” (MONTEIRO, 2011, p. 96). E continua

a responsabilidade se constituirá, assim como o compromisso moral


de renovação do Eu, na construção da imagem que sou de mim
mesmo como um conceito chave no qual a moral se fundamenta na
História assim como a existência se fundamenta no mundo.
(MONTEIRO, 2011, p. 98)

É preciso ainda, por fim, destacar que para Jean-Paul Sartre


o existencialismo é, no fundo, um humanismo:
176 A Ética em prática no ambiente escolar

E assim como os marxistas podem pretender ser humanistas, as


diversas religiões – a cristã, a hindu e muitas outras – também
prendem ser, antes de mais nada, humanistas; e, por sua vez, o
existencialismo, e também, de modo geral, todas as filosofias.
(SARTRE, 1970, p. 23)

O autor menciona a existência de vários sentidos para o


humanismo. No entanto, faz a distinção e explica apenas dois desses
sentidos do termo. Um primeiro significado de humanismo é aquele
que, nas palavras de Sartre,

[...] supõe que podemos atribuir um valor ao homem em função dos


atos mais elevados de certos homens. Tal humanismo é absurdo,
pois só o cachorro ou o cavalo poderiam emitir um juízo de conjunto
sobre o homem e declarar que o homem é admirável. (SARTRE,
1970, p. 18)

Isso porque, segundo o existencialismo, um homem jamais


terá o direito de julgar qualquer outro homem por suas escolhas e,
tampouco, julgar todos os homens.
Já o outro sentido do humanismo é aquele no qual Sartre
acredita; e que passa a associar com o existencialismo, chamando-o
de humanismo existencialista ateu. É aquele que argumenta que “o
homem está constantemente fora de si mesmo; é projetando-se e
perdendo-se fora de si que ele faz com que o homem exista”
(SARTRE, 1970, p. 18).

Humanismo, porque recordamos ao homem que não existe outro


legislador a não ser ele próprio e que é no desamparo que ele
decidirá sobre si mesmo; e porque mostramos que não é voltando-
se para si mesmo, mas procurando sempre uma meta fora de si –
determinada libertação, determinada realização particular – que o
homem se realizará precisamente como ser humano. (SARTRE,
1970, p. 11)

Assim sendo o homem é livre de todo e qualquer


determinismo moral. Não existe nada, nenhuma forma
preestabelecida à qual ele seja obrigado a seguir. Cabe somente ao
próprio indivíduo cuidar de estabelecer livremente seus objetivos, ou
seja, estabelecer o seu projeto e cuidar da realização de cada um
deles. Somos livres para nos tornarmos covardes ou heróis através
de nossas escolhas. Mas cabe aqui lembrar que, por estarmos sós
no mundo e, justamente, por não haver nenhum determinismo moral,
Trabalhos completos 177

caberá ao próprio homem responder por suas escolhas e


consequências.

REFERÊNCIAS

CORREA, Kátia Marian. A liberdade como valor: implicações éticas


do existencialismo Sartreano. In: CARVALHO, Marcelo; CARRASCO,
Alexandre de Oliveira Torres; SOLIS, Dirce Eleonora Nigro (coord).
Filosofia Francesa Contemporânea. São Paulo-SP: Editoras ANPOF,
2015.

MONTEIRO, Dawson de Barros. Liberdade, compromisso e


comprometimento na filosofia de Jean-Paul Sartre: a questão
moral. Recife-PE. Disponível em:
http://repositorio.ufpe.br/bitstream/handle/123456789/6485/arquivo89
99_1.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 28 jun.2016.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo.


Disponível em: <http://stoa.usp.br/alexccarneiro/files/-
1/4529/sartre_exitencialismo_humanismo.pdf>. Acesso em: 27 jun.
2016.

STRATHERN, Paul. Sartre em 90 minutos. Rio de Janeiro-RJ:


Editoras ZAHAR, 1999. Disponível em:
<http://lelivros.black/book/download-sartre-em-90-minutos-paul-
strathern-em-epub-mobi-e-pdf/>. Acesso em: 27 jun. 2016.
178 A Ética em prática no ambiente escolar

= XIV =

O FETICHE DA MERCADORIA EM O CAPITAL DE MARX

Gilmar Derengoski*
Jadir Antunes**

RESUMO:
De acordo com uma análise etimológica, o termo fetiche significa
“objeto animado ou inanimado, criado pelo homem ou oriundo da
natureza, ao qual se atribui poder sobrenatural e se presta culto”.
Marx, ao analisar o sistema de produção capitalista, apresta-nos o
conceito de “fetiche da mercadoria”. Segundo ele as mercadorias, ao
serem finalizadas, não mantêm o seu valor real de venda; valor esse
que deveria ser pautado no quantum de trabalho despendido em sua
fabricação, sendo comercializadas por valores irreais e infundados. A
relação do trabalho humano com a mercadoria passa a ser uma
relação apenas entre mercadorias, relação essa que se desenvolve
de forma fetichizada na relação de compra e venda. Com a
descoberta do fetiche Marx desvela inúmeros segredos que, antes,
estavam ocultos no sistema de produção capitalista. A partir disso
objetivamos, neste trabalho, analisar como Marx chega ao conceito
de fetiche da mercadoria, como ele apresenta a estrutura do sistema
capitalista burguês que age apenas em função de seus interesses e
como, a partir do conceito de fetiche, é possível clarificar os segredos
contidos em tal sistema. Pois, segundo ele, o que ocorre é um
processo de inversão do real, onde os indivíduos passam a conceber
suas relações humanas como relações entre coisas; “é apenas uma
relação social determinada entre os próprios homens que aqui
assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre
coisas” (Marx, 2013, p. 147). Por fim, segundo Marx, o homem acaba
se tornando aquilo que possui; seu poder é o dinheiro que possui.
Logo, o homem não é mais determinado pela sua individualidade. O
dinheiro acaba transformando as incapacidades do homem em seu
contrário (Marx, 2001, p. 516-517).

* Professor da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Campus


Toledo/PR, dj_kiko_rock@hotmail.com
** Professor da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, - Campus

Toledo/PR.
Trabalhos completos 179

PALAVRAS-CHAVE: mercadoria, fetiche, capital, valor.

14.1 O CONCEITO DE MERCADORIA

O filósofo alemão Karl Marx teve como objetivo fundamental


de seus escritos, fundamentar uma crítica ao sistema capitalista
burguês; sistema esse que, segundo ele, ao objetivar seus interesses
(dos burgueses), acabava por ocultar a sua forma real de atuação
para a grande maioria da sociedade (os proletários). A base da
crítica de Marx está pautada em desvelar os segredos ocultos na
estrutura desse sistema, segredos esses que sem uma análise
consistente são imperceptíveis; possibilitando, assim, a alienação e a
dominação da grande maioria da sociedade. Marx, a partir de seu
método dialético que infere a passagem do real para o abstrato e
vice-versa, nega determinadas explicações abstratas; apresentando
conceitos concretos que, segundo ele, trazem à luz a forma real da
estrutura capitalista.
Em O Capital, Marx procura, de forma sistemática,
demonstrar o poder misterioso das mercadorias perante os agentes
da sociedade burguesa. Isso nos remete a pensarmos qual o objetivo
de Marx ao começar com a mercadoria? Segundo ele “A riqueza das
sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como
uma enorme coleção de mercadorias, e a mercadoria individual como
sua forma elementar” (MARX, 2013, p. 113); deixando claro que
Marx não está interessado em estudar outros modos de produção
além do modo de produção capitalista; modo esse que possui as
mercadorias como pilar fundamental de seu desenvolvimento.
Segundo Harvey (2013, p. 26), “[...] as pessoas compram
mercadorias, e esse é um ato fundador do modo como as pessoas
vivem”; tornando, assim, impossível mensurar a vasta quantidade de
mercadorias existentes na sociedade, pois ao mesmo tempo em que
mercadorias deixam de existir, novas são criadas, dando assim um
caráter puramente mutável e universal ao conceito de mercadoria.
Para Marx

A mercadoria é antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que,


por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de
um tipo qualquer. A natureza dessas necessidades – se, por
exemplo, elas provêm do estomago ou da imaginação – não altera
nada a questão. (MARX, 2013, p. 113)
180 A Ética em prática no ambiente escolar

A mercadoria em sua singularidade é algo que possui


objetividade externa, podendo ser de infinitas formas e atender
infinitas necessidades, independentemente de sua origem ou da
forma com que foi produzida.
Marx, ao se deparar com esse turbilhão de mercadorias,
busca alguma forma de trabalhar com elas de forma geral; para isso,
de forma genial, apresenta-nos seu primeiro conceito abstrato,
reduzindo todas as mercadorias, independentemente de sua forma
ou de sua utilidade, em simples “valores de uso”, ou seja, uma
mercadoria para ser considerada como tal precisa, primeiramente,
ser útil para alguém, possuir seu valor de uso, seu caráter qualitativo,
pois “os valores de uso formam o conteúdo material da riqueza,
qualquer que seja a forma social desta” (MARX, 2013, p. 114).
Nesse sentido, quando retirada a utilidade de uma
mercadoria, esta perde o seu valor de uso e, portanto, seu valor
como mercadoria; uma vez que, sem o seu caráter útil a mercadoria
se transforma em uma simples abstração pura, “nenhuma coisa pode
ser valor sem ser objeto de uso. Se ela é inútil, também o é o
trabalho nela contido, não conta como trabalho e não cria por isso,
nenhum valor” (MARX, 2013, p. 119).
Segundo Marx, enquanto valor de uso, as mercadorias
possuem uma grande diversidade. No entanto, tomadas enquanto
valores, as mercadorias possuem uma igualdade qualitativa,
diferenciando-se apenas na quantidade. Tal característica implica
que a mercadoria, tomada enquanto valor, é divisível; entretanto,
enquanto objeto físico, não o é; ou seja, enquanto valor, as
mercadorias não se diferenciam de outras mercadorias que possuem
o mesmo valor. Assim sendo, a troca de mercadorias existe
justamente pela diversidade de necessidades do homem.
Para Antunes (2003, p. 27), “Numa sociedade produtora de
mercadorias o valor de uso só se torna efetivamente útil após passar
pelo processo mediador da circulação que realiza o valor de troca da
mercadoria”. Imaginemos que determinado alfaiate produz um
casaco, literalmente este casaco possui utilidade – seu valor de uso.
Como ele é um produtor de casacos, este casaco não possui
utilidade para ele próprio obrigando-o a trocá-lo por algo que
satisfaça suas necessidades. Ao efetuar a troca desse casaco, o
mesmo terá seu valor de uso efetivado, pois seu comprador o
utilizará para satisfazer suas necessidades. Concluímos, com isso,
que além de uma mercadoria possuir um valor de uso (caráter
qualitativo), necessita de um caráter quantitativo que objetiva
Trabalhos completos 181

proporcionar a comensurabilidade entre mercadorias distintas, sendo


impossível medirmos quantitativamente a utilidade de algo.
Para Marx

O valor de troca aparece inicialmente como a relação quantitativa, a


proporção no qual valores de uso de um tipo, são trocados por
valores de uso de outro tipo, uma relação que se altera
constantemente no espaço e no tempo. (MARX, 2013, p. 114)

O valor de troca é uma determinação negativa dos valores de uso


porque sob esta nova condição, as necessidades humanas só serão
realizadas na medida em que primeiro se realize o valor de troca do
produto. O valor de uso se realiza no ato do consumo. O valor de
troca se realiza no ato da troca, ato que antecede o consumo, por
isso o ato da troca é um ato negativo frente ao valor de uso. Se o
valor de troca não se realizar fica também sem se realizar o valor de
uso, já que os produtos só adentram na esfera do consumo após
passarem pelo processo das trocas. (ANTUNES, 2003, p. 27)

A mercadoria, de certa forma, é uma “contradição, real,


sensível e materialmente existente” (TROTTA, 1991, p. 16). Segundo
Marx, a mercadoria existe como desigual a si mesma:

Como valores de uso, as mercadorias são, antes de tudo, de


diferente qualidade; como valores de troca, elas podem ser apenas
de quantidade diferente, sem conter, portanto, nenhum átomo de
valor de uso. (MARX, 2013, p. 116)

Aqui nos deparamos com uma indagação: como pode um


mesmo valor de uso possuir múltiplos valores de troca? Como algo
pode ser, ao mesmo tempo, valor de uso e valor de troca.
Marx busca superar essa contradição afirmando que existe
um terceiro elemento imperceptível aos nossos sentidos, algo que
objetiva determinar a igualdade entre mercadorias regulando, assim,
o processo de troca de distintos valores de uso. Esse elemento só
pode ser conhecido se abstrairmos das diferentes mercadorias suas
diferentes qualidades úteis. Ou seja, se abstrairmos das mercadorias
toda sua utilidade (algo distinto e imensurável), restando-nos apenas
uma propriedade: a característica de serem produtos do trabalho
humano.

Prescindindo do valor de uso dos corpos das mercadorias, resta


nelas uma única propriedade: a de serem produtos do trabalho. Mas
mesmo o produto do trabalho já se transformou em nossas mãos.
182 A Ética em prática no ambiente escolar

Se abstrairmos seu valor de uso, abstraímos também os


componentes e formas corpóreas que fazem dele um valor de uso.
O produto não é mais uma mesa, uma casa, um fio ou qualquer
coisa útil. Todas as suas qualidades sensíveis foram apagadas. E
também já não é mais o produto do carpinteiro, do pedreiro, do
fiandeiro ou de qualquer outro trabalho produtivo determinado. Com
o caráter útil dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil dos
trabalhos neles representados e, portanto, também as diferentes
formas concretas desses trabalhos, que não mais se distinguem uns
dos outros, sendo todos reduzidos a trabalho humano igual, a
trabalho humano abstrato. (MARX, 2013, p. 116)

Para Marx, “O elemento comum, que se apresenta na relação


de troca ou valor de troca das mercadorias, é, portanto, seu valor”
(MARX, 2013, p. 116); valor esse que tem origem do trabalho
humano abstrato que, incorporado à mercadoria, define-o como tal.
Com isso é forçoso concluir que quanto mais inábil for o homem,
maior será o valor de sua mercadoria, pois necessitou de maior
dispêndio de força de trabalho para produzi-la. Marx demonstra a
partir da passagem do texto em que fala sobre o tempo de trabalho
socialmente necessário que isso não ocorre:

Tempo de trabalho socialmente necessário é aquele requerido para


produzir um valor de uso qualquer sob as condições normais para
uma dada sociedade e com o grau social médio de destreza e
intensidade do trabalho. [...] Portanto, é apenas a quantidade de
trabalho socialmente necessário para a produção de um valor de
uso que determina a grandeza de seu valor. (MARX, 2013, p. 117)

“A mercadoria individual vale aqui somente como exemplar


médio de sua espécie” (MARX, 2013, p. 117), não importa a maneira
como o produto foi desenvolvido, por quem foi desenvolvido ou sob
quais condições; o que realmente importa é que é apenas uma forma
de despender força de trabalho. “Todo trabalho é, por um lado,
dispêndio de força humana de trabalho em sentido fisiológico, e
graças a essa propriedade de trabalho humano igual ou abstrato ela
gera o valor das mercadorias” (MARX, 2013, p. 117); porém, de nada
vale trabalhar e produzir algo se tal não for útil para alguém, não
possuir seu valor de uso. Concluímos, então, que o trabalho
concreto, quando abstraído e incorporado na mercadoria, define seu
valor quantitativo, porém, faz-se necessário que a mercadoria seja
produzida por um caráter útil; pois, caso contrário, não se
Trabalhos completos 183

caracterizará como mercadoria e não efetivará a troca; tornando,


assim, inútil o trabalho despendido em sua produção.

14.2 A GÊNESE DO DINHEIRO

De forma geral, Marx procura demonstrar como se dá a


gênese da forma dinheiro, para isso acompanha o desenvolvimento
da expressão do valor contida na relação de valor das mercadorias,
partindo de sua forma mais simples e sem expressão até a ofuscante
forma dinheiro, ressaltando que o valor possui uma objetividade
fantasmagórica que é imperceptível fora da relação mercantil entre
mercadorias.
Para chegar a tal objetivo, Marx inicia sua argumentação
demonstrando uma situação simples de escambo onde “O valor
relativo da minha mercadoria será expresso em termos de valor (o
trabalho incorporado) da mercadoria que você possui. Assim, sua
mercadoria será a medida de valor da minha mercadoria” (Harvey,
2010, p. 39). Em uma situação de escambo, qualquer indivíduo que
possuir uma mercadoria, possui-a como valor relativo e está à
procura de um valor equivalente:

Aqui, duas mercadorias diferentes, A e B – em nosso exemplo, o


linho e o casaco –, desempenham claramente dois papéis distintos.
O linho expressa seu valor no casaco; este serve de material para
essa expressão de valor. A primeira mercadoria desempenha um
papel ativo, a segunda um papel passivo. O valor da primeira
mercadoria se apresenta como valor relativo, ou encontra-se na
forma de valor relativo. A segunda mercadoria funciona como
equivalente, ou encontra-se na forma de valor equivalente. (MARX,
2013, p. 126)

Para Marx, ambas as formas (relativa ou equivalente) são


momentos inseparáveis que se inter-relacionam e que acabam por
se determinar reciprocamente. No entanto, são polos mutuamente
excludentes, “isto é, polos da mesma expressão de valor; elas se
repartem sempre entre mercadorias diferentes, relacionados entre si
pela expressão de valor” (MARX, 2013, p. 126). Num terreno repleto
de trocas, uma mercadoria individual tem inúmeros equivalentes,
assim como todas as outras mercadorias têm uma relação em
potencial com meu equivalente singular.
Quando Marx apresenta o simples conceito de escambo, sua
intenção é demonstrar como o processo de troca se desenvolve de
forma complexa. “Uma complexidade cada vez maior entre relações
184 A Ética em prática no ambiente escolar

de troca produz uma “forma desdobrada” de valor que se converte


numa “forma universal” de valor” (HARVEY, 2010, p. 40). As
mercadorias possuem agora um equivalente universal para suas
trocas, ou seja, determinadas mercadorias se desenvolveram de
forma a desempenharem um papel de reguladores no processo de
troca. Como exemplo disso, temos o ouro e a prata que, com o
passar do tempo, deram origem ao dinheiro na forma como
conhecemos:

O ouro só se confronta com outras mercadorias como dinheiro


porque já se confrontava com elas anteriormente, como mercadoria.
Igual a todas as outras mercadorias, ele também funcionou como
equivalente, seja como equivalente individual em atos isolados de
troca, seja como equivalente particular ao lado de outros
equivalentes-mercadorias. Com o tempo ele passou a funcionar em
círculos mais estreitos ou mais amplos, como equivalente universal.
(MARX, 2013, p. 145)

O que precisa ser entendido aqui é que o “o dinheiro não foi


imposto de fora, tampouco foi inventado por alguém que imaginou
que seria uma boa ideia ter uma forma-dinheiro” (HARVEY, 2010, p.
40). O dinheiro teve sua origem no próprio sistema mercantil; as
formas desdobradas da forma valor possibilitaram seu
desenvolvimento. “O dinheiro apaga magicamente todas as
determinações da forma ‘valor equivalente’ parecendo possuir por
natureza ‘valor’” (ANTUNES, 2005).

14.3 O FETICHISMO DA MERCADORIA

De acordo com o geógrafo marxista David Harvey, “aqueles


de convicção filosófica ou literária tratam o fetichismo muitas vezes
como a pepita de ouro, o momento fundamental do entendimento de
Marx a respeito do mundo” (HARVEY, 2010, p. 50). Porém, vale
ressaltar que, antes mesmo de Marx apresentar o conceito de
fetiche, é possível perceber que sua crítica da economia política é,
sobretudo, desveladora; crítica essa que

por meio da negatividade do conceito desvela, afasta e descobre o


véu das aparências enganosas que encobrem o real verdadeiro,
escondido no interior de suas formas deslumbrantes de
manifestação. (ANTUNES, 2006, p. 1)
Trabalhos completos 185

Como exemplo disso, torna-se perceptível o fato de que, para


a burguesia, os valores de uso são sinônimos de riqueza. Quanto
mais mercadorias, determinado indivíduo possui, mais rico ele é
considerado. Fator esse negado por Marx quando nos apresenta o
conceito de valor de troca – se determinada mercadoria não for
passiva de troca, não configura como mercadoria e o trabalho
despendido em sua produção foi inútil, não gerando assim nenhuma
riqueza. Marx, inicialmente, apresenta que a troca se dá de forma
acidental, determinada pelas condições econômicas e de espaço e
tempo em que a relação mercantil se estabelece. Mais uma vez Marx
utiliza-se da negação, afirmando que o que torna as mercadorias
passíveis de troca nada tem de acidental. Origina-se do quantum de
trabalho foi despendido na fabricação de determinado produto, em
condições médias, que incorporado à mercadoria de forma abstrata
define seu caráter quantitativo, possibilitando assim sua
comensurabilidade.
Marx demonstra, em seus argumentos, como o processo de
troca mercantil evoluiu até que chegássemos ao que conhecemos
hoje como dinheiro; mas, antes disso, demonstrou que a relação de
troca de mercadorias mediadas por seus produtores foi perdendo
espaço gradativamente para as relações apenas entre mercadorias.
Ou seja, de acordo com o desenvolvimento do processo mercantil,
surgiram mercadorias que serviam de base para as trocas, deixando
em segundo plano o trabalho suas condições de desenvolvimento.
Como exemplo disso, temos o ouro, a prata e os metais preciosos,
sendo sua principal finalidade a de mediar e regular o processo de
troca. A relação de troca passa agora a ser mediada pelas próprias
mercadorias, obrigando os produtores a se regularem de acordo com
essas regras que a eles foram impostas.
A partir disso Marx apresenta o conceito de fetichismo da
mercadoria ou o caráter místico e misterioso da mercadoria. Pois, se
as mercadorias se espelham em outras para representarem seu
valor, passam a ser objetos fetichizados:

O fetiche é um objeto encantado, sagrado; a ele é atribuído um


poder sobrenatural que afeta todos aqueles que o contemplam, de
modo que a nenhum dos observadores é dado ser-lhe indiferente.
Analogamente, as mercadorias emanam esse brilho que afeta
qualquer dos seus possuidores e não possuidores; aqueles que as
detêm cultivam características de algo sagrado e que, por tê-las,
são por elas afetadas, enquanto que aqueles que não as possuem,
mas as almejam, tratam de conduzir suas ações para tal objetivo no
186 A Ética em prática no ambiente escolar

afã de serem agraciados pelo encanto que da mercadoria emana.


(SILVA, 2011, p. 30)

O conceito de fetichismo da mercadoria apresentado por


Marx, em “O Capital”, parte do princípio que “Uma mercadoria
aparenta ser, à primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Sua análise
resulta em que ela é uma coisa muito intrincada, plena de sutilezas
metafisicas e melindres teológicos” (MARX, 2013, p. 205). Enquanto
valores de uso não há nada de misterioso nas mercadorias, seu
caráter místico resulta de seu valor:

O mistério da mercadoria provém de sua própria forma, ela encobre


as características sociais dos trabalhos dos homens, expondo-as
como características materiais e propriedades sociais de sua
própria natureza. (SILVA, 2011, p. 28)

Não importando como foi produzida nem quais necessidades


vai sanar desde que se relacione com outra mercadoria. “Os homens
passam a conceber, erroneamente, suas relações como relações
entre linho e casaco e não entre tecelão e alfaiate” (ANTUNES, 2005,
p. 87).

Nesta instância reificada e fetichizada 20 varas de linho parecem


“valer” realmente 1 casaco. Tecelão e alfaiate ao se porem numa
relação de troca são misteriosamente substituídos pela mágica
relação entre os produtos fabricados por suas mãos. Seus próprios
produtos ganham misteriosos poderes metafísicos e os homens os
mesmos homens que os produziram, desaparecem de cena como
se nunca existiram. (ANTUNES, 2005, p. 90)

De certa forma os homens trabalham uns para os outros de


algum modo, seu trabalho assume uma forma social.

O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto,


simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres
sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos
próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são
naturais a essas coisas, e por isso, reflete também a relação social
dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre
os objetos, existente à margem dos produtores. (MARX, 2013, p.
206)

O produtor está condicionado às relações mercantis entre


mercadorias, não é possível saber o valor de sua mercadoria entes
Trabalhos completos 187

de levá-la ao mercado e efetivar sua troca, independente das


condições de produção que tal mercadoria foi produzida, dos custos
para sua fabricação, bem como da quantidade de trabalho
despendido no processo de manufatura. Isso gera reflexos negativos
para os produtores que, por diversas fatores, não conseguem um
bom desenvolvimento em seu processo de fabricação, obrigando-o a
seguir as condições impostas pelo mercado que em nenhum
momento leva em consideração as condições de manufatura.
Demonstrando, assim, que as relações sociais entre os
trabalhadores privados, relações diretamente sociais entre pessoas e
seus próprios trabalhos, aparecem como relações reificadas34 entre
pessoas e relações sociais entre coisas.

[...] em sistemas altamente complexos de troca, é impossível


conhecer a atividade dos trabalhadores, e é isso que torna o
fetichismo inevitável no mercado mundial. O resultado é que nossa
relação social com atividades laborais dos outros é dissimulada em
relações entre coisas. No supermercado, por exemplo, você não
tem como saber se a alface foi produzida por trabalhadores
satisfeitos, miseráveis, escravos, assalariados ou autônomos. A
alface é muda, por assim dizer, no que diz respeito a como foi
produzida e a quem a produziu. (HARVEY, 2010, p. 52)

A economia burguesa não se preocupa em demonstrar como


as mercadorias foram produzidas, as angústias e mazelas sofridas
por seus produtores. Se foram explorados ou até mesmo obrigados a
trabalhar, enfim, o que unicamente existe são as coisas. O fetichismo
na mercadoria objetiva demonstrar que as relações de produção
entre os produtores de mercadorias é algo ocultado no processo de
troca. A relação que passa a existir é uma fantasmagórica relação
entre mercadorias, os homens que produzem determinadas
mercadorias saem de cena como se nunca tivessem existido. As leis
que passam a reger esse processo são as leis econômicas (o preço
é algo que se torna incontrolável - o movimento dos preços também
adota um caráter fantasmagórico). As relações sociais entre
pessoas, a partir desse cenário, apresentam-se como relações de
produção de mais valor e na disputa por espaço para a produção e
comercialização de mercadorias.

34 Reificar: é a desnaturalização daquilo que se tem como conceito e contextualiza-


lo como algo isolado; é transformar algo em coisa, seja a religião, a indústria, o
homem.
188 A Ética em prática no ambiente escolar

A mercadoria tem pressa para ser produzida, pressa para ser


transportada, pressa para ser posta em circulação, pressa para ser
realizado seu valor, pressa para gerar uma nova necessidade dela,
pressa para ser devorada pelos homens. Na sua pressa
incontrolável, a mercadoria devora os próprios homens que a
criaram. (ANTUNES, 2005, p. 92)

A relação dos trabalhos privados com o trabalho social


aparece na forma insana, incontrolável, reificada:

Os homens agora são aquilo que o tempo da mercadoria determina.


O homem socialmente médio é sempre oscilante, tomou o lugar de
todo o homem particular. Na temporalidade alucinante da
mercadoria e da sociedade burguesa, não sobrou espaço para a
subjetividade e o particularismo. Tudo foi devorado pelo tempo
médio socialmente necessário. Todas as medidas são postas e
simultaneamente negadas diariamente pela medida socialmente
necessária do tempo. Nada mais é estático e previsível. Tudo é
diretamente tragado pela voracidade do tempo. Tudo o que é sólido
se desmancha com o fogo devorador do tempo. Toda a quietude é
diariamente consumida pela inquietude do tempo. Os homens
existem enquanto certo quantum sempre mutável do tempo.
(ANTUNES, 2005, p. 92)

Marx, ao analisar o contexto da idade média europeia, afirma


que “o fato é que as relações sociais das pessoas em seus trabalhos
aparecem como suas próprias relações pessoais e não encontram
travestidas em relações sociais entre coisas, entre produtos do
trabalho” (MARX, 2013, p. 213). Deixando claro que o sistema
capitalista burguês, ao enraizar seus mecanismos, modifica de forma
abrupta o contexto social dos trabalhadores em relação a seus
produtos como explanado a seguir:

“Valor” (valor de troca) “é qualidade das coisas, riqueza” (valor de


uso) [é qualidade]. “Valor nesse sentido implica necessariamente
troca, riqueza não.” “Riqueza” (valor de uso) “é um atributo do
homem, valor um atributo das mercadorias. Um homem, ou uma
comunidade, é rico; uma pérola, ou um diamante, é valioso [...].
Uma pérola ou um diamante tem valor como pérola ou diamante”.
(MARX, 2013, p. 216)

Por traz das relações mercantis, escondem-se relações entre


homens, relações de inúmeros produtores de mercadorias que se
relacionam mediados pelo intercâmbio de seus distintos produtos.
Trabalhos completos 189

Segundo Antunes (2006, p. 3), “há um processo de subjetivação das


coisas e objetivação dos homens, onde eles mesmos não se
reconhecem mais nos produtos de sua criação, não reconhecem
mais sua natureza de criador”. O fetiche é o processo de
humanificação das coisas e desumanização dos homens. O homem
passa a se ver como um estrangeiro, passageiro de algum trem,
quem não passa por ali, que não passa de ilusão.
Com a descoberta do fetiche, Marx desvela, então, todos os
segredos da produção capitalista, sendo:

O mundo real, não apenas a consciência que os homens tomam


deste mundo, é posto de cabeça para baixo pelo fetiche. A
consciência não se põe ela própria de cabeça para baixo, não é a
consciência invertida do mundo que o põe de cabeça para baixo,
mas, antes, ao contrário, é o mundo posto de cabeça para baixo
pelo fetiche que deforma e inverte a consciência, é o mundo real
deformado pelo fetiche que deforma e falseia a consciência. Não é
o homem que se engana com o mundo, mas, ao contrário, é o
mundo mágico e enfeitiçado do mercado, do dinheiro e da produção
de mercadorias que engana o homem. (ANTUNES, 2006, p. 12)

Por muito tempo se acreditou que a relação de troca era


pautada pelas leis econômicas de oferta e demanda. “As flutuações
de oferta e de demanda geram flutuações de preço em torno de uma
norma, mas não podem explicar por que um par de sapatos é
trocado, em média, por quatro camisas” (HARVEY, 2010, p. 55).

Sua esperança é que possamos ir além do fetichismo das


mercadorias e tentar estabelecer, por meio de formas associativas,
um modo de relação diferente. Se isso é viável ou não é uma
questão fundamental em qualquer leitor de Marx tem de considerar;
mas esse é um dos raros momentos n’O Capital em que temos um
vislumbre da visão de Marx a um futuro socialista. (HARVEY, 2010,
p. 57)

Temos que levar em consideração que Marx está interessado


na transformação revolucionária da sociedade, revolução essa que
está diretamente relacionada com a forma capitalista do valor. Se
seguirmos fielmente o fetichismo da mercadoria, não teremos a
possibilidade de construirmos uma estrutura de valor alternativa,
revolucionária, que não possui em seu caráter específico o
capitalismo.
190 A Ética em prática no ambiente escolar

As ilusões de uma ordem liberal utópica, na visão de Marx, têm de


ser desmascaradas como aquilo que são: uma réplica daquele
fetichismo que perverte as relações sociais entre pessoas,
transformando-as em relações materiais entre pessoas e relações
sociais entre coisas. (HARVEY, 2010, p. 59)

Por fim, além de um capitulo de O Capital ser dedicado por


Marx ao fetichismo da mercadoria, o conceito de fetiche é utilizado
em diversos momentos da obra, porém, de forma implícita. “O
conceito de fetichismo aparece várias vezes como ferramenta
essencial para desvendar os mistérios da economia política
capitalista” (HARVEI, 2010, p. 51).

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Jadir. Da possibilidade à realidade - O


desenvolvimento dialético das crises em O Capital de Marx.
2005. Tese de doutorado em filosofia – IFCH – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da UNICAMP, Campinas/SP.

ANTUNES, Jadir. O fetiche em O Capital de Marx. Disponível em:


https://jadirantunes.files.wordpress.com/2014/12/o-fetiche-em-o-
capital-de-marx.pdf. Acesso em: 25/06/2016

HARVEY, David. Para entender O Capital: Livro I. Trad. Rubens


Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, Karl. O capital: Crítica da economia política: Livro I: o


processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo:
Boitempo, 2013.

