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Este trabalho foi parcialmente financiado pela FCT, no âmbito do


Programa do Fundo de Apoio à Comunidade Científica (FACC)

E S T U D O S
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OS SABERES DA CURA:

ANTROPOLOGIA DA DOENÇA
E PRÁTICAS TERAPÊUTICAS
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TÍTULO: OS SABERES DA CURA: ANTROPOLOGIA DAS DOENÇAS


E PRÁTICAS TERAPÊUTICAS
ORGANIZADORES: LUÍS SILVA PEREIRA / CHIARA PUSSETTI

© INSTITUTO SUPERIOR DE PSICOLOGIA APLICADA – CRL


RUA JARDIM DO TABACO, 34, 1149-041 LISBOA
1.ª EDIÇÃO: OUTUBRO DE 2009

COMPOSIÇÃO: INSTITUTO SUPERIOR DE PSICOLOGIA APLICADA


IMPRESSÃO E ACABAMENTO: PRINTIPO – INDÚSTRIAS GRÁFICAS, LDA.

DEPÓSITO LEGAL: 296587/09


ISBN: 978-972-8400-94-1
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L U Í S S I LVA P E R E I R A / C H I A R A P U S S E T T I
(Organizadores)

OS SABERES DA CURA:

ANTROPOLOGIA DA DOENÇA

E PRÁTICAS TERAPÊUTICAS

I S P A

L i s b o a
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A todas as pessoas que me lembram, quotidianamente,


quanto é difícil contar a vida como ela é.
À Sole, porque um sorriso dela vale mais do que qualquer livro.

C.P.

À Teresa, à Inês e à Leonor.

L.S.P.
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AGRADECIMENTOS
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Agradecemos o apoio do Instituto Superior de Psicologia Aplicada


(ISPA), da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), do Centro em
Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), do Centro de Estudos
de Antropologia Social (CEAS), de todos aqueles que participaram nas
investigações, partilhando connosco os seus saberes, dos profissionais
que contribuíram para a edição deste livro e dos seus autores.
Este trabalho resulta da cooperação entre os membros de uma
equipa e de reflexões comuns, cada capítulo reflecte o posicionamento
teórico próprio de cada autor e é, portanto, de sua inteira responsabili-
dade e mérito.

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«… En disséquant les mots que nous aimons, sans nous soucier de


suivre ni l’étymologie, ni la signification admise, nous découvrons
leurs vertus les plus cachées et les ramifications secrètes qui se propa-
gent a travers tout le langage, canalisées par les associations de sons,
de formes et d’idées. Alors le langage se transforme en oracle et nous
avons là (si ténu qu’il soit) un fil pour nous guider, dans le Babel de
notre esprit».
Michel Leiris
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INTRODUÇÃO
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A antropologia médica – que indaga os processos através dos


quais fenómenos socio-culturais, políticos, económicos e biológicos se
determinam reciprocamente – representa hoje uma das áreas mais
dinâmicas no âmbito das ciências sociais.
Nos últimos anos, também em Portugal, a antropologia médica
tornou-se um campo prioritário, onde são equacionadas questões como,
por exemplo, o pluralismo médico, a leitura social da doença, as bio-
políticas em tempos coloniais e pós-coloniais, os saberes terapêuticos
alternativos à biomedicina, o acesso diferenciado aos cuidados de
saúde, as relações complexas entre saúde e políticas migratórias e do
trauma, a mercantilização da farmacologia como processo de globali-
zação, a intervenção comunitária face às pandemias, as múltiplas
relações entre práticas terapêuticas e religiosas.
No contexto europeu, além da definição “antropologia médica”,
de origem anglo-saxónica, surgiu como área limítrofe, mas com as suas
especificidades, a antropologia da doença, que se originou no contexto
francês (Augé 1986). Estas correntes diferenciam-se por leves nuances
terminológicas que reflectem as diferentes sensibilidades das duas
principais escolas citadas, a dos EUA – mais orientada para a relação
entre indivíduo, sociedade e doença – e a francesa – mais interessada
na investigação sobre os sentidos culturais da doença e nas suas
dimensões simbólicas.

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A pesquisa sobre os saberes da cura, como os diferentes ensaios


presentes neste livro evidenciam, não pode, na opinião dos organi-
zadores da obra, nem evadir a dimensão subjectiva do sofrimento, nem
esquecer os factores sociais, políticos e económicos que o determinam,
os históricos que fundam a sua genealogia, assim como os culturais e
simbólicos que definem os seus idiomas. Decidimos não ficar
limitados por essa divisão conceptual entre antropologia médica e
antropologia da doença e propormos uma perspectiva abrangente, que,
tentando ler corpos, sintomas e biografias, através das suas cicatrizes e
dos seus conflitos individuais e colectivos, consiga interrogar-se sobre
as dimensões múltiplas que definem a experiência do sofrimento. Esta
nossa abordagem pretende problematizar de forma crítica os diferentes
factores que contribuem para a definição e para a vivência individual
do mal-estar, devolvendo dignidade aos outros idiomas do sofrimento,
aos outros vocabulários da crise, aos outros registos da subjectividade
e do simbólico. Se é prioritária a dimensão subjectiva e relacional – a
que está no coração de qualquer encontro etnográfico, com seus
interesses, dúvidas, equívocos e mal-entendidos –, os ensaios aqui
reunidos não esquecem a importância da perspectiva histórica para
poder reconsiderar vivências, conflitos e interrogações epistemoló-
gicas, éticas e políticas. A necessidade de repensar e reconstruir os
tempos da História para descodificar o complexo enredo entre
biografias individuais, memórias colectivas, heranças coloniais e
violências económicas e sociais, representa hoje – para a comunidade
antropológica – uma obrigação teórica e, sobretudo, política e moral.
Seguindo estas propostas de análise, o projecto do qual este livro
resulta, “Políticas da Saúde e Práticas Terapêuticas: Sofrimentos e
Estratégias de Cura dos Migrantes na Área da Grande Lisboa”1, tinha
originalmente como objectivo principal reflectir sobre o complexo
processo de encontro entre diferentes saberes e práticas médicas no

1 Projecto Investigação e Desenvolvimento (I&D), financiado pela Fundação para a


Ciência e a Tecnologia.

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contexto multicultural da área metropolitana de Lisboa e sobre os


problemas da gestão social do “pluralismo médico”. A partir deste
desafio teórico, os investigadores envolvidos tentaram compreender os
processos de transformação ou de ressignificação das experiências do
mal-estar, decorrentes do engajamento em diferentes sistemas
terapêuticos (inclusive o biomédico), bem como analisar comparativa-
mente as práticas e os modelos de cura subjacentes a estes sistemas.
A exigência de desenvolver uma reflexão acerca dos percursos de
cura dos imigrantes pareceu-nos particularmente significativa numa
área como a da Grande Lisboa, cujo espaço urbano é também o espaço
da coexistência de mundos e lógicas autónomos, campo de mudanças
dramáticas, de graves contrastes sociais, de novas dinâmicas
identitárias, de formas imprevisíveis de subjectividade individual.
Os diferentes trabalhos de campo dos investigadores deste
projecto realçam que, por um lado, os técnicos de saúde se encontram
cada dia mais envolvidos em situações nas quais está presente um
gradiente de alteridade cultural que corre o risco de tornar inaplicáveis
e inadequados os processos rotineiros de intervenção clínica, ou pelo
menos de diminuir bastante a sua eficácia. Por outro lado, as nossas
pesquisas evidenciam a frequente desorientação dos imigrantes face a
uma “moral” biomédica – definidora de risco, doença, saúde e cura, e
condicionante das representações e percepções do corpo – que para
eles pode não fazer sentido.
A procura de alternativas terapêuticas, na opinião dos organizadores
deste volume, é muitas vezes uma das consequências da ineficácia da
biomedicina face aos sintomas que os imigrantes apresentam. Sintomas
que se manifestam como espelhos de outros paradigmas interpreta-
tivos, de diferentes modelos médicos, de outras modalidades de
relacionamento com o mundo, o invisível, os antepassados, a dor e a
morte. Sintomas muitas vezes intraduzíveis, se retirados do contexto das
redes semânticas e dos universos locais de significado; sofrimentos, por
outras palavras, que estão à procura de um horizonte de sentido que o

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recurso às estruturas sanitárias e às linguagens da biomedicina não


pode oferecer e que o corpo dos imigrantes parece obstinadamente
pretender. A fraqueza e a ineficácia terapêutica destas intervenções está,
na nossa opinião, na escassa atenção prestada à específica concepção do
mal, própria de cada caso, de cada história de sofrimento, e – por
consequência – na falta de análise do modelo particular de sociedade
que está na base da definição da doença, assim como das relações
interpessoais e do tipo particular de pessoa próprio deste ou daquele
contexto cultural. A reconstrução das histórias de vida, assim como das
narrativas terapêuticas é um dos caminhos possíveis para reconstruir
percursos fragmentados e perceber identidades fracturadas pela dor das
perdas e das separações contínuas (Capítulo 5).
A partir do desafio do encontro clínico entre biomedicina e
pacientes imigrantes tornou-se imperativo investigar também as outras
representações do mal, as outras técnicas e saberes da cura, os outros
sentidos possíveis do sofrimento e da morte – “aqui” como “lá”,
através do cruzamento de diferentes experiências de terreno, nos
contextos de origem, assim como no do acolhimento, ou em contextos
novos, alternativos, onde novos grupos e identidades se criam através
da experiência do sofrimento (Capítulo 2).
Ao mesmo tempo, os imigrantes são considerados como um grupo
de contágio, com higiene insatisfatória, moralmente ambíguo ou
desviante, portador de desordem social e de doenças “exóticas”,
“infecciosas”, “estranhas”. O imigrante, ameaça potencial da ordem
moral, política, económica e simbólica constituída, é um perigo: a sua
presença – ou, ainda melhor, a sua dupla ausência (Sayad 1999) –
assusta e contamina (Capítulo 8).
É exactamente no seu “não estar” que reside a culpa originária do
imigrante: é culpado de uma transgressão latente, da violação de uma
fronteira, da permanência num país sem permissão. É alguém deslocado
(déplacé), “suspenso entre dois mundos” (Nathan 1986), “órfão da
própria cultura” (Ben Jelloun 1977), numa condição de “manque à être”

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(Bastide 1976). Numa crise identitária constante, num espaço que não
lhe pertence, num tempo fracturado, cujas memórias são silenciadas,
ocultadas, perdidas nos labirintos do trauma e que somente reemergem
na expressão muda dos sintomas (Capítulo 4).
O sofrimento dos imigrantes é simultaneamente social e político.
Como nos lembra insistentemente Sayad (1999), os imigrantes provêm
de países outrora colonizados, e muitas vezes residem nos países que
foram colonizadores. A relação que o antropólogo cria com o seu
informante nunca pode subtrair-se aos vínculos do passado, ao enredo
das múltiplas relações (históricas, políiticas e económicas) constante-
mente em jogo. O encontro etnográfico já não admite um olhar
inocente, que esqueça a questão do poder em causa. O uso da medicina
em contextos coloniais é um tópico cada vez mais estudado no âmbito
da antropologia médica e ilustra formas mais subtis (as biopolíticas das
quais falou Foucault, entre outros) de disseminação de poder por parte
do Estado colonial. Não podemos mais ignorar que a força da Verdade
(biomédica/científica neste caso) pode-se impor somente através da
verdade da Força (Capítulo 3).
Não podemos ignorar essa ligação histórica dolorosa e difícil, essa
“verdade colonial” geralmente omitida – como sustenta Homi Bhabha
(2001) – que emerge através do sintoma, através da linguagem do corpo
e do sofrimento. Neste sentido, o corpo doente aparece como um arquivo
histórico e os sintomas como histórias incorporadas que estabelecem a
relação entre o nível individual e o colectivo, o presente e o passado
(Capítulo 6). Didier Fassin (2002) sugeriu a este respeito o conceito de
“incorporação da história” para descrever o duplo processo através do
qual, por um lado, o social se inscreve no corpo, e. por outro, o corpo e
os seus estados contam histórias que relatam não só a vida individual,
mas também a memória histórica sedimentada nesse mesmo corpo.
Uma vez que o corpo é problematizado em termos fenomenoló-
gicos e culturais, emerge, como já antes salientámos, a possibilidade de
pensar a saúde e a doença independentemente dos pressupostos

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ontológicos e epistemológicos da biomedicina. Neste sentido, falamos


neste volume de um corpo consciente, que lembra, que age, que entra
activamente em relação com o mundo social: de um mindful body,
como é definido por Lock e Scheper-Hughes (1987). É neste sentido
que a doença, como sugerem as duas autoras, pode ser considerada
também como um momento de resistência à ordem constituída, um
idioma configurado historicamente e socialmente legitimado para
expressar o próprio mal-estar social, face à falta de outras possibili-
dades viáveis para exibir a própria indignação. O corpo que sofre
torna-se então metáfora da relação desajustada entre o indivíduo e a
sociedade (Sontag 1978), evidenciando o enredo profundo entre
experiência pessoal, simbologias sociais e processos políticos (isto é,
entre os três corpos referidos por Lock e Scheper-Hughes, 1987)2.
O projecto referido visava delinear e explicitar as relações entre os
diferentes níveis que incidem no processo de definição e construção da
realidade do sofrimento dos imigrantes, analisando as diferentes
formas de perceber, definir, explicar e agir face à doença. Examinando
os itinerários terapêuticos dos imigrantes – enquanto processos de
significação e interpretação das várias sensações de mal-estar – o
projecto pretendeu investigar as problemáticas da mudança social e
cultural que estas comunidades têm que enfrentar quotidianamente.
Nesta perspectiva, revelou-se fundamental considerar quer o horizonte
social, histórico e político no qual se situam as histórias individuais dos
doentes – a partir da análise das vivências do mal-estar no contexto de
origem até ao dépaysement próprio da experiência migratória –, quer as
dimensões complexas da cura e da mudança (cultural, psicológica,
social), próprias do contexto de acolhimento. Nesta perspectiva,
tornou-se incontornável considerar, através de um posicionamento
multisituado, as dimensões complexas da doença e da cura, onde não

2 O corpo individual, próprio da análise fenomenológica; o social, foco do estruturalismo


e da antropologia simbólica; e o político, evidenciado pela genealogia foucaultiana e
pelos estudos pós-estruturalistas.

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somente os corpos migram, mas também as religiões, os sistemas


simbólicos, as práticas terapêuticas (Capítulos 7 e 9).
Analisar as complexas trajectórias dos imigrantes, as suas
emoções e aflições, os seus comportamentos de busca de cura, levou-
-nos não apenas a abordar questões interessantes do ponto de vista da
antropologia médica, mas também a considerar as relações entre saúde,
estratégias políticas e de resistência, lutas pelos direitos e pela inclusão
social, vivências íntimas, emocionais e religiosas, com uma perspectiva
fenomenológica e reflexiva. O desafio foi tentar dar conta de todas
estas dimensões através de uma análise etnograficamente densa e
filosoficamente requintada do conceito e da vivência do sofrimento,
não somente considerando a realidade nos países de origem, mas
acompanhando o processo da diáspora (Capítulo 1).
No interior deste quadro teórico comum, os textos aqui reunidos
representam percursos de pesquisa originais e variados, correspon-
dentes aos projectos individuais dos diferentes investigadores. Em
todos, porém, as experiências somáticas são consideradas como
verdadeiros discursos sociais e a doença como um processo ao mesmo
tempo individual e social e não como uma entidade exclusivamente
orgânica – como pretende a biomedicina. Se os sintomas podem ser
lidos como metonímias de processos sociopolíticos e históricos mais
amplos e o mal-estar como uma particular técnica do corpo ou como
uma linguagem para falar de dinâmicas culturais, torna-se necessário
propor uma interpretação capaz de analisar o enredo complexo das
experiências pessoais, dos processos culturais e das forças socio-
políticas que são vividas somaticamente no concreto da experiência.
O sofrimento é, neste volume, interpretado como uma prática
social na qual o corpo se exprime através dos próprios repertórios
históricos e culturais e a doença como algo que os sujeitos fazem de
forma absolutamente original: através das categorias com as quais
interpretam o mal-estar; através das forças sociais e das hegemonias
políticas que produzem dispositivos discursivos que fundam regimes

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de “verdade”; através dos próprios corpos, ou da própria experiência


incorporada. Neste sentido, o corpo e os seus sintomas foram aqui
considerados, não em termos exclusivamente orgânicos ou naturais –
como entidades que se dão além dos processos de produção cultural –,
mas, melhor, como produtos sociais dos quais tentamos indagar os
processos de construção. Ao mesmo tempo, o corpo não foi aqui
considerado somente como objecto passivo destes processos de
plasmação cultural, mas também como sujeito activo de produção de
significados culturais. Os corpos, por outras palavras, não são somente
constituídos por e através de práticas e discursos sociais, mas são
também o terreno vivido destes discursos e práticas.
Para além desta Introdução, o livro foi estruturado em três partes,
de acordo com o nosso propósito de incluir uma abordagem de
aspectos socio-históricos da doença, uma análise crítica de modelos
médicos (especialmente o dominante, a biomedicina) e de algumas
práticas terapêuticas no terreno. Concluindo, incluem-se apreciações
finais do nosso colega e consultor internacional do projecto acima
referido, Josep Maria Comelles.
Na primeira parte, no texto de Ramón Sarrò, analisa-se a
diversidade cultural do sofrimento e da dor, a sua concepção em dife-
rentes religiões, as assimetrias das políticas coloniais, a secularização e
as suas implicações nas políticas de saúde, mas também o modo como
literatura e religião prometem o fim do sofrimento e da morte.
O texto de Marta Maia remete-nos para as novas “comunidades”
formadas na Internet e sua relação com a doença, no caso a hepatite C.
O seu trabalho em França regista as experiências, trocadas em fóruns,
pelos doentes.
O contributo de Jorge Varanda cruza política, economia e saúde,
analisando o caso da doença do sono em Angola, no período colonial.
Através da análise dos dados obtidos no seu estudo de arquivo, o autor
revela as claras ligações estabelecidas entre a biomedicina e a adminis-

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tração colonial no controlo das actividades sócio-económicas das


populações “assistidas”, sublinhando o aspecto político do saber médico.
Na segunda parte desta obra, Cristina Santinho recorre à
observação participante em consultórios de psiquiatria, no “Centro de
Acolhimento de Refugiados” (CAR), e às histórias de vida, obtidas no
decurso do seu trabalho, como meios para analisar a verbalização do
sofrimento entre refugiados em Portugal. A autora torna evidente
porque é traumática a experiência de integração daqueles que são
vítimas da “banalidade do mal” (como escreve Hannah Arendt, citada
por Santinho), mas também como a identidade se reconstrói e,
finalmente, como a compreensão da somatização remete para o
inevitável conhecimento das condições de vida do refugiado.
Ana Mourão investiga as rupturas identitárias determinadas pela
emigração e pela doença crónica, nomeadamente a ruptura que designa
como “descontinuidade biográfica”. A autora lança um olhar para além
da diversidade cultural, para além da pluralidade dos sistemas
interpretativos e terapêuticos, buscando a omnipresente necessidade de
uma interpretação que apazigue a dor e dê sentido ao sofrimento.
Chiara Pussetti analisa a concepção de doença dos Bijagós – a
qual radica no desequilíbrio das emoções e dos sentimentos próprios e
alheios –, cruzando “coordenadas situacionais, relacionais, históricas e
morais”. A autora baseia-se em narrativas recolhidas naquele
arquipélago da Guiné-Bissau e demonstra como a desordem nas
relações sociais se pode traduzir em desordem no corpo físico, a qual,
por sua vez, pode levar a um desequilíbrio de comportamento que pode
afectar a saúde de membros dos grupos sociais próximos do doente. A
este propósito, Pussetti questiona o conceito de “somatização”, tendo
como pano de fundo a intervenção da biomedicina e o papel do
curandeiro na construção de sentido sobre o bem-estar e a doença.
Na terceira parte do livro, o texto de Clara Carvalho aborda o
papel de terapeutas guineenses e senegaleses, imigrados em capitais

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europeias, portadores do seu saber médico, mediadores entre diferentes


concepções de corpo, saúde e doença, agentes decisivos na relação
entre diferentes grupos culturais. A história da diáspora guineense
segue a pista das redes transnacionais dos terapeutas tradicionais (os
marabouts, os mouros, como são designados na Guiné-Bissau, e os
jambakus), em França, Espanha e Portugal. A autora identifica as
estratégias de radicação nos países de destino, as suas concepções de
saúde e de doença e as relações estabelecidas entre os diferentes
sistemas nosológicos, ilustradas, por exemplo, com a análise do
infortúnio e de vários cultos de aflição, bem como de dados recolhidos
sobre a experiência hospitalar vivida por elementos da população
migrante.
Iolanda Évora estuda o comportamento de jovens cabo-verdianos
face ao VIH/Sida, identificando a sua percepção de risco e a sua lógica
de protecção, identificando as controvérsias inerentes ao binómio
sida/imigração, no qual o Outro surge como ameaça à ordem
estabelecida no país de destino. A autora aborda a situação de rapazes e
raparigas entre 16 e 26 anos, de origem cabo-verdiana em Portugal,
levando em conta a sua integração em grupos no país de origem e,
depois, no país de destino. Situa-os nos bairros em que vivem (aqueles
que são designados como de “realojamento social”, em centros urbanos
portugueses) e contextualiza a sua condição, remetendo para o
“universo do medo” de que fala Susan Sontag (citada por Évora).
Neste texto são revelados vários aspectos inerentes à construção social
das percepções sobre segurança e perigo, em estreita relação com as
concepções dos jovens, com os quais Iolanda Évora fez o seu trabalho
de campo, sobre sexualidade.
Luís Silva Pereira analisa o estabelecimento, o funcionamento, a
organização interna e o tipo de assistência prestada por um terreiro de
candomblé em Portugal. O autor cruza a concepção de mundo do
candomblé com as acções desenvolvidas no terreiro, directamente
relacionadas com previsão, aconselhamento, diagnóstico e tratamento.

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Baseando-se em materiais recolhidos junto de adeptos e de consu-


lentes, identifica as razões que levam essa população, na sua
esmagadora maioria de nacionalidade portuguesa e de religião católica,
a recorrer ao candomblé para solucionar problemas relacionados com a
saúde e avalia a relevância da teoria e da prática desta religião nas
vidas dos que a ela recorrem.
A ciência não deve ser estranha ao sofrimento social – esse é um
pressuposto que liga muitos dos trabalhadores da área da saúde e que,
desde o ponto de vista dos organizadores deste livro, liga, pelo sentido,
as contribuições dos seus autores.
Uma leitura antropologicamente sensível do sofrimento e da
doença é uma questão política e uma responsabilidade ética em relação
a actores sociais, tantas vezes silenciados, e que consideramos, antes
de tudo, como sujeitos políticos e morais que muitas vezes manifestam
somaticamente os sintomas de profundas feridas históricas e sociais.
É no seio deste panorama conflitual, móvel e mutável, no qual
múltiplos discursos coexistentes entram em contradição e onde os
problemas sociais podem ser incorporados como doenças, que
tentamos desenvolver as nossas investigações individuais e o nosso
projecto colectivo. O desafio foi trabalhar sem nunca perder a
consciência das relações entre conhecimento, poder, autoridade e
hegemonia; da multiplicidade dos factores em jogo (sociais, políticos e
económicos, além de culturais); e da centralidade dos indivíduos em si,
das suas interpretações, representações, emoções, ambiguidades,
memórias e esperanças.
Consideramos que este livro pode preencher uma lacuna na
divulgação de trabalhos na área da Antropologia da Doença e da
Antropologia Médica, desejamos que contribua para melhorar a
comunicação entre representantes de diferentes áreas do saber que se
cruzam no terreno (mas que nem sempre cruzam os resultados das suas
investigações, inviabilizando uma visão mais informada sobre o

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doente, ou a pessoa que vive em aflição), e, finalmente, que seja um


instrumento útil para a formação de alunos e trabalhadores da área da
saúde e das ciências sociais.

Chiara Pussetti

Luís Silva Pereira

BIBLIOGRAFIA

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26, Numéro 97, pp. 81-90.
BASTIDE, R., et al., 1976, Pesquisa Comparativa e Interdisciplinar,
Porto Alegre: Ed. Karont Livreiro.
BEN JELLOUN, T., 1977, La plus haute des solitudes, Paris, Éditions
du Seuil.
BHABHA, H.K., 2001, Locations of culture: the post-colonial and the
postmodern Postmodern Debates. London: Ed. Routledge.
FASSIN., D., 2002, L’invention française de la discrimination, Revue
française de science politique, vol. 52, n° 4, pp. 403-423.

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LOCK, M., e N. SCHEPER-HUGHES, 1987, The Mindful Body: A


Prolegomenon to Future Work in Medical Anthropology, Medical
Anthropology Quarterly, 1 (1), pp. 6-41.
NATHAN, T., 1986, La folie des autres. Traité d’ethnopsychiatrie
Clinique, Paris: Ed. Dunod.
SAYAD, A., 1999, La double absence: des illusions de l’émigré aux
souffrances de l’immigré. Paris: Ed. Seuil.
SONTAG, S., 1978, Illness as Metaphor, New York: Farrar, Straus &
Giroux.

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PA RT E I

GOVERNAR A DOENÇA:
HISTÓRIA, POLÍTICAS E PRÁTICAS
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Capítulo 1

O sofrimento como modelo cultural:


Uma reflexão antropológica sobre
a memória religiosa na diáspora africana

Ramon Sarró*

* Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa


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O SOFRIMENTO AFRICANO

Certo dia de 1994, vivia eu numa aldeia da etnia Baga, na Guiné


Conacri, surpreendeu-me que um ancião, que visitava a casa onde
vivíamos, saudasse Arafan, o pai da família, com a frase initoro e que
Arafan tivesse respondido iyoo, initoro. Geralmente, entre os Baga,
quando se recebe um estrangeiro é utilizada a expressão jovial inisene,
que significa ‘bem-vindo’ e não initoro, que é uma expressão de
condolência usada, sobretudo, para transmitir pesar por um falecimento
ou para dar apoio a alguém que está gravemente doente.
O trabalho de campo é como entrar no cinema a meio do filme.
Por isso, pensei que me tinha escapado algo, que a vida de Arafan tinha
sido atingida por alguma desgraça que me era desconhecida e que
justificava a utilização do initoro. Contudo, não era este o caso.
Durante os anos que convivi com os Baga, ouvi os anciãos cumprimen-
tarem-se com um initoro em vez de inisene noutras ocasiões,
especialmente quando já não se viam há muito tempo: a explicação é,
precisamente, que ao longo desse tempo de ausência teriam, com
certeza, ocorrido várias desgraças na vida da pessoa que cumprimen-
tamos, em especial se ela já tem muita idade. Mas, seria aceitável na
Europa cumprimentar alguém, mesmo alguém de muita idade, com
uma expressão de pesar?

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A África convive com a dor e com o sofrimento de tal forma que,


no Chade, uma saudação corrente em francês é comment ça va avec la
douleur?, frase que serviu de título a um filme do realizador francês
Raymond Depardon (França 1996). Este documentário foi acusado de
afro-pessimista, pois mostra uma África dizimada pela dor e pela
tragédia, mas, de facto, a frase é muito semelhante ao initoro usado
pelos Baga, ou, para dar outro exemplo, à forma que o valor da
expressão crioula sufri tem na rede de intercâmbios verbais que tecem
o quotidiano na Guiné-Bissau. Não querendo ser afro-pessimista (sei
perfeitamente que também existe uma África que ri, que brinca, que
dança e que joga futebol), parece-me evidente que os africanos estão
muito mais familiarizados com o sofrimento do que os seus vizinhos
do norte, nós os europeus, que talvez devessemos aprender mais sobre
o assunto. Em 2003, quando tomei a liberdade de aconselhar um rapaz
guineense que pretendia emigrar para a Europa, dizendo-lhe que iria
sofrer muito, ele fitou-me como se eu tivesse feito a observação mais
óbvia do mundo e respondeu-me, de forma lacónica, bien sure, mais la
vie, c’est la souffrance, n’est pas?1
Tanto o sofrimento como a sua irmã gémea, a dor, são normal-
mente estudados pela antropologia médica e mesmo a sua dimensão
social tem sido estudada, habitualmente, por especialistas desta
disciplina (ver, p. ex., Kleinman 1958), com algumas excepções
notáveis que assinalarei ao longo deste texto. Mas o sofrimento vai
muito para além da medicina, como mostra a sua presença no cânone
religioso e filosófico ocidental. Referindo apenas as duas tradições que
julgo serem mais familiares ao leitor, lembremos as profundas
reflexões sobre o sofrimento de autores cristãos como Santo Agos-

1 De qualquer forma, isto não significa que eu tenha mudado a minha sensação, que ainda
mantenho, de que os emigrantes africanos desconhecem ou minimizam o sofrimento
que os espera quando chegam a uma Europa cada vez mais discriminatória, onde irão
enfrentar muitos dos seus piores pesadelos e onde viverão situações desumanas graves.
Sobre o sofrimento dos imigrantes e a frustração dos seus sonhos, ver por exemplo
Sayad (1999), Bordonaro e Pussetti (2006), Sarró (2007).

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tinho, Unamuno, Kierkegaard, Gabriel Marcel e as de pensadores


judeus como Spinoza, Martin Buber, Paul Celan, Emmanuel Levinas2.
Como Rebecca Norris demonstrou num artigo recente, o estudo cabal
do sofrimento e da dor pressupõe um equilíbrio entre a antropologia da
religião e a antropologia médica (Norris 2009).
Infelizmente, não é fácil elaborar um enquadramento teórico para
estudar este ponto de encontro, dado o silêncio com que as ciências
sociais se têm deparado nesta questão. Com algumas excepções
(Bowker 1970; Sullivan 1989)3, a relação entre religião e sofrimento
tem sido desprezada pelos investigadores sociais e as reflexões que
encontramos a este respeito pertencem a teólogos ou historiadores da
religião e não aos sociólogos ou antropólogos que poderiam ajudar-nos
a entender o sofrimento como um facto social. É evidente que religião
e saúde sempre andaram lado a lado, como bem demonstra a frase latina
extra ecclesiam nula salus e fora da comunidade moral que denomi-
namos de ‘igreja’ não existe salus (conceito latino que significa
‘salvação’ e ‘saúde’). Na realidade, a questão é bem mais complexa do
que aparenta. Se é certo que esta frase dá a entender que dentro da
igreja (cristã) encontramos a salus, a verdade é que o sofrimento não só
não é deixado extra ecclesiam, como faz parte do ethos cristão segundo
a maioria das denominações cristãs europeias. O cristão é aquele que
compreende o sofrimento de Jesus Cristo e mais cristão ainda é aquele
que consegue sentir esse sofrimento no seu próprio corpo: das lágrimas
do peregrino na via dolorosa até aos misteriosos estigmas do místico,
passando pelas auto-flagelações de alguns crentes (ver o estudo de
Glucklich 2001). Como tal, sofrer não equivale a não ter salus. O cristão
saudável é um ser que sofre. De qualquer forma, apesar do cristianismo

2 Para uma análise comparativa do sofrimento nas diversas religiões, ver Hinnells e Porter
(1999).
3 Obviamente, limito-me a citar os textos mais relevantes para as ciências sociais. No
âmbito da teologia, a literatura sobre o sofrimento é, obviamente, muitíssimo mais
extensa. A meio caminho entre a teologia (cristã e judaica neste caso) e os religious
studies, o livro colectivo organizado por Gibbs e Wolfson (2002) parece-me ser
particularmente claro e inspirador.

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ter uma base histórica que assenta na compreensão do sofrimento,


quantos cristãos ocidentais estariam totalmente dispostos a aceitar a frase
do meu interlocutor guineense, segundo a qual a vida é sofrimento?

O SOFRIMENTO E A CRIAÇÃO DA COMUNIDADE RELIGIOSA

Temos de agradecer ao antropólogo britânico Harvey Whitehouse


por finalmente ter iniciado uma série de estudos sobre a associação
entre sofrimento e religião. Este professor de Oxford, sem dúvida uma
das vozes mais influentes da nova antropologia da religião, mostra-nos
o papel fundamental que o sofrimento tem na criação de uma
comunidade. Para Whitehouse, o sofrimento é fundamental naquilo a
que os antropólogos chamam de ‘ritos de passagem’ e que ele
rebaptizou de ‘ritos de terror’ (Whitehouse 1996). A sua teoria sobre a
transmissão de ideias religiosas refere que é fundamental que estes
ritos sejam dolorosos por várias razões, mas em especial porque, por
um lado, a dor ajuda a gravar na memória a religiosidade que é
transmitida aos neófitos e, por outro, porque a partilha da dor no
campo iniciático cria uma comunidade muito forte, não só entre os
neófitos mas também entre estes e aqueles mais velhos que os iniciam.
Whitehouse alega que esta forma de criar a comunidade através da
dor é própria das religiões iniciáticas, mas não daquelas que ele
designa de ‘doutrinais’, as quais criam, a partir do livro e da doutrina
relembrada nas cerimónias, um sentimento de pertença àquilo a que
Anderson (1983) denominou uma ‘comunidade imaginada’. White-
house critica o seu antecessor mais respeitado, Émile Durkheim, para
quem entrar numa religião é ipso facto passar a adorar a comunidade a
que se pertence. Para Whitehouse, isto acontece nas religiões
iniciáticas, mas não nas universais, onde a criação de um sentimento de
comunidade passa por outros mecanismos para além da iniciação ao
grupo. Whitehouse (2000) acusa Durkheim de analisar uma religião

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iniciática (a dos aborígenes australianos), tomando-a como modelo da


religião em geral. Segundo Whitehouse nas religiões universais o
sentimento de pertença é muito mais débil, precisamente por não
submeter os noviços a rituais traumáticos que incutem as noções
básicas e o sentimento de colectividade à força. A crítica a Durkheim
parece-me acertada. No entanto, julgo que poderíamos afastar-nos da
dicotomia de Whitehouse entre ‘modos de religiosidade iniciáticos’ e
‘modos de religiosidade doutrinais’ porque, na realidade, contraria-
mente à sua posição, penso que o sofrimento pode ser importante tanto
para a memória das religiões iniciáticas como para a das religiões
doutrinais. A história do cristianismo e a centralidade do sofrimento na
sua teologia mostra-nos isso mesmo. Whitehouse está certo quando
defende que o sofrimento colectivo é fundamental para criar a comu-
nidade, mas falha quando defende que isso não acontece nas religiões
doutrinais. Muito antes dele, já Max Weber nos tinha explicado que
fazer parte de uma ‘comunidade de sofrimento’, construindo a partir
daí uma doutrina, uma ética e uma teodiceia, cria laços muito fortes
entre os seres humanos. Como referido, o cristianismo foi
historicamente concebido como uma comunidade de sofredores,
embora, ultimamente, algumas modalidades do cristianismo neo-
pentecostal consistam, precisamente, em evitar o sofrimento. ‘Pare de
sofrer!’ é um lema habitual da Igreja Universal do Reino de Deus em
Portugal. Porém, conjuntamente com o neo-pentecostalismo chegam
hoje a Portugal, vindas de outros continentes, novas formas de viver o
cristianismo, incidindo algumas delas sobre o sofrimento, por vezes de
forma mais incisiva do que o próprio catolicismo tradicional português.
Poderá haver quem queira responder à observação que fiz a
Whitehouse, alegando que os mecanismos de criação de uma comuni-
dade nas religiões doutrinais, como o islão, o judaísmo, o cristianismo
ou o hinduísmo passam pela imaginação literária e não pela vivência
corporal: trata-se de um sofrimento metafórico e não de uma dor real,
como aquela que é sentida pelos neófitos nos cultos de iniciação africa-

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nos ou melanésios. Seria porém uma afirmação muito arriscada, porque


ninguém pode legitimamente dizer a outrem que o seu sofrimento não
é ‘real’, mas antes ‘metafórico’. Gostaria de, neste artigo, ilustrar esta
dificuldade com a análise de uma dessas novas formas de cristianismo
que incidem no sofrimento das quais estávamos a falar.

O KIMBANGUISMO: DA REPRESSÃO COLONIAL À DIÁSPORA


ACTUAL

O kimbanguismo é um movimento profético que nasce no Congo


(na altura, Congo Belga) em 1921. Convém ter em conta que o Congo
é uma das regiões do continente africano onde a cultura religiosa é
mais profética – possivelmente tanto como a própria cultura semita
pré-cristã. Já no século XVII se desenvolveu o movimento profético
que surgiu no seguimento das promessas e da trágica vida de Kimpa
Vita (ou Dona Beatriz), uma mulher nascida na capital do Reino do
Congo e queimada viva em 1706 pela lei Kongo (com a aprovação de
missionários Capuchinhos italianos). Kimpa Vita denunciava a
hipocrisia da evangelização europeia que, por um lado, promovia um
discurso de igualdade e dignidade humana, mas, por outro, oprimia os
africanos e colaborava activamente no tráfico de escravos. Esta
profetisa indigenizava completamente a religião cristã, chegando a
afirmar que Santo Antonio, tal como Jesus, Maria e José, eram negros
do Kongo, e que um futuro messias nasceria em África para instaurar
na terra o verdadeiro cristianismo, no qual todos os seres humanos
seriam considerados iguais.
No entanto, o movimento profético mais conhecido foi aquele que
surgiu dois séculos mais tarde no sul do Congo Belga, quando Simon
Kimbangu, um catequista mukongo (para muitos, era ele a promessa
anunciada por Kimpa Vita), começou a curar pessoas através de meios
espirituais e a convidar as pessoas a abandonar as suas crenças na

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bruxaria em nome do cristianismo. Milhares de pessoas deslocaram-se


à aldeia de Nkamba (lugar de nascença de Kimbangu), não longe da
fronteira com Angola, para serem curados e poderem encontrar um
consolo junto ao profeta. Em Setembro de 1921, apercebendo-se da sua
capacidade de mobilizar a população colonizada, o governo belga
deteve-o, condenando-o à morte (pena posteriormente comutada em
prisão perpétua). Kimbangu foi encarcerado pelas autoridades belgas
em Elizabethville (mais tarde Lubumbashi) e viveu durante 30 anos
numa cela de 120x80 cm. Morreu em Outubro de 1951, sendo,
asseguram os kimbanguistas, o africano que mais tempo passou numa
prisão. No entanto, apesar do encarceramento, sofrimento e morte do
profeta, o movimento kimbanguista perdurou e, sob a tutela de um dos
filhos de Kimbangu, converteu-se na década de sessenta numa religião
oficial do Zaire independente. O corpo do profeta foi solenemente
trasladado de Lubumbashi para Nkamba, onde se construiu um
mausoléu – hoje visitado em peregrinação por kimbanguistas de todo o
mundo. Em 1969, a Igreja Kimbanguista foi admitida no Conselho
Ecuménico de Igrejas Cristãs e Nkamba foi oficialmente declarada
sede da igreja. Por esses anos, o movimento também se começou a
disseminar entre a população bakongo do norte de Angola, apesar da
oposição da administração colonial portuguesa. Nas décadas de 1960 e
1970, os kimbanguistas sofreram uma perseguição brutal, sendo
finalmente reconhecidos pela metrópole em 1974, pouco antes da
independência de Angola (para uma história do kimbanguismo em
Angola, ver Sarró, Blanes e Viegas 2008).
Na década de 1980, precisamente quando os movimentos
proféticos estavam a sofrer dificuldades em Angola, por causa da
repressão religiosa dos primeiros anos do regime do MPLA, alguns
angolanos emigraram para Portugal, trazendo consigo as suas formas
religiosas. A ex-metrópole assumiu aqui um papel curioso na manu-
tenção desta fé. Na década de 1980, alguns emigrantes conseguiram,
graças ao facto de Portugal ter reconhecido o kimbanguismo na época

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colonial, instalar a sua igreja no Prior Velho (Loures) e manter viva


essa religião tão africana e, no entanto, proibida em África. A chama
do kimbanguismo angolano manteve-se viva na diáspora, enquanto as
forças governamentais tentavam, por todos os meios, apagá-la no
continente de onde havia embarcado (para um enquadramento teórico
da diáspora kimbanguista, ver Sarró e Blanes 2009a).
Hoje, a Igreja Kimbanguista de Portugal reúne-se todos os
domingos em Loures. Para eles, como para muitos africanos, Europa é
uma terra que precisa de evangelização. ‘Pouco imaginava o Europeu,
que veio colonizar o seu irmão menor [mais jovem] Africano, que esse
irmão mais pequeno iria um dia recordar-lhe que não se pode viver sem
Deus’, disse-me numa ocasião um kimbanguista. Actualmente, existem
congregações em muitos outros países – como Inglaterra, França,
Bélgica, Espanha, E.U.A., Brasil –, constituindo um bom exemplo das
redes transnacionais que compõem as religiões de hoje. A cidade de
Nkamba continua, no entanto, a ser considerada o centro sagrado da
comunidade mundial.

SOFRIMENTO E SECULARIZAÇÃO: PASSOS PARA UM ESQUECI-


MENTO DO SOFRIMENTO

Actualmente, nos círculos académicos, fala-se muito da seculari-


zação da sociedade ocidental. A secularização é o desencantamento, a
dessacralização, a ‘desmitologização’, o ‘desigrejamento’ (de-churching,
em inglês). A secularização é entendida a maioria das vezes como uma
perda, como uma despromoção de um estado de graça a um estado de
natureza (em linguagem escolástica) e parecem ser poucos os que se
atrevem a analisá-la como um êxito, como algo que ganhámos à custa
do trabalho intelectual e como mais uma das formas de estarmos no
mundo e de nos relacionarmos com ele (talvez a excepção mais notável

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seja Asad 2003). Ao pensar nesta estética da perda, recordo que existe
um outro elemento da secularização enquanto perda, que é a progressiva
ocultação do sofrimento no mundo em que vivemos. Poderíamos dizer,
acrescentando mais uma palavra com o prefixo ‘des’ à nossa lista, que a
secularização é um ‘dessofrimento’ do mundo (peço desculpa pelo
péssimo neologismo). Hoje em dia, ‘sofre-se porque se quer’, como
disse uma entrevistada à minha colega Maria-Manuel Quintela,
especialista em antropologia da saúde (Quintela 2008: 302)4.
Em minha opinião, a I Guerra Mundial e os anos imediatamente a
seguir constituíram um momento-chave na história recente da
secularização na Europa. É como se a Grande Guerra nos tivesse
alertado que o esquecimento da religião tinha causado danos irrepará-
veis à consciência europeia. Foi nesse contexto que se escreveram
obras muito importantes, que colocaram um travão ao entusiasmo pela
secularização, promovendo um renascimento de aproximações
académicas, num compromisso entre a ciência e a teologia, que
convidavam a pensar o ser humano como fundamentalmente religioso.
Ocorrem-me à memória livros como A Ideia do Santo, de Rudolf Otto
(1917) ou O Eterno no Homem, de Max Scheler (1922) – que abriram
caminho à fenomenologia da religião –, o Comentário à Epístola aos
Romanos de Karl Barth (1919) – cuja segunda edição de 1922 fundou a
denominada Teologia Dialéctica –, e também obras poéticas como The
Waste Land de T.S Eliot (1922), que denunciavam a arrogância do
‘esquecimento de Deus’ e os perigos dos excessos de racionalidade.
Paul Hazard viria a desenvolver mais tarde este último tema no seu
livro histórico A Crise da Consciência Europeia (1935). Porém, julgo
que o autor que melhor expressou a ambiguidade do Iluminismo na
Europa do pós-guerra foi Thomas Mann em A Montanha Magica
(1924). Neste romance, Mann criou um personagem, Settembrini, que

4 Não só hoje em dia. A invisibilização do sofrimento, bem como da religião, na Europa


moderna são analizados na litetarura do Século XVIII num inspirado livro de Chantal
Thomas (2004).

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era o protótipo do homem ilustrado, do homem que encarnava os ideais


secularizados da modernidade desencantada. Como qualquer leitor ou
leitora que tenha lido a obra recordará, Settembrini pertencia a uma Ligue
pour l’Organisation du Progrès internacional, cuja tarefa era a de
‘cimentar a felicidade da humanidade e combater e eliminar definiti-
vamente o sofrimento humano’. Esta liga, que caricaturiza o racionalismo
oitocentista, tinha como objectivo a elaboração de uma Enciclopédia do
Sofrimento Humano ou uma Sociologia geral do sofrimento humano (o
próprio Settembrini utiliza os dois títulos em momentos diferentes do
romance), uma obra monumental em vários volumes na qual o sofrimento
da humanidade, ‘em todas as suas categorias e variedades’, seria objecto
de um estudo sistemático e exaustivo:
[S]e expondrán los elementos químicos cuyas múltiples mezclas y
combinaciones determinan los distintos tipos de sufrimiento
humano y, tomando como directriz principal la dignidad y felicidad
de los hombres, se propondrán los medios y las medidas que se
consideren indicados para eliminar la causa de estos males5.

Para Settembrini e seus ilustres companheiros da Ligue


progressista, o mundo ilustrado, moderno e racional deveria ser um
mundo sem sofrimento e, consequentemente, também sem Deus.
Talvez seja esta a filosofia subjacente à criação dos sistemas
seculares de saúde pública, muito embora esse propósito seja apenas
um sonho: o ser humano demonstrou ter grandes qualidades na arte de
criar sofrimentos aos seus congéneres, mas muitas falhas na arte de
evitá-los. Se uma sociedade sem sofrimento não é impensável e talvez
não fosse de todo indesejável, penso que a própria consciência
europeia teria dificuldade em considerar como totalmente humanos os
membros dessa sociedade sem sofrimento. Um bom exemplo desta
afirmação são os personagens supostamente felizes de outro grande

5 Mann, Th. La Montaña Mágica (cap. 5, secção ‘La Enciclopedia’). Cito a formidável
tradução ao espanhol de Isabel García Adánez (Barcelona, Edhasa 2005), p. 356.