SILVA, Francisco de Assis. Sobre o fetichismo do capital em Karl


Marx. 2011. Dissertação de mestrado – Universidade Federal da
Bahia – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Salvador/BA.
Trabalhos completos 191

= XV =

O ITINERÁRIO DA FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS


COSTUMES: DA BOA VONTADE AO IMPERATIVO CATEGÓRICO

Tamara Havana dos Reis Pasqualatto*


Luciano Carlos Utteich**

RESUMO:
Nas primeiras duas secções da Fundamentação da Metafísica dos
Costumes, Kant relaciona os conceitos de vontade, dever e razão
para estabelecer sua teoria moral (imperativo categórico). Porém,
tais conceitos encontram-se consideravelmente imbricados na obra.
Propõe-se, nesta comunicação, rever a argumentação de Kant desde
a boa vontade até o imperativo categórico, com o intuito de deslindar
o emprego desses conceitos dentro do recorte proposto.

PALAVRAS-CHAVE: Vontade; Dever; Razão; Kant.

Uma metafísica dos costumes é indispensavelmente


necessária para Kant por dois motivos: para investigar a fonte dos
princípios práticos que estão a priori em nossa razão; e porque os
costumes permanecem sujeitos a toda sorte de corrupção, enquanto
faltar um fio condutor e uma norma suprema de seu ajuizamento.
Afirma Kant (2009, p. 75): “pois quando se trata do que deve ser
moralmente bom, não basta que seja conforme à lei moral, mas
também tem de acontecer por causa dela”. Assim, uma metafísica
dos costumes deve investigar a ideia e os princípios de uma possível
vontade pura e não as ações e condições do querer humano em
geral. Porém, tais ideias de vontade, dever e razão encontram-se
razoavelmente imbricadas no texto kantiano.
Não há nada que se possa pensar como irrestritamente bom
a não ser uma boa vontade, afirma o início da primeira secção do
texto kantiano. Afirma ele: “a boa vontade é boa não pelo que efetua
ou consegue obter, não por sua aptidão para alcançar qualquer fim

* UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus Toledo/PR,


tamarapasqualatto@hotmail.com
** Professor da UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de

Toledo/PR.
192 A Ética em prática no ambiente escolar

que nós tenhamos proposto, mas tão-somente pelo querer; isto é, em


si, e considerada por si mesma” (KANT, 2009, p. 105). No entanto,
sabemos que a vontade humana está sujeita a enganar-se, a
corromper-se. O que, então, faz da vontade uma boa vontade? Kant
responde: a razão. Ela nos foi dada como razão prática, ou seja,
como algo que deve ter influência sobre a vontade. Assevera Kant
(2009, p. 113): “a verdadeira destinação da mesma [razão] tem de
ser a de produzir uma vontade boa, não certamente enquanto meio
em vista de outra coisa, mas, sim, em si mesma, – para o que a
razão é absolutamente necessária”. Desse modo, a razão reconhece
a fundação de uma boa vontade como sua tarefa prática mais
importante. Porém, para desenvolver o conceito de uma vontade
altamente estimável em si mesma e boa sem qualquer intenção
ulterior, Kant passa a investigar o conceito de dever, que contém o
de uma boa vontade.
Kant distingue dois tipos de ações: aquelas conforme ao
dever e as realizadas unicamente por dever. Como uma ação
conforme ao dever pode ser realizada por puro dever ou também por
alguma motivação egoísta ou inclinação pessoal, as únicas ações
humanas consideradas como possuindo um teor genuinamente
moral são aquelas realizadas unicamente pelo puro dever. Ou seja,
aquelas ações as quais o sujeito realiza sem visar obter qualquer
proveito ou benefício próprio, e também sem nenhuma inclinação ou
motivação pessoal que o leve a agir de tal maneira, mas sim, a
realiza tão somente por dever. Assim, consiste o teor moral apenas
em realizar ações conformes ao dever, feitas unicamente por dever.
Portanto, o que faz com que uma ação por dever tenha valor
moral não é o intuito a ser alcançado através dela, mas sim a
máxima que motiva a ação, ou seja, depende do princípio do querer
segundo o qual a ação ocorreu. Desse modo fica claro que as
intenções ao agir ou os efeitos desse ato, enquanto objetivo ou
motivadores da vontade, não podem conferir valor incondicionado e
moral às nossas ações. O valor moral das nossas ações reside
unicamente no princípio da vontade. Isso porque, diz Kant, “(...) a
vontade está bem no meio entre seu princípio a priori, que é formal, e
sua mola propulsora, a posteriori, que é material” (KANT, 2009, p.
127). Sendo assim, ela tem de ser determinada por algo, que é o
princípio formal do querer geral, quando uma ação ocorre por dever,
visto que todo o princípio material foi dela abstraído.
Assim, Kant (2009, p. 127) chega à proposição de que “(...) o
dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei”. Pois uma
ação por dever precisa estar livre de toda influência de qualquer
Trabalhos completos 193

inclinação e de todo objeto da vontade. Desse modo não há nada


que possa determinar a vontade de forma objetiva, exceto a lei e, de
forma subjetiva, o puro respeito por essa lei prática, ou seja, a
máxima – princípio subjetivo do querer; o princípio objetivo é a lei
prática.
Ora, só o que está vinculado à minha vontade como uma
razão para agir pode ser um objeto do respeito e ser, assim, um
mandamento. Afirma Kant:

Nada, senão a representação da lei em si mesma – que por certo só


tem lugar no ser racional na medida em que ela <a representação
da lei>, mas não o efeito esperado, é a razão determinante da
vontade – pode constituir o bem tão excelente a que chamamos
moral, o qual já está presente na pessoa mesma que age segundo
a representação dessa lei. (KANT, 2009, p. 131)

A lei que deve determinar a vontade para que esta possa


chamar-se absoluta e irrestritamente boa é a seguinte: “(...) nunca
devo proceder de outra maneira senão de tal sorte que eu possa
também querer que a minha máxima se torne uma lei universal”
(KANT, 2009, p. 133). Assim, o que serve e tem de servir de princípio
à vontade é a conformidade a leis em geral para que, deste modo, o
dever não seja de todo “(...) um delírio vão e um conceito quimérico”
(ibidem).
Kant segue sua argumentação circunscrevendo a pergunta: o
que tenho de fazer a fim de que o meu querer seja moralmente bom?
Em lançando mão do exemplo – será que eu posso, quando estou
em apuros, fazer uma promessa com a intenção de não a cumprir? –
ele lembra que há dois modos de proceder: ser veraz por dever e ser
veraz por receio das consequências desvantajosas (mentir para
solucionar um determinado problema poderia causar problemas
maiores futuramente). Então, como se faz para saber se uma
promessa mentirosa é conforme ao dever? Para responder a essa
questão, ele sugere outra questão, feita pelo sujeito agente para ele
mesmo:

(...) será que eu ficaria contente se a minha máxima (livrar-me de


um embaraço por meio de uma promessa falsa) valesse como uma
lei universal? (tanto para mim quanto para os outros), e será que eu
poderia dizer para mim mesmo: admito que todo mundo faça uma
promessa falsa quando se encontrar num embaraço do qual não
possa se livrar de outra maneira?
194 A Ética em prática no ambiente escolar

Dessa maneira, conclui que é possível querer a mentira em


uma determinada ocasião, mas nunca admitir uma lei universal de
mentir. Logo, para saber o que tenho de fazer a fim de que o meu
querer seja moralmente bom, é suficiente a simples pergunta: posso
querer que minha máxima se torne uma lei universal? Se sim,
estamos agindo moralmente. Se não, a máxima deve ser recusada.
Disso é possível concluir com Kant (2009, p. 139) que

[...] a necessidade de minhas ações por puro respeito pela lei


prática é aquilo que constitui o dever, ao qual tem de ceder qualquer
outro motivo, porque ele é a condição de uma vontade boa em si,
cujo valor tudo supera.

Por esse caminho, Kant chega ao princípio do conhecimento


moral da razão humana comum. Tal princípio não é representado
pela razão em forma de pensamento de maneira muito abstrata,
numa forma universal, mas ela o tem sempre efetivamente diante
dos olhos, usando-o como norma de seu ajuizamento. Com esse
princípio é fácil para a razão saber o que fazer em todos os casos
que se lhe deparem para distinguir o que é bom, o que é mau,
conforme ao dever ou contrário a ele. Dito de outro modo, não é
preciso de qualquer ciência e filosofia para saber o que se tem de
fazer para ser honesto e bom e, até mesmo, para ser sábio e virtuoso
(KANT, 2009).
A transição para o conhecimento racional moral comum para
o conhecimento filosófico, prometida no prefácio, dá-se no final da
primeira secção. Kant (2009, p. 145) sabe que “(...) o homem sente
dentro de si mesmo, em suas necessidades e inclinações, cuja
inteira satisfação ele resume sob o nome de felicidade, um poderoso
contrapeso a todos os mandamentos do dever”. Dessa propensão
humana origina-se o que ele chama de uma dialética natural, ou seja,
uma tendência a sofismar contra as rigorosas leis do dever, a pôr em
dúvida sua validade e, se possível, torná-las mais adequadas a
nossos desejos e inclinações (ALMEIDA, 2009).
Contra esses fatos, Kant (2009, p. 146-147) afirma que

[...] a razão humana comum é impelida por razões práticas a sair de


seu círculo e a dar um passo no campo de uma Filosofia prática,
para receber aí informações e clara orientação quanto à fonte de
seu princípio e à correta determinação do mesmo.

Assim, ela pode se opor às máximas que se apoiam na


necessidade da inclinação – em vez de na necessidade da lei –, e
Trabalhos completos 195

pode sair do embaraço quanto às pretensões dos dois lados, não


correndo o risco de se ver privada de todos os genuínos princípios
morais.
A segunda secção inicia-se com a afirmação de que embora
o conceito de dever tenha sido extraído do uso comum de nossa
razão prática, isso não quer dizer, por isso, que ele tenha sido
tratado como um conceito da experiência. Afinal, embora seja
possível notar se uma ação foi realizada em conformidade com o
dever ou não, nenhuma atitude humana, a título de exemplo, pode
ser tomada como tendo sido realizada por puro dever, pois o
princípio da ação não é de maneira alguma observável.
Afirma Kant (2009, p. 163):

[...] é absolutamente impossível estabelecer com plena


certeza pela experiência um único caso em que a máxima de
uma ação, de resto conforme ao dever, tenha assentado
unicamente em razões morais.

Afinal de contas, quando se trata do valor moral, afirma ele, o


que importa realmente não é a ação em si, que é observável, mas
sim, os princípios íntimos da ação, que a gente não vê.
A respeito da hipótese de que é possível que jamais tenham
existido no mundo ações originadas de fontes puras, como o puro
dever – levando em conta que, ao averiguar onde se apoia a
verdadeira intenção das ações, muitas vezes topamos com o “[...]
bem-amado eu”, colocado sempre em um lugar de destaque, em
detrimento do severo mandamento do dever –; Kant afirma que não
se trata aqui, em sua reflexão moral, de se acontece uma coisa ou
outra, mas sim, que a razão comanda por si só e independentemente
de todas as aparências aquilo que deve acontecer. E ainda, que este
dever está situado, enquanto dever geral – antes de toda experiência
– na ideia de uma razão que determina a priori a vontade mediante
razões.
Posto que devam ser extraídas da razão pura e ter sua
origem plenamente a priori, afirma Kant, as leis para a determinação
da vontade é de tão extensa significação que elas devem valer para
todos os seres racionais em geral, de modo absolutamente
necessário. Sendo assim, diz Kant (2009, p. 171): “[...] não há, pois,
nenhum genuíno princípio supremo da moralidade que não tenha de
se basear, independentemente de toda experiência, na razão pura
apenas”.
196 A Ética em prática no ambiente escolar

Neste ponto da reflexão é o momento de distinguir, então,


entre um conhecimento comum e o conhecimento filosófico ou entre
a Filosofia prática popular e a Metafísica dos Costumes. E a primeira
sinalização que Kant faz nesse sentido é a de que, de fato, é
louvável a condescendência a conceitos populares, mas somente
após a elevação aos princípios da razão pura. Dessa maneira: deve-
se em primeiro lugar “[...] fundar a doutrina dos costumes na
Metafísica para, em seguida, quando esta estiver estabelecida,
assegurar-lhe acolhida através da popularidade” (KANT, 2009, p.
173).
Tal Metafísica dos Costumes é, para Kant, um fundamento
indispensável de todo conhecimento teórico dos deveres
determinado de maneira segura, mas, ao mesmo tempo, um
desiderato da mais alta importância para o efetivo cumprimento de
seus preceitos. Afirma (2009, p. 179):

[...] a representação do dever e, de modo geral, da lei moral,


<representação esta> pura e sem mistura com qualquer acréscimo
alheio de estímulos, tem sobre o coração humano, pela via da razão
apenas um influxo tão mais poderoso do que todas as outras molas
propulsoras que se possa mobilizar no campo empírico, que ela, na
consciência de sua dignidade, despreza as últimas e pode se tornar
aos poucos senhora delas.

Do que foi exposto, Kant tira várias conclusões: que todos os


conceitos morais têm sua sede e origem na razão; que eles não
podem ser abstraídos de qualquer conhecimento empírico; que é
nessa pureza de sua origem que está sua dignidade para servirem
como princípios práticos supremos; que sempre subtraímos à sua
genuína influência e ao valor irrestrito das ações tanto quanto
acrescentamos de empírico a eles; que esta não é uma exigência da
maior necessidade para fins teóricos, mas também é da maior
importância prática haurir na razão pura seus conceitos e leis,
apresentá-los puros e sem mistura e também determinar a extensão
de todo o conhecimento racional prático ou puro, ou seja, a faculdade
inteira da razão prática pura.
E ainda, porque as leis morais devem valer para todo ser
racional em geral é da maior importância prática derivar os princípios
já do conceito universal de um ser racional em geral e, dessa
maneira, expor toda a Moral independentemente desta, como
Metafísica, com perfeita consciência de que, continua Kant (2009, p.
181):
Trabalhos completos 197

[...] se não estivermos de posse dela, seria em vão determinar de


maneira exata para o ajuizamento especulativo o elemento moral do
dever em tudo o que é conforme ao dever, mas até mesmo
impossível, no que concerne ao mero uso comum e prático, em
particular na instrução moral, fundar os costumes em seus
princípios genuínos, produzindo assim atitudes morais puras e
implantando-as nos ânimos para o bem supremo do mundo.

É aqui o momento de mais uma transição. Segundo Kant,


para avançar nessa elaboração do pensamento moral – não
simplesmente do ajuizamento moral comum ao ajuizamento
filosófico, o que já foi feito – é necessário avançar de uma filosofia
popular até a Metafísica. Para isso é necessário “[...] percorrer e
apresentar distintamente a faculdade racional prática, desde as suas
regras de determinação universais até o ponto em que dela se
origina o conceito do dever” (KANT, 2009, p. 183).
Razão prática é a vontade unida à razão para fazer com que
as ações humanas derivem de leis. Afinal, apenas seres racionais
podem agir segundo a representação das leis, o que é o mesmo que
dizer: só ele pode agir segundo princípios ou segundo uma vontade.
Se a razão determina a vontade de modo infalível, então é
possível afirmar que toda ação reconhecida como objetivamente
necessária é também necessária subjetivamente. Dito de outro
modo, a vontade seria uma faculdade de escolher apenas aquilo que
a razão reconhece como bom. Porém, não é isso que se passa com
seres humanos. Nos seres humanos (cuja vontade não é santa, ou
seja, não coincide com a razão), a razão, sozinha, não é capaz de
determinar a vontade de modo suficiente, pois nossa vontade
também responde às condições subjetivas que nem sempre estão de
acordo com as condições objetivas. Sendo assim, as ações
reconhecidas como objetivamente necessárias, tornam-se, no
humano, subjetivamente contingentes.
Podemos agir de determinado modo ou de outro. A
determinação da vontade em conformidade com as leis objetivas
passa a ser, por isso, uma “necessitação”. Para usar as palavras de
Kant (2009, p. 185): “[...] a representação de um princípio objetivo, na
medida em que é necessitante para uma vontade, chama-se um
mandamento (da razão) e a fórmula do mandamento chama-se
imperativo”.
Desse modo, uma lei objetiva da razão relaciona-se com uma
vontade que não é necessariamente determinada por ela através dos
imperativos, que são sempre expressos por um verbo significando
198 A Ética em prática no ambiente escolar

“dever”. Um imperativo diz a uma vontade o que seria bom fazer ou


omitir. Kant (2009, p. 187) explica que

[...] bom em sentido prático é o que determina a vontade mediante


as representações da razão, por conseguinte, não em virtude de
causas subjetivas, senão objetivamente, isto é, em virtude de
razões que são válidas para todo ser racional enquanto tal.

E ainda esclarece que todos os imperativos mandam


hipotética ou categoricamente. No primeiro caso, os imperativos
hipotéticos representam a necessidade prática de uma ação como
meio para conseguir uma outra coisa que se quer. Por sua vez, o
imperativo categórico é aquele que representa uma ação como
objetivamente necessária por si mesma, sem referência a um outro
fim.
Por fim, sabendo que a lei prática representa uma possível
ação como boa e por isso mesmo como necessária para um sujeito
cuja vontade é passível de ser determinada pela razão prática, os
imperativos são as fórmulas da determinação da ação necessária,
segundo os princípios de uma boa vontade. Se uma ação é boa
como um meio para outra coisa, trata-se de um imperativo hipotético.
Já, se uma ação é representada como boa em si, como necessária
numa vontade que está conforme a razão enquanto princípio dessa
vontade, trata-se aí do imperativo categórico.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Guido A. Introdução à Fundamentação da Metafísica dos


Costumes. In: KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos
Costumes. Trad. Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Barcarolla,
2009.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes.


Trad. Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Barcarolla, 2009.
Trabalhos completos 199

= XVI =

O OUTRO E O CORPO PRÓPRIO NA ÉTICA DE


MERLEAU-PONTY

Patrícia Saori Kato Kawakami*


Vanessa Furtado Fontana**

RESUMO:
Este trabalho possui como objetivo analisar e refletir acerca dos
conceitos de corpo próprio, outro e como a ética da intersubjetividade
se constrói no sistema filosófico de Merleau-Ponty. Será também
abordado a crítica elaborada pelo referido filósofo acerca da teoria da
Intelectualidade e do Empirismo acarretando em um novo conceito
de consciência, pensando-se assim em uma Ética sem fixação de
valores, mas, antes, uma ética constitutiva e ontológica.

PALAVRAS-CHAVE: Corpo próprio; Outro; Ética; Merleau-Ponty

A Fenomenologia é um movimento filosófico contemporâneo


que visa estudar os fenômenos. Surge como uma oposição ao
idealismo e ao positivismo, pois o primeiro colocava a consciência
como instância máxima para se explicar a realidade e o segundo
pelo motivo de vincular todo conhecimento aos sentidos. Por isso,
esse novo método filosófico abandona o pensamento de se ter uma
consciência egocêntrica para se fixar ao homem e toda a sua
experiência, este advindo tanto da razão quanto dos sentidos.
O conceito mais característico da Fenomenologia é a
intencionalidade, pois segundo Husserl, todo o tipo de experiência
vivenciada é obtida de uma maneira intencional, pois toda nossa
consciência está diretamente voltada para os objetos. É a partir da
intenção que a consciência é capaz de reconhecer determinado
objeto.
De acordo com Struchiner (2007), com o advento da
Fenomenologia, a maneira de se conhecer o mundo também mudou,
pois essa Filosofia revelou-se em um momento em que as ciências

* UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná


patriciaskawakami@gmail.com
** Professora da UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
200 A Ética em prática no ambiente escolar

positivas estavam passando por uma crise caracterizada pela


confiança plena naquilo que deste advinha, desvalorizando o mundo
como ele realmente é, ou seja, do jeito que ele se mostra para os
indivíduos; e é exatamente por isso que Husserl desenvolve o
método fenomenológico, com o objetivo de se voltar para o mundo
das experiências para dar ao cientificismo uma fundamentação para
suas pesquisas. Para Sokolowski (2014), essa volta para aquilo que
é verdadeiro se dá por meio da redução fenomenológica, que é a
passagem da atitude natural para a atitude fenomenológica.
Para Husserl, a atitude natural é a crença inabalável no
mundo como se vê. É uma compreensão popular, a qual todos
podem ver o que eu vejo. É pensar o mundo como algo imutável que
vai estar sempre lá nos rodeando. Nessa concepção, a consciência
esquece dela mesma como capaz de conhecer através dos sentidos.
O objetivo do filósofo é justamente tirar o homem desse transe da
atitude natural e fazê-lo conhecer o verdadeiro mundo em que vive,
método que só é possível através da redução fenomenológica.
A redução fenomenológica, como acima citado, é o método
utilizado por Husserl para se voltar à experiência anterior a todas as
depravações geradas pelo cientificismo, ou seja, de sair da atitude
natural e nos colocar no mundo fenomenológico, assim criando o seu
método, a Fenomenologia Transcendental. Após realizado essa
técnica, é encontrado o ego puro, onde houve uma separação do
mundo natural do mundo fenomenológico, como um vir a ser, sem
conter princípios ou valores, identificando-se como simples
fenômeno.
Nota-se, assim, que houve uma mudança no conceito de
consciência, pois ela deixa de ser voltada apenas para si mesma,
para visualizar o mundo, onde ela observa os objetos e ao mesmo
tempo é deixada ser envolvida por eles, com base em uma relação
dialética. Agora, é a partir da intencionalidade que ela consegue se
desdobrar e conhecer os objetos. Nesse momento, o indivíduo não
mais está preso na atitude natural; agora, seu olhar se dirige para a
atitude fenomenológica, acarretando na redução e alcançando a
consciência pura.
Leitor de Husserl e influenciado por este, Merleau-Ponty
critica a Ideia da Filosofia Transcendental, dando origem à sua
própria filosofia, a Filosofia da Percepção, na qual escreve a
percepção como um pensamento que usa das sensações para se ter
a consciência de um dado objeto. Diferentemente da Filosofia de
Husserl, a consciência adotada por Ponty, não é totalizante e sim,
interpretativa.
Trabalhos completos 201

Silva (2009) afirma que, para se compreender a percepção,


devemos analisa-la sobre dois aspectos: o intelectualismo e o
empirismo. O primeiro diz respeito ao conceito de que a percepção é
o ato de perceber as variedades de sensações através do órgão
visual, onde o grau das sensações era medido conforme a excitação
da retina. Dessa maneira, a percepção é aqui vista como um
conhecimento advindo puramente da razão.
Em contrapartida, há a análise conferida pelo empirismo. De
acordo com essa concepção, a percepção é obtida através dos
objetos externos que, em contato com alguma parte do nosso corpo,
cria uma sensação que é rapidamente interpretada pelo nosso
cérebro, sendo o conhecimento totalmente dependente desse objeto.
Com base nessas duas explicações, Merleau-Ponty tece
críticas tanto para o intelectualismo quanto para o empirismo, entre
razão e experiência, pois ambas as teorias possuem uma ligação em
comum, tendo como base o mundo objetivo.
Além disso, para o filósofo, nenhuma das teorias, empirista ou
racionalistas, serviria para se obter o conhecimento, pois no primeiro
caso, a consciência é muito pobre, dando demasiada atenção ao
mundo, considerando-o como uma realidade em si mesmo. Já no
segundo caso, a consciência é muito rica, tornando a investigação
desnecessária, ocasionando uma ruptura com o mundo, uma vez
que este é sustentado pela operação da consciência. Ambas as
posições teóricas, ocasiona um distanciamento entre aquele que
percebe, sujeito, e aquilo que é percebido, objeto.
Após essa crítica, o fenomenólogo encontra uma nova
maneira de encarar a percepção utilizando-se da Gestalt que,
segundo Silva (2009), é a teoria que afirma que tudo aquilo que pode
ser percebido, encontra-se em um campo, não existindo uma
sensação que a capte e nem um objeto em destaque para se
perceber, isto é, não existe uma diferença entre sensação e
percepção porque não podemos sentir em partes, ou seja, não
sentimos apenas um único objeto, mas sim a sua totalidade, o seu
conjunto, pois, “a percepção deixa de constituir um processo em que
o intelecto regula, geometricamente, os objetos no espaço por
associação, ou, ainda, que une, via uma síntese intelectual, as partes
dos materiais dados” (SILVA, 2009).
A percepção também está inteiramente relacionada com a
ideia de corpo, pois “na concepção fenomenológica da percepção a
apreensão do sentido ou dos sentidos se faz pelo corpo, tratando-se
de uma expressão criadora, a partir dos diferentes olhares sobre o
mundo” (NÓBREGA, 2008). Nesta perspectiva, o filósofo visa
202 A Ética em prática no ambiente escolar

retornar à existência, ao mundo vivido, que significa, segundo


Husserl, o equilíbrio entre os opostos, como por exemplo,
objetividade e subjetividade, interioridade e exterioridade, existindo
apenas no mundo anterior a qualquer tipo de conhecimento, sem
qualquer tipo de teoria.
Para Silva (2009), a ideia de percepção do corpo permite uma
análise diferenciada do proposto pela teoria cartesiana, onde o corpo
é definido como um ente sem interior, dado como uma soma de
partes presente no mundo objetivo, regulado pela causalidade,
configurando, conforme o mesmo autor, um “exterior sem interior”.
De modo contrário, a psicologia define o corpo como uma
representação da consciência, uma maneira da alma sair de seu
interior e se manifestar, diferentemente do cartesianismo, onde a
alma é inteiramente presente em si. Dá-se então que nesse caso, o
corpo constitui um “interior sem exterior” (SILVA, 2009).
Com essa análise, Merleau-Ponty conclui que em ambos os
casos os fenômenos foram completamente ignorados, pois de um
lado o corpo é visto como uma simples propriedade psíquica e de
outro como um mero meio de se realizar movimentos motores, sendo
necessário uma ligação entre o fisiológico e o psíquico para se
alcançar o fenômeno da encarnação. Encontra-se, nesse caso, a
ambiguidade e a natureza paradoxal da experiência perceptiva, ou
seja, agora a essência é estritamente relacionada com a existência,
não havendo mais conhecimento sem carne, sem corpo, colocando o
homem como referência das ciências e da filosofia.
Entende-se, então, por experiência do corpo próprio, uma
ligação entre o sujeito e o objeto que se caracteriza pela “fusão” da
consciência com o corpo, onde a intencionalidade se desmembra da
consciência e passa a caracterizar o corpo enquanto meio de
percepção do mundo. Por isso, Ponty declara que a verdade não se
encontra no homem interior, pois não existe um homem interior, a
verdade se encontra no homem exterior, pois é no âmbito externo
que ele se reconhece.
Nesta concepção, o corpo percebe e é percebido
simultaneamente ele também é percebido. O corpo já não é mais um
abrigo para o conhecimento, mas a própria existência que se
comunica com o mundo. Em um exemplo clássico dado em seu livro
Fenomenologia da Percepção, o filósofo descreve, de acordo com
Nóbrega (2007), o encontro de duas mãos podendo ser pertencentes
a duas diferentes pessoas, onde cada uma consegue sentir o toque
uma da outra; portanto, ali se reconhece que existe um Outro que
Trabalhos completos 203

possui um corpo equivalente ao meu, passível de comunicação e


compreensão.
Merleau-Ponty declara, em Fenomenologia da Percepção,
que o movimento e o sentir são as bases da percepção. Segundo
Nóbrega (2007), “Os movimentos acompanham nosso acordo
perceptível com o mundo” e as sensações sempre vão estar
agregadas ao movimento, pois cada objeto incita a execução de um
gesto, havendo, portanto, a possibilidade de interpretações de novas
situações existenciais.
Explicando melhor, é a partir do movimento, da manifestação
do meu corpo que eu consigo me expressar. Por causa disso, não se
pode ver o movimento de outrem como algo insignificante ou como
um simples movimento motor, como no método cartesiano, mas sim,
como um gesto cheio de expressão e significado, onde ocorre a
união entre o físico e o psíquico, entre o pensar e o agir. O gesto,
nessa situação, é a comunicação que revela o íntimo das pessoas, o
seu interior.
Ponty defende a ideia de que o corpo não é simples receptor
de sentidos, possuindo também a sua maneira de pensar e por isso é
fonte de sensações. Tem-se como exemplo, o gesto, uma forma de
pensamento que se manifesta para o mundo, representando
transcendentalidade. Todos os nossos gestos possuem um sentido e
por isso é composto por expressividade.
Abordamos, até agora, a ideia de um corpo próprio como
parte de nossa singularidade, tendo como principais características a
sensação e o movimento garantindo assim, a sua existência no
mundo. Aborda-se na sequência a ligação entre ética e corpo próprio
com base nas ideias do fenomenólogo, fato que o filósofo não
chegou a elaborar em vida.
De acordo com Santos (2005), para se estudar a ética é
necessário explicar de forma racional as condutas morais, excluindo
a possibilidade de avaliar de forma absoluta o que deve ou não deve
ser feito ou evitado. Essa concepção moderna de ética leva em conta
os limites do saber humano, problematizando a questão do corpo
próprio, pois somente ao pensar e falar de ética já se inclui a questão
do outro.
O conceito de liberdade em Merleau-Ponty define-se como
êxito realizado pelos homens através de suas ações, ou seja, é a
possibilidade de superação de uma situação. Essa dádiva nos é
dada desde quando nascemos no mundo, pois o mundo é cheio de
possibilidades e é nosso destino superá-lo. Porém, como o mundo é
limitado porque não é totalmente constituído, sua liberdade também
204 A Ética em prática no ambiente escolar

o é, tendo o próprio mundo que oferece liberdade aos indivíduos,


também o limitando. Nessa perspectiva, nosso filósofo desconstruiu
a ideia de um sujeito constituinte universal, rebelando-se contra o
conceito de liberdade absoluta pregado por Kant. Dessa maneira,
abriu a possibilidade para se pensar em uma “ética da alteridade
originária” (SANTOS, 2005).
O corpo não pode ser considerado como um objeto da ação
moral, mas sim como o iniciador de qualquer comportamento moral.
“Existir é ser ético, porque existir é ser-com” (SANTOS, 2005).
Conhecendo e vivenciando coisas com os outros, é que passamos a
nos preocupar com questões morais tomadas por nosso
comportamento. Isso é uma premissa para uma ética da finitude que:

Uma ética da finitude e da existência corporal não exclui a


normatividade moral, na medida em que dificilmente a
normatividade pode ser excluída da sociabilidade. Toda
normatividade, porém, está enraizada e deriva do mundo da vida,
que implica corpo próprio, onde, mesmo pré-reflexivamente, a
existência já é constitutivamente ética. (SANTOS, 2005)

Para Merleau-Ponty, não se deve buscar uma justificativa


para a ética, porque já se parte do pressuposto que o
comportamento moral é um dever que deve ser praticado por todos.
A ética não pode ser fixada normativamente e nem ser iniciadora de
nenhuma conduta, pois vivemos o indeterminado, não existindo a
intenção de fixação axiológica. A legitimidade de uma conduta moral
independe de uma verdade intrínseca, pois sempre existe em todas
as situações no sistema “eu-outrem-mundo” (SANTOS, 2003).
Para o Fenomenólogo, todos os homens são vistos como um
ser duplo, em permanente antinomia com eles mesmos, antinomia
esta, inerente à condição humana de estar sempre se relacionando
com os outros e, por esta razão, estarem sujeitos a tomarem
decisões. Desse modo, a ética terá que encarar alguns problemas
entre eles:

Como ser ético considerando a complexidade do mundo em suas


várias ondulações e a complexidade do ser do outro em seu agir
pulsante de desejos, paixões e razões? Como evitar enquadrar o
outro em conceitos racionais a priori que determinam a boa ação?
Como ser ético no mundo da vida, considerando-nos em nossas
inteirezas pulsantes de contradições? (SANTOS, 2005)
Trabalhos completos 205

Dessa maneira, Ponty declara que é necessário encarar o


conflito, as divergências, a indeterminação, como características da
existência do mundo. É preciso reconhecer que o mundo não
pertence só a mim, mas pertence também aos outros e, portanto,
possui como atributo a alteridade e, por isso, exige-se ações como
comunicação, interação e compreensão por parte das pessoas.
Desse modo, temos que cada pessoa é distinta uma da outra; cada
uma possuindo seu corpo próprio, onde estão inseridas em um
mundo que as rodeiam e que, por si só, já possui como característica
fundamental a moralidade.
Estes estudos fazem perceber que o corpo próprio é repleto
de significações, aspecto este que o liga à ética. Tem-se com isso,
que todo comportamento moral ocorre na presença do outro, ou seja,
no mundo repleto de antinomias. O Mundo comum a todos e o corpo
próprio é indicativo para a criação de uma ética que supere os
princípios da dualidade acima explicados e que, concomitantemente,
integre os conflitos pertinentes à existência.
Segundo Santos (2005), Merleau-Ponty não elaborou uma
teoria sobre a ética, pois faleceu antes, porém, os seus estudos
oferecem uma gama de conteúdo para uma plausível ética originária.
Uma ética que, segundo o referido autor, “parte do reconhecimento
do caráter ilusório de uma alteridade circunscrita na consciência e
afirma a singularidade ineloquível do outro, como alteridade
originária”, ou seja, a construção de uma ética voltada para a
existência do mundo, desconstruindo a ideia de um viver carregado
de desgostos e antinomias, acarretando no assentimento total do
mundo como ele é.

REFERÊNCIAS

NÓBREGA, Terezinha Petrucia da. Corpo, percepção e


conhecimento em Merleau-Ponty. 2008. 8 f. Tese (Doutorado) -
Curso de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal, 2007.

SANTOS, Maria Edivânia Vicente dos. Ética e Corpo Próprio em


Merleau-Ponty. 2005. 106 f. Tese (Doutorado) - Curso de Filosofia,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006.

SILVA, Claudinei Aparecido de Freitas da. Carnalidade da


reflexão. São Leopoldo-RS: Nova Harmonia, 2009. 328 p.
206 A Ética em prática no ambiente escolar

SOKOLOWSKI, Robert. Introdução à Fenomenologia. 4. ed. São


Paulo: Edições Loyola, 2014. 247 p.

STRUCHINER, Cinthia Dutra. Fenomenologia: de volta ao mundo-


da-vida. Rev. abordagem gestalt., Goiânia, v. 13, n. 2, p. 241-
246, dez. 2007. Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-
68672007000200009&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 11 maio 2016.
Trabalhos completos 207

= XVII =

PENSAR A DIGNIDADE HUMANA A PARTIR DO


ESCLARECIMENTO E DA EDUCAÇÃO DO SUJEITO

Marilda Pereira dos Santos*

RESUMO
Entendemos que há duas formas de ler um texto filosófico. A primeira
delas consiste em ler um autor para buscar entendê-lo e a segunda
consiste em ler um filósofo no intuito de responder a uma questão.
No primeiro caso, é possível pensar que, por mais profunda que seja
a compreensão, por mais admirável que seja a escrita ou a
apresentação, não é possível fazer filosofia ou pensar sobre ela, mas
apenas fazer a descrição do que há muito tempo foi descrito. No
entanto, no segundo caso, quando se busca um filósofo no intuito de
esclarecer um questionamento que se manifesta para o leitor, neste
caso, saber como a educação e o esclarecimento emancipam os
indivíduos para pensar a dignidade humana; e mesmo que tal
questão não seja respondida, se está fazendo um exercício que ao
menos podemos considerar como filosofia. O motivo que nos leva a
pesquisar o pensamento de Kant tem por base a leitura analítica para
buscar entender como se deu o processo de construção de seu
pensamento. Buscamos, nesse caso, fazer apenas uma questão; tal
questão é o reflexo do nosso sistema contemporâneo, e nos tem
instigado buscar uma compreensão. Neste contexto, a questão da
defesa da dignidade humana tem sido debatida em muitos grupos
que visam garantir os direitos humanos. Entendemos que o princípio
da dignidade humana é essencial em qualquer democracia, pelo fato
de ser ele seu próprio fundamento e condição de existência. Ele é
logicamente anterior a qualquer ordem política. Por isso, uma
pessoa, só pelo fato de pertencer ao gênero humano, já é detentora
de dignidade.

PALAVRAS-CHAVE: Dignidade Humana; Educação;


Esclarecimento.

*UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Toledo/PR,


marildapereiradossantos@gmail.com
208 A Ética em prática no ambiente escolar

Nessa análise provisória é impossível não aceitar que o tema,


tenha sua importância reconhecida, porém, quando debatido, os
argumentos divergem entre mais conservadores e argumentos mais
liberais; embora todos tentem legitimá-los, muitas vezes, não passam
de opiniões baseadas no senso comum, dessa forma, tais
argumentos não podem garantir sua universalização.
Diferentemente do que estes defensores opinam, nós
compreendemos que a dignidade de uma pessoa é um atributo
intrínseco a todos os seres humanos, decorrente da exata qualidade
da sua humanidade, que os torna merecedores de igual estima e
apreço por parte dos seus semelhantes35.
Kant tomou para si a tarefa de pensar sobre os limites e as
possibilidades do conhecimento. De modo que, no pensamento de
Kant, destacam-se aspectos críticos e construtivos, na medida em
que o filósofo de Königsberg considera que, por meio da filosofia, a
humanidade pode ser compreendida e educada. Ou melhor, o
homem é uma criatura que precisa ser educada.
Em uma educação moral, a dignidade humana deve estar em
primeiro plano: que o ser humano preserve a dignidade humana em
sua própria pessoa e na de outrem. Desse modo, iremos argumentar
que Kant acredita que a liberdade humana é o elemento fundacional
para construirmos uma sociedade justa, autônoma e esclarecida.
Nessa investigação, visa-se compreender a ideia de
dignidade humana, para pensar a relação de esclarecimento e a
educação no sujeito. Destacamos aspectos importantes do modo
como Kant expõe cada conceito, em específico nas obras
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Resposta à Pergunta:
Que é esclarecimento [Auklaring]? e, Sobre a pedagogia. O conceito
de “esclarecimento” (Aufklätrung), por exemplo, segundo o filósofo, é
relacionado tanto ao indivíduo, como à sociedade e sua época, essa
época pode, de certa forma, ser pensada nos dias de hoje.
Nosso objetivo é visitar os textos de Kant, procurando pensar
de que modo o pensador alemão propõe a realização do processo
formativo do sujeito, por isso, é importante entender o que Kant
afirma sobre educação, para com isso, avaliarmos a compreensão da
ideia de dignidade humana no próprio sujeito.

35 “[...] No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa
tem um preço, pode-se pôr em qualquer outra como equivalente; mas quando uma
coisa está acima de todo preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela
dignidade”(KANT, 2011, p. 82).
Trabalhos completos 209

Assim, pensando um sujeito emancipado e educado, de


forma que garanta seus direitos e deveres fundamentais,
assegurando-os contra todo e qualquer ato desumano, possibilita
garantir as condições mínimas para que todos reconheçam no outro
sua dignidade, participando ativamente na sua própria existência e
na existência para com os demais seres humanos.
A tarefa de tematizar a filosofia de Immanuel Kant nos impõe
a necessidade preliminar de descortinar os princípios sobre os quais
se estrutura todo o seu pensamento, desse modo, a afirmação: “[...]
Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa
como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como
fim e nunca simplesmente como meio” (KANT, 2011, p. 73). Este
discurso filosófico de Kant é a formulação do princípio da dignidade,
é ele que nos possibilitara enxergar o ser humano como fim em si e
não como uma coisa; ao enxergar o ser humano como fim, ele será
capaz de avaliar as condições que este ser humano precisa para ser
digno.
Portanto, a questão não é saber se isto ou aquilo acontece,
mas sim que a razão por si mesma, e independentemente de todos
os fenômenos, ordena o que deve acontecer; segundo ele os
princípios da moralidade, livres de todo o empírico, encontram-se
simplesmente em puros conceitos racionais e não em qualquer outra
parte, de forma que ninguém tomará como pura filosofia prática ou
como metafísica36 dos costumes.
Portanto, nos perguntamos: a educação do homem pode
levar a humanidade a um estágio de esclarecimento capaz de
compreender a ideia de dignidade humana? Para responder a esta
questão é preciso contextualizar o que está acontecendo nesse
período no qual Kant expõe seu argumento com relação ao
esclarecimento.
É importante ressaltar que o homem do século XVIII é um
homem otimista e confia no poder da luz natural – da razão –, aqui
ele é contra todas as formas de obscurantismo, ou seja, de magia.
Para Kant, aquele que permanece nas trevas tem algo a esconder. O

36Pode-se, querendo (assim como se distingue a matemática pura aplicada, a lógica


pura aplicada), distinguir igualmente a pura filosofia dos costumes (Metafísica) da
moral aplicada (à natureza humana). Esta terminologia lembra-nos imediatamente
também que os princípios morais não se fundam nas particularidades da natureza
humana, mas que têm de existir por si mesmo a priori, porém que deles se podem
derivar regras práticas para a natureza humana como para qualquer natureza
racional. (Nota de Kant) (KANT, Immanuel, Fundamentação da Metafísica dos
Costumes. Lisboa/ Portugal: Edições 70, 2011, p. 47).
210 A Ética em prática no ambiente escolar

valor de uma ação, de uma ideia, está em se colocar ao público.


Precisamos garantir e promover o esclarecimento, ele é a condição
para o aperfeiçoamento moral do mundo.
A discussão que Kant provoca é movida por um interesse de
defesa e uma crença no poder da razão que, apesar de seus limites,
possibilitará a constituição de uma conduta baseada na liberdade e
na crítica.
Kant responde, com um breve texto publicado em 1783 na
revista Berlinische Monatsschrift, à questão “que é o
esclarecimento?” De modo bastante objetivo, o filósofo inicia o
primeiro parágrafo do seu ensaio já com uma definição:
“‘Esclarecimento’ (Auklaring) significa a saída do homem de sua
minoridade, pela qual ele próprio é responsável, o homem precisa ter
coragem de servir ao seu próprio entendimento, ou seja, ao seu
esclarecimento”37.
Na lógica do pensamento kantiano, podemos perceber que a
preguiça e a covardia são causas que permanecem em grande parte
dos homens; em outras palavras, torna-se cômodo ser menor, assim
é mais fácil instituírem tutores.
Porque quando os homens são instituídos de tutores, não há
necessidade de esforçar-se por nada, não é necessário refletir sobre
nada, muito menos pensar sobre a dignidade humana; o mundo para
muitos é, em si, muito perigoso, de tal maneira que é difícil para o
homem livrar-se da minoridade. Agora, aqueles que conseguem
fazer pelo exercício de seu próprio espírito, pensar por si mesmo,
elevam-se ao “Esclarecimento”.
Ter esclarecimento não significa apenas adquirir um profundo
conhecimento sobre o assunto e sim combinar isso com a conquista
da autonomia, passo moral fundamental apenas dado por uma
minoria.
Kant também não deixou de refletir sobre a educação, não foi
só um espectador das transformações e das discussões sobre a
educação que ocorreram na sua época; é um pensador que
contribuiu intensamente com suas próprias ideias para o debate
desse tema. Ele, de certo modo, conseguiu desenvolver o seu
pensamento, mostrando a necessidade de se ensinar e da forma
como ensinar às crianças. Em sua obra Sobre a pedagogia, admite
que o homem é a única criatura que precisa ser educada.

37“[...] se possuo um livro que possui entendimento por mim, um diretor espiritual
que possui consciência em meu lugar, um médico que decida acerca de meu
regime, etc.,” (KANT, 1784, p. 64).
Trabalhos completos 211

O pensador alemão afirma que a disciplina transforma a


animalidade em humanidade; um animal, por exemplo, é por seu
próprio instinto tudo aquilo que ele pode ser; uma razão exterior a ele
tomou por ele antecipadamente todos os cuidados necessários.
Quanto ao homem, ele tem necessidade de sua própria razão, nele
há instintos, mas por si mesmo precisa formar o projeto de sua
conduta.
O homem precisa de cuidados especiais indispensáveis para
sua sobrevivência e formação, uma vez que, para além dos cuidados
requeridos para sobrevivência biológica, ele precisa aprender, dentre
outras funções importante, a conviver em sociedade, a se disciplinar
e a entrar no mundo cultural que define o espaço de humanidade.
Segundo o filósofo alemão, a espécie humana é obrigada a
extrair de si mesma, pouco a pouco, com suas próprias forças, todas
as qualidades naturais que pertencem à humanidade, sendo que
uma geração vai educando a outra. A disciplina, portanto, é o que
impede ao homem de desviá-lo de seu destino, desviá-lo da
humanidade. De certo modo a disciplina é puramente negativa,
porque tira o homem a sua selvageria38.
A instrução, ao contrário, é a parte positiva da educação. A
condição para formação do homem reside na educação dada por
meio de seus preceptores, por aqueles que já passaram pelo
processo educacional; nas palavras de Kant, “o homem não pode
tornar-se um verdadeiro homem se não pela educação. Ele é aquilo
que a educação faz dele”.
De acordo com Kant, as crianças geralmente são mandadas
cedo para escola para que se acostumem a ficar sentadas e
tranquilas, dessa forma são capazes de obedecer, afim de que no
futuro elas sigam, de fato, apenas os seus caprichos.
O homem é tão naturalmente inclinado à liberdade que,
depois que se acostuma a ela, tudo sacrifica. Ora, por essa razão é
conveniente recorrer cedo à disciplina. O homem tem necessidade
de cuidados, de formação. Portanto, a formação compreende a
disciplina e a instrução.
Aí reside, para Kant, a importância da educação: fazer com
que o homem se torne sempre melhor e cada uma das gerações
futuras dê um passo a mais em direção ao aperfeiçoamento da

38“[...] A selvageria consiste na independência de qualquer lei. A disciplina submete


o homem às leis da humanidade e começa a fazê-lo sentir a força das próprias lei”
(KANT, 1996, p. 12-13).
212 A Ética em prática no ambiente escolar

humanidade, uma vez que o segredo da perfeição da natureza


humana se esconde no próprio problema da educação.
Para compreender melhor essa ideia, Kant ressalta que o
projeto de uma teoria da educação é um ideal nobre, mesmo que ele
não possa ser realizado, o que não nos impede de considerá-lo como
uma ideia para se concretizar no futuro. O próprio Kant nos chama a
atenção para esse argumento, diz que uma ideia não é outra coisa
senão o conceito de uma perfeição que ainda não se encontra na
experiência.
A educação é uma arte, cuja prática necessita ser
aperfeiçoada por várias gerações. Portanto, cada geração, de posse
dos conhecimentos das gerações precedentes, possui melhores
condições para educar gerações posteriores.
Compete ao homem extrair de si o bem, a ele compete
desenvolver a felicidade e infelicidade, Kant diz: “[...] Tornar-se
melhor, educar-se e, se se é mau, produzir em si moralidade: eis o
dever do homem”(KANT, 1996, p. 21).
A educação, portanto, é o maior e o mais árduo problema que
pode ser proposto aos homens, conhecimento e educação
dependem um do outro. Por essa razão, a educação não pode ser
lançada à frente sem que as experiências e o conhecimento das
gerações acrescentem e transmitam algo para as gerações
seguintes.
Em termos kantianos, o homem também deve tornar-se culto;
a cultura é a forma de abranger a instrução e vários conhecimentos.
Kant afirma que a cultura é a criação da habilidade e esta é a posse
de uma capacidade condizente com todos os fins que almejamos.
A educação deve se dar para que o homem se torne prudente
e moralizado; convém ensinar ao homem escolher apenas os bons
fins. Bons nesse sentido são aqueles fins que são aprovados por
todos e que podem ser, ao mesmo tempo, os fins de cada um.
Enfim, é preciso educar os homens para que aprendam a
pensar, devendo apoiar-se em princípios (morais) que façam com
que estes reflitam sobre a ideia da dignidade da pessoa humana.
Kant nos ensina que, uma vez que as disposições naturais do ser
humano não se desenvolvem por si mesmas, toda educação será
uma arte.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, G. A. de. Liberdade e moralidade segundo Kant. In:


Analytica, Rio de Janeiro: v. 2, n. 1, 1997.
Trabalhos completos 213

KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Trad. Edson Bini.


Bauru (SP): Edipro, 2003.

_______. Antropologia de um ponto de vista pragmático.


Tradução: Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminárias, 2006.

_______. Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução: Valerio Rohden


e Antônio Marques. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2012.

_______. Crítica da Razão Pura. Tradução: Fernando Costa Mattos.


4ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes; Bragança Paulista, São
Paulo: Editora Universitárian São Francisco, 2015.

_______. Crítica da Razão Prática. Tradução: Valerio Rohden. 2ª


ed. São Paulo: Martins Fontes – Selo Martins, 2015.

_______. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução:


Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, Ltda., 2007.

_______. Lógica. Tradução: Gottlob Benjamiäsche de Guido Antônio


de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.

_______. Sobre a Pedagogia. Tradução: Fancisco C. Fontanella.


São Paulo: Editora UNIMEP, 1996.

SENEDA, Marcos César. Conceitos de Filosofia na escola e no


mundo e a formação do filósofo segundo Immanuel Kant. Kriterion,
Belo Horizonte, nº 119, p. 233 - 249, Jun/2009
214 A Ética em prática no ambiente escolar

= XVIII =

SÃO BOAVENTURA: CONHECIMENTO EXPERIMENTAL DE DEUS


COMO UM SABOREAR DA DOÇURA DE DEUS

Kimberly Dinnebier Bandeca*


Gilmar Henrique da Conceição**

RESUMO:
São Boaventura, também conhecido como Doctor Seraphicus,
nasceu em Bagnoregio, Itália, em 1221. Ainda jovem, foi a Paris,
sendo promovido a Mestre em Artes, em 1242. No ano seguinte
tornou-se franciscano e começou a cursar Teologia sob a direção de
Alexandre de Hales e outros teólogos. Foi promovido a Mestre em
Teologia, em 1253. No ano de 1257, São Boaventura foi eleito
Ministro Geral da Ordem, sendo forçado a renunciar às atividades
acadêmicas. Sua prudência e clarividência no cargo rendeu-lhe o
título de segundo fundador da Ordem Franciscana. Dentre as obras
de são Boaventura podemos mencionar: Commentarii in quatuor
libros Sententiarum Petri Lombardi; Quaestiones disputatae de
scientia Christi e De mysterio Trinitatis; Breviloquium; Itinerarium
mentis in Deum; Collationes in Hexaemeron. Em que pese o fato de
Santo Tomás (ao lado de Santo Agostinho) ser-lhe uma referência
importante, de maneira geral, o sentido essencial de sua obra só se
revela a partir do contexto interno da mesma; e seria errado
interpretá-la exclusivamente em função da obra de Santo Tomás. Ou
seja, enquanto Santo Tomás incorpora o aristotelismo no mundo das
ideias cristãs, São Boaventura delineia uma ampla tentativa de
renovação e sistematização no espírito de Santo Agostinho. São
Boaventura também é um grande leitor de Platão e Aristóteles.

PALAVRAS-CHAVE: São Boaventura; Ciência e sabedoria; Criação;


Eternidade; Alma.

* UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná,


kimberlybandeca@hotmail.com
** Professor da UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Trabalhos completos 215

18.1 A SABEDORIA COMO OBJETIVO DA FILOSOFIA

No contexto da sabedoria, como sendo objetivo da Filosofia,


Boaventura admira tanto Aristóteles quanto Platão, mas ambos em
níveis diferentes. Admira a Aristóteles somente como o mestre das
ciências, cujo domínio é o mundo sensível cá em baixo.
Diversamente, Platão é admirado por Boaventura como sendo
mestre da sabedoria, porque seu olhar permanece voltado às regiões
superiores. Dentre Platão e Aristóteles, Boaventura escolhe Santo
Agostinho - que é uma síntese feliz dos dois primeiros.
Platão é, justamente, censurado por Aristóteles por haver
limitado todo conhecimento certo ao mundo espiritual ou ideal; não
certamente por haver afirmado a existência de Ideias ou razões
eternas, mas por ter desprezado o mundo dos sentidos e por ter
querido coarctar toda certeza àquelas Ideias. Com tal afirmação quis
assegurar aparentemente o caminho da sabedoria traçado segundo
as razões eternas, mas ao mesmo tempo obstruiu o caminho da
ciência que leva pelas razões criadas. Este é o caminho assegurado
por Aristóteles que, porém, desprezou aquele outro. E, assim, parece
que, entre os filósofos, Platão recebeu a palavra da sabedoria e
Aristóteles a da ciência. Entende que dentre ambas as palavras,
porém, a da sabedoria e a da ciência foram outorgadas pelo Espírito
Santo a Agostinho. Por essa razão, em última instância, Boaventura
prefere seguir Agostinho, propondo ao estudo humano o ideal da
sabedoria; sem, contudo, sacrificar-lhe a ciência.
Por sabedoria, no conceito boaventuriano, entendemos um
conhecimento experimental de Deus, um saborear da doçura de
Deus. Portanto, a sabedoria é aquela apreensão ou contato imediato
com Deus, que principia no conhecimento e remata no amor, pois o
modo mais perfeito do conhecimento de Deus consiste na
experiência de sua doçura: esta é muito mais sublime, nobre e
deliciosa do que a arguição argumentativa. Então, o ideal
boaventuriano da sabedoria vem a culminar na contemplação e na
degustação mística.

18.2 CIÊNCIA E SABEDORIA

A meta final de toda aspiração terrena é o amor de Deus na


sabedoria. Segundo Boaventura, o caminho para este ideal percorre
toda totalidade do saber; cabe à filosofia e à teologia organizá-lo,
com o auxílio da revelação.
Para o problema a que todo místico tem de enfrentar, a saber,
216 A Ética em prática no ambiente escolar

o da função da ciência, Boaventura responde que todas as ciências


têm de ser postas a serviço do amor. E este há de ser o fruto de
todas as ciências que, por meio delas, edifique-se a fé, seja Deus
glorificado, reformem-se os costumes, desfrutem-se as consolações
provenientes da união de Deus e da alma, que se efetua pela
caridade, para a qual converge todo intento da Sagrada Escritura e,
por conseguinte, toda a iluminação que descende do alto. Sem ela (a
caridade) todo conhecimento é vão.

18.3 FILOSOFIA E TEOLOGIA

Para Boaventura, a Filosofia tem apenas uma função: a de


conduzir o homem para Deus. A alma foi criada para contemplar a
Deus, o Bem infinito, e nele repousar. Pela fé a alma já possui esse
saber, mesmo que imperfeito. Essa fé é inabalável, produz uma
convicção mais profunda do que qualquer outro conhecimento
humano. É por isso que a fé é o ponto de partida para todo
conhecimento, inclusive o filosófico. A própria fé inclui um elemento
de especulação: o amor. Toda segurança com que o crente adere à
verdade baseia-se no ato da fé emitido por amor e é, precisamente,
essa caridade que instiga a razão. Pois quem crê por amor deseja
abraçar com toda alma o objeto de sua fé e penetrá-lo com a razão.
E, assim, a filosofia nasce de uma exigência do coração que aspira a
uma compreensão aprofundada do objeto da fé.
A filosofia, por ser uma luz divina, não poderia induzir a erro.
Mas por conta da corrupção do pecado original, o homem não
consegue se esquivar do erro sem alguma ajuda superior. A filosofia
aristotélica é um exemplo de uma filosofia elaborada com total
independência da fé, se restringindo a apenas uma explicação
natural do mundo sensível e rejeitando as Ideias, era inevitável que
incorresse ao erro. Platão também não é isento de erro, pois também
careceu da luz da fé. Seu vício básico foi a ignorância do pecado
original.

18.4 A EMANAÇÃO: O MUNDO CRIADO POR DEUS

Para Boaventura, o mundo foi criado no tempo e não do


nada. Parece-lhe contraditório o conceito de um mundo criado do
nada e existente ao eterno. Toda ordem pressupõe um começo, um
meio e um fim. A concepção boaventuriana do mundo implica uma
história universal e com ela uma ordem no tempo.
A natureza dos corpos, segundo Boaventura, é formada por
Trabalhos completos 217

matéria e forma luminosa. No que concerne à alma, Boaventura crê


que ela deva possuir uma matéria espiritual interna que a torne
capaz de desenvolvimento e receptividade. A alma não é sua vida;
além do princípio doador de vida, deve haver nela um princípio
receptor da vida: a matéria.
Princípio de individuação: como se explica que a alma,
composta por uma forma universal e de uma matéria também
universal, possa ser individual? São Boaventura não deriva a
individualidade da matéria, a seu ver o ser-indivíduo é algo de
soberanamente valioso e sublime, pelo que faz coincidir a
individualidade com a substancialidade, derivadas da união da forma
e matéria. Cristo não deu sua vida pela espécie, mas por cada
homem individual.
Boaventura afirma que a alma é criada imediatamente por
Deus, que difere de homem para homem, tanto em número como em
qualidade, segundo a vontade de Deus e em consonância com seu
respectivo corpo.

18.5 A EXEMPLARIDADE: DEUS ENQUANTO ARQUÉTIPO DA


CRIAÇÃO

O verbo ou o Logos encerra em si, necessariamente, os


arquétipos de todas as imitações possíveis de Deus, quaisquer que
sejam seus graus de perfeição. Desta forma o verbo vem a ser a
auto expressão de Deus e a imagem ou exemplar de todas as
coisas.
As criaturas espirituais são imagens de Deus, porque têm
Deus por objeto; juntamente, porém, são também vestígios e
sombras. Ao contrário, as criaturas materiais são meros vestígios e
sombras.

18.6 A REDUÇÃO: DEUS ENQUANTO FIM ÚLTIMO DOS


ESPÍRITOS CRIADOS, QUE TOCADOS POR SUA LUZ,
RETORNAM À PÁTRIA

O retorno da alma para Deus se efetua pela iluminação; a


jornada de retorno, porém, só é possível na graça e pela graça.
Concernente à origem do saber humano cumpre distinguir entre o
conhecimento do mundo sensível e do mundo espiritual. O
conhecimento das coisas sensíveis pressupõe, necessariamente, a
experiência externa. Desse modo, como a visão necessita de dois
fatores: de um objeto presente e da luz que o torna visível, também
218 A Ética em prática no ambiente escolar

se deve admitir em nós uma luz natural inata: uma faculdade


intelectual, em que se manifestam os primeiros princípios pela
experiência dos objetos sensíveis.
São Boaventura sintetiza o conhecimento de Deus; três vias:
Primeira via: a existência de Deus não necessita de demonstração,
está impressa na própria natureza do homem. Ao voltar o olhar para
nosso interior, vemos que existe um desejo natural pela sabedoria; e
não há sabedoria mais desejável do que a sabedoria eterna; logo,
todo amor à sabedoria é inato ao homem, pois não se pode amar o
que se ignora, por isso, o homem deve trazer dentro de si um saber
acerca da existência da sabedoria eterna, isto é, de Deus.
Segunda via: se Deus é realmente a causa das coisas,
devemos poder inferir-lhe a existência a partir dos efeitos. As coisas
são manifestamente imperfeitas e finitas; e, consequentemente,
causadas. Se há um ser produzido, há também um ser primeiro; pois
o efeito supõe a causa. Se há um ser composto, há um ser simples,
a que o composto deve sua existência. Se há um ser relativo, deve
haver um absoluto; pois toda criatura se subordina a um conceito
genérico. O que representa apenas um gênero do ser, não pode dar-
se o ser; onde existe a exigência de um ser absoluto, do qual todos
os outros recebem o ser.
Terceira via: se partirmos da ideia de Deus, veremos que sua
existência é nada menos que imediatamente evidente. Para que
compreendamos a evidência de um primeiro princípio é suficiente
que lhe compreendamos os conceitos, visto que o predicado está
contido no sujeito. O mesmo ocorre no juízo: Deus existe. O
predicado está contido no sujeito, pois Deus ou a Verdade Suprema
é o próprio ser, a ponto de não se poder conceber outro maior.

18.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É importante dizer que o ser divino é eterno, precisamente


por ele ser simples e infinito. A eternidade não é senão a posse
ilimitada e totalmente simultânea da vida. Ainda que não se possa
encontrar nada inteiramente semelhante nas criaturas, devido a sua
imperfeição, há algo nelas que se encaminha à inteligência da
eternidade no ser divino. É o que se pode identificar na imagem e no
vestígio. Pois na alma, que é imagem de Deus, há uma recordação
das coisas passadas, uma inteligência das presentes e uma previsão
das futuras. E todas essas coisas estão, simultaneamente, na alma;
de modo que na alma, que é uma substância espiritual, une-se o que
acontece sucessivamente e em tempos diversos. Porém, por receber
Trabalhos completos 219

algo da realidade exterior, ela não atinge àquela simultaneidade


perfeita. Deus, ao contrário, não recebe absolutamente nada e não
está sujeito a nenhuma limitação. Por isso é necessário entender
todas as coisas como presentes a Ele; e isto sem princípio nem fim.
Só então se compreende a eternidade.

REFERÊNCIAS

CONCEIÇÃO, Gilmar H. A filosofia medieval e problema de Deus. In:


A filosofia em curso. Orgs.: CARDOSO, LIBANIO; KAHLMEYER-
MERTENS, ROBERTO S. Porto Alegre: Evangraf, 2015.

MONTAIGNE, M. Os ensaios. Trad. Rosemary Costhek Abílio. São


Paulo: Martins Fontes, 2001, 2002, 2996. (Coleção Paideia). 3 v.

PADOVANI, U.; CASTAGNOLA, L. História da filosofia. São Paulo:


Melhoramentos, 1977.

PIEPER, J. O caráter problemático de uma filosofia “não-cristã”.


Trad: Gabriele Greggersen e Jean Lauand. Disponível em
http://www.hottopos.com/mirand12/pieper.htm#2> Acesso em 2 ago.
2013.

RENAN, E. A herança esquecida. In: LIBERA, Alain de. Pensar na


Idade Média. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1999.

SCIACCA, M. F. Como se comprova a existência de Deus e a


imortalidade da alma. Trad. Pedro José da Silva. São Paulo: Mundo
Cultural, 1977.
220 A Ética em prática no ambiente escolar

= XIX =

HOMEM, SOCIEDADE E ESTADO:


APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS TEÓRICOS ENTRE
KARL MARX E ÉMILE DURKHEIM

Dhyovana Guerra*
Thaluan Rafael Debarba Baumbach**

RESUMO:
O presente estudo, de cunho qualitativo, propõe uma pesquisa
bibliográfica visando estabelecer relações entre os manuscritos de
Karl Marx (1818-1883) e Émile Durkheim (1858-1917) em relação às
concepções de Homem, Sociedade e Estado. No tocante aos
métodos, os teóricos se contrapõem. A sociologia de Karl Marx é
pautada no materialismo histórico e dialético, na alienação da
produção e no modo de produção situando a luta de classes. A de
Émile Durkheim é pautada na harmonia social, sendo fundamental
compreender o fato social, baseando seus estudos na neutralidade
científica das ciências naturais. Os resultados apontam que os
teóricos concordam em dizer que o homem é histórico, produto e
produtor da história, mas se opõem na relação entre o homem e a
sociedade e o Estado. Para Marx a Sociedade e o Estado vivem em
contradição. Para Durkheim a Sociedade e o Estado devem procurar
manter a harmonia.

PALAVRAS-CHAVE: Homem, sociedade e Estado; Karl Marx; Émile


Durkheim.

19.1 INTRODUÇÃO

Este estudo faz parte de uma análise referente à ideologia de


teóricos como Karl Marx (1818-1883) e Émile Durkheim (1858-1917)
em relação às concepções de Homem, Sociedade e Estado. Estes
autores compõem a relação dos clássicos da sociologia ocidental, no
entanto se contrapõem metodologicamente. Baseando-se nisso
nosso estudo tem como objetivo apresentar conexões entre eles, ou

* UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná.


** UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Trabalhos completos 221

seja, propomos socializar reflexões em torno das relações entre a


ideologia Liberal e a ideologia Marxista. Nesse contexto iremos
explorar autores como Nicolau Maquiavel (1469-1527), Adam Smith
(1723-1790), Ludwig Feuerbach (1804-1872), John Dewey (1859-
1952) e Antônio Gramsci (1891-1937) a fim de exemplificar as
vertentes teóricas analisadas.
O estudo foi propiciado por meio da disciplina Sociologia da
Educação II, do curso de graduação em Pedagogia, na
UNIOESTE/Cascavel, durante o primeiro semestre de 2015, sob
docência da Professora adjunta da Universidade Estadual do Oeste
do Paraná, Doutora Aparecida Favoreto. Durante esta disciplina, foi
possível estabelecer relações diretas e indiretas entre as teorias dos
autores analisados neste artigo, no que diz respeito a suas
concepções de homem, sociedade e Estado.
Portanto, levamos em consideração o fato de que este artigo
não se propõe a esgotar as reflexões sobre a temática, em outras
palavras, registramos que este artigo se limita a apresentar os
resultados de estudos introdutórios à temática apresentada.

19.2 ASPECTOS RELACIONADOS À TEORIA MARXISTA

Conforme Marx e Engels (2012, p. 38): “A história de todas as


sociedades até nossos dias é a história da luta de classes”. Podemos
inferir que a ideia exposta no Manifesto do Partido Comunista por
Marx e Engels (2012) é de que sempre existiu uma batalha entre
duas classes opostas, caracterizada pelo papel dos opressores e
oprimidos, sendo que tal luta sempre terminaria ou por uma
transformação revolucionária de toda a sociedade ou com a
destruição de ambas.
Na sociedade capitalista, podemos dividir esta sociedade em
duas classes antagônicas: burguesia e proletariado. Segundo Marx e
Engels (2012, p. 38):

Por burguesia entende-se a classe dos capitalistas modernos,


proprietários dos meios de produção social e que empregam
trabalho assalariado. Por proletariado entende-se a classe dos
trabalhadores assalariados modernos que, não tendo meios
próprios de produção, são obrigados a vender sua força de trabalho
para sobreviver.