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romance – Um Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932) –


inserido, também, no contexto da ambiguidade do Iluminismo
descoberta depois da Grande Guerra.
Tal como a literatura, por vezes a religião surge como um meca-
nismo para imaginar sociedades sem sofrimento, existindo inúmeros
movimentos proféticos que asseguram o fim do sofrimento e até da
morte (ver Sarro, 2009 para um caso de promessas atanásicas entre os
baga da Guiné-Conacri) ou que prometem uma ‘sociedade sem mal’,
como o profetismo tupi-guarani estudado por Hélène Clastres (1975).
Mais frequentemente, porém, a religião surge como um modelo para
pensar e aceitar o sofrimento. Clifford Geertz recordou-nos que a
religião é aquela encruzilhada de caminhos, própria do pensamento
simbólico e única no ser humano, no qual os ‘modelos de’ se convertem
em ‘modelos para’ (Geertz 1966). No caso dos kimbanguistas, o relato
da vida de Cristo, o da profetisa Kimpa Vita e, sobretudo, o de Simon
Kimbangu convertem-se em modelos da sua própria condição, que dão
significado ao mundo em que vivem, ajudando os crentes a entender a
história da sua comunidade. São também modelos para, que oferecem
um esquema mental e comportamental que permite actuar e adoptar
uma atitude ética perante o mundo. Kimbangu rezou por e ajudou os
seus congéneres africanos colonizados e, hoje, os kimbanguistas rezam
por e ajudam os imigrantes e outros co-habitantes marginalizados da
população portuguesa, a quem prestam auxílio com todas as suas
forças espirituais. Com efeito, os kimbanguistas de Loures estão
sempre dispostos a ir rezar a casa de alguém, seja kimbanguista ou não.
Há uns anos atrás, por exemplo, foram visitados por um homem que
vivia muito longe do local da sede da Igreja, mas que tinha ouvido
falar das orações colectivas organizadas por este grupo. A sua esposa
não queria sair de casa em qualquer circunstância, nem mesmo para ir
fazer compras na loja ao lado. A pedido do marido, os kimbanguistas
deslocaram-se então à sua casa e rezaram por ela várias vezes. Ao fim
de algum tempo, a mulher começou a sair e até se aventurou a ir de

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carro ao supermercado. Do ponto de vista biomédico, poderemos


arriscar dizer que esta mulher apresentava, provavelmente, um quadro
de fobia e, como tal, não há porque duvidar da eficácia de um bom
serviço psiquiátrico, caso o marido tivesse procurado esse apoio, em
vez de se dirigir aos kimbanguistas. Por razões que de momento
desconheço, o homem procurou apoio na religião e não na medicina, e
os kimbanguistas trataram-na como um ser sofredor, não como um
doente. Por conseguinte, fizeram o que lhes é habitual fazer para
apaziguar o espírito atormentado de um congénere sofredor: rezar.
Após a recuperação, a mulher deslocou-se à igreja kimbanguista para
expressar o seu agradecimento, embora não se tenha convertido à
religião de Kimbangu.

A EUROPA PÓS-SECULAR: PASSOS PARA A RECUPERAÇÃO DA


MEMÓRIA E DO SOFRIMENTO

Noutro lugar escrevi, junto com o meu colega Ruy Blanes (Sarró e
Blanes 2009b), que a imigração constitui o grande desafio à teoria da
secularização. A Europa pode estar a secularizar-se (embora esta
afirmação não deixe de ser muito discutível), mas não há dúvida de que
os imigrantes que chegam de países meridionais (pensemos no Brasil e
África, em especial) vêm mais religiosos do que seculares, trazendo
um ar fresco de religiosidade à Europa. Algumas religiões, como o
kimbanguismo, vêm precisamente recordar-nos que sofrer faz parte da
nossa condição humana e histórica.
Nas reflexões teóricas sobre a história do sofrimento humano (ver
Escalante Gonzalbo 2006), é sempre dado destaque à Shoah
(holocausto). De facto, a Shoah coloca-nos problemas ligados à
transmissão do sofrimento na linha discutida mais atrás, que dificultam a
distinção entre a vivência e a memória semântica, na qual se baseia, por

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exemplo, a teoria de Whitehouse. É óbvio que as gerações de judeus que


não viveram nos campos de concentração, não sofrem a mesma dor que
os seus antepassados que ali estiveram. No entanto, como nos ensinou
Paul Ricoeur (1994), é importante distinguir dor de sofrimento: a
história também pode ser sofrimento e também pode ser vivida como tal.
O trauma pode transmitir-se de pais para filhos e a dor anteriormente
vivida pode ser revivida, embora de formas distintas, pelos descendentes
daqueles que a viveram. Como Lacapra argumenta, no seu livro sobre a
memória e o holocausto, uma distinção entre ‘memória’ e ‘história’ iria
confundir mais do que esclarecer a relação que existe entre o povo judeu
e o seu passado mais recente (Lacapra 1998). A Shoah coloca também
um problema ético muito delicado sobre a aceitação do sofrimento, pois
podemos interrogar-nos até que ponto o esquecimento não seria melhor
para os judeus que não viveram o Holocausto. Todavia, ainda hoje, para
a sua maioria as expressões ‘pare de sofrer!’ ou ‘sofre-se porque se
quer’, que mencionámos anteriormente, constituiriam um insulto à sua
identidade e à história do seu povo.
Julgo que, tal como na Shoah, a Europa irá assistir proximamente
a um período de profunda reflexão sobre outros sofrimentos que a
história da humanidade conheceu recentemente – e, muito especial-
mente, a do povo africano, que agora temos como vizinho em Loures e
em tantos outros bairros das grandes metrópoles europeias. Até há bem
pouco tempo, o sofrimento africano estava longe das nossas casas, era
um sofrimento ‘à distância’, como disse Boltenski (1993), mas isso irá
mudar em breve: hoje estamos rodeados de membros de gerações de
africanos para quem a dolorosa memória histórica do tráfico de
escravos, da colonização, da objectificação e da desumanização não
deve desaparecer. E, de facto, não pode desaparecer, porque ela já faz
parte do próprio habitus quotidiano de muitos cidadãos da África pós-
colonial, como Nick Argenti nos mostrou na sua etnografia sobre a
persistência da memória e do trauma escravagista nos Grassfields dos
Camarões (Argenti 2007).

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CONCLUSÃO

O, I have suffered with those that I saw suffer


Miranda (Tempest I, 2)

Recuperando uma distinção de Max Scheler (1943: 29-58) –


depois elaborada por Hannah Arendt (1967: 82-165) – Luc Boltenski
recorda-nos, na obra que acabo de citar, que uma coisa é ‘ver sofrer’ e
outra é ‘sofrer com’ (Boltenski 1993: 15-37), embora, na maioria das
vezes – como Shakespeare já nos tinha alertado muito antes destes
autores nas dolorosas palavras de Miranda – ‘ver sofrer’ se converta
em ‘sofrer com’, porque a nossa humanidade nos conduz indefectivel-
mente à ‘empatia’6. Os diversos sistemas éticos africanos que estudei
insistem nesta participação do sofrimento humano. Os membros da
igreja tocoísta, estudada pelo meu colega Ruy Llera Blanes, para quem o
sofrimento é também uma forma de entender a memória (Blanes 2009),
tratam-se por ‘irmãos co-sofredores’. Um velho baga disse-me, em certa
ocasião, de forma mais elíptica e metafórica, própria da comunicação das
sociedades sem escrita, que ‘quando se pisa a cauda a um macaco, a dor
sobe-lhe até à cabeça’ pois não é apenas a cauda do animal que sente a
dor mas o animal no seu todo. Transpondo esta imagem para o corpo

6 Talvez seja conveniente recordar que a teoria de Scheler, neste aspecto, é complexa e,
de facto, considera quatro factos distintos: o ‘imediato sentir algo com outro, o ‘simpati-
zar em algo com outro’; o ‘mero contacto afectivo’ e a ‘genuína unificação afectiva’
(Scheler 1943: 29). A empatia (ou ‘simpatia’, no vocabulário de Scheler) tem sido o
ponto de desencontro entre as ciências do espírito da escola alemã, baseadas em Dilthey
e Scheler, ciência orientada para a compreensão (verstehen), e as ciências naturais
empíricas, especialmente as cognitivas (Sperber, Boyer, Whitehouse), muito mais
orientadas para a explicação e dentro das quais a empatia é uma ilusão de que devemos
prescindir. No entanto, hoje há pontos de encontro muito interessantes, pois através do
estudo científico do funcionamento do cérebro e do seu desenvolvimento cognitivo está
a conseguir demonstrar-se que, com efeito, a empatia, ou seja, a faculdade que nos
permite perceber os nossos semelhantes como nossos semelhantes, pode ser explicada
cientificamente. Convido o leitor a ler, em especial, o artigo de Gallese (2003), que
apresenta um feliz encontro entre a explicação científica e a compreensão hermenêutica.

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social, a dor que os primeiros tocoístas ou os primeiros kimbanguistas


sofreram durante a repressão colonial não acabou após a sua morte. Tal
como o sofrimento da Shoah, ela foi transmitida às gerações seguintes,
aos descendentes daqueles que sofreram a dor, convertendo-se em
história e num modelo para compreender a condição humana.

CODA

O leitor ou leitora terá observado que ao longo deste texto apenas


falei daqueles que sofrem o sofrimento, mas não dos que o infligem.
Certo dia, um pastor Kimbanguista disse-me: ‘Deus disse que temos de
amar o próximo e isso é o mais difícil, porque significa que tens de
amar quem sabes que te odeia’. Esta frase, de uma enorme
profundidade espiritual, levar-nos-ia a discutir a transição da ética do
sofrimento à ética do perdão. Mas essa é, obviamente, outra história e
será contada numa outra ocasião.

BIBLIOGRAFIA

ANDERSON, B., 1983, Imagined Communities, Londres e Nova Iorque:


Verso.
ARENDT, H., 1967, Essai sur la révolution, Paris, Gallimard.
ARGENTI, N. 2007, The Intestines of the State: Youth, Violence and
Belated Histories in the Cameroon Grassfields, Londres e Chicago,
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Capítulo 2

Hepatite C:
Vivência da doença, do tratamento e da cura

Marta Maia*

* CEAS / CRIA, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa


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INTRODUÇÃO

Desde que tomou a saúde e a doença como um objecto de estudo, a


antropologia questionou: os sistemas etiológicos e terapêuticos, profanos
e biomédicos (Laplantine 1986); as concepções da saúde e da doença, do
normal e do patológico (Canguilhem, 1966); as «ideo-lógicas» da saúde
e da doença (Augé e Herzlich 1984); a relação médico-paciente
(Fainzang 2007; Friedson 1984; Helman 2003); as conexões entre o
sociocultural e o orgânico, nomeadamente a descrição dos sintomas (Zola
1966), a gestão da dor, a reacção à dor (Kleinman 1988; Zborowski
1952); as políticas e instituições de saúde (Carricaburu e Ménoret
2004; Fassin e Brücker 1989; Fassin e Jaffré 1992; Fassin e Memmi
2004; Peneff 1992); a distribuição social (Boltanski 1971; Bonnet
2000) e os aspectos culturais da saúde e da doença (Dufresne, 1985;
Grmek 1983; Helman, 2003; Herzlich 2000; Trostle 2005).
Numa perspectiva heurística, tentei explorar o caso da hepatite C,
uma doença particular pelos seguintes motivos: é crónica mas tem
cura; apresenta poucos ou nenhuns sintomas mas o seu tratamento tem
habitualmente muitos efeitos indesejáveis, tornando-a sintomática no
momento da tentativa de cura, o que cria um paradoxo, na vivência da
doença, entre o processo de entrada na cura e o estado de debilidade
causado pelo seu tratamento; e é relativamente pouco conhecida apesar
de atingir 3% da população mundial.

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O campo escolhido para tal foram os fóruns na Internet, tendo em


conta os novos espaços de socialização que proporciona a Internet, a
importância crescente destes espaços na gestão e vivência da doença e a
relevância deste meio de comunicação, não apenas pela democratização da
Internet mas também porque permite uma conexão com os outros sem sair
de casa, o que é, como veremos, fundamental para certos doentes em trata-
mento, cujos corpos se encontram debilitados pela medicação mas cujas
necessidades de apoio e compreensão urgem nesse período específico.
O enunciado e a avaliação da doença são atravessados por signifi-
cados. A doença toma sentido para o doente como para as pessoas que
o rodeiam. Ora, numa sociedade em que a Internet tem um lugar cada
vez maior enquanto fonte de informação e meio de comunicação, os
fóruns de discussão adquirem uma importância crescente como espaço
de expressão da experiências e dos significados da doença.
O trabalho de campo foi desenvolvido em França, no quadro de
uma investigação pós-doutoral, com o apoio financeiro da Fundação
Calouste Gulbenkian et da Fédération SOS Hépatites.
Cerca de cento e oitenta milhões de pessoas são portadoras do
VHC (vírus da hepatite C) no mundo. Em França, cerca de seiscentas
mil pessoas estão infectadas pelo VHC, ou seja, quase 1% da população1.
A hepatite C é uma doença viral transmissível pelo sangue e por via
materno-fetal, que pode tornar-se crónica. Até 1992, não eram tomadas
as medidas necessárias para impedir a transmissão do vírus através das
doações de sangue, intervenções cirúrgicas, actos médicos invasivos, etc.
A severidade da doença hepática ligada ao VHC é variável, mas pode
provocar uma cirrose ou mesmo um cancro do fígado (Cimbidhi 2003).
O tratamento actual da hepatite C consiste numa biterapia que
associa dois medicamentos: o interferão pegilado e a ribavirina. Este
tratamento apresenta cerca de 50% de possibilidade de seroconversão, ou
cura. Mas os seus efeitos indesejáveis são numerosos – depressão, febre,
dores musculares, dores de cabeça, cansaço, náuseas, perda de peso,

1 Valor, contudo, inferior ao estimado para a população portuguesa, de 1,5%.

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alopecia, perturbações do gosto, perturbações do sono, perturbações


psicológicas, perturbações oculares, pele seca, acne, neutropenia, disfun-
ções da tiróide, etc. – e provocam um abandono do tratamento para 15%
dos doentes que o iniciam (Pawlotsky e Dhumeaux 2004). De acordo
com um estudo realizado em 2002 (SOS Hepatites 2003), 75% dos paci-
entes afirmam que a hepatite perturba a sua vida quotidiana. Em primeiro
lugar, a doença provoca frequentemente um cansaço crónico. Em segundo
lugar, obriga a um acompanhamento médico regular, que por sua vez
reaviva a consciência da presença da doença e o sentimento de se ser
doente. Por último, para os doentes sob tratamento, os efeitos indese-
jáveis podem ser particularmente importantes, impedindo-os de trabalhar
e de, parafraseando um paciente entrevistado, «ter uma vida normal».
A infecção pelo VHC é a causa mais frequente das hepatites crónicas
virais2. Trata-se de uma doença crónica que, por vezes, é detectada vários
anos após a infecção, e o doente passa, regra geral, vários anos antes de
iniciar uma terapêutica3.
Existem em França dezenas de associações de doentes de hepatites4.
A invenção do termo hépatant para designar os membros das associações
de doentes deve-se a um membro da associação SOS Hépatites. O termo
alargou-se depois a todas as pessoas que vivem com uma hepatite5.

METODOLOGIA

O presente trabalho debruça-se sobre a vivência da hepatite C e a


identidade do doente com esta patologia Numa época em que o acesso

2 Existem, além da hepatite C, outras formas de hepatite viral, tais como a hepatite A, B e
Delta. Existe vacina para estas últimas mas não para a C.
3 Habitualmente, o tratamento é iniciado quando o fígado do doente começa a apresentar
lesões, a chamada fibrose.
4 Em Portugal, contamos apenas com uma asociação, a SOS hepatites, sediada em Lisboa.
5 Além das hepatites virais, existem as hepatites alcoólicas, medicamentosas, auto-imunes
e fulminantes.

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à Internet se democratiza e os fóruns de discussão sobre as hepatites se


multiplicam, trata-se de perceber o que as pessoas infectadas pelo VHC
exprimem a respeito das suas experiências da doença, nestes espaços
de comunicação virtuais e anónimos. A Internet permite o anonimato,
o que conduz as pessoas a exprimirem-se livremente sobre as suas
vivências, impressões, angústias, etc.
Começei por classificar as informações recolhidas nos fóruns de
discussão na Internet, em 2004. Entrei posteriormente em contacto com
membros destes fóruns de discussão, em 2005, para realizar entrevistas
semi-directivas, a fim de melhor compreender as suas biografias de
doentes e no intuito de penetrar os significados dos discursos dos
hépatants. A confrontação dos dados recolhidos revelou realidades
compartilhadas por um grande número de pessoas, para além da
diversidade dos seus percursos biográficos.
Encontrei e entrevistei cinco mulheres e cinco homens com idades
compreendidas entre os 30 e os 65 anos e residentes na área metro-
politana de Paris. As entrevistas foram gravadas com o acordo das
pessoas inquiridas, cujos nomes foram alterados por razões de
confidencialidade. Os testemunhos apresentados aqui, colocados entre
aspas e em itálico, foram traduzidos do francês.
Procurou-se saber até que ponto a doença, o tratamento e a cura
influenciam tanto o quotidiano do doente como a sua identidade, a
representação que tem de si e dos outros, os não-doentes. Reflectiu-se
sobre a questão da identidade do doente, num contexto em que surge a
formação de grupos de doentes através de associações de doentes e
fóruns de discussão na Internet, tornando o apoio «inter-pares» muito
importante na vida do doente com hepatite viral.
O quadro teórico que sobressaiu como mais adequado à análise
deste caso foi o da teoria narrativa (Bruner 1987; Good e Good 1993;
Holstein e Gubrium 2000; Hydén, 1997; Kleinman 1988; Laplantine
1999; Ricoeur 1985; Rowan e Cooper 1999).
O doente não é apenas uma entidade biológica e a doença não é
apenas uma disfunção biológica, pois um corpo é sempre o corpo de

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alguém, com uma existência singular, com um passado, um presente e


um futuro. O corpo é também o local onde se elaboram as relações
entre o ego e o mundo (Draperi 2004; Leibing 2004). O corpo é mais
do que o suporte físico da existência, ele situa o indivíduo nos espaços
intersubjectivo, social, cultural e histórico. São estes espaços que a
doença e, no caso da hepatite C, o processo de cura, modificam
qualitativamente. A mudança da relação com o mundo provocada pela
declaração da doença é descrita desde o início do século XX em vários
trabalhos (Burry 1982; Charmaz 1983; Herzlich e Pierret 1984;
Laplantine 1986; Ménoret 1999; Scarry 1985).
O corpo médico, o corpo do doente e o corpo social constituem os
vectores do enunciado, da definição e da vivência da doença. Como
entidade nosológica, a doença é uma realidade identificável em termos
orgânicos; como experiência subjectiva, manifesta-se nas histórias de
vida, nas histórias singulares dos sujeitos, local de estruturação,
destruturação e restruturação da identidade pessoal e social, e nas
relações intersubjectivas (Duarte e Leal 1998; Guibentif 1991; Leibing
2004). Debruçar-se sobre estas histórias implica considerar a
articulação de três questões intimamente ligadas: a da definição médica
da doença, a sua expressão pelo doente e a partilha dos dados médicos
e da experiência da doença entre o médico e o doente, entre o doente e
as pessoas que o rodeiam, e entre doentes. Os fóruns de discussão na
Internet são um espaço de encontro entre doentes, conheçam-se eles
pessoalmente ou não, que partilham as suas vivências da doença e
constroem redes de inter-ajuda. São espaços onde se constroem
narrativas, expressões simbólicas que instroem sobre o drama social da
doença, o processo experiencial da doença, a construção do seu
significado e a tomada de decisões na vida do doente (Langdon, 2001).
O corpo tem uma existência e é carregado de sentido. A lingua-
gem da doença inscreve-se nesse corpo, que a antropologia tenta
apreender através de uma abordagem que tome em conta os signi-
ficados e as lógicas dos comportamentos (Augé e Herzlich 1984;
Schutz 1971). Através de histórias pessoais, tenta-se descrever o

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aparecimento e a gestão da doença no quadro de existências singulares,


no seio das quais o indivíduo tenta dar coerência aos acontecimentos.
O surgimento da doença suscita a necessidade de a nomear, compre-
ender a sua origem, dar-lhe sentido através de uma «rede semântica»
(Good 1998), um conjunto de noções e símbolos que estruturam a
experiência da doença, assim como a necessidade, para o indivíduo, de
recompor a sua identidade (Bury 1982; Charmaz 1983). A narrativa
explica o que aconteceu e o que está acontecendo e instrui acerca da
acção, do modo como o indivíduo vai gerir a doença (Langdon, 2001).

O HÉPATANT

A identidade pode ser considerada como um sistema de


representações e de sentimentos a partir do qual se pode categorizar ou
singularizar pessoas e grupos, que se definem e diferenciam dos outros.
A identidade é composta por uma configuração de elementos identitários
ligados a grupos nos quais participa o indivíduo; uma combinatória de
elementos que ele mobiliza em função das circunstâncias, uma
diversidade que gere esforçando-se por não ser dividido por ela. Num
processo biográfico movente, o indivíduo recompõe permanentemente a
sua identidade (Dortier 1998; Kaufmann 2004).
Um grupo tem uma identidade específica quando os seus
membros, assim como os não-membros, reconhecem as suas especifi-
cidades (Tap 1980). Ora, cada indivíduo participa na vida social de
vários grupos, tem várias identidades, ou seja, a sua identidade pessoal
enraíza-se numa pertença a várias identidades: nação, região, classe
social, sexo, geração, grupo profissional, etc. (Berting 2001). A doença
é, portanto, apenas um ingrediente na composição complexa da
identidade dos nossos entrevistados, mas nem por isso deixa de
merecer a nossa atenção, pois constitui um elemento com uma
importância relevante para a construção da identidade pessoal,

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tornando-se também um elemento de identificação com os outros


doentes.
Esta investigação desenvolveu-se em França e importa referir que
existeneste país uma palavra original para designar os portadores de
uma hepatite crónica, inventado por um activista da associação SOS
Hépatites: hépatant, com h, como hepatite, neologismo que se
confunde com o termo épatant, sem h, que significa espantoso. O facto
de existir um termo específico para designar um grupo de pessoas com
uma característica comum afigura-se um primeiro revelador de uma
consciência de grupo destes doentes, unidos pela consciência de uma
doença comum, pela partilha das suas histórias de vida e pelas relações
e diálogos que estabelecem entre eles através da Internet6.
Existem termos médicos frequentemente utilizados pelos hépatants
nos fóruns de discussão, dificilmente compreensíveis numa primeira
abordagem. As abreviaturas utilizadas, assim como certas expressões
particulares, acrescentam uma dificuldade suplementar a essa compre-
ensão pelos neófitos, sublinhando a distinção entre os membros, os
hépatants, e os outros. São exemplos disso os termos, abreviações e
expressões seguintes:
transa = transaminases
ES = efeitos secundários
ttt = tratamento
INF = interferão
riba = ribavirina
QDV = qualidade de vida
MG = médico generalista ou médico de família
INF lambda = interferão não pegilado7
malade lambda = doente que não possui muitos conhecimentos sobre as hepatites.

6 A existência de termos específicos está, em parte, ligada à existência de associações de


doentes, que é reveladora da consciência do doente enquanto tal. Em Portugal, onde se crê
que 1,5% da população esteja infectada pelo VHC, a mobilidade associativa é muito fraca.
Só em 2005 é criada uma associação de doentes hepáticos, a SOS Hépatites Portugal. Ver
em linha http://hepatitec.blogs.sapo.pt/ [acedido em 1de Dezembro de 2006].
7 O interferão pegilado, mais eficaz que o “clássico”, surge em 2001.

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O que leva estes indivíduos a procurarem fóruns de discussão


sobre as hepatites na Internet, é sobretudo a busca de informação, a
procura de reconforto e a necessidade de diálogo com pessoas que têm
a mesma doença, tidos como «pares». A necessidade de partilhar
informações, experiências e sentimentos com outros doentes nasce ou
reforça-se com o início do tratamento. Com efeito, Os hépatants falam
dos membros que já passaram pela experiência, frequentemente
penosa, do tratamento como «iniciados». Nota-se em alguns discursos
uma valorização daqueles que já levaram a cabo vários tratamentos.
Exibe-se por vezes o número de tratamentos como medalhas de
condecoração ou provas de coragem e elogiam-se aqueles que as
possuem. Transforma-se essa experiência dolorosa em instrumento de
valorização de si. Também são alvo de elogios e felicitações aqueles
que acedem à cura, como se o doente fosse o único merecedor por esse
feito. O doente é assim valorizado (Taïeb, Heidenreich, Baubet, e Moro
2005).
Frequentemente, o sentimento de estar doente surge apenas com o
primeiro tratamento, pois a doença permanece imperceptível durante
vários anos, sem sintomas muito visíveis. O tratamento, isto é, o facto
de tomar medicamentos, por um lado, e de se sentir mal fisicamente
e/ou psicologicamente devido aos seus efeitos indesejáveis, por outro
lado, torna a doença tangível, traz consigo o sentimento de estar
doente, e mesmo de ser doente.
«[o primeiro tratamento] era ainda com o interferão três vezes por
semana, mas tive doses de indução, tive doses de dez milhões de
unidade durante quinze dias, e aí, efectivamente, estava tão fraca que
realmente senti-me doente e aceitei o rótulo de ser doente.» [Mireille,
45 anos, em tratamento]

A necessidade de contactar com outros doentes prende-se igual-


mente com o sentimento de ser incompreendido. Os outros, os não-
-doentes, não podem entender o que significa ter hepatite C e sobretudo
fazer o tratamento.

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«As outras pessoas não percebem nada... As pessoas que não têm uma
hepatite, não lhes podes falar disso, quero dizer, é como com qualquer
outra doença, apercebes-te rapidamente que as outras pessoas não
conseguem partilhar aquilo que te está a acontecer... Como queres
que compreendam, as pessoas? Não é possível. É necessário teres
vivido tu mesmo as coisas, porque... Bom, além disso, eu não tinha ar
de doente, estás a ver... Além disso, durante o meu tratamento, tinha
engordado muito, por isso... Sim, podia-se ver que tinha engordado,
mas tinha ar de quem está boa de saúde. (...) Por isso, as pessoas, se
não ficas muito magra e toda... estás a ver...» [Aline, 50 anos, último
tratamento terminado poucos meses antes da entrevista, realizada em
2005]

Existe um sentimento de pertença a um grupo que partilha uma


experiência comum, a crença que os outros «não sabem» e «não podem
entender» o que ela significa, e um desejo de comunicar com os
membros desse grupo. O diálogo passa pela Internet mas também por
encontros organizados a partir dos fóruns de discussão e de grupos de
auto-ajuda de associações de doentes.
A incompreensão dos outros prende-se sobretudo com uma
incapacidade em ter plena consciência do sofrimento quotidiano do
paciente, a dificuldade em apoiá-lo a longo prazo, tendo de fazer frente
a dificuldades várias e a um sentimento frustrante de incapacidade para
resolver os problemas que coloca a doença. Neste contexto, os doentes
afirmam que os únicos capazes de compreendê-los são os outros
doentes, o que os leva a procurar associações de doente e fóruns de
discussão na Internet acerca da doença que os afecta. Opera-se, por
conseguinte, uma reconfiguração relacional, a par com uma recom-
posição identitária. A hepatite e o seu tratamento situam o indivíduo
numa dependência dos outros doentes hepáticos. O facto de se sentirem
«entre pares» torna a sua palavra mais livre e oferece-lhes o conforto
da certeza de serem compreendidos. A narrativa ganha sentido por
endereçar-se a alguém que partilha uma experiência similar. Ancorados
nessas experiências comuns, os outros podem contribuir para a

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narrativa do sujeito e participar no trabalho de tecelagem dos aconteci-


mentos numa trama com sentido e coerência. A narrativa em diálogo
influencia o modo como o indivíduo percepciona a sua existência e
constrói a sua narrativa. As questões colocadas pela doença são produ-
zidas para si, para os outros e com os outros (Quinche 2005). Além
disso, a imediação deste meio de comunicação possibilita um trabalho
de configuração do sentido dos acontecimentos biográficos no presente.
A mise-en-scène, a apresentação de si é imediatamente comentada
pelos outros membros do fórum e edifica-se ao longo das mensagens
escritas, acompanhando os acontecimentos biográficos do sujeito.
A pertença a um grupo de pacientes ou uma associação é uma
originalidade do auto-prestador de cuidados de saúde no qual se torna o
doente crónico. Este deseja quebrar o isolamento e procura um eco das
suas experiências e dúvidas. Quando o apoio social é insuficiente, as
associações prestam uma ajuda considerável, fornecendo serviços
sociais e jurídicos, informação sobre a doença e os tratamentos, apoio
psicológico e emocional, assim como um lugar de sociabilidade e
encontros (Adam e Herzlich 2002). Estas associações fazem prova da
importância do apoio emocional, psicológico, social e mesmo material,
na gestão da doença.
Existem numerosas estruturas associativas no contexto das
doenças crónicas. O caso do VIH/SIDA é particularmente marcado
pela mobilização associativa. Em França, nasceram também redes
associativas em torno do problema de saúde pública que representam
as hepatites, tais como os Pólos de Referência e Redes Hepatites8.
Estas entidades têm como objectivo a informação e o apoio das pessoas
afectadas pelas hepatites. O diálogo com pessoas que compartilham
uma experiência comum traz ainda o benefício da luta contra o
isolamento e a auto-estigmatização, pacificando a relação do paciente
com a sua doença (Fainzang 1989, 2001).

8 Fédération Nationale des Pôles de Référence et Réseaux Hépatites. Disponível em:


http://www.hepatites-info.com [acedido em 2 de Janeiro de 2007].

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No caso da hepatite C, é sobretudo o tratamento que acarreta o


sentimento de estar/ser doente. De facto, os efeitos indesejáveis do
tratamento são por vezes tão importantes que o doente se vê obrigado a
uma baixa médica. É neste momento que os laços com os outros
doentes membros de fóruns de discussão na Internet se tornam mais
sólidos. Por vezes, nascem apenas a partir desse acontecimento
biográfico. O doente, sem energia para sair de casa, vê nesses sites um
espaço de ligação ao mundo, mas não um mundo qualquer, o mundo
dos hépatants, os únicos capazes de o compreender, os únicos com os
quais, nesse período difícil, consegue manter uma relação.
«Dei-me conta que havia um grande número de pessoas no mesmo
caso, porque obviamente, vês passar os pseudónimos, vês que são os
mesmos... Por exemplo, era a primeira coisa que eu fazia de manhã ao
acordar. Ligava o meu PC e lia as novas mensagens no site
hepatites.net. Estava aberto em permanência. Por isso, passava o meu
tempo entre o meu computador, a minha cama e o meu sofá. (...)
Durante o tratamento, há momentos em que dás em doida... Pensas:
“Não é possível, estou farta, isto tem de acabar, vou parar o trata-
mento, não posso mais, porque estou de rastos, porque não tenho mais
vida”, coisas assim. E aí, todas as pessoas com quem já falaste [nos
fóruns de discussão], estão aí todas para te dizer: “tens de te aguen-
tar, isso vai passar...” e tudo o que precisas... E, além disso, é verdade
que ajudar as pessoas, em todo o caso tentar ajudar, permite... estás
no teu pequeno canto, quase no teu pequeno feto, e... interessas-te
pelos outros, permite-te voltar a interessar-te pelos outros, estás a
ver? Porque uma pessoa a quem falaste com o teu coração uma vez,
porque sentias que não estava bem, depois tens vontade de saber
como é que ela está. Por isso, apetece-te continuar a seguir as
histórias, e... isso permite não se sentir completamente fora do mundo.
Porque é esse o problema, é que te sentes completamente fora do
mundo. E isso [os fóruns de discussão] mantem uma relação.» (Aline)

«Não saía, estava num buraco... Estava num pequeno estúdio, de vinte
metros quadrados (...) Estava debaixo de uma mezanine, com estantes

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em toda a volta, aquilo fazia como uma espécie de pequena prisão... E


estava numa grande poltrona em pele, de escritório, sabes, de
director, que se move em todas as direcções, e pronto. Passei um ano
assim, em frente ao computador.» [François, 40 anos, último trata-
mento terminado poucos meses antes da entrevista, realizada em 2005]

Os fóruns de discussão na Internet permitem ao doente narrar a


sua doença e o seu percurso biográfico de doente. A escrita torna-se
uma salvação para o doente em tratamento. A narrativa dá coerência aos
acontecimentos dispersos, dando-lhes sentido, e contribui para a
construção da identidade pessoal. Narrar é reconfigurar a percepção do
vivido inserindo os acontecimentos numa trama significativa (Laplantine
1984; Ricoeur 1990). Os fóruns de discussão na Internet permitem uma
narrativa-diálogo. A construção do sentido opera-se através de uma
narrativa dialógica, onde o discurso é endereçado, partilhado e
discutido. A relação que se estabelece com os outros doentes torna esta
forma de narrativa particular porque dialógica (Quinche 2005). Além
disso, o facto de ler as histórias dos outros doentes, dos «pares», permite
ao indivíduo melhor situar e definir a sua própria história de vida.

O FIM DO TRATAMENTO E A CURA

O que acontece com aqueles que terminam o tratamento e que se


curam? Identifiquei dois casos de figura, ambos implicando uma «fase
difícil» e uma «renovação» ou uma «mudança»: aqueles que fazem
«uma viragem a 180 graus (...) o luto da doença» [Catherine, 38 anos,
um tratamento que não foi levado até ao fim], que cortam totalmente os
laços com tudo aquilo que recorda a doença; e os que permanecem
ligados, de uma forma ou de outra, à doença. São aqueles que,
membros activos de uma associação, dão continuidade ao contacto
com o «mundo das hepatites» e se definem como «curados» ou até

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como «doentes curados», expressão que sublinha o elemento identi-


tário em que se tornou a doença, apesar desta já não estar presente no
corpo. Há uma necessidade de relembrar a experiência da doença, de
não abdicar deste elemento identitário. Continuam a contactar com
doentes através dos fóruns de discussão na Internet e a desenvolver os
seus conhecimentos sobre as hepatites, nomeadamente no quadro das
actividades associativas.
A cura implica uma fase difícil e uma renovação ou uma mudança,
tanto para os que fazem o luto da doença e se separam de tudo aquilo
que recorda a doença como para os que permanecem ligados a ela. A
cura é encarada como uma situação difícil porque se viveu anos de um
determinado modo, indo ao médico regularmente, não bebendo álcool,
etc., com a consciência da presença de um vírus, e depois da cura:
«tudo desaparece. (...) De repente, o teu inquilino vai-se embora!»
[Catherine].

Mas também porque exige uma recomposição identitária. A


mudança no quotidiano como na percepção de si, provocada pela cura,
acarreta uma perturbação identitária que o indivíduo vai tentar resolver.
A pessoa infectada com o VHC que faz um tratamento e acede à cura
passa, portanto, no seu percurso biográfico de doente, por duas
mudanças que têm implicações na sua identidade: toma consciência do
seu estado de doente – com o tratamento e os efeitos secundários que ele
acarreta – e deixa de estar/ser doente – com a cura, depois do tratamento.
Assim, um dos entrevistados, para quem o tratamento constituíu uma
primeira alteração do seu quotidiano, a entrada num processo de
cuidados de saúde e uma mudança da percepção que tinha de si, iniciou
uma psicoterapia não durante o tratamento, como lhe aconselhara o
médico, mas depois, quando se viu enfim curado. A cura representa uma
segunda alteração: uma mudança de estilo de vida e de estatuto.
«Parei com o álcool no início do tratamento... porque fiz quarenta
anos (...) e também porque começava o tratamento quinze dias

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depois9. (...) Pensei: “preciso começar a mudar ou encontrar solu-


ções... Estou gravemente doente...” Pesava cem quilos para um metro
e setenta, tinha os cabelos compridos, oleosos... Não era o mesmo.
Por isso decidi aproveitar. Pensei: “bom, vou estar doente durante um
ano, é melhor mudar tudo.” Deixei de fumar. Fumava desde a adoles-
cência. Por isso, disse para comigo: “mais vale sofrer durante um
ano, pôr tudo no mesmo cesto, mas pelo menos fico desembaraçado
(...) O tratamento vai acabar por limitar-me, mais vale aproveitar...”
Havia como uma ideia de reparação. Há quinze anos que andava
cansado por causa do vírus da hepatite C, cansado cronicamente...
Pensei: “bom, é uma oportunidade para arranjar isto tudo”. A priori,
livrar-se do vírus é uma reparação, tanto melhor reparar realmente,
reparar-se totalmente, como se repara um veículo, pronto. Tanto
melhor reparar tudo ao mesmo tempo. (...) Voltei para casa dos meus
pais, onde cresci. Para o meu quarto de criança. Talvez seja simbó-
lico... Além disso, isso acompanha a psicoterapia, retomamos tudo o
que se passou na infância (...) É uma segunda vida que começa,
talvez... Volto ao ponto de partida...» [François]

A fase de tratamento é vivida como um momento ambíguo, pois


destabiliza a pessoa, o seu quotidiano, a imagem que tem de si, as suas
relações com os outros, a percepção que tem dos outros, mas trás a
esperança de uma cura e, consequentemente, de uma melhor qualidade
de vida e de uma esperança de vida mais longa. É também um
momento em que o indivíduo está «mergulhado na doença», é um
«parentesis na vida». Ora, ao sair desse parentesis, o indivíduo precisa
recompôr a sua identidade, enquanto não-doente e por vezes também
enquanto ser social que trabalha, tem relações sociais, tem uma vida
sexual activa, etc. Deve integrar novos elementos identitários para dar
coerência à representação de si, integrando a experiência da doença.
Um processo de recomposição da identidade que é, aliás, acompanhado
de um processo de «reconstrução» física, visto que o paciente, durante

9 O consumo de álcool é desaconselhado às pessoas que têm uma hepatite.

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alguns meses, recupera o seu peso, os seus cabelos, o equilíbrio da sua


pele, a sua vitalidade, o equilíbrio psicológico, a actividade sexual, etc.
Quando «sai da doença», o indivíduo pode então sentir um
«vazio». Porque “perdeu” o vírus, os laços sociais decorrentes do
estatuto de doente, tais como o médico, o psicólogo e os doentes dos
grupos de auto-ajuda, e também uma parte da sua identidade, a
identidade de doente.
«– Como te sentiste depois do tratamento e de ficar curada?

– Isso é justamente uma coisa um bocado esquisita, acredita, porque


durante o meu tratamento, senti-me um pouco como... Estava doente
mas, ao mesmo tempo, tinha muito apoio, psicologicamente, tinha o
psiquiatra que me acompanhava, tinha o psicólogo, havia o meu
gastrenterologista que me seguia de perto, mesmo o meu médico de
família, escutava-me e isso... Bom, além disso, havia o site
hepatites.net que tem-me realmente... quero dizer, estava o tempo todo
no site... Aquilo realmente ajudou-me muito... E, por isso, no fim do
tratamento, de repente... É como se tu... Tudo pára de repente... O
tratamento pára, por isso, é suposto não precisares mais de ajuda... És
completamente despossado da tua vida... É pouco como quando páras
com a droga, quero dizer... Quando és alcoólico, por exemplo, o
espírito é preenchido por aquilo que te está a acontecer, quer o álcool,
quer a droga ou, portanto, a hepatite... Eu só pensava nisso, estás a
ver, estava aqui para me tratar e pensava apenas nisso. E, por isso, de
repente, é suposto sentires-te bem porque está tudo acabado, mas tu já
não tens nada com que preencher a tua vida... Isso chocou-me, era
muito esquisito...» [Aline]

Ainda que hajam variações individuais quanto à vivência da


doença, do tratamento e da cura, há certamente «um antes e um depois
da hepatite», como dizia um dos indivíduos entrevistados que, após o
diagnóstico da hepatite deixou de ser alcoólico, durante o tratamento
divorciou-se, no final do tratamento começou uma psicoterapia e, uma
vez curado, alterou os seus hábitos alimentares, tornou-se vegetariano e

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mudou de residência. A cura representa pois outra ruptura biográfica,


após a do anúncio da doença e a do início do tratamento. É um
momento difícil que pode também causar sentimentos de culpa. Uma
culpabilidade por ter «conseguido» a cura quando outros «não conse-
guem» (Maia 2008).
A narrativa «em linha» – na Internet – permite obter um senti-
mento de controlo da situação difícil, fornecendo mesmo estratégias
para a sua resolução, mediante a interacção com os «pares» que servem
de suporte psicológico e social além de funcionarem como receptores
empáticos e compreensivos das mensagens do doente.
A cura pode gerar um sentimento de perda dos benefícios secun-
dários (isto é, aquilo que aparece como benéfico no estatuto de doente)
ao paciente habituado a ser recebedor de cuidados e objecto de uma
particular atenção por parte dos que o rodeiam, a ter um conforto social
e afectivo particular, apoios sociais suplementares, etc. (Shützenberger
2009). Ora, a narrativa «em linha» ajuda o indivíduo a resolver o
conflito provocado pela cura enquanto ruptura biográfica, prolongando
o espaço de construção de sentido e recomposição identitária durante a
fase de transição entre o estatuto de doente e o de curado.

CONCLUSÃO

Nas representações sociais, a doença está associada ao patológico


(Canguilhem 1966), à incapacidade e ao risco de morte (Kleinman
2002), o que provoca, para o doente, uma desvalorização de si e
mesmo uma ansiedade perante a morte (Herzlich e Pierret, 1984). O
anúncio da doença crónica é vivido como uma ruptura biográfica. O
doente começa por rejeitar este novo estatuto anunciado pela presença
de uma doença crónica que, como um carimbo aposto no corpo,
modifica a imagem de si (Adam e Herzlich 2002). Por vezes, o doente

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não entra imediatamente num processo de cuidados de saúde e recusa


desempenhar o papel do paciente, particularmente em dar início a um
acompanhamento médico e a uma terapêutica, temendo que a doença
invada toda a sua existência e a sua identidade pessoal (Evans, Barer, e
Marmor 1996).
«Durante anos meti a cabeça na areia, ou seja, não queria fechar-me
nessa coisa, no inferno médico… Continuei a viver sabendo muito bem
que devia estar infectado... Tomava as precauções habituais…
Naquela altura, era toxicodependente… Não emprestava a minha
seringue, mas frequentava apenas pessoas… (…) E é verdade que não
me via sair daquele esquema, porque sair daquele esquema ter-me-ia
obrigado a fazer um teste e a ser confrontado com a realidade… (…)
Não ia ver o médico porque negava a realidade e acabei por ir parar
às urgências...» [Boris]

A desdramatização da doença é outra das reacções face ao anúncio


do diagnóstico, que ajuda o paciente a gerir tanto a doença nos seus
aspectos orgânicos, corporais como este novo elemento biográfico e
identitário: o estatuto de doente crónico. O paciente pode ainda inverter a
escala de valores associada à doença crónica e percepcioná-la como
«algo de bom», percebendo-a sob um ângulo diferente do do infortúnio
(Taïeb e cols. 2005).
«A mim, a doença trouxe-me muitas coisas boas. Sou certamente
muito diferente do que seria... Penso ser uma pessoa melhor do que
teria sido... Porque a escala dos valores torna-se muito diferente... Eu
sempre fui muito tolerante, mas agora sou-o mesmo, realmente. E
depois, porque nada é grave.» [Virginie, 41 anos, co-infectada VIH-
VHC há 20 anos]

A fase do tratamento é vivida como um momento ambíguo


porque, por um lado, destabiliza o indivíduo, o seu quotidiano, a
imagem de si, as relações com os outros e a percepção que tem dos
outros, por outro lado, encarna a esperança da cura e de uma melhor

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qualidade de vida. É também um momento em que se encontra


«mergulhado na doença», é «um parêntese na vida». Ora, no momento
em que sai deste «parêntese», ele tem necessidade de reorganizar o seu
quotidiano e, ao mesmo tempo, integrar na sua identidade a
experiência passada da doença crónica. O diálogo com outros doentes
ajuda-o nesse processo.
Quando «sai da doença», o indivíduo sente por vezes «um vazio».
Com o «desaparecimento» do vírus, perde também as relações sociais
decorrentes do estado de doente crónico e o seu estatuto de doente
crónico. O quotidiano deixa de ser ritmado pela doença e o indivíduo
vê-se obrigado a adaptar-se ao novo estado que lhe confere a ausência
de doença crónica, e a um novo estatuto, o de curado (Maia 2008).
Para o doente, o corpo não é apenas um objecto físico, é uma parte
essencial do seu Eu (Good 1998). A doença altera a percepção de si e a
experiência da doença deixa marcas na construção identitária
(Laplantine 1986). Dois padrões de comportamento foram apresenta-
dos relativamente aos indivíduos que se curam. No primeiro caso,
esforçam-se por expulsar a doença do seu quotidiano, não a relembran-
do, operando uma ruptura e um renascimento. No segundo, após ums
experiência da doença marcante, ao libertarem-se do vírus, sentem um
vazio e a necessidade de permanecerem em contacto com doentes,
nomeadamente através de estruturas associativas, de modo a dar uma
continuidade biográfica ao estatuto de doente e evitando (outra) ruptura
biográfica, chegando mesmo a percepcionarem-se e definirem-se como
«doentes curados». Com efeito, a ruptura biográfica pode destabilizar o
sujeito na sua identidade, na medida em que a identidade pessoal
decorre do facto de se auto-percepcionar como idêntico a si mesmo no
tempo (Tap 1980). Além disso, ajudar os outros doentes através da
mobilização associativa concede uma utilidade ao sofrimento vivido,
que se torna por isso benéfico. A experiência da doença ganha sentido
e valor.

10 Ver em linha: www.soshepatites.org [acedido em 15 de Dezembro de 2008].

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De notar, por fim, que o activismo associativo pode favorecer a


possibilidade, para o doente, de se tornar actor da sua própria
existência. As associações fornecem não só apoio social, mas também
informações sobre a doença assim como locais de encontro e troca,
como é o caso dos Fóruns anuais realizados, em França, pela Fédéra-
tion SOS Hépatites10. O trabalho de apropriação do saber médico das
associações de doentes contribui para uma melhor gestão da doença,
conferindo ao doente um sentimento de controlo assim como
instrumentos, baseados em conhecimentos médicos, de controlo de
situações difíceis decorrentes da doença. Local de fornecimento de
dados objectivos sobre a doença, de partilha de informações, de
tecimento de laços, de inter e auto-ajuda, de conquista de autonomia e
de relações «inter-pares», as associações representam um elemento
fundamental na expressão, vivência e gestão da doença.
O trabalho de escrita que permite o fórum de discussão na Internet
serve também de «salvação pela escrita», segundo a expressão de
Laplantine (1984), permitindo assumir uma «experiência-limite»
(Laplantine 1986) que participa na definição, experiência e gestão da
doença, assim como na reconfiguração da identidade do doente.