Se formos conceituar a palavra sociedade, cairemos na


resposta de que é um aglomerado de pessoas que comungam dos
222 A Ética em prática no ambiente escolar

mesmos ideais. No entanto, Marx denuncia que tal ideologia


expressa por meio do pensamento comum é, na verdade, uma falsa
consciência. Para Karl Marx (1818-1883) “Não são as ideias que
determinam o ser, mas as relações sociais que determinam as
ideias”. Nesse sentido, podemos inferir que a consciência se enraíza
na práxis humana, que ela é um produto social. Para Marx o maior
defeito do idealismo na filosofia e na história era o fato de tentar
analisar as características da sociedade de acordo com as ideologias
nela dominantes, pois, a classe dominante tem a possibilidade de
disseminar ideias que legitimem seu domínio. Para Marx as ideias
não evoluem por si só, mas sim como elementos da consciência
humana, homens estes que vivem em sociedade, sendo a forma de
ser social, da produção da existência que determina suas ideias.
Nesse contexto, podemos dizer que o homem é um ser
histórico. O que promove a transformação humana é o trabalho
(práxis), ou seja, o trabalho humano transforma a natureza; ao
transformar a natureza ele transforma a si mesmo e que a sociedade
está em desenvolvimento, por meio de saltos qualitativos, a
contradição impulsiona essa transformação. Louis Althusser e
Antonio Gramsci são uns dos autores que seguem os pressupostos
teóricos de Karl Marx. Althusser (1985) e Gramsci (1932) se
apropriam da concepção de Estado de Marx e o dividem em
superestrutura e infraestrutura. Para Gramsci (1932) na
superestrutura se encontram o Estado Político e o Estado Civil e na
infraestrutura se encontram toda a base material, modos e meios de
produção. Para Althusser (1985) na superestrutura se encontram o
poder que é o objeto entre as lutas de classes, os aparelhos
ideológicos de Estado que podem ser públicos ou privados e os
aparelhos repressivos de Estado, sendo exclusivamente públicos. No
tocante aos aparelhos ideológicos de Estado podemos considerar as
Escolas como o grande difusor da ideologia dominante e, como
aparelho repressivo, tem-se a polícia que age a favor do Estado.
Marx situa a luta de classes na infraestrutura. Althusser e
Gramsci situam a luta de classes na superestrutura. Nesse sentido,
para Marx, a transformação social se dá na base material e é nela
que se encontra a luta de classes. No entanto, para Althusser e
Gramsci, não é na infraestrutura que se encontra a contradição, e
sim na superestrutura, onde se encontra a sociedade civil (composta
por sindicatos e órgãos sociais organizados) que, ao se relacionar
com o sistema capitalista, expõem a contradição. A sociedade
capitalista é baseada nas diferenças entre as classes. Quanto mais a
sociedade emane, mais surge desigualdade. Quanto mais a
Trabalhos completos 223

burguesia explora a classe trabalhadora, mais ela produz riqueza,


mais miséria da classe operária ela cria. Desse modo, o Estado
passa a controlar, por meio de forças políticas intencionais, as
contradições, aplicando políticas como: salário mínimo, bolsa família,
CLT. Essa tática aplicada por parte do Estado faz com que amenize
as contradições propostas pelo sistema capitalista que permite que o
burguês explore o trabalhador.
Logo, o Estado é uma superestrutura, não existe um Estado
ideal. A sociedade é luta de classes. Logo, a sociedade é diferenças
de classes. O Estado, ao preservar normas e leis, está a serviço de
uma classe dominante.

19.3 ASPECTOS DA TEORIA LIBERAL

Dentre as características de Estado moderno propostas por


Maquiavel (1469-1527), a autonomia propiciada por meio da plena
soberania do Estado caracteriza uma primeira característica que
antecede a distinção entre Estado e sociedade civil. Essa distinção
evidencia a organização distinta entre o Estado e a sociedade civil,
mesmo que, de certa forma, uma seja consequência da outra. O
Estado possui uma terceira característica que diferencia o Estado
moderno em relação ao Estado da Idade Média. Sendo o Estado
medieval propriedade privada e no Estado moderno uma ideologia de
identificação nacional, nesse sentido Maquiavel fundamenta uma
teoria de como se formam os Estados, dando origem à ciência
política como disciplina autônoma, separada da moral e da religião.
Por meio disso, Maquiavel retomando a visão de Aristóteles,
diz que a política é a arte do possível; sendo assim a arte da
realidade que pode ser efetivada que considera como as coisas são
e como deveriam estar idealizando a dualidade entre a política e
moral, distintas, mas complementares. Logo, para Maquiavel a
política leva em consideração a imutabilidade do homem, não nega
os altos e baixos emocionais, porém, situa a imutabilidade expressa
de forma técnica expressa pela política. Portanto, Maquiavel idealiza
a construção do Estado como unitário e moderno; sendo, assim,
absoluto, não se ocupando da moral, tratando política por meio de
leis especificas.
Em contrapartida Gramsci afirma que Bodin (1530-1596)
teorizava um Estado unitário que já existia, projetado por Maquiavel.
É a primeira vez que um autor se dedica a teorizar sobre a
autonomia e soberania do Estado moderno, no sentido que o
monarca interpreta as leis divinas, obedece a elas, mas de forma
224 A Ética em prática no ambiente escolar

autônoma, negando a compreensão de liberdade, pois, o monarca


era o único que tinha essa liberdade de interpretação constituindo
uma sociedade ditatorial.
Já em Thomas Hobbes (1588-1679), a teoria de Estado é
explicada por meio de “quando os homens primitivos vivem no
estado natural, como animais, eles se jogam uns contra os outros
pelo desejo de poder, de riquezas, de propriedades”. Nesse Sentido,
cada homem se caracteriza como um lobo de seu próximo. Sendo
assim, necessário estabelecer um contrato que possibilite a vida em
sociedade.
Dessa forma a noção de Estado estabelecida por Hobbes
revela um caráter de contrato mercantil e comercial das relações
sociais burguesas, seria impossível a vida do homem em estado
natural em sociedade, sendo os contratos como possibilitadores da
vida, permitindo a superação dos egos, para produzir um Estado
Absoluto, dessa forma a liberdade se constitui na propriedade
privada.
Em contrapartida, para Locke (1632-1904) o homem está
plenamente livre, mas sente a necessidade de colocar limites à sua
própria liberdade, com a finalidade de garantir a propriedade, pois,
existem entre eles uma luta que não garante a liberdade de
propriedade, tanto quanto pessoal.

Portanto, o governo deve garantir determinadas liberdades: a


propriedade, e também aquela margem de liberdade política e de
segurança pessoal sem o que fica impossível o exercício da
propriedade e a própria defesa da liberdade. (GRUPPI, 0000, p. 14)

Nesse sentido pode-se dizer que a liberdade política deve ser


garantida, mas em primeiro lugar a liberdade da iniciativa econômica.
Essas premissas caracterizam o indivíduo como antecessor ao
Estado, portanto, livre e igual a seus pares, partindo de uma
concepção natural que para Locke (1632-1704) “O homem é lobo do
próprio homem”, que se contradiz por Marx (1818-1883) que diz que
o homem é um ser social e faz sua história por meio de seu trabalho.
Locke afirma que a propriedade é objeto de herança, ou seja, de pai
para filho. O poder político, ao contrário, não se transmite pela
herança, deve ter origem democrática, parlamentar.
Para Emmanuel Kant (1724-1804) existe uma separação
formal, porém, irreal entre o Estado e a sociedade civil, que afirma a
soberania do Estado que é negada por Locke. Ainda em Kant vemos
explícito que só possui liberdade quem é de fato proprietário, ou seja,
Trabalhos completos 225

burguês. Dessa forma, existe uma relação indissociável entre


propriedade e liberdade. Nesse sentido, o Estado se faz rígido e
indissociável, portanto, soberano.
Para Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), oposto à Hobbes,
não negando a condição natural do homem, mas a condição de
felicidade, virtude e liberdade. Em Rousseau a sociedade nasce de
um contrato que ocorre baseado no individualismo. A propriedade
privada originou-se de um processo econômico de desenvolvimento
das forças produtivas, sendo resultado de relações entre os
indivíduos, pela iniciativa de uma das partes. Tendo um elemento
utópico presente na concepção de homem onde este não cede sua
soberania, a sua liberdade. Existe uma condição natural dos homens,
mas é uma condição de felicidade, de virtude e de liberdade, que é
destruída e apagada pela civilização. É a civilização que perturba as
relações humanas, que violenta a humanidade, pois, os homens
nascem livres e iguais, mas em todo lugar estão acorrentados.

19.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para compreender as características de sociedade e Estado,


segundo a visão de Marx e Durkheim, necessitamos partir da
concepção de indivíduo. Os autores concordam que o indivíduo é um
ser histórico. Entretanto, discordam nos aspectos referentes à
sociedade e Estado. Para Durkheim a sociedade pode ser
comparada a um organismo vivo, onde prevalece o interesse de
todos, ou seja, a harmonia. Essa harmonia proposta por Durkheim é
refletida na característica de Estado, sendo o órgão competente por
adequar o indivíduo à vida em sociedade. Segundo os interesses da
coletividade, formando assim, uma comunidade.
Marx discorda desta ideologia de harmonia afirmando que
esta ideologia nada mais é que uma “falsa ideologia”. Marx aponta a
contradição como o motor da sociedade e diz que esta muda em
saltos qualitativos, ou seja, a sociedade supera as dificuldades.
Nesse sentido, o homem em relação com a natureza, satisfaz suas
necessidades, uma vez satisfeito, criam-se novas necessidades,
demonstrando assim a constante mudança da sociedade. Marx
configura a sociedade em duas classes, ou seja, burguesia (classe
dominante, detentores dos meios de produção) e proletários
(operários expropriados dos meios de produção).
Nesse contexto, Marx aponta que a contradição existente
entre o interesse particular e o interesse coletivo faz com que o
Estado assuma características que tendem a responder aos
226 A Ética em prática no ambiente escolar

interesses dos detentores dos meios de produção. Dessa forma cabe


ao Estado zelar pela manutenção deste modo de produção de vida.
Então, para Durkheim o Estado está a serviço de todos e para
Marx o Estado está a serviço da classe dominante. Para Durkheim a
sociedade está pautada na harmonia e para Marx esta pautada na
contradição. E por fim, o indivíduo é um ser histórico, produto e
produtor de história, que para Durkheim deve adaptar-se à
sociedade, visto que a sociedade predomina sobre o sujeito; e, para
Marx, está pautada nas relações entre explorador e explorado.

REFERÊNCIAS

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. 2º Ed.


Tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de
Castro. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985, 128p. (Biblioteca de
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FAVORETO, Aparecida; VIRIATO, Edaguimar; O.; FIGUEIREDO,


Ireni M. Z. Desafios e perspectivas na busca da unidade de
conteúdo. In: I Seminário Regional de Formação Continuada de
Professores e I Mostra de Experiências e Vivencias
Pedagógicas. UNIOESTE/AMOP. 9 e 10 de novembro de 2010.

MARX, Karl. A ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998.


Trabalhos completos 227

= XX =

A NATUREZA NA MUDANÇA QUALITATIVA PROPOSTA POR


MARCUSE

Cleberson Odair Leonhardt*

RESUMO:
Desenvolve-se, na atualidade, um novo padrão de revolução onde
velhos “clichês” podem não ser suficientes para encadear tal
processo. Até mesmo a contrarrevolução apresenta mudanças
radicais de estilo, onde nem sempre o embate é a forma de
enfrentamento. Ao contrário, a contra-revolta utiliza da própria revolta
para se manter, abarcando o não-idêntico, muitas vezes ao torná-lo
nova mercadoria ou algo a ser consumido. Este processo de
contrarrevolução menos agressiva já foi apontado por Marcuse. De
mesmo modo que os debates precisam ser contínuos e os embates
também devem ser continuamente inovados. Os lugares sociais de
negação precisam ser dinâmicos. Nessa perspectiva, nada mais
urgente que o debate de questões relacionadas à natureza humana
(interna e externa). Debates sobre a psique humana, sobre ecologia,
sobre ética ambiental são eminentemente assuntos à pauta,
principalmente porque o que está em jogo não é só a mudança de
sistemas políticos e econômicos, mas a própria relação homem e
natureza. É nessa dimensionalidade que a mudança qualitativa pode
se efetivar. Essa mudança torna-se, assim, necessária ao ser
humano, uma vez que o mundo sem essa mudança na natureza não
é o mundo que desejamos viver (porque reconhecemos o preço a
pagar); para Marcuse é aí que a revolta instintiva surge e facilmente,
transforma-se em rebelião política e contra ela todas as forças deste
sistema são mobilizadas. Podemos, ainda que unicamente deste
fato, concluir que a própria natureza, impulsionada por esta situação,
aspira à revolução. É esta base biológica que Marcuse quer
apresentar e fomentar o potencial biológico e natural que ela
representa. Segundo Marcuse, a rebelião, a recusa, gera uma
resposta da sociedade estabelecida, porque ela revela já o alvo da
mudança social: a prática política radical e a subversão cultural. Esta

* Professor da UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná,


cleber6@yahoo.com.br
228 A Ética em prática no ambiente escolar

recusa é positiva (para a revolução e a nova sociedade) porque junto


a ela surge a tendência que visa uma nova cultura que “cumpra as
promessas humanísticas traídas pela cultura tradicional”. Este
radicalismo político promovido pela recusa, pela oposição, aciona
também o radicalismo moral, ativando a base elementar orgânica da
moralidade no ser humano, disposição do organismo, enraizada no
impulso erótico que contraria a agressividade. Isso geraria os valores
e a base instintiva para a solidariedade entre os seres humanos.
Marcuse também afirma que esta base é histórica, é uma base
biológica historicamente moldada, uma vez que a natureza humana é
maleável e, desse modo, as mudanças morais podem mergulhar na
dimensão biológica (entendida por Marcuse como padrões de
comportamento que se tornam necessidades vitais) e modificar o
comportamento orgânico, até porque uma moralidade específica não
é somente projetada, ela se estabelece como norma de
comportamento social que opera como orgânica, isto é, o organismo
recebe ou repele estímulos a partir da moralidade projetada nele.
Sendo assim, a revolta precisa atingir esta “segunda” natureza, os
padrões projetados, estabelecidos, caso contrário, a transformação
social não se dará. Esta segunda natureza remete ao princípio de
desempenho, às formas de bem-estar, a necessidade de possuir,
consumir, renovar utensílios, máquinas e tornou-se uma necessidade
“biológica”. Essa segunda natureza luta contra qualquer ruptura
nessa relação do ser humano com o mercado, a mercadoria e o
consumo. Necessidades (geradas) estabilizantes e conservadoras
que ancoram a contra-revolução na estrutura instintiva. Dessa forma,
parece ser eminentemente necessária a transformação desta
estrutura instintiva, uma vez que a mercadoria (carro, televisores,
máquinas, etc.) em si não é repressiva, mas é repressivo o fato dela
ter se tornado parte e parcela da própria existência das pessoas.

PALAVRAS-CHAVE: Natureza; Mudança Qualitativa; Necessidades;


Ecologia

A identificação de uma emancipação instintiva, em Marcuse,


que equilibre o processo mental e elimine a mais-repressão dos
instintos, que não esteja mais baseada apenas na razão nem mesmo
numa busca por emancipação apenas social ou política, mas que
busque a emancipação integral dos indivíduos (incluindo a sua
dimensão histórico social), atingindo até mesmo a sua estrutura de
sentimentos e necessidades; parece que precisa passar por uma
reconfiguração dos paradigmas estabelecidos. Esta reestruturação,
Trabalhos completos 229

segundo nosso autor, compreende, inclusive, um novo entendimento


e nova conceituação da base biológica dos seres humanos.
Entre as construções teóricas marcusianas, que procuram
demonstrar um caminho a ser seguido em relação à possibilidade de
reconstrução do princípio de realidade, está a ideia de que existe
uma base biológica que sustenta, dá suporte e pode impulsionar para
este feito social. Em seu livro Um ensaio para a libertação (1977),
Marcuse intitula o primeiro capítulo com a pergunta: ‘Uma base
biológica para o socialismo?’, o que nos sugere a importância que
este tema adquire em suas pesquisas. Além de buscar diferenciar-se
do marxismo ortodoxo e da ideia determinista de “trem da história” (já
apresentada e que, aqui, teria o sentido de um determinismo
biológico rumo a um progresso comunista), Marcuse quer também
apresentar a ideia de uma situação biológica que poderia servir de
potencial para o fomento de mudanças estruturais do sistema
hegemônico. Além disso, este potencial representaria também aquilo
que os seres humanos ainda podem construir e que não precisa
necessariamente estar previamente determinado.
Este processo biológico, portanto, longe de ser algo
determinado e fixo, é dinâmico, levado a efeito por seres humanos
que também se modificam em todas as suas estruturas. Esta base
biológica não significa, em Marcuse, de maneira alguma, um
determinismo biológico que levaria a uma reestruturação do princípio
de realidade de qualquer maneira ou mesmo automática, mas é,
antes, um potencial facilitador que já está presente na sociedade,
mesmo que esta seja uma sociedade onde predomina a alienação, a
qual ele, em algumas passagens, também identifica com o termo
“sociedade da abundância”, marcada pelo consumismo.
Podemos perceber que a sociedade, o capitalismo, em que
Marcuse vivia há três décadas, não parece ter sofrido grandes
mudanças estruturais na atualidade quanto às dimensões analisadas
do ponto de vista qualitativo, além de que muitos dos aspectos
identificados sofreram, inclusive, intensificações. Para Marcuse
(1977), duas fontes importantes na dinâmica do sistema capitalista
são a exploração produtiva e o aumento de produção de
comodidades (que resultam na abundância e na necessária
incentivação ao consumo). É fácil identificar que estas duas fontes
estão ainda mais intensificadas atualmente. Marcuse continua e aduz
que conforme os recursos intelectuais e, com eles, os potenciais de
libertação ultrapassam as instituições estabelecidas, aumentam
também sistematicamente o desperdício e a destruição para manter
o sistema em atividade. A relação consumista estabelecida exige
230 A Ética em prática no ambiente escolar

isso. Quando a exploração e a destruição da natureza são


promovidas, talvez não se trate unicamente de uma questão moral,
descaso ou maldade dos seres humanos, pois, afinal, os próprios
seres humanos exploram e destroem outros seres humanos (na
maioria dos casos não é a destruição da vida objetivamente, mas da
saúde destes), que não se pode esquecer que também são natureza.
Se a promoção de tal fato ocorre é devido a uma ideologia e a uma
mentalidade quase cega e totalitarista, arraigada ao sistema
dominante que transfere a culpa gerada para outro âmbito. Tal
reflexão, que diz respeito à transferência da culpa para os indivíduos,
poderemos também acompanhar na questão da obscenidade e da
transgressão de tabus que Marcuse desenvolve.
Diante desta relação de aumento de desperdício para manter
o funcionamento do sistema, Marcuse propõe, inicialmente, a
categoria da obscenidade para descrever este processo social. “Esta
sociedade é obscena em produzir e exibir indecorosamente uma
abundância sufocante de mercadorias39, ao mesmo tempo que priva
largamente as suas vítimas da satisfação de necessidades vitais”
(MARCUSE, 1977, p. 20). A obscenidade da sociedade, podemos
observar em Marcuse, consiste muito mais em atulhar-se de bens,
enquanto o lixo gerado por este excesso envenena o mundo dos
explorados, do que, por exemplo, na suposta afronta moral de uma
gravura de mulher nua que expõe os pelos pubianos ou nos rituais
dos hippies (MARCUSE, 1977). Além disso, segundo ele, a
obscenidade é um conceito moral que a sociedade estabelecida não
aplica a si própria, mas distorce o seu significado para transferir a
revolta propriamente dita para o conceito quando aplicado
unicamente a questões morais de pudor. Do mesmo modo, para
Marcuse, o vocabulário sociológico e político precisa também ser
radicalmente modificado, sair de sua falsa neutralidade e ser
provocatoriamente remodelado em termos de recusa, pois, segundo

39 Um exemplo de obscenidade de uma mercadoria considerada “necessária” é o


automóvel. A função do automóvel é transportar pessoas, todo o restante escapa a
sua funcionalidade prática, é, antes, status, demarcação de poder e propriedade,
marketing, etc. No entanto, o automóvel causa inumeráveis desperdícios (fabricação,
manutenção, descarte) que trazem problemas desde a exploração do trabalhador,
que produz, até a destruição do meio ambiente. Uma alternativa utópica, mas
possível, de transporte público eficiente para transportar todas as pessoas com
todas as suas necessidades, como locais e horários, reduziria de uma só vez os
carros, as ruas e as garagens (as ruas não seriam mais necessárias, além daquelas
utilizadas pelo transporte coletivo, em seu lugar, haveria espaço para áreas de lazer
ou habitações, que também poderiam ser mais eficientes e funcionais, sem suas
garagens, etc.).
Trabalhos completos 231

ele, uma análise crítica desta sociedade exige novas categorias


morais, políticas e estéticas. Em Contra-revolução e revolta (1973a),
Marcuse aborda como essa linguagem sociológica, da forma que é
utilizada, reduz os conceitos de origem marxista a ‘clichês’ que não
destacam os seus potenciais críticos. Por isso mesmo, esta forma de
‘clichês’ que serve de estímulos instantâneos, mas não transmite a
verdade e a essência dos conceitos, não contribuindo para a
revolução, precisa ser modificada. Conforme podemos acompanhar:

As ‘pessoas’ falam uma linguagem que está quase fechada aos


conceitos e proposições da teoria marxista. A sua aversão às
palavras estranhas e ‘pretensiosas’ do discurso marxista é não só o
resultado de sua educação, mas expressa também o grau de seu
compromisso com as instituições e, por conseguinte, com a
linguagem do ‘Establisment’. Romper o domínio dessa linguagem
significa anular a ‘falsa consciência’, isto é, tornar as pessoas
cônscias da necessidade de libertação e dos modos para se atingir
essa meta. [...] Bombardear as pessoas com tais palavras
[proletariado, exploração, empobrecimento] sem traduzi-las para a
situação real não comunica a teoria marxista. No melhor das
hipóteses, essas palavras converteram-se em rótulos de
identificação para grupos ‘de dentro’ (Trabalhismo Progressivo,
Trotskistas, etc.); caso contrário, funcionam como simples clichês –
quer dizer, não funcionam. O seu uso como estímulos instantâneos
de um vocabulário solúvel e enlatado mata a sua verdade essencial;
o seu significado surge na análise da ‘aparência’ e a ‘aparência’ do
capitalismo de hoje é muito diferente da fase do século XIX.
(MARCUSE, 1973a, p. 44-45)

A reação que corresponde à obscenidade, que vínhamos


discutindo, geralmente, é a vergonha e o sentimento de culpa,
gerados pela transgressão de um tabu. No entanto, as manifestações
obscenas da sociedade de abundância não provocam estes
sentimentos, não causam a mesma reação porque não são
consideradas obscenidades, o que denota (visto a origem desta
obscenidade na esfera sexual) um afrouxamento no pudor e no
sentimento de culpa na esfera sexual. Dessa maneira, com a
transferência da obscenidade exclusivamente ao âmbito moral, a
sociedade da abundância pode ultrapassar aqueles limites mais
amplos da obscenidade, desviando o foco, além de, inclusive, para
alcançar esse objetivo de desvio do sentimento de culpa, aceitar e
mesmo incentivar o afrouxamento do pudor em estruturas e
instituições que lhe servem de base, como o casamento e/ou o pudor
sexual. Somente, desse modo, torna-se possível e permissível, por
232 A Ética em prática no ambiente escolar

exemplo, a exposição (comercial) do corpo nu ou de relações antes e


fora do casamento, entre outros.
Sobretudo, esta esfera de permissividade coloca-nos diante
de um paradoxo onde a liberação sexual pode servir tanto para a
revolução, como também para reforçar os esquemas de dominação e
repressão. Nas palavras de Marcuse (1977, p. 21): “Estamos pois,
perante um paradoxo: a liberação da sexualidade fornece uma base
instintiva para o poder repressivo e agressivo da sociedade de
abundância”. E ainda em A dimensão estética (MARCUSE, 1981, p.
49):

[...] Têm-se feito tentativas para afirmar que a pornografia e a


obscenidade são campos de comunicação não-conformista. Mas,
essas áreas privilegiadas não existem. A obscenidade e a
pornografia há muito que foram integradas. Como mercadorias
comunicam também o todo repressivo.

Este paradoxo, onde a liberação sexual serve de base


instintiva à repressividade da sociedade estabelecida, mas que, ao
mesmo tempo, Marcuse quer apontá-la como potencial de
modificação, lança-nos também possíveis respostas a respeito da
tentativa de discussão que, necessariamente, esta dissertação
abrange, a respeito da libertação do princípio de prazer: se há
excesso ou não de liberação sexual, se há excesso ou falta de
repressão sexual e instintiva e ainda se há ou não sublimação dos
instintos e do princípio de prazer na sociedade estabelecida. Esta
liberação sexual, e aqui cabe o conceito marcuseano de
dessublimação repressiva, não significa, necessariamente, uma
maior libertação oferecida ao princípio de prazer em relação à
repressividade que lhe é imposta pelo princípio de realidade. Afinal, a
libertação da repressão que é imposta ao princípio de prazer exige
muito mais do que uma liberação sexual. A dessublimação
repressiva acontece quando a opressão assume a forma de
gratificação. O indivíduo pensa que sublima, mas, na verdade,
aliena-se. A liberação coaduna-se a esse processo e acaba servindo
aos propósitos do princípio de realidade estabelecido. Segundo
Marcuse, essa liberação reforça a coesão do todo, pois o
relaxamento dos tabus alivia o sentimento de culpa, sem questionar
a estrutura repressiva. É claro que, ao mesmo tempo, Marcuse
também aponta o potencial que esta libertação traz junto a ela,
conforme veremos adiante.
Trabalhos completos 233

Transportando esta ideia para as hipóteses ontogenética e


filogenética freudianas, alcançamos o significado de que a culpa é
transferida para nós, os filhos, pois transgredimos tabus sexuais;
enquanto os pais “institucionalizados” são tolerantes, porém, falsos
por criarem este mundo de hipocrisia. No entanto, esse não é o
mundo que desejamos viver (porque reconhecemos o preço a pagar,
conforme já referimos), segundo Marcuse (1977), e a revolta
instintiva surge40 e, facilmente, transforma-se em rebelião política e,
contra ela todas as forças deste sistema são mobilizadas:

[...] não nós, mas os pais é que são culpados; não são tolerantes,
mas falsos; querem redimir a sua própria culpa tornando-nos a nós,
os filhos, culpados; criaram um mundo de hipocrisia e violência
onde não desejamos viver. A revolta instintiva transforma-se em
rebelião política, e contra ela, então, o establishment mobiliza todas
as suas forças. (MARCUSE, 1977, p. 22)

Podemos, ainda que unicamente deste fato, concluir que a


própria natureza, impulsionada por esta situação, aspira à revolução.
É esta base biológica que Marcuse quer apresentar e, desse modo,
fomentar o potencial biológico que ela representa ao visar à
modificação do princípio de realidade e à emancipação. Mas, antes,
podemos continuar e ver ainda como Marcuse trabalha esta questão
da base biológica que se coaduna com a emancipação.
Segundo Marcuse, a rebelião, a recusa, conforme referimos
anteriormente, gera uma resposta da sociedade estabelecida
(establisment), porque ela revela já o alvo da mudança social: a
prática política radical e a subversão cultural. Esta recusa41 é positiva
(para a revolução e a nova sociedade) porque junto a ela surge a
tendência que visa uma nova cultura que “cumpra as promessas
humanísticas traídas pela cultura tradicional” (MARCUSE, 1977, p.
22). Este radicalismo político promovido pela recusa, pela oposição,
aciona também o radicalismo moral, ativando a base elementar
orgânica da moralidade no ser humano42. Esta base moral, conforme

40 Desta revolta instintiva é permissível afirmar a existência de uma base biológica


para a mudança, é também a partir dela que a base biológica pode desenvolver-se.
41 Poderíamos corroborar e afirmar que a própria resposta gerada pela sociedade

estabelecida é também mudança, pois, para responder adequadamente a sociedade


precisa promover alguma modificação em si mesma, ainda que a base repressiva e
exploradora sempre se mantenha.
42 Podemos entender que a base moral, não busca sublimar o impulso sexual

apenas para torná-lo força para o trabalho, e ainda mais para o trabalho alienado,
como ocorre na sociedade estabelecida, e que Marcuse chama de dessublimação
234 A Ética em prática no ambiente escolar

podemos acompanhar em Marcuse, é uma disposição do organismo,


enraizada no impulso erótico, que contraria a agressividade e que
procura criar e preservar “unidades cada vez maiores de vida”. Isso
geraria, para Marcuse, os valores e a base instintiva para a
solidariedade entre os seres humanos. A solidariedade, em Marcuse,
é um pré-requisito para a libertação; e, consequentemente, para o
desenvolvimento de um novo princípio de realidade, a problemática
que procuramos desenvolver aqui. Marcuse (1977, p. 23), assim
refere-se a ela: “[...] solidariedade que tem sido efetivamente
reprimida de acordo com as exigências da sociedade de classes,
mas que aparece agora como uma pré-condição para a libertação”.
Esse apontamento de solução dessa problemática poderia
parecer um tanto quanto utópico ou, mesmo, demagógico. Fomentar
o desenvolvimento da solidariedade entre os seres humanos, de
modo que ela seja, além disso, um requisito para a modificação do
princípio de realidade, parece distante das possibilidades reais por
estar baseado em um aparente círculo vicioso. Mas, aí, encontra-se
a chave de leitura marcusiana: é preciso desenvolver um novo olhar
e uma nova conceituação da realidade histórica e isso seria possível
nos grupos sociais de negação, conforme trabalharemos adiante no
item 3.3. Mesmo a utopia de Marcuse é sempre pautada em
conteúdos históricos, o que a torna real e plausível. Por isso mesmo,
ele afirma que esta própria base é histórica, é uma base biológica
historicamente moldada, uma vez que a natureza humana é maleável
e, desse modo, as mudanças morais podem mergulhar na dimensão
biológica (entendida por Marcuse como padrões de comportamento
que se tornam necessidades vitais) e modificar o comportamento
orgânico, até porque, continua Marcuse, uma moralidade específica
não é somente projetada, ela se estabelece como norma de
comportamento social que opera como orgânica, isto é, o organismo
recebe ou repele estímulos a partir da moralidade projetada nele.
Sendo assim, a revolta precisa atingir esta “segunda” natureza, os
padrões projetados, estabelecidos, caso contrário, a transformação
social não se dará. Esta segunda natureza remete ao princípio de
desempenho que vimos no capítulo anterior, às formas de bem-estar,

repressiva. A base moral humana quer promover e preservar a vida, motivar tudo
aquilo que promove a vida. Por isso, por exemplo, é contrária a agressividade, para
sublimar justamente o aspecto agressivo dos instintos básicos sexuais, que
conforme já apontamos em Freud, se deixados livremente destruiriam a vida. Este
seria um apontamento possível para substituir a mais-repressão, que ocorre na
sociedade estabelecida, e é denunciada por Marcuse, conforme vimos no segundo
capítulo.
Trabalhos completos 235

necessidade de possuir, consumir, renovar utensílios e máquinas


tornou-se uma necessidade “biológica”, em relação ao que
anteriormente foi apresentado. Essa segunda natureza luta contra
qualquer ruptura nessa relação do ser humano com o mercado, a
mercadoria e o consumo. Estas necessidades geradas são
estabilizantes e conservadoras, o que, segundo Marcuse, ancora a
contrarrevolução43 na estrutura instintiva. Dessa forma, parece ser
eminentemente necessária a transformação desta estrutura instintiva,
conforme vimos apontando.
A mercadoria (carro, televisores, máquinas, etc.) em si não é
repressiva, mas é repressivo o fato dela ter se tornado parte e
parcela da própria existência das pessoas. O que nos remete à
discussão já estabelecida a respeito da alienação do trabalho, uma
vez que um processo semelhante de alienação ocorre com toda
mercadoria. Aliás, no interior do modo de produção capitalista, o
trabalho não passa de uma forma específica de mercadoria. Há uma
alienação resultante, pois as pessoas procuram comprar parte e
parcela de sua própria existência no mercado, da mesma forma que,
com o trabalho alienado, procura-se comprar parcelas de liberdade e
de existência. Esta forma de existência, para Marcuse, é a realização
do capital; afinal, por exemplo, constroem-se carros (ou outras
mercadorias) inseguros, mas com o fator de destruição próximo para
comprá-los novamente (uma obsolescência programada da
mercadoria), empregam-se meios de comunicação de massa cheios
de violência e estupidez para manejar-se largos auditórios, se
estabelece a lei de oferta e procura para gerar a harmonia de
mercado, até chegar ao ponto de as indústrias criarem o público
(criarem “necessidades”) que consome os seus produtos, sendo que
este consumo serve ainda para aliviar a frustração que resulta do
processo alienante e repressivo; e, consequentemente, aliviar a
agressividade que resulta desta frustração.
A capacidade do capitalismo de sublimar esta agressividade e
frustração, produzindo satisfações, chega ao limite de prolongar o

43 Com este conceito Marcuse refere todo o processo movido pelo sistema
estabelecido para frear toda revolta ou tentativa de recusa e modificação. Isso
inclusive, com meios bélicos, uso da força e coerção ditatoriais, conforme podemos
acompanhar: “A contra-revolução é predominantemente preventiva e, no mundo
ocidental, inteiramente preventiva. Aqui, não existe qualquer revolução recente a
desmantelar nem nenhuma existe em gestação. E, no entanto, é o medo da
revolução que gera o interesse comum e cria os vínculos entre as várias fases e
formas da contra-revolução. Esta percorre toda a gama desde a democracia
parlamentar à ditadura declarada, passando pelo Estado policial” (MARCUSE,
1973a, p. 11-12).
236 A Ética em prática no ambiente escolar

que Marcuse (1977) denomina de “escravatura voluntária”, de forma


que, afirma Marcuse, a autonomia do indivíduo reduz-se a guiar o
seu carro, manejar os seus utensílios de poder, comprar uma
espingarda, comunicar a sua opinião aos auditórios de massa, etc.
Poderíamos arriscar em afirmar, inclusive, que esta última forma de
autonomia, a de o indivíduo comunicar a sua opinião às massas é,
atualmente, muito utilizada por meio da internet que carrega, talvez,
potenciais de libertação, mas é também o espaço para as pessoas
descarregarem as suas opiniões, as agressividades e as frustrações
na rede (virtual) mundial de computadores.
Além disso, e sobretudo, podemos perceber, com bastante
clareza, conforme aponta Marcuse, que a frustração e a
agressividade estão no ponto de partida desta sublimação, mesmo
com a força do sistema a controlá-las. Isso remete-nos à questão
primordial aqui desenvolvida, da base biológica que quer a
modificação. As feições do capitalismo não são eliminadas, apenas
maquiadas por esta sublimação; ou melhor: dessublimação
repressiva. Marcuse (1977, p. 27) é enfático ao lançar a pergunta:
“Por acaso a exploração e o domínio cessam de ser o que são, e o
que fazem ao homem, se inconscientemente sofridos, ‘compensados’
por confortos antes desconhecidos?” A opressividade continua
latente e, com ela, as possibilidades de modificação.
O que falta ainda para que esta modificação ocorra, aponta
Marcuse, é a integração das classes exploradas. Conforme já
apontamos no segundo capítulo, a classe trabalhadora, em virtude
de sua posição e número, é ainda um potencial revolucionário, mas
também apontamos que Marcuse quer buscar novos locais sociais
de negação (ampliação) para corroborar este processo. A
radicalização da classe trabalhadora é suspendida justamente por
esta satisfação de necessidades que expomos, e esta suspensão
encontra apoio, dessa forma, na estrutura instintiva dos indivíduos,
de modo que a ruptura com a repressão não ocorre. E como
sabemos, esta ruptura é pré-condição da libertação, no entendimento
de Marcuse.
Marcuse, inserido na tradição filosófica e, especialmente, na
marxiana, da forma que vimos abordando, acaba chamando a
atenção para uma perspectiva pouco valorizada na tradição marxista,
que é esta dimensão biológica. A mudança radical que visa a
transformar a sociedade de hoje em uma sociedade livre e melhor,
do ponto de vista qualitativo, precisa atingir esta dimensão da
existência humana. Afinal, conforme afirma Marcuse (1977, p. 31):
“Na medida em que essas necessidades e satisfações traduzem uma
Trabalhos completos 237

vida de escravidão, a libertação pressupõe transformações ao nível


biológico, isto é, necessidades instintivas diferentes, reações
diferentes do corpo e do espírito”. A diferença qualitativa que
anunciamos envolve estas necessidades e satisfações, pois o êxito
do capitalismo efetiva-se quando os seres humanos não podem mais
rejeitá-lo sem rejeitarem a si próprios e às suas necessidades
instintivas mesmo que reprimidas ou sublimadas. Sem esta
modificação básica, a libertação significaria insubmissão e subversão
contrária à vontade e ao interesse das pessoas, contrária à
adaptação “orgânica” dos indivíduos. Inclusive, não podemos deixar
de explicitar que, conforme afirma Marcuse, a capacidade de
adaptação do organismo humano é tão grande que os controles
sociais serão passíveis de perpetuarem-se:

Em consequência, pode emergir, por seleção, uma reserva de seres


humanos geneticamente apropriados para aceitar realmente um
modo de vida regulado e abrigado num mundo de abundância,
mundo poluído, em que todos os caprichos e fantasias da natureza
terão desaparecido. Então, o animal domesticado nas fazendas e a
cobaia de laboratório, em regime e ambiente controlados, tornar-se-
ão autênticos modelos para o estudo do homem. (MARCUSE, 1977,
p. 32)

Podemos acompanhar também, no livro Fim da utopia (1969,


p. 17-18) de Marcuse, esta relação entre as necessidades criadas
pela sociedade estabelecida (que os indivíduos continuam a
reproduzir, inclusive, através e além do processo revolucionário) e a
importância de reestruturar-se, então, esta base biológica:

O que conta é a ideia de uma nova antropologia concebida não


apenas como teoria, mas também como modo de vida; é o
surgimento e o desenvolvimento de necessidades vitais de
liberdade, das necessidades vitais de uma liberdade não mais
fundada sobre a (nem limitada pela) escassez dos meios e sobre a
necessidade do trabalho alienado, mas capaz de expressar o
desenvolvimento de necessidades humanas qualitativamente novas
e, consequentemente, as exigências do fator biológico (pois se trata
de necessidades consideradas em termos estritamente biológicos).
[...] A sociedade repressiva continua incessantemente a reproduzir
em seus membros as necessidades que ela mesma estimula e
satisfaz, de modo que os indivíduos, por sua vez, continuam a
reproduzi-la em suas necessidades, inclusive através e além da
revolução. Essa continuidade das necessidades repressivas, assim,
238 A Ética em prática no ambiente escolar

é o obstáculo que impediu até agora o salto da quantidade à


qualidade de uma sociedade livre. (MARCUSE, 1969, p. 17-18)

O progresso quantitativo é contrário a uma alternativa


qualitativa, segundo Marcuse. Entramos, aqui, naquela questão do
círculo virtuoso (a revolução como um “vir-a-ser” histórico, como uma
construção humana que não é previamente determinada): a ruptura
com este progresso material, que gera novas necessidades, exige
uma revolução que anuncie uma sociedade livre, ao mesmo tempo,
esta revolução, para acontecer, precisa também desta ruptura que
liberte os seres humanos do conforto e da produtividade destrutiva
criada pelo progresso. Entretanto, a revolução, com a base biológica
renovada, possibilitaria a transformação do progresso técnico
quantitativo em maneiras de vida qualitativamente diferenciadas. O
progresso técnico das ciências é um fator importante para a
liberdade, porém, precisa mudar a sua direção atual e guiar-se por
uma nova sensibilidade, as exigências dos instintos de vida.
A construção de uma nova sociedade, para Marcuse,
pressupõe um novo tipo de ser humano com uma sensibilidade e
consciência diferentes, com uma razão sensível. A linguagem, os
gestos, os impulsos e até os instintos seriam diferentes, modificados.
Para tal modificação instintiva, entretanto, seria necessária também
uma transformação social nas relações de trabalho e nas relações de
produção. Marcuse (1977, p. 37) questiona se tal concepção seria
utópica, mas, ao mesmo tempo, também responde que esta nova
sensibilidade seria uma força política que ultrapassaria a fronteira
entre capitalismo e comunismo. Ela é contagiosa porque a atmosfera
das sociedades estabelecidas transporta o vírus da revolução. Desse
modo, Marcuse propõe o potencial para a revolução posta na base
biológica44, que pode dar-se por meio da construção de uma nova
sensibilidade e da solidariedade.

44 O potencial para a revolução, de certo modo, já estaria posto na base biológica,


contudo, esta predisposição não pode ser encarada como determinismo. Podemos
fazer a leitura de que o fomento da revolução nas relações humanas produziria a
nova sociedade, mas a dinamicidade histórica humana pressupõe a impossibilidade
de afirmar tal acontecimento por si só, nem mesmo, em caso afirmativo, determinar
como será esta nova sociedade.
Trabalhos completos 239

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund


Freud. V. 13. Totem e tabu. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1996.

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240 A Ética em prática no ambiente escolar

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242 A Ética em prática no ambiente escolar
TERCEIRA PARTE:

RESUMOS EXPANDIDOS
244 A Ética em prática no ambiente escolar
Resumos simples 245

=I=

JOÃO ESCOTO ERÍGENA:


RAZÃO EM FUNCÃO DA FÉ

Juliana Gilo Tibério*


Gilmar Henrique da Conceição**

1.1 INTRODUÇÃO

Escoto Erígena nasceu por volta de 800 e 815 na Irlanda.


Escoto Erígena é considerado o criador da ponte entre os Padres
gregos e os teólogos e filósofos da Idade Média. Algumas das suas
principais obras foram: O tratado “Sobre a divisão da natureza” e a
“Exposição sobre a hierarquia Celeste de São Dionísio”. Ele também
foi conhecido por traduzir do grego obras de Pseudo-Dionísio e de
Gregório de Nisa. Na realidade, a maior influência sobre Escoto
Erígena foi o autor grego Pseudo-Dionísio, de modo que é
necessário algumas referências a este autor. Para Pseudo-Dionísio,
o centro das reflexões está em Deus, cujo conhecimento começa
com o caminho positivo e termina com o caminho negativo. Caminho
positivo: consiste em atribuir-lhe as perfeições simples das criaturas.
Caminho negativo: consiste em negá-las. Ou nas palavras do autor,
essas negações não devem ser entendidas em sentido de privação,
mas sim de transcendência. Em Dionísio, a teologia afirmativa é
completada pela negativa que é o fundamento ou a forma inicial da
Via eminentiae ou Via excellentiae de que falaram os escolásticos.
Para além de todo conceito ou conhecimento humano, Deus é supra-
ser, supra-substância, supra-bondade, supra-vida e supra-espírito.
Basicamente, para Escoto Erígena, a verdadeira filosofia é a
verdadeira religião, sendo que a razão nunca deve prevalecer sobre
a fé, devendo caminhar juntas.
De divisione naturae, a principal obra de Escoto Erígena,
composta de cinco livros, em forma de diálogo, podendo assim ser
divido em quatro etapas: a) Natureza que não é criada, mas cria: é
Deus, pois ele é incriável, mas é o criador de tudo e de todos. Só
pode se chamar de criatura sua primeira manifestação, que é

* UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, juh_ana_gt@hotmail.com


** Professor da UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
246 A Ética em prática no ambiente escolar

conhecida como Logos que não é determinada no tempo e no


espaço. b) Natureza que é criada e cria: é logos, e é onde estão
contidas as coisas primordiais de todas as coisas. Trata-se de todas
as ideias de Deus, chamadas também de vontades divinas. As
coisas que estão contidas no espaço e no tempo são inferiores à
criação. c) Natureza que é criada e não cria: é o mundo que é criado
no tempo e no espaço, mas não cria outras coisas. d) Natureza que
não é criada e não cria: é Deus como termo final de tudo. O quinto
livro fala sobre o retorno. O tempo entre a origem e o retorno é
marcado pelo homem por levar tudo a Deus. Ao reencarnar o Filho
de Deus mostrou o caminho para o retorno. Por isso a reencarnação
de Deus é um fato natural e ao mesmo tempo sobrenatural, filosófico
e teológico.
A sede de saber é algo inato do ser humano, mas antes da
vinda de cristo os homens ignoravam a maneira de satisfazer esta
sede, tendo acesso somente à fonte da razão natural. Após a
encarnação de Cristo a razão deixou de ser o único meio para o
conhecimento, assim os homens começaram a usar a fé para obter
suas respostas. Nenhuma autoridade deve te afastar das coisas que
são ensinadas pela reta razão. A verdadeira autoridade, com efeito,
não se opõe à reta razão, nem esta à verdadeira autoridade, porque
ambas derivam de uma única fonte, isto é, da sabedoria divina.
Neste trecho, Erígena contribui para a investigação lógico filosófica,
em um contexto teológico. A autoridade humana nada mais é do que
o resultado da interpretação dos santos Padres ou, mais
precisamente, da reflexão que eles têm sobre os dados revelados.
Já, em Praedestinatione, ele mostra que o papel da Ratio (razão) é
insubstituível. João Escoto Erígena sentiu a necessidade de recorrer
à razão para esclarecer algumas controvérsias e teses contrapostas
da época. Ele aboliu qualquer distinção entre filosofia e religião e
chegou a afirmar, no contexto religioso, que ninguém pode entrar no
céu a não ser passando pela filosofia. Em suas palavras: a
verdadeira filosofia outra coisa não é do que a religião e,
inversamente, a verdadeira religião, outra coisa não é do que
verdadeira filosofia.

1.2 A NECESSIDADE DO CONHECIMENTO

Ao ser mostrado que existe uma revelação contida nas


Escrituras, deve-se haver uma aceitação deste fato. Esta aceitação é
realizada mediante a fé, pela qual aceitamos tudo que está na
Escritura. Após a aceitação, todo conhecimento deve começar por
Resumos simples 247

um ato de fé. Escoto Erígena não deixa a menor dúvida que todo
conhecimento deve ser arrancado da Sagrada Escritura; o estudo da
verdade pressupõe um ato de fé. Assim como a fé precede o
conhecimento, assim o conhecimento deve sobreviver à fé. Pois esta
é apenas o princípio do conhecimento de Deus. A razão tem o dever
de descobrir o significado que se oculta sob as palavras da Escritura.
Contudo, tem que haver muito cuidado para não ser mal interpretada,
pois pode levar alguns leitores a concepções absurdas; por isso deve
ser examinada pela razão.
A razão já possui um saber purificado da revelação, por isso
se encaminha para a compreensão perfeita de todas as coisas. O
antigo grego dava o nome de “filosofia” para este conhecimento
perfeito. E é daí que vem a coincidência da filosofia com a verdadeira
religião.

1.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A teoria das ideias é bem comum com os filósofos de todos


os tempos. As ideias são coisas criadas que se encontram nas suas
essências. As ideias são coeternas com Deus, visto como foram
feitas em Deus e por Deus. No entanto, o termo coeterno reclama
uma determinação mais precisa. As ideias são coeternas com Deus
no sentido de não serem temporalmente posteriores a Ele. Enquanto
criaturas, porém, dependem de Deus como de sua causa e, portanto,
não podem ser eternas no sentido estrito, dado que a eternidade, em
tal sentido, só compete ao ser absolutamente incausado. Por
conseguinte, ao dizemos que são coeternas com Deus, só lhe
negamos a existência temporal, mas não a sua dependência de
Deus. Erígena chama as Ideias em Deus de pré-formadas. Mas o
fato de elas estarem em Deus levanta uma questão: Como podem as
ideias encontrarem-se em Deus, apesar de elas serem criadas?
Quando ele fala em “negadas” ele tenta negar toda a identidade
entre as ideias e a essência divina. Para responder esta questão
Erígena explica que Deus produz as coisas na intenção de se
manifestar, revelar-se a Si mesmo. Ao se manifestar ele conhece a si
mesmo, ele se cria. Antes deste ato, Deus não conhecia nenhuma
determinação de Si por infinito. Por produzir ideias ele toma
conhecimento de algumas determinações de sua natureza supra
essencial.
Em suma, isto não quer dizer que Deus não existia; isto só o
apresenta como uma natureza criada e criadora. Por ideias tão
complexas, foi acusado de heresia por causa da sua obra De
248 A Ética em prática no ambiente escolar

Praedestinatione, mas deixou um importante legado para a filosofia e


a teologia.

PALAVRAS-CHAVE: Escoto Erígina; Ratio; Fides; Deus; Criação.

REFERÊNCIAS

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A filosofia em curso. Orgs.: CARDOSO, LIBANIO; KAHLMEYER-
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PADOVANI, U.; CASTAGNOLA, L. História da filosofia. São Paulo:


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Resumos simples 249

= II =

MONTAIGNE:
O FILÓSOFO DA APARÊNCIA E SUA SABEDORIA TRÁGICA

Gilmar Henrique da Conceição*

Há diferentes respostas para o problema da viabilidade do


pirronismo, mas concordamos com a ideia de relativa continuidade
do pirronismo, destacando a noção de fenômeno como eixo que
marca essa continuidade (GAZINELLI, 2009). Observa-se que
Diógenes Laércio (2009) continua exercendo considerável influência
sobre a interpretação do ceticismo com sua obra A vida de Pirro. Ao
discorrer sobre o pirronismo, Laércio considera-o o mais nobre
filosofar, por ter inventado em seu modo de vida os estados de
akatalepsía (inapreensibilidade das coisas) e de epokhé (suspensão
de juízo):

Sendo assim, nada dizia ser nem belo, nem feio, nem justo, nem
injusto, mas igualmente, sobre todas as coisas, afirmava nada ser
em verdade, mas todos os homens agirem segundo a convenção e
o costume; pois cada coisa não é mais isso que aquilo. (LAÉRCIO,
2009, p. 161)

Montaigne escreve que o pensamento de Pirro

[...] apresenta o homem nu e vazio, reconhecendo sua fraqueza


natural, apropriado para receber do alto uma força externa,
desguarnecido de ciência humana, e, portanto mais apto para
alojar em si a divina, anulando seu próprio julgamento a fim de dar
mais espaço para a fé; [C] nem descrendo [A] nem estabelecendo
nenhum dogma contra as observâncias comuns; humilde,
obediente, disciplinável, zeloso; inimigo jurado da heresia, e
consequentemente isentando-se, das ideias irreligiosas e vãs
introduzidas pelas falsas seitas. (II, 12, p. 260)

* Professor da UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná,


gilmarhenriqueconceicao@hotmail.com
250 A Ética em prática no ambiente escolar

Montaigne se caracteriza pela desconfiança em relação a


qualquer transformação pelo próprio homem de sua condição de
criatura vivendo na aparência e em que o próprio ser humano é
aparência. Pensamos, igualmente, que é o próprio ato de descrever
o fenômeno que possibilita a interpretação do pensamento de
Montaigne. Não há nada mais profundo que a aparência, que é o
lugar de todos os paradoxos e de todas as contrariedades. Desse
modo, se aceitarmos a interpretação do ceticismo radical do
ensaísta, como filosofia da aparência, poderemos compreender o
‘heracliteísmo’ e ‘mobilismo’ de Montaigne. Conforme o cético Sexto
Empírico, o filósofo Enesidemo afirmava que a orientação nuclear
pirroniana consiste em ‘uma via que leva à filosofia de Heráclito’.
Assim sendo, numa perspectiva fenomênica, a contrariedade nas
aparências bem pode não afetar em nada a realidade subjacente, o
ser mesmo das coisas (que é inacessível à razão). Todavia, se a
oposição entre a aparência e o ser for eliminada, a contrariedade e
mobilidade na aparência é contrariedade e mobilidade no próprio ser
das coisas. Afirma o ensaísta que, no mundo, não há nada
permanente. Em outras palavras, Montaigne exclui a possibilidade de
uma substância fixa, exclui também a subsistência de uma natureza
em si das coisas. Desconfia do logos quanto a sua capacidade de
conhecimento e da apreensão do ser. Portanto, o ser humano não
pode ser medida de coisa nenhuma, nem sequer de sua ignorância.
Os pirrônicos recebem todas as aparências. Não privilegiam
(pelo juízo) nenhuma delas, escapam pela ataraxia à agitação
provocada pelas opiniões. Os céticos pirrônicos fazem afirmações
com o intuito de combater outras afirmações, não para manter
alguma opinião avaliada como ‘verdadeira’. A razão é incapaz de
atingir o verdadeiro, bem como de determinar o bem. Portanto,
segundo Montaigne, lidamos unicamente com as aparências e
nenhuma delas indica o ser e a essência. Não há nada que,
verdadeiramente, seja. Montaigne defende as ideias de Pirro na
medida em que liberta no ser humano a espontaneidade atuante, a
capacidade de ação pura. A sabedoria trágica de Montaigne consiste
na afirmação do valor do efêmero, do valor do instante. O movimento
e a instabilidade não procedem, unicamente, do exterior de cada
pessoa; e isso leva Montaigne a romper com o princípio de
identidade de ser sempre igual a si mesmo e a abrir-se para uma
experiência em que são possíveis a diferença e a constatação de
uma distância entre o eu em relação a si mesmo e em relação a
outros, em que é possível, de um lado, o desacordo e as
contradições e, de outro, a volubilidade e a discordância. Ao traçar o
Resumos simples 251

percurso de si mesmo, Montaigne registra o procedimento de um


homem ante a realidade insuperável do devir, a inconstância e o
fluxo perpétuo, regidos pelo acaso: “O mundo não é mais que um
perene movimento. Nele todas as coisas se movem sem cessar [...].
A própria constância não é outra coisa senão um movimento mais
lânguido” (III, 2, p. 27). É por essa razão que Montaigne opta pelo
partido dos céticos, para quem o julgador e o julgado estão em
contínua mutação e movimento.
O ensaísta se detém em refutar as diversas teorias
elaboradas, objetivando explicar o universo e a alma humanos,
alvejando a base racionalista com que os filósofos se apropriam da
evidência dos fenômenos, como parte de uma estratégia de
legitimação de suas doutrinas. Montaigne é implacável quanto à
suposição de que no âmbito das coisas que se oferecem à nossa
experiência estivesse a nosso alcance o conhecimento de alguma
verdade. Mesmo que, de acordo com Montaigne, a experiência
possa nos oferecer um critério para a vida prática mais confiável que
as ilusões que a razão forja, tampouco ela é compreendida como
instância capaz de, propriamente, oferecer conhecimento. De certa
forma, a razão se nega radicalmente e se afirma nessa mesma
negação. A razão teórica conserva valor em seu uso negativo, como
crítica que destrói os ídolos da razão errante, as verdades, as
instituições, o costume, a lei, o Estado etc. Não se trata da verdade
do ente, como se algum sentido houvesse em expor o ente em sua
verdade, independentemente de um olhar. A única verdade que o ser
humano atinge não é a de um sujeito ou de um objeto que se incline
para um lado ou para o outro, mas a verdade de um aspecto que não
é indissociável da apreensão, ou seja, a verdade da aparência,
verdade concreta, visto que ele não separa o olhar e o olhado, o
julgante e o julgado; a verdade da aparência os une, correlaciona-os
com um nexo interno.

PALAVRAS-CHAVE: Montaigne, ceticismo, fenômeno, sabedoria

REFERÊNCIAS

DUMONT, Jean-Paul. Le scepticisme et le phenomene. Paris:


Philosophique, 1972.

EVA, Luiz A. A Figura do filósofo: ceticismo e subjetividade em


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252 A Ética em prática no ambiente escolar

GAZINELLI, Gabriela G. A vida cética de Pirro. São Paulo: Loyola,


2009.

HUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos. Trad. Claudia Berlinder,


Eduardo Brandão, Ivone Castilho Benedetti, Maria Ermantina Galvão.
São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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(Coleção Quadridrige).

STAROBINSKI, Jean. Montaigne em movimento. Trad. Maria Lúcia


Machado. São Paulo: Companhia da Letras, 1992.

SEXTO EMPÍRICO. Outlines of Pyrrhonism. Trad. para o inglês R.


G. Bury. Cambridge, Massachusetts, London, England: Harvard
University Press, 2000.
Resumos simples 253

= III =

O APARECER NO MUNDO E O AMOR MUNDI EM HANNAH


ARENDT

Elissa Gabriela Fernandes Sanches*


Gilmar Henrique da Conceição**

Hannah Arendt afirma:

[...] a ação e o discurso são os modos pelos quais os seres


humanos aparecem uns para os outros, certamente não como
objetos físicos, mas qua homens. Esse aparecimento, em
contraposição à mera existência corpórea, depende da iniciativa,
mas trata-se de uma iniciativa da qual nenhum ser humano pode
abster-se sem deixar de ser humano. [...]. Os homens podem
perfeitamente viver sem trabalhar [...] e podem muito bem decidir
simplesmente usar e fruir do mundo de coisas sem lhe acrescentar
um só objeto útil [...]. Por outro lado, uma vida sem discurso e sem
ação [...] é literalmente morta para o mundo; deixa de ser uma vida
humana, uma vez que já não é vivida entre os homens. (ARENDT,
2014, p. 218-219)

Este pequeno trecho presente no início do quinto capítulo de


sua obra “A Condição Humana” (The Human Condition) destaca o
valor que a filósofa alemã confere aos elementos da vita activa,
caracterizada pela presença da ação, da obra (work) e do trabalho
(labor). O aparecer consiste em tornar-se visível; e isto é o que nos
torna humanos. Como seres capazes de agir e falar, o mundo que
compartilhamos só se torna visível à medida em que adentramos
nele, isto é, vivemos. No entanto, a decisão e o ato de aparecer
depende exclusivamente de nossa iniciativa, nossa vontade em nos
tornarmos humanos.
O mundo é um ambiente dado a nós, disponível, aberto. Ao
nascermos, automaticamente nos inserimos, existencialmente, nesse
habitat repleto de significados, linguagens, experiências, construído
por nós, seres humanos. Mas esse mundo não está pronto para nós.

* UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná,


elissagabrielafs@hotmail.com
** Professor da UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
254 A Ética em prática no ambiente escolar

Cada indivíduo, ao adentrar nele, começa a transformá-lo,


conferindo-lhe novas características, adaptando-o às condições de
seu próprio existir. Conforme a passagem do tempo, com a
presentificação do futuro, em que o passado vai se tornando um
depósito de memórias, adquirimos novos valores, somos
influenciados e influenciamos outras pessoas, convivemos
desarmonicamente e nos permitimos o luxo das idealizações.
Projetamos coisas e as tornamos reais, concretas, a partir das
imagens calculadas em nossas mentes. Uma pedra deixa sua
natureza disforme para se tornar, muitas vezes, uma joia, ornamento
valioso em corpos comuns. Uma árvore se transforma em madeira,
matéria-prima para a produção de inúmeros objetos de uso cotidiano.
O pelo dos animais serve, muitas vezes, de casacos para nos
esquentar nos gélidos dias de inverno. Contudo, todos os objetos
que produzimos perdem sua utilidade em algum momento de nossas
vidas. Um par de sapatos não resiste ao tempo, bem como a
aparente perenidade de uma mesa de madeira. Ainda que tais coisas
não sejam desgastadas devido à sua própria finitude, nós, como
seres mutáveis, nos cansamos, enjoamos e as descartamos, para
nos entregarmos ao vicioso prazer da novidade1, seja comprando
novos objetos, seja produzindo-os.
Retomando a citação acima, o trabalho não é essencial à
própria condição humana, pois como Arendt afirma “Os homens
podem perfeitamente viver sem trabalhar obrigando outros a

1 “A durabilidade do artifício humano não é absoluta; o uso que dele fazemos,


embora não o consumamos, o desgasta. O processo vital que permeia todo o nosso
ser também o invade; e se não usarmos as coisas do mundo elas finalmente
também perecerão e retornarão ao processo natural global do qual foram retiradas e
contra o qual foram erigidas” (ARENDT, 2014, p. 170). Logo em seguida, Arendt
exemplifica esta argumentação ao refletir sobre o processo vital de uma cadeira de
madeira, mas tomemos um exemplo diferente. Na época em que vivemos lidamos
com muitos materiais que levam tanto tempo para retornarem ao ciclo biológico da
natureza, por intermédio de sua deterioração, que nos obriga a repensarmos o seu
uso. Neste sentido, um dos materiais mais comuns em nosso meio é o plástico, que
leva em média 450 anos para degradar-se, gerando, nesse meio-tempo, diversos
problemas ambientais provocados pelo seu descarte. No entanto, não podemos abrir
mão do plástico, afinal, necessitamos dele para produzir garrafas, sacolas, materiais
de uso hospitalar e etc.. Porém, o que a autora assevera é que a produção de tais
objetos de uso não os destitui de sua independência relativa às mãos humanas. O
fato de desenvolvermos diversos materiais a partir de vários compostos diferentes
não significa que temos absoluto controle sobre eles. O tempo acaba obrigando o
retorno dos mesmos ao seu meio de origem, o que implica considerarmos o quão
dependentes somos do mundo e daquilo que ele nos oferece para existirmos, e o
quanto que este mesmo mundo independe de nossa presença nele.
Resumos simples 255

trabalharem para eles” (2014, p. 218). Da mesma forma, a visão


agostiniana entre uti e frui, analisada pela autora em sua tese de
doutorado “O conceito de amor em Agostinho” (Der Liebesbegriff bei
Augustin), é um critério primordial que nos caracteriza como seres
humanos. Podemos escolher utilizarmos (uti) e nos deleitarmos (frui)
sobre as coisas que o mundo nos fornece, mas o ausentar-se da
decisão ou, até mesmo, o optar por não se esbanjar em todas as
benesses que parecem estar disponíveis ao nosso exclusivo
proveito, não desfazem de nossa singular condição. O que nos torna
humanos então?
Hannah Arendt (2014, p. 23) descreve que, no contexto
filosófico da Grécia Antiga, “a mortalidade tornou-se um emblema da
existência humana”, dado que os seres humanos congregavam em
meio a um cosmos estimado como imortal:

Os homens são ‘os mortais’, as únicas coisas mortais que existem,


porque, ao contrário dos animais, não existem apenas como
membros de uma espécie cuja vida imortal é garantida pela
procriação. (ARENDT, 2014, p. 23)

Na humanidade, cada um de nós vive uma só vez, enquanto


os animais vivem em uma espécie de ciclos infinitos, garantidos
através da possibilidade de geração de novos seres, sempre iguais,
o que promove sua imortalidade. Devido a isso, fortaleceram-se as
preocupações com a mortalidade, até o momento em que os gregos
perceberam que os feitos humanos podiam subsistir à linearidade da
vida. Esta era a característica própria do ser humano, evidência de
sua transcendência, de sua natureza “divina”. A partir de então, eles
constataram que podiam compartilhar da imortalidade do cosmos ao
agirem no mundo; e quanto mais um indivíduo ansiava pelo
reconhecimento perene e memórias de seus atos, mais humano era
considerado. Esta pessoa se diferenciava daqueles que se
contentavam com o que a natureza era capaz de lhes oferecer, em
serem meros animais.
Nossa capacidade de recordar de ações passadas faz com
que caminhemos em meio a um presente preenchido por emoções,
resultantes de nossas vivências. Ao narrarmos uma história, não
estamos apenas contando um relato a outrem, mas relembrando de
fatos ocorridos e tornando-os novamente presentes. Esta constante
prática de evocar o passado em uma situação presente impede que
esqueçamos os fatos, as pessoas, e até mesmo nós próprios. Somos
marcados, de maneira recorrente, por tudo aquilo que ocorre ao
256 A Ética em prática no ambiente escolar

nosso redor e, dessa forma, aos poucos imortalizamos os


acontecimentos, as pessoas, o mundo. Um exemplo bastante visível
disso é o próprio fenômeno do holocausto, que Arendt vivenciou a
distância, através de notícias, reportagens, uma quantidade
consideravelmente ínfima em comparação ao que ocorreu,
concretamente, na Alemanha. Contudo, sua angústia não era
proporcionalmente menor, o que demonstra sua tão afinada
preocupação para com o mundo2. Mesmo após 71 anos do fim da
Segunda Guerra Mundial, ainda sofremos os efeitos catastróficos
provocados pela memória das atrocidades que ocorreram neste
período. O Holocausto é apenas um deles, lembrança essa
perpetuada pela própria comunidade judaica. Evitamos qualquer
referência inadequada ao ocorrido, sempre receando o surgimento
de qualquer forma de governo tão violentamente totalitário. A história
pode se repetir? Não só pode, como, segundo a autora, possuímos
uma distinta capacidade para evitar que tais erros ocorram
novamente, por intermédio do perdão.
O reacender da dor através de recordações é útil para manter
a memória vívida no interior da comunidade humana, e impedir que
esqueçamos do que somos capazes de fazer. Porém, o perdão
possibilita o desenvolvimento de novas ações, algo necessário
quando pensamos que ainda não destruímos o mundo porque tanto
temos a inclinação para o ódio como para o amor.