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Capítulo 3

Um cavalo de Tróia na colónia?:


As missões de profilaxia contra a Doença do Sono
da Companhia de Diamantes de Angola (Diamang)

Jorge Varanda*

* Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA/ISCTE). Centro de


Malária e Doenças Tropicais, Instituto de Higiene e Medicina Tropical,
Universidade Nova de Lisboa
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INTRODUÇÃO

Em 1965, o Dr. Santos David descrevia as Missões de Profilaxia


Contra a Doença do Sono (MPDS) da Companhia de Diamantes de
Angola (Diamang) como um dos mais importantes instrumentos para
estabelecer o Serviço de Saúde da Diamang (SSD) nas comunidades
Africanas 1. Algo que pode ser caracterizado como um Cavalo de
Tróia 2 nas vidas e corpos Africanos. No entanto, um olhar mais
abrangente e crítico sobre a documentação das MPDS revela um
palimpsesto de propósitos que ultrapassam a afirmação do médico
chefe da Diamang e permite a caracterização mais sistemática da
complexidade da situação colonial.
Apesar da centralidade das MPDS nos espaços médicos da
companhia, esta doença nunca foi uma causa relevante de morbilidade
ou mortalidade na área da Diamang 3 . Este artigo centra-se nas
diferentes fases do combate à doença do sono. Ao revelar as dinâmicas

1 Dr. Santos David 1965. Este médico entrou para a Diamang em 1946, tendo sido chefe
dos SSD entre 1957-1973 quando foi escolhido para representante da companhia.
2 Expressão retirada do A Eneida de Virgílio usada aqui sem conotação bélica, ilustrando
antes o uso de um truque para conquistar algo, no caso em discussão, a aceitação da
medicina Ocidental.
3 Varanda 2007, capítulos 3 e 4.

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de cada fase ilustrar-se-á a presença de diversas agendas, metodologias


e práticas biomédicas na colónia; como estas modificações metodoló-
gicas e práticas se relacionam com a presença de redes extra-imperiais
que permitiam o acesso a novas tecnologias e conhecimento e uma
diversidade na prestação de cuidados biomédicos nas colónias. As
dinâmicas revelam também os constrangimentos que sitiavam a
poderosa companhia de diamantes e a administração colonial; e como
estas, alimentadas por tensões e negociações existentes com popula-
ções locais, moldaram a prática médica Ocidental. Pretende-se assim,
iluminar concomitantemente a complexidade da situação imperial
portuguesa e o agenciamento das populações africanas.
Intenta-se contribuir para uma análise mais complexa da provisão
de cuidados de saúde em Angola, nomeadamente no que concerne ao
combate à tripanossomíase humana africana (THA). Partindo não de
análises aos discursos, mas antes do colonialismo em prática, revelar-
-se-á a existência de um império não-monolítico e todo-poderoso, mas
antes um império fragmentado, com várias agendas, coincidentes ou
em conflito, poderoso nos enclaves coloniais e “frágil” no mato, e
como este projecto colonial actuava por proxy, ou seja, colonialismo
delegado 4. Ilustrar-se-á também a centralidade da Diamang neste
projecto colonial e o papel charneira que os SSD tinham nas relações
política internas e externas.
Em síntese, partindo de uma etnografia de arquivo, questionar-se-á
as diversas caracterizações, nomeadamente as imagens narrativas e
caracterizações da aplicação biomédica em África, presentes na
documentação da Diamang. Pretende-se ir além da conceptualização da
medicina como instrumento do império ou da sua centralidade para a
conquista dos trópicos5; da aplicação de argumentos ambientais acerca
da dispersão da doença e o impacto das políticas coloniais no

4 Sobre análises de colonialismo em prática ver Stoler 2009; sobre a vulnerabilidade do


Império Português, ver Roque 2003, e sobre colonialismo delegado ver Porto 2002.
5 Headrick 1981, capítulo 3; Curtin 1990.

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equilíbrio ambiental6; das hipóteses acerca das várias abordagens de


combate à doença – engenharia social, ambiental, ecológica, ou
entomológica – e a influência destas no combate à doença do sono no
SSD 7 ; da caracterização de africanos como corpos dóceis ou
colonizados8, ou do discurso biomédico sobre os africanos9. Intenta-se
sim, através de triangulações metodológicas e de leituras contra pêlo10,
outorgar agência às acções/respostas dos doentes, familiares ou
comunidades locais11, como estas inferiam na prestação de cuidados
biomédicos em Africa relevando paralelamente o carácter politico-
-económico das missões e as diferentes agendas presentes no mesmo
contexto colonial, e como estes elementos são centrais para uma
caracterização mais sistemática do Terceiro Império Português.

COMPANHIA DE DIAMANTES DE ANGOLA – DIAMANG

A Diamang foi uma companhia diamantífera que operou na região


Nordeste de Angola entre 1917-1975. Apesar de actuar num canto remoto

6 Ford 1971; Gibblin 1990. Ambos os autores centram-se no distúrbio do equilíbrio entre
homens, animais, tripanossomas e moscas como factor explicativo para a expansão e as
epidemias de doença do sono ocorridas; Lyons apresenta um estudo importante sobre a
doença do sono no Congo Belga relacionando a conquista colonial e exploração
económica como principais catalizadores para a disseminação da doença do sono no
Congo Belga. Lyons 1991. Körner e Bell também tomam as explicações ambientais
para explicar a epidemia de doença do sono no Uganda e Sudão. Körner 1995; Bell
1999, capítulo 5; Hoppe e McKelvey apresentam informação detalhada sobre o combate
ao vector e doença, fármacos utilizados, acções levadas a cabo em diferentes territórios
africanos e épocas, desde o século XIX até aos anos 70, Hoppe 1997; McKelvey 1973.
7 Worboys 1994.
8 Arnold 1988.
9 Vaughan 1990.
10 Gyan Prakash refere a dificuldade em escrever sob a perspectiva, ou seja, dar a voz a
trabalhadores indianos, que não deixaram documentação escrita. Prakash 1994.
11 Van Onselen 1975.

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do império Português, na circunscrição12 do Chitato, distrito da Lunda, a


companhia foi uma peça central – económica, política e também a nível
de prestação de medicina Ocidental – para a colónia e império.
Em 1921, no primeiro contrato entre Estado e Companhia eram
concedidos direitos de exploração diamantífera de vastas áreas do
território Angolano à Diamang13. No decorrer das suas operações a
Diamang tornou-se o maior empregador da colónia, com uma força de
trabalho directa de várias dezenas de milhares de indivíduos, e o
principal contribuinte para os cofres do estado. O contrato outorgava
graus de liberdade especiais para gestão e provisão de cuidados de
saúde – a companhia proveria cuidados médicos na sua zona, parte do
Chitato, à população local, ou seja, aos habitantes presentes na sua
zona, trabalhadores ou não, sem intervenção dos serviços estatais14.
No entanto, ao longo da sua existência a área de actuação do SSD
e a população sob sua ‘tutela’ alteraram-se drasticamente. A área
inicial de actuação do SSD, 20.000km2 definida no contracto de 1921,
ultrapassava 50.000km2, mais de metade da área da metrópole política,
no final do período colonial. Este crescimento teve paralelo no dilatar
da população de 60.000 nos anos 40 até mais de 130.000 pessoas em
1973, e no SDD que, de dependente de médicos da Forminière nos
anos iniciais, incorporava cerca de 1000 indivíduos nos anos 1970s15.
Para provir os cuidados de saúde na sua área a Diamang encetou
um programa de ocupação sanitária16. Este projecto levou mais de

12 Sub-divisão administrativa normalmente do interior usualmente apresentado pouca


população Ocidental.
13 Diamang, Contrato entre o Governo-geral da Província de Angola e a Companhia de
Diamantes de Angola 1921, MAUC.
14 O uso do termo local em detrimento de Africanos, Angolanos, Nativos, contém a
percepção da variedade da populaça em termos étnicos, sociais, geracionais, etc.
15 Varanda 2007.
16 Expressão corrente nos SSD e Serviços de Saúde de Angola (SSA), referindo-se à
expansão dos serviços de saúde, através de meios de medicina curativa e preventiva,
com a intenção de cobertura de uma determinada área, bem como toda a população
presente nesta área.

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quatro décadas até ser implementado, tendo as MPDS um papel central


ao quebrar as ‘barreiras’ dos enclaves coloniais e chegar às zonas
rurais onde grande parte da população autóctone habitava.

MISSÃO DE PROFILAXIA CONTRA A DOENÇA DO SONO (MPDS)

AS MISSÕES DE RECONHECIMENTO

Diversos factores conduziram ao ‘nascimento’ das MPDS. A


legislação de 1921, de Norton de Matos, que obrigava empresas a
agir17; a pressão do administrador colonial do Chitato18; os problemas
com a doença sentidos pela companhia diamantífera Belga a operar a
escassos quilómetros; os avisos do médico-chefe da Forminière19, Dr.
Gillet, sobre a situação no terreno20; e as considerações económicas de
possíveis disrupções na produção causada por uma epidemia de doença
do sono – todos apontavam no sentido de criar um serviço de combate
à doença pela Diamang.
A legislação do governo colonial obrigava as companhias privadas
a controlarem a doença nas suas áreas, mas foram os problemas
ocorridos no outro lado da fronteira, na zona da Forminière, que
levaram a Diamang a actuar. Em Abril de 1925 com base no
conhecimento da situação problemática na área da Forminière, a
Direcção Técnica de Bruxelas da Diamang alertava a Direcção Técnica

17 Boletim Oficial de Angola Nº. 51, II série 1921, SGL. Para a relação entre o corpo
legislativo e o contexto político internacional ver Shapiro 1983, capítulo 5, parte I.
18 Carta 24/7/22 de Florival (chefe da circunscrição do Chitato), para Direcção Técnica de
Luanda (DTL), Pasta 126B, 5-1º, MPDS, 4/1/22 – 31/10/33, MAUC (Pasta 126B, 5-1º).
19 Esta ligação económica tinha o seu aspecto mais tangível nas administrações
metropolitanas, uma em Lisboa sob a tutela do administrador-delegado Ernesto de
Vilhena, que tratava do pessoal e a de Bruxelas que tinha a cargo questões técnicas da
exploração.
20 Carta 2/8/22 de Dr. Gillet para DTL, pasta 126B, 5-1º. O médico belga alertava para a
existência de moscas tsé-tsé na área da companhia e os perigos que estas constituíam.

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da Lunda do perigo da doença se espalhar para o Chitato, apresentando


como solução a criação de um serviço móvel análogo ao da
Forminière21. Em Dezembro, a administração de Bruxelas conseguia
que a Forminière desse formação ao pessoal de saúde da Diamang. A
intenção era clara, bem como o racional económico subjacente:
“Nous n’avons pas besoin de vous dire combien est important pour
l’avenir de notre Compagnie, le maintien d’un état sanitaire surtout
dans la population ouvrière de la Lunda.”22

Ambas as administrações metropolitanas da companhia, Lisboa e


Bruxelas, estavam de acordo com os médicos da Diamang no terreno
acerca de necessidade de combater a doença23. Apesar disso, existiam
fissuras dentro da companhia. Para o engenheiro Americano H.T.
Dickinson, director local, a prioridade era o aumento da produção;
somente depois se tratariam as questões de saúde 24 . Esta seria a
primeira demonstração de um ‘eterno’ conflito entre produtividade e
saúde. Semanas depois a visão da administração metropolitana era
enfatizada: assuntos médicos relacionados com a doença do sono
deviam ser tomados em consideração25. Em vez de pagar ao governo, e
com a anuência das duas administrações metropolitanas, a Diamang
criou o seu próprio serviço de combate à doença, privilegiando assim a
independência face aos serviços do estado26. As missões da Forminière

21 Carta 18/7/25 de Direcção Técnica de Bruxelas (DTB) para DTL, pasta 126B, 5-1º,
MAUC.
22 Carta 10/12/25 de DTB para DTL, Pasta 126B, 5-1º, MAUC.
23 Carta 15/12/25 de DTL para DTB e Lisboa, Pasta 126B, 5-1º, MAUC.
24 Carta 15/1/26 de DTL para DTB e Lisboa, pasta 126B, 5-1º, MAUC. Este engenheiro
fez parte da direcção durante a década de 1920, sendo na década de 40 conselheiro
técnico da Diamang.
25 Carta 5/2/26 de Vilhena para DTB, pasta 126B, 5-1º, MAUC.
26 Nesta altura os serviços de saúde governamentais efectuavam campanhas em algumas
áreas da colónia. Dr. Damas Mora, “Relatórios da direcção dos serviços de saúde e
higiene de Angola referente à II luta contra a moléstia do sono em Angola 1921-1934”,
Pasta 126B, 5-2º, MPDS, 1/11/34 – 31/8/35, MAUC. (Pasta 126B, 5-2º).

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serviram de planta para as MPDS. Segundo o chefe das missões, Dr.


Almeida Sousa, a companhia copiou as linhas mestras, metodologias,
divisões territoriais e até os ficheiros das missões da Forminière27.
Um travo político económico impregnava a génese das MPDS, um
característica que seria intrínseca a estas missões. A posição unificada
entre as administrações da Diamang revela que os actores estavam
conscientes da sensibilidade que a provisão de cuidados biomédicos
apresentava, bem como da existência de diferentes agendas activas no
contexto colonial. Mas não era só entre os actores coloniais institucionais
que existiam tensões dentro da companhia, era frequente encontrarem-se
tensões e fissuras existentes sob um aparente manto de políticas bem
definidas. As redes extra-imperiais, ou seja, que não seguiam a ortodoxia
das relações metrópole política-colónia, foram desde o início centrais
para a idiossincrasia das MPDS.
As missões desta fase, 1927, 1930 e 1933, manifestavam metodo-
logias e práticas similares. As duas primeiras obtiveram resultados
semelhantes, enquanto a terceira marcaria o fim deste estádio, ou seja
da fase de prospecção. Geograficamente, as actividades destas missões
cingiam-se às zonas urbanas da companhia e aos sectores mineiros.
Nas concentrações efectuavam palpação cervical e supra-cervical de
gânglios a todos os suspeitos de estarem infectados, punções lombares
e exame microscópico à linfa, sendo administrado uma dose de Atoxil
in loco se o resultado fosse positivo29. Quanto ao tratamento, desde a

27 Carta 31/5/27 Dr. Almeida e Sousa, Pasta 126B, 5-1º, MAUC.


28 Na área da Diamang as concentrações eram despoletadas por um solicitação da
companhia ao chefe-de-posto pedindo que toda a população se deslocasse em
determinada dia a determinado lugar para ser recenseada, examinada e caso necessário
tratada. Esta comunicação era posteriormente divulgada aos chefes locais, sobas, os
quais apelavam à população para estar presente, caso contrário, poderiam ter que se
responsabilizar pelas faltas individuais.
29 Dr. Almeida Sousa, “Relatório MPDS Maio 1927”, Pasta 126B,5-1º, MAUC.
Procedimentos similares foram descritos para o Congo Belga, Sudão e Gana, ver Lyons
1991; Bell 1999, capítulo 5; Addae centra a sua análise no desenvolvimento
organizacional das Medical Field Units ver Addae 1996: capítulo 8, para incidência da
tripanossomíase ver capítulo 18.

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missão de 1927-28 que o Triparsamide era o medicamento utilizado,


embora o Atoxil pudesse ser utilizado em conjugação, algo infrequente
devido à toxicidade deste fármaco.
As missões eram acompanhadas por elementos da administração
civil e do exército com a intenção de: levar a cabo convocatórias para o
posto administrativo, regular as actividades diárias da população, como
a pesca, monitorizar movimentos de populações, reorganizar e realojar
aldeias30, perseguir e capturar pacientes fugidos31.
Outra característica comum, especialmente nas duas primeiras
missões, foi o fim prematuro das campanhas, relacionado com a
escassez de pessoal de saúde e a persistência de várias doenças nas
minas 32 . A prioridade da Diamang centrava-se na produção de
diamantes. Quando a situação sanitária nas minas se tornava crítica a
companhia redireccionava os seus parcos recursos para debelar os
problemas da saúde dos trabalhadores, relegando para segundo plano o
alargamento do pessoal de saúde e a continuação do combate à THA
em toda a sua área e população.
Enquanto a primeira campanha examinou cerca de 30.619
Africanos encontrando somente cinco casos de indivíduos infectados33,
na segunda ficara-se por 19.900 com dois casos descobertos34. Estes
resultados reflectiam a área reduzida de acção, nas zonas de operação
da companhia, ou seja em enclaves coloniais35; a falta de pessoal de

30 Carta 12/12/27 de Lane, para chefe circunscrição do Chitato com “Relatório MPDS
Outubro e Novembro”, pasta, 126B, 5-1º, MAUC.
31 Carta 20/12/30 de Quirino Fonseca para Representante em Luanda com “Relatório
MPDS Nº.2 Novembro 1930” Dr. Almeida Sousa, Pasta 126B, 5-1º, MAUC.
32 Dr Almeida Sousa “Relatório MPDS, Fevereiro 1931”, Pasta 126B, 5-1º, MAUC.
33 Com 6.000 trabalhadores é possível que as missões tenham centrado as suas acções
nestes indivíduos, nas suas famílias e população que habitava locais perto das áreas
urbanas ou de exploração da Diamang.
34 Dr. Vasques Carvalho “Relatório dos SSD” 23/02/1935, p. 3, Pasta 126B, 5-2º, MAUC.
Como Lyons afirmou para o caso do Congo Belga, o equilíbrio ecológico podia ainda
não ter sido alterado. Lyons 1991.
35 Arnold 1993.

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saúde e de condições para exames; e a não comparência de Africanos


sem relação à ‘comunidade colonial’36, nas convocatórias.
Para muitas populações locais as MPDS representavam o primeiro
contacto com Ocidentais, um encontro que ficava na memória por
diversas razões. As convocatórias eram impostas pela administração
colonial aos sobas, os quais tinham obrigatoriamente de cumprir.
Considerando que a última rebelião indígena na região fora debelada em
1926, qualquer africano que se deparasse com uma missão sanitária que
incluía médicos, chefes-de-posto e militares identificava os serviços de
saúde como mais uma dimensão opressiva da administração colonial37.
Como refere Lyons para o vizinho Congo Belga, os médicos usavam
intérpretes, que muitas das vezes, eram os administradores locais, ou
capitas, intimamente relacionados com colecta de imposto e
manutenção da ordem. Mesmo antes de procederam a qualquer exame,
a constituição das brigadas com elementos administrativos, militares e
o seu carácter impositivo e de parcas explicações causavam receio nas
populações locais38.
A biomedicina e a administração colonial inter-cruzavam-se em
diversas áreas, como por exemplo na tentativa de controlo de activi-
dades socio-económicas. Estas medidas produziam poucos efeitos, pois
os africanos persistiam com as suas acções diárias, a movimentar-se,
pescar e lavrar livremente enquanto que os poderes coloniais tentavam
impor as suas próprias fronteiras e definir/organizar actividades39.
A acção das MPDS em áreas seguras revelava a existência de uma
situação de poder ténue por parte da Companhia e do Estado no
contexto colonial da Lunda dos anos 20.
Este caso apresenta pois similaridades com a situação descrita por
Bell referente às campanhas contra a doença do sono no Sudão. Em

36 Balandier 1955.
37 Pélissier 1986-1988.
38 Lyons 1991: 85.
39 Para caso similar no Sudão ver Bell 1999: 140-143, 148-153.

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ambos os contextos as acções dos serviços de saúde/administrativos


tinham de ser negociadas com autoridades locais, e só eram levados a
cabo com a ajuda de pessoal administrativo ou militar40. As respostas
dos Africanos às convocatórias reforçam ainda mais a imagem de um
poder colonial circunscrito que tentava lidar com as tensões existentes
com as populações locais e com as respostas dos indivíduos ao doloroso
encontro médico-colonial. Tensões e respostas que se enquadram na
caracterização de Hoppe do poder do estado colonial, e neste caso da
Diamang, sempre circunscrito pelas acções dos Africanos41.
A juntar à imposição das convocatórias, o diagnóstico e tratamento
estavam carregados de significados negativos. O carácter invasivo,
doloroso e desconhecido do diagnóstico envolvia utilização de instru-
mentos e acções invasivas (o uso de seringas e o retirar de fluidos
orgânicos – linfa, sangue e líquido cefalorraquidiano), que amiúde não se
coadunava com a cosmovisão autóctone, por outo lado, a toxicidade e
baixa eficácia dos tratamentos deixavam um lastro de coerção e dor entre
os africanos, já que por vezes, para se estabelecer um diagnóstico era
necessário efectuar diversas colheitas de fluidos e 7-10 punções
lombares42. Além disso as pessoas, nos primeiros estágios da doença,
apesar de se sentirem bem, eram diagnosticadas como doentes e levadas
para tratamento/internamento não tardando a aparecer rumores que
afirmavam que a agulha espalhava a doença43. No entanto, as injecções

40 Bell 1999.
41 Hoppe 1997. Assunto discutido por Bell 1999: 143-184. Apesar de não ter encontrado
material que corroborasse abertamente esta questão, o facto de nos anos 60 enfermeiras
africanas da companhia terem de persuadir sobas para que grávidas fossem levadas para
as maternidades é revelador que negociações eram comuns no Chitato. Teresa Penedo
entrevista 16/11/2004; Bernardo Montaubuleno entrevista 20/11/2004.
42 Apesar de não existirem documentos referindo abertamente negociações com sobas para
as convocatórias, uma leitura contra o pêlo aponta para o oposto, assim como
testemunhos locais, bem como a ocorrência em outros contextos coloniais. Teresa
Penedo entrevista16/11/2004; Bell 1999: 143-147.
43 Este rumor atingiu proporções tais que no Congo Belga considerou-se efectuar
diagnósticos baseados unicamente no exame às glândulas. Lyons 1991: 189. Ver
também White 2000, capítulo 7 para o caso na Rodésia do Norte.

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para a sífilis, que proporcionavam uma recuperação célere, eram muito


procuradas por locais, assim como acções biomédicas em tumores,
hérnias, circuncisões ou qualquer outra doença para a qual a tradição
médica local não apresentava solução satisfatória44. Pode-se ainda
considerar que os significados émicos dos fluidos corporais extraídos
pelas brigadas fossem mais relevantes que quebra da barreira da pele por
um instrumento estranho.
Africanos sem ligação ao sistema colonial não procuraram
usualmente médicos europeus no caso de problemas internos. Segundo
Lyons “(...) medicamentos para uso externo eram mais facilmente
assimilados na farmacologia africana do que substâncias de acção
interna. As implicações para as campanhas da doença do sono eram
sérias já que as substâncias usadas tinham que ser injectadas. A juntar
a isso, o facto de não haver resultados observáveis de imediato, tornava
esta medicação muito impopular.45” Algo que despoletava no Chitato
respostas similares às descritas por Lyons no Congo Belga: não
comparência às convocatórias nos postos administrativos para exames
e tratamentos (local associado a castigos corporais, recrutamento
forçado, ou pagamento de impostos)46. Nestes dois territórios coloniais
durante as primeiras décadas muitos africanos apreendiam as práticas
biomédicas como parte da conquista das suas sociedades, ou com mira
em grupos específicos de indivíduos, pois nos anos 20 os arsénicos
usados para matar os tripanossomas eram altamente tóxicos causando
vítimas entre doentes47. Nos anos 50, na área da Diamang as medidas

44 Lyons 1991: 183-184. Dr. José Picoto refere o impacto positivo que “curas
espectaculares” tinham no estabelecimento de confiança e consequente procura da
biomedicina por Africanos. Picoto, 1954.
45 Lyons 1991: 197 tradução do autor.
46 Lyons refere que as provas de resistência dos africanos, fugir ou não comparecer às
concentrações e não completar tratamentos, revelam um outro nível de significado
quando a coerção, as práticas dolorosas e intrusivas da medicina ocidental são tomadas
em consideração bem como com as diferenças culturais e os diferentes conceitos de
doença e visão do mundo. Lyons 1991: 180-189.
47 Lyons 1991: 183.

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entretanto tomadas na segunda fase das MPDS levaram a que a


situação estivesse mais matizada, mas isso não significa que mesmo
três décadas após o início das missões os africanos comparecem ou
completassem os tratamentos voluntariamente.
O número reduzido de casos identificados (uma vintena entre 1921-
-1928)48 levou o Dr. Almeida Sousa a afirmar a região indemne mas
com glossina palpalis, o vector da THA49. Este facto poderia ter feito
recuar as administrações metropolitanas; mas o administrador-delegado,
Ernesto de Vilhena, estava consciente de que estas campanhas poderiam
ser importantes trunfos em futuras negociações com o governo colonial.
Esta visão seria uma das marcas na história da Diamang.

“Quant à la mission de prophylaxie contre la maladie du sommeil,


nous sommes d’avis qu’il ne convient pas de la suprimer, entre
autres, pour raisons d’ordre politique.”50

Confiante com os resultados anteriores, em 1933 a companhia


iniciava-se nova campanha que, face à negligência na provisão de
cuidados de saúde por parte do Estado, pretendia estender-se à zona do
Sombo de onde chegavam regularmente contratados infectados51. No
entanto, esta aparente preocupação com a saúde dos africanos escondia
conflitos entre produtividade e saúde pública, com disposições díspares
a emergirem de vários departamentos da Diamang. Enquanto que o
departamento de mão-de-obra indígena apelava à contratação de
indígenas da região do Sombo, as directrizes médicas referiam a não

48 Este baixo número de casos poderia estar relacionado com o reduzido numero de
exames efectuados (em 1925 somente foram efectuados 215 exames) assim como a
baixa qualidade destes, ou com a não alteração do equilíbrio ecológico. Lyons 1991;
Ford 1971.
49 Carta 16/8/28, de Dr. Almeida e Sousa, Pasta 126B, 5-1º, MAUC.
50 Carta 17/10/32 de Vilhena, Pasta 126B, 5-1º, MAUC.
51 Telegrama 11/9/33 de Quirino Fonseca, para Administrador do Cassai Norte, Pasta
126B, 5-1º, MAUC.

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contratação de trabalhadores originários de regiões infectadas52. Esta


era uma situação paralela à do Congo Belga, onde a imposição de
impostos forçava muitos africanos a trabalhar na colecta de borracha
em zonas longínquas e infectadas, rompendo o cordão sanitário e
colocando pessoas em confronto com as regulamentações de saúde
pública, contribuindo assim para o disseminar a doença53.
Os resultados da campanha de 1933 revelariam o parco
investimento da companhia nas acções das MPDS em zonas rurais e as
dificuldades em lidar com populações locais. No final desta missão, no
início de 1934, o número de Africanos infectados era de 634 casos,
sendo a área rotulada pelo Dr. Almeida Sousa como endémica à
tripanossomíase, seguindo assim as pegadas da área da Forminière54.
Desde a primeira MPDS que os esforços da Diamang ficavam
aquém do planeado, mas tal não inibiu o governo de elogia-los. Na sua
terceira visita à companhia em 1928 o governador da Lunda mostrou-
se muito impressionado com os serviços de saúde da companhia55. Os
serviços prestavam assistência a uma variedade de indivíduos:
soldados, outros empregados do estado e Africanos oriundos de outras
regiões possivelmente infectadas, ou seja, os SSD substituíam o
governo nas suas obrigações56. Em 1934, foi a vez do governador-geral
de louvar os serviços de saúde da Companhia pelo trabalho efectuado,
no Boletim Oficial de Angola e na imprensa diária nacional. Mas
existiam vozes dissonantes dentro do estado. A secção da Lunda dos
serviços de saúde de Angola pedia maior empenho na limpeza de mato
e mais atenção aos trabalhadores da companhia que embora
trabalhando na nova mina não tinham sido examinados57.

52 Carta 20/9/33 Osório Junior, Pasta 126B, 5-1º, MAUC.


53 Lyons 1991: 206, 208.
54 Carta 17/10/33 de Dr. Almeida Sousa, pasta 126B, 5-1º, MAUC.
55 Carta 4/11/27 de Lane, para Representante, pasta 126B, 5-1º, MAUC.
56 Memorandum 5/6/28, pasta 126B, 5-1º, MAUC.
57 Ibid.

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COMBATE À TRIPANOSSOMÍASE

O aumento da incidência da THA em 1933 provocou alterações


imediatas nos serviços. No final de 1934 a MPDS era incorporada nos
SSD e as missões ganharam uma periodicidade bianual até 193858. A
reorganização incluía também alterações administrativo-sanitárias com
o aumento da área de actuação das MPDS fora da área contratual para
regiões dos postos administrativos do Sombo, Cachimo e Luia onde a
Diamang recrutava trabalhadores. No entanto, a principal alteração nas
MPDS foi a modificação do seu carácter; segundo o chefe dos SSD,
Dr. Picoto iniciava-se o segundo estádio, a “fase de combate”59.
O corpo de pessoal de saúde das MPDS aumentou de escassas
dezenas em 1934, para 150 indivíduos em 1938, atingindo 316 em 1952,
quando era composto por um médico, cinco enfermeiros europeus, nove
microscopistas, um enfermeiro auxiliar e 300 serventes e carregadores60.
Um número que a partir do meio da década de 50, à medida que a
ocupação sanitária abrangia a quase totalidade da área de intervenção dos
SSD, diminuiria61. A maioria do pessoal das MPDS era local, encon-
trando-se divididos em várias ambulâncias que anualmente efectuavam
itinerários exaustivos em cada sector. As brigadas iam para o mato
“estabelecendo os seus percursos de modo a passarem em todos os
aglomerados já conhecidos, ou naqueles que se haviam criado por
afluxo de gente vinda do Congo Belga ou por desdobramento de
‘quimbos’ existentes”.62

58 Dr. José Picoto 1939 – “Relatório Médico – Doença do Sono, 1938”, Pasta Direcção
Administrativa, Serviço de Saúde – Relatórios Anuais (Doença do Sono de 1934 a
1955) e (Serviço de Saúde – 1926, 1932 a 1935, 1940 a 1952), MAUC (Pasta DA-RA).
59 Dr. Picoto 10/7/41, Pasta 126B, 5-5º, MPDS 1/1/39 – 31/12/45, MAUC (Pasta 126B, 5-5º).
60 Dr. José Picoto 1953 – “Relatório Médico – Doença do Sono, 1952”, Pasta DA-RA,
MAUC (Relatório Médico 1952).
61 Dr. J.H. Santos David 1957 – “Memória para a reunião médica regional de Luanda,
companhia de Diamantes de Angola”, Dundo, Angola, p. 48, MAUC (Dr. Santos David,
“Memória”).
62 Dr. José Picoto 1952 – “Relatório Médico – Doença do Sono 1951”: 1, Pasta DA-RA
MAUC.

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As brigadas acampavam em locais estratégicos onde se efectuava a


convocatória da população para ser recenseada, examinada e tratada.
“Como sempre, cada ambulância iniciou o trabalho munida dos
livros de recenseamento do ano transacto, da relação dos antigos
tripanosados, de grávidas encontradas na volta anterior. Assim, é
fácil em cada aldeia proceder à chamada da população recenseada
e inspeccionada, procurando averiguar o paradeiro daqueles que
não se apresentam no momento.”63

As estatísticas acompanhavam o aumento da acção das MPDS,


com 1.136 aldeias visitadas em 1938 e 1.228 em 1954, registando-se
61.519 indivíduos em 1938 dos quais 45.812 foram examinandos, um
número que aumentou para 71.090 com 73% destes inspeccionados64.
O número de africanos infectados foi-se reduzindo paulatinamente, de
127 em 1936, para 44 em 1940 para 11 em 1947, 8 em 1954.
No início desta fase o diagnóstico era construído com base no
mesmo modus operandi. Após palpação para gânglios típicos da THA,
efectuando os exames de linfa, os suspeitos e infectados eram tratados
com Triparsamide65. Este fármaco permaneceria na linha da frente do
combate durante a década seguinte. Nos anos 40 os indivíduos com
resultados positivos repetiam exames com verificação laboratorial no
hospital principal do Dundo, centro administrativo da companhia. O
desenvolvimento da indústria química verificado na segunda Guerra
Mundial produziu novos fármacos que permitiam tempos de tratamento
mais curtos, o que leva a uma busca frenética pela Diamang66. No final
da década o Triparsamide tinha perdido terreno na terapêutica para o
Pentamidine, mais usado em acções profilácticas e terapêuticas pois
reduzia o tempo de tratamento de nove meses para dez dias67.

63 Ibid.
64 Dr. José Picoto 1939 – “Relatório Médico – Doença do Sono 1938”; Dr. José Picoto
1955 – “Relatório Médico de 1954”, Pasta DA-RA, MAUC.
65 Dr. Vasques Carvalho “Relatório 1938, MPDS”, Pasta DA-RA, MAUC.
66 Petterson 1981.
67 Dr. José Picoto “Sono 1951”: 1, Pasta DA-RA, MAUC.

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Mas a terapêutica não era linear. Em 1945 o Dr. José Picoto, chefe
dos SSD, referia casos de cura espontânea na primeira fase, hemo-
linfática, enquanto que na terceira fase, encefalite, “a escolha do
medicamento [Triparsamida, Bayer 205 e Pentamidina] não está ainda
perfeitamente estabelecida” bem como a dosagem, isto devido aos
efeitos secundários – cegueira – e a resistência dos tripanossomas aos
dois primeiros fármacos68. O uso da Pentamidina estava ainda nesta
altura reservado para doentes triparsamido-resistentes, mas sendo a sua
aplicação cada vez mais ampla a partir do ano seguinte. Como se
ilustrará, a utilização do Pentamidine seria um foco de tensão entre
governo e Diamang.
Em 1955 a Diamang adoptava em todos os sectores os protocolos
estatais de combate à doença do sono. As missões passaram a fazer
exames de linfa fresca, exame de gôta espessa e ao líquido cefalorraqui-
diano, repetindo-se o procedimento no Dundo para os casos positivos69.
Nesse ano surgia o Arsobal, que seria utilizado em conjugação com os
restantes fármacos.
Quanto ao combate ao vector, embora o uso de meios mecânicos
continuasse, nomeadamente através da desflorestação e limpeza de mato,
levado a cabo por grupos de Africanos organizados pela administração
local70, a partir de 1945, o uso do DDT abria novas possibilidades para
este combate, excluindo-se, no entanto, a pulverização através de aviões,
utilizada na África do Sul, pois era considerada como ineficiente por não
penetrar nas galerias florestais71. A destruição ambiental que a abertura
de novas explorações mineiras a céu aberto era vista pelos SSD como
um factor positivo na luta contra a mosca tsé-tsé72. Mas, mais de uma

68 Dr. José Picoto 1946 – “Relatório Médico – Doença do sono, 1945”: 5-6, Pasta DA-RA,
MAUC. (“Sono 1945”)
69 Dr. Santos David, “Memória”, MAUC.
70 Carta 1/8/35 de Henrique Santos Palma (administrador da Circunscrição do Chitato),
para DTL, pasta 126B, 5-2º, MAUC.
71 Dr. José Picoto “Sono, 1945”, pp. 6-7, Pasta DA-RA, MAUC.
72 Dr. José Picoto “Sono, 1952”, p. 1, Pasta DA-RA, MAUC.

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década depois, em 1957, o Dr. Santos David, chefe dos SSD, considerava
a acção sobre glossinas pouco relevante. A vasta área da Diamang,
40.000km2, e a ubiquidade das moscas em galerias florestais e nas zonas
arborizadas de rios e riachos tornava os esforços mecânicos de captura à
mão ou com armadilhas de moscas infrutíferos. Assim, a companhia
retomava as antigas acções mecânica em pontos-chave do território:
“Diamang tenha limitado a sua actuação ao capítulo da profilaxia
agronómica ao “cleaning” nos troços das estradas e cursos de
água, nos pontos de passagens destas (pontes e jangadas) e nas
proximidades das aldeias.”73

Embora despojados de qualquer protagonismo ou mesmo ausentes


dos relatórios de saúde, o pessoal de saúde local foi central para a
expansão das MPDS e a elevada percentagem de exames conseguida.
Desde o início deste segundo período que o pessoal Africano enquanto
examinava e tratava populações locais, persuadia-as a comparecerem
nas convocatórias, completarem os longos e difíceis tratamentos; além
disso coligia informações sobre os caminhos ou travessias de cursos de
água mais usados pelas populações 74. As autoridades tradicionais
também eram visadas; o pessoal Africano explicava a sobas e sobetas
quais as função e objectivos dos exames e tratamentos:
“No primeiro exame muitos indígenas houve que fugiram ou se
esconderam à passagem do enfermeiro, conforme declararam. A
boa politica adoptada junto dos sobas, explicando-lhes o fim que
tínhamos em vista, trouxe-nos grandes facilidades quando se fez o
2º exame e assim muito mais gente se apresentou.”75

Outras acções desenhadas para persuadir os Africanos a completar


os tratamentos e concomitantemente incutir confiança na medicina

73 Dr. Santos David, “Memória” p. 57, MAUC.


74 Carta 4/5/35 from Pinto Ferreira, to Rep, with the Dr. Vasques Carvalho “Informação –
4/05/1935”, pasta 126B, 5-2º, MAUC.
75 Ibid.

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Ocidental e na companhia incluíam a distribuição de comida semanal


durante os nove meses do tratamento com Triparsamide e consequente
seguimento76. Esta revelou ser uma das acções mais importantes e
características, no contexto português, da Diamang77.
“Tal como nos anos anteriores, distribui a Companhia a título de
gratificação, a todos os tripanosados que nos dispensários ou locais
de tratamento se apresentam a receber a sua injecção de
triparsamida: 4 quilos de farinha de mandioca, 500 gramas de
carne ou peixe, 105 gramas de sal.
O sistema mantém as suas boas tradições, porque o preto espera
sempre remuneração, mesmo quando dada pelo bem que se lhe
faz.”78

A africanização dos SSD foi uma característica central para o


sucesso das MPDS. Os escolhidos recebiam formação local para
ingressarem no quadro de pessoal como enfermeiro(a)s auxiliares,
técnicos ou serventes possibilitando que os poucos médicos e enfer-
meiros europeus permanecessem nos hospitais da companhia79. Cabia

76 Estes tratamentos exigiam viagens regulares às formações sanitárias, onde a Diamang


organizava as estadias para o doente e acompanhantes. Muitas vezes a Triparsamide era
pedida e chegava não via Luanda ou Lobito, mas antes através da Forminière e via
Congo Belga. Ver Telegrama 21/1/35 de Diamang Tshikapa to Brussels, pasta 126B, 5-
2º, MAUC.
77 Esta estratégia pode ter sido importada do Congo Belga através dos contactos da
Diamang com Dr. Gillet or Dr. Motoulle. Sobre as acções do último na aplicação da
politica de pró-nascimentos da Union Miniere du Haute-Kasai ver Dr. Motoulle, 1936,
“Hygiène Générale et Politique Indigène”; 1941, “Notes sur l’Higiène et la Politique”,
folder 86D-1o and folder 86D-2o, MAUC; Nancy Rose Hunt, 1997 – “‘Le bébé en
Brousse’ – European women, African Birth spacing, and colonial intervention in Breast
Feeding in the Belgian Congo”, in Tensions of empire: colonial cultures in a bourgeois
world, ed. Frederick Cooper, Ann Laura Stoler, Berkeley, University of California
Press, pp. 287-321. Dr. Santos David confirmou que nos anos 60 e 70 os programas
materno-infantis incluíam a distribuição de rações semanais e roupa a grávidas, mães e
crianças até aos três anos. Dr. David, entrevista 24/03/04.
78 Dr. José Picoto 1940 – “Relatório Médico Doença do Sono, 1939”, Pasta DA-RA,
MAUC.
79 Dr. Vasques Carvalho “Relatório do Serviço de Saúde” 23/02/1935, p. 5, Pasta 126B, 5-
2º, MAUC.

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portanto ao pessoal local realizar a maior parte dos exames médicos,


diagnósticos e tratamentos, normalmente sob a tutela de um enfermeiro
europeu. A africanização dos SSD era vantajosa para a companhia pois
para além de ser economicamente proveitoso permitia ainda que as
brigadas actuassem de forma periódica e sistemática e, em paralelo,
matizava alguns aspectos negativos do encontro médico colonial80.
A acção das ambulâncias sanitárias e do pessoal de saúde local
ultrapassou desde os anos 30 a simples acção vertical contra a tripanos-
somíase. As ambulâncias tratavam localmente todos os enfermos
afectados por diversas doenças e, se tal fosse impossível, devido à falta
do material necessário ou à gravidade dos problemas, os doentes eram
redireccionados para os hospitais e dispensários da companhia81. Face
ao decréscimo da doença do sono e perante problemas no recrutamento
e reprodução da mão-de-obra africana, as MPDS incorporariam novas
tarefas.
Nos anos 40 as MPDS incorporavam uma vigilância particular
centrada no parasitismo intestinal, que se disseminava e causava
inúmeras mortes por toda área da Diamang82. Grávidas, crianças e
bebés começaram também a ser alvos das brigadas móveis que as
dirigiam para as novas maternidades que entretanto eram construídas83.
As grávidas eram persuadidas a darem à luz nas formações hospitalares
da companhia e a continuarem em consultas pediátricas após o parto.

80 Para uma analise profunda sobre o papel destes actores como cultural brokers, na
tradução do conhecimento científico no Congo Belga, ver Nancy Rose Hunt 1999. A
Colonial Lexicon – of Birth Ritual, Medicalization and mobility in the Congo, Durham,
NC, Duke University Press.
81 Teresa Penedo entrevista 16/11/2004. Addae descreve como nas Medical Field Units
(Unidades médicas de Campo) do Gana os auxiliares médicos, embora com formação
rudimentar, eram treinados para serem “especialistas” em diversas técnicas de controlo de
doenças, tendo assim um papel chave contra a doença do sono. Addae 1996: 170-171.
82 Dr. José Picoto “Sono, 1945”, p. 4, Pasta DA-RA, MAUC. Nos anos 50 esta função a
ser realizada aquando da permanência dos doentes nos hospitais. Dr. José Picoto 1951,
Relatório Médico – Doença do Sono, p. 4, MAUC.
83 Para evolução do SSD ver Varanda 2007, capítulo 3.

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“Desde há dois anos que procedemos a registo especial de


mulheres grávidas calculando e anotando nesse registo o tempo
provável de gravidez. (…) permite-nos-á colher indicações e tirar
ilações que nos coloquem sob os olhos a realidade do problema –
índice de mortalidade infantil, índice de natalidade.”84

Os resultados eram no entanto fracos, colocando o SSD o ónus da


culpa na cultura das populações locais, devido à sua resistência em
deixarem hábitos, crenças e até o medo de lugares desconhecidos. Algo
paradoxal, pois no mesmo relatório, refere que,
“A população da região é, bem se pode dizer, nómada por vício
ancestral, deslocando-se com facilidade a pretextos de procura de
trabalho nos centros de exploração mineira ou outros, e por algumas
vezes demandar ao Congo Belga sob qualquer razão. Pouco fixa a
gente, nem sempre encontramos nos mesmo lugares, de ano para ano,
os mesmo indivíduos. (…) Saltitando daqui para acolá, mudando de
nome com espantosa facilidade, são apesar de tudo sujeitos a exame,
pormenor que interessa sôbre todos os outros.”85

As MPDS eram o principal meio para os SSD estabeleceram


contacto com as populações rurais, referindo o Dr. José Picoto em 1951
que eram raros os casos de resistência à acção das ambulâncias. Estas
acções tinham dado os seus frutos e perante a fraca incidência da
doença, menos de 0,03%, o chefe dos SSD argumentava que, após
terminar a ocupação sanitária, com postos sanitários por todo o
Chitato, se poderia terminar com as brigadas para a doença do sono86.
Algo que não se verificaria, pois o número de casos descobertos nas
formações de saúde fixas era residual87.
Embora o estado colonial e a Diamang estivessem sob o mesmo
guarda-chuva colonial apresentavam agendas diferentes. A companhia

84 Dr. José Picoto “Sono, 1945”, pp. 2-3, Pasta DA-RA, MAUC.
85 Ibid. 2.
86 Dr. José Picoto “Sono, 1952”, Pasta DA-RA, MAUC.
87 Dr. Santos David 1957 “Memória”, MAUC.

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era vista pelo Estado como solução à provisão de cuidados de saúde na


área da circunscrição do Chitato. A diferença de recursos financeiros
na luta contra a doença do sono criava tudo menos uma frente unida de
cuidados médicos Ocidentais em Angola88.
Esta diferença entre os serviços da Diamang e do Estado seria
explorada pela companhia em diversas ocasiões. Uma das características
particulares das MPDS era o seu valor político, algo que, ao longo das
décadas, foi usado pela Diamang quando as agendas de outros actores não
estavam sincronizadas com a sua. Em 1935, perante uma queixa sobre
como empregados da Diamang tratavam os trabalhadores locais, o capitão
Brandão de Melo, representante da companhia em Luanda, argumentava
com o chefe dos Negócios Indígenas, Manuel Mesquita Lemos acerca das
boas condições apresentadas pela Companhia. O capitão afirmava que a
companhia pagava salários superiores e dava melhores rações que outras
companhias, tinha um serviço de saúde sem rival na colónia, com
cuidados de saúde e medicação grátis para autóctones, e com missões de
combate à doença do sono próprias89. A saúde não era somente um
assunto para criar um bom ambiente e sobreviver economicamente, tinha
também um cariz político importante.
O elevado número de casos encontrados em 1934 fez com que a
Diamang pressionasse o governo para pôr em pratica os seus deveres
como colonizador. O Dr. Vasques Carvalho, chefe dos SSD, encontrou-se
com o chefe dos serviços de saúde de colónia, Dr. Araújo Alvares, e
com o Dr. Gomes da Costa, Chefe dos Serviços de Assistência ao
Indígena Combate Doença do Sono, para expor a necessidade do
estado de combater a doença nas zonas a sul da região da Diamang,

88 Em 1935 a redução do orçamento estatal levou à dispensa de 16 enfermeiras do quadro


de saúde do estado. Carta 13/6/35 de Brandão Mello para Vilhena, pasta 126B, 5-2º,
MAUC. Embora não seja o espaço para tal, este caso de estudo, é útil para questionar os
conceitos de Medicina Imperial bem como afinar o conceito de medicina colonial.
Marks 1997: 205-220; Farley 1991.
89 Carta 24/4/35 de Brandão Mello, para Manuel Mesquita Lemos, Pasta 126B, 5-2º,
MAUC.