Se não fôssemos perdoados, liberados das consequências daquilo


que fizemos, nossa capacidade de agir ficaria, por assim dizer,
limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos;
seríamos para sempre as vítimas de suas consequências, à
semelhança do aprendiz de feiticeiro que não dispunha da fórmula
mágica para desfazer o feitiço. (ARENDT, 2014, p. 293)

2 Hannah Arendt também esteve inserida, em um curto período de tempo, no


contexto do nazismo alemão. Aliás, esse foi um dos motivos pelo qual emigrou para
a França (YOUNG-BRUEHL, 2014, p. 104) e, logo depois, para os Estados Unidos.
Como Elizabeth Young-Bruehl (1997, p. 127) afirma: “Hannah Arendt e Heinrich
Blücher tiveram sorte. Receberam vistos norte-americanos provisórios e puderam
viajar através do sul da França à Espanha e depois a Lisboa, onde embarcaram
para Nova York”. Em uma entrevista concedida à Günter Gaus, em 28 de outubro de
1964, Arendt comenta: “Ninguém mais se importa como o mundo aparenta estar. [...]
emprego o termo [mundo] num sentido muito mais amplo, como o espaço onde as
coisas se tornam públicas, como o espaço onde a pessoa vive e que deve parecer
apresentável”. É precisamente desta preocupação que tratamos aqui, que obriga a
filósofa alemã a reformular o uso do conceito “mundo”, que não se dirige mais
somente a um meio, separado do indivíduo, porém, é intrínseco a ele.
Resumos simples 257

Contudo, não só precisamos ser perdoados como também


somos coagidos pela nossa própria existência, à ação e ao discurso.
Ao nascermos no mundo, criamos um vínculo com ele, que se
expressa no compromisso para com o lugar de onde viemos. A ação
e a palavra possuem como finalidade a manutenção desse ambiente,
representado pela comunidade humana que nele se constitui.
Hannah Arendt não estava pensando em termos de sujeito e
objeto, mas de que o ser humano só se estabelece como tal no
interior de seu lugar de origem, do mundo. A ação e o discurso,
juntos, são a combinação para que nos tornemos um entre os
demais, condição essencial da vida. A ação por si só não possui
valor dentro dessa categoria de constituição de um mundo comum e,
muito menos, o discurso que, ao ser reduzido, torna-se meras
palavras ao vento. No entanto, ambas as atitudes, juntas, conduzem
o indivíduo à visibilidade; e ele não apenas se torna aparente como é
marcado no interior da memória de cada um. Imaginemos, portanto,
um grande espaço no qual diversos indivíduos, a todo instante,
surgem em nosso meio. Muitos se tornam visíveis a nós e, dentre
estes, alguns passam a nos influenciar diretamente, outros,
indiretamente. Podemos visualizar uma imensa teia de relações, em
que as coisas que falamos e fazemos são narradas a outros e que,
por sua vez, comentam com pessoas que, muitas vezes, não
possuímos nenhum contato. Essa teia é invisível a nós quando
estamos envolvidos nela. Não percebemos a distância de nossas
ações e palavras, até onde elas podem chegar. Todavia, na ausência
delas desaparecemos do mundo, deixamos de estar entre os seres
humanos para nos isolarmos. O grande problema disso é que o
afastamento do mundo só é possível quando deixamos de existir, ou
seja, através da morte.
O amor mundi é um conceito arendtiano que expressa o
sentimento que temos por esse mundo. É uma preocupação que se
abre para o cuidado dele e, portanto, promove a manutenção de sua
durabilidade. A ação e o discurso estão totalmente sujeitos ao tempo.
Ambos se apresentam instantaneamente e, o que for apreendido, é
armazenado na memória daqueles que foram afetados por eles.
Contudo, agimos e falamos a todo o momento e em diversas
ocasiões. São estas duas atitudes que ocorrem inúmeras vezes por
vários motivos que mantêm nossa visibilidade no mundo. Não
obstante, é preciso querer agir e falar, ou seja, é necessário querer
estar no mundo, ser do mundo, cuidar do mundo. O amor mundi
promove esta responsabilidade perante o meio que compartilhamos
com os outros, este espaço literalmente público onde todos somos
258 A Ética em prática no ambiente escolar

aparentes. Nossa estabilidade no interior do mundo é garantida pelo


sentimento que temos por ele e interpretemos o amor mundi, como
sendo uma forma que nos assegura permanência.
Somos movidos por essa responsabilidade que nos
impulsiona a entrar no mundo, a nos tornarmos visíveis uns aos
outros, a cuidarmos dele, a permanecermos nele. Em nossas vidas
mortais, é o mundo que permite a imortalização de nossos atos e
palavras. Não podemos mais pensar como os gregos antigos, em
que a nossa própria identidade, quem somos, torna-se perene por
meio da memória, abrindo, dessa forma, para nossa participação no
âmago de um cosmos imortal. No entanto, eis que não podemos
abrir mão totalmente desta mentalidade pois, ao influenciar pessoas,
estamos contribuindo não apenas para a duração do mundo, como
para sua destruição. Como preocupação pelo mundo, o amor mundi
se revela como aquilo que poderá, finalmente, sustentar a fábrica
humana (feitos e construções dos seres humanos), bem como
endossar o próprio fazer político, conferindo a ele uma importância
que vai além de nosso mero egocentrismo.

PALAVRAS-CHAVE: amor mundi; Hannah Arendt; aparecimento.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 12 ed. Trad. Roberto


Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

______. Compreender: Formação, exílio e totalitarismo – ensaios


(1930-1954). Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das
Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Hannah Arendt: Por amor ao mundo.


Trad. Antônio Trânsito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.
QUARTA PARTE:

RESUMOS SIMPLES
260 A Ética em prática no ambiente escolar
Resumos simples 261

=I=

A ANALÍTICA EXISTENCIAL FACE À ANTROPOLOGIA,


PSICOLOGIA E BIOLOGIA

Katyana Martins Weyh*


Roberto S. Kahlmeyer-Mertens**

O tema do presente trabalho é a crítica do filósofo Martin


Heidegger a ciências como a antropologia, a psicologia e a biologia.
Como subtema desta pesquisa, trataremos ainda da analítica
existencial, como uma nova forma de compreender e “analisar” o ser
do “homem”. Para tanto, partiremos da afirmação de Heidegger
segundo a qual o ser caiu em esquecimento e, desde a antiguidade,
ele foi pensado como mera entidade (algo simplesmente dado). A
partir desse problema, o filósofo trata do modo de ser do homem,
não como antropos, como psique ou como bios, como o fazem as
ciências empíricas, mas compreende esse modo de ser como ser-aí.
É a partir de uma analítica existencial, que nos mostra a diferença
ontológica entre ser e ente, que podemos compreender o ser-aí
como condição de possibilidades e não como determinações sociais,
psicológicas ou mesmo, fisiológicas. Para o pensamento
fenomenológico de matriz heideggeriana, se há uma determinação
possível ao ser-aí, ela pode ser única e exclusivamente condição de
poder-ser no mundo; e esse é um pensamento completamente
diferente daquele já cristalizado da tradição filosófica. Diante disso,
esta investigação procura responder o problema: De que modo as
ciências da antropologia, da psicologia e da biologia pensam,
compreendem e analisam o ser do homem? Nossa hipótese é a de
que Heidegger critica tais ciências, apontando sua ingenuidade e
propondo uma radical desconstrução da história da metafísica e,
especificamente, da ontologia. Há a necessidade de tecer uma crítica
à metafísica, pois a fenomenologia-existencial de Heidegger não
permite uma compreensão pautada em pressupostos causais,
deterministas e subjetivistas, tampouco uma análise (analyse) que
decompõe o ser em partes para investigações de cunho científico. O

* UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus Toledo,


katian.na@hotmail.com
** Professor da UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
262 A Ética em prática no ambiente escolar

ser-aí é um ente de possibilidades que existe no mundo, um ente


privilegiado que compreende sua existência e pergunta pelo seu
sentido, diferente dos demais entes que estão simplesmente dados.
Devido a isso, o ser-aí não pode ter determinações, não pode ser
compreendido como mera entidade, uma vez que traz consigo a
marca do poder-ser possível. Portanto, nosso trabalho tem os
objetivos de, primordialmente, indicar o teor da crítica de Heidegger
às ciências da antropologia, da psicologia e da biologia e definir qual
é, para o filósofo, o modo mais adequado de pensar o ser do homem.
Assim, é possível compreender, por meio de uma analítica
existencial, que Heidegger reformula a ontologia e que esta não se
pauta mais em pressupostos tradicionais e positivos, mas que
inaugura uma nova forma de pensar o ser-aí: a ontologia
fundamental.

PALAVRAS-CHAVE: Analítica existencial; Heidegger; Antropologia;


Psicologia; Biologia.

REFERÊNCIAS

HAAR, Michel. Heidegger e a essência do homem. Trad. Ana


Cristina Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 1990.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Márcia Sá


Cavalcanti – Petrópolis: Vozes, 2008.

INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Tradução de Luísa


Buarque de Holanda. Zahar: Rio de Janeiro, 2002.

KAHLMEYER-MERTENS, Roberto. S. 10 Lições sobre Heidegger.


Petrópolis: Vozes, 2015.
Resumos simples 263

= II =

A ATUALIDADE DA FILOSOFIA DE MARX

Bruno Gonçalves da Paixão*


Jadir Antunes**

Essa proposta de comunicação tem como pretensão discutir a


“validade” ou não da filosofia política do filósofo alemão Karl Marx,
nos dias de hoje. Tendo em vista, por um lado, que essa filosofia,
propriamente marxiana, surge a partir da segunda metade de 1843,
onde a sociabilidade burguesa ainda estava em vias de consolidação
(fenomenicamente diferente do atual momento) e, por outro lado, que
as tentativas práticas de realização dos pressupostos revolucionários
inerentes à filosofia marxiana (erroneamente identificadas com os
regimes que reivindicavam serem socialistas) descambaram em
sociabilidades de tipo pós-capitalistas (modelo soviético). Uma
questão nunca se cala ao discutir Marx: as categorias marxianas
conseguem responder ainda a uma realidade, em sua especificidade,
muito diferente da que fez brotar a filosofia do autor em questão? E,
com o esfacelamento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS), não ficou claro que os pressupostos políticos marxianos se
mostraram irrealizáveis, tal qual estampada em suas inúmeras
páginas? Para responder tais indagações não bastam apenas as
fraseologias de manuais de militantes praticistas, que defendem por
defender uma teoria. Muito menos, num outro polo, são eficazes a
moda revisionista e/ou pluralista/metodológica (dominante no
marxismo academicista), que ao desconsiderarem categorias
mestras do edifício teórico marxiano, abraçam, consciente ou
inconscientemente, o conservadorismo (no sentido de manutenção
do que aí está). A intenção é mostrar, nessa comunicação, que a
tentativa de responder os questionamentos feitos, acima, passa não
por contornar a obra marxiana, mas por aprofundar o conhecimento
em torno da totalidade de sua obra (leitura ortodoxa). Nesse sentido,
o esforço se dará para mostrar como as categorias filosófico-políticas
do pensador alemão podem contribuir não só para uma interpretação
do atual momento do sociometabólico sistema do capital, como ainda

* UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, brpja@hotmail.com


** Professor da UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
264 A Ética em prática no ambiente escolar

dar pistas das mediações necessárias à superação onde as


alienações são dominantes. E isso só poderá ser visualizado a partir
do momento em que confrontarmos categorias marxianas com a
realidade. Assim, entender o que é alienação, o conceito negativo de
política, mais-valia, classes sociais, dentre outros, em suas
manifestações históricas (como aparecem ao longo dos períodos
históricos), é o ponto fulcral para avivar, ou novamente sepultar, a
filosofia marxiana.

PALAVRAS-CHAVE: Marx; marxismo; capitalismo

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Jadir. Marx e a noção de Bonapartismo. In Revista


Kalagatos, UECE. Vol. 05, pp 101-130, 2011.

LESSA, Sergio. Trabalho e proletariado no capitalismo


contemporâneo. São Paulo: Cortez, 2007.

LUKÁCS, György. La destruction de la raison. Paris: Éditions


Delga, 2006.

_____. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo,


2012.

LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou Revolução. São Paulo:


Expressão Popular, 2009.

MARX, Karl. A guerra civil na França. Tradução e notas Rubens


Ederle. São Paulo: Boitempo, 2011.

_____. A Miséria da filosofia. São Paulo: Global, 1985.

_____. As lutas de classe na França. São Paulo: Boitempo, 2012.

_____. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo.


Boitempo, 2010a.

_____. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: Introdução. São


Paulo. Boitempo, 2010b.
Resumos simples 265

_____. Crítica do programa de Gotha. Tradução e notas Rubens


Ederle. São Paulo: Boitempo, 2012.

_____. Der Bürgerkrieg in Frankreich. Werke, Band 17. Berlin:


Dietz Verlag, 1962.

_____. Gazeta Renana. N. 125, 128, 130, 132, 135, 139, 191, 193,
195, 221, 298, 300, 303, 305, 307. In: EIDT, Celso. O Estado
Racional: lineamentos da política de Karl Marx nos artigos da Gazeta
Renana: 1842-1843. Belo Horizonte: UFMG/FAFICH, 1998.

_____. Glosas Críticas Marginais ao Artigo "O Rei da Prússia e a


Reforma Social". De um prussiano. In: Revista Práxis, n. 5, Belo
Horizonte: 1995.

_____. Mensagem do Comitê central à liga dos comunistas. In: Lutas


de classe na Alemanha. São Paulo: Boitempo, 2010.

_____. O Capital: crítica da economia política: livro I; tradução de


Reginaldo Sant’Ana. 24° ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2006.

_____. O dezoito Brumário de Louis Bonaparte. Tradução de


Silvio Donizete Chagas. 4° ed. São Paulo: Centauro, 2006.

_____. Para a Crítica da Economia Política. Edições Progresso


Lisboa: Moscovo, 1982.

_____. Sobre a Questão Judaica. São Paulo: Boitempo, 2010c.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução Luis


Claudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

____. Brief an Bebel. Werke, Band 19. Berlin: Dietz Verlag, 1987.

_____. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Boitempo,


1995.

MÉSZAROS, István. A teoria da alienação em Marx. Tradução Isa


Tavares. São Paulo: Boitempo, 2006.
266 A Ética em prática no ambiente escolar

_____. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição.


Tradução Paulo Sérgio Castanheda, Sergio Lessa. São Paulo:
Boitempo, 2002.

TONET, Ivo. Método científico: uma abordagem ontológica. São


Paulo: Instituto Lukács, 2013.
Resumos simples 267

= III =

A FUNÇÃO SOCIAL DO POVO E DA ELITE NO PENSAMENTO DE


MAQUIAVEL

Robson Alan da Rocha*

Na história da filosofia e, sobretudo, para a política, Maquiavel


é um dos autores mais importantes e com um pensamento
determinante e inovador. De suas obras, O Príncipe possui um valor
histórico singular; e suas páginas traduzem a realidade do universo
do poder. Das ideias que podem ser exploradas em sua obra, o
conflito civil é decisivo para o pensamento de Maquiavel e para o
contexto político moderno e contemporâneo.
Maquiavel parte de um pressuposto que, embora
aparentemente óbvio, apresenta grande relevância e que ele, ao
longo de sua “carreira”, na cidade de Florença, pôde se dar conta: é
necessário, diante da figura de um Estado, levar em consideração a
existência de dois “apetites” (O Príncipe, IX): O primeiro, são os
grandes: estes são caracterizados pelo desejo de governar e oprimir.
E o segundo, que é exatamente o oposto dos grandes, é o povo: este
é caracterizado pelo desejo de não ser governado nem oprimido
pelos grandes. Dessa luta é que, segundo Maquiavel, surge a vida
política.
O que ele busca não é somente demonstrar que essas duas
categorias (grandes e povo) são dois lados completamente opostos,
mas também que, sendo opostos, os interesses dos grandes são
muito distintos dos interesses do povo. Aos grandes apenas uma
coisa interessa, e isso nada mais é que governar e oprimir. Ao povo,
por outro lado, resta não se deixar oprimir e não permitir que os
grandes os tiranizem. Ao passo que refletimos sobre essa questão,
deparamo-nos com os mais diversos problemas, objeções e
situações. É necessário entender que estas duas “forças” são
imprescindíveis para que a vida política possa ocorrer, afinal só
existe o governante na medida que existe um povo para ser
governado. Assim como a “luta dos patrícios e plebeus era a fonte da

* UINIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, r.rocha94@hotmail.com


268 A Ética em prática no ambiente escolar

grandeza romana” (CHABOD, 1964, p. 67); para o governo é


imprescindível esse constante embate.
A finalidade de tais observações está implícita, mas se
analisada pode parecer coerente: a partir do momento em que essas
duas forças contrárias buscam seus interesses e seus interesses
consistem em coisas diferentes, podemos afirmar que uma contém a
outra. Ora, em sua obra, “se tinha esperança de extrair dela algum
crédito junto aos senhores de Florença” (LEFORT, 1972, p. 315), não
era sem razão e, de fato, seria decoroso que seus governantes
dessem alguma atenção a tais considerações e entendessem o valor
dos seus súditos diante de sua própria segurança. A atuação do
povo limita a atuação dos grandes. Nisso e no amparo de todos pela
força da lei está a liberdade. Essa luta de forças não é uma finalidade
em si, mas meio para a liberdade. Nisso consiste o conflito. Desse
modo, o pensamento de Maquiavel quebra a ordem e harmonia que
era um ideal político e mostra um lado muito mais real do poder.

PALAVRAS-CHAVE: Maquiavel; Estado; conflito; poder; povo.

REFERÊNCIAS

CHABOD, Federico. Escritos sobre Maquiavelo. Trad. Rodrigo


Ruza. 2.Ed. México: Fondo de Cultura Econômica, 1994.

LEFORT, Claude. Le Travail de L’oeuvre Machiavel. Paris:


Gallimard, 1972.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Editora Nova Cultural,


2004.
Resumos simples 269

= IV =

A PROVA DA EXISTÊNCIA DOS CORPOS DE DESCARTES É


INVENCÍVEL? A ANÁLISE DE MALEBRANCHE A PARTIR DA
“VISÃO EM DEUS”

Vanessa Henning*
César Augusto Battisti**

O processo em que Descartes chega à prova da existência


dos corpos, nas Meditações Metafísicas, faz com que o filósofo
receba inúmeras críticas. Dentre elas, a que mais se destaca é a do
filósofo oratoriano Nicolas Malebranche, apresentada em seu
Esclarecimento VI, da obra De la Recherche de la Verité. Para
Malebranche, Descartes não demonstra a existência dos corpos,
embora prove Deus como um ser não enganador. Segundo o
oratoriano, quando Descartes afirma que possui uma inclinação
natural em crer que as nossas sensações são causadas pelos
corpos, o filósofo não apenas impõe uma relação necessária entre os
corpos e as sensações, mas também infere que essa necessidade
tenha sua legitimação em Deus. Malebranche explica que essa
inclinação não é invencível, uma vez que Deus, que é um ser veraz,
nos concedeu a razão para examinar esse conhecimento dos
sentidos. De acordo com Malebranche, a invencibilidade somente
pode ser admitida quando apresenta uma evidência intelectual, visto
que, desse modo, podemos ter um conhecimento perfeito e inteiro do
objeto. Essa evidência se encontra no conhecimento que temos da
essência das coisas corpóreas, o que mostra não haver nenhum
inconveniente sobre a garantia de Deus acerca desse conhecimento
dado por meio de ideias. Na doutrina malebranchiana, o conceito de
ideia tem sua influência no pensamento agostiniano. Ela é entendida
como um objeto imediato, ou que está o mais próximo da alma e não
algo que está na alma, como uma modificação do espírito. Neste
sentido, a ideia, não é algo que está em nós, mas em Deus, sendo
ela inteiramente objetiva. As ideias são entendidas como uma
espécie de arquétipo que serve de modelo para a criação do mundo

* Professora da UINIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná,


nessahen@gmail.com
** Professor da UINIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
270 A Ética em prática no ambiente escolar

e nos possibilita conhecer os objetos materiais em sua essência. O


homem tem, dessa maneira, a ideia inteligível em Deus, que o
permite deduzir todas as propriedades dos corpos, mesmo que ele
não saiba como cada um desses objetos efetivamente é, ou sequer
saiba que eles existem. Contudo, se, em Descartes, a legitimidade
da prova da existência dos corpos se dá pelas sensações, uma vez
que, pelo caminho racional da ideia de extensão, não se pode
efetivar a existência da matéria, em Malebranche parece ocorrer
esse mesmo problema. Dado que, se conhecemos somente por
ideias, e é em Deus que as vemos, não há como saber se,
efetivamente, existem corpos correspondentes às ideias que temos
deles. Porque, por uma hipótese, Deus fizesse com que todos os
objetos desaparecessem, nos deixando apenas as nossas ideias,
não poderíamos saber que não há corpos fora de nós. O que
pretendemos investigar é se, em Malebranche, existe alguma
possibilidade de a razão humana ter acesso à existência dos corpos
por meio de Deus e, se esse conhecimento nos apresenta alguma
evidência intelectual. Já que, como visto na crítica que Malebranche
faz a Descartes, devemos somente admitir invencibilidade na prova
da existência dos corpos se a sua demonstração for evidente. Nesse
sentido, como saber se corpos efetivamente existem ou se não
passam somente de ideias?

PALAVRAS-CHAVE: Prova da existência dos corpos; Deus; ideias;


Descartes; Malebranche.

REFERÊNCIAS

BLANC, Mafalda de Faria. Apresentação da metafísica de


Malebranche. Philosophica, p. 69- 87, volume I. Lisboa - Portugal,
1993.

DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. In: Obra escolhida.


Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Difusão
Europeia do Livro, 1962.

________. Oeuvres de Descartes. Publiées par Charles Adam &


Paul Tannery. 11 vols. Paris: Vrin, 1973.

MALEBRANCHE, Nicolas. A Busca da Verdade. Tradução de Plínio


Junqueira Smith. São Paulo: Discurso Editorial, 2004.
Resumos simples 271

________. Diálogos sobre a metafísica e a religião: primeiro


diálogo. Oficinas de tradução. Departamento de Filosofia.
Universidade Federal do Paraná., Curitiba: SCHLA/UFPR, 2011.

________. Recherche de La Verité. In: Oeuvres Complètes de


Malebranche. Paris: Libraire-Éditeur, 1842.

SILVA, Franklin Leopoldo e. Descartes: a metafísica da


modernidade. (Coleção Logos). São Paulo: Moderna, 1993.
272 A Ética em prática no ambiente escolar

=V=

SANTO AGOSTINHO E O PROBLEMA DO MAL

Thiago Augusto Zanardi*


Bernardo Alfredo Mayta Sakamoto**

Procurar a compreensão de nosso tempo com o estudo do


pensamento de Agostinho, filósofo do século IV de nossa era, nos
parece muito adequado. Lembremos que as questões e as soluções
dos filósofos não são determinadas pelo tempo. Agostinho indaga a
origem do mal desde a Criação do Universo. Onde e quando surge o
mal? O mal é uma substância? Deus criou o mal? Na criação divina
existe a presença do mal? Qual é o status do mal? O mal é o valor
negativo, contrário ao bem, ao amor? Quem impõe o mal?

Se foi o demônio quem me criou, de onde é que veio ele? E se, por
uma decisão de sua vontade perversa, se transformou de anjo bom
em demônio, qual é a origem daquela vontade má com que se
mudou em diabo, tendo sido criado anjo perfeito por um criador tão
bom?

Ontologicamente, o mal não existe, isto é, o mal não existe


nem em Deus nem nas criaturas: "Pois nenhuma coisa há fora de
Vós que se revolte ou desmanche a ordem que lhe estabelecestes".
O mal existe, parece dizer Agostinho, para os seres finitos, limitados
e preocupados com sua precária existência. O mal seria tudo o que
afeta ao ser limitado, ele chamará mal a todo aquele que afeta a sua
finitude. Mas, para aquele que se esforça em compreender a ordem
divina da Criação, o plano divino, não pode conceber o mal porque
percebe o bom e o belo em cada parte do todo.

PALAVRAS-CHAVE: Agostinho; Ética; Mal.

* UINIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, thiago.az@hotmail.com


** Professor da UINIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Resumos simples 273

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Os pensadores, tradução de J.


Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina, 2ª ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1980.

______. A Natureza do Bem. Tradução de Carlos Ancêde Nougué.


Rio de Janeiro: Sétimo selo, 2005.

______. O Livre-Arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. São


Paulo: Paulus, 1995.
274 A Ética em prática no ambiente escolar

= VI =

HERMENÊUTICA, PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES

Lívio Paulo Michelson Junior*


Roberto S. Kahlmeyer-Mertens**

A hermenêutica aparenta ser um conteúdo bem desconhecido


e que oferece uma série de dúvidas. Mas, se formos ver o que esse
nome indica em suas raízes gregas, vemos que ela se aproxima ao
que compreendemos por interpretação. Assim, a hermenêutica se
aplica, mesmo cotidianamente, ao que interpretamos. Por exemplo:
falas de familiares ou colegas, placas na rua, propagandas, etc.
Deste modo, sem nos darmos conta, fazemos uso da hermenêutica
para compreender e interpretar o que as variadas situações nos
oferecem. Interpretar sob um olhar hermenêutico é ir além do que
está claro, é ir ao significado do que é apresentado, extrair o máximo
de informações para compreender o que o autor da obra imaginou
ser compreendido. Sobre as questões do compreender e do
interpretar, Gadamer foi o mais notável pensador, este mesmo diria
que a hermenêutica é a doutrina da arte da interpretação que afirma
que todos os casos de compreensão envolvem, necessariamente,
tanto interpretação quanto um uso implícito da linguagem. Não por
acaso Gadamer foi o autor da grande reviravolta da hermenêutica, foi
ele que a tirou do status de um método objetivo, trazendo consigo as
questões gramaticais (a técnica) e, ainda, um pouco de adivinhação
(elementos psicológicos), tudo isso utilizado para interpretar (sejam
textos bíblicos, jurídicos, literários ou quaisquer fenômenos revelados
por linguagem). A nova hermenêutica de Gadamer trabalha com a
historicidade e com os horizontes. Assim, a conduta hermenêutica
não impõe nada como verdadeiro, antes, serve de impulso para um
processo autorreflexivo que nos dá a oportunidade de efetuar os
nossos potenciais. Como nos diz Gadamer: “igual ao escultor que,
segundo os gregos, quer apenas ‘acordar’ no seu material uma das
formas possíveis a ele inerentes”.

* UINIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná,


liviopaulo2011@hotmail.com
** Professor da UINIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Resumos simples 275

PALAVRAS-CHAVE: linguagem, dialogo, Gadamer, hermenêutica.

REFERÊNCIAS

HERMAN, Nadja. Hermenêutica e educação. Rio de Janeiro: DPeA,


2002.

POWELL, John Joseph; BRADY, Loretta. Arrancar mascaras e


abandonar papeis. São Paulo: Edições Loyola, 2010.

SCHMIDT, Lawrence K. Hermenêutica. Tradução de Fábio Ribeiro,


Petrópolis: Vozes, 2012.
276 A Ética em prática no ambiente escolar

= VII =

JUSTIÇA E DIREITO EM NIETZSCHE

Mayara Luiza Schaefer Lermen*


Celito de Bona**

O trabalho que segue visa apresentar uma possível definição


do que seria justiça e direito para Nietzsche. Para tanto, inicialmente,
é importante entender que ele traz um questionamento muito agudo
sobre elementos tradicionais da filosofia como a verdade, a moral e a
justiça. Neste sentido, Nietzsche preconiza que a verdade não é algo
a ser alcançado, posto que não se forma a partir de valores pré-
fixados, mas sim a partir do contexto da vida humana, isto é, a soma
de todos os seus instintos. De outro lado, rompendo com a
metafísica, defende a genealogia da moral e da justiça, ou seja,
propõe que estes valores possuem uma origem e uma história;
segundo ele, a moral e a justiça foram estabelecidas pelos nobres e
poderosos como manifestações da vontade de potência - conceito
criado por Nietzsche que traduz de maneira simplória a vontade do
homem de dominar a natureza, bem como seus pares -, de forma a
criar uma espécie de domesticação e estabilidade social no cenário
no qual estavam inseridos. Assim, para o pensamento de Nietzsche,
ser moral significa agir conforme quer e espera a sociedade atual, e
é justamente desta maneira que se mantém a estabilidade social.
Agindo de modo oposto ao esperado, há ofensa direta à conservação
da sociedade e, o indivíduo será considerado imoral. Em meio a este
conflito, a justiça irrompe com uma finalidade específica: o retorno à
imutabilidade social e a consequente manutenção dos valores
convencionados por aqueles homens que através da vontade de
potência “domesticaram” seus pares. Portanto, a justiça tem papel
fundamental, posto que aparece quando há conflitos sociais, ou seja,
quando alguém age de forma contrária ao convencionado pelos
nobres e poderosos. Esta conduta estranha aos padrões de
comportamento eleitos como “bons”, “morais” ou “justos” faz com
que, historicamente, a justiça mantenha a dominação de uns sobre

* UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná,


mayaralermen@hotmail.com
** Professor da UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Resumos simples 277

os outros. Contudo, este equilíbrio em sociedade somente é possível


através de um acordo de vontades daqueles que tem equivalência de
poderes. E é exatamente a partir desta premissa que se explica o
direito, pois Nietzsche propõe ser este o acordo que permitiu aos
nobres e poderosos a dominação dos seus subordinados através de
leis coercitivas, sanções, violência e imposição da força. Desta
forma, justiça e direito são conceitos complementares que exprimem
a ideia de dominação e domesticação do homem em razão da
vontade de potência.

PALAVRAS-CHAVE: Nietzsche. Direito. Justiça. Vontade de


Potência.

REFERÊNCIAS

ALVES, Luiz Filipe Araújo. Por uma Genealogia da Justiça


Trágica: O Direito e a Justiça na Idade Trágica dos Gregos a partir
do Perspectivismo de Friedrich Nietzsche. Belo Horizonte, 2012.
171p. Dissertação (Mestrado em Filosofia do Direito e Teoria Geral
do Direito) - Universidade Federal de Minas Gerais.

BENOIT, Blaise. A justiça como problema. Disponível em


<http://www.cadernosnietzsche.unifesp.br/home/item/58-a-
justi%C3%A7a-como-problema>. Acesso em 01 jul. 2016.

CAMARGO, Gustavo Arantes. Relações entre justiça e moral no


pensamento de Nietzsche. Estudos Nietzsche, Curitiba, v. 2, n. 1, p.
79-97, jan./jun. 2011.

FERNANDES, Rodrigo Rosas. Nietzsche e o Direito. São Paulo,


2005. 238p.Tese (Doutorado em Filosofia) - Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
278 A Ética em prática no ambiente escolar

= VIII =

KARL MARX: CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA, LUTA DE


CLASSES E A PERSPECTIVA DO COMUNISMO

Gerson Lucas Padilha de Lima*


Rosalvo Schutz**

Compreendemos que os três pilares que determinam a


arquitetura teórica marxiana são constituídos pela crítica da
economia política, a luta de classes e o horizonte comunista. Ao
fazer a crítica ao sistema das categorias da economia política
burguesa, sobretudo, Adam Smith e David Ricardo, Marx apreendeu
o ser fundamental do capitalismo: a teoria da mais-valia. Em síntese,
a mais-valia se caracteriza pelo tempo de trabalho excedente, não
remunerado pelo patrão ao empregado. Nesta perspectiva, cria-se a
contradição entre capital e trabalho, personificada na classe
burguesa e na classe trabalhadora, respectivamente. Isto é, entre
aqueles que possuem os meios de produção, contratam força de
trabalho, expropriam mais-valia e acumulam privadamente a riqueza
socialmente produzida; e aqueles que precisam vender sua força de
trabalho em troca de um salário para manter sua sobrevivência e
continuar reproduzindo a força de trabalho. A fim de superar tal
desigualdade, Marx propõe a possibilidade da instauração da
revolução comunista. Para esse processo se tornar factível é
necessária a passagem da classe trabalhadora de classe em si, para
classe para si. Ou seja, a determinação da classe não se constitui
apenas por sua posição em relação à reprodução do capital, mas,
igualmente, pela tomada de consciência sobre as contradições que
vivem no mundo da vida. Na luta revolucionária, o proletariado
necessita tomar o poder político pela força, destruir as formas
tradicionais de propriedade, desenvolver as forças produtivas,
eliminar a máquina estatal burguesa, a fim de instaurar a sociedade
comunista. Nesta nova forma de sociabilidade terá troca, mas não o
mercado; terá governo, mas não Estado, vai haver regras, mas não
leis. O modo de produção comunista será fundado pelo princípio

* UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná,


gersonlucas.padilha@gmail.com
** Professor da UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Resumos simples 279

concreto da igualdade em contraposição à sociedade capitalista


marcada pela desigualdade. Somente nela as diferenças individuais
poderão se manifestar e se desenvolver, ao passo que na sociedade
de classes, elas são abafadas e crescentemente padronizadas.
Nessa nova ordem societária o indivíduo vai poder desenvolver
plenamente suas riquezas materiais e espirituais, efetivando assim
sua humanidade. O homem rico não é aquele que tem, mas aquele
que é. Isto é, aquele indivíduo que carece da totalidade das
necessidades do gênero humano. O ser que tem possibilidades
concretas de subjetivar as objetivações sociais. Segundo Marx, o ser
genérico é o indivíduo que na sua particularidade traz a
universalidade do gênero humano.

PALAVRAS-CHAVE: Mais valia; Violência; Igualdade.

REFERÊNCIAS

MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858:


esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo,
2011.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução de


Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I.


Volume I. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. 3ª edição.
São Paulo: Nova Cultural, 1988.
280 A Ética em prática no ambiente escolar

= IX =

NOTAS SOBRE O PREFÁCIO DE O PRINCÍPIO ESPERANÇA


PRIMEIROS VESTÍGIOS DE UMA ÉTICA BLOCHIANA

Anna Maria Lorenzoni*

Em O Princípio Esperança, Ernst Bloch sugere que a


dinâmica social da história possui motivações que superam o mero
prazer da investigação ou insatisfação quanto ao presente; e indica
que a grande motivação para o ser humano fazer história encontra-
se, sobretudo, no fato de que ele se dirige para o Sumo Bem, isto é,
aquilo que “é digno de ser desejado”, o “único necessário”,
“orientando todas as utopias do homem”. Segundo o autor (PE, I, p.
282), o Sumo Bem anuncia “a humanidade socializada, aliada a uma
natureza mediada por ela, significa a reconstrução do mundo como
pátria ou lar [Heimat]”, e, no decorrer de sua obra, o Sumo Bem, ou
Heimat, aparece como sinônimo de “verdadeiro humanismo”,
“socialismo”, e “reino da liberdade”. Em contrapartida, quando trata
de ações humanas transformadoras da realidade (a relação dialética
teoria-práxis), Bloch alerta que a práxis é fundamentada pela teoria
(ou seja, pela meta almejada), ao mesmo tempo em que a teoria
adquire clareza quanto ao seu conteúdo durante o processo
transformador (a práxis), insinuando que, em última instância, o
Sumo Bem, ao qual as ações humanas tendem, não possui um
conteúdo necessário e, portanto, não haveria garantias de que a
humanidade poderá alcançar, de fato, sua Heimat. Essas duas
perspectivas blochianas, aparentemente contraditórias, de interpretar
o processo mundo, podem motivar duas posturas equivocadas a
respeito da filosofia do autor. A de que (I) existe, para Bloch, um ideal
metafísico que orienta as ações humanas independentemente das
determinações materiais; ou, pelo contrário, de que (II), no mundo, só
existe determinação material, de tal modo que é impossível, para o
ser humano, intervir na realidade tendo a certeza de que suas teorias
serão concretizadas. A falta de esclarecimento sobre como se dá, em
Ernst Bloch, a relação entre os ideais (metas almejadas) – sobretudo

* UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná,


annamlorenzoni@gmail.com
Resumos simples 281

o ideal de Sumo Bem – e o processo dinâmico do mundo –


especialmente sobre seu aspecto estritamente material e dialético –,
tem gerado, entre os comentadores do autor, interpretações
contrastantes sobre o significado ético dessa relação. Contudo,
mesmo que o autor não tenha escrito trabalhos específicos sobre o
tema, certamente há o consenso de que existe, de fato, uma ética
implícita na filosofia blochiana. Acreditamos que a análise detalhada
da obra O Princípio Esperança, ajudará a esclarecer os impasses
mencionados, evidenciando que as duas interpretações,
aparentemente divergentes, são conciliáveis e, acima de tudo,
compatíveis com compreensão material de mundo do autor. O
estudo do Prefácio da obra, por exemplo, já fornece pistas
pertinentes para o esclarecimento do significado da ética blochiana,
e, nesta comunicação, indicaremos pormenorizadamente alguns
desses elementos.

PALAVRAS-CHAVE: Heimat; Materialismo; Sumo Bem; Teoria-


práxis.

REFERÊNCIA

BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança [1959]. Volume I. Tradução


de Nélio Schneider. Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2006.
282 A Ética em prática no ambiente escolar

=X=

O PROBLEMA EPISTEMOLÓGICO:
COMO CONHECEMOS A MENTE SEGUNDO
PAUL CHURCHLAND

Robson Martins do Amaral*


Fabio Antônio da Silva**

O Presente trabalho busca apresentar o problema


epistemológico do ponto de vista da filosofia da mente, mais
especificamente, buscar-se-á evidenciar como o canadense Paul M.
Churchland nos oferece possíveis respostas para a questão: como
conhecemos a mente? Descrevendo, assim, uma das questões que
mais intriga o homem: a mente - esse nosso “computador neural” que
mede o mundo e propõe resolver os problemas do ser humano.
Desde que nascemos usamos a mente, ainda que não tenhamos
clareza de como as coisas acontecem nesse complexo aparelho.
Uma justificativa prática da busca pelo conhecimento da mente é o
de que isso pode nos ajudar a usá-la com mais eficiência e fazer com
que a mesma trabalhe melhor e em nosso benefício. Já do ponto de
vista teórico, essa busca se justifica pelo aparente mistério pelo qual
o funcionamento da mente humana (inteligente) tem se apresentado
desde os primórdios da história da filosofia. Para compreender
alguns aspectos que constituem a filosofia da mente de Paul M.
Churchland partirei da distinção entre as duas questões do problema
epistemológico apresentado por este: o problema das outras mentes
e o problema da autoconsciência. O primeiro problema, denominado
de o problema das outras mentes pode ser colocado nestes termos:
como sabemos se alguma outra coisa (além de nós mesmos) - um
extraterrestre, um robô aprimorado, um computador interativo ou até
mesmo outro ser humano - é efetivamente um ser que tem
consciência, que é pensante, que tem sensações e do qual a sua
ação não tem fundamento em outra coisa que não sejam estados
mentais verdadeiros? O problema das outras mentes, portanto, está
no fato de que só podemos ter experiência de nosso próprio caso

* UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná,


martins.1902@hotmail.com
** Professor da UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Resumos simples 283

individual e sobre as outras coisas só teremos inferências. Como dirá


Paul M. Charchland:

Da observação de uma manipulação complexa e apropriada do


meio ambiente, inferimos desejos, intenções e crenças. Da
observação dessas e outras coisas, e sobretudo da fala, inferimos a
inteligência consciente na criatura em questão. (CHURCHLAND,
1983, p. 116)

Já o segundo problema apresentado por Paul Churchland é a


autoconsciência: como um ser consciente tem ideia garantida e
imediata de suas particulares crenças, emoções, sensações, desejos
e tudo mais? Como isso é possível? E até que ponto isso é possível?
Se for possível, em que medida se pode confiar nessa ideia? Tendo
nosso autor definido a autoconsciência como “uma espécie de
apreensão contínua de uma realidade interior, a realidade dos
próprios estados e atividades mentais” (CHURCHLAND, 1983, p.
116). Nossa pesquisa é a tentativa de desvendar esse “mistério”,
tomando a autoconsciência como o campo de um fenômeno mais
geral. Levando em consideração os dois problemas que se
desdobram do Problema Epistemológico temos, como objetivo final,
apresentar sumariamente as distintas possíveis respostas
apresentadas pelo autor.

PALAVRAS-CHAVE: Problema Epistemológico; Mente; Paul M.


Churchland.

REFERÊNCIAS

CHURCHLAND, Paul. Matéria e Consciência. São Paulo: Unesp,


1998.

DEL NERO, Henrique. O Problema da Mente na Ciência Cognitiva.


Dissertação de mestrado para obtenção do título de mestre em
filosofia apresentada ao Departamento de Filosofia da FFLCH da
USP, 1992.

DEL NERO, Henrique. Do Behaviorismo às Redes Neurais. In:


ABRANTES, Paulo (org.) Epistemologia e Cognição. Editora UnB,
1993.
284 A Ética em prática no ambiente escolar

DEL NERO, Henrique. O Sítio da Mente: pensamento, emoção e


vontade no cérebro humano. São Paulo: Collegium Cognitio, 1997.

GARDNER, Howard. A Nova Ciência da Mente: uma história da


revolução cognitiva. São Paulo, Edusp, 1995.

TURING, Alan. Computação e Inteligência (1950). Traduzido e


republicado em TEIXEIRA, João (org.), Cérebros, Máquinas e
Consciência. Editora da UFSCar, 1997.

WEINBERG, Julius. Introduzione al positivismo logico. Torino:


Giulio Einaudi, 1950.
Resumos simples 285

= XI =

O SENTIDO ORIGINÁRIO DO HUMANISMO EM


MARTIN HEIDEGGER

Neusa Rudek Onate*


Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens**

Este trabalho tem por tema o sentido e a significação do


conceito de humanismo na carta de Martin Heidegger a Jean
Beaufret. Essa missiva, que ficou conhecida como a Carta sobre o
humanismo, surge de uma meditação acerca da significação mais
profunda do conceito de humanismo; nela o filósofo alemão
apresenta – de modo radical e decisivo – um questionamento acerca
do destino da era da ciência e da técnica. Isso porque Heidegger
compreende que o homem precisa ser reconduzido à sua essência
para reencontrar-se como homem na sua humanidade originária.
Para prosseguir em nossa exposição, precisaremos, antes, indicar
como se determina a essência do homem. De fato, todo o
humanismo pressupõe uma essência universal de homem que o
dignifique, seja pela atribuição da razão ou por uma transcendência
mística, no entanto, devem ser profundamente questionadas. Este
trabalho contemplará, na medida do possível, os termos da análise
do sentido do humanismo para Heidegger, bem como pretenderá
esclarecer o âmbito mais profundo de sua significação investigando o
conceito, entre outros, de ec-sistência. Essas questões estão
relacionadas a outras noções constitutivas do pensamento filosófico
de Heidegger e à investigação de como a questão do humanismo
estabelece um diálogo com a fenomenologia existencial do filósofo.
As seguintes questões orientarão o percurso da presente
comunicação: Qual a significação mais radical do conceito de
humanismo na filosofia do Heidegger tardio? Em que contexto faz
sentido ainda indagar, com Heidegger, sobre o conceito de
humanismo? Dito isso, acrescentamos que o objetivo desse trabalho
consiste em determinar o sentido de humanismo para uma
compreensão mais originária de sua significação, abandonando uma

* Mestranda em Filosofia, UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná,


neusarudek.onate@hotmail.com
** Professor da UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
286 A Ética em prática no ambiente escolar

compreensão tradicional de humanismo que remonta a um sentido


ôntico da experiência humana. A partir da pergunta sobre a
possibilidade de um sentido à palavra humanismo, feita pelo filósofo
francês, Heidegger elabora uma crítica a toda concepção metafísica
de homem. O ponto de partida desta investigação baseou-se na
problemática advinda da metafísica e a concepção de um
subjetivismo moderno para justificar o humanismo. Tendo em vista a
busca pela diferenciação, definição e atribuição de certa dignidade
ao homem dentre as demais criaturas, a razão animal e a razão do
ser vivo (seja como faculdade dos princípios ou como faculdade das
categorias) resta-nos questionar: a essência do homem como tal,
verdadeiramente se funda na dimensão da animalitas? Até que ponto
existe coerência em prosseguir neste caminho rumo à essência do
homem quando o distinguimos enquanto homem e como ser vivo,
das plantas, dos animais e de Deus? Com isto (avaliação possível de
se fazer a partir de Heidegger), minimiza-se a essência do homem e
não se pensa na sua origem essencial.

PALAVRAS-CHAVE: Humanismo; Metafísica; Ec-sistência;


Martin Heidegger;

REFERÊNCIAS

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. 15. ed. Tradução de


Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.

_______. Ser e Tempo. Parte II. 13. ed. Tradução de Márcia Sá


Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.

_______. Seminarios de Zollikon. Tradução de Ángel Xolocotzi


Yáñes. México: Herder, 2013.

_______. Carta Sobre o Humanismo. Tradução de Ernildo Stein.


São Paulo: Abril Cultural, 1979.

_______. Meu caminho para a fenomenologia. Tradução de


Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

_______. Carta de Heidegger a Husserl. In: Cahier de L’Herne:


Heidegger. pp. 66-69. Sitio creado y actualizado por Horacio Potel.
Resumos simples 287

BEAUFRET, Jean. Al encuentro de Heidegger. Tradução de Juan


Luis Delmont. Venezuela: Monte Avila Latinamericana, 1987.

BLANC, Mafalda de Faria. Estudos sobre o ser II. Lisboa: Calouste


Gulbenkian, 2001.

CARR, David. The question of the subject: Heidegger and the


transcendental tradition. Human Studies 17: 403-418,
KluwerAcademic. Department of Philosophy, Emory University,
Atlanta: Netherlands, 1995.

COUSINEAU, Robert H. Heidegger, humanism and ethics: an


introduction to the letter on humanism. Louvain: Nauwelaerts, 1972.

DREYFUS, Hubert L.; WRATHALL, Mark A. A Companion to


Heidegger. Austrália: Blackwell. 2005.

DUQUE, Félix. Contra el Humanismo. Madrid: Abada, 2003.

_______. En torno al humanismo: Heidegger, Gadamer, Sloterdijk.


Madrid: Tecnos, 2006.

GIACOIA, Oswaldo. Heidegger urgente: introdução a um novo


pensar. São Paulo: Três Estrelas, 2013.

INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Tradução de Luísa


Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

KAHLMEYER-MERTENS, Roberto Saraiva. 10 Lições sobre


Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2015.

KELLER, Pierre. Husserl and Heidegger on Human Experience. The


Philosophical Review, Vol. 113, No. 3 (July 2004) Cambridge:
Cambridge University Press, 1999. Pp. v, 261.

KRELL, David Farrel. Martin Heidegger Basic writings: from Being


and Time (1927) to The Task of Thinking (1964). New York: Harper
San Francisco,1993.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar. Petrópolis,


Vozes, 1977.
288 A Ética em prática no ambiente escolar

LUYPEN, W. La fenomenologia es un humanismo. Tradução de


Pedro Martin y de la Cámara. Buenos Aires: Carlos Lohlé, 1967.

ONATE, Alberto Marcos. O lugar do transcendental. Rev. Filos., v.


19, n. 24, p. 131-145, jan./jun. 2007.

POLT, Richard. Heidegger an introduction. New York: Cornell


University Press. 1999.

RABINABACH, Anson. Heidegger's Letter on Humanism as Text and


Event. New German Critique, No. 62 (Spring - Summer, 1994), pp.
3-38 Published by: New German Critique Stable URL:
http://www.jstor.org/stable/488507 . Accessed: 01/09/2011 19:00.

RICHARDSON, William J. Heidegger: Through Phenomenology to


Thought. New York: Fordham University Press, 2003.

SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo. 3ª ed.


Tradução de João Batista Kreuch. Petrópolis: Vozes, 2014.

SLOTERDIJK, Peter. Reglas para el Parque Humano: Una


respuesta a la “Carta sobre el Humanismo de Heidegger”. Tradução
de Teresa Rocha Barco, Madrid: Siruela, 2000.

SOFFER, Gail. Heidegger, Humanism, and the Destruction of History.


The Review of Metaphysics, Vol. 49, No. 3 (Mar., 1996), pp. 547-
576 Published by: Philosophy Education Society Inc. Stable URL:
http://www.jstor.org/stable/20129896 . Accessed: 01/09/2011 19:05.

VATTIMO, Gianni. El fin de la modernidad. Tradução de Alberto L.


Bixio. Espanha: Gedisa, 1986.
Resumos simples 289

= XII =

PAUL RICOUER:
A QUESTÃO DO SUJEITO E A VISÃO DA PSICANÁLISE

Marcelo Barbosa*
Rosalvo Schütz**

Para Paul Ricoeur jamais houve uma filosofia do sujeito, os


pensamentos que surgiram foram estilos reflexivos sobre o sujeito; e
que o maior deles foi o cogito cartesiano, mas que de maneira
nenhuma é ele imutável. E que, além do cogito de Descartes, temos
o cogito socrático, agostiniano e kantiano; e cada um deles
reinterpreta o precedente. O cogito, portanto, é um momento de
pensamento. Essa filosofia reflexiva do sujeito deve se aliar aos seus
contestadores e não trabalhar de forma isolada, desse modo a
psicanálise e o estruturalismo ocupam o lugar de contestadores da
filosofia do sujeito, pois também usam o signo para a reflexão do
sujeito sobre si próprio; e esse é o desafio da semiologia: fazer a
reflexão dos diferentes saberes sobre o que elas têm em comum.
Neste texto, abordaremos a contestação psicanalítica sobre a
questão do sujeito. Ocupando-se do capítulo 3 do livro
HERMENÊUTICA E PSICANÁLISE NA OBRA DE PAUL RICOUER
de Sérgio de Gouvêa Franco, onde este se preocupa com a leitura
que Ricoeur faz sobre Freud em Analítica: leitura de Freud. A
contestação psicanalítica parte da negação do cogito cartesiano
(penso, logo existo). Freud constitui um campo de sistemas
inconsciente, pré-consciente e consciente. Que são redigidos por leis
e se relacionam mutuamente. Portanto, a partir de Freud o sujeito
não será portador somente de uma consciência, mas de um sistema
formado pela relação, que não será totalmente acessível por ele.
Tornando-se assim uma antifenomenologia, pois, a inteligibilidade
dos sentidos será inacessível à consciência, havendo uma barra de
recalque separando a consciência. Sendo que para a psicanálise não
tem um único sujeito, mas um inconsciente, pré-consciente e
consciente e, aqui, a consciência é somente mais uma parte de um

* UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Toledo,


barbosa_mondai@hotmail.com
** Professor da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
290 A Ética em prática no ambiente escolar

sistema que regula nosso acesso à realidade não servindo como


parâmetro de análise. Na análise psicanalítica de Freud o sujeito é
formado pelo complexo de Édipo, onde seu objetivo é um ideal de
sexualização; e, após essa passagem, o sujeito deixa o objetivo
libidinal e passa para um objetivo socialmente aceitável. O que se
percebe é que esses objetivos sexuais estão guardados no
inconsciente que são inacessíveis pela consciência. Portanto, o
sujeito da forma como a psicanálise entende, é um sujeito já
pulsionado a algo, não sendo o que realmente é, mas, formado pelo
ego. Ele é mediatizado pela totalidade do mundo dos signos e
através da interpretação desses signos, para se saber sobre o sujeito
se busca uma análise regressiva.

PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise; Hermenêutica; Ricoeur.

REFERÊNCIAS

FRANCO, SÉRGIO DE GOUVÊA. Hermenêutica e psicanálise na


obra de Paul Ricoeur. São Paulo: Loyola, 1995. (Coleção Filosofia;
35).

FREUD, SIGMUND. Obras psicológicas completas de Sigmund


Freud: edição standard brasileira/Sigmund Freud; comentários e
notas de James Strachey e Alan Tyson; trad. Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
= XIII =

MONTAIGNE:
ENTRE A FÉ, A RAZÃO E O COSTUME

Charles Eriberto Wengrat Pichler*


Gilmar Henrique da Conceição**

A Apologia de Raymond Sebond (II, 12) é um dos principais


ensaios de Montaigne. Neste, o autor ataca, de diversos modos, a
razão, ou a pretensão humana em conhecer por meio desta. Dizendo
a vaidade do homem, que não é sequer superior aos animais, e
também atacando a ciência, nociva à felicidade do homem e vã, na
medida em que descumpre sua pretensão de estabelecer um
conhecimento seguro, Montaigne irá, sobretudo, destituir qualquer
valor à razão no que concerne a busca pela verdade.
O ponto de partida da Apologia é justamente a “apologia” feita
a Raymond Sebond, que assume um sentido ambíguo. Sebond é
autor da Theologia naturalis. A pedido de seu pai, Montaigne a traduz
do latim para o francês. Nesta obra, o teólogo busca provar todos os
artigos de fé unicamente por meio da razão. Montaigne fará uma
apologia a partir das duas principais objeções feitas ao teólogo na
época. Em relação à primeira objeção, de que a razão por si só não
pode demonstrar as verdades da religião, Montaigne não tira todo
seu mérito – até mesmo por conta disso a apologia possui um caráter
ambíguo. A razão não pode, de fato, demonstrar a verdade de coisa
alguma, mas pode, no entanto, servir de mecanismo; ou seja, o
cristão deve, da melhor forma possível, fortalecer suas crenças com
a razão. A posição de Montaigne sugere um determinado
individualismo, por assim dizer. A revelação divina, claro está, se
trata de um acontecimento subjetivo. A razão possuirá algum valor
apenas neste âmbito restrito, longe do valor universal que possui a
verdade filosófica ou científica, que parece estar de acordo com a
intenção do livro de Sebond. Acerca da segunda objeção, de que os
argumentos de Sebond não são suficientes, Montaigne a
desqualificará por inteiro. Ora, se os objetores partem da premissa

* Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE;


wep.charles@yahoo.com.br
** Professor da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
292 A Ética em prática no ambiente escolar

de que o adversário possui argumentos fracos, estes não terão nada


melhor para contrapô-los, dado que a razão é fraca e incapaz de
fundamentar qualquer coisa.
A fé é apenas fé, mas se pretender o estatuto de certeza
epistemológica é problemática. Com este escopo (e só com este
escopo), a primazia à fé parece ser um traço característico da
“defesa” de Montaigne a Sebond, realizada na Apologia (II, 12); em
alguns momentos, a figura de Deus assume um papel destacado.
Essa atitude do filósofo pode ser vista sob mais de um ângulo. Por
um lado, pode se tratar de uma questão política, já que em mais de
uma passagem Montaigne atenta para o perigo da mudança neste
âmbito. Fazer essa apologia à fé seria um modo de afirmar a cultura
vigente. O costume, deste modo, uma vez que parece ser tudo o que
resta da relação do homem com o mundo, assume um estatuto
importante na concepção filosófica do ensaísta. Analisando outro
ângulo, podemos dizer que a abordagem do filósofo sofre influência
por suas raízes religiosas que, de fato, existiam. No entanto, o
próprio elogio de Montaigne ao paganismo parece contrapor essa
hipótese. Por último, podemos pensar que a fé, e mesmo a figura de
Deus, é usada como um mecanismo para rebaixar a razão, que nada
pode; a razão não escapa da abrangência do costume. Embora
possamos ver a atitude de Montaigne por estes três ângulos, e, em
alguma medida, talvez os três possuam certo grau de coerência,
parece-nos claro que a crítica da razão é a intenção principal do
autor. Admitindo isso, concomitantemente admitimos que a primazia
dada à fé, bem como o uso da figura de Deus, faz parte da
desconstrução pirrônica da razão que realiza o filósofo.

PALAVRAS-CHAVE: Ceticismo; Costume; Fé; Pirronismo; Razão.

REFERÊNCIAS

BIRCHAL, Telma. O eu nos Ensaios de Montaigne. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2007.

CARDOSO, Sérgio. Villey e Starobinski: duas interpretações


exemplares sobre a gênese dos Ensaios. Kriterion, Belo Horizonte, v.
33, n. 86, p. 9-28, 1992a.

CONCEIÇÃO, Gilmar Henrique da. Montaigne e a Política.


Cascavel: EDUNIOESTE, 2014.
Resumos simples 293

_____. Montaigne e a Lei: Sobre o do costume e de não mudar


facilmente uma lei aceita (I, 23) (e Da Experiência (III, 13). Quaestio
Iuris, v. 08, n. 02. Rio de Janeiro, 2015. 898-919.

EVA, Luiz. A figura do Filósofo: ceticismo e subjetividade em


Montaigne. São Paulo: Loyola, 2007.

HARTLE, Ann. Montaigne and skepticism. The Cambridge


Companion to Montaigne. New York: Cambridge University Press,
2005.

LANSON, Gustave. Les Essais de Montaigne: étude et analyse.


Paris: Mellottée, 1965.

MARCONDES, Danilo. A felicidade do discurso cético: o problema


da auto-refutação do ceticismo. p. 133.
www.oquenosfazpensar.com/adm/.../a.../n8danilo.pdf

MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios. Tradução de Rosemary


Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Paidéia).

_____. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. 2. ed. São Paulo: Abril,


1980.

PLATÃO. Teeteto - Crátilo. Tradução Carlos Alberto Nunes. Belém:


EDUFPA, 2001.

POPKIN, Richard. História do ceticismo de Erasmo a Spinoza.


Trad. Danilo Marcondes de Souza Filho. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 2000.

PORCHAT, Oswald. Vida comum e ceticismo. São Paulo:


Brasiliense, 1994

_____. Sobre o que aparece. In: Revista Sképsis, ano I, n° 1, 2007,


p. 17.

REALE, Giovanni. Estoicismo, ceticismo e ecletismo. São Paulo:


Edições Loyola, 2011.
294 A Ética em prática no ambiente escolar

SEXTO EMPÍRICO. Outlines of Pyrrhonism. Tradução para o


inglês de R. G. Bury. Cambridge, Massachusetts, London: Harvard
University Press, 2000.

_____. Against the logicians. Tradução R. G. Bury. Cambridge,


Massachusetts, London: Harvard University Press, 2000.

_____. Against the physicists e Against the ethicist. Tradução R.


G. Bury. Cambridge, Massachusetts, London: Harvard University
Press, 2000.

_____. Contra os retóricos. São Paulo: Editora Unesp, 2013.

_____. Hipotiposes pirrônicas. Tradução de Danilo Marcondes. In:


Revista O que nos faz pensar, n° 12, set/1997, p. 115-122.

SMITH, Plínio Junqueira. Ceticismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar


Ed., 2004.
QUINTA PARTE:

OFICINAS DIDÁTICAS
296 A Ética em prática no ambiente escolar
Oficinas didáticas... 297

=I=

O INÍCIO DA FILOSOFIA:
O CONCEITO DE PHÝSIS E FILÓSOFOS DA NATUREZA

Francielle Festner*
Natália Aparecida Pacheco Ferro**
Thaylan Corassa***

Na Grécia antiga, a filosofia surge através de Tales de Mileto,


pois ao buscar algo que fosse comum a todas as coisas ele o faz de
maneira racional. Ao designar a água como arché, isto é, princípio
comum a todas as coisas, diferencia-se de todos os que o
antecederam nessa busca, pelo simples fato de que antes dele todas
as coisas eram explicadas com base na religião e nos mitos. Este é o
início da Filosofia da natureza e dos chamados filósofos naturalistas
ou pré-socráticos. A filosofia grega, em seu primeiro período,
denominado pré-socrático ou cosmológico, ocupou-se
fundamentalmente com a origem do mundo e das causas das
transformações da natureza. A cosmologia afirma que toda geração
tem um princípio natural, ou seja, tudo é criado a partir de algo, ou
seja, de onde tudo vêm, tudo retorna. Esse princípio é chamado de
phýsis, que seria a causa natural contínua e imperecível da
existência de todos os seres e suas transformações. O conceito
phýsis fundamenta todo o pensamento pré-socrático. Tal palavra não
pode ser traduzida, sem mais, pela palavra natureza por se tratar de
um conceito que designa a essência do aparecer das coisas, a
totalidade do que aparece ou o último desdobramento, já sem quase
avistar o sentido inicial que representa a constituição interna
(ontológica) de um ente ou região de entes.

Etimologicamente, phýsis é um abstrato formado pelo sufixo sis e


pela raiz verbal phy: na voz ativa: phúien, na voz média: phúesthai.
Patzer analisa a palavra em função de Homero, e constata que
estas duas formas verbais são aplicadas preferencialmente ao
mundo vegetal. (BORNHEIM, 1998)

* UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná.


** UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
*** UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná,
thay.corassa@hotmail.com
298 A Ética em prática no ambiente escolar

Por estas indicações, percebe-se a densidade filosófica que


acompanha a palavra phýsis, sendo dela que depende a
compreensão que se pode ter do pensamento pré-socrático. A
phýsis não pode ser conhecida pelos sentidos, somente pelo
pensamento. Os pré-socráticos tinham cada qual o seu significado
para phýsis. Para Tales, a phýsis era a água ou o úmido, pois esta
podia se alterar em várias outras formas, dando origem, por
condensação, à terra, por rarefação, ao ar e ao fogo; Anaximandro
considerava que era o ilimitado, sem qualidades definidas, pois, só
poderia ser mesmo o infinito, o que não tem limites, nem externos,
nem internos; Anaxímenes, que era o ar ou o frio, uma vez que
exatamente como a nossa alma, ou seja, o princípio que dá a vida, é
o ar, porque se sustenta, governa-se e abarca o cosmo inteiro;
Pitágoras julgava que eram os números, pois eram entendidos como
estrutura e relação proporcional entre os elementos que compõem
as coisas, é a unidade que compõe a multiplicidade; Heráclito
afirmou que era o fogo o princípio da natureza; Empédocles, que
eram as quatro raízes (úmido, seco, quente e frio). Anaxágoras, que
eram sementes que contém os elementos de todas as coisas;
Leucipo e Demócrito disseram que eram os átomos. A filosofia surge
de variadas formas, porém a fonte principal é a filosofia da natureza,
a qual fundamenta-se nos elementos naturais. O que antecede a
filosofia da natureza, não se fundamenta na realidade, no que é
sensível, isto é, a religião e os mitos. O que se pretende com a
proposta desta oficina é que os participantes tomem conhecimento
sobre os elementos que fundamentam o início da filosofia,
compreendendo o conceito que norteia todo pensamento filosófico
desde o início até os dias de hoje. Tal conceito grego é a phýsis. O
problema que será apresentado é de suma importância para se
iniciar o estudo e compreensão da filosofia, porque se trata do início
do pensamento filosófico, o que fundamenta toda a história da
filosofia desde o pensamento grego da filosofia antiga até a filosofia
contemporânea. A abordagem metodológica tende a organizar, de
forma breve e dinâmica, a temática proposta, recorrendo ao
pensamento de Gerd A. Bornheim, tomando como base o
pensamento de alguns filósofos pré-socráticos.

PALAVRAS-CHAVE: Filósofos da natureza; Início da Filosofia;


Phýsis.
Oficinas didáticas... 299

REFERÊNCIAS

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofando: introdução à filosofia.


5. Ed. São Paulo: Moderna, 2013.

BORNHEIM, Gerd A. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo:


Cultrix, 1998.
300 A Ética em prática no ambiente escolar

= II =

ENTRE O CORPO E A ALMA

Eli Schmidtke*
Josué do Nascimento**
Patrícia Joca Martins***
Nelsi Kistemacher Welter****

Esta oficina pretende explanar alguns conceitos centrais da


obra Conversas, de Maurice Merleau-Ponty, situada na Antologia de
Textos Filosóficos. Para alcançarmos este objetivo será utilizada
dinâmicas, trecho do filme “Avatar” e, posteriormente, será realizada
uma investigação sobre os excertos da obra de Merleau-Ponty.
Merleau-Ponty nasceu em 1908, vivenciou duas grandes guerras e
observou de perto a inteligência, o método e a técnica utilizados nas
guerras. Para ele o indivíduo é dualístico, o interno que são as
sensações, sentimentos e todo o eu interior e o externo, que é o que
valoriza a ciência, é o que eu posso produzir, são as minhas
capacidades físicas e minhas demandas.
Para ele o indivíduo é a junção do interno e do externo, o
indivíduo é uno. Não pode ser separado em partes, exceto para
estudos, portanto, o indivíduo age no mundo com a sua capacidade
total e também é afetado pelo mundo em todo o seu ser, e em todo o
seu ente. A completude do ser afeta o mundo e é afetada pelo
mesmo.
Para Merleau-Ponty o homem é constituído e também
constitui, não é possível separar o homem em partes nem tampouco
do mundo e, menos ainda, separá-lo de suas obras ou afazeres. O
homem é parte constitutiva do seu ser e também do mundo. Com
isso o homem se mistura, entrelaça-se com os outros, numa teia de
relações que o autor denomina “carne universal”, com o mundo
através de suas ações e também consigo mesmo, quando ele é
forjado pelo total de suas experiências vividas. Essas experiências
vividas transformam o mundo e o próprio homem, não somente o seu

* UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná;


elischmidtke2000@yahoo.com.br
** UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
*** UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
**** Professora da UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Oficinas didáticas... 301

exterior, corpo e bens adquiridos, mas também o seu interior, onde


são guardadas e avaliadas as experiências adquiridas a cada
instante. Por isso, dificilmente encontraremos o homem de hoje
amanhã, porque o homem de hoje foi suplantado pelo seu sucessor,
o homem de amanhã.
Merleau-Ponty, diferente de outros filósofos, não acredita no
fundamento implantado ao longo do tempo, de que o intelecto é
superior a extensão corpórea de que a razão está acima do sensível
no homem. Muito pelo contrário, para ele tanto o racional quanto o
sensível estão igualados dentro da nossa humanidade.
Para Merleau-Ponty, o homem é a conjunção de espírito e
corpo, não sendo dualista, mas sim uno, sem a distinção de res-
cogita e res-extensa, como o pensamento cartesiano nos traz
durante toda a modernidade. Logo, é improvável separar as duas
“substâncias”, assim como é inadequado separar o homem da
natureza, pois o homem faz parte dela, não sendo algo superior,
nem inferior.