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dizendo que ‘esta era uma obrigação do estado face à lei colonial’.
Numa comunicação interna Brandão de Melo era claro:
“O Diploma Legislativo 463 de 9 de Dezembro de 1926 do Alto
Comissário Vicente Ferreira, criou na Lunda uma zona de combate
à doença do sono, com dois sectores: leste e norte, mas a verdade é
que os serviços oficiais desta zona, nunca foram organizados e tudo
quanto tem sido feito na Lunda, é obra apenas da Diamang.”90

Esta inversão de papéis revela a presença de diferentes agendas no


contexto colonial, a natureza mutável destas e o colonialismo por
proxy como característica do império português na Lunda.
No limiar da década de 50, com a criação das Brigadas de Penta-
midinização para a luta contra a doença e a assinatura de um protocolo
com os serviços do Congo Belga para uma abordagem comum no
combate à doença do sono, os programas de luta governamental
ganham novo fôlego. Apesar dos baixos níveis de incidência da doença
no Chitato, nos anos 50 o SSD foi forçado a negociar com o Serviços
de Saúde de Angola (SSA) e incorporar a metodologia estatal e manter
a independência de actuação na sua área 91 . Esta negociação é
reveladora das tensões, ainda que matizadas, entre o Estado e a
Diamang, mas também de mais um episódio que reforçava o colonia-
lismo delegado – colonialismo por proxy – bem como as agendas
diversas dos vários colonizadores.
O governador-geral tinha a percepção que a Diamang desejava
manter as suas próprias acções de combate. Este entendimento,
explicitado no início das negociações entre Governo e Diamang sobre
o uso da pentamidina, é revelador a força da companhia na colónia.
Mas o Dr. Eduardo Ferreira (chefe interino dos SSA) argumentava que

90 Carta 13/6/35 de Brandão Mello, para Vilhena, pasta 126B, 5-2º, MAUC.
91 A variedade de denominações dos serviços de saúde da colónia ao longo dos tempos, o
facto de não serem objecto deste texto e considerações de espaço fazem com que se
adopte a denominação de serviços de saúde de Angola para se referir os diversos
serviços de saúde estatais e a visão que estes tinham.

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a metodologia das MPDS não apresentava o mesmo nível de sucesso


que as novas campanhas de pentamidinização, e que lei determinava
que somente o governo poderia usar esta metodologia92.
No entanto, na reunião com o representante interino da companhia
em Luanda, Sílvio Guimarães, o Dr. Eduardo Ferreira revelava que o
decreto fora desenhado para prevenir o uso deste químico por grupos
privados, mas ‘se Vilhena anuísse a uma reorientação metodológica
para a bitola dos Serviços do Estado, não se levantariam obstáculos à
continuação das MPDS’. A cooperação entre Governo e Diamang era
vista como positiva, algo que traria benefícios internacionalmente93. A
saúde tinha características políticas, local e internacionalmente, algo de
que todos os actores estavam conscientes94. A Diamang era um actor
primordial a nível internacional para outorgar credibilidade às
representações coloniais de um império que tratava e cuidava
atentamente das suas populações autóctones95.
Estas negociações reajustavam as agendas, mas visões contradi-
tórias, pelo menos na Diamang, permaneciam. Numa comunicação
interna, o Director Geral na Lunda, o engenheiro Rolando Sucena Sousa,
criticava esta imposição metodológica e a visita dos médicos estatais,
argumentando que “nos últimos 24 anos a companhia tinha feito o
trabalho do governo”96. Mas para Vilhena era primordial que os SSD se
mantivessem operacialmente independentes, revelando ainda que o
médico-chefe dos SSA, Dr. Francisco Simões do Amaral, era favorável à
companhia, ou seja à visão de actuação autónoma. As instruções do
administrador-chefe para o Dr. Picoto eram claras, deveria reunir em

92 Carta 24/2/51 de Sílvio Guimarães (Representante Interino nos anos 1950s e representante
depois) para Vilhena, pasta 126B, 6-7º, MAUC.; Pentamidização refere-se ao uso da em
campanhas preventivas, embora este fármaco fosse também usado curativamente.
93 Ibid.
94 Para a relevância combate tripanossomíase nas diversas colónias e relação com contexto
internacional ver Shapiro 1983, capítulo 5.
95 Para o caso mais geral do Império ver Shapiro 1983, capítulo 3; para o caso da Diamang
ver Porto 2002, capítulo 3, para o caso dos SSD ver Varanda 2007: capítulo 2.
96 Carta 20/3/51 de Sucena, para Vilhena, pasta 126B, 6-7º, MAUC.

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Luanda com o chefe dos Serviços do estado, apreender esta nova


abordagem e evitar a perca de autonomia da companhia nesta área97.
Na reunião o Dr. Pinto Fonseca notou que “Diamang estaria a fazer
um enorme favor ao Estado, se continuasse o seu trabalho com métodos
internacionais”98. Para ambas as instituições era claro a a relevância de
agendas sincronizadas. Os resultados eram positivos para ambas as
partes: a Diamang mantinha a sua autonomia e o Estado cortava nas
despesas. Uma vez mais o colonialismo por proxy saia reforçado.
O fim desta negociação e a aderência dos SSD à metodologia das
missões de pentamidinização do Estado marca o início do fim da
relevância da doença do sono nas brigadas móveis da Diamang. Poder-
-se-á argumentar que é o fim da fase de combate e início da gestão das
MPDS. Com a entrada em acção da nova direcção dos SSD em 1957 e
implementação da pentamidinização em todos os sectores, os níveis da
doença voltam a ser insignificantes, o tamanho das brigadas é
reduzido, enfatiza-se a prospecção de outras doenças como Lepra,
iniciada em 1955 e, posteriormente, TB e Bilharzioses. Os detalhes do
combate à THA foram relegados dos relatórios anuais do serviço de
saúde para os relatórios anuais dos censos que entretanto ganharam
proeminência face às MPDS99.

CONCLUSÃO

A análise às MPDS ilumina os problemas da introdução da


biomedicina em África. Partindo de uma etnografia de arquivo pretendeu-
-se caracterizar o colonialismo em prática e revelar a complexidade do

97 Telegrama 29/3/51 de Vilhena para DGL, pasta 126B, 6-7º, MAUC.


98 Carta 12/4/51, Sílvio Guimarães, para Sucena, pasta 126B, 6-7º, MAUC.
99 Dr. Santos David 1957 “Memória”, p. 48, MAUC. No Gana a proeminência da
bilharzíase face à tripanosomíase fez com que fosse objecto principal das campanhas. A
Lepra também presente tinha sido incluída muito antes nas acções de combate das MFU
combate do que Diamang. Addae 1996: 171-175.

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mundo colonial. Apreende-se quão complexo, fragmentado e ‘vulnerável’


era o império. Esta entidade não era monolítica, dominante, nem operava
sob redes de relações exclusivamente baseadas no estado-nação
metropolitano. Era antes uma entidade que diariamente lidava com a sua
fragmentação interna, resultado de uma miríade de actores com diversas
agendas em acção; era forçada a negociar amiúde com autoridades,
comunidades e indivíduos locais até ao final do período colonial; e que
operava para além das redes metrópole-colónias, quer fosse na aquisição
de conhecimento (metodologias e práticas médicas, formação) ou
produtos (fármacos ou outros bens).
Um olhar mais atento aos sujeitos africanos revela uma variedade
de respostas perante a biomedicina e mostra quão “indomáveis” eram
os seus corpos. Apesar da construção de discursos biomédicos sobre os
africanos, na prática estes não estavam sem capacidade de agência,
quer fosse para escapar a diagnósticos e tratamentos que não se
coadunavam com a sua cosmovisão, cultura e experiência, ou para de
livre vontade utilizar determinadas acções médicas Ocidentais que
apresentavam resultados num curto espaço de tempo.
Há que recordar que a biomedicina não foi aplicada somente em
Africanos, mas quer era aplicada por Africanos. Estes sujeitos, poucas
vezes objecto de estudo, foram centrais para a persuasão e tratamento, em
suma para, neste caso, os baixos índices de prevalência da doença. Muitos
destes enfermeiros ou auxiliares de saúde, efectuaram a transição para o
contexto pós-independência nas mesmas instituições onde trabalhavam.
São eles que, mesmo contemporaneamente, actuam nas brigadas de
combate às tripanossomíases e lidam com respostas similares por parte
dos doentes face a diagnósticos e tratamento que, fruto de um desinteresse
de décadas da indústria farmacêutica nesta doença, pouco se alteraram100.

100 F.J. Louis, P.P. Simarro e P. Lucas 2002; P. Simarro, Jean Jannin e Pierre Catt 2008;
Pieter de Raadt 1999. Estes textos centram-se na evolução focada no combate à
doença, com ênfase particular nas grandes figuras da medicina tropical no terreno
como o militar Francês Jamot. Apresentam usualmente uma visão de topo, centrada
unicamente

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Apesar das MPDS poderem ser consideradas como um Cavalo de


Tróia para as vidas e corpos africanos, como inferia o Dr. Santos
David, as missões apresentam dimensões sociais, culturais, políticas e
económicas que não podem ser ignoradas. Relegar estas dimensões
pode empurrar o resultado de qualquer investigação para os binómios
coloniais que se pretendem criticar, perdendo-se assim a complexidade
do contexto colonial e uma importante janela para o mundo pós-colonial.

BIBLIOGRAFIA

FONTES PRIMÁRIAS E ENTREVISTAS

Arquivo da Diamang – Museu Antropológico da Universidade de Coimbra


(MAUC), Coimbra, Portugal
Estatutos da Companhia de Diamantes de Angola
Contrato entre o Governo-Geral da Província de Angola e a Companhia de
Diamantes de Angola 1921, a 4/12/20
Pastas do Serviços de Saúde da Diamang
Pasta Direcção Administrativa, Serviço de Saúde – Relatórios Anuais (Doença do
Sono de 1934 a 1955) and (Serviço de Saúde – 1926, 1932 a 1935, 1940 a 1952)
Dr. J.H. Santos David – 1957 – “Memória para a reunião médica regional de
Luanda, companhia de Diamantes de Angola”, Dundo, Angola
Pastas do Serviços de Saúde da Diamang – MPDS
Pasta 126B, 5-1º, MPDS, 4/1/22 – 31/10/33
Pasta 126B, 5-2º, MPDS, 1/11/34 – 31/8/35
Pasta 126B, 5-5º, MPDS, 1/1/39 – 31/12/45
Pasta 126B, 5-7º, MPDS, 1/1/49 – 31/12/53
Pastas da SPAMOI
Pasta 86D-1º, Mão-de-Obra (SPAMOI) 18/6/36 – 31/5/38
Pasta 86D-2º, Mão-de-Obra (SPAMOI) 1/6/38 – 31/12/42

nos programas em si, no papel das instituições internacionais, e na erradicação da THA,


relegando a variedade de pessoal europeu, africano, respostas dos doentes, as
dificuldades, tensões experienciadas no campo, as modificações, negociações
efectuadas, bem como o agenciamento dos africanos.

106
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Entrevistas

Entrevistas efectuadas em Angola: Teresa Penedo


Data da entrevista: 16-11-2004
Relação do entrevistado com Diamang: Enfermeira, trabalhou com Missões das
Grávidas
Local da entrevista: Dundo

Entrevistas efectuadas em Angola: Bernardo Montaubuleno


Data da entrevista: 20-11-2004
Relação do entrevistado com Diamang: Enfermeiro
Local da entrevista: Dundo

Entrevistas efectuadas em Portugal: Dr. Santos David


Data da entrevista: 24/03/2204
Relação do entrevistado com Diamang: Médico, Chefe dos SSD e do Gabinete
de Antropologia
Local da entrevista: Estoril

FONTES PRIMÁRIAS E ENTREVISTAS

ADDAE, Stephen, 1996, Evolution of modern medicine in a developing


country: Ghana 1880-1960. Durham, Durham Academic Press.
ARNOLD, David, 1993, Colonizing the body – State medicine and
epidemic disease in nineteenth-century India, Berkeley, University
of California Press.
ARNOLD, David, 1988, Introduction: Disease, medicine and empire,
em David Arnold (ed.), Imperial medicine and indigenous
societies: Disease, medicine and empire in the nineteenth and twen-
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PA RT E I I

CORPOS QUE SOFREM:


IDIOMAS DA DOENÇA
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Capítulo 4

Labirintos do trauma:
A verbalização do sofrimento
nos refugiados em Portugal

Cristina Santinho*

* Investigadora CEAS / CRIA, Aluna de Doutoramento do Departamento de


Antropologia, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa.
Docente da Universidade Lusófona
Agradeço a disponibilidade demonstrada por todos os refugiados e requerentes
de asilo que comigo colaboraram contando as suas histórias de vida. Agradeço
também ao CPR por me ter permitido a realização deste trabalho de investi-
gação. Agradeço ainda a todos os médicos e técnicos de saúde que acederam
responder às minhas entrevistas ou que comigo partilharam as suas próprias
apreensões no campo da saúde mental dos refugiados.
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“Os homens, senhor Faulques, são animais


sanguinários. A nossa inventividade para criar
o horror, não tem limites.”1

O presente capítulo decorre da prática de trabalho de campo com


refugiados e requerentes de asilo em Portugal. A perspectiva adoptada,
inscreve-se na antropologia médica e em particular nas práticas e
políticas de saúde mental.
Pretende-se discutir e apresentar propostas de investigação que
tenham em consideração a história de vida e a história do trauma dos
refugiados, reflectindo também sobre conceitos como sofrimento,
trauma sequencial, somatização, escuta activa e PTSD. Pretende-se
também olhar para o conceito de corpo como o cenário onde se
reflectem as políticas de integração e exclusão.

BREVE HISTÓRIA DE S2

S é um jovem muçulmano com cerca de 20 anos, que saiu do seu país


em 2004, tendo chegado a Portugal como refugiado resgatado pelas

1 Diálogo entre o jornalista de guerra Faulques, e Markovic, soldado croata. Extraído do


livro “O Pintor de Batalhas” de Arturo Pérez Reverte. Ed. ASA; 2006.
2 S: Nome fictício. Alguns detalhes desta história são deliberadamente omitidos para
garantir o anonimato do narrador.

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Nações Unidas e pelo ACNUR3, em 2007. Optou por contar a sua história
em português, apesar das suas limitações em se expressar neste idioma.
De acordo com o seu relato, durante três anos e meio procurou um
lugar para viver, tendo passado por diversos países, nos quais residiu
em condições de extrema precariedade. Antes de ser obrigado a fugir
do seu país, vivia com a mãe, entretanto falecida. O pai fora morto por
uma bomba treze anos antes, no seu local de trabalho. Após a morte do
pai, S e a sua mãe viveram da comercialização de leite e lã
provenientes de um rebanho de ovelhas, seu principal património. O
maior objectivo de vida de S era comprar um terreno, construir a sua
própria casa e procurar a filha emigrada do irmão mais velho do seu
pai, com quem em tempos a família o havia prometido casar.
Os seus sonhos foram interrompidos quando milícias armadas
entraram de rompante em casa e o prenderam juntamente com os
amigos, sob a acusação de subversão e terrorismo. Após ter sido
libertado, a mãe convenceu-o a fugir, pelo que venderam o rebanho,
para juntar o dinheiro necessário à compra dos documentos que lhe
permitiriam sair do país.
Com parte desse dinheiro, comprou um passaporte e a passagem
para o outro lado da fronteira. Foi então obrigado a fugir para a Líbia e
daí para a Guiné-Conacri, onde residiu durante algum tempo. O seu prin-
cipal objectivo era ir para os Estados Unidos da América ou mesmo para
a Grã-Bretanha, onde se integraria mais facilmente devido ao domínio
do idioma e à prévia existência de comunidades oriundas da sua região.
Na Guiné, trabalhou por vários meses na reparação dum navio
cargueiro, tendo ficado acordado com a tripulação, a quem entregou
todo o seu dinheiro, que poderia viajar no barco até aos Estados
Unidos. Um dia, quando chegou ao porto para começar o trabalho, o
barco tinha partido.
Tendo que enfrentar a decepção e frustração resultantes deste
logro, acabou por conseguir embarcar num navio cargueiro, o qual se

3 ACNUR: Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.

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encontrava já repleto de imigrantes clandestinos. Esta viagem deveria


demorar 10 dias, estando as rações de água e comida racionadas para
este período. No entanto, as máquinas do navio avariaram e todos os
imigrantes a bordo tiveram que suportar dois terríveis meses no meio
do oceano, durante os quais enfrentaram condições extremas de
sobrelotação, ausência de luz natural, falta de higiene e carência de
víveres, o que motivou o consumo ocasional de água do mar.
A luta destes “passageiros invisíveis” pelo acesso à comida, água
ou espaço, era permanente. A chantagem e o abuso serviam como
moeda de troca no acesso a alguma comida suplementar, ou no
estabelecimento de hierarquias de poder. Cada dia que passava, mais
pessoas adoeciam.
Quando o navio chegou à Mauritânia, a maioria dos passageiros
clandestinos, entre os quais S, foram encarcerados por vários meses
num centro de detenção para imigrantes. Aí, as condições de vida eram
igualmente desumanas: a pessoa desaparecia novamente, para dar lugar
mais uma vez, à condição de corpo: não existiam janelas, nem corre-
dores ou espaços exteriores por onde os imigrantes pudessem circular ou
ter acesso a luz natural; a comida e a água eram racionadas; o acesso aos
dois ou três sanitários, dependia de um regresso imediato ao fim da fila,
logo após a saída, num circuito ininterrupto que podia levar duas horas,
sendo a alternativa mais viável urinar numa garrafa, por exemplo.
S, que não tinha amigos nem conhecidos com quem partilhar este
contexto de extrema hostilidade e humilhação, relatava a intensidade
dos sentimentos de solidão e desorientação então experienciados.
Segundo o seu testemunho, o desejo último dos imigrantes detidos era
a liberdade, independentemente do local ou país onde a mesma pudesse
ser garantida. Enquanto aguardava a eminente deportação para o seu
país, ocorreu uma rebelião nesse centro, durante a qual alguns dos
detidos entre os quais ele próprio, conseguiram fugir para o único local
que se apresentou como possível: o deserto. Esta fuga, culminou numa
operação de resgate levada a cabo pelo Alto Comissariado das Nações

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Unidas para os Refugiados (ACNUR), que possibilitou o transporte


destes imigrantes para as Ilhas Canárias, em Espanha. Posteriormente,
S foi reinstalado em Portugal, tendo ficado um ano no Centro de
Acolhimento para Refugiados (CAR) do Concelho Português para os
Refugiados (CPR), na Bobadela – Loures.
No momento de recolha desta “história de vida / história de
trauma”4, S já não residia no Centro de Acolhimento. Neste local,
apenas podem permanecer durante mais tempo os menores não
acompanhados5, ou alguns casos particularmente vulneráveis. S, que
ainda não conseguiu ter a tão desejada casa, partilha um quarto numa
casa sub-alugada, com imigrantes que não conhece. Não possui, tal
como a maioria dos refugiados em Portugal, comunidades de suporte.
Recebe da Santa Casa da Misericórdia6 cerca de 200 euros, o que em

4 Consideramos que a história do trauma deve ser avaliada no contexto mais amplo que a
produziu, ou seja: a história de vida narrada pelo refugiado. Esta abordagem parece-nos
essencial para a recolha de elementos determinantes, como por exemplo as referencias
socioculturais em que a narrativa se insere, para além da própria concepção de saúde,
doença e corpo. Só uma abordagem culturalmente sensível nos permitirá perceber a
linguagem do sofrimento e do trauma.
5 Designam-se por “menores não acompanhados” todas as crianças, ou jovens menores de
18 anos, que viajam sem acompanhamento de membros da família ou tutores que por
eles se responsabilizem. As políticas e práticas legais de acolhimento não são uniformes
em todos os países Europeus. Contudo, chama-se a atenção para o modo como no
Espaço Shengen se determina se os menores têm efectivamente menos de 18 anos. Em
Portugal, e uma vez que normalmente uma característica dos refugiados é a
impossibilidade de viajar com documentos de identificação, o Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras recorre à determinação da idade através da medição do osso do pulso e do
raio-X dos maxilares. Este procedimento, que não toma em consideração o contexto
étnico e cultural da criança (o desenvolvimento físico não é idêntico em todos os
grupos, nem toma em conta as diferenças de desenvolvimento provenientes de carências
ou excessos alimentares), pode resultar numa avaliação errónea da idade, a qual
comporta consequências nefastas, tais como a negação do acesso a apoio social
específico que lhe deveria ser prestado. O desenvolvimento psicológico é ainda mais
subjectivo, dependendo das características culturais de cada grupo de pertença. Para
informação mais detalhada sobre esta questão, consultar: «La migration des mineurs
non accompagnés en Europe», nº 2, 2008; e-migrinter Maison des Sciences de
l’Homme et de la Société (MSHS).
6 Entidade que na região de Lisboa assume parte do apoio financeiro aos refugiados. Fora
da região de Lisboa, este apoio passa a ser suportado pela Segurança Social.

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Lisboa é manifestamente insuficiente para fazer face às suas necessi-


dades, mesmo as mais básicas. Como forma de complementar este
magro rendimento, S recorre a biscates ou trabalhos pontuais, os quais
tem tido dificuldade em manter devido ao seu mal-estar físico, e às
consultas médicas ou de fisioterapia que tem que frequentar, e que
condicionam a sua disponibilidade.
Relativamente ao apoio psiquiátrico também existiram dificuldades.
Após duas ou três consultas no Hospital Júlio de Matos, S decidiu
descontinuar os tratamentos, por considerar que a abordagem adoptada
era desadequada, relativamente às suas necessidades. Subsistiram grandes
dificuldades de comunicação com o médico psiquiatra (neste serviço não
existem mediadores nem tradutores), que baseava o tratamento na
administração de medicamentos ou no aconselhamento a desempenhar
uma actividade laboral, como forma de desviar as atenções do seu
sofrimento.
Sem comunidade de pertença, nem esperança de integração a curto
ou médio prazo num emprego que lhe permita ter uma casa própria – um
dos seus maiores desejos – S encontra um local de apaziguamento e
partilha empática (e porque não terapêutica?) nos encontros do teatro
Refugiacto7. Sempre que lhe é possível deslocar-se aos ensaios, S
experiencia a única forma de suporte de grupo que, pelo menos
pontualmente, se aproxima a um contexto comunitário de partilha de
identidades em sofrimento. Um dos momentos de maior relevância
para ele, dá-se aquando a apresentação pública do grupo. Numa das
vezes em que tal aconteceu, quando questionado relativamente à sua
procura de casa, respondeu: “Agora, procuro antes um castelo”.

7 Deste grupo, fazem parte refugiados de diferentes nacionalidades, géneros e grupos


etários. Partilham os mesmos sentimentos, as mesmas emoções e por vezes as mesmas
experiências traumáticas. Logram “exorcizar” o sofrimento através da posta em cena de
textos de crítica social elaborados pelos próprios e também de poetas e escritores
relacionados directa ou indirectamente com os direitos humanos. Satirizam-se por
exemplo as dificuldades de comunicação ou de exclusão, sentidas no acesso à consulta
nos centros de saúde. O grupo de teatro tem como principal mentora a professora de
português do CPR, Dr.ª Isabel Galvão.

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Analisando a anterior descrição fenomenológica, é possível afirmar


que o sofrimento mental esteve presente ao longo da recolha da história
de vida/ história de trauma. S emocionou-se várias vezes ao contar a sua
história, em particular ao recordar as memórias do que nostalgicamente
mantinha como objectivo de vida: ter uma casa só sua e encontrar uma
rapariga para casar. Queixava-se igualmente de insónias frequentes
expressando sentimentos de profunda tristeza e desalento.
Quanto às suas narrativas de sofrimento físico, estas consistem
fundamentalmente na sensação permanente de sede, dores de estômago,
dores de cabeça, dores num dos joelhos (alegadamente provocada por
uma queda das escadas íngremes no porão do navio), dores nas costas,
diarreia frequente e perca de peso. No contexto do trabalho de campo,
foi possível verificar que S, tanto em cerimónias públicas com a
presença de figuras de Estado proeminentes, como na vivência
quotidiana do Centro, manifestou emoções diversas. Na presença dos
políticos, notava-se uma esperança renovada no seu olhar e nas suas
atitudes, como se a simples proximidade destes, representasse o
reconhecimento social das suas vidas, a possibilidade de retomar a
dignidade do “eu” e o fim da invisibilidade social. Noutras ocasiões,
mais quotidianas, S oscilava entre uma profunda tristeza, alheando-se do
que se passava ao seu redor e momentos de prazenteiro convívio.

A HISTÓRIA DE VIDA COMO VERBALIZAÇÃO DO SOFRIMENTO

Existe uma desproporção incontornável entre os relatos verbali-


zados pelos refugiados sobre a sua história de vida e a narrativa do
sofrimento, a realidade quotidiana por eles efectivamente vivenciada em
contextos de guerra e conflito permanente e por fim, a tentativa do
antropólogo, tantas vezes infrutífera, de transmitir através da escrita, um
testemunho suficientemente fidedigno, que respeite a veracidade dos

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factos narrados pelo refugiado em sofrimento os quais, de tão


inverosímeis, correm o risco de ser interpretados como imaginação,
fantasia dramatizada ou simplesmente delírio lancinante dos narradores.
Os refugiados e requerentes de asilo8, acima de tudo, são pessoas
com as suas próprias contradições, estratégias de sobrevivência ou
integração, desejos e ambições, alegrias e também sofrimentos. Nem
todos podem ser considerados vítimas de injustiças e atentados aos
direitos humanos e sendo-o, não significa necessariamente que essa
“circunstância de vítima”, historicamente constituída, seja em termos
individuais, constante ou permanente. São também, ocasionalmente,
autores do seu destino, calculado em histórias de trauma narradas
deliberadamente para encontrar apoio das ONG’s ou das próprias
instituições estatais, com vista à obtenção de documentos que lhes
permitam residir legalmente na Europa. Algumas dessas histórias
foram transmitidas com aparente sofrimento, teatralizadas através do
pranto ou manifesta angústia. Nem todas vieram a comprovar-se como
verídicas9. Não serão contudo essas histórias que aqui iremos analisar.
No entanto para muitos – a maioria – o sofrimento, a tortura, a
humilhação, são uma constante ameaça, que pode até estar bem perto,
em qualquer rosto ou lugar desconhecido10, até percepcionarem um
ambiente seguro e protegido, longe das redes de tráfico ou das máfias

8 Refugiados são aqueles que já possuem estatuto reconhecido pelas autoridades.


Requerentes de Asilo são os que ainda não possuem esse estatuto, podendo contudo
residir no país legalmente, enquanto aguardam uma decisão, possuindo documentos de
“residência por razões humanitárias”.
9 A questão da “verdade” das narrativas transmitidas aos agentes do SEF, ou a outros
responsáveis, ou não pela autorização da sua entrada em Portugal, é em si, algo que
justifica uma análise antropológica em profundidade. Contudo, salienta-se que na maior
parte dos casos, a “verdade narrada” equivale a uma versão da realidade relatada pelos
próprios e com a qual eles podem efectivamente lidar.
10 Existem francas possibilidades de essa ameaça acontecer mesmo em contextos sociais
aparentemente seguros como é o caso de Portugal, em particular provenientes de redes
mafiosas ou ligadas ao tráfico, com origem por exemplo na Colômbia ou em alguns países
do Leste Europeu. Existe a possibilidade de o refugiado se encontrar com o seu próprio
torturador.

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(redes criminosas internacionais) que se estendem sub-repticiamente


em qualquer parte.
Para além destes que transmitem a sua experiência através da
história que nos narram, existem ainda todos os outros refugiados que,
por impossibilidade de verbalização do sofrimento atroz, se remetem
ao silêncio profundo de um tormento do qual não logram sair jamais e
cujas memórias revivem nas longas noites de vigília e nos dias
alucinados. Sobre estes, vítimas da “banalidade do mal”11 como referia
Hannah Arendt, já não é sequer possível encontrar o rasto, perdidos
que estão numa cidade/sociedade que desconhecem e que os empurra
tragicamente para a invisibilidade dos corpos e da existência, na qual o
próprio conceito de humano expandiu os seus limites. Neste campo,
estão todos aqueles refugiados que, por não terem consulta ou mesmo
após uma consulta psiquiátrica perigosamente estéril, abandonam a
derradeira tentativa de reconhecimento do seu sofrimento, confundido
por vezes entre o papel da vitima e ou de perpetrador que, já não se
dissolve pelo uso da palavra, dissipando-se no mundo do invisível, nos
labirintos do trauma.
Enquanto observadora participante nos consultórios de psiquiatria,
testemunhei os olhares angustiados, o frenesim dos gestos
involuntários, a constante vigília procurando sinais invisíveis de
alarme que possam pôr fim à sua vida periclitante, ali mesmo na sala
de espera do consultório. Estes sinais permitem antever o percurso
errante daqueles que por ausência de respostas terapêuticas
adequadas12, renunciam a prosseguir com as consultas. Para estes

11 “Banalidade do mal é uma expressão criada por Hannah Arendt no seu livro “Eichmann
em Jerusalém”, cujo subtítulo é “Uma reportagem sobre a banalidade do mal”. Ed.
Tenacitas, Coimbra; 2ª edição, Abril de 2004.
12 Ausência de formação específica por parte dos psiquiatras e clínicos generalistas, quer
no domínio científico da psiquiatria transcultural, ou mesmo da etnopsicologia;
inexistência de pontos de contacto entre paciente e médico, ao nível linguístico, ou
cultural; ausência de percepção do trauma como elemento que faz parte de um contexto
muito mais amplo, em que se integra a própria história de vida, e o entorno
sociocultural, económico e político.

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refugiados, normalmente vítimas de actividades forçadas como as


“crianças-soldado”, existe a inefabilidade da experiência impossível de
ser partilhada, ou sequer compreendida, pelos outros. Esta “experiência
do extremo” a que se refere Richard Rechtman (1990) pressupõe a
existência de um limite supremo que, para além da capacidade de
sobrevivência de cada pessoa, não separará a vida da morte, mas reúne
numa experiência comum, os mortos e os sobreviventes. Em última
instância, esta experiência apenas distingue quem a viveu de quem
nunca enfrentou uma situação desta natureza.
Esta quase ausência de fronteira entre os vivos e os mortos vai
passar a fazer parte integrante do sofrimento dos refugiados, em
particular daqueles que presenciaram o assassinato dos seus familiares
ou amigos e que, ao conseguirem fugir, sendo por vezes os únicos
sobreviventes daquele contexto familiar, carregam consigo a culpa e o
sentimento de abandono.
Muitos dos refugiados que acompanhei à consulta de psiquiatria,
relataram a angústia dos momentos de solidão (experienciada já em
Portugal) em que eram permanentemente assaltados pelas memórias
traumáticas do preciso momento em que, escondidos à pressa num
canto da casa, testemunharam os militares entrando de rompante,
agredindo e torturando até à morte pais, mães e irmãos, como se de um
filme constantemente repetido em câmara lenta se tratasse.
Silove (1999) refere a existência de vários sistemas adaptativos
comuns que quando ameaçados isoladamente ou em conjunto, por
profundas injustiças resultantes de contextos de guerra ou conflito e
atentados aos direitos humanos, conduzem invariavelmente ao
sofrimento e ao trauma. Um deles relaciona-se com este sentimento de
perda de “união ou existência de laços afectivos”. As separações e as
perdas são frequentemente múltiplas e incluem perdas reais e
simbólicas. Para além dos familiares mortos ou perdidos, os refugiados
ainda experienciam a perca do lar, da propriedade e dos bens
(emprego, estatuto social, estudos). Perdem igualmente o sentido de

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coesão social, ligação com a terra ou os antepassados, bem como com


a cultura de pertença e seus rituais e tradições. As reacções normais a
estas perdas incluem uma constelação de sentimentos como o pesar, a
nostalgia, por vezes a raiva e revolta e também a saudade. S, como
tantos outros, transmitia sentimentos compungentes relacionados com
a ausência destes suportes afectivos que lhe foram retirados de forma
violenta, sendo ele próprio testemunha forçada. É de notar também que
estas perdas são, na sua maioria, definitivas e irrecuperáveis. A
ausência de uma abordagem adequada no campo da saúde mental pode
conduzir ao desequilíbrio e ao “trauma sequencial”. Referencia-se aqui
o conceito proposto por David Becker (2004), e que se baseia na noção
de que o trauma é um processo que se desenvolve sequencialmente –
iniciando-se na perseguição e decisão de fuga, a própria fuga, o pedido
de asilo, o contacto com a sociedade receptora e o longo período que aí
se segue – que só pode ser definido e compreendido num contexto
específico e que deve ser descrito em detalhe. A principal noção que
nos oferece Becker é a de que o trauma e a sua sequencialidade,
contêm uma dimensão individual psíquica, mas também em simultâneo
e interligada, uma dimensão colectiva e macro-social. Sendo o trauma
um processo político que ocorre num determinado contexto social,
apenas pode ser entendido num contexto igualmente cultural e também
político. Deve pois ser considerado do ponto de vista do indivíduo, da
sociedade, da cultura (inclusive nos aspectos materiais e espirituais) e
também políticos, económicos e jurídicos, para além dos psicológicos.
Refere ainda Becker (2004): The basic issues of power and social
conflict are not only ignored but, worse, are conceptually redefined as
part of an individual psychological illness, thereby further hindering a
person‘s capacity to act upon the situation. Exaggerating a little, one
could say that first we have war and destruction, and then we offer
individual therapy instead of social change. É necessário ter em conta
que a própria inserção dos refugiados na sociedade portuguesa, não
está isenta de trauma. Este vai-se perpetuando nas diferenças culturais

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entre a pessoa e a sociedade de acolhimento, no tempo que demora a


resolver a sua situação jurídica (dois, três, cinco ou mais anos), na
dificuldade na obtenção de emprego, na ausência de reconhecimento
social que a sociedade lhes vota. Como menciona Becker, o trauma não
pode ser apenas encarado do ponto de vista terapêutico, mas também
por uma multiplicidade de abordagens.
Momentaneamente apaziguados pelo relato da história de vida –
história do trauma, que comigo partilhavam na Bobadela13, alguns
destes refugiados – em particular aqueles que pouco depois deixaram
de poder contar com a residência segura do CAR – desapareceram,
tanto das consultas previamente marcadas, como das frágeis redes de
suporte que as instituições de acolhimento lhes estendem e que
dificilmente serão suficientes para os integrar14, na medida em que
nem sempre lhes é garantido trabalho ou assistência social e financeira
condigna, que lhes permita sobreviver ou sequer aceder ao reconhe-
cimento imprescindível para a sua existência enquanto cidadãos com
iguais direitos. Por vezes a insuficiência de apoio social e de emprego,
é agravada em muitos casos, pela recusa de atribuição do Rendimento

13 O Centro de Acolhimento de Refugiados (CAR), é estrutura integrante do Conselho


Português dos Refugiados (CPR) – Organização Não Governamental para o
Desenvolvimento (ONGD) representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para
os Refugiados em Portugal (ACNUR). O CAR, possui várias valências sociais para
refugiados e requerentes de asilo, sendo a mais importante, a residência aberta
temporária.
14 O termo “integração” ou “inclusão”, tem feito parte nas últimas décadas das políticas
sociais que visam em particular os imigrantes em Portugal. Valoriza-se a inclusão como
algo positivo, algo a que qualquer imigrante ou refugiado deve aspirar, e avaliam-se as
instituições públicas (ministérios, autarquias, ONG’s) pela maior ou menor capacidade
de efectivação de projectos que visem a participação destes imigrantes, através do
exercício de cidadania. Mas nem sempre a integração é vista pelos migrantes, em
particular por algumas minorias étnicas, como algo que possui um valor intrínseco. A
fragmentação do social a que presenciamos nos dias de hoje leva a que muitos grupos
ou indivíduos – entre os quais os refugiados, pela sua própria idiossincrasia, prefiram a
ideia do “reconhecimento”, que lhes permite o direito à diferença, à ideia da
“integração”, que os enclausure numa existência que lhes é penosa. Será este
reconhecimento a única possibilidade de os retirar da invisibilidade a que a sociedade
portuguesa os remete.

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Social de Inserção, justificado pela falta de cumprimento da obrigato-


riedade de se apresentarem mensalmente perante os técnicos da
Segurança Social. Na perspectiva dos refugiados, existe ainda a
dificuldade na compreensão dos ofícios e minutas burocráticas, a eles
dirigidas por estes organismos (Centro de Emprego; Segurança Social,
Santa Casa da Misericórdia) apresentados em linguagens burocráticas
herméticas e incompreensíveis, uma vez que nem a língua portuguesa
dominam integralmente. Para mais, a desatenção de alguns “prometidos
empregadores” que adiam reuniões e encontros semana após semana,
para estágios dos quais os refugiados desconhecem os contornos e
ainda a falta de diálogo entre umas e outras instituições, empurra-os
por vezes, para uma existência muito próxima da indigência que vem
agravar dramaticamente a aflição.
A identidade e o desempenho dos papéis sociais constituem outro
dos pilares abalados pelo sofrimento e trauma provocado pelos maus-
-tratos e tortura. De acordo com Silove (1999), um dos objectivos
chave da tortura é minar nas vítimas, o sentimento pessoal de
identidade, de acção e de controlo. O isolamento, o ostracismo ou a
propaganda, são instrumentos utilizados por órgãos opressivos de
forma a corroer o sentimento de coesão e identidade de indivíduos ou
comunidades inteiras.
S sentiu esse isolamento na constante ameaça de que as reuniões
com os amigos em sua casa bastavam para os catalogar como subver-
sivos. Mais tarde, o anonimato perante a sociedade de acolhimento, a
dependência do apoio institucional, a falta de reconhecimento do papel
social, estatuto ou qualificações, nos países de recepção, a par com a
interrupção dos referentes culturais, trazem aos refugiados um conjunto
de ameaças à sua identidade. Como consequência, poderão ocorrer
alterações dos papéis identitários, com o subsequente sentimento de
impotência e passividade. Por vezes, a própria pertença religiosa é
quebrada. São vários os casos de muçulmanos, por exemplo, que
perante a situação de vida no Centro de Acolhimento, ou já fora dele,

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abandonaram deliberadamente os rituais de oração, a ida à Mesquita,


ou romperam também com os tabus alimentares.
A perca de “significado existencial”, resulta do sentimento de
impotência perante as causas inexplicáveis do exercício da crueldade e
do mal de que foram vítimas, podendo abalar a fé e as crenças mais
profundas e pôr em causa o sentido da vida e da humanidade. Esta
crise de confiança na fé, pode provocar sentimentos de alheação e
isolamento emocional. Muitos destes refugiados em “crise de fé”,
procuram o isolamento nos seus quartos do CAR, evitando o contacto
com outros refugiados com os quais não partilham nem as tradições
culturais nem os sentimentos de fé ou de ausência momentânea dela. Este
factor remete para a necessidade de olhar para a questão existencial
através da possibilidade duma abordagem terapêutica apropriada.
Como refere Mollica (2006): Traumatized persons are not usually
emotionally hardened by violence but are, in contrast, delicately
attuned to the nuances of human interactions.
Muitos destes “passageiros errantes” desaparecem frequentemente
da mesma maneira que surgem: sem família, amigos, redes sociais de
suporte, emprego, rendimentos ou sequer documentos que ajudem a
recuperar o seu passado ou a sua identificação e identidade, saídos à
força das entranhas clandestinas de um navio cargueiro ou das asas de
um desejo fátuo que os trouxe a um país que desconhecem e a uma
sociedade que lhes é alheia. Carregam o seu sofrimento sem
interlocutor, acabando por desaparecer nas malhas de um lugar sem
guerra, mas em disputa, onde a hostilidade se manifesta na faalta de
adequabilidade dos apoios institucionais, frequentemente por mero
desconhecimento da sua particular existência.
Sem documentos que atestem a sua identidade e o seu percurso de
vida; sem modo de provar a sua história académica ou profissional, que
lhes permita continuar aqui e agora o seu percurso; impossibilitados de
regressar às suas terras, sob pena de perderem a vida para sempre, estão
irremediavelmente presos num limbo de indiferença social, confundidos

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que são com os imigrantes, com os quais não partilham a humilhação e a


tortura, nem a viagem voluntária, nem a existência de comunidades de
pertença e muito menos a possibilidade de um dia regressar.

O CORPO COMO LOCUS DE POLITICAS DE INTEGRAÇÃO E


EXCLUSÃO

Como refere Csordas (1994) (…) the body has a history and is as
much as a cultural phenomenon as it is a biological entity is
potentially enormous. Also, if indeed the body is passing through a
critical storical moment, this moment also offers a critical
methodological opportunity to reformulate theories of culture, self, and
experience, with the body in the centre of analysis. Aos refugiados,
resta-lhes portanto, o corpo e a sua história. É através destes que
levantamos o véu sobre o conceito de saúde, doença, sofrimento,
somatização, tendo em conta o contexto de proveniência, e a história
do sofrimento e do trauma. Mais ainda, o corpo “lê-se” na sua relação
com o poder e com a autoridade, numa sequência de lógicas múltiplas
às quais não são alheios aqueles que intervêm sobre o corpo em nome
dos poderes públicos (Fassin 2004). São processos de subjectivização
impostos pelas políticas sanitárias e pelas práticas biomédicas.
De acordo com Nancy Scheper-Hughes e Margaret Lock (2004) o
corpo carrega consigo três dimensões: o corpo individual, o corpo
social e o corpo político, correspondendo o primeiro à experiência
vivida do corpo enquanto “self”, o segundo, aos usos representacionais
do corpo enquanto símbolo da natureza, da sociedade e da cultura e o
terceiro à regulação e controlo do corpo. Fazendo uso desta definição,
proporíamos corresponder a primeira dimensão, ao corpo feito de
memórias e experiências somáticas recorrentes da tortura e do trauma,
e a segunda à forma como cada refugiado experiencia o sofrimento e o

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interpreta à luz dos seus próprios marcos culturais, transformando-os


em linguagens somatizadas. Finalmente, o terceiro corresponderia a
uma dimensão política que atravessa um largo espectro de contextos
relacionais que vão desde a própria tortura perpetrada pelos abusos de
uma política selvática de atentados aos direitos humanos, até às
sevicias corporais na imposição das hierarquias de poder.
Esta dimensão política encontra seguimento já em “território
protegido”, onde o corpo é reinterpretado pela sociedade de acolhimento,
que o regula através de normas jurídicas, confinando-o a espaços físicos
que tanto possuem uma dimensão europeia (apenas pode circular
legalmente no interior do espaço Shengen), como uma dimensão nacional
(obrigando cada requerente de asilo a apresentar-se mensalmente à Santa
Casa da Misericórdia ou Segurança Social, em troca da obtenção do
subsídio de sobrevivência mensal15). Este “corpo político” que, de acordo
com Foucault, estaria subjacente a todas as outras dimensões, ainda se
reflecte nas práticas políticas no campo da saúde que remetem alguns
refugiados para a sua inexistência institucional ao não poderem ser
registados no Sistema Nacional de Saúde (SNS), nas situações em que o
seu território de pertença não é reconhecido nos espaços geopolíticos
internacionais, como é o caso por exemplo, dos Palestinianos.
Os menores de idade podem igualmente encontrar dificuldades a
este nível aquando do seu pedido de asilo, em particular nos casos em
que a idade declarada não corresponde à suposta idade apreciada pelo
Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), com base em critérios
subjectivos, como referimos anteriormente. Nestes casos, a idade que
os jovens requerentes de asilo afirmam possuir é posta em causa pelos
agentes da autoridade. As autoridades portuguesas (SEF), em caso de
dúvida, solicitam ao Instituto Nacional de Medicina Legal a realização
de testes destinados a estimar a idade dos menores requerentes de asilo,
os quais consistem nomeadamente em Raios X efectuados à placa
dentária, com o fim de avaliar o estádio de formação da raiz de

15Na maior parte dos casos, este subsídio é de 150€ mensais.

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determinados dentes. A nível internacional, o ACNUR estabeleceu a


necessidade de utilização de técnicas que respeitem a dignidade
humana, dando ao menor o benefício da dúvida, caso exista incerteza
na idade. No entanto, não existem registos de dados concretos sobre os
índices de suspeita, aceitação ou rejeição destes pedidos de asilo com
base na afirmação etária.
A este propósito, parece pertinente referir que ao considerar o
conceito de juventude, frequentemente determinado por questões
culturais muito mais que por determinantes biológicos, existe um
paradoxo no que diz respeito aos jovens requerentes de asilo, o qual se
situa entre a construção cultural de juventude e a obrigatoriedade
jurídica de inscrição do corpo num marco biológico confirmado, ou
não, pelas “políticas tecnobiológicas” actuais16.

CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS DA SOMATIZAÇÃO

É, através deste corpo multidimensional threatened vehicule of


human beeing and dignity” (Csordas 1994) que os refugiados
encontram a única linguagem que lhes permite comunicar com o
Outro: uma linguagem feita de narrativas somáticas como a de S e de
tantos outros, que não encontra reflexo no consultório médico.
Segundo os testemunhos dos médicos entrevistados, os quais dão

16As políticas biológicas de confinamento do corpo afirmam-se na proporção directa da


tentativa de encerramento do espaço europeu aos imigrantes do sul e do leste. Exemplo
disto é a polémica lei francesa do governo de Sarkozy, que sofreu já a contestação de
diversas associações humanitárias numa manifestação organizada em Paris em Outubro
de 2008. Esta lei, visa restringir a entrada de mais imigrantes em França, bem como nas
restantes fronteiras europeias, impõe a aplicação de testes de ADN a todos os imigrantes
que, ao abrigo da lei do reagrupamento familiar, desejem reunir-se aos seus familiares.
Colocam-se em risco a existência de estruturas de parentesco que não correspondam às
ligações provadas geneticamente, conduzindo à hegemonia de padrões familiares
ocidentais, eles mesmo questionáveis.

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consulta aos requerentes de asilo no Centro de Saúde da Bobadela, não


havia a percepção exacta de que as queixas e sofrimentos que estes
apresentavam fariam parte dum processo de somatização. Apenas
referiam estranheza por os refugiados aparecerem sucessivamente nas
consultas apresentando as mesmas queixas.
De acordo com Lawrence Kirmayer (1991), somatização é um
termo normalmente usado para cobrir um vasto número de situações
clínicas: pacientes que se apresentam na consulta exclusivamente com
sintomas físicos, apesar de terem também problemas psico-sociais, ou
sofrimento emocional; pacientes que se auto-definem doentes, apesar
de não demonstrarem evidencias de doença; e igualmente pessoas que
apresentam um padrão de sofrimento frequente e inexplicável, ou ainda
sintomas somáticos funcionais induzidos, que causam inaptidão. No
caso dos refugiados, o sofrimento como consequência da tortura física
e mental, ou enquanto testemunhas de atrocidades (mortes, violações,
humilhações), marca no corpo, a necessidade de reconhecimento e
apaziguamento da dor.
A somatização é um problema extremamente comum em todas as
áreas da medicina. É também um problema de saúde pública, na
medida em que os sintomas funcionais estão entre as maiores causas
referentes à desadaptação ao trabalho e à vida social. São também
frequentes as queixas dos refugiados referindo que faltam ao trabalho
por se sentirem em sofrimento.
As somatizações provocadas por depressões e ansiedade devido a
traumas passados na guerra ou durante a fuga, ou ainda no penoso
processo de integração, são raramente detectadas pelos médicos
generalistas, podendo levar a tratamentos desadequados ou ineficazes
que apenas mascaram o sofrimento, conduzindo ao tal “consumismo da
consulta”, como referiam os médicos de clínica geral entrevistados.
Também aqui se coloca um problema frequente: a falta de comuni-
cação, quer pela existência de barreiras linguísticas e culturais, quer
por não haver uma prática clínica de escuta da história do paciente e

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dos motivos que conduziram ao seu sofrimento, quer ainda pela


ausência de um mediador que, após a receita passada pelo médico,
possa traduzir com eficácia, a posologia e a razão da prescrição ou o
modo de aplicar ou tomar cada medicamento. Estas condicionantes
levam a que, por vezes, os medicamentos receitados não sejam admi-
nistrados de forma adequada, originando mais complicações e possível
agravamento dos sintomas. Existem também rejeições convictas e
deliberadas, dos medicamentos prescritos pelos médicos, preferindo a
sua substituição por determinadas ervas ou outras práticas terapêuticas
(leitura de certas passagens do Corão, por exemplo), consideradas por
alguns refugiados, de acordo com a sua proveniência cultural, como
mais eficazes, para o tratamento de determinados mal-estares.
Nos consultórios psiquiátricos, a somatização é frequentemente
desvalorizada, demonstrando desinteresse por esta temática no campo
da psiquiatria (Kleinman 1988). Os clínicos incorrem frequentemente
no erro de considerar que os processos psicossomáticos são uma
dimensão de qualquer doença, não lhes votando a devida atenção,
como é o caso da maioria dos médicos entrevistados. Enquanto que a
teoria psicossomática está preocupada com as causas da doença, a
somatização foca a atenção na experiência e expressão da doença
revelada pelo contexto cultural, social e político em que o paciente se
encontra. A somatização é pois definida como “a tendência de
experienciar e comunicar um sofrimento somático e sintomas inexpli-
cáveis através de descobertas patológicas, atribuindo-lhes doença física
e procurando apoio médico através delas” (Kleinman 1988, p. 1359).
Como tal, a somatização é vista como uma variação no comporta-
mento da doença com a implícita necessidade de procura de atenção
médica, atenção essa que por dificuldade de interpretação é entendida
pelos clínicos como “consumismo de consulta”, como referenciamos
há pouco. A relação entre a somatização e as doenças psiquiátricas ou
as aflições psicossociais passam a ser mais uma questão empírica do
que uma questão de definição do conceito, na medida em que depen-

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dem da história de vida e do próprio conceito cultural e individual de


saúde e doença atribuído pela pessoa. A somatização mimetiza as
doenças físicas, uma vez que a pessoa não produz o sintoma
conscientemente. Quando as emoções fortes, como é o caso do trauma
provocado pela tortura ou testemunha de actos violentos, não podem
ser simbolicamente transformadas em linguagem verbal, tendem a ser
“descarregadas” através de caminhos autonómicos, causando
desordens fisiológicas, tantas vezes manifestas nas narrativas das
histórias de trauma dos refugiados, como refere Lawrence Kirmayer
(1991). Os sintomas mais comuns, também referenciados pelos
refugiados entrevistados, incluem: dores musculares, distúrbios
gastrointestinais, sintomas cardiopulmonares, sintomas pseudoneuro-
lógicos, e distúrbios menstruais e sexuais. Não se retira contudo a
necessidade de efectuar rastreios médicos com o objectivo de despistar
efectivamente algumas doenças. Kirmayer refere ainda um estudo que
realizou com 700 famílias, tendo subdividido a somatização em 3
categorias: (1) Somatização funcional: altos níveis de sintomas
medicamente inexplicáveis; (2) Somatização hipocondríaca: altos
níveis de preocupação pela existência de doenças sem evidências que
lhes correspondam; (3) Apresentação exclusiva de sintomas em
pacientes com depressões profundas ou desordens de ansiedade. Neste
estudo, Kirmayer conclui que dos 3 tipos de somatização, o 1º está
mais relacionado com a utilização dos serviços de saúde e o 2º com
uma auto-estima negativa ou pessimista, enquanto que o 3º se relaciona
fundamentalmente com factores de angústia e stress.
Em Portugal não existem ainda estudos científicos concluídos17,
tendo como objectivo a análise do estado de saúde físico ou mental dos
refugiados e requerentes de asilo, que nos possam elucidar sobre o
modo como o sofrimento somático está relacionado com o trauma.

17Neste momento, está a realiza-se o primeiro estudo de investigação/acção nesta área,


coordenado pela autora, e co-financiado pelo Fundo Europeu para os Refugiados e
Fundação Calouste Gulbenkian, através da Estrutura de Missão de Fundos Comunitários
– Ministério da Administração Interna.

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Esse caminho poderá dar resultados positivos em termos do trata-


mento, se o enfoque incidir não meramente na observação da doença
do ponto de vista da patologia, mas na experiência da doença sentida
pelo refugiado e analisada por equipas terapêuticas multidisciplinares,
cruzando os saberes e metodologias da medicina com outras áreas das
ciências sociais e humanas – psiquiatria, psicologia, antropologia,
sociologia, entre outras, tendo como eixo da abordagem principal o
trabalho de campo e a recolha e análise das histórias de vida / histórias
de trauma de refugiados e requerentes de asilo.
Destes refugiados, em parte pela incapacidade ou desadequação
do sistema de saúde mental que em Portugal lhes é colocado, ou não, à
disposição, ficam apenas as compungentes histórias transmitidas em
idiomas veiculares que nem sequer dominam, como o francês ou o
inglês. Oriundos da Serra Leoa, Eritreia, Congo, Bósnia, Colômbia,
Curdistão, Palestina ou qualquer outro lugar onde a vida obedece a
códigos que tantas vezes desconhecemos, logram sobreviver a
genocídios e extermínios étnicos nos quais testemunharam
frequentemente a tortura e a morte, como já anteriormente referimos.

ENTRE A ESCUTA INSTITUCIONAL E A ESCUTA TERAPÊUTICA

Em momentos anteriores fizemos referência ao trabalho de


pesquisa etnográfica, efectuada fundamentalmente através da escuta
das histórias de vida / histórias de trauma de refugiados e requerentes
de asilo. No âmbito desta abordagem, não podemos deixar de salientar
a importância da “escuta”, enquanto método de pesquisa científica e
também terapêutica. Este conceito tem sido usado pela antropologia
médica, nomeadamente por Didier Fassin (2004) numa perspectiva
eminentemente política e social. Tem sido igualmente utilizado por
psiquiatras transculturais, como é o caso de Richard Mollica (2006), e

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aplicado à história do trauma de que grande parte dos refugiados é


portador. Neste contexto, é pertinente referir ainda a forma como o
próprio poder político, securitário e social usa e estimula continua-
mente a escuta e recolha constante das histórias de vida dos refugiados
e requerentes de asilo.
Após o pedido de asilo, apresentado às autoridades portuguesas
antes da entrada oficial em território português (dentro do aeroporto, por
exemplo), o “requerente” fica provisoriamente retido pelas autoridades
oficiais – a polícia de fronteira – Serviço Estrangeiro de Fronteiras (SEF),
onde irá ser sujeito a uma entrevista crucial, uma vez que é perante a
“performance” retórica e corporal apresentada pelo requerente de asilo
numa primeira e fundamental escuta de narrativa de trauma, que lhe irá
ser, ou não, atribuído o estatuto de refugiado ou outra forma subsidiária
de protecção (ex. protecção humanitária). Nesta entrevista estão
presentes, o agente da autoridade e um jurista do CPR. Apesar das
diferenças culturais e sociais entre o requerente de asilo e o agente da
autoridade, e da situação traumática em que o primeiro se encontra,
frequentemente recém-chegado de um ambiente de terror e exploração
(a própria viagem de fuga dos países de origem, está por vezes, sujeita
a agressões sexuais perpetradas a troco de alimentos, mas também
roubos e fome), não estão presentes mediadores, antropólogos,
psicólogos. A única ferramenta que o requerente de asilo possui é a
performance do seu próprio corpo, as “narrativas da sua memória”. O
modo como conta a sua história, a forma como diz tudo com
pormenores ou, por outro lado, exibe silêncios, a intensidade do olhar
ou a fragilidade e submissão com que encara o agente da autoridade, as
referências que oferece do seu país, a postura do corpo na cadeira, a
capacidade de chorar ou, pelo contrário, reprimir emoções, toda a
subjectividade contida neste acto, é o verdadeiro passaporte para quem
não tem (ou não quer ter) outras formas de provar a sua identidade
numa sociedade em que o papel, os documentos, a imagem do eu,
substitui a própria identidade física do sujeito.

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“Um acto de identificação implica que a coisa de que se fala seja


situada numa categoria”. Esta afirmação de Lévi-Strauss (1992, p. 21),
adquire particular significação neste contexto europeu, em que o que se
pretende incluir numa categoria, é um sujeito que representa, na
perspectiva das autoridades, uma potencial ameaça para a suposta
segurança interna. Seja refugiado ou imigrante, é sempre este sujeito
que passa a ser sujeito a escrutínio, por não pertencer a uma cidadania
nacional reconhecida, localizada e integrada nos supostos “valores
ocidentais”. No entanto, esta necessidade de identificação estende-se
para lá da esfera securitária. Por vezes, são instituições como o Centro
de Saúde ou o Hospital que exigem do sujeito a assunção de uma
identificação de nacionalidade que não a sua (por vezes não registada
no sistema informático) para o poderem considerar inscrito no sistema.
É igualmente no cenário da entrevista decisiva com o agente do SEF
que o requerente de asilo possui nas suas mãos a possibilidade de recriar
uma identidade. Sabemos que a identidade é um processo continuamente
em construção que se vai criando e recriando em função do contexto
social, histórico, cultural, resultando de uma negociação com os outros
(Goffman 1963). As memórias de sofrimento e tortura a que a maior parte
dos refugiados estão sujeitos, condicionam a sua visão retrospectiva do
passado. Não necessariamente de uma forma patológica resultante de
personalidades múltiplas, mas como necessidade de repetição continua de
um passado (para si próprio e continuamente para os outros) que deriva,
em parte, de uma reconstituição imaginária de uma memória que devolve
ao refugiado o sentido da sua existência. Perante a exigência das autori-
dades de apresentação de uma história credível, o requerente de asilo
recria uma imagem possível a partir de papéis múltiplos e por vezes
socialmente aprendidos, com companheiros, vítimas de contextos de
violência e provenientes de origens nacionais semelhantes (existem, por
vezes, movimentos aprendidos, respostas que se reproduzem, contactos e
conselhos facilitados pela comunicação na internet). Como referem Venna
Das e Arthur Kleinman, na introdução do seu livro Violence and

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Subjectivity (2000): In either case it becomes necessary to consider how


subjectivity – the felt interior experience of the person that includes his or
her positions in a field of a relational power – is produced through the
experience of violence and the manner in which global flows involving
images, capital, and people became en tangled with local logics in
identity formation.
No entanto, a recolha da história do requerente de asilo, por parte
das instituições portuguesas, não termina no momento da primeira
entrevista à entrada da fronteira portuguesa. Ela vai estar continua-
mente presente a cada passo da suposta tentativa de integração dos
refugiados em Portugal, quer na entrevista para atribuição de subsídio
por parte da Segurança Social ou Santa Casa da Misericórdia, quer nas
repetidas e frequentemente infrutíferas entrevistas para obtenção de
emprego, quer ainda para tratar aspectos jurídicos relativos ao seu
estatuto de permanência em Portugal, ou também para a remota
possibilidade de ingresso numa escola pública. Contar a sua história
torna-se assim um “ritual de promessa de integração”, mais do que um
“ritual de passagem” para a sociedade portuguesa, a qual nem sempre
está isenta de uma certa curiosidade mórbida por parte de quem a
solicita insistentemente, sem provas de vantagens sociais, e muito
menos terapêuticas, para o próprio. Referindo Didier Fassin, num
artigo publicado na revista Ethos (2007): On the side of state agencies,
it implies evaluating the extent to which observing the psychological
traces of violence shakes the judgment practices of the bureaucrats
charged with deciding what to do about each asylum seeker (Herzfeld
1992). In other words, we want to analyze how much of the rhetoric
translates into practice.
Escutar a história do refugiado, ou “a exploração do seu passado”
tem, também segundo Fassin, duas funções: (a) terapêutica – porque
pode conduzir ao tratamento psicológico (o que raramente se aplica ao
caso de Portugal), e (b) institucional – porque permite que uma história
seja validada pelos trabalhadores sociais. O corpo e a mente assumem

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assim uma importância vital neste processo. No entanto, para alguns


refugiados, esta descontextualizada e repetida narrativa perante as
instituições – em particular as empresas empregadoras – nem sempre é
vista como algo de positivo, sendo antes considerada como uma
invasão da sua privacidade por alguém que não tem nada para lhes
oferecer em troca da narrativa do seu sofrimento.
Voltando um pouco atrás, regressamos à importância dos “locais
de escuta” ou “escuta terapêutica” na antropologia médica e na
psiquiatria transcultural. Didier Fassin (2004) critica o modo abusivo
com que, por exemplo, no contexto francês, desde a década de 1990, se
“psicologiza” o sofrimento dos desempregados, dos adolescentes-
-“problema”, dos imigrantes indocumentados e dos sem-abrigo, entre
outros. O Estado justificou a intervenção do poder público e privado
através da criação de “locais de escuta” que se multiplicaram por
aquele país e que, segundo Fassin, reflectem uma política que associa e
relaciona pobreza e sofrimento, e cuja proposta de acção não se
encontra, nem no âmbito social nem da psiquiatria, mas na
complementaridade destas duas esferas. Fassin critica a ausência de
envolvimento de especialistas na área, na medida em que se recrutam
para esta tarefa quaisquer profissionais que possam vir a desenvolver
apenas empatia ou afecto, relativamente ao público-alvo destas
políticas, sem nenhuma formação subjacente. A ausência de
profissionais adequados, não só prejudica directamente os envolvidos,
como trata as desordens sociais de forma desadequada e sem
fundamentação teórica, esvaziando qualquer reivindicação de justiça.
Fassin adverte finalmente para os problemas destas acções de escuta
que, na maior parte das vezes, se aproximam muito de um trabalho de
animação lúdica, apresentada como terapêutica e pacificadora, sem
espaço para a reivindicação para a denúncia de violências institu-
cionais, ou sequer para a busca de medidas mais eficazes tanto na
procura de justiça social, como na procura de respostas terapêuticas ou
científicas.

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Por outro lado, e tal como referimos anteriormente, o ponto de


vista de alguma psiquiatria transcultural, nomeadamente de Richard
Mollica no Harvard Program in Refugee Trauma, é a de que a escuta
da “história do trauma” feita a partir da contextualização cultural e
simbólica da pessoa, é uma das metodologias mais importantes usadas
pelos clínicos (médicos generalistas, psicólogos, psiquiatras,
terapeutas), para a garantia da eficácia do tratamento do sofrimento
mental dos refugiados e requerentes de asilo, sobreviventes de
violência, humilhação e tortura. Não descorando a importância da
“empatia” entre clínicos ou terapeutas e refugiados, considerando-a até
um dos elementos fundamentais para a obtenção da cura – a par da
importância da crença numa religião ou até da resiliência – Mollica
atribui uma importância fundamental à escuta terapêutica e à história
do trauma, proveniente do trabalho de campo e da investigação
científica, como veremos mais adiante.

USOS E SIGNIFICADOS DOS CONCEITOS: “SOBREVIVÊNCIA”,


“TRAUMA” E “HISTÓRIA DO TRAUMA”

O conceito de “sobrevivência” a que nos referimos em linhas


anteriores, necessita ser aprofundado: Sobreviver significa, nestes
casos, escapar com vida, conseguir livrar o corpo de uma morte
vaticinada, ser o herói que resistiu ao caos. Contudo, na maioria dos
casos testemunhados, continuam visíveis as marcas da tortura, nos
relevos das cicatrizes, no corpo deformado pelas marcas do confina-
mento durante demasiado tempo, num buraco que não possuía sequer
as dimensões mínimas que permitissem à pessoa erguer-se vertica-
lmente, ou estender-se em posição horizontal, e que dia após dia ali
permanecem, para lembrar ao próprio os momentos limite por que
passou e que fazem agora parte indelével da geografia da próprio
corpo, manifesta através de dor física e das cicatrizes por ela deixada.

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Mas, por outro lado, sobreviver também implica conservar


permanentemente na memória os momentos do perigo experienciado.
É a esta memória que assalta os dias e as noites, que filtra a realidade
agora outra, que provoca o choro e a aflição, que coloca o corpo em
posição de constante vigília e que tolhe a possibilidade de preparar um
outro futuro longe do perigo, que chamamos memória traumática.
Não sendo este o objectivo específico deste artigo, apresentamos
aqui de forma breve, o conceito, o qual está normalmente associado a
uma categoria divulgada pela psiquiatria norte-americana que recorreu,
inicialmente, a avaliações psiquiátricas a militares combatentes na II
guerra mundial, definidas como “neuroses de guerra” e, posterior-
mente, a vítimas da guerra do Vietname, as quais, devido às suas
características comportamentais, foram definidas e catalogadas pela
Associação Americana de Psiquiatria (APA) na DSM III18 em 1980,
como “PTSD” (Post Traumatic Syndrome Disorders). Este conceito,
alvo de grande controvérsia, que contrapõem em particular psiquiatras
e antropólogos, tem sido adaptado largamente pela psiquiatria
transcultural norte-americana.
O conceito de PTSD não está isento de alguns reparos feitos pelos
próprios psiquiatras, nomeadamente, pelo “Harvard Program in
Refugee Trauma”. Mollica (2008-2009) propõe que se olhe para o
prisma da PTSD como algo que teve um passado histórico, que
começou por ser criado por perpetradores para perpetradores (médicos
psiquiatras norte americanos para tratar militares norte-americanos
durante a guerra do Vietname), mas que, apesar de tudo, é um

18O primeiro Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) foi publicado
pela “American Psychiatric Association” (APA) em 1952. Nele são apresentados vários
diagnósticos para as doenças mentais. Passou a constituir uma ferramenta de trabalho
inicialmente para todos os psiquiatras norte-americanos, espalhando-se depois por todo
o mundo ocidental. O DSM é também usado por clínicos, investigadores, companhias
farmacêuticas, companhias de seguros, políticos, entre outros. Actualmente, e apesar da
controvérsia que sempre suscitou, não só entres os próprios psiquiatras, como entre
outros cientistas sociais, está já em preparação a V edição que inclui um veque mais
vasto de “desordens mentais”.

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instrumento que poderá ter vantagens no diagnóstico de vítimas de


trauma no presente, em diversos contextos, desde que esteja
salvaguardada a importância das narrativas e interpretações culturais
para os conceitos de sofrimento e tortura, e a forma como cada
comunidade lida na prática, e também ao nível simbólico, com a noção
de trauma, reconhecendo que existem grupos culturais que não
possuem sequer este conceito. Paralelamente, é necessário observar
igualmente o contexto sociopolítico em que cada refugiado se
encontra, de modo a ampliar a rede de suporte social de que ele irá
eventualmente necessitar.
Contudo, para além da anterior definição, por vezes discutível, de
“trauma” ou de “doença de síndrome pós-traumático”, interessa-nos mais,
do ponto de vista da antropologia, referir a importância da “história do
trauma” contida nas narrativas dos refugiados em contexto das entrevistas
em profundidade levadas a cabo no levantamento etnográfico.
A definição de “trauma story” é ainda de acordo com Richard
Mollica (2006), a seguinte: The trauma story is a personal narrative told
in the person’s own words about the traumatic life events they have
experienced and the impact of these events on their social, physical, and
emotional well-being. It is not someone else’s interpretation of events,
although it may contain observations on the reactions of family members
and the local community… Nesta acepção, a história do trauma apresenta
os seguintes elementos constitutivos: narrativa factual dos eventos;
significado cultural de trauma; revelações da experiência do trauma;
relacionamento entre o narrador e aquele que escuta. Este último
elemento, passa a ser o ponto fundamental, a partir do qual irá depender
o sucesso terapêutico, dependendo este de três importantes factores: a
sensibilidade cultural do terapeuta, a empatia estabelecida entre o
narrador e aquele que escuta e a consciência do entorno sociopolítico e
institucional, em que ambos se situam.
O Antropólogo Allan Young (1995) debruça-se em profundidade
sobre os complexos contornos da memória e da memória traumática.
Esta, clinicamente considerada até 1950, um fenómeno marginal e

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heterogéneo, foi posteriormente transformada pela Associação


Americana de Psiquiatria (AAP) num sistema classificatório obriga-
tório19 que passaria a constituir a grelha de avaliação da desordem do
stress pós-traumático (PTSD)20, tal como já anteriormente referido.
Young, alerta-nos também para a importância de se considerar a
memória como algo que nos molda o sentido de ser pessoa, sendo que
simultaneamente, este mesmo sentido ou auto-percepção, é um produto
da nossa própria concepção de “memória” que depende daquilo que em
determinado contexto de tempo ou lugar é valorizado como tal. Algumas
destas concepções têm-se modificado ao longo da história e em diversos
contextos culturais, tal como as práticas através das quais as memórias
são recuperadas, interpretadas e narradas. Vários autores referem que, a
PTSD é um produto histórico com pretensões nosológicas ou descritivas,
que surgiu da necessidade de tratar o sofrimento interiorizado pelos
militares americanos durante a guerra do Vietname e que tem acarretado
como consequência, enormes vantagens financeiras para a indústria
farmacológica que produz os medicamentos que supostamente
apaziguam os sintomas a ela associados. Menciona ainda Young: (…)
This general accepted picture of PTSD, and the traumatic memory that
underlies it, is mistaken. The disorder is not timeless, nor does it possess
an intrinsic unity. Rather it is glued together by the practices,
technologies, and narratives with wich it is diagnosed, studied, trated,
and represented, and by the various interests, institutions, and moral
arguments that mobilized these efforts and resources (…) (Young 1995).
Uma das principais recomendações de Mollica (2006) na
utilização das histórias de trauma enquanto elemento fundamental para
o apaziguamento do sofrimento consiste na sintonia cultural, ou seja,
na atenção dada às diversidades culturais, uma vez que as noções de
trauma, sofrimento ou doença, e respectivas causas, possuem

19 Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM III).


20 A PTSD: Post-Traumatic Stress Disorder, foi adoptada pela AAP como parte integrante
da sua nosologia oficial, em 1980.

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significados diversos de acordo com os contextos, não devendo


portanto existir uma tradução literal das narrativas, sob pena de se
distorcer o diagnóstico conducente ao tratamento terapêutico.

FACTORES SUBJACENTES À INTERPRETAÇÃO DO TRAUMA

O trauma exige uma constante redefinição dos limites do sentido.


Designar uma experiência como traumática não é ficar aquém ou além
da história numa sujeição ao absurdo ou ao transcendente de uma
natureza humana cujo perfil nos escapa. Trata-se de uma maneira de
contornar a ameaça da intransitividade que parece pairar em tudo o
que se situa nas fronteiras do que pode ser dito (Quintais, 2005/2006).
Compreender o trauma exige pois que consideremos a interacção de
processos em diferentes níveis de tempo. A complexidade destas
interacções, e dos esforços permanentes dos indivíduos para se colo-
carem a si próprios de maneira a que sejam socialmente valorizados,
resulta em muitas narrativas por vezes antagónicas. Posicionarem-se no
papel de vítimas perante as instituições de saúde, omitindo o papel de
perpetradores quando por vezes ele também existe (ainda que este lado
possa ter igualmente consequências traumáticas), revela a decisão de
privilegiar apenas uma narrativa – a versão da história com a qual
conseguem lidar – e reflecte valores e interesses que podem ser expli-
cados num contexto social determinado, como é o de uma sociedade
democrática.
Segundo Gregory J. Quirk, Mohammed Milad, Edwin Santini, e
Lelimer Leblón (Kirmayer 2007), a maior parte das pessoas que
experienciaram um trauma não desenvolvem PTSD. Isto significa que a
grande maioria das pessoas são altamente resilientes face ao trauma,
possuindo inclusive, como refere Mollica (2006), a capacidade de se
curarem a si próprios através daquilo que ele designa por power of self

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healing, recorrendo a actividades como a prática religiosa e espiritual e o


altruísmo, por exemplo. Salvaguardando a ausência de avaliação
psicológica efectiva de alguns refugiados entrevistados, mas atendendo à
sua história de vida / história de trauma no passado, e o actual percurso
já em Portugal, podemos confirmar sem grande margem de erro que
efectivamente, existem casos de salutar gestão dos sentimentos, atitudes
e vivências do quotidiano que denotam a capacidade para self healing. É
de salientar contudo que estes casos estão na sua maioria relacionados
com duas situações: ou a existência de um núcleo familiar estável e o
início de um percurso profissional satisfatório, ou ainda a existência de
um suporte afectivo (família ou rede de apoio que a substitui). Em
ambos os casos, existe por vezes, um certo evitamento em relação ao
convívio com outros refugiados, como se a presença destes, trouxesse à
memória o trauma passado. Também por outro lado, e relativamente aos
primeiros tempos de permanência no Centro de Acolhimento de
Refugiados, poderão ser levantadas questões relacionadas com a
identidade: para além da partilha do sofrimento, que outras partilhas se
poderão dar, num contexto em que as diferenças culturais, sociais,
económicas ou religiosas chegam a ser tão díspares?21
Outro elemento fundamental é a confiança ou, dito por outras
palavras, a empatia desenvolvida entre o paciente e o terapeuta. Este
aspecto não pode ser desvalorizado, na medida em que existe uma
relação biunívoca e reflexiva entre um e outro sujeito, concorrendo
ambos para a eficácia da cura. O enquadramento biológico, socio-
cultural, político e religioso, são igualmente considerados como
fazendo parte integrante do processo, constituindo o cenário onde o
sofrimento se revela e a cura se deseja.

21 Alerto para o facto de que a continuação da investigação sobre esta matéria, poderá
futuramente trazer novos dados que permitam esclarecer melhor as ligações quase
confidenciais que colocam em relação os refugiados com os requerentes de asilo
residentes no CAR. Contudo pode-se afirmar que grande parte destas relações subsistem
ou pela partilha de histórias de vida semelhantes no mesmo país de origem, ou com
maior relevância, pela classe de idade (jovens e adolescentes).

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Autores como Arthur Kleinman (Kleinman et al. 1994), referem-se


ao sofrimento da seguinte forma: “o sofrimento, é o resultado de um
processo de resistência (rotinizado ou catastrófico) no fluxo da
existência. É o lado negro da existência com as suas consequências
morais ou sintomáticas...”22
Também Veena Das (2001), afirma que, muitos dos que encaram
um sofrimento profundo, experienciam um mundo caótico e aleatório.
O processo que leva a suportar um sentimento de perda quotidiana, as
ameaças e a brutalidade das privações, passam a constituir experiências
marcadas por um sentimento de terror, desolação e alienação.
Silove, manifesta igualmente a preocupação relativa ao uso
excessivo da abordagem focada na PTSD para a avaliação do trauma
em refugiados. Segundo ele, numa perspectiva transcultural, têm-se
vindo a apresentar alguns questionamentos sobre a validade de
aplicação do “modelo ocidental do trauma” (PTSD) nalgumas culturas
e sociedades onde prevalecem os abusos políticos (Bracken et al. 1995;
Simpson 1993; Summerfield 1997). As críticas referem que a
preocupação ocidental com a PTSD pode reflectir uma excessiva
“medicalização” aplicada a angústias e sofrimentos compreensíveis.
Uma posição alternativa, afirma que a PTSD pode não cobrir a
complexidade das respostas psicológicas que surgem das graves
violações aos direitos humanos (Herman 1993; Silove 1996). Os
progressos neste campo de pesquisa requerem estudos ilustrativos
adicionais, que façam uso de modelos conceptuais mais alargados, os
quais possam fornecer mais dados a partir do campo.
Existem igualmente vulnerabilidades e factores de protecção que
podem, ou não, influenciar a resposta individual ao trauma. Por exemplo,
um historial de distúrbios mentais anteriores parece ser, segundo
alguns psiquiatras, factor de risco de futuras sequelas psiquiátricas em
refugiados. Por outro lado, a fé religiosa, o compromisso com causas
políticas, ou a preparação psicológica para a tortura (no caso de

22 Tradução livre.

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militantes políticos clandestinos a operar em regimes opressivos), são


factores que sugerem providenciar alguma protecção contra
consequências psicológicas adversas (Allden et al. 1996; Basoglu et al.
1996, 1997; Holtz 1998; Shrestha et al. 1998; Silove 1996).
Alguns factores culturais em comunidades não ocidentais, podem
igualmente fornecer protecção parcial contra o sofrimento mental. Tal
é o caso de diversos contextos específicos moçambicanos (ex: planalto
da Gorongoza), onde em situações de pós-guerra, o sofrimento de um
membro da comunidade é resolvido por toda a comunidade através do
envolvimento desta, em rituais de cura colectivos. A cura é entendida
como o restabelecimento da harmonia social da pessoa. Também é
necessário referir que segundo a exegese do sofrimento local, nada
acontece por acaso e a dicotomia entre corpo e mente não existe sequer
(V. Igreja 2008).
Num contexto pós-traumático, a perda das redes sociais de apoio,
bem como a separação dos membros da família, são factores marcantes
que podem contribuir para a perpetuação de sintomas de sofrimento
mental, particularmente de depressão, alheamento e tristeza. A idade, a
desadaptação linguística, a adversidade social e económica e o receio
de repatriamento, podem ser, ainda segundo Silove, factores que
contribuem negativamente para a recuperação do sofrimento mental e
outras formas de stress psicossocial em refugiados e requerentes de
asilo. Entre refugiados, existe igualmente evidência da prevalência de
outros problemas psiquiátricos, tais como as desordens depressivas, as
quais podem ser mais comuns do que os definidos como pertencentes a
um diagnóstico de PTSD (Mollica et al. 1993, p. 203).
São ainda comuns os registos dos seguintes sintomas entre
refugiados e requerentes de asilo: falta de motivação, instabilidade
afectiva, enfraquecimento cognitivo, alterações de comportamento,
somatização, momentos de fúria, culpa e vergonha, dificuldade de
relacionamentos interpessoais, e uma tendência geral para a revitimi-
zação. Estas características possuem eco empírico entre os refugiados e

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requerentes de asilo entrevistados, sendo a falta de concentração e a


dificuldade de memorização de tarefas correntes, alguns dos lamentos
mais referidos, mesmo no caso de refugiados jovens. Paralelamente,
alterações de comportamento que segundo os técnicos que prestam
serviço de apoio23 aos refugiados e requerentes de asilo, oscilam entre
a docilidade excessiva e a agressividade, podem ajudar a compreender o
sofrimento provocado pelas situações extremas a que anteriormente
foram sujeitos bem como a decepção por não conseguirem comunicar
com os técnicos sobre as suas verdadeiras necessidades e preocupações.
Será contudo necessário analisar estas demonstrações de sofrimento, não
como manifestações de carácter patológico que encontram resolução
terapêutica na eventual administração de fármacos, mas como a reacção
natural a estímulos negativos exógenos, proveniente de desajustamentos
sociais e desadaptação a um contexto ecológico do qual não logram
reconhecer e interpretar as lógicas e os sinais. Será este ambiente social e
institucional sentido como hostil que constitui o lugar a partir do qual as
manifestações de sofrimento mental se revelam.
A tortura física e mental, representa um exemplo extremo da
violação dos direitos humanos, durante a qual o perpetrador ameaça
violenta e deliberadamente a vítima, e a desumaniza, humilha e
degrada. A traição e a denúncia, obrigam as vítimas a fazer escolhas
forçadas e impossíveis, entre alternativas igualmente repreensíveis. São
frequentes os casos de crianças-soldado que foram obrigadas a escolher
entre matar um familiar ou sobreviver. O que acontece posteriormente
– nomeadamente a assistência jurídica desadequada ou a falta de apoio
social moldado às necessidades e idiossincrasias pessoais – contribui
para a exacerbação do sentimento de injustiça, que pode conduzir a
incompreendidos comportamentos agressivos. Por outro lado, estes
comportamentos não devem também ser abordados numa perspectiva
patologizadora, mas de reivindicação sociopolítica. Encontra-se aqui
subjacente o direito à indignação perante a incompreensão dos

23 (CPR; SCLL; SS).

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conteúdos herméticos das normas e obrigações relacionadas por


exemplo, com indeferimentos de solicitações de apoio do Rendimento
Social de Inserção (já referidas anteriormente), transmitidas em cartas
institucionais dirigidas aos refugiados, as quais, de forma sistemática,
não contemplam as barreiras linguísticas e culturais, entraves à
compreensão dos seus conteúdos e, consequentemente, à inserção dos
refugiados na sociedade portuguesa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: OUTRAS ABORDAGENS E


PERSPECTIVAS

Fica ainda em aberto uma outra perspectiva que não deve ser
descurada: a da importância da religião e da espiritualidade no
processo de cura de vítimas de trauma. Na recolha etnográfica das
narrativas de trauma, bem como nas abordagens terapêuticas dos
refugiados, explorar as suas crenças e práticas religiosas não significa
que partilhemos ou não dessas crenças. Poderemos usar o nosso
entendimento ou conhecimento de práticas religiosas no sentido de
facilitar a obtenção da cura, daqueles para quem o factor religioso
possui um significado holístico. Neste domínio, como em tantos
outros, do ponto de vista de um trabalho de recolha etnográfica em
profundidade, muito caminho está ainda por percorrer.
Para finalizar, uma abordagem que coloque o eixo fulcral nas
história de vida / histórias do trauma, e que aqui propusemos, advém
de um modelo médico não existente ainda em Portugal e que incorpora
para além da abordagem antropológica, a terapêutica, a investigação
científica, a formação, a valorização dos recursos (empowerment) e a
identidade recriada do próprio refugiado e sua incorporação, como um
dos elementos fundamentais do tratamento culturalmente sensível.
Também aqui, muita coisa está por fazer em Portugal, no domínio da
pesquisa científica e das respostas terapêuticas. Esse trajecto passa

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enfim, pela transformação das histórias de trauma em narrativas de


novas histórias que possam ser contadas não através da manifestação
de sentimentos de vergonha e humilhação, mas de dignidade e orgulho,
através de um caminho feito de vontades e escolhas deliberadas.

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Capítulo 5

Outras vidas, outras histórias:


A consciência cultural
na narrativa terapêutica com migrantes

Ana Mourão*

* Bolseira de Investigação (BI), no âmbito do Projecto “Políticas da saúde e


práticas terapêuticas: Os percursos de cura dos migrantes na área da Grande
Lisboa” (Investigadora Principal: Chiara Pussetti), acolhido pelo CEAS /
ISCTE, e financiado pela FCT-MCTES
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INTRODUÇÃO

A abordagem das ciências humanas à experiência da “doença”1 –


principalmente a doença grave ou crónica – tem vindo a concebê-la
com alguma recorrência enquanto ruptura existencial ou assalto
ontológico 2 . Tal ameaça pode ser sumariamente descrita como o
soçobrar dos pressupostos básicos que o indivíduo mantinha sobre a
identidade, o mundo, a vida e o seu próprio lugar neles previamente à
doença. O carácter “existencial” desta experiência situa-se no seio das
múltiplas dimensões de perda que a doença acarreta para o indivíduo.
Com efeito, o doente crónico não experiencia apenas um
sofrimento físico. A experiência do mal-estar afirma-se e assume
importância para o sujeito nos seus diversos sentidos: físico, cultural,
pessoal e social (Kleinman 1980: 364, 1988: 3-55). Perdas de eficácia e
controlo (significativamente sobre o corpo); perdas de sentido e de
certezas, entre as quais da noção de continuidade temporal e das
expectativas de futuro antes tomadas como garantidas; perdas na
autonomia, capacidade de acção e funcionamento produtivos na

1 Utilizo a expressão no sentido de illness, seguindo a distinção clássica entre disease, a


entidade patológica objectiva, biologicamente fundada, que é o foco da biomedicina, e
illness, a experiência subjectiva e pessoal do mal-estar (Kleinman 1980: 72-73).
2 E.g., Hunt 2000: 88-90; Crossley 1999: 96; Sakalys 2003: 229-230; Crossley 2000: 539.

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sociedade; perdas no domínio dos relacionamentos sociais – estão entre


as baixas causadas pela doença crónica (Charmaz 1999: 366; Crossley
1999: 96; Sakalys 2003: 229). A metáfora do “naufrágio” (Frank 1995:
54-55) é a esse respeito elucidativa: o indivíduo enfrenta subitamente
uma situação desconhecida e liminar, que surge no (e pelo)
rompimento abrupto com o mundo familiar até aí tomado como certo.
E por entre as múltiplas rupturas experienciadas, o “naufrágio” da
doença crónica gera, significativamente, uma ameaça existencial que é
na sua essência biográfica e identitária3.

RUPTURA BIOGRÁFICA

CURSO BIOGRÁFICO E IDENTIDADE

A biografia é concebida como percurso continuamente tecido e


recomposto pelo indivíduo a partir da sua perspectiva e preocupações
presentes4, estendendo-se daí em dois sentidos: retrospectivamente,
operando uma recomposição selectiva dos eventos recordados; e
prospectivamente, fazendo conduzir esses eventos a planos e projectos
futuros antecipados. Com efeito, o tempo em que sucedem os eventos é
sempre para os indivíduos um tempo “existencial”, ancorado em
preocupações subjectivas, e inseparável de um “esperar” (pelo futuro)
e de um “reter” (o passado) (Ricoeur 1981: 169).
A reflexão biográfica é marcada pela primazia da “memória”:
trata-se de um processo em grande medida de recordação (recollective)
(Freeman 1993: 29). Porém a memória autobiográfica não é meramente

3 Como sublinha Charmaz: “suffering poses existential problems of identity and


continuity of the self” (1999: 364).
4 Ver por exemplo Ochs e Capps 1996: 25; Baumeister e Newman 1994; Ricoeur 1981:
passim.

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reprodutiva, constituindo um acto em si mesmo hermenêutico-recons-


trutivo, interpretativo e criativo, que não se cinge a relatar os eventos
passados mas antes lhes atribui um sentido e uma forma, avaliando o
seu significado e importância, e estabelecendo entre os eventos
ligações relevantes – inevitavelmente guiadas pelo ponto de vista
presente do indivíduo (Garro 2000: 70-73; Freeman 1993: 29, 54).
Hacking chega mesmo a falar de uma dimensão de “indeterminação no
passado” – na medida em que as acções humanas intencionais são
acções sempre “sujeitas a uma descrição” (under a description), ela
própria sensível ao decorrer do tempo e à mudança dos horizontes
conceptuais e interpretativos do sujeito (cf. Hacking 1995: 234 et seq.).
Este sentido de que são investidos retrospectivamente os eventos
recompõe-nos reflexivamente numa trajectória conexa que conduz
causalmente do passado lembrado ao presente vivido, num percurso
que aparece como lógico e natural: nesta concepção da história de vida,
a “ordem cronológica” dos eventos coincide com uma “ordem lógica”
da sequência (Bourdieu 1997: 53-54). Os critérios selectivos e
interpretativos – relacionados com as prioridades, interesses e
perspectivas do sujeito5 – que orientam a recordação e a composição
deste nexo sequencial dotam-no de uma unidade e coerência
fundamentais, animadas pela “intenção” ou finalidade intrínsecas a um
“projecto” comum: desde o início do relato, com a sua causa primeira,
até ao final, no seu cumprimento teleológico (Bourdieu 1997)com
contributo das expectativas, planos e projectos alimentados pelo
indivíduo sobre o futuro (Garro 2000: 70; Ochs e Capps 1996: 24).
De acordo com uma perspectiva “narrativa” que se tem tornado
dominante nas ciências humanas nas últimas décadas6, é sobre esta
continuidade biográfica que se alicerçam a integridade percebida do
“Eu” (self) e a noção individual de identidade.

5 Cf. Baumeister e Newman 1994; Crossley 2000: 532.


6 Cf. Riessman e Quinney 2005; Cardoso, Camargo e Llerena 2002; Roberts 2000;
Crossley 2000; Mattingly e Garro 2000: 4-5, 7-9; Murray 1997; Gonçalves 1995: 139.

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A estabilidade postulada do “Eu” enquanto entidade una – face à


experiência da sua variabilidade ao longo do tempo e do espaço, à
“rapsódia das sensações singulares” que o sujeito experiencia
(Bourdieu 1997: 55) – assenta sobre a noção da sua existência contínua
ao longo do tempo. Assumindo o truísmo de que o fluxo da mudança é
real e inevitável, alcançar alguma forma de “imobilização” do tempo
torna-se, segundo argumenta Chandler (2000: 210 et seq.), condição de
existência para qualquer conceito ou discurso operacional sobre o
“Eu”, independentemente da sua época ou cultura (Ibid.: 226-227).
Este autor fala-nos do “problema da continuidade do ‘Eu’” ou
“paradoxo da persistência pessoal” face à mudança, descrevendo os
dois tipos de solução que o pensamento filosófico Ocidental encontrou
para esta questão ao longo da história. Designadamente, à tradicional
visão “essencialista” da identidade7, fundamentada sobre a noção de
uma qualquer substância intrínseca ao sujeito e perene face à mudança
(por exemplo a “alma”), reagiu mais tarde uma consciência pós-
-modernista 8 da natureza contingente, transitória e discursiva do
sujeito (Ibid.; Crossley 2000: 528-530). O autor argumenta, com base
em alguma investigação transcultural9, que neste aspecto a “ontogenia
reproduz a filosofia”: as respostas encontradas pelos indivíduos de
diferentes culturas enquadram-se basicamente em algum dos dois
anteriores posicionamentos teóricos – soluções ‘de entidade’ ou
‘relacionais’ (Ibid.: 218-228).
Rejeitando ambos os extremos como redutores – o essencialismo,
assim como as correntes mais radicais “pós-estruturalistas” – vários
autores 10 encontraram em perspectivas de cariz “narratológico”,

7 Herdeira da filosofia grega antiga e do racionalismo modernista.


8 Num espectro variado, com diferentes posições e graus de crítica e niilismo, como
descreve o autor (Ibid.: 213-215).
9 Nomeadamente a pesquisa que um grupo de investigadores (incluindo o autor) conduziu
no Canadá, sobre o modo como grupos de adolescentes de dois contextos socioculturais
diferentes resolvem o paradoxo da identidade.
10 E.g., Chandler 2000; Elliott 2005: 123-125; Crossley 2000: 528-531.

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hermenêutico e interpretativo o equilíbrio temperado entre as


duas posições radicais, capaz de providenciar uma resposta sensata
para o referido paradoxo da identidade. Reforçando esta ideia, o autor
chega a afirmar que o mérito do segundo tipo de perspectiva (hoje
corrente nas próprias ciências humanas) é evidenciado “pelo facto de
ser regularmente empregue, nalguma das suas variantes, por indivíduos
de quase todas as variedades culturais imagináveis” (Chandler 2000:
215).
Ricoeur terá sido um dos pensadores mais influentes sobre este
tipo de concepção (Elliott 2005: 124-125). Na sua abordagem à
problemática da “identidade”, o autor resolve o paradoxo distinguindo
duas acepções diferentes que o termo pode tomar, e adoptando uma
delas em detrimento da outra: a identidade é definida enquanto
“permanência” no tempo, sem implicação de “mesmeidade” através
dele (Ibid.) – destarte fundando o conceito de identidade, pela própria
definição, sobre a condição da continuidade temporal.
Como anteriormente referido, esta continuidade fundamental que
possibilita falar em “Eu”11 não é dada, mas antes deve ser, face à
transitoriedade da mudança, construída pelo sujeito. As abordagens
narrativas e interpretativas alicerçam esta continuidade identitária nas
conexões de “sentido” passíveis de serem percebidas e estabelecidas
pelo sujeito entre os diferentes momentos da sua existência – passada,
presente e futura – conferindo-lhe um carácter coerente e totalizador.
Contudo, certas experiências extremas na vida do indivíduo podem
comprometer tais possibilidades de conexão, pela sua natureza caótica,
desarticulada e desprovida de sentido, porque alheia à lógica causal
unificadora que organiza o curso biográfico. A doença crónica surge
como uma dessas experiências.

11 Como salientam Ochs e Capps, a visão convencional da psicologia sobre o


desenvolvimento humano, assim como o uso de pronomes pessoais e outras formas de
referência, implicam a existência de um “Eu” unificado (1996: 29).