PALAVRAS-CHAVE: Corpo. Espirito. Espaço. Homem. Mundo.

REFERÊNCIAS

SILVA, Claudinei Aparecido Freitas. Manipular ou habitar? Merleau-


Ponty e o paradoxo da ciência. Unisinos, 2013.

MARÇAL, Jairo. Antologia de textos filosóficos. Curitiba: SEED,


2009.

PONTY, Maurice Merleau. Conversas-1948. Trad. Fábio Landa. São


Paulo: Martins Fontes, 2004.
302 A Ética em prática no ambiente escolar

= III =

SARTRE: A CULPA NÃO É DAS ESTRELAS

Josiane Santos da Silva*


Daniel Du Sagrado Barreto da Luz
Gabriel Arienti Barbieri
Kathiuska Lopes Medeiros
Lincoln Arthur Radons de Carvalho
Suzana Talita Tietz
Thaís Cristina da Silva
Marcia C. R. da S. da Conceição

A Oficina Didática de Filosofia será aplicada pelo PIBID-


Filosofia/Unioeste do Colégio Estadual Jardim Europa (CEJE),
Toledo-PR. O objetivo da oficina é o de oferecer aos participantes
uma forma diferente de compreender conceitos filosóficos, a partir de
fatos reais da vida cotidiana. A atividade foi pensada, por isso
mesmo, com o intuito de fugir dos parâmetros formais das salas de
aula. Nesse sentido, terá como ponto de partida a obra do filósofo
Jean-Paul Sartre (1905 -1980), especificamente, os excertos da obra:
O Existencialismo é um Humanismo (1952), encontrados na
Antologia de Textos Filosóficos que, por sua vez, trata de uma
objeção que Sartre faz para defender o existencialismo de uma série
de críticas. Para Sartre, a filosofia da existência é uma filosofia
fundamentada na ação do sujeito. O sujeito torna-se responsável por
aquilo que ele é. “O homem é de início um projeto que vive
subjetivamente [...]. Será aquilo que ele tiver projetado ser. Não o
que ele quiser ser” (2009, p. 620). Logo, seguindo esta perspectiva
do existencialismo, doutrina que segundo Sartre torna a vida humana
possível, a oficina aborda alguns dos principais conceitos sartrianos
contidos na obra: liberdade, escolha e má-fé. Estes termos serão
tratados sob a ótica das seguintes indagações: o que significa dizer
que a existência do homem precede sua essência? Podemos não
fazer escolhas em nossa vida? O homem pode privar-se de sua
liberdade? Como podemos julgar que um homem é de má-fé? Toda
a oficina será permeada pela sensibilização, trazendo problemáticas

* UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná; josiane-


77@hotmail.com
Oficinas didáticas... 303

pertinentes, sendo que, através das mesmas, tentar-se-á entender a


filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre, presente na obra: O
Existencialismo é um Humanismo.

PALAVRAS-CHAVE: Liberdade; Escolha; Má-fé.

REFERÊNCIA

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. In:


MARÇAL, Jairo (Org.). Antologia de textos filosóficos. SEED-PR:
Curitiba, 2009, p. 616-639.
304 A Ética em prática no ambiente escolar

= IV =

KANT E O ESCLARECIMENTO:
A CÔMODA MENORIDADE

Ariella Kant Lavarda*


Bárbara Bertoldo de Moraes
Bruno Eduardo Polli da Silva
Jackison Roberto dos Santos Pinheiro Junior
Pamela Antkiewicz Da Rosa Corrêa Elger
Sabrina Andrade Barbosa
Tiago Chioquetta Nogueira

“Esclarecimento é a saída do homem da menoridade pela


qual é o próprio culpado” por ser um estado cômodo, mais fácil para
que se possa seguir vivendo. Esclarecer-se dá trabalho, leva tempo e
não é simples, mas não é impossível, é necessário saber fazer uso
crítico de suas próprias faculdades, utilizar o raciocínio de forma a
abandonar o comodismo, deixando a menoridade em direção à
maioridade, para que se possa fazer uso público dessa razão, de
forma que uma onda de esclarecimento atinja as pessoas ao redor e
possam construir, assim, um estado melhor. A oficina tem o intuito de
apresentar, de forma lúdica, como os conceitos de Menoridade,
Maioridade, Esclarecimento, Tutor Déspota, propostos pelo filósofo
Immanuel Kant (1724-1804), estão presentes nos momentos mais
cotidianos da vida, por exemplo, na sala de aula, que concebemos
hoje como um espaço de uso público da razão para um
esclarecimento de indivíduos que estão aprendendo no dia-a-dia seu
papel no mundo e na sociedade. De acordo com Kant, é necessário
deixar o comodismo de lado e utilizar a razão, para perceber sua
condição e manter o esclarecimento sempre, pois existem momentos
de comodidade que se voltam à menoridade. Portanto, o uso crítico
da razão não só nos mostra os detalhes das “menoridades” ao redor,
mas também nossa própria menoridade, colocando em crivo nosso
próprio papel e a maneira como ajudamos os menos esclarecidos ao
nosso redor.

PALAVRAS-CHAVE: Immanuel Kant; Menoridade; Esclarecimento.

* UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, PIBID/CAPES.


Oficinas didáticas... 305

REFERÊNCIAS

KANT, Immanuel. Resposta à questão: O que é esclarecimento? In:


MARÇAL, Jairo (Org.). Antologia de Textos Filosóficos. Curitiba:
SEED – PR, 2009, p. 406.

BRECHT, Berthold. O Analfabeto Político. Disponível em


<http://www.planetaeducacao.com.br/portal/artigo.asp?artigo=493>
Acesso em: 28/06/2016.
306 A Ética em prática no ambiente escolar

=V=

IMPULSO À VERDADE:
SOBRE A VERDADE E A MENTIRA NO SENTIDO EXTRA MORAL

Anderson Lucas dos Santos Pereira*


Gilmar Alves dos Santos
Michel Kleber Hilbig

Os conceitos verdade e mentira sempre foram dados como


conceitos caros à condição humana intelectual. A necessidade de
categorizar o mundo sempre caminhou de mãos dadas com o
homem, pois o mesmo tem consigo a capacidade do “logos”, do
contato simbólico com o mundo exterior, trazendo consigo a
convencionalização de juízos que ganharam a partir dos tempos,
caráter absoluto, estagnando e petrificando os mesmos, sendo
levados por tal “espírito de rebanho” a certezas últimas e fulcrais,
constituído o sustentáculo de toda civilização humana. Nietzsche, ao
problematizar tal “verdade clássica”, expõe a linguagem como mero
“escamoteamento” do sentido não conhecido, diferenciando o
conceito dado (que parte de meros impulsos humanos), a verdades
irrevogáveis, retirando o teor “apriorístico” do conceito proposto,
tratando o mesmo apenas como uma metáfora antropomórfica
cedida ao mundo. Tal teoria nietzschiana, com isso, colide contra a
noção de Verdade metafísica que sempre foi posta ao mundo como
indubitável, eterna e sólida pela tradição filosófica, envolvendo uma
mais nova ótica sobre tais questões epistemológicas, retirando o teor
ideal fundamentalista com que o iluminismo, principalmente,
envolveu o mundo. Para Nietzsche, tais teorias que fundamentam o
mundo a partir de grandiosos métodos laborativos são movidos pelo
pathos da verdade, concebendo assim a razão como o órganon que
induzirá o homem à verdade última, construindo sua verdade
dissimulada, forjada, tentando sempre lançar tal véu intelectivo como
uma forma de preencher o fundo trágico que é a existência. O pathos
com isso leva o homem à sua pretensão arrogante do significado
último, levando meramente o filósofo possuidor de tal plenitude ao
engodo, a armadilha criada por si mesmo, a um “engano racional”.
Tal véu intelectivo seria o “mundo antropomorfizado”, um mundo no

* UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, lukas_andi@hotmail.com


Oficinas didáticas... 307

qual não podemos prescindir de nenhum instante, pois o levamos


sempre nas nossas costas de uma forma demasiada humana,
lançando o homem a “metáforas desordenadamente e deslocando os
limites da abstração a tal ponto, que pode designar o rio como o
caminho que leva o homem aonde ele geralmente vai” (NIETZSCHE,
2007, p. 18), mas fugindo concomitantemente de sua pretensão
primeira, qual seja a busca incessante pelo fundamento do todo, pela
arché da physis, pela substância que sustenta toda a sensibilidade,
pela forma presente na matéria.

PALAVRAS-CHAVE: Nietzsche, Verdade, Mentira, Moralidade,


Antropoformismo, Metonímia, Metáforas.

REFERÊNCIA

NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a Verdade e a Mentira no Sentido


Extra-moral. Pinheiros, SP: Hedra, 2007.
308 A Ética em prática no ambiente escolar

= VI =

A SUPERESTIMAÇÃO DO PRAZER E A DEPRECIAÇÃO DA DOR:


O PROBLEMA DA EUTANÁSIA EM PETER SINGER

Leonardo Ribeiro de Souza Castro*


Livio Paulo Michelson Junior**
Matheus Gabriel de Oliveira***

A oficina aqui enunciada discorrerá acerca do pensamento do


filósofo australiano Peter Singer a respeito da eutanásia; umas da
temáticas desenvolvidas pelo pensador em sua obra Ética prática
(2002), ao problematizar o valor da vida da pessoa. A abordagem do
referido tema, mesmo que não exposto com tal termo, vem sendo
feita desde antigos povos como os celtas, passando pelos gregos,
avançando pelos medievais e atingindo seu ápice no século
passado. No entanto, a discussão é hodierna e não se encerra, isto
porque está permeada de prós e contras que, por vezes, são
contraditórios e insatisfatórios, tornando-a um dilema. A tônica da
eutanásia envolve duas grandes áreas de estudo, a ética e a
medicina; a esta área de estudo multidisciplinar, chamamos de
Bioética. O autor no qual será fundamentada nossa reflexão, já
indicado acima, tratará a questão do ponto de vista utilitarista,
mesmo que esta não seja declarada por ele. No entanto, sua leitura,
a partir desta ótica, faz-se possível pelas próprias posições do
supracitado. Podemos compreender o utilitarismo, de forma
reducionista, tendo como suporte a sua teoria central: a minimização
da dor e a maximização do prazer. A partir desta via, temos como
objetivo apresentar a problemática que envolve a eutanásia, com o
intuito de provocar nos participantes a reflexão da mesma,
considerando o conceito pessoa – proposto pelo autor − e as
implicações para um bem viver.

PALAVRAS-CHAVE: Bioética; Eutanásia; Bem viver; Peter Singer;

*
Acadêmico do segundo ano do curso de Filosofia / UNIOESTE – Universidade
Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: leonardo_r_sc@hotmail.com
**
Acadêmico do quarto ano do curso de Filosofia / UNIOESTE – Universidade
Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: liviopaulo2011@hotmail.com
***
Acadêmico do segundo ano do curso de Filosofia / UNIOESTE – Universidade
Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: matheusgabrieloliveira@hotmail.com
Oficinas didáticas... 309

REFERÊNCIAS

SINGER, Peter. Ética prática. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes,


2002.

CHAVEDAR DE SOUZA ARAÚJO, Martha. Direto à Vida em Peter


Singer e a tradição utilitária. 2008. Mestrado – Universidade
Estadual do Ceará, Fortaleza – Ceará.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República


Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico,
1988.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, 1940. Código Penal Brasileiro.


Artigo 121, parágrafos 3º e 4º. Artigo 121, parágrafo 1º.

NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Em Defesa da Vida: Aborto, Eutanásia,


Pena de Morte, Suicídio, Violência/Linchamento. São Paulo: Saraiva,
1995.
310 A Ética em prática no ambiente escolar

= VII =

FILOSOFIA DA CIÊNCIA:
A EXPLICAÇÃO DO UNIVERSO

Diego Caneppele de Souza*


Cleiton Aparecido da Silveira
Robson Martins do Amaral
Pâmela Antkiewicz da Rosa Corrêa Elger

É impreciso dizer desde quando o ser humano começou a


tentar explicar a estrutura, constituição e evolução do Universo.
Algumas das primeiras tentativas não míticas de que temos registro
encontram-se há mais de 2,5 mil anos na sociedade grega. Filósofos
pré e pós-socráticos esboçaram suas visões de mundo de forma
justificada, lançando mão, muitas vezes, de explicações racionais
para os fenômenos observados na natureza. Ao longo do tempo,
com o esforço de muitos pensadores, pesquisadores e observadores,
nossa cosmovisão foi mudando e chegamos, hoje, a uma concepção
de um universo evolutivo e em expansão, iniciado em um evento
cataclísmico, que conhecemos por Big Bang. No mundo grego, o
conhecimento ainda não era segmentado, como hoje; e algumas das
disciplinas atuais – como a Matemática, a Física, a Biologia e a
Química – faziam parte de um mesmo campo do saber, denominado
Filosofia da Natureza. Ao voltarmos para a Grécia antiga, no século
VI a.C., vemos que existiam os chamados filósofos cientistas, como
Tales, Anaximandro e Pitágoras. Naquele momento, eles faziam, ao
mesmo tempo, filosofia e uma ciência nascente. Nesse contexto, o
conhecimento astronômico produzido pelos gregos antigos era uma
mistura de observação, racionalismo e crença. Os antigos sábios
gregos acreditavam que a Terra era o centro do universo e regente
de todo o resto. O homem seria, por consequência, o centro e a
medida de todas as coisas. Mas a filosofia e seus filósofos, ao longo
da história e com a ajuda da ciência, passaram a contribuir na
compreensão do sistema planetário em que vivemos e, dessa forma,
dar respostas a tantos questionamentos que inquietam a vida do ser

* UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná; diego-c-


souza@hotmail.com
Oficinas didáticas... 311

humano, sobretudo para procurar entender esse sistema em que


vivemos. Acreditamos que a Cosmologia, associada a outros ramos
da ciência, principalmente a tecnologia, tem avançado, e muito, na
missão de descortinar o Universo, constituindo sem dúvida, um ramo
muito interessante que vem despertando a curiosidade e a sede pelo
desconhecido nos teóricos e pensadores, desde os tempos pré-
socráticos até os dias atuais. Esperamos, com essas breves linhas,
ter aguçado seu interesse pelo tema que, a cada dia, apresenta
novas descobertas e novas formas de enxergarmos esse lugar tão
misterioso e fascinante que chamamos de Universo. A presente
oficina está baseada em apresentar as ideias de Aristóteles,
Copérnico e Thomas Kuhn para que os alunos compreendam como
aconteceu a evolução do pensamento cosmológico no decorrer da
história.

PALAVRAS-CHAVE: Filosofia. Heliocentrismo. Geocentrismo.


Thomas Kuhn.

REFERÊNCIAS

CANALLE, J. B. G. Oficinas de Astronomia. Rio de Janeiro: UERJ.


(Revista não publicada)

DUTRA, L. H. A. Introdução à Teoria da Ciência. Florianópolis:


UFSC, 2009.

KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. São


Paulo: Perspectiva, 2015.
312 A Ética em prática no ambiente escolar

= VIII =

NIETZSCHE: DA RAZÃO INADEQUADA

Abraão Lincoln Ferreira Costa*


Ana Claudia Barbosa Nunes
Andressa dos Santos Cizini

Tendo em vista que uma experiência filosófica exige, como


ponto de partida, que se oportunize momentos para que os alunos
iniciem um processo de reflexão a partir do seu próprio universo, de
sua realidade, esta oficina iniciará com uma experiência estética,
possibilitada aos alunos participantes da oficina, com o objetivo de
iniciar uma reflexão sobre o que nos determina enquanto seres
humanos: somos seres definidos por um modo de agir totalmente
racional ou vivemos em um constante conflito entre a razão e
impulsos. Tomaremos como base a filosofia de Friedrich Nietzsche,
tanto para a compreensão filosófica do problema como para a
reflexão sobre o mesmo, mais especificamente a reflexão realizada
pelo filósofo em sua obra “O nascimento da tragédia”. Nietzsche
recupera dos gregos a oposição dos deuses Apolo e Dionísio, como
representantes vivos e evidentes de dois mundos artísticos diferentes
em suas essências e metas, que engendram a arte helênica: a) arte
do figurador plástico, a apolínea, cujo deus correspondente é Apolo,
deus da clareza, da luz, da medida, que se manifesta através da
produção de formas, da beleza, da composição harmoniosa e da
individuação. O impulso apolíneo é firmado nos princípios de
harmonia e perfeição, traduzido nas artes plásticas, pintura e
escultura, representando sua obra conforme regras por meio da
poesia; b) arte não-figurada da música, a dionisíaca, cujo deus é
Dionísio, o deus do caótico e do desmedido, que se manifesta como
movimento de destruição de toda forma e individualidade. O impulso
dionisíaco nega qualquer limite e conduz à exaltação dos instintos
traduzidos pela música, arte universal, trazendo a vida na sua
totalidade, “deus louco” que dança e ri. Segundo Nietzsche, na
Grécia antiga, no Teatro da Tragédia houve a conciliação entre os
dois impulsos, uma harmonia, um equilíbrio entre eles. Essa

* UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná;


abraaofilosofia@gmail.com
Oficinas didáticas... 313

perfeição foi perdida em função da supervalorização da razão,


iniciada com o filósofo Sócrates, que defendia que o homem não
podia ser dominado por impulsos irracionais e que viver sem usar a
razão era não agir dignamente como homem. O racionalismo
socrático despreza o instinto em nome da criação artística
consciente, que tem como critério a razão, a clareza do saber. Essa
postura, segundo Nietzsche é uma “profunda representação ilusória,
que veio ao mundo pela primeira vez na pessoa de Sócrates –
aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da
causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser e que o
pensar está em condições, não só de conhecê-lo, mas inclusive de
corrigi-lo” (GT/NT § 15). Tendo como objetivo pensar com Nietzsche
o modo como vivemos ou somos determinados, hoje, na sociedade,
serão utilizados os seguintes mecanismos: sensibilização,
problematização, investigação e conceituação. Todos os detalhes
foram pensados para que a oficina se torne didática e atrativa,
conduzindo os alunos para uma reflexão filosófica acerca dos
conceitos de Nietzsche.

PALAVRAS-CHAVE: Impulsos; Razão; Apolíneo; Dionisíaco.

REFERÊNCIA

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo:


Companhia das Letras, 1992.
314 A Ética em prática no ambiente escolar

= IX =

ADESTRAMENTO NOTA 10:


A DINÂMICA DA SOCIEDADE DISCIPLINAR NO
COTIDIANO ESCOLAR

Lucas Paulo Orlando de Oliveira*


Nelsi Kistemacher Welter**

As formas jurídicas são locis privilegiados para constatar a


fluidez de poder em uma dada sociedade. Carregam consigo
cristalizações do que ocorre na capilaridade da trama de poder. Por
considerar tal característica, Foucault empreende a partir do direito
penal um estudo sobre como o poder funciona em diferentes
contextos históricos e sociais (FOUCAULT, 2006). Assim,
considerando tal intento, identifica o referido autor um fenômeno
concomitante à fundação da sociedade industrial: uma
reconfiguração na dinâmica de poder da sociedade até então
instituída. O controle que era exercido nos corpos das pessoas
condenadas, como forma de demonstração do poder do soberano
passa a se ressignificar em uma sutil trama de instituições que irão
realizar uma ortopedia moral nas massas (FOUCAULT, 2009). Eis
que o contexto histórico envolve o período de forte êxodo rural,
especialmente na Inglaterra e na França, países especialmente
considerados em sua obra. Com a chegada de novas pessoas ao
espaço urbano e este sendo drasticamente transformado pela
produção industrial, várias formas de controle dessa massa-xucra
foram sendo estabelecidas (FOUCAULT, 2006). Com o advento da
máquina sendo empregada no processo produtivo, é preciso que
haja uma estrutura disciplinar que permita a extração da força de
trabalho em um ritmo compatível com o dos motores. Para tanto, a
escola assume um papel de destaque, uma vez que promove, desde
a tenra idade o condicionamento ou adestramento necessário à
disciplina produtiva (FOUCAULT, 2009). Neste viés, destaca o autor
a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame, como
importantes elementos para o êxito do propósito de adestramento

* UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná;


lucasoliveira_90@hotmail.com
** Professora da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Oficinas didáticas... 315

(FOUCAULT, 2009). A hierarquia vigilante consiste na disposição da


arquitetura que não apenas permite a observação por parte dos
responsáveis pela disciplina, mas que tem efeito coercitivo nas
condutas e as transformam no sentido de reforçar a ordem
estabelecida (FOUCAULT, 2009). Já a sanção normalizadora implica
no emprego de um microssistema penal, com punições sutis, que
vão desde castigos físicos a pequenas humilhações, por ocasião do
rompimento da ordem disciplinar estabelecida (FOUCAULT, 2009).
Por fim, o exame, que consiste na combinação da hierarquia vigilante
e da sanção normalizadora, criando um processo de estabelecimento
da verdade a partir das lógicas de funcionamento dos elementos
anteriormente tratados (FOUCAULT, 2009). Deste modo, a partir
desta breve construção teórica, vislumbra-se o desenvolvimento da
oficina tendo por objetivo que o a estudante possa identificar em seu
cotidiano os elementos que atuam na composição do processo
disciplinar.

PALAVRAS-CHAVE: Escola. Vigilância. Normalização.

REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão; trad.


Raquel Ramalhete. 37. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

_____. A verdade e as formas jurídicas. trad. Roberto Cabral de


Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU, 2005.
316 A Ética em prática no ambiente escolar

=X=

COMO A NATUREZA REAGE À AÇÃO HUMANA DIANTE DO


PROGRESSO TECNOLÓGICO:
O PENSAMENTO DE HANS JONAS

Lucas dos Santos Soares*


Renato Junior Machado**
Thiago Augusto Zanardi***

“Somos os herdeiros do futuro e para esse futuro ser feliz


vamos ter que cuidar bem deste país” (Toquinho). A presente oficina
abordará o pensamento de Hans Jonas, filósofo alemão que viveu
em uma época na qual a busca por tentar resolver os dilemas e os
problemas do dia-a-dia era sua atividade primordial, pois a população
começava a se questionar sobre a hipótese de uma “não
sobrevivência” do ser humano na Terra – uma vez que possuíam
atitudes irresponsáveis e adotavam práticas pouco ou nada
sensatas, com relação à preservação do meio ambiente. Nesse
sentido, Hans Jonas defende que toda e qualquer mudança
tecnológica interfere diretamente em nossas atitudes, não apenas no
momento em que estamos realizando a mudança, mas também no
que diz respeito às consequências que estas podem trazer, no futuro,
para a sociedade. Dessa forma, ele propõe uma ética que contemple
a previsão do perigo que envolve as gerações futuras. Por isso, julga
importante criar a ética da responsabilidade para que o homem
perceba que suas ações de hoje devem ser compatíveis com o futuro
da vida humana na terra e que, na medida em que se destrói as
florestas e polui-se os rios, está se atentando contra a própria vida.
Assim, o objetivo principal de nossa oficina é provocar os
participantes a refletirem sobre a responsabilidade social do homem
em relação à preservação do ambiente, diante do progresso
tecnológico atual, a partir da perspectiva e do pensamento de Hans
Jonas.

*
Acadêmico do primeiro ano do curso de Filosofia / UNIOESTE – Universidade
Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: lsooares@gmail.com
**
Acadêmico do terceiro ano do curso de Filosofia / UNIOESTE – Universidade
Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: renatojuniormachadok@gmail.com
***
Acadêmico do quarto ano do curso de Filosofia / UNIOESTE – Universidade
Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: thiago.az@hotmail.com
Oficinas didáticas... 317

PALAVRAS-CHAVE: Bioética; Preservação; Responsabilidade;


Hans Jonas

REFERÊNCIAS

CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs no Brasil / Campanha


da Fraternidade Ecumênica 2016. Texto-Base. Brasília: CNBB,
2015.

JONAS, Hans. O princípio de responsabilidade: ensaio de uma


ética para a civilização tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa e
Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto PUC-Rio, 2006.

MOSER, Antônio. O problema ecológico e suas implicações


éticas. Petrópolis: Vozes, 1984.

SIQUEIRA, José Eduardo de. Ética e tecnociência: uma abordagem


segundo o princípio responsabilidade de Hans Jonas. Prefácio de
Marco Segre. Londrina: UEL, 1998.
318 A Ética em prática no ambiente escolar

= XI =

O SENTIDO DA VIDA NA PERSPECTIVA DE ALBERT CAMUS

Katyana Martins Weyh*


Charles Eriberto Wengrat Pichler
Jhonatan Pereira de Queiroz

Esta oficina é preparada por acadêmicos do 4º ano de


Filosofia para ser realizada na Semana Acadêmica do curso, com
uma turma de terceiro ano do Ensino Médio e alunos da graduação.
O foco central da oficina é fazer com que os alunos reflitam sobre um
problema que, em determinado momento da vida, faz os homens se
questionarem, a saber: qual o sentido da vida? Não são incomuns as
crises existenciais, ou mesmo os meros questionamentos sobre essa
pergunta tão inquietante. Entendemos que o momento da oficina
deve ser aproveitado não apenas para que os alunos tenham
compreensão de conceitos filosóficos ou que conheçam um filósofo,
mas que possam discutir a temática sobre o sentido da vida por meio
de reflexões e posicionamentos críticos a partir de sua própria
concepção de existência e se é possível que ela tenha algum
sentido. Diante disso, trabalharemos com a obra “O mito de Sísifo”,
de Albert Camus (filósofo pouco estudado, mais conhecido enquanto
escritor literário), a fim de problematizar a questão da decisão que
cada homem faz entre viver ou suprimir a vida. O mito de Sísifo é
fundamental para ilustrar a realidade humana desde a antiguidade
até os dias atuais e, por meio do mito, podemos comparar o esforço
inútil de Sísifo em empurrar a pedra com a nossa inútil busca pelo
sentido da vida. Camus, por meio dessa analogia, mostra-nos que,
embora a existência de muitos homens seja norteada pela pergunta
pelo sentido da vida, ela só pode ser descrita por meio do absurdo,
pois o absurdo é a caracterização da condição humana que persiste
na tentativa de dar sentido a um mundo sem sentido. Eis então o
ápice da filosofia de Camus que nos leva ao absurdismo e,
consequentemente, às duas faces opostas que o homem deve optar:
a decisão pela vida por meio da experiência do absurdo; ou a
supressão da vida por meio do suicídio. Diante disso, há a

*
Acadêmicos do 4º ano do curso de Filosofia, UNIOESTE – Universidade Estadual
do Oeste do Paraná, Campus Toledo; katian.na@hotmail.com
Oficinas didáticas... 319

necessidade de estar em um dos lados; e Camus acredita que a


decisão pela vida é um bem necessário mesmo que não
encontremos um sentido da vida como verdade universal. Além
disso, é preciso que se tenha consciência do absurdo, pois somente
assim teremos, também, consciência da vida. Portanto, o filósofo
acredita que devemos viver e estar conscientes do absurdo
existencial, pois, assim, estaremos conscientes da vida. O suicídio,
então, remonta apenas a uma fuga e um despreparo humano frente
as problemáticas da existência e, mesmo não havendo um sentido
concreto para a vida, o suicídio é apenas uma representação do
aniquilamento da vida e não uma solução para o problema do
absurdo. Levando em consideração tais aspectos, elaboramos a
oficina com uma metodologia que segue a proposta de
sensibilização, problematização, investigação e conceituação a fim
de possibilitar aos participantes uma visão teórica e didática da
oficina.

PALAVRAS-CHAVE: Absurdo; Existência; Suicídio; Vida;


Consciência.

REFERÊNCIAS

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Guanabara, 1942.

_____. O mito de Sísifo. Tradução: Ari Roitman e Paulina Watch.


11a ed. Rio de Janeiro: Record, 2014.

BISPO, Milene Fontes de Menezes; ROSA, Roberto Sávio. O mito de


Sísifo: a decisão de viver ou suprimir a vida. Filosofando: Revista de
Filosofia da UESB: ano 1, n. 2, jul-dez 2013, p. 18-26.

Vídeo: “O mito de Sísifo” disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=yIGbB3hOi_I Último acesso:
25/06/2016.
320 A Ética em prática no ambiente escolar
Oficinas didáticas... 321

OS ORGANIZADORES:

Célia Machado Benvenho é Mestre em Filosofia pela Universidade


Estadual do Oeste do Paraná (2008), financiado pelo CNPQ, na linha
de pesquisa Metafísica e Conhecimento. Possui graduação em
Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (1994).
Especialista em Administração e Planejamento de Sistemas
Educacionais pela UNIPAR - Universidade Paranaense (1997), e
especialista em Computação Aplicada ao Ensino pela Universidade
estadual de Maringá (1998). Tem experiência na área de Filosofia,
Filosofia da Educação, Ensino de Filosofia e Filosofia para crianças.
Atualmente é professor Assistente da UNIOESTE - campus de
Toledo, onde atua como Coordenador de área do CCHS, leciona
para o curso de graduação em Filosofia, orienta Trabalho de
Conclusão de Curso e Estágio Supervisionado.
322 A Ética em prática no ambiente escolar

José Francisco de Assis Dias é Professor Adjunto da UNIOESTE,


Toledo-PR; professor do Mestrado em Gestão do Conhecimento nas
Organizações, na UNICESUMAR; pesquisador do Grupo de
Pesquisa “Educação e Gestão” e do Grupo de Pesquisa “Ética e
Política”, da UNIOESTE, CCHS, Toledo-PR. Doutor em Direito
Canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do
Vaticano, Roma, Itália; Doutor em Filosofia também pela mesma
Pontifícia Universidade; Mestre em Direito Canônico também pela
mesma Pontifícia Universidade Urbaniana; Mestre em Filosofia pela
mesma Pontifícia Universidade; Especialista em Docência no Ensino
Superior pela UNICESUMAR; Licenciado em Filosofia pela
Universidade de Passo Fundo – RS; Bacharel em Teologia pela
UNICESUMAR. Pesquisador do Instituto Cesumar de Ciência,
Tecnologia e Inovação (ICETI). E-mail: jfad_br@hotmail.com
Oficinas didáticas... 323

José Luiz Giombelli Mariani é acadêmico do terceiro ano do curso


de licenciatura em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do
Paraná, bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à
Docência (PIBID), vinculado a CAPES/MEC. Cursou três semestres
do curso de Filosofia da Faculdade Palotina (FAPAS) de Santa Maria
– RS. Participou como organizador da XIX Semana Acadêmica de
Filosofia, evento organizado pelo Centro Acadêmico de Filosofia.
Atualmente desenvolve pesquisa na área de Ética e Filosofia Política,
com o tema, ceticismo na Reforma Protestante, com o pensador
Montaigne, orientado pelo Professor Dr. Gilmar Henrique da
Conceição (UNIOESTE). Participa como membro do Diretório do
Centro Acadêmico de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste
do Paraná, ocupando o cargo de Coordenador Geral.
324 A Ética em prática no ambiente escolar

Nelsi Kistemacher Welter é Doutora em Ética e Filosofia Política


pela UFSC (2013), Mestre em Ética e Filosofia Política pela
UNICAMP (2001) e Graduada em Filosofia pela UNIOESTE -
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (1995). Atualmente é
professora adjunta na UNIOESTE, coordenadora do Pibid-Filosofia e
coordenadora do Estágio em Filosofia.
Oficinas didáticas... 325

Silmara de Oliveira Pereira, acadêmica do segundo ano do curso


de licenciatura em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do
Paraná, bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à
Docência (PIBID), vinculado a CAPES/MEC. Participou como
organizadora da XIX Semana Acadêmica de Filosofia, evento
organizado pelo Centro Acadêmico de Filosofia. Atualmente participa
do Grupo de Estudo de Heidegger, coordenado pelos professores Dr.
Libânio Cardoso (UNIOESTE) e Dr. Roberto Saraiva Kahlmeyer-
Mertens (UNIOESTE). Participa como membra do Diretório do Centro
Acadêmico de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do
Paraná, ocupando o cargo de Coordenadora de Políticas Estudantis.
326 A Ética em prática no ambiente escolar

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