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DESARTICULAÇÃO NA DOENÇA

Como já referido, a continuidade biográfica sobre a qual se


fundamenta, numa perspectiva narrativa, a integridade identitária, é
tecida sobre e está dependente de uma compreensão do passado –
reconstruído selectivamente pela memória – enquanto antecedente
lógico do presente, conduzindo até ele, e deixando abertas
possibilidades imaginadas de progressão futura. Neste percurso linear
limpo e ordenado, a doença surge como uma interrupção (Frank 1995:
56), um intervalo de tempo em que o ritmo normal da vida é quebrado,
e em que as estruturas e papéis sociais são subvertidos (Hunt 2000:
88). As palavras de Frank sumariam este efeito de ruptura sobre a
continuidade do curso biográfico do indivíduo:
“Disease interrupts a life, and illness then means living with perpetual
interruption. […] The interruption that illness is, and the further
interruptions that it brings, are disruptions of memory. [...] The
memory that is disrupted is a coherent sense of life’s sequence [...]: the
present is not what the past was supposed to lead to, and whatever
future will follow this present is contingent.” (Frank 1995: 56, 58, 59)

Metaforizada na supracitada imagem do “naufrágio”, a


experiência da doença acarreta para o sujeito uma série de perdas e
desafios, relacionados com as suas concepções interligadas do corpo,
da identidade e do mundo (Crossley 1999: 96). O que é ameaçado, para
além das capacidades físicas específicas que a doença compromete, são
as expectativas e pressupostos antes tomados como certos (Hunt 2000:
88), o lugar que o indivíduo antes ocupava na realidade tal como ele a
compreendia: a sua “visão do mundo” (Weber, Rowling e Scanlon
2007: 945). A mudança severa (e frequentemente repentina) da
situação – física, mental, social, afectiva – do sujeito, criando uma
disjunção evidente entre o passado e o presente e minando o seu
edifício de auto-construção identitária, força-o a um novo olhar e
interpretação sobre os eventos vividos, conduzindo frequentemente a

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tentativas de rearticulação e reconstrução daquele lugar perdido – que


procuram integrar a nova experiência no contexto global do curso de
vida, criando conexões significativas que permitam restabelecer a
continuidade quebrada (Kirmayer 2000: 154-155; Charmaz 1999: 365;
Crossley 2000: 541).
Contudo, como sublinha Kirmayer, a vivência da doença – marcada
pela intrusão dos sintomas nas tentativas de verbalização do paciente –
apresenta-se à consciência muitas vezes sob uma forma fragmentada,
“não-narrativizada” e “caótica”, que a torna “incompreensível” e pode
impossibilitar a sua expressão articulada (Kirmayer op. cit: 153, 169,
171). O autor sugere a este respeito uma atenção à dimensão da
metáfora no contexto clínico, enquanto elemento pré-narrativo, frag-
mento de linguagem poética capaz de exprimir os sentidos múltiplos,
incompletos, tentativos e potenciais que a vivência da doença pode
evocar no sujeito, e que não são ainda articuláveis na forma de um
discurso uno e coerente (Ibid.: 155-157, 171, 175). Esta situação de
‘desarticulação’ corresponderá à “narrativa de caos” descrita por Frank
(1995: 97-114), que se trata na realidade, como explica o autor, de uma
“anti-narrativa”, uma vez que: “those who are truly living the chaos
cannot tell in words” (Ibid.: 98). Um cenário mental desse modo
dominado pela ausência de controlo sentido, e pelo gorar das
expectativas de ordem temporal e causal entre os eventos, traduz uma
incapacidade do sujeito em adquirir um ponto de vista exterior e
reflexivo sobre a própria experiência (Ibid.: 97-100).
Neste contexto torna-se pertinente a atenção de Kleinman às
operações comunicativas de “designação” e explicação da doença
enquanto uma das funções terapêuticas universais dos sistemas de
cuidados de saúde (Kleinman 1981: 71). O autor refere a influência
poderosa que a designação (label) e descrição têm sobre as sensações
subjectivas do sujeito, na medida em que ajudam a interpretar a
experiência do problema, dando-lhe uma forma específica e familiar –
porque comummente retiradas do espectro de categorias culturalmente

161
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disponíveis ao sujeito. A designação “molda a qualidade da experi-


ência”, atribuindo-lhe um determinado sentido e associando-a a dadas
expectativas (culturais) de comportamento e sentimento (Ibid.: 76-77).
Apesar da proposta teórica do autor colocar a tónica sobre a especifi-
cidade cultural da forma que toma este processo, a sua existência
transcultural nos sistemas terapêuticos suporta o carácter fundamental
que a articulação e atribuição verbal de sentido adquirem na
experiência do sofrimento – tentativas que assumem frequentemente a
forma de um esforço de revisão narrativo12.
A situação da doença não é o único evento passível de gerar este
tipo de ruptura existencial 13 e necessidade de rearticulação da
memória. A este respeito, é possível encontrar descrições do processo
de migração que sugerem paralelismos entre os dois tipos de
experiência.

PROCESSO MIGRATÓRIO

A vivência migratória pode acarretar, como a experiência da


doença crónica, múltiplas perdas de referências culturais, afectivas,
cognitivas e sociais, o que constitui uma causa significativa de
sofrimento psicológico para os migrantes, e mesmo para os seus filhos
– por entre diversos outros factores de ruptura decorrentes da migração
(Sicot 2002: 6-7). Sayad (2004), relatando o caso de um emigrante
argelino em França, descreve a condição estruturalmente “absurda” e
“intolerável” do migrante, derivada da culpabilidade em relação ao
“pecado original” da sua imigração: a ausência. Esta consciência é
acompanhada de uma obsessão do indivíduo pelo “retorno ao
passado”, ao mundo e à ordem antes conhecidos.

12 Cf. e.g., Porée 2002: 27-28; Mattingly e Garro 2000; Hunt 2000: 88-90; Charmaz 1999:
365; Frank 1995: 53 et seq.
13 O trauma é frequentemente referido, a par da doença crónica, como gerador deste tipo
de ruptura.

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Ahmed descreve implicações semelhantes para a experiência


migratória, concebendo-a como um processo de “estranhamento”
(estrangement) em relação ao mundo antes habitado como morada,
produzindo uma ruptura temporal:
[...] migration involves not only a spatial dislocation, but also a
temporal dislocation: ‘the past’ becomes associated with a home that is
impossible to inhabit, or be inhabited by, in the present. The question
then of being at home or leaving home is always a question of memory,
of the descontinuity between past and present (Ahmed 1999: 343).
Tal situação paradoxal impele o indivíduo migrante a procurar
continuamente reinvestir a sua experiência de sentido (embora isso
nem sempre seja possível) sob pena da desordem irredutível intrínseca
à sua condição poder comprometer a sua própria integridade psíquica
(Sayad 2004: 137-143).
Desta forma também na migração, como na doença crónica, a
ruptura vivida toma um carácter existencial de descontinuidade
biográfica (Lechner 2009: 175-178), hiato que traduz essencialmente
uma “falha da memória” em conseguir verdadeiramente fazer sentido
da nova situação – do novo espaço presente a habitar (Ahmed 1999).
Desta forma, também a ruptura migratória exige e torna urgente um
esforço de reconstrução de sentidos e rearticulação da nova vivência
em palavras: “the stories of dislocation help to relocate” (Ibid.).

ABORDAGEM NARRATIVA

NARRATIVA E IDENTIDADE

A investigação sobre a narrativa nas ciências humanas tem


assumido diversos pontos de vista e temas de enfoque (Riessman e
Quinney 2005: 393). Esta diversidade acompanha uma multiplicidade

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de definições e terminologias relativas ao conceito de narrativa (Ibid.:


393-394; Mattingly e Garro 2000: 12-16). Numa revisão do trabalho
sociológico publicado sobre a narrativa nas últimas décadas, Riessman
e Quinney sistematizam os dois elementos que se têm mantido centrais
e comuns às variadas definições do termo nesse universo,
designadamente: a “sequência” e a “consequência” (Op. cit.: 394-395).
Isto significa, em primeiro lugar, que a narrativa estrutura os eventos
numa ordem sequencial, de acordo com um determinado critério de
organização, geralmente temporal (sobretudo no Ocidente) – embora
possa também ser espacial, temático ou episódico (Ibid.); e em
segundo lugar, que a configuração do relato – a selecção dos eventos,
as conexões estabelecidas entre eles, e a avaliação subjectiva implícita
no relato – é guiada por um determinado propósito do narrador: nestes
estudos sobre a narrativa, mais do que o conteúdo do texto, tornam-se
relevantes o “como” e o “porquê” da narração (Ibid.).
Este segundo elemento será o que diferencia a narrativa de uma
mera sucessão cronológica, de acordo com Ricoeur (1981: 170-176).
Com efeito, no termo “consequência” aplicado por Riessman e
Quinney estão assim presentes as duas dimensões essenciais que para
Ricoeur distinguem a narrativa da cronologia simples.
As reflexões de Ricoeur sobre a natureza da experiência humana
da temporalidade postulam uma “relação interna” (Porée 2002: 22) e
“recíproca” (Ricoeur 1981: 165) entre tempo e narrativa14. Para o
autor, a narrativa é a “estrutura de linguagem” onde se concretiza e
exprime a “estrutura de existência” que é a temporalidade, o seu
referente essencial (Ibid.). Graças a esta reciprocidade, a narrativa
fornece à consciência individual o meio privilegiado para compreender
e conceber a existência humana no tempo (Ricoeur apud Elliott 2005:
125). Mas o tempo narrativo não é para o autor o tempo da mera
sequência. Distinguindo-os, Ricoeur nota por um lado o carácter

14 Este é precisamente o título da sua obra de três volumes consagrada ao tema, Temps et
Récit (respectivamente, de 1983, 1984 e 1985).

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“existencial” (e não abstracto) do tempo narrativo, fundado nas


preocupações humanas presentes, e orientado pelo sofrimento e para a
acção/intervenção do protagonista no mundo (Ricoeur 1981: 170-73;
Baumeister e Newman 1994) – por outras palavras, o “porquê” que
guia o relato. Por outro lado, estas motivações conduzem à organização
da história de uma determinada maneira, construindo unidades
significantes a partir dos eventos dispersos – o “como” que estrutura a
narração. Para Ricoeur, neste sentido, o tempo da narrativa é também
“dialético”, na medida em que combina ambas as dimensões
“episódica” – composta de eventos sucessivos – e “configuracional” –
que confere um “padrão” a esses eventos (Ricoeur 1981: 174-176).
Esta última supera a simples sucessão de eventos ao agrupá-los em
totalidades de sentido unificadas por um “tema”, “pensamento”,
“mensagem” (point) ou “denominador” comuns (Ibid.: 175-176). Desta
forma, enquanto recurso privilegiado para a compreensão humana da
experiência temporal, a narrativa constitui-se simultaneamente como
estrutura da organização desta experiência, ao estabelecer, através de
relações de sentido, uma “unidade” no seio daquela multiplicidade
vivencial. É precisamente essa unificação num todo significante que
atribui ao relato o seu elemento de conclusão, conferindo-lhe um
“sentido de finalidade”15 (de que depende, concomitantemente, o seu
carácter totalizador) (Ibid.).
É numa apreciação semelhante que a análise de White sobre a
filosofia da história estabelece os critérios que distinguem a “história”
propriamente dita – a única com uma componente de “narratividade” –
dos “anais” e da “crónica” (White 1987: 4-25). À semelhança de
Ricoeur16, o autor concebe a narrativa como superando a sequência
cronológica na medida em que possui uma estrutura imanente e uma

15 Para uma crítica a este pressuposto de finalidade da narrativa no contexto da doença, ver
Wikan (2000: 215-217).
16 Cuja concepção filosófica da história, aliás, examina num capítulo posterior da mesma
obra (White 1987: 169-184).

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“ordem de sentido” (Ibid.: 5). Para White, o esforço narrativo é movido


pelo propósito de estabelecer a continuidade, a coerência e o
significado, preenchendo todos os vazios de tempo (ao contrário do
que acontece nos anais) (Ibid.: 11). A descrição deste autor vai mais
longe, referindo o carácter “moralizador” da narrativa (Ibid.: 14), que
ao investir os eventos de um sentido que eles por si só (ou organizados
sequencialmente) não possuem os transforma numa “totalidade”
rematada (ao contrário da crónica) por uma conclusão (closure) (Ibid.:
16). Para White, a exigência narrativa de uma conclusão é em si a
exigência de um “sentido moral”, que apresenta a realidade de forma
ideal, tornando-a num objecto de desejo: “Insofar as historical stories
can be completed, can be given narrative closure, can be shown to have
a plot all along, they give to reality the odor of the ideal” (Ibid.: 21). A
estrutura da narrativa expõe e propõe à audiência, de uma forma
apelativa, a adesão a um determinado “universo moral” – aquele em
cuja participação os eventos adquirem o seu sentido (Ibid.: 21-22). É
isto que acontece também nas narrativas de doença e sofrimento, onde
podem ser avançadas novas reivindicações e um novo estatuto moral
pelo sujeito (Charmaz 1999: 372-374).
Também a teoria da estrutura narrativa de Labov17 (apud Linde
1993: 69 et seq.; Elliott 2005: 42-46) assume a natureza moralizante
como intrínseca à narrativa. O critério unificador da narrativa pessoal –
a dimensão “configuracional” ou de “consequência” revista acima –
revela (no seu carácter subjectivo e motivacional) uma afinidade
fundamental com o elemento da “avaliação” definido por Labov.
Segundo o modelo do autor, este material avaliativo – nas diversas
formas linguísticas e paralinguísticas que toma – está omnipresente ao

17 O modelo de Labov prevê cinco partes essenciais na estrutura da narrativa: o “resumo”


inicial, seguido da “orientação” (descrição do contexto de tempo, espaço, personagens,
etc.), das orações narrativas em si (a sucessão da acção passada, seguindo a ordem dos
eventos), e da coda (que traz a narrativa de volta ao presente e indica o fim da acção). A
quinta parte é a “avaliação”, que está disseminada ao longo e no seio de todas as outras
partes (Linde 1993: 69 et seq.; Elliott 2005: 42-43).

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longo da narrativa e serve a função de comunicar à audiência a


finalidade, relevância e valorização dos diferentes elementos do relato,
guiando assim a forma como devem ser interpretados (Ibid.).
Linde, na sua análise dos mecanismos de coerência nas histórias
de vida, distingue dois tipos possíveis desta avaliação, correspondentes
aos dois níveis de afirmação da coerência do relato. Por um lado, a
avaliação sublinha o carácter “narrável” dos eventos, ou seja, a sua
natureza significativa e relevante (por oposição a episódios banais ou
ordinários, que não constituem boas histórias). Por outro lado,
significativamente, a avaliação serve para frisar que os elementos
narrados, sobretudo os relacionados com a personagem do narrador,
estão de acordo com determinadas normas morais sociais (partilhadas
com a audiência) – o que implica, no contexto das narrativas de vida,
uma apresentação do “Eu” em termos valorizados e desejados (Linde
1993: 81 et seq.).
Para Linde, esta reflexividade e avaliação moral sobre o “Eu” é
apenas uma das três dimensões de criação da identidade (pessoal e
social) pela linguagem na narrativa 18 , a primeira das quais é a
continuidade temporal do “Eu” (Ibid.: 98-106) 19 . Esta dimensão
constitui em si um pressuposto da narrativa. Segundo a autora, da
“continuidade” temporal20 dos eventos – que retrata o passado como
conectado de forma significativa ao presente – é inferida a
“causalidade” da sequência (“post hoc ergo propter hoc”). Isto

18 Esta dimensão é estabelecida pela separação entre o narrador (exterior ao conteúdo do


relato) e o protagonista (Linde 1993: 120-122).
19 A autora refere-se também, a este respeito, à unicidade intersubjectiva do “Eu” no meio
social – simultaneamente distinto de, e em relação com, os outros. Esta dupla dimensão
é estabelecida de diversas formas na narração, designadamente: no uso de pronomes
pessoais, que são cambiáveis (shifters) consoante o referencial (Eu-Tu; Nós-Vós); na
descrição de relações tecidas pelo narrador consigo e com os outros; na expressão de
solidariedade e valores ou interesses comuns com outros; e no próprio acto relacional da
narração (para uma audiência) (Linde 1993: 111-114).
20 Evidentemente entendida, à luz do exposto, não como mera sequência mas como
estruturada e investida de relevância (Linde 1993: 107).

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converte-a na forma mais básica de estabelecer a coerência do relato


biográfico (Ibid.: 107-111), dupla exigência para o narrador: uma
exigência social (que o comprova como um “membro competente” da
sua cultura); e uma exigência pessoal – a de compreender a vida como
dotada de sentido. Para Linde, esta segunda exigência de coerência
torna-se visível precisamente quando surgem eventos (como a doença
crónica) que não são passíveis de integração na história de vida,
gerando desconforto e confusão até que o consigam ser (Ibid.: 14-17).
Esta ideia é corroborada pela investigação dos psicólogos Baerger e
McAdams (apud Elliott 2005: 48-50), que confirmam a existência de
uma correlação entre a coerência dos relatos biográficos e o bem-estar
psicológico do indivíduo.

ABORDAGEM TERAPÊUTICA

Na resposta terapêutica ao desconforto existencial introduzido


pela experiência da doença crónica, alguns autores sublinham a
utilidade ou mesmo urgência de uma abordagem narrativa 21 .
Efectivamente, são múltiplas as funções e benefícios terapêuticos
reconhecidos à narrativa no contexto de experiências de sofrimento22.
Este reconhecimento radica em diferentes tradições teóricas, das quais
se destaca a psicanálise freudiana a par da psicologia e psicoterapias
construtivistas contemporâneas.
A escola mais “tradicional” (por entre as variadas orientações) da
psicanálise (Murray 1997: 13) sustenta a premissa de que a causa do
mal-estar psíquico que muitos adultos enfrentam se reporta a certas
memórias de experiências adversas vividas na infância (Ibid.). Com

21 Cf. e.g., Sakalys 2003; Hunt 2000: 88-89; Crossley 2000: 541; Roberts 2000: 5 (na
abordagem específica à doença mental); Ochs e Capps 1996: 29; Frank 1995: 55;
Freeman 1993: 114, 170-172. Para críticas a esta posição, ver as perspectivas dos
autores em Mattingly e Garro 2000 – nomeadamente os artigos por Dreier, Wikan, e
Kirmayer.
22 Para perspectivas críticas sobre esta posição, ver Kirmayer 2000; Murray 1997: 17.

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efeito, os escritos do próprio Freud advogam um enraizamento do


significado do sintoma na experiência passada do cliente (Mattingly e
Garro 2000: 6). Tais memórias geradoras de mal-estar são reprimidas
para o inconsciente onde subsistem como fonte de sofrimento (Murray
1997: 13-14). Neste contexto, a tarefa do terapeuta será a de facilitar
que essas recordações, persistindo sob a forma de “histórias
pobremente organizadas”, fragmentadas e caóticas, emerjam à
consciência e tomem uma configuração progressivamente mais
concreta (Ibid.). O psicanalista, numa acepção freudiana, apresenta-se
assim como um “mestre da tradição narrativa”, recuperando as
associações, sonhos e memórias do cliente para as recompor e integrar
num padrão coerente que lhes confere sentido (Mattingly e Garro
2000: 6-7).
Por seu turno, as psicoterapias construtivistas encaram o encontro
clínico mais como um processo hermenêutico de negociação entre os
sentidos construídos e interpretações pessoais do terapeuta e do cliente.
Nesta perspectiva, o sofrimento advém do carácter incoerente ou
opressor da sua narrativa de vida, e o objectivo da terapia será gerar
novas possibilidades de compreensão dos problemas, através de uma
co-construção de narrativas mais libertadoras e positivas (Ibid.;
Mattingly e Garro 2000: 7-9; Roberts 2000: 2). A explicação de
Roberts sumaria adequadamente esta posição: “From a narrative
viewpoint, symptoms can be seen as the efforts of a healthy self to find
words and meanings that adequately express an individual’s struggle
with altered experiences” (Roberts 2000: 5). Um exemplo23 recorrente
desta abordagem na literatura é o modelo de terapia familiar narrativa
de White e Epston (e.g., Roberts 2000: 6; Murray 1997: 14), onde o
processo terapêutico procede constituindo o problema que aflige o
sujeito numa entidade que lhe é exterior (“externalização do
problema”), e reconstruindo em seguida com ele a narrativa desse

23 Ver Meichenbaum (1995: 23) para mais exemplos de abordagens de psicoterapia de


posicionamento construtivista narrativo.

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problema de uma forma que potencia o seu controlo sobre ele, através
da ênfase sobre as “excepções” e capacidades do sujeito nessa luta24.
Frisando a orientação motivacional da narração, Baumeister e
Newman (1994) definem quatro categorias de motivos pessoais25 que
regem a construção individual de narrativas sobre experiências de
sofrimento. Esta classificação, assim como o carácter “pessoal” destes
motivos, relacionam-se com diferentes tipos de “necessidades de
significado” (needs for meaning) sentidas pelos indivíduos na interpre-
tação das suas experiências. Designadamente, os autores distinguem
entre necessidades: de propósito e finalidade (purpose); de justificação;
de eficácia e controlo; e de auto-valorização (Ibid.: 680-8). O primeiro
tipo de necessidade leva os sujeitos a organizarem os eventos na
narrativa causalmente, procurando retratá-los como conduzindo intencio-
nalmente a um fim – que pode ser objectivo/material (goal) ou
subjectivo/emocional (fulfillment). Em segundo lugar, a necessidade de
justificação orienta a descrição e interpretação das acções de uma forma
consistente com determinados valores morais positivos, que dessa forma
as justificam. Os autores enumeram a esse respeito múltiplas estratégias
e padrões de descrição possíveis. O terceiro tipo de necessidade prende-
-se com a capacidade de exercer controlo sobre o ambiente circundante,
o que motiva uma ênfase sobre a agência do protagonista ou o carácter
previsível e favorável do ambiente mantido por ele. A última categoria
de motivos reporta-se à necessidade de potenciar o sentido de auto-
-estima e eliminar ameaças a ele, ostentando o próprio mérito (Ibid.).
Os autores salientam o acto da narração em si como uma resposta
à terceira necessidade, de eficácia pessoal: ela constitui uma acção de
“controlo interpretativo” sobre a situação ou episódio narrado, na
medida em que estruturá-lo no relato permite a sua compreensão (Ibid.:

24 Cf. White e Epston 1990.


25 Foco-me sobre os motivos “pessoais” não obstante os autores referirem adicionalmente,
embora em menos detalhe, razões de âmbito “interpessoal”, i.e., ganhos buscados na
interacção com os outros como guias da narração (Baumeister e Newman 1994: 680).

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686). Com efeito, as funções terapêuticas apontadas na literatura sobre


a narrativa relacionam-se estreitamente com questões interpretativas e
de sentido 26 , enquadrando e combinando os diferentes tipos de
benefício enumerados.
A multiplicidade de discussões e diversidade de perspectivas que
reconhecem ou advogam os benefícios terapêuticos “pessoais”27 da
narrativa dificultam uma súmula completa (ainda mais no contexto
limitado desta discussão). Porém, julgo elucidativo expor as propostas
de alguns autores de orientações disciplinares diversas dentro das
ciências humanas, que no seu conjunto englobam muitos dos principais
argumentos apresentados em defesa da narrativa.
Começando pelo domínio da antropologia, Mattingly e Garro
preconizam, no volume que dedicam ao lugar da narrativa (cultural) no
contexto da doença, o seu papel enquanto forma de terapia, mitigando a
perturbação gerada na experiência da doença (nomeadamente crónica).
Com efeito, para as autoras, a narrativa permite ao indivíduo explorar
as articulações possíveis entre a sua experiência e diferentes modelos
culturais úteis para lidar com ela. Neste processo, toma especial
importância a manutenção da própria identidade e propósito na vida, e
do sentido de continuidade e ordem face à ruptura (2000: 27-29).
No mesmo volume, Hunt (2000: 88-89) argumenta que ao período
inicial de ruptura na doença crónica se seguem frequentemente
esforços de reorganização e reconstrução do “Eu” e do seu lugar no
mundo. A autora defende a esse respeito o potencial construtivo e
transformador da narrativa, pela sua capacidade de integração da
doença no contexto maior da vida do indivíduo, e sobretudo de

26 Alguns autores referem-se adicionalmente aos benefícios “interpessoais” da narração,


particularmente a possibilidade dada ao paciente de exprimir a sua “voz” e oferecer um
“testemunho” sobre a sua experiência (cf. Frank 1995), e de assim estabelecer laços com
outros através do acto recíproco de contar e ouvir (Sakalys 2003: 232).
27 Tomando como adquirida a atenção das psicoterapias (as cognitivas em particular [ver
Mahoney 1995: 9-10]) ao papel da relação e interacção com o terapeuta, continuarei a
focar-me em benefícios interpretativos/“pessoais” em detrimento dos “interpessoais”.

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reconstrução da sua identidade e papéis sociais (foco do texto de


Hunt). Tal potencial radica, segundo Hunt, no carácter essencialmente
performativo da descrição narrativa, passível não apenas de exprimir
mas também “encenar” (enact) visões da realidade.
De uma perspectiva semelhante, num artigo de revisão sobre a
relação entre o “Eu” e a narrativa, Ochs e Capps (1996: 29-30) ancoram
o poder terapêutico da última (nomeadamente em situações de doença e
trauma) na sua capacidade para confrontar os sujeitos com “possibi-
lidades não antecipadas” de sentido e existência, permitindo dessa forma
a reintegração de experiências reprimidas ou difíceis de integrar. As
autoras referem igualmente o seu poder para construir unidade e
coerência face a elementos identitários multiformes e inconstantes (numa
reformulação do já referido “paradoxo da permanência”).
Langness e Frank (1995: 93, 103), a partir do seu trabalho antropo-
lógico sobre histórias de vida, salientam também o poder transformativo
e terapêutico da construção autobiográfica. Este potencial aparece
fundado no processo libertador de auto-criação que a biografia encerra,
permitindo revolucionar a própria imagem de si, para além das
possibilidades de criação de sentido ou coerência perante a ameaça de
morte iminente ou dissolução identitária.
Por outro lado, para Frank, sociólogo e ele mesmo um sobrevivente
de doença crónica, a interrupção biográfica trazida pela doença crónica
produz histórias “confusas e inconsistentes”, que exigem narrativas
pessoais (self-stories) no curso das quais o “Eu” é formado – como
forma de ultrapassar o naufrágio narrativo e reparar os danos existenciais
provocados, reconstruindo os “mapas” e “destinos perdidos”. A doença,
segundo o autor, “intensifica” a luta do sujeito para atingir a coerência
narrativa – restabelecendo a ligação entre passado, presente e futuro num
projecto contínuo. A este propósito, Frank fala de uma “ética
narrativa”28 (Frank 1995: 53-60; 154-165).

28 Este autor foca também em algum detalhe benefícios do tipo “interpessoal”, que não
abordo aqui. Cf. Frank 1995 (sobretudo capítulos 7 e 8).

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De um ponto de vista afim, Charmaz refere a capacidade da


narrativa de fornecer distanciamento e reflexividade sobre o
sofrimento. Esta capacidade permite a emergência de novos padrões
interpretativos, de uma nova definição do mal-estar e da relação com
ele, bem como a aprendizagem de estratégias para gerir o sofrimento e
a mudança. A autora foca igualmente o potencial narrativo para revisão
e reavaliação do curso de vida, criando novos sentidos de conexão
entre as suas etapas e refazendo a continuidade e totalidade destruídas
face à ruptura (Charmaz 1999: 371-375).
Murray frisa a importância do estudo das narrativas de doença no
domínio da psicologia. Reproduzindo grosso modo as categorias de
Baumeister e Newman, o autor evidencia igualmente o poder da
narrativa de trazer ordem e distanciamento sobre a crise, constituindo
um recurso para atribuição de sentido à experiência do sofrimento,
assim como um meio para lidar com a incerteza, equacionando futuros
possíveis (“propósito”). Articula esta capacidade com a de exercer
controlo sobre essa experiência (“controlo”), defendendo ainda a sua
operacionalidade na justificação das próprias acções do sujeito
(“justificação”), e na construção da doença como experiência de
crescimento pessoal (“auto-estima”). A estes benefícios possíveis o
autor acrescenta ainda a possibilidade de contrariar e vencer o medo da
doença patente nos discursos públicos sobre ela, construindo esperança
para o futuro (Murray 1997: 15-16).
Com um foco sobre os processos da memória na construção da
identidade, o psicólogo Freeman concebe uma relação entre a primeira
e a cura psíquica, advertindo que esta advém não da mera recordação,
mas da construção de uma ordem narrativa plausível sobre o “Eu”, que
integre as novas lembranças, alcançando num progresso cognitivo uma
auto-compreensão inédita – uma operação de “rewriting the self”
(Freeman 1993: 171-172).
Reportando-se ao papel da narrativa na saúde mental de um ponto
de vista psiquiátrico, Roberts descreve a narração como uma “defesa

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necessária”, que constitui parte da resposta apropriada do indivíduo


perante uma situação ameaçadora, fazendo sentido dela através da sua
articulação em palavras (Roberts 2000: 5).
Partindo por seu turno da óptica da enfermagem, e contrapondo a
narrativa de doença ao relato médico, Sakalys define igualmente o
papel da primeira em lidar e superar experiências traumáticas,
alcançando através da reflexão e reformulação por palavras uma nova
consciência sobre a experiência fragmentada, e estabelecendo para ela
novos padrões, explicações, sentidos e coerência (Sakalys 2003: 231,
238-239).
Weber, Rowling e Scanlon (2007: 947-51), analisando as
narrativas de sofrimento de estudantes universitários na perspectiva do
trabalho social, advogam igualmente a importância da narrativa face a
experiências de perda e trauma. As autoras examinam, em primeiro
lugar, o seu papel em conferir sentido a essas experiências, através da
reestruturação cognitiva e emocional que operam, revendo e criando
novos significados, construindo padrões e ligações que conduzem a
uma nova compreensão, e restabelecendo o controlo e a ordem sobre a
situação. Nesse sentido, mencionam a capacidade da narrativa de
reconhecer benefícios e aspectos positivos por entre a adversidade, e
defendem adicionalmente o seu papel na manutenção de uma
identidade coesa, contrariando a ameaça existencial do trauma e
preservando os pressupostos básicos sobre o mundo e o próprio valor,
ao reestruturar os eventos em torno do “Eu” protagonista.
Partindo de uma proposta metodológica sobre o método da
entrevista biográfica, Rosenthal (2003: 922-7) aborda os benefícios
curativos de ambas as narrativas emergentes na entrevista: a narrativa
principal de vida (livre, não estruturada) e as narrativas pedidas pelo
investigador sobre temas específicos (semi-estruturadas), cujas funções
terapêuticas distingue. Na primeira, Rosenthal foca-se sobre a nova
visão e compreensão obtidas sobre a história de vida, nomeadamente a
partir da integração de novos materiais assim verbalizados (superando

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a incapacidade de falar sobre traumas vividos), que contribui para a


consistência identitária e a continuidade biográfica. No segundo caso,
concentra-se (para além de benefícios interpessoais retirados da ligação
com o investigador) sobre o distanciamento criado pela narrativa sobre
a experiência passada e emoções por ela geradas, tornando-as desta
forma mais compreensíveis, credíveis e reais (objectivadas), e
justificando os “sintomas” presentes como normais por relação ao
passado.
Finalmente, seguindo uma filosofia de orientação fenomenológica,
Porée preconiza a relevância da narração face ao sofrimento em geral:
na medida em que desfaz a relação conexa entre o tempo e a narrativa
– comprometendo a identidade do indivíduo e a sua pertença ao
mundo, fechando o campo de possibilidades futuras e com ele o
presente num eterno lamento – o sofrimento exige o relato, gerando
esforços de se inserir numa trajectória coerente (Porée 2002: 27-8).
Todas as diferentes posições abordadas, partindo de perspectivas
diversas e reproduzindo argumentos complementares, expõem a ideia
comum da utilidade e pertinência de adopção de uma abordagem
terapêutica narrativa29 face a situações de ruptura ontológica – como a
doença crónica – enquanto meio de satisfazer as múltiplas
“necessidades de significado” sentidas face à perda.
Os paralelismos encontrados entre a doença crónica e o processo
migratório (vide supra) sugeririam as vantagens duma abordagem
semelhante ao sofrimento psíquico dos migrantes, sobretudo como
alternativa a uma óptica medicalizadora sobre ele (Lechner 2009: 177-
178). Contudo, antes de assumir a possibilidade transcultural de
aplicação desse modelo à experiência da ruptura, torna-se necessário
tomar em consideração a natureza culturalmente específica de alguns
dos pressupostos nele incorporados.

29 Os benefícios desta abordagem de forma alguma pretendem ser exclusivos, sendo


compatíveis com e integráveis noutras perspectivas terapêuticas (cf. Mahoney 1995: 14-
15).

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CONSTRUÇÕES PARTICULARES DE SENTIDO

O papel das convenções sociais e culturais na narração tem sido


reconhecido dentro e fora do domínio da antropologia30. As narrativas
pessoais são moldadas pelo mundo cultural e social de duas maneiras:
em primeiro lugar, pela necessidade natural de adaptação à audiência a
que são dirigidas; e em segundo, pela limitação dos repertórios
culturais de narrativas conhecidos e disponíveis ao narrador (Elliott
2005: 126-7).
Segundo Nelson, desde tenra idade a criança aprende com os
outros através da palavra os elementos simbólicos culturais – os
marcadores de ordenação e divisão do tempo, assim como os
artefactos, lugares, pessoas e instituições culturais – i.e., o mundo
partilhado que constitui o material a partir do qual é construído o seu
conceito de si (self concept) através da narrativa (Nelson 2000: 192-
194). A esse respeito, Freeman evidencia, a partir duma análise da
biografia de Helen Keller, a natureza linguisticamente mediada da
existência no mundo, considerando a importância dos recursos
culturais e sociais linguísticos disponíveis nessa mediação. Para o
autor, a memória, assim como a consciência da existência temporal e a
própria auto-consciência são função da linguagem, configuradas pelas
convenções da ordem social – que criam o mundo enquanto realidade
significante (meaningful) (Freeman 1993: 51-80). Referindo-se em
particular à narrativa, Freeman sublinha o condicionamento social
sobre as formas específicas da representação e do discurso
(nomeadamente moral) em circulação, que circunscrevem as
possibilidades de narração – em termos tanto do conteúdo como da
forma (Ibid.: 185-202).
Será talvez conveniente advertir que um reconhecimento deste
condicionamento não implica uma perspectiva determinista. Como

30 E.g., Elliott 2005; Mattingly e Garro 2000; Tonkin 1995; Linde 1993; Freeman 1993.

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lembram alguns autores (entre os quais o próprio Freeman), o


indivíduo é um agente activo na construção narrativa, que é feita à
medida das suas motivações e do contexto da narração, explorando as
possibilidades locais – situadas, interaccionais e “emergentes” – de
articulação da sua experiência através dos materiais e modelos
fornecidos pela cultura (Mattingly e Garro 2000: 263; Garro 2000: 72-
73; Mattingly 2000: 197; Elliott 2005: 129-131; Freeman 1993: 185-
198). Contudo, já desde Kleinman é reconhecida a necessidade de
formas cultural e socialmente legitimadas na abordagem e tratamento
do mal-estar (illness) (Kleinman 1980: 360-361). Assim sendo, e feita
aquela ressalva, um reconhecimento e compreensão dos pressupostos
culturais intrínsecos à narrativa pessoal ou biográfica permanece uma
condição prévia necessária a qualquer tentativa de aplicação
terapêutica do modelo narrativo a membros de contextos socioculturais
diferentes.
Neste sentido, examinarei em seguida, sem pretensões de
exaustividade, alguns dos principais complexos de pressupostos
incorporados (e interdependentes) na concepção da narrativa biográfica
Ocidental, designadamente: o modelo de temporalidade, a concepção
de coerência, e a noção de pessoa.

TEMPO

A natureza social do tempo já é reconhecida nas ciências sociais


desde o foco sociologista de Durkheim e Mauss (Munn 1992: 94-95).
Depois disso, vários trabalhos clássicos na antropologia examinaram
concepções culturalmente particulares de compreensão e experiência
do tempo em sociedades específicas 31. A obra de Edward T. Hall

31 E.g., Evans-Pritchard entre os Nuer; Bahannan entre o Tiv; Tedlock entre os Quiché;
Geertz, Bloch e Howe entre os balineses; Christine e Stephen Hugh-Jones entre os
Barasana; Herzfeld entre os cretenses; Gell entre os Umeda; para além das análises mais
teóricas e transculturais Leach ou Lévi-Strauss (Munn 1992: 94-109; Gell 1996: 15-92).

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(1983) sobre a vivência temporal de diferentes culturas oferece um


testemunho profuso desta diversidade. O interesse do autor sobre
dimensões não verbais, ocultas e inconscientes do pensamento e da
vivência social humana 32 conduziu-o nesta obra a uma análise da
temporalidade enquanto “gramática cultural escondida [que] determina
a maneira como os indivíduos percepcionam o seu meio, definem os
seus valores, e estabelecem a sua cadência e os seus ritmos de vida
fundamentais”. Para o autor, trata-se de “um nível de cultura primário”,
interiorizado desde a nascença, definido por ser “subjacente, escon-
dido, e muito estruturado, um conjunto de regras de comportamento e
de pensamento não ditas, implícitas, que controlam tudo o que [os
indivíduos fazem]” (Ibid.: 14). Hall adverte para a “concepção falsa”
do tempo em vigor no Ocidente, que o considera como entidade una e
simples e desvirtua a influência do contexto na sua percepção (Ibid.:
23, 167-168). Pelo contrário, advoga o autor, o tempo consiste numa
realidade ampla de agregados de conceitos, fenómenos e ritmos 33
(Ibid.: 23).
Hall identifica o pensamento Ocidental – desde as tradições
filosóficas gregas até às concepções filosóficas e científicas contem-
porâneas – com uma lógica ou modo de pensar linear (Ibid.: 18, 23,
168), alimentada pela “transferência” para a vida dos ritmos de
ferramentas de medição como o relógio e o calendário – assim tomados
como a “realidade” (Ibid.: 154).
Tonkin (1995), do ponto de vista da história oral, sustenta uma
visão semelhante sobre o condicionamento cultural das estruturas de
referência temporais pelas quais os indivíduos pensam e se expressam.
A autora reconhece igualmente o papel das ferramentas do tempo
(nomeadamente as cronologias), assim como das concepções cosmoló-

32 Interesse já manifestado em obras anteriores do autor, como The Silent Language


(1959), The Hidden Dimension (1969), e Beyond Culture (1976).
33 O autor suporta este argumento enumerando e descrevendo nove níveis possíveis de
análise do tempo, designadamente: biológico, individual, físico, metafísico,
microtempo, sincronia e metatempo (Hall 1983: 27-38).

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gicas – que incorporam as teorias culturais humanas acerca da natureza


do tempo e do espaço – sobre a modelação da percepção e cognição da
realidade. No caso do Ocidente, a autora considera que a cronologia
dominante, marcada pela ideologia cosmológica cristã, condiciona toda
a cognição sobre a temporalidade, definindo o tempo como uma
progressão desde um início (o nascimento de Cristo) até à eternidade,
implicando noções de evolução e progresso e percebendo relações
causais entre os eventos seguidos no tempo (Tonkin 1995: 68-72). De
forma semelhante a Hall, Tonkin denuncia a ilusão, provocada por esta
cronologia, da existência dum curso único de tempo, com uma “taxa de
mudança fixa”, composto da repetição sucessiva de unidades e
subunidades idênticas. Pelo contrário, existirão antes diversos tempos e
percepções individuais deles, com diferentes velocidades, durações,
escalas e contextos de mudança (Ibid.: 71-72) – ideia que é também
suportada por Gell, no seu volume consagrado à antropologia do tempo
(1996: 95-96).
Tais concepções de tempo estão necessariamente presentes na
narrativa, e em particular no relato biográfico. A este respeito, a
história de vida é estabelecida por Tonkin como um “género oral”
específico, como tal definido pela partilha de expectativas e regras de
interpretação entre narrador e audiência. Desta forma, para a autora, a
apresentação narrativa do “Eu” constitui um acto social, na medida em
que antecipa e se ajusta a determinadas respostas e modelos sociais,
seguindo certos cânones e convenções de retórica e propósito – que
definem os critérios do que é apropriado e relevante numa auto-
descrição, o seu formato, estrutura organizativa e conteúdo, e as
ocasiões e usos adequados para o relato (Tonkin 1995: 55-58). No
mesmo sentido, Nelson sublinha em particular o lugar da
aprendizagem social do tempo, nomeadamente dos seus modos
culturais de organização e marcadores simbólicos de passado e futuro,
na aquisição pelas crianças da capacidade de construir e narrar a sua
identidade (Nelson 2000: 192-193).

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No contexto da modelação sociocultural da narrativa de vida,


Tonkin valoriza então especificamente a influência exercida pela
cosmologia e as representações colectivas vigentes sobre o tempo,
nomeadamente as teorias, convenções e expectativas culturais referentes
à duração, sucessão e pontuação do tempo, à sua divisão, periodização
e modo de datação dos eventos, à velocidade e por vezes até ao género
predefinido de narração sobre o passado (Tonkin 1995: 66-68, 79).
Para Tonkin, estes aspectos temporais são estruturados pelo relato e
incorporados no seu interior (Ibid.: 74-75). Isto exige a atenção dos
investigadores à forma da narração dos seus interlocutores/informantes,
com o fim de evitar uma imposição do próprio género profissional (por
exemplo a entrevista) na recolha do relato (Ibid.: 54) – advertência que
assume especial pertinência no contexto terapêutico.

COERÊNCIA

À semelhança dos autores anteriores, Linde (1993) salienta


igualmente o carácter social e cultural das expectativas e convenções
que regem a história de vida, a nível tanto do conteúdo como da forma
(Linde 1993: 7-11). A própria definição de “história de vida”,
nomeadamente enquanto construção coerente, é segundo a autora
culturalmente relativa (Ibid.: 4, 11).
A coerência é definida por Linde como uma propriedade dos
textos estabelecida pelo cumprimento de dois tipos de relação: em
primeiro lugar, uma relação apropriada das diferentes partes do texto
entre si, e com o todo do texto; em segundo lugar, a afinidade do texto
com outros textos do mesmo tipo – do qual deve constituir um bom
exemplo (Ibid.: 12). No argumento de Linde, a coerência é garantida
pelo carácter adequado e significativo – partilhado por narrador e
audiência – da ordem/sequência que estruturam o relato de vida (Ibid.:
13). Essa ordem supera a mera cronologia (cf. supra secção 2.1.),
alcançando “mais do que a soma das suas partes” (Elliott 2005: 48). A

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esse propósito, Elliott foca a noção de “enredo” (plot), elemento


constituído por “uma combinação de sucessão temporal e causalidade”,
e que estabelece a conexão – de tipo causal – entre eventos anteriores e
posteriores, gerando dessa forma a “mudança” no curso do relato. O
enredo confere uma unidade fundamental ao texto, assim constituído
por um início, um meio e um fim – numa configuração totalizadora e
unificada sobre a qual se funda a sua coerência. A partir desta
definição de enredo, Elliott preconiza a dependência mútua entre
narrativa e causalidade (Ibid.: 7-8, 48).
Contudo, acautela Linde, também os critérios da causalidade
adequada estão dependentes de modelos culturais. O repertório
possível, reconhecido e esperado dos eventos, causas e explicações que
confluem na construção da coerência são fornecidas pela cultura
(Linde, 1993: 19, 127). A autora especifica, para o universo cultural da
língua inglesa, a ordenação temporal como o principal mecanismo
utilizado para estruturar a sequência dos eventos (Ibid.: 13). Esta ideia
é confirmada por Elliott (2005: 7) e também Riessman e Quinney
(2005: 394-395), que – reproduzindo a convicção de Hall sobre a
linearidade – consideram ser aquele o critério de organização que
melhor responde às expectativas culturais dos ouvintes Ocidentais de
um tempo progressivo (forward marching) de eventos sucessivos.
Entre os “sistemas” de coerência culturalmente disponíveis e
implicados na construção narrativa, é destacado por Linde o “senso
comum” geral de cada comunidade, que preservando um estatuto de
“factualidade” define hegemonicamente os padrões morais sociais do
que é “normal” (Linde, 1993: 18, 192-195). Linde aborda para além
deste outros sistemas de coerência particulares, visões populares ou
teorias especializadas da realidade em relação às quais pode ser
estabelecida a coerência de um relato34 (Ibid.: 18). Os sistemas de

34 No caso dos relatos de vida Ocidentais, Linde sugere a título exemplificativo o lugar da
psicanálise, behaviorismo, astrologia, feminismo ou catolicismo em tal conjunto de
sistemas de coerência (Linde 1993: 163-164).

181
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coerência assumem um poder muito persuasivo sobre os indivíduos,


promovendo certos tipos de pensamento e afirmação e restringindo os
restantes. A sua influência age nomeadamente ao nível dos meios de
compreensão, avaliação, construção e estruturação das narrativas
biográficas – e particularmente sobre os recursos e vocabulário
utilizados na criação do “Eu”/identidade (Ibid.: 164, 189, 216-218).
A esse respeito, é elucidativa a análise crítica de Bourdieu (1997)
sobre as implicações da noção de “senso comum” da “história de vida”
(Ocidental) enquanto sequência unitária e coerente, e sobre a noção de
identidade pessoal que a acompanha e justifica.

PESSOA

Bourdieu sugere a existência duma “ilusão retórica” no seio da


concepção comum da biografia ou história de vida. Esta ilusão
biográfica prende-se com determinadas teorias sobre a filosofia da
história (enquanto narrativa) e com uma dada tradição literária (anterior
à modernidade) (Bourdieu 1997: 53-54). Para o autor, os pressupostos
desta teoria promovem uma visão da vida enquanto unidade coerente,
uma trajectória com início, meio e fim, movida por uma intenção una. O
postulado fundamental subjacente a esta concepção, que afirma “o
sentido da existência” humana, conduz a orientar a narrativa de vida pela
preocupação de fornecer um “sentido” (vide supra) – implicando
simultaneamente consistência e necessidade lógica – ao relato, que é
estabelecido através da selecção e conexão, segundo critérios visíveis, de
“acontecimentos significativos” na vida (Ibid.). Para Bourdieu, o cariz
arbitrário e particular deste modelo é posto a nu com a invenção do
romance moderno, que oferece uma perspectiva alternativa sobre a
realidade: retratada como descontínua, fragmentária, aleatória e
desprovida de propósito (Ibid.: 55). Perante isto, o autor explica a
preservação de uma concepção coerente e unificada do “Eu” pela
exigência social de constância identitária, promovida e sancionada por

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uma série de mecanismos e instituições sociais – designadamente o


“nome próprio”, assim como os documentos e ritos de nomeação oficiais
que o acompanham. (Ibid.: 56-57). Com efeito, Bourdieu fundamenta
naquela “constância nominal” a possibilidade de unificação e totalização
das sucessivas manifestações e fluxos particulares e contingentes da
existência biológica e social do “indivíduo” no tempo e no espaço,
reificados por um processo de abstracção e criação arbitrária de
fronteiras rígidas (Ibid.: 56).
À semelhança do que sucede com as dimensões da temporalidade
e coerência, também esta especificidade cultural da concepção
Ocidental do “Eu” tem sido reconhecida no interior da antropologia.
Observações etnográficas têm suportado tal consciência e evidenciado
a importância de tomar em consideração, na investigação e recolha de
histórias de vida, a diversidade e condicionamento cultural das noções
de “pessoa” (Ochs e Capps 1996: 32; Langness, e Frank 1995: 87-116).
Langness e Frank abordam, como Bourdieu, as premissas incorporadas
na noção Ocidental de identidade – nomeadamente a ideia da vida
como uma totalidade unificada, cronologicamente estruturada, e
centrada num paradigma causal – advertindo para as limitações da sua
aplicação a outras culturas (Ibid.: 101-103).
A análise de Kirmayer (2007) torna-se especialmente relevante no
âmbito da presente discussão, na medida em que examina
especificamente as implicações do conceito Ocidental de “pessoa”
presentes no discurso e contexto da psicoterapia. O autor advoga, com
recurso a múltiplos exemplos etnográficos, o carácter cultural, social e
moral da construção dos modelos e valores imbricados nas noções de
pessoa; e considera a influência daqueles valores ao nível quer das
representações conceptuais sobre o “Eu”, quer da própria dinâmica
psicológica e experiências corporais e afectivas sentidas pelos
indivíduos de diferentes culturas (Kirmayer 2007: 237, 241, 246-247).
A partir deste condicionamento, o autor sustenta a dependência das
concepções e eficácia das psicoterapias em relação aos modelos

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socialmente vigentes de “Eu”, concedendo especial atenção na sua


análise ao modelo Ocidental/Americano de pessoa (Ibid.: 233, 249-
250). Começando por distinguir a psicoterapia de outras modalidades
terapêuticas pela sua “conversa explícita sobre o Eu”, o autor
prossegue enumerando os valores morais e sociais implícitos na
concepção psicoterapêutica de pessoa, entre os quais realça os valores
ligados ao individualismo (Ibid.: 233, 235-239). Com efeito, a
psicoterapia Ocidental assenta a sua intervenção sobre o carácter
coerente e unificado, autónomo e articulado, racionalista e agencial,
monológico e univocal do “Eu” (Ibid.: 235-240). Tais valores, tomados
como características “factuais” de uma entidade psíquica “verdadeira”
– o “Eu” reificado – são assim reproduzidos na e pela própria prática
psicoterapêutica (Ibid.: 238). Propondo (a partir de sugestões
etnográficas) alguns modelos culturais alternativos de pessoa 35 ,
Kirmayer sublinha a exigência de cariz ético e terapêutico que a
diversidade cultural impõe à psicoterapia: a de considerar as noções
particulares de pessoa interiorizadas pelos utentes, e aplicar no
contexto clínico valores que sejam inteligíveis e integráveis no seio
daquelas noções, evitando impor a sua própria noção individualista –
sob pena de não deixar ao utente alternativas de reconstrução do seu
“Eu” (Ibid.: 241-243, 249-250).

CONCLUSÃO

A responsabilidade da prática psicoterapêutica sobre o bem-estar


psíquico e emocional dos indivíduos faz da advertência de Kirmayer
mais que uma simples consideração académica. No caminho a
percorrer em direcção a uma melhor compreensão da diversidade

35 Designadamente: ecocêntrico, cosmocêntrico, egocêntrico e sociocêntrico, com


diferentes modos de terapia associados (cf. Kirmayer 2007: 242-246).

184
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cultural no âmbito clínico (como noutros), o papel preponderante da


antropologia não deve ser ignorado pelas ciências da psique.
A tradição antropológica de consciência e atenção ao relativismo
cultural, bem como a sua capacidade de articular uma sensibilidade aos
factores individuais com as dinâmicas do contexto social, devem torná-
la num interlocutor privilegiado das disciplinas que lidam com os
desafios da comunicação cultural e suas falhas.
Uma abordagem narrativa intercultural deve preservar este duplo
olhar, capaz de reconhecer, no seio da diversidade de pressupostos
culturais – sobre o tempo, a coerência, a identidade, e outros – como
pessoas de todas as culturas partilham a necessidade (por vezes vital)
de construir padrões que confiram sentido às suas vidas (Langness e
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Capítulo 6

Corações queimados:
A dor da memória nas narrativas de pacientes Bijagós

Chiara Pussetti*

* PhD Università degli Studi di Torino, Senior Associate Researcher CRIA /


ISCTE (Centre for Research in Anthropology – Portugal)
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Este artigo é dedicado à memória de Pedro Banca,


prezado amigo e interlocutor de rara sensibilidade antropológica.

Durante o meu trabalho de terreno em Bubaque (Arquipélago dos


Bijagós, Guiné-Bissau, 1999-2001), eu passava muito tempo sentada
em frente à casa de Tcharte, debaixo da grande árvore sagrada1. Tcharte
é um dos curandeiros mais famosos do arquipélago, um odiáki2 que,
além de ter os conhecimentos da farmacopeia tradicional, tem também
de nascimento o poder de “ver com a cabeça” (n’ojón ta bú). Ele pode
portanto ver o invisível, explorar dimensões espaciais e temporais
impedidas aos outros, e assim diagnosticar os problemas, individuando
causas e remédios adequados. Ao pé da sua casa, cada dia forma-se uma
fila de pessoas que esperam de ser atendidas, visitadas, ajudadas a
encontrar o sentido do próprio sofrimento. “Porque estou doente?”, “por
causa de quem?”, “quem tem problemas comigo?”, “qual é o sentido

1 Para criar uma aldeia, nas palavras dos anciãos, é necessário escolher uma grande
árvore, geralmente uma mangueira (Mangifera Indica), como ponto central ao redor do
qual organizar o espaço. Esta árvore é simbolicamente associada à figura da sacerdotisa
okinka, chefe religiosa da comunidade.
2 O odiáki é um adivinho e um médico tradicional com conhecimento especializado de
farmacopeia e do mundo sobrenatural. Os seus remédios são chamados unikán, palavra
que significa quer medicina de ervas, quer espírito. O termo odiáki deriva do radical –
diáki que gera palavras como n’odiáki, curar e nhudiaáki, restabelecimento; no crioulo
da Guiné-Bissau esta palavra é traduzida como kurandeiro ou djambakus.

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deste mal-estar?”, “estes problemas começaram quando e em relação a


quê?” são perguntas frequentes, nas quais a necessidade de significação
é o primeiro passo para uma explicação da própria experiência num
sentido funcional que conduza à mudança. A doença exige um sentido,
uma justificação, segundo um código que estará depois na base da
procura da cura mais adequada. As interpretações podem ser as mais
variadas: “apanhei um golpe de frio, uma corrente de ar, ou um mau-
-vento3”, “estou estressado, esgotado, consumi todas as energias, ou
outros furtaram-na ou chuparam-na do meu corpo”, “fizeram-me um
feitiço”, “partiu-se o meu coração”, “estou a morrer de desgosto”, ou
qualquer outra definição útil que, por experiência pessoal ou por
costume, estamos habituados a utilizar em situações parecidas.
É só depois desta interpretação que se pode saber onde procurar a
melhor resposta profissional: neste sentido, Tcharte oferecia uma dupla
alternativa terapêutica, sendo ao mesmo tempo um curandeiro
reconhecido e dotado de poderes extranaturais. Os sintomas que os seus
pacientes relatavam eram os mais diferentes: perda da memória, dos
sentidos, da vista, da audição, do apetite, do sono, do “orebok” (o
espírito ou energia vital que anima o corpo humano)4, das forças, do
controlo, da razão, dores de ventre, de cabeça, paralisia, queimaduras,
amnésias, letargias, barulhos incómodos nos ouvidos. Cada narrativa de
sofrimento relatava experiências e sintomas corpóreos específicos e
pontuais: Tcharte afirmava todavia que a saúde das pessoas reflectia por
um lado a qualidade das suas relações com os outros, pelo outro era

3 As interpretações que os iadiáki oferecem das doenças dos pacientes remetem na maior
parte dos casos para a intencionalidade de um agente: o mau-vento e o olhar penetrante
das pessoas invejosas são considerados causa da maior parte das aflições humanas.
4 Podemos dizer que o orebok simultaneamente tem vida e é vida. Tem vida na medida
em que pode desenvolver actividades diversas independentemente do corpo, pode ser
atacado, perdido, capturado, morto e comido por um feiticeiro desejoso de assimilar a
sua energia. É vida no sentido em que a sua existência e a existência do corpo são, se
não coincidentes, pelo menos intimamente dependentes. Por exemplo, se o orebok é
capturado, o kugbí adoece; se o orebok é comido ou matado, o kugbí começa a
decompor-se até – depois de algum tempo – morrer.

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espelho do próprio equilíbrio interior. As interpretações que Tcharte


oferecia da sintomatologia dos seus pacientes não derivavam portanto
de uma concepção da doença como algo fechado nos confins do corpo
individual, mas levavam em conta ao mesmo tempo a situação
biológica, psicológica e social do paciente e do seu grupo, inserindo
aquele episódio particular de sofrimento numa rede de conexões muito
mais ampla que juntava o passado com o presente, a memória
individual e a colectiva, e os múltiplos domínios de experiência que
cada indivíduo pode atravessar. Na leitura de Tcharte, que constituía o
seu acto terapêutico, cada dor, cada sintoma contava uma história mais
complexa, que tinha a ver com invejas familiares, conflitos conjugais,
tensões com os antepassados, ataques de espíritos, ou desequilíbrios
emocionais não resolvidos. O indivíduo não era portanto representado
como um sistema fechado, em oposição ao mundo exterior, mas melhor
como uma entidade permeável e em contínua transformação, sensível a
todo o que está ao seu redor e à influência dos outros. A interpretação
que Tcharte oferecia, e que se situava na base da sua intervenção
terapêutica, parecia desmentir três teses fundamentais da medicina
ocidental: os sintomas são signos de uma doença-facto; o móbil da
doença está localizado no interior do corpo do indivíduo; o corpo
responde sempre através de mecanismos naturais e portanto redutíveis a
universais. Na perspectiva nosológica representada por Tcharte, os
sintomas são signos de um desequilíbrio entre o indivíduo e o contexto;
o móbil da doença está localizado no campo relacional do indivíduo; o
corpo responde de maneira peculiar, construindo ligações criativas com
as formas institucionalizadas da aflição.
Qualquer doença, segundo Tcharte, radica em desequilíbrios das
emoções e dos pensamentos (n’atribá)5 individuais ou no influxo dos
sentimentos dos outros, que podem alterar o equilíbrio entre o corpo

5 A noção de kutribá (plur. n’atribá) junta na sua definição aspectos da esfera emocional
(como sentir tristeza, ciúme etc.) a elementos que nós consideraríamos próprios da
esfera racional: podemos dizer que se refere a tudo o que nós definiríamos como estados
psíquicos e os seus íntimos efeitos corporais.

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(kugbí) e a sua energia vital (orebok) indispensável ao bem-estar


individual. Uma alteração da harmonia dos n’atribá pode provocar
doença e até morte: existem sentimentos que podem queimar a
garganta, cegar os olhos, oprimir o tórax ou bloquear as pernas;
sentimentos negativos podem materializar-se na forma de uma
substância preta no estômago; a barriga pode encher ou abrir-se pela
raiva. Estes são com certeza órgãos físicos, mas também fonte de acção
e consciência. A concepção local junta portanto a psicologia e a
fisiologia humanas, incluindo enquanto aspectos do mesmo processo
aquilo que nós distinguiríamos como pensamentos, emoções, desejos,
tensões e os seus efeitos íntimos e carnais.
Uma das causas mais típicas de morte é exactamente a fractura
desta harmonia, que geralmente provoca a separação, a perda ou o
roubo do orebok. Porquanto existam situações e contextos apropriados
nos quais o orebok pode separar-se temporariamente do kugbí, como
por exemplo nos sonhos ou nos rituais de possessão, uma separação
fora destes âmbitos específicos será sempre causa de doença e morte.
A ideia que a força vital possa ser capturada pelos feiticeiros que
querem absorver a sua energia, ou perdida em momentos de grande
perturbação emocional, é comum a muitos contextos etnográficos.
Segundo Tcharte e outros iadiáki – curandeiros adivinhos das aldeias
de Bijante e Ankamona – alguns n’atribá revelam-se particularmente
fatais, causas recorrentes da perda da energia vital: kakpaná, o “susto”;
e ikojóke, a “dor”.

EMBODYING COLONIAL MEMORIES6

Para tentar dar conta da pluralidade e da complexidade das queixas


que os pacientes de Tcharte e dos outros curandeiros expressam, e para

6 Stoller 1995.

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mostrar como estas aflições reenviam não a um mundo interno e


individual, mas a múltiplas coordenadas situacionais, relacionais,
históricas e morais, iremos neste artigo reconstruir algumas das
narrativas recolhidas no terreno. Frequentando a casa de Tcharte, tive
diversas ocasiões para conversar com pessoas doentes e para escutar
contos dramáticos de perdas, de lutos capazes de tirar qualquer força, de
anos de sofrimentos crónicos, profundamente incisos nos corpos, de
corações queimados e de lembranças que paralisam e tiram a voz.
Tcharte, que sabe ver os espíritos erande7 e as almas dos mortos
(iarebok), e que luta contra os feiticeiros (iabané)8, conduzia-me com as
suas palavras no tempo rarefeito das visões, onde eu tentava obstinada-
mente encontrar os caminhos da lógica, não conseguindo acompanhar a
sua incrível corrente de imagens. Nabon’a convidava-me a escutar a sua
voz rouca de dor, depois de o sofrimento ter apertado a sua garganta até
a sufocar. Tcharte, voando à noite na floresta dos espíritos perdidos,
procurava a energia de Nabon’a, que pela angústia que bloqueou o seu
passo anda agora saltando como um pássaro. Presa na rede das visões,
dos sonhos, dos espíritos errantes, muitas vezes parecia-me que o
comportamento das pessoas com as quais conversava era difícil de
compreender. Mulheres que andam como pássaros, pessoas amarradas
por fios invisíveis, lutas nocturnas que me lembravam, com as devidas
cautelas, os duelos entre “feiticeiros” e “benandantes”, descritos e
analisados pelo Carlo Ginzburg (1966, 1989).

7 O erande é uma entidade sobrenatural que pertence ao panteão bijagó e se distingue dos
antepassados e de Nindo, a suprema entidade criadora. Cada erande tem características
individuais (nome, género, desejos, qualidades, gostos e idiossincrasias particulares) e
poderes específicos sobre o mundo dos humanos. Cada clã matrilinear tem o seu próprio
erande (erande enri kuduba), mas também se podem manter erande individuais, para
obter vantagens materiais. Provavelmente a palavra iran em crioulo, que designa
qualquer potência ou objecto ritual, deriva do termo bijagó erande.
8 No idioma bijagó de Bubaque existem pelo menos duas palavras para indicar a tipologia
de pessoas que em crioulo é chamada de futuseru: obané e omadók. Seguindo a
distinção proposta por Evans-Pritchard (1937), witchcraft representa o poder
incontrolado, inconsciente e perigoso do obané; e sorcery o poder controlado e exterior
do omadók, que age através de instrumentos externos.

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Os sintomas apresentados pelos pacientes do Tcharte eram os mais


vagos, diferentes, dificilmente reduzíveis a uma patologia específica.
Através do acto terapêutico, Tcharte tentava encontrar uma explicação
para estes “estranhos” sofrimentos. O seu poder era ao mesmo tempo
pragmático e hermenêutico, pondo em relação três ordens de realidade:
a existência individual, a social e a cósmica. Em primeiro lugar,
invocava os espíritos para que lhe concedessem a faculdade de curar,
assim como, por sua vez, o paciente invoca o medicamento unikán de
forma a que este possa agir eficazmente. O unikán é o remédio, o
espírito, a fonte da saúde, que permite ao curandeiro tratar os seus
pacientes: o termo tem portanto uma conotação terapêutica, mas por
extensão significa algo de sagrado e de sobrenatural. O unikán é de
facto, materialmente, um composto de ervas, que se tornará eficaz
somente através da conjunção de dois factores: a vontade de um
espírito e a coragem e abertura do paciente. A coragem é virtude
indispensável para retornar à saúde, porque o espírito só aceitará
“carregar de energia” o remédio se o paciente e o curandeiro
conseguirem mandar nele, ordenando-lhe que obedeça.
Se o unikán serve para curar as doenças breves (n’oduban), para
quem tem uma doença crónica ou uma dor que não passa (ikojóke) o
tratamento é bem mais complicado. Para conseguir tratar este tipo de
sofrimento é necessário em primeiro lugar interpretar os sintomas e dar
uma explicação exaustiva de porque é que a doença aconteceu. A
descodificação dos sintomas é o primeiro acto terapêutico e só a partir
daí se poderá escolher o remédio mais adequado. Na maior parte das
consultas que acompanhei, os sintomas dos pacientes com doenças
ikojóke aludiam a conflitos sociais, traduziam numa forma somática
emoções contrastantes, violências, desejos insatisfeitos, lembranças
dolorosas. A dor permanecia ou regressava constantemente para
manter vívida e lancinante a memória do que não pode ser esquecido.
Às vezes os pacientes que eu entrevistava afirmavam não saber
explicar a origem da doença, mas declaravam em simultâneo que o

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corpo sabia e lembrava tudo, e que eram as memórias que os faziam


sofrer. Muitas vezes a dor que eles descreviam deslocava-se pelo
corpo, acompanhando a narrativa das próprias vivências histórico-
-biográficas: os corpos enfermos, por outras palavras, constituíam o
memorial de experiências penosas passadas.
No tratamento da dor ikojóke, o acto terapêutico do Tcharte
funcionava como uma espécie de arqueologia da memória, destinada a
evocar e a trazer à luz as vivências passadas, as feridas, as penas: a dor
era escutada não só pelo que comunicava sobre o estado do corpo
físico, mas especialmente pelo que transmitia sobre a desordem e as
crises individuais e da comunidade, metáfora e metonímia de domínios
éticos e processos sociais. Podemos aqui considerar as narrativas
através das quais os meus interlocutores significavam o próprio
sofrimento não só como momentos de dramatização da experiência,
mas como dispositivos de criação de sentido. O significado construído
pela narrativa não apenas se enraizava no tecido existencial e
biográfico do sujeito, mas transcendia a sua contingência específica: os
discursos encenados, as metáforas, as formas tinham uma profundeza
histórica que ultrapassava a vivência individual dos eventos.
Quase todos os entrevistados situavam a origem da doença em
concomitância com episódios dramáticos da vida pessoal. O agente
causal, geralmente um evento traumático como a morte de uma pessoa
querida, constitui sempre a imagem dominante a partir da qual o
sujeito elabora a construção do sentido do próprio sofrimento. A alusão
a um factor externo como causa primordial da aflição representa um
mero anel no seio de uma cadeia conceptual mais ampla que liga no
mesmo processo causal factores históricos, contradições políticas,
tensões morais, definições de género e relações sociais.
Obennó, uma das minhas interlocutoras privilegiadas, descrevia
desta forma os sintomas que a afligiam: falava de um corpo “aberto”
(okpaiok), “violentado, usurpado” (okpás) pelos desejos dos outros; de
comportamentos contaminadores; de misteriosos banquetes nocturnos;

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de olhares penetrantes (n’oniné) 9 . Originária da aldeia de Bruce,


Obennó teve que se mudar para Bijante, no outro lado da ilha de
Bubaque, para se afastar das influências nefastas de pessoas invejosas
pertencentes à sua família. Em Bruce passou anos sofrendo de kobané,
termo derivado da palavra obané (feiticeiro) 10 que designa uma
condição de angústia profunda e persistente, condicionando todos os
aspectos da vida. Os sintomas típicos incluem opressão no tórax,
sensação de sufocamento, taquicardia, dores no estômago, falta de ar,
desassossego e insónias. Os sintomas agravam-se quando haja a
impressão de que os olhos malvados pertencem a alguém próximo ou,
ainda pior, da própria família. A figura do obané condensa as
características de inversão dos valores sociais mais frequentemente
encontradas em casos e contextos análogos: voos nocturnos,
canibalismo, transformação em animais, nudez, furto da energia vital,
pertença a uma comunidade da floresta, ofertas de parentes em
sacrifício11. As suas práticas são consideradas tão nojentas que são
associadas ao fedor da fermentação e da putrefacção, próprios da

9 N’oniné significa literalmente ter os olhos pontiagudos, cortantes, perfurantes. Como o


verbo n’okoní, que significa cuspir ou escarrar, e o verbo n’oróngbok, cujo significado
se situa entre ciúme, antipatia e ódio, n’oniné indica um acto destinado a magoar,
devido a inveja.
10 A reflexão antropológica recente sobre a política de representação etnográfica convida-
-nos a reflectir criticamente sobre o emprego da categoria de “bruxaria” ou “feitiçaria”.
Estes termos referem-se a um conjunto de práticas e significados heterogéneos,
delimitados por antropólogos para os adaptar às fronteiras de uma categoria própria da
cultura ocidental. Considerando as implicações ideológicas desta categoria e a natureza
insatisfatória de uma definição “ética” (por contraposição a “émica”), na qual se afirma
em excesso a marca da história cultural europeia e que resume num único termo práticas
muitas vezes irredutíveis umas às outras, privilegiamos neste trabalho as categorias e os
termos locais.
11 Vejam-se por exemplo Evans-Pritchard (1937), Mair (1969), Douglas (1970). O termo
obané pertence à família semântica – bén, à qual correspondem verbos como: n’obén,
que significa ser ou fazer algo horrível, e também tramar ou ligar; n’obénh, que indica
os excrementos e o acto de defecar, mas significa também contaminar, infectar,
perverter, danificar; n’obénen, enganar, corromper ou deteriorar; n’obeney, destruir,
devorar, trair ou mentir.

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floresta, da transformação e da destruição operadas pela morte. Poder-


-se-ia pensar numa analogia entre a morte, situação prototípica na qual
as relações sociais são destruídas, e a acção da feitiçaria obané: as duas
constituem uma ameaça de desagregação dos laços, alterando e
enfraquecendo o grupo. Como a decomposição “desconstrói” os corpos,
assim a acção contaminante do obané destrói os laços familiares e a
harmonia da aldeia. A inveja, tal como o ciúme (korammó, termo que
indica também as outras esposas do próprio marido) são associados aos
actos do obané, e pensa-se sempre que esta ameaça se esconde no seio
da família, onde os laços são mais estreitos e as relações mais intensas.
As mulheres que não podem ter filhos cobiçam os bebés das próprias
irmãs e observam com olhos perfurantes os ventres das grávidas mais
próximas. Cada olhar de sofrimento, de inveja, de rancor “penetra,
corta, devasta”. Obennó perdeu todos os seus filhos devido a febre,
diarreia, malária. “A doença que os matou está na minha aldeia, na
minha família, nos olhos das minhas cunhadas: por isso é tão perigosa,
porque são as pessoas que te conhecem bem que te podem infectar. Por
isso tive que fugir e fui para Bijante” explica Obennó. Cada doença,
cada morte deve ser interpretada reflectindo sobre as próprias relações
com os outros. Obviamente, a dimensão empírica dos fenómenos não é
ignorada, mas cada sofrimento depende da acção de alguém próximo,
que quer o teu mal. O obané representa o “lado obscuro” do parentesco:
a consciência do facto de que os ressentimentos e as invejas mais
violentas nascem exactamente no interior do grupo familiar. Em todos
os relacionamentos, especialmente aqueles de grande proximidade
emocional e social, a interdependência muito estreita acaba por ser
carregada de sentimentos ambivalentes. “A cada filho perdido, ficou
uma dor que não passa, aqui no meu corpo” – comenta Obennó – “e a
angústia dos ataques dos feiticeiros (kobané) tirou o meu sono, fechou a
minha garganta, tirando-me o ar”.
Um corpo invadido, possuído por ikojóke, a “dor que não passa”,
por kobané, a “angústia”, e por kakpaná, o “medo”; um corpo aberto,

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contraído, que lembra um passado doloroso, individual e colectivo, e


que não esquece as violências do período colonial. Obennó foi muitas
vezes consultar Tcharte, “porque a medicina dos brancos não
conseguiu ajudá-la”. A descrição dos sintomas falava metaforicamente
das suas vivências emotivas: Tcharte podia ajudá-la porque “escutava e
compreendia” (n’oguén) esta linguagem.
Nos seus contos, “no tempo dos Tuga12” o seu corpo começou a
fragilizar-se, a abrir-se:
Tive muitas doenças, que começaram quando era criança e tinham
os Tuga na minha aldeia. Nasci no tempo dos Tuga, toda a minha
juventude foi no tempo dos Tuga. Os Tuga enviavam às nossas
aldeias outros pretos, estrangeiros, às vezes Fula, Mandinga,
Balanta13. Chegavam armados e levavam as pessoas para o trabalho
forçado. No tempo dos Tuga, os pretos faziam mal uns com os
outros: estes pretos estrangeiros violavam (n’okpás) as meninas,
furtavam o que queriam, batiam nos que não pagavam os impostos,
mesmo nas mulheres grávidas. Eles levaram o meu pai como um
escravo, e a minha mãe morreu porque o seu coração se queimou
(n’unummi konó) e eu fiquei órfã (n’unummi konó n’ojón kugbí
kunrenh eti iató ebenten, literalmente “o coração queimado viu o
meu corpo em frente à gente como órfão). Chorava o dia inteiro
pelas desgraças da minha vida (nhidag enhenguená, “chorava
miséria”). A consequência foi que me cansei de viver assim. E que
fiquei doente, de uma dor que não passa (ikojóke), que não me dá
tréguas. Cansei-me também de lembrar (n’éta) isso contigo. Agora
estou muito cansada deste navegar; ser uma mulher é um castigo
(Nhide Nagbok Tankpán Kutiti. N’onam Okanto Onam Kavénne,

12 Tuga é o termo crioulo para indicar os Portugueses.


13 Durante o período colonial, a circunscrição do arquipélago, com sede em Bubaque,
criou cinco postos administrativos, cada um gerido por um funcionário português (chefe
de posto), directamente subordinado ao administrador da respectiva secção. Ao nível da
aldeia tinha um papel de relativo poder o regedor, um agente do governo, geralmente de
grupos étnicos aliados ao poder colonial, que se ocupava de obter – de forma às vezes
violenta – os impostos devidos.

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literalmente “acabei de ser cansada de navegar entre as ilhas; Ser


mulher é um castigo). Não quero lembrar-me daquele tempo tão
mau. Só quero esquecer, não quero falar daquele tempo: estou
cansada das tuas perguntas.

Do que causa mal-estar não se pode falar muito: as narrativas da


dor são temidas e evitadas porque o sofrimento pode colar-se
(n’otokán) ao corpo, pode pegar (n’otronnán), causando doença
(ikojóke), loucura (orokóm) 14 , e perda de controlo (n’okandaré,
literalmente “abandonar-se, deixar-se ir”) ou da energia vital (orebok).
Falar do sofrimento significa de alguma forma concretizá-lo, evocá-lo
e carregá-lo de poder, aumentando assim a possibilidade do contágio: o
sofrimento, como uma doença infecciosa, pode transmitir-se por
proximidade, penetrando facilmente os confins corpóreos. A
insistência de Obennó sobre a vontade de não falar e de esquecer
revela também uma relação complexa com as próprias memórias, e a
tentativa de olvidar um tempo que evoca dolorosamente o passado
individual e da comunidade inteira: um tempo e um sofrimento
continuamente “presentificados” pelos seus sintomas. Face à
necessidade de esquecer, a doença representa uma entre as técnicas
culturais possíveis de construção ou reevocação do passado. Obennó
está cansada de “navegar” no oceano das suas lembranças: as minhas
perguntas incomodam-na. O seu corpo todavia recorda: o tempo das
violências passou, mas a dor continua presente e não dá descanso.
Obennó fala de uma dor crónica que mantém vivas as lembranças, de
um sofrimento que desde então é a sua vida. Quando chegaram para a
levar aos trabalhos forçados ela não conseguiu levantar-se. As pernas
bloquearam. Não podia andar. Os missionários de Bubaque tentaram
ajudá-la: trouxeram-na ao hospital Simão Mendes de Bissau e até ao
hospital de Canchungo. Mas os sintomas, interpretados pelos médicos

14 O verbo n’orokóm literalmente significa “brincar, gozar, lutar”, mas se empregue com a
preposição ta, que exprime essencialmente a proveniência ou o meio, assume o sentido
de “ser doido”.

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como manifestações de uma doença orgânica, não melhoraram: a


medicina dos brancos não conseguiu curá-la. Os exames clínicos não
evidenciaram disfunções orgânicas nem anomalias que pudessem
justificar o quadro sintomatológico ilustrado pela paciente.
Não sei que tipo de doença tinha apanhado, sei que me sentia a cada
dia mais fraca e que as pessoas me perguntavam qual era a parte do
meu corpo que mais doía: em todo o corpo eu tinha dor, o meu
corpo estava aberto (n’okpaiok) e tudo o que entrava feria. Não
conseguia falar, não podia mais andar. Tinha perdido o meu pai, a
minha mãe e as minhas forças. Tinham-me tirado tudo, nada nos
pertencia, aquela gente furtava, não pedia. Estava então como
morta, deitada o dia inteiro e nada mais. Deixava as coisas acontecer
ao meu redor, sem qualquer reacção. O meu irmão então carregou-
-me sobre as suas costas e levou-me até Bruce onde morava o meu
tio Kokomoro. Levaram-me ao sítio onde fazem as cerimónias para
me tratar e lá lavaram o meu corpo todo com yayi15 para a minha
pele ficar dura e o corpo forte, para nada conseguir mais entrar. Tive
que passar yayi no meu corpo todos os dias até este ficar
impenetrável aos olhares penetrantes e ao desejo (edík) 16 dos
outros. Só por causa disso não morri. Mas estas dores nas pernas
que não me deixam andar continuam ainda hoje. Foi por isso que
procurei Tcharte, porque ele pode ver o que os outros não vêem
(“ver com a cabeça”, n’ojón ta bú).

Os sintomas de Obennó revelam as violências que ela sofreu no


período colonial, o medo e a dor que abriram o seu corpo. Na sua
narração, a doença constitui a imagem da desordem e do conflito, quer
ao nível do corpo biológico, quer do corpo social. A doença pode ser

15 A infusão de raízes secas de yayi (Uvaria Chamae) é um remédio muito usado para
massajar os recém-nascidos para os tornar escuros (n’onitikokon), duros (n’onikpetí) e
secos (n’odan) o mais rapidamente possível.
16 Edík deriva do verbo n’odík, que entre os seus significados compreende: querer,
pretender, desejar, insistir, ganhar, ser fortes, ser irrequietos, bater o ferro, competir,
lutar.

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interpretada como “uma esponja que absorve os significados peculiares


das vivências pessoais e das situações interpessoais” (Kleinman 1988:
31). O sintoma do qual se continua a queixar, além da genérica “dor”
no corpo inteiro, é a incapacidade de andar: um acto de oposição e
impotência face a uma realidade que não consegue aceitar. O verbo
n’okojóke, “sentir dor”, muito presente no relato da Obennó, denota
“ter uma doença crónica, que não passa”. Nas suas palavras: nhikojóke
ankugbí eti ikojóke, “sofro no corpo para uma doença que dura há
muito tempo”. O termo empregue para uma doença breve e passageira
é n’oduban17, “ser quente, ter febre”, ou são utilizadas expressões
onomatopeicas que indicam o tremor das febres maláricas: n’orenrénk,
n’okpekekpekek, n’orikirikik. Mas é só um ikojóke que pode levar a
enlouquecer, a perder o controlo sobre o corpo inteiro, a queimar-se
vivo. Expressões frequentemente presentes nas minhas entrevistas
incluíam: n’orokóm eti ikojóke, “enlouquecer pela dor”; n’ogó egod ta
kugbí eti ikojóke, “vomitar o fígado do corpo pela dor”; n’ogont ta
konó eti ikojóke, “queimar no coração pela dor”.

PERDER-SE

Os sintomas lamentados por Obennó lembram as queixas de uma


outra paciente de Tcharte, Koká, cujo percurso terapêutico acompanhei
ao longo de dois anos. Koká foi uma das esposas de Tcharte, repudiada
depois de alguns anos pela infelicidade e azar que ela trazia consigo.
Pedro Banca, antes de informante um grande amigo meu, ao qual devo
primeiro a aprendizagem do crioulo e depois do bijagó (básico), e que
acompanhou com todas as suas energias o meu trabalho de campo, era
o único filho sobrevivente de Tcharte e Koká. Pouco depois da rejeição

17 São consideradas n’oduban, doenças temporárias, por exemplo o sarampo


(n’unsúnsuru) ou a dor de barriga (kokpá).

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da mãe, Pedro entrou num período de conflito com o pai. Esta disputa
familiar causou – em sua opinião – o acidente que sofreu em rapaz: a
queda de uma palmeira que lhe custou a coluna, obrigando-o a ficar
preso para sempre a uma cadeira de rodas. A paralisia de Pedro –
espelho e resultado, nas suas palavras, da relação conflitual entre os
pais – é somente uma das amarguras que Koká sofreu na sua vida e que
marcaram o seu corpo. O seu destino de dor estava já escrito no seu
nome. Quando era mesmo muito pequena a sua mãe e a sua irmã mais
velha morreram, deixando-a sem ninguém para cuidar dela.
Ainda me lembro dos gritos das mulheres da aldeia: orebok oisir,
orebok okan kugbí: koká! koká omgbá! nhinam konó eti amo,
omisonámo okpé, koká!, “o orebok descolou-se, o orebok abandonou
o seu corpo. Coitada, coitada criança! Sinto pena por ti (sou coração
por ti), a tua mãe morreu, coitadinha!” Koká, “coitada”, ficou como
meu nome e meu castigo. Desde então todo o que se passou comigo
é ligado ao meu nome e a gente na rua ao meu passar sussurra
“Koká, koká…” (Coitadinha, coitadinha…). Pronunciando o meu
nome, chamam o meu destino. No dia em que o meu primeiro filho
compreendeu o castigo trazido pelo meu nome, decidiu cuidar de
mim e ir trabalhar para os brancos, para os Tuga. Eu queria que ele
frequentasse a escola, mas ele decidiu sacrificar-se para me sustentar,
ele sabia que Koká é um nome que lacera o corpo e a vida. Ele foi
deixar-se explorar por minha causa, no lugar de metal dos brancos (a
fabrica alemã de óleo de palmeira na praça da Ilha de Bubaque).
Todos os dias era humilhado, maltratado, tinhas que ver as
condições, as condições… Tudo mudou em 1980, no dia 4 de Maio.
O caldeirão da água quente, que usavam para preparar o óleo de
palmeira, entornou-se e entre todos os que trabalhavam lá apanhou
somente o meu filho, a sua cara, a sua barriga. Koká! Koká!
Escutava este grito na rua: as mulheres chamavam o meu nome e
outra vez com a palavra marcavam o meu destino. Disseram-me que
tinha acontecido um acidente e que tinha que correr logo até à praça.
Eu comecei a correr mas de repente as pernas quebraram-se e tombei
no chão e não consegui levantar-me mais. O meu corpo lacerou-se

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pelo cansaço da dor. No chão implorava a morte, mas a morte não


cedeu e levou consigo o meu filho. A morte é malvada, não cedeu às
súplicas, mas como a chamei, colou-se ao meu corpo. Nindo18
quis-me dobrar, Nindo colocou-me no chão (n’okpeteká). Abati-me
no chão e no chão é que eu fiquei até agora: olha para as minhas
pernas, estão doentes, inchadas, pesadas. Desde então fiquei doente.
Levaram-me ao continente aos hospitais de Canchungo e Bafatá, mas
não conseguiram curar-me. A medicina dos brancos não me podia
ajudar, eles não conseguiam perceber porque não podia mais andar,
nem dormir, nem comer: tinha perdido a minha energia vital
(orebok), tinha perdido o meu filho. Ele subiu na piroga dos mortos,
e ao mesmo tempo o meu orebok desembarcou de mim. Koká, koká:
esta era a minha doença. Não me lembro bem das palavras deles,
esqueci o que se passou: na minha cabeça tudo era um barulho, o
meu corpo estava a cada dia mais fraco e estava quase a morrer.
Koká okpé kenken: “Koká está próxima da morte”. Koká omane
tanona tandag: “Koká não pode mais parar de chorar”. O meu corpo
ainda agora chora. Estou tão cansada de chorar por esta doença, pela
dor (nhide nagbok tandag ikojóke inrenh): a dor cansa (ikojóke
itin’an), sabes? E eu estou tão cansada… não me levanto mais, estás
a ver? Eu quase não ando. A doença (ikojóke) ficou aqui nas minhas
pernas (anmbe). Perdi as forças e agora só ando como um pássaro. A
gente fala, diz que eu ando e choro como um pássaro; mas à noite os
pássaros fartam-se de chorar e eu não. Onde posso ir agora, eu que
choro e ando como um pássaro? Olha as minhas pernas: eu só quero
esquecer (n’otanín) e o meu corpo lembra (kugbí éta).

A história da Koká, que relata as circunstâncias trágicas da morte


do seu filho, as consequências emocionais devastadores e a dor
agarrada ao seu corpo, fornece pontos interessantes de reflexão. O
destino criado por uma palavra, koká, coitada, é o primeiro ponto da
sua história que vale a pena explorar. No terreno aprendi que as
palavras não são somente representações de algo, não veiculam apenas

18 Nindo é o criador supremo.

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conhecimentos e informações: são sobretudo poder, energia, acção.


Ensinaram-me lá que se pode mesmo fazer coisas com as palavras
(Austin 1962). O som mesmo das palavras tem poderes especiais e
pode ter efeitos nos corpos, assim como na vida e nas relações dos
indivíduos. Uma vez denominada a sua condição, esta torna-se o seu
fado: toda a vida de Koká é marcada pelas perdas, pelos lutos, pelas
doenças e pela solidão. Koká, Coitada.
A ruptura de uma relação tão importante como aquela entre mãe e
filho causa sofrimento e o sintoma físico (as pernas que quebram, o
corpo que se lacera) é a metáfora incorporada desta fractura. A maior
parte das histórias recolhidas no terreno mostra um padrão muito
semelhante às narrativas de Obennó e Koká aqui apresentadas. Os
entrevistados começam por apresentar os sintomas do ponto de vista
físico, mas a dor é rapidamente historicizada, deslocando-se do corpo
para outros locais, presentificando memórias, ligando espaços e
episódios do presente e do passado. O corpo nestes casos lembra, torna
presente e exprime os sentimentos lacerantes da perda. O conceito de
perda é central na narração da doença que aflige Koká: a perda do filho
é também perda da sua capacidade de andar, da energia vital, da força,
da consciência. Koká não se lembra das palavras porque “na sua
cabeça tudo era um barulho”, mas no corpo a dor deixa um rasto, uma
lembrança: a dor fica nas pernas, diz Koká. Pela dor anda agora como
um pássaro e como um pássaro chora. “Tornar-se ou andar como um
pássaro” e “chorar como um pássaro” são expressões metafóricas
típicas no universo do arquipélago para representar a dor da perda de
algo importante, como a morte de uma pessoa amada. O choro da dor é
associado ao “choro” dos pássaros. O canto (orai) dos pássaros é de
facto considerado um “choro” (odag), que evoca o sofrimento extremo.
Como pássaros andam os que perderam a direcção e o controlo de si
mesmos, num andar desorientado, um saltar de um lado para o outro
como empurrados pela força do vento, sem uma meta. Quanto mais a
dor se intensifica, consumindo a energia vital, mais os sintomas se

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agravam até bloquear as pessoas aflitas num estado de pré-morte (não


andam, não compreendem, não falam, não comem).
A lembrança da perda de pessoas amadas marca particularmente
os corpos, permanencendo na impossibilidade do movimento e na dor
crónica. A incapacidade de se mexer, a paralisia, o cansaço extremo
são sintomas omnipresentes nos relatos recolhidos. A mesma sensação
de perda do controlo do corpo é também expressa às vezes através da
impressão de “ser passivo”, “agido” ou “controlado” face a forças
externas. Todas estas narrativas têm em comum a ideia do corpo como
impotente, inerte, literalmente incapaz de se mover. O bloqueamento
físico e a passividade total representam metaforicamente a resignação,
a completa ausência de esperança e de energias para enfrentar a
situação.
Na medida em que a pessoa, na antropologia bijagó implícita,
precisa da rede das relações sociais para a sua própria completude19, a
perda de vínculos importantes constitui a perda de partes de si mesmo,
uma perda física dolorosa. A solidão é encarada como uma doença, e a
fractura dos laços afectivos como a pior dor possível. Ojentók, a
solidão, é considerada a experiência em vida mais próxima da morte:
n’ambonki anden nijón n’onó kan enho: n’ambonki anden nakán eti
kuó deeki; iajoko iakanám eti kuó, “a casa está agora vazia, a varanda
silenciosa, os tambores sagrados da aldeia fizeram-me ficar sozinho na
varanda, ninguém fala mais comigo na varanda”. A varanda, espaço
privilegiado de encontro e sociabilidade, está triste, desabitada, muda;
os tambores sagrados, primeiro sinal de luto na aldeia, são empregues
aqui como metáfora da morte, da solidão, da falta de apoio social, do
abandono, todos factores potencialmente causadores de doença. Uma
perda no corpo social é sentida como uma dor penetrante no corpo
físico individual. Assim se fala de problemas sociais como se fossem
problemas orgânicos, que são desta forma vivenciados e sentidos. O
corpo físico adoece se o corpo social não é saudável.

19 Pussetti 2005.

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A DOENÇA DE QUEM VAI EMBORA

Algumas das entrevistas recolhidas referiam-se explicitamente a


sintomas relacionados com a fractura de laços íntimos ou com a
separação de um familiar. É o caso da doença das pessoas “que
disseram adeus” (n’odi) 20 . N’odi, a emoção que acompanha as
separações, as distâncias, as fracturas de laços, é considerada muito
perigosa para a saúde 21 . O afastamento dos filhos, bem como o
distanciamento entre as famílias, são fontes reconhecidas do “n’odi”.
Qualquer separação física ou ausência prolongada mina potencialmente
as bases da relação, enfraquece os vínculos afectivos e abala as
certezas do familiar. O n’odi atinge particularmente as pessoas que
migram, seja de uma ilha para a outra do arquipélago, seja para Bissau
ou outras cidades do continente, seja para a Europa, nos poucos casos
em que o desejo de partir se concretiza na realidade. Apesar de ser
desejada, a migração é percebida como uma viagem perigosa no
mundo da alteridade e como tal representa uma fractura que pode levar
as pessoas à doença e até à morte. Esta “saudade” assinala momentos
cruciais da vida, marcados pela não adaptação ao novo contexto, a falta
de relações sociais e, por fim, o desejo de voltar ao que se deixou para
trás. N’odi é causa de sintomas diferentes, difíceis de categorizar nos
quadros nosológicos da biomedicina: o resultado final é a loucura ou
até a morte; a única forma de recuperar a saúde é a de voltar e
recompor as fracturas. O n’odi é muitas vezes interpretado como uma
“chamada”, uma prática “mágica” destinada a atrair e a fazer regressar
às próprias origens os que foram embora, para reconstruir dinâmicas e
laços assim ameaçados ou cortados. A manutenção e o fortalecimento
da relação com a família parecem ser as razões mais importantes desta

20 A tradução dos termos locais, regida pela consideração atenta aos seus empregos nos
discursos com os meus interlocutores, é uma aproximação e enquanto tal deve assumir-
se uma perda parcial do seu sentido original.
21 Pussetti e Bordonaro 2006.

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“chamada”. São de facto geralmente os familiares, e em particular as


mães, que efectuam rituais para chamar de volta quem está longe.
Simbolicamente, um dos rituais para garantir o regresso do emigrante é
o enterro duma placenta humana no interior da casa, no annani,
literalmente “o ventre da casa”, o quarto onde os bebés nascem e os
mortos são enterrados, e que representa simbolicamente o útero
materno e a continuidade através das gerações. As consequências deste
ritual – que tem pontos de contacto com o “wootal” dos Serer e dos
Wolof do Senegal (Sylla e Mbaye 1990-1991) – determinam no
destinatário uma sensação de tensão nervosa, de ansiedade ou angústia,
que podem levá-lo a manifestar outros sintomas físicos: falta de ar, de
voz, de forças, de sono, de apetite. O n’odi reflecte também relações
sociais tensas, como por exemplo a ruptura de relações e a transgressão
de regras sociais fundamentais. Os rapazes que saem das aldeias para
estudar na praça de Bubaque22, e que se demonstram cépticos em
relação a muitos aspectos ligados à vida “tradicional” dos anciãos,
temem pela própria saúde e até pela própria vida. O corpo é de facto o
lugar privilegiado onde o contraste geracional, de perspectivas e de
objectivos de vida assume a forma concreta da doença.
A história de Abas, um rapaz originário da ilha de Canhabaque,
que se mudou para Bubaque para frequentar a escola católica, é a este
respeito muito significativa. Quando durante o ano escolar os anciãos o
chamaram a voltar a aldeia para enfrentar o manras, a iniciação na
floresta, ele recusou bruscamente o convite. A sua motivação expressa
era o ter já cortado os laços com a “tradição”, a sua escola não sendo já
o mato “skola di matu” (crioulo) mas antes as aulas que frequentava
todos os dias na missão, e o desejo de sair quanto antes das ilhas e
continuar o seu percurso escolar em Bissau. A sua recusa foi interpre-
tada como uma ofensa aos anciãos, uma fractura de relações de respeito

22 A praça é o centro comercial e portuário da ilha, e situa-se na extremidade setentrional


de Bubaque. Conta mais ou menos com mil habitantes, uma escola, uma igreja,
pequenas lojas e alguns restaurantes.

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e dependência próprias da lógica do ciclo ritual n’obítr kusina23 e uma


humilhação para a sua família. Após alguns dias, Abas começou a
manifestar distúrbios estranhos: não conseguia concentrar-se nos
estudos, manifestava problemas de visão, não conseguia andar, e em
particular parecia não reagir às palavras. As irmãs da missão católica,
enfermeiras, sustentavam que o rapaz não tinha nenhuma lesão dos
ouvidos: ouvia e reagia aos barulhos (n’onni) e portanto não era surdo;
todavia, parecia não escutar ou não compreender (n’oguén)24 o que as
pessoas lhe diziam. Em diferentes ocasiões os meus interlocutores
sublinharam a diferença entre n’onni e n’oguén, isto é, entre sentir os
sons e decifrar os símbolos linguísticos. N’oguén constitui a pré-
-condição essencial da maturação social: o adulto é aquele que conhece
os acordos e as convenções da vida social, aceitando as suas regras, a
começar pelo mais importante sistema de símbolos culturais, a
linguagem. É através da compreensão da palavra que se entra
efectivamente na sociedade e que esta pode agir nos indivíduos.
A família de Abas resolveu portanto consultar um odiáki para
perceber o sentido desta doença. O seu diagnóstico foi que a súbita
surdez era uma punição dos antepassados pela recusa de Abas em
escutar a voz deles e aprender no mato a linguagem do kumbonki (o
tambor sagrado)25. Já que a palavra omeguén, “surdo”, indica também a
loucura e a idiotice, a leitura do odiáki abre-se a diferentes interpreta-
ções. A surdez de quem não escuta/compreende as palavras dos anciãos

23 Ciclo ritual que distribui a população masculina em classes e graus de idade e que prevê
uma forma de pagamento dos jovens pelos anciãos em troca dos ensinamentos
necessários para se tornarem adultos.
24 O verbo n’oguén significa literalmente escutar, prestar atenção, compreender, saber,
conhecer.
25 O kumbonki é um tambor de fenda constituído por um tronco de árvore ôco, com uma
fissura longitudinal, a formar uma caixa de ressonância. Musicologicamente trata-se de
um idiofone de percussão (Nketia 1986: 77). A difusão do tambor de fenda na região da
Guiné-Bissau é muito ampla: além dos Bijagós, é empregue pelos Manjaco, Papeis,
Mancanha e Balanta (Wilson 1963: 201). Sobre os significados simbólicos do kumbonki
veja-se Bordonaro 1998.

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e dos antepassados, garantia de reprodução da tradição da aldeia, é


loucura, e a pessoa deve ser considerada como tal. Também a expressão
n’obeney konno, que significa literalmente “danificar as orelhas”,
designa a loucura, ou seja a incapacidade de compreender lucidamente.
Quem tem as orelhas lesadas ou fechadas não entende como os outros,
não compreende o que a gente diz. A pior doença imaginável26 é a perda
do ouvido (n’ougí): “se não escutas estás já morto, porque não entendes
os problemas, as discussões e não participas do conselho dos anciãos,
não entendes a voz do kumbonki e portanto não sabes nada do que se
passa na ilha”.
A “loucura” de Abas acabou também por atrair a desaprovação dos
espíritos da aldeia: depois de poucos dias morreu de parto Punja, a sua
prima, da mesma linha de descendência. A interrogação do morto27
indicou Abas como o culpado desta morte, predizendo que o seu
comportamento errado teria outras consequências nefastas sobre o seu
kuduba (a filiação matrilinear). Frente a esta nova situação, Abas fugiu,
provavelmente em direcção a Bissau, decidindo sair do impasse e cortar
qualquer ligação com a sua vida precedente.
A doença que o levou a evadir-se das suas responsabilidades
sociais, explicou-me Tcharte, é chamada otankasámak. A análise desta
palavra é interessante: deriva do verbo n’osamák – “fazer cerimónias,
respeitar as regras, rezar, obedecer aos antepassados, estar bem” – mas o
seu prefixo é a negação otank. Por exemplo: Abas obdo tanbdo. Iató
ianam otankasámak; onabdo woratraké, madék okpánke, “Abas anda
sem destino. A gente diz que ele não respeitou as regras/obedeceu aos
antepassados (não está bem); ele passou num lugar sagrado, mas não
parou”. O verbo n’otankasámak significa também “ser culpado”28. A

26 Uma das causas mais comuns de suicídio – neste caso moralmente aprovado – entre os
anciãos é a surdez.
27 A interrogação do morto é um ritual destinado a individuar as causas da morte difundido
em toda a Guiné-Bissau (Pussetti 2003).
28 Como nestes casos: nhokor kanhóma, matankasámak, “desapareceu o meu pano, tu és
culpado”; iató iatankasámak tanam moo mowan’o, “a gente é culpada de fazer coisas
que cheiram mal”.

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conexão semântica entre “ser culpado”, “não respeitar, não obedecer” e


“não estar bem” é extremamente significativa: a sua culpa, o facto de
não ter dado ouvidos à palavra dos anciãos, é também a sua doença.
As poucas notícias de Abas que chegaram às ilhas eram
preocupantes: ele estava cada vez pior, muito doente e já tinha sido
internado sem sucesso no hospital de Bissau. A gente na aldeia dizia
que alguém tinha feito uma “chamada” e que ele para sobreviver
deveria voltar para casa e cumprir o seu dever. Abas não voltou.
Depois de uns tempos chegou a notícia de que ele tinha morrido,
sozinho, por (mais uma vez) não ter escutado, não ter ouvido a
“chamada”.
Uma alteração da ordem e do equilíbrio nas relações sociais pode-
-se portanto traduzir num problema físico, assim como um
desequilíbrio comportamental pode ter efeitos sobre a saúde dos
familiares. Não só a prima de Abas morreu, mas a morte não prevista
do rapaz causou um grande sofrimento à sua mãe, que por
consequência adoeceu. Toda a história de Abas, desde a vergonha que
causou à família até à sua própria morte, marcou o corpo físico e
social: cada aflição reflecte uma perda íntima, uma fractura de laços,
uma mágoa.
A confusão, ou o barulho na cabeça – como na narração da Koká
– a perda de controlo, a loucura, a surdez – como em Abas – são
sintomas referidos nos relatos da maior parte dos pacientes que
entrevistei na casa do Tcharte. O barulho é muitas vezes relatado com a
expressão oríbiribík, formada por uma dupla repetição do verbo n’orib
(falar): meio vívido, mimético, quase onomatopaico para evocar a
confusão de vozes na cabeça (oríbiribík ta bú). A desorientação é
geralmente referida através de expressões que aludem à desordem
interior ou ao desnorteamento ao nível do espaço físico. Por exemplo,
são expressões comuns “não ter ordem nos sentimentos” (n’okasenei
ann’atribá), “ir sem direcção certa, perdendo-se” (n’odó tandó
okoróbo), “andar sem ter um destino” (n’obdo tanbdo) ou “sair do
caminho certo da aldeia” (n’obdo n’apáda). A loucura (orokóm) é

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também indicada por dois verbos que escutei frequentemente nos


relatos dos meus interlocutores: n’okor, “não ser, não existir,
desaparecer”; e n’opetekam, “ser frágil, cansado, perdido”. Este último
verbo em particular tem conexões semânticas interessantes: se
considerarmos o campo de aplicação do radical – pet encontramos
verbos muito significativos: n’opetek, que significa “perder, deixar
fugir”; n’opetok, “abandonar-se, resignar-se, não se cuidar”. Esta
desistência, o cansaço, a renúncia total de quem se abate no chão
(n’okpeteká, literalmente a acção do vento e da tempestade nos campos
de arroz) é a doença que leva à morte. Obennó e Koká chegaram a
render-se completamente, esgotadas, derrotadas, a dobrarem-se no
chão. A sua dor devastou como “vento”, “tempestade” e “incêndio” –
nas palavras de Tcharte, ikojoke, a dor que não passa, mexe um homem
como o vento (netí) as árvores; rebenta com a força da tempestade
(kakpikpidí); queima com a fúria de um incêndio (ogoutí). Quem perde
uma parte de si já não pode mais controlar-se (omatrák eti moo
“explodir em baixo das coisas”), o seu peito arde (kabara kogónt), o
coração queima (n’unummi konó), ou parte-se ao meio (n’okpéntok tan
konó), o sangue pára de correr pelo corpo (n’orkessaké ta kugbí), o
ventre abre-se (n’okpai ta naa), ou fica a ferver (n’odubán annaa).
Poeticamente, Koká relaciona a partida do seu filho, que sobe na
piroga dos mortos (uruté iarebok), com a perda da sua energia vital: o
seu orebok desembarca (n’onáka) do seu corpo29. As memórias que
causam dor têm assim o poder de causar doenças e até de levar à
morte, efeito derradeiro da perda do orebok. Por causa disso as minhas
interlocutoras insistem tanto sobre a necessidade de esquecer
(n’otanín), ou sobre o cansaço de lembrar comigo factos passados,
mesmo que o corpo e os seus sintomas insistam em recordar (n’éta),
re-presentificando o sofrimento. A pena das lembranças provoca

29 Uma metáfora típica compara o corpo (kugbí) a uma piroga na qual se senta o orebok,
como a expressão que define a possessão feminina (uruté iarebok, ‘pirogas de mortos”)
sintetiza perfeitamente (Pussetti 1998, 2001).

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loucura (literalmente, “o coração queimado torna a gente louca”,


n’unummi konó n’obeney n’annó) e traz o desejo de descansar nas
profundezas obscuras do oceano, no anarebok (o lugar dos espíritos
dos mortos), onde dormem os defuntos de todos os tempos. Nemeguén
konekponake anetó: madá ankopeketó!, “Vocês não ouvem que eles me
chamam do fundo do mar: ‘vem ter connosco no fundo do mar’!”.
Assim, um dos pacientes de Tcharte representa a sua atracção pela
morte através da solicitação das almas que o convidam a ir ter com elas
debaixo das águas. A energia vai-se embora, o sofrimento mata, o
destino último é a consolação da morte: iarakán iakanenh, nhido
n’odjábo munkude, “amigos meus, andarei a engordar as aves”, diz o
mesmo paciente, recorrendo à imagem atroz e desoladora do seu corpo
sem vida devorado pelos pássaros.
Em muitas das entrevistas recolhidas no terreno, a morte chega a
ser invocada como bálsamo para os sofrimentos deste mundo cruel.
Neguén: nhikpánke tanbítr 30 nindo nababadé tan nalám nhodík
tanobdo anarebok, ankalan’á, “Escutem: eu não paro de pedir a Nindo
que ele aceite levar-me embora, eu quero ir para o lugar dos mortos, é
um lugar já perto de mim”. N’unummi konó noka ankajóko. kanrenh
nindo nababadé tan nalám, “A dor (coração queimado) mora na minha
casa. Se ao menos Nindo aceitasse matar-me”31. Umisóm to kobentén,
modon ka menelam nhoka n’unummi konó, “Mãe de filhos órfãos,
volta e leva-me contigo, para que eu possa descansar desta dor
(coração queimado)”. Koona onam n’odék n’unummi konó, nhirovónni
na n’okpé, “A vida é só dor, tenho pressa de morrer”. Omgbá onenh
makenerám, nhokwunyóna. Oténh makenerám, nhokwunyóna, “Meu
filho leva-me embora, para que possa ir descansar. Meu pai leva-me
embora, para que possa ir descansar”.
Todas estas invocações da morte falam da resignação total de

30 O verbo n’obítr significa “pedir através de cerimónias” ou “rezar”.


31 O verbo n’olám significa: “levar de aqui para lá”, levar para um lugar que fica longe do
quem está a falar.

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quem não conseguiu encontrar um sentido, uma resposta para justificar


e compreender a razão de tanto sofrimento. Face ao drama das próprias
memórias e ao ataque ontológico que é a doença, especialmente quando
crónica, a necessidade do sentido parece ser o primeiro passo de uma
significação da própria experiência numa direcção que já é funcional
para a mudança e a cura. A falta de respostas, de sentido face à crise, é
vivida como a desfeita total. Numa das conversas gravadas, uma das
interlocutoras interroga os espíritos para perceber o sentido do seu
sofrimento. O Orebok Okotó, todavia, fica mudo face às suas perguntas,
recusando-lhe a consolação de uma resposta. Kundjinnin kunarib n’orá
orám kabonake, kundjinnin miján, miboj n’anog, “Kundjinnin32 diz-me
qual é o problema, Kundjinnin encontra um sentido33, tu que o podes
saber”. Orebok Obóke tannaguén, n’o ók obóke tannarib n’ódo nhikam
n’okojóke, “o Orebok recusou-se a ouvir-me, por isso se nega a dizer-
-me porque continuo a sofrer”. A significação é fundamental para
conseguir sobreviver (n’obójetin’o, literalmente “conseguir safar-se”,
verbo cuja raiz – obój significa literalmente dominar o incêndio, apagar
o fogo), e é o primeiro acto da cura.

PARA UMA ARQUEOLOGIA DO IMPLÍCITO

Quem perde uma parte de si ou uma faculdade do seu corpo


precisa de ser tratado, e a narração do próprio sofrimento é também
para os iadiaki entrevistados o primeiro passo em direcção à cura. A
intervenção diagnóstica do curandeiro, neste caso de Tcharte, é
principalmente maiêutica e interpretativa: ele conecta a dor, os
sentimentos e as relações sociais do paciente no passado e no presente,
explicitando uma cadeia causal da qual o último anel é a doença e a

32 Nome próprio do Orebok Okotó.


33 É interessante o emprego do verbo n’odján, literalmente “conferir significado, dar
sentido”.

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crise. Ao mesmo tempo que acompanha a narração do paciente, o


curandeiro concentra a sua atenção em tudo o que “goes without
saying” (Bloch 1992). Neste sentido podemos afirmar com as palavras
de Taussig (1980: 7) que:
The real task of therapy calls for an archaeology of the implicit in
such a way that the processes by which social relations are mapped
into diseases are brought to light, de-reified, and in doing so liberate
the potential for dealing with antagonistic contradictions and
breaking the chains of oppression.

Talvez seja exactamente esta capacidade de reconstruir


arqueologias do implícito que constitui o dom que Tcharte tem de “ver
com a cabeça” o que não é óbvio nem superficial, o que os outros não
conseguem ver. Para ver o invisível e saber ler os sinais do corpo,
Tcharte invoca a protecção e a ajuda dos espíritos, recolhido atrás de um
pano vermelho no seu altar privado. Oferece cana (aguardente de cana
de açúcar) directamente ao ventre do Orebok Okotó, o espírito protector
da aldeia, representado por uma escultura antropomorfa. Na sombra da
cabana, atrás da tenda, ressaltam somente os olhos metálicos dos
espíritos. Tcharte mexe uma pequena abóbora que contem grãos de
arroz e presenteia os defuntos da comunidade e os antepassados, que
respondendo à chamada vão reunir-se sob a forma de energia pura no
interior do ventre do grande espírito. Tcharte murmura os nomes dos
seus familiares extintos, encrespando o ar a cada nome com o toque
cristalino de um pequeno sininho. Fecha os olhos e começa a tremer: o
seu orebok, a sua parte espiritual, está a separar-se do kugbí, o corpo, a
matéria, para voar à noite na dimensão dos espíritos, representada pela
floresta – terra de aparições, de almas esquecidas, de animais selvagens
– à procura da energia perdida pelo seu paciente. O espaço e o tempo
liminares por excelência, a floresta e a noite, tornam-se a esfera ideal
para Tcharte conseguir colher a mensagem fragmentada em sintomas, e
assim libertar um corpo possuído por lembranças dolorosas. Tcharte
escuta a dor não apenas por aquilo que comunica sobre o estado do

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corpo físico, mas também pelo que comunica sobre a esfera social e
moral, tratando os pacientes pela intervenção também nas relações. A
fim de recompor a ordem física e social, de atribuir e redefinir sentidos,
restabelecer a saúde da pessoa e o bem-estar colectivo, o odiaki
interpreta as metáforas incorporadas e as narrativas da doença que os
seus pacientes lhe transmitem como mensagens de crise pessoal e
existencial que também exprimem as feridas históricas, os problemas e
as contradições da comunidade.
Para melhor compreender a linguagem metafórica do corpo
poderíamos empregar a noção de “somatização”, muitas vezes sugerida
pelos médicos que tentaram tratar esta tipologia de sintomas. As
queixas físicas muitas vezes não se mostravam ligadas a uma disfunção
orgânica observável através de testes médicos: uma constante dos
relatos recolhidos no terreno é que a resposta “oficial” biomédica,
embora sempre procurada pelos pacientes, nunca se revelava eficaz,
limitando-se a denunciar a ausência de problemas físicos “objectivos”
ou “reais”. Ao mesmo tempo, a etiqueta de “somatização” bem pouco
auxilia a compreensão da realidade e significado do sofrimento dos
doentes: os estudos sobre a genealogia da categoria sublinham como a
sua definição conceptual reflecte a dicotomia cartesiana “corpo/mente”,
quer do ponto de vista epistemológico, quer ontológico.
Epistemologicamente, o conceito de somatização serve para encaixar as
excepções à regra de que doenças e distúrbios somáticos são
legitimados somente à luz de uma evidência orgânica cientificamente
demonstrável. À falta de tal evidência, conclui-se que o corpo está
apenas a expressar algo relacionado com o mundo emocional,
psicológico ou social do paciente. Os pacientes que se queixam de
sintomas somáticos perante inexistência de confirmações fisiológicas
colocam-se então numa posição equívoca face aos médicos. Esta falta
de credibilidade dos sintomas na ausência de provas orgânicas legítimas
suporta por sua vez a distinção ontológica radical entre doença física e
transtorno psicológico. A leitura clínica dos sintomas continua portanto

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baseada numa representação dicotómica do ser humano, reproduzindo


um contraste nítido entre doenças “verdadeiras”, pelas quais os doentes
não são responsáveis, e doenças “imaginárias”, do foro psicológico.
Assim, apesar do conceito de somatização constituir uma tentativa de
ultrapassar o dualismo mente/corpo, acaba por reproduzi-lo. A noção de
somatização reafirma de facto o papel passivo de um corpo que emerge
como mediador de processos causados por transtornos emocionais ou
por condições conflituosas próximas do paciente. Por outras palavras, o
corpo funcionaria como meio de expressão de uma realidade que está
para além e é independente do mesmo: a realidade psíquica ou social. O
que falta ao conceito de somatização parece ser uma concepção do
corpo em si como agente activo na produção da experiência e dos
significados. Tal noção reforça a representação biomédica do corpo
assim como uma ideia de cultura enquanto sistema de símbolos
desincorporados. Carece, por outras palavras, duma leitura
fenomenológico-cultural do corpo, capaz de reconhecer o papel e
presença activa deste nos processos criativos da vida sociocultural. As
entrevistas recolhidas no terreno testemunham que a dor, longe de ser
um fenómeno isolado e exclusivamente físico, é elaborada através de
narrativas que reflectem, para além da dimensão individual, também os
mais amplos horizontes simbólicos e experienciais dos sujeitos. As
narrativas de dor falam de diferenças de género, de questões políticas e
económicas, de relações familiares, de emoções e de processos
históricos, contradizendo o dualismo sugerido pelo discurso clínico
dominante na biomedicina.
Em vez da noção de somatização, consideramos assim mais
apropriado o conceito de mindful body, proposto pelas antropólogas
Lock e Scheper-Hughes (1987). Esta noção, como a de embodiment
elaborada poucos anos depois por Csordas (1990, 1994)34, foi introdu-

34 É óbvio que a fenomenologia da percepção de Maurice Merleau-Ponty (1979), e a teoria


do habitus de Pierre Bourdieu (1980), constituem antecedentes analíticos a este
conceito.

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zida nas ciências sociais justamente para ultrapassar a questão


espinhosa da relação entre corpo e mente. O termo embodiment indica
de facto o estado ou processo que resulta da interacção contínua entre
corpo e mente, ou melhor, da conceptualização destes elementos
enquanto constituintes de uma unidade definida, o body/mind manifold
(Samuel, 1990). Por outras palavras, embodiment designa a intersecção
do biológico e do social no âmbito da experiência vivida, assim como a
inscrição e codificação da memória sob forma somática, como proposto
por Bourdieu (1972) e Connerton (1989), entre outros. A incorporação
da memória social nos corpos individuais tem pelo menos dois aspectos
que vale a pena aqui considerar. O primeiro é objectivo: a marca física
deixada pela história, em termos de fadiga, violência, deterioração,
desgaste, privações. Os corpos enfermos, os sintomas – múltiplos,
obstinados, severos – dos meus interlocutores não constituem somente
uma consequência imediata da pobreza, mas também reflectem o efeito
duradouro da opressão histórica e da violência estrutural, para empregar
uma expressão de Paul Farmer (2003) 35 . O segundo aspecto é
subjectivo. É o rasto, no imaginário colectivo, deixado pela memória no
domínio da interpretação do mundo social e da construção de metáforas
e estratégias narrativas. Em muitos dos relatos recolhidos,
especialmente quando ligados a acusações de feitiçaria, figuram
imagens terríveis que têm as suas raízes na realidade da opressão
colonial. Nas narrativas da doença os pacientes ligam as queixas
corporais a histórias de sofrimento pessoal ou familiar mais amplas que

35 Utilizo aqui o conceito de violência estrutural em bruto, ainda que este pudesse
beneficiar de alguma elaboração, diversificação, e talvez até redefinição. Diferentes
autores se têm empenhado em evidenciar as ligações complexas entre violência,
sofrimento, controlo e poder, entre as quais lembramos noções como a de “violência
simbólica” de Bourdieu (2000), a de “cultura do terror” de Taussig (1986, 1992), de
“violência do quotidiano” de Scheper-Hughes (1996), ou de “sofrimento social” de
Kleinman, Das, e Lock (1997). O que diferencia a definição proposta por Farmer das
restantes é a sua formulação enquanto instrumento teórico, método de pesquisa e
imperativo ético. A eficácia do conceito, como argumentam outros autores (Brendan
2005; McBride 2007), está na sua capacidade de tornar visíveis as dinâmicas sociais (e
portanto também económicas, políticas e históricas) da violência e da marginalização.

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integram lembranças de ameaças e mortes, com os seus efeitos traumá-


ticos (desmoralização, medo, desespero) e as suas fontes específicas
(dominação colonial, violência, guerra, escravidão). Memórias
corporais, vivências emocionais individuais e história social cruzam-se
e fundem-se. As queixas corporais evocam queixas sociais que mais do
que apresentadas ou discutidas publicamente são vividas e sentidas
(lembradas) na esfera carnal. Esta metáfora vivida liga literalmente a
anatomia individual ao corpo social: a rede de músculos, ossos, nervos e
sangue reflecte a rede das relações sociais. Cada queixa, elaborada no
contexto de uma narrativa que integra sofrimento social e corporal,
constitui um comentário moral, uma crítica social, uma reconstrução da
história colectiva.
O odiáki transita e conduz o paciente através de diferentes
dimensões individuais e colectivas, históricas e espaciais, e pelas tramas
do tecido social, ressemantizando a ocorrência contingente e a causa
imediata da manifestação da doença. Define assim os contornos do mal
e os caminhos da sua reparação, atribuindo-lhe um nome, desvendando
a sua origem e finalmente fornecendo novos enunciados que
reconstituam ou criem novas relações e sentimentos de pertença. A
actividade terapêutica do odiáki evidencia como a doença só pode ser
conhecida e tratada no exercício de uma acção interpretativa,
sublinhando que biologia, significados atribuídos e práticas sociais
interagem na construção da doença como objecto social e experiência
vivida vinculada a relações sócio-históricas de poder. A doença pode ser
portanto lida como manifestação individualizada de um processo cujos
contornos e mecanismos se definem e constroem no interior das tensões
e conflitos produzidos nas tramas de relações, valores e dinâmicas
históricas da sociedade e pelos seus paradoxos. As aflições dos
pacientes que acompanhei no terreno podem ser interpretadas como
sinais incorporados das dificuldades de estabelecimento duma relação
equilibrada entre as próprias identidades diferentes, duma correcta
distância entre o mundo do presente e o tempo dos antepassados, entre

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os próprios desejos, as possibilidades efectivas e as expectativas da


família, entre a vontade de autonomia e os laços sociais.
Os sintomas “esquisitos” têm que ser decifrados em relação a
estas dimensões mais amplas, já que representam e renovam as tensões
sociais e as memórias colectivas que atravessam estes corpos. O corpo
emerge como um arquivo histórico e os seus sintomas como um
comentário moral e político sobre as complexas relações que inserem a
comunidade bijagó em processos sociais que ultrapassam amplamente
o contexto local. Neste sentido, a doença pode ser interpretada,
seguindo a perspectiva adoptada por Nancy Scheper-Hughes no seu
trabalho sobre os ataques de nervos na comunidade de Alto de
Cruzeiro no Brasil, como uma forma de acção corpórea, “uma coisa
que os seres humanos fazem de maneiras absolutamente originais”
(Scheper-Hughes 1994: 229).

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PA RT E I I I

RITUAIS E ITINERÁRIOS
DO SOFRIMENTO:
PLURALIDADE TERAPÊUTICA
NA ÁREA DA GRANDE LISBOA
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Capítulo 7

Pluralidade terapêutica entre os migrantes guineenses

Clara Carvalho*

* Investigadora CEAS/CRIA, Departamento de Antropologia do Centro de


Estudos Africanos, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa.
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As capitais europeias são hoje locais de acolhimento para milhares


de migrantes originários da África Ocidental que diariamente se cruzam
nas suas ruas procurando trabalho, segurança, diferentes condições de
vida, ensino e novas oportunidades. Estes movimentos populacionais
inserem-se nas práticas actualmente definidas como globalizadas que
focam, por um lado, a circulação de pessoas para os mercados de
trabalho e, por outro lado, a transacção inversa de bens e referentes
exportados dos países do Norte para os do Sul. Esta perspectiva ignora
as múltiplas relações estabelecidas nestes movimentos que, para além de
transnacionais, são transculturais. Neste artigo pretendo abordar as
formas de circulação de saber terapêutico implementadas com as novas
vagas de imigração das duas últimas décadas, focando o exemplo
específico dos terapeutas tradicionais guineenses a operarem na zona da
Grande Lisboa. A experiência do infortúnio, da doença e da insegurança
que acompanha muitos dos trabalhadores migrantes é um terreno
propício à busca de novos sentidos e significados para o sofrimento,
onde actuam os terapeutas tradicionais. Assumindo-se como verdadeiros
tradutores culturais entre diversos universos de conhecimento e de
interpretação, estes ritualistas encontram no público migrante um grupo
ávido de significado. Partilham com muitos dos seus pacientes as
mesmas experiências de vida divididas entre diferentes mercados de
trabalho e diversos contextos culturais e geopolíticos. Os terapeutas
guineenses a operarem em Portugal dividem-se em duas grandes

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categorias, jambakus e marabouts, também conhecidos por mouros.


Enquanto os primeiros são um grupo pouco conhecido fora do seu
contexto de proveniência, os segundos inserem-se em confrarias e
irmandades islâmicas, cuja actuação no Senegal, Mali e França tem sido
longamente evocada. Neste artigo é proposta uma abordagem que
contraria a visão habitual de uma circulação unívoca de bens e saberes
dos países do Norte para os do Sul, a qual é notavelmente exemplificada
pela exportação hegemónica da biomedicina e da farmacologia
ocidentais (White et al., 2002). Procurando um olhar de proximidade que
permita compreender a complexidade da actuação destes terapeutas,
apresento diferentes estudos de caso ilustrativos das problemáticas com
que se deparam estes terapeutas e da sua capacidade de adaptação a
experiências de vida globalizadas.

A CRIAÇÃO DA DIÁSPORA GUINEENSE

A Guiné Bissau é, desde há diversos séculos, um país de


trabalhadores migrantes, o que conduziu à criação de uma verdadeira
diáspora, cuja influência no país se tem vindo a adensar 1 . O
incrementar deste movimento no último século conduziu à constituição
de comunidades guineenses nos países vizinhos em África, bem como
na Europa, principalmente em França, Portugal e Espanha. Procurando
caracterizar a complexidade desta diáspora, distinguimos os diferentes
momentos que levaram à sua criação.
Os primeiros testemunhos sobre os trabalhadores migrantes na
região datam do século XVIII e referem-se aos jovens trabalhadores

1 A utilização do termo “diáspora” pode ser contestada, nomeadamente pelo sociólogo


Fernando Luís Machado o qual considera que a longa tradição de migração da Guiné
Bissau não levou à criação de uma verdadeira diáspora (Machado 2002: 76). Como
defendo neste artigo o incremento do fluxo migratório, sobretudo após o golpe de estado
de 1998, conduziu de facto à criação de uma diáspora guineense activa.

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manjaco das concessões europeias, e aos marinheiros que embarcavam


nos navios mercantes, os quais vieram a fundar as primeiras comuni-
dades intercontinentais guineenses nos portos franceses (Gable 1990,
Diop 1996). Posteriormente, ao longo do século XX, acentuaram-se as
migrações com destino ao Senegal e à Gâmbia (Hochet 1983; Diop
1996). Tratava-se de uma migração de origem rural, inicialmente
masculina, originada na atracção pelas melhores condições económicas
e liberdade política no país vizinho, que levou à constituição de
numerosas comunidades manjaco no Casamansa, Dacar e nos arredores
de Paris durante o período colonial (Diop 1996; Teixeira 2001).
Inicialmente limitado às populações costeiras e do norte do país, o
movimento migratório alargou-se a outros grupos da zona Norte e
Leste (Hochet 1983). As deslocações transcontinentais a que assistimos
até à década de 80 são uma continuidade da emigração rural para o
Senegal e a Gâmbia, pelo que se dirigem preferencialmente para
França e Inglaterra. Esta migração incluía os trabalhadores rurais
empregados na cultura do amendoim, bem como artesãos e terapeutas
tradicionais que se deslocavam sazonalmente aos países vizinhos. Nas
duas últimas décadas, com a introdução dos Planos de Ajustamento
Estrutural em 1987, a liberalização económica e a adesão à Comuni-
dade Financeira Africana em 1997, criou-se um cenário de inflação e
salários em atraso que rapidamente depauperou a população urbana e
alimentou novos contingentes de emigrantes Actualmente os grupos de
migrantes são pluriétnicos e maioritariamente constituídos por
elementos de origem urbana com um percurso escolar médio ou
superior. Este movimento é explicado pela pressão económica e
política que se faz sentir nas últimas décadas na Guiné Bissau e
afectou, particularmente, as populações assalariadas, geralmente
empregues em serviços públicos. Estas pessoas não só vêm frustradas
as suas ambições no país como estão numa posição mais frágil face ao
progressivo enfraquecimento da economia nacional (Machado 2002:
79). Por outro lado, a migração rural acentuou-se, procurando alcançar

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directamente os destinos transcontinentais europeus, seja por avião ou


de barco, via Cabo Verde ou as Canárias. A migração transcontinental
que se dirigia originalmente para Inglaterra e França via Gâmbia e
Senegal, é actualmente direccionada para Portugal, de onde podem
passar para Espanha e França (Machado 2002).
O contingente de migrantes guineenses em Portugal é constituído
por três grupos distintos, dos quais o principal consiste dos
trabalhadores indiferenciados que chegaram a este país nas duas
últimas décadas. Um segundo grupo, que Fernando Luís Machado
designa de luso-guineenses, é composto por um número significativo
de membros da antiga elite nacional os quais, após a independência,
escolheram a nacionalidade portuguesa ou a dupla nacionalidade. Os
membros deste grupo caracterizam-se por pertencerem a famílias
abastadas, obterem uma fácil inserção social no país de acolhimento,
mantendo, contudo, as suas redes de relacionamento no país de origem.
Um terceiro movimento migrante é constituído pelos estudantes. Desde
a década de 50 que a elite guineense envia os seus filhos para
completarem a sua formação no estrangeiro, sendo o exemplo mais
conhecido o de Amílcar Cabral. Durante o período colonial, os destinos
óbvios eram Portugal, e os países de Leste para alguns dos que
participaram na guerra nacionalista2. Após a independência o grupo
dos estudantes bolseiros aumentou, sobretudo os que realizaram a sua
formação nos países da Europa de Leste, os quais eram, antes da queda
do muro de Berlim, os principiais doadores de bolsas de estudo.
Apenas um número limitado de estudantes seguiu para o Brasil e, em
casos esporádicos, para os E.U.A. Estes licenciados e doutorados
constituíram a maioria da elite governativa e dos quadros da Guiné
Bissau desde a independência. Contudo, a falta de condições e a
instabilidade encontradas na Guiné Bissau, bem como a atracção criada

2 A luta nacionalista começou na Guiné Bissau em 1963, por iniciativa do PAIGC


(Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde), só terminando em
1974.

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pelos países de acolhimento, conduziu à saída de muitos destes quadros


que hoje formam uma verdadeira rede de imigrantes transcontinental
mantendo inúmeros laços – familiares, de amizade e de interesse – com
as elites do seu país. Esta “fuga de quadros”, como é por vezes
chamada, acentuou-se depois do golpe de 7 de Junho de 1998 que
conduziu ao afastamento do poder de Nino Vieira após um conflito
militar que opôs a maioria do exército guineense aos efectivos
senegaleses vindos em socorro do antigo presidente. A luta armada que
decorria no interior de Bissau, a deterioração das condições de vida
nesta cidade, a instabilidade política que conduziu ao afastamento
cauteloso de muitas organizações internacionais e ONGs, que
preferiram colocar as suas sedes em países limítrofes mais seguros,
tornaram Bissau uma cidade instável. Muitos dos membros do governo
e da elite local preferiram afastar-se e, servindo-se dos seus contactos
internacionais, procuraram apoio noutros países.
Estes diferentes trânsitos migratórios conduziram à criação de
uma diáspora guineense diversificada na sua origem social, nos seus
objectivos e nas suas formas de actuação, reflectindo a própria
variedade social do país. O antigo país colonizador tornou-se o país de
acolhimento mais significativo destes novos migrantes, e aquele onde
as numerosas redes de organização da diáspora estão muitas vezes
centradas, levando a uma maior projecção da comunidade guineense.

AS REDES TRANSNACIONAIS DE MARABOUTS

Os movimentos populacionais abordados trouxeram numerosos


terapeutas tradicionais que actuam no contexto migratório. Os
elementos mais visíveis destes ritualistas tradicionais são os
marabouts, ou mouros na terminologia adoptada na Guiné Bissau.
Estes especialistas religiosos actuam como terapeutas, adivinhos, e
providenciam de protecções rituais ou talismãs através da leitura do

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Alcorão. Integram-se num grupo que tem vindo a trabalhar na Europa


há algumas décadas, obtendo projecção pública através da divulgação
das suas actividades por jornais, folhetos e pela internet 3 . Os
marabouts pertencem a irmandades islâmicas baseadas no Senegal,
sendo o exemplo mais conhecido é o dos Mouride, uma congregação
baseada em Touba (Bava 2005), que foi a primeira a apoiar a
emigração e integração dos seus membros em grupos de suporte
transnacionais e transcontinentais. Hoje as redes de marabouts estão
amplamente difundidas em França, Espanha e Portugal, embora a
maioria não possua a complexidade dos Mouride e esteja ligada a um
wâli (homem santo) de influência local ou regional (Kuczynski 2002:
18). No Senegal e na Guiné Bissau estes actuam como dirigentes
religiosos, comunitários e mesmo políticos, tendo assumido as funções
dos líderes locais nos casos em que os chefados foram destruídos
(Coulon 1981; Carvalho 2008).
Em França os marabouts inserem-se nos fluxos migratórios que
participaram na reconstrução económica do pós-guerra e se
intensificaram nos anos sessenta. Em 1981 o governo socialista
integrou-os como “profissões liberais” e 400 marabouts foram
recenseados sob esta classificação até 1986, quando a regularização
dos trabalhadores migrantes terminou. Contudo, os marabouts têm
continuado a migrar para esse país, de forma permanente ou
temporária, seguindo o fluxo global de migração actual e fugindo à
degradação das condições económicas no Senegal (Kuczynski 2002).
A chegada dos primeiros marabouts a Portugal ocorreu em 1974,
mas a sua influência e número foram reduzidos até aos anos noventa.
Embora não possuam o reconhecimento oficial de que gozam em
França, a sua actuação é semelhante, integrando-se em irmandades e
recrutando os seus clientes não só entre os guineenses e muçulmanos

3 Os anúncios à actividade dos marabouts têm uma divulgação alargada, nomeadamente


na internet no caso francês. Veja-se, entre outros os sites http://www.math.jussieu.fr/
~cochet/marabouts/marabout.html ou http://www.echolaliste.com/l199.htm

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como na população em geral, sobretudo entre os imigrantes, com uma


clara predominância feminina. Os marabouts que operam em Portugal
vêm da Guiné Bissau mas podem estar ligados a irmandades baseadas
no Senegal, nomeadamente na zona do Casamansa onde a influência
do islamismo é secular e tem conduzido à conversão paulatina dos
grupos djola e manjaco residentes. Algumas irmandades de marabouts
constituem aí os seus centros, nomeadamente em Medina-Gonasse,
Marsassoum ou Sédhiou (Kuczynski 2002: 63). Num estudo recente
sobre os marabouts residentes em Lisboa, Eduardo Costa Dias retrata o
perfil destes ritualistas (Costa Dias 2007). Os especialistas abordados
têm uma origem rural e integram-se em grupos mandinga e fulas, onde
a migração sazonal era uma prática habitual, sendo a emigração para a
Europa a continuação lógica de uma actividade anterior. Os marabouts
abordados por este estudo são os elementos polarizadores das suas
comunidades, mesmo em contexto migratório. Operam em casas
particulares, situadas tanto na periferia da cidade de Lisboa como no
centro, recebendo os seus pacientes num espaço profissional
constituído por duas salas, a primeira consagrada à sua actividade e
outra como local de espera para os seus clientes, ambas integradas num
apartamento arrendado para uso doméstico. Rodeiam habitualmente o
marabout os seus assistentes, familiares e pessoas que mantêm com ele
uma relação de clientelismo que Costa Dias define como os “amigos de
tabanca4”. Os marabouts justificam o seu poder identificando-se com
uma linhagem ou escola ou ambas, evocando a relação familiar com
um anterior ritualista – pai, tio ou avô –, bem como o seu professor de
Alcorão que é referido como o seu iniciador. A aquisição dos conheci-
mentos e competências necessários ao exercício de maraboutagem
implicam uma longa aprendizagem, de seis ou mais anos, numa escola
corânica e representam, para o interessado e para a sua família, uma
forma de ascensão social. Mas o prestígio do marabout é atribuído
igualmente à sua baraka ou bênção divina, e ao facto destes terem

4 Tabanca: termo crioulo que designa a comunidade local ou aldeia.

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cumprido as cinco obrigações da fé islâmica incluindo a peregrinação a


Meca ou hadji. Como nota Costa Dias, no islão africano e em
particular guineense o acesso ao saber religioso e mágico-terapêutico
privilegia a tradição oral sobre a escrita, sendo uma prática
essencialmente maleável que adapta numerosas tradições locais (Costa
Dias 2007: 193). O seu percurso migratório decorre da prática
profissional: a maioria dos marabouts abrangidos pelo inquérito
referido não actuam na sua aldeia de origem, tratando-se de
profissionais que pela sua situação genealógica (proximidade, ou
distância, do iman ou responsável religioso; menoridade genealógica
face outros marabouts) procuram outros espaços de actuação face à sua
comunidade de origem. Note-se que o poder económico e, sobretudo, o
prestígio religioso e político obtidos no contexto migratório são
igualmente elementos essenciais no processo de capitalização religiosa
e política destes profissionais. Os principais marabouts desenvolvem
uma actividade multissituada exercendo a sua actividade em diferentes
países e a sua passagem por Portugal, geralmente por Lisboa, nunca é
entendida como definitiva. Viajando habitualmente com um visto
turístico permanecem por períodos mensais em cada localidade. A
actividade desenvolvida implica o apoio de numerosos indivíduos e
uma logística complexa, com diversos locais de actuação e residência.
A sua intensa mobilidade transforma-os igualmente em mediadores
privilegiados entre diferentes comunidades, nomeadamente a aldeia,
região ou mesmo país, de origem e as comunidades de imigrantes com
as quais contactam, actuando como veículos de transmissão de bens e
ideias entre diferentes grupos. Note-se que a sua ligação à comunidade
islâmica em Portugal é ténue, enquanto mantêm laços preferenciais
com a sua região e mesmo aldeia de origem.
Nos casos mais bem sucedidos os marabouts lançaram as suas
próprias organizações de desenvolvimento e associações locais. Um
dos primeiros profissionais a actuar em Portugal, Mestre Kauso Baldé,
é disto exemplo. Mestre Baldé chegou a Portugal nos anos setenta e foi

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dos primeiros marabouts estabelecidos neste país. Proveniente da zona


de Bafatá, no centro do país, estudou com um iman no Casamansa, e é
um marabout bem conhecido no meio migrante. Ao seu consultório
acorrem pessoas de diferentes origens, incluindo portugueses,
brasileiros, cabo-verdianos e guineenses. Além de ritualista e terapeuta,
Kauso Baldé é o fundador e presidente da Associação Unida de
Emigrantes da Guiné Bissau, umas das primeiras entidades do género
que tem vindo a operar junto da comunidade guineense incluindo tanto
os trabalhadores como os estudantes. A estas actividades, Mestre Baldé
junta as de benemérito, mediador e conselheiro político 5 : o seu
reconhecimento pela comunidade migrante, as suas actividades em
operações de desenvolvimento e empresarias na Guiné Bissau fazem
dele o representante escolhido pelos organismos portugueses e
guineenses para representar os interesses da comunidade guineense em
numerosas ocasiões. Note-se que a sua esfera de influência, apesar de
transnacional e política, mantém os laços comunitários locais como
base da sua actuação: Mestre Baldé é antes demais um líder
comunitário, inserindo-se no perfil dos marabouts retratados por Costa
Dias. Ele é o elemento central de uma rede que envolve o apoio e
ligação entre as comunidades de origem e os trabalhadores migrantes, a
circulação de pessoas e bens e, sobretudo, a divulgação de um saber
cosmogónico e terapêutico africano na Europa.

CULTOS DE AFLIÇÃO NA REGIÃO DE CACHEU

Nos contextos migratórios operam outros ritualistas provenientes


da Guiné Bissau, para além dos marabouts. A maioria vêm de Bissau e

5 Nas eleições presidenciais de 2005 serviu como intermediário entre os dois principais
candidatos com origem no PAIGC, Malam Bacai Sanha e Nino Vieira, que concorria
como independente. Esta acção foi largamente publicitada nos media.

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da região de Cacheu, a norte desta cidade, e a sua actividade insere-se


nos cultos de aflição locais. As diferentes categorias de ritualistas das
regiões costeiras deste país, referidas na literatura como animistas,
definem-se globalmente pelo seu controlo de altares de espíritos locais.
A relação que os homens estabelecem com os espíritos reveste a forma
de um contrato, sendo pedida a satisfação de um desejo ou necessidade
à entidade espiritual e prometida a devida recompensa. A falta de
cumprimento deste contrato coloca o infractor em posição de vir a
sofrer da vingança do iran (crioulo: espírito) ultrajado, expressa em
numerosos infortúnios que se podem abater tanto sobre si, como sobre
os membros da sua família ou mesmo as suas posses. Com efeito, a
figura do iran, embora sedutora pelo poder que promete, não é
benévola: os meus interlocutores definiam-no como um satanás,
utilizando o termo crioulo de origem portuguesa que mantém o
significado nas duas línguas. As suas características aproximam-no do
Esu yoruba, o tritsker que convém agraciar tanto para assegurar a sua
protecção como para evitar a sua vingança6. Alguns dos iran possuem
um altar e são alvo de um culto público, integrando-se numa hierarquia
constituída em torno do espírito que preside às iniciações masculinas.
Todos os altares são considerados secundários em relação ao altar da
iniciação, pelo que este se constitui no elemento topográfico e
simbólico central tanto dos elementos de culto como da identidade
local. Em seu torno define-se a “região de iniciação” (Binsbergen,
1984), que inclui todos as localidades cujos homens foram iniciados no
mesmo altar, bem como todos os locais de culto secundários. Estes
altares secundários, aos quais recorrem pessoas do exterior, podem-se
tornar importantes centros rituais e de peregrinação, como é o caso do
altar de Mama Jombo no território cobiana, a norte da Região de

6 Margaret Drewall refere que tanto o Esu yoruba como o seu sucedâneo Exu das ceri-
mónia de umbanda brasileiras, são manifestações de uma alteração de enquadramento:
Frame slippage is dangerous because ir destabilizes a situation and throws it into a
zone of ambiguity. At the same time, it sets up opportunities for alterations (Drewall
1992: 16).

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Cacheu (Crowley 1990: 474) 7. Os suplicantes levam consigo uma


emanação do espírito interpelado, sob a forma de terra do altar
guardada num chifre de gazela ou de bovino, que actuará como seu
protector pessoal e será objecto de oferendas sacrificiais. O mesmo
processo é utilizado para a criação dos altares secundários que são
objecto de culto de uma congregação. Estas centralizam cultos de
aflição, definindo-se os seus membros como intermediários entre dois
níveis cosmológicos. Formam-se na região várias congregações de
ritualistas, algumas com especificidades locais e mesmo étnicas, como
é o caso do ussái fankas na ilha de Pecixe e dos balobeiros entre os
pepel da ilha de Bissau. Entre todas estas congregações saliento aqui os
jambakus, cuja mobilidade lhes permite actualmente exercer a sua
actividade em contextos migratórios.
Jambakus é um termo crioulo de origem felupe (djola) (Pinto Bull
1989: 281) que designa os “adivinhos e curandeiros”, ritualistas que
oficiam em altares individuais e se encontram organizados em
congregações de base local. Os jambakus evocam sempre uma origem
étnica precisa, identificando-se como felupe, manjaco, pepel ou
balanta, mas esta prática conhece uma larga difusão em toda a zona
costeira da Guiné Bissau e, em particular, no meio urbano de Bissau
(Einarsdóttir 2000 e 2005). Os jambakus definem-se localmente por
fazerem diagnósticos e iniciarem processos terapêuticos. Muitos
actuam como curandeiros, podendo vir a receber em sua casa os
pacientes quando o tratamento é prolongado. Quando a sua reputação

7 Eve Crowley privilegia, para além da “região de iniciação”, a “região de espíritos”, assim
definida: For any shrine or set of shrines, the term spirit region (...) designates the
largest ritual field including all clients who undergo a pilgrimage to make or pay a
contract. (Crowley 1990: 475). Neste caso incluem-se todos os clientes de um
determinado altar, independentemente da sua residência e origem. Este definição é tanto
mais importante quanto a autora considera que os altares da região do Cacheu are multi-
functional and draw clients from several different nations and over two dozen ethnic
groups. The large number of pilgrims have a significant impact on the province’s
economy and social structure and demonstrate the national and international importance
of the Cacheu Region as a reserve for spiritual resources. (Crowley 1990: 475).

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se espalha, o fluxo de pacientes justifica a construção de alojamentos


específicos junto da casa do jambakus, recenseados pelas autoridades
locais como hospitais tradicionais. Em diferentes ocasiões o estado
guineense procurou integrar estes especialistas, promovendo encontros
e apoiando os hospitais por eles criados. Os diferentes atributos dos
jambakus da Região de Cacheu foram inventariados por Eve Crowley e
Rui Ribeiro numa tipologização baseada nos processos terapêuticos
realizados (Crowley e Ribeiro 1987). Estes autores classificam a
actuação dos jambakus nas seguintes fases: diagnóstico do problema
por adivinhação; solicitação da colaboração do iran (crioulo: espírito)
durante o processo terapêutico, geralmente através de uma oferta
sacrificial em bebidas alcoólicas e do sacrifício de um galináceo em
cujas gónadas se confirma a adesão da entidade espiritual e a terapia
indicada. O processo terapêutico pode consistir na estação dos
elementos maléficos do corpo do paciente, com a ajuda do ukwot
(manjaco: chifre onde se coloca a terra do altar oficiado e que funciona
como um altar secundário), ou ainda em processos diversos de
tratamento de fractura ósseas, entorses, lesões musculares, desinfecção
e tratamento de ferimentos. Finalmente os pacientes, uma vez
restabelecidos, devem agradecer anualmente ao iran protector sob a
forma de uma doação de vinho de palma efectuada no início da
colheita do arroz preto (manjaco: lacai). Note-se que apenas os
jambakus-curandeiros realizam todo este processo; outros tendem a
especializar-se em doenças atribuídas a complicações internas, e às
causadas por bruxaria (manjaco: koworatori). Encontram-se em Caió,
na região de Cacheu, especialistas não-iniciados (curandeiros) que
dirigem processos terapêuticos, mas não podem comunicar com os
espíritos e de enfrentar casos atribuídos à bruxaria (Crowley e Ribeiro
1987). De entre as múltiplas atribuições dos jambakus é a sua
capacidade de comunicação com os espíritos, obtida através de um
processo de iniciação, que se constitui como elemento identitário
central. Esta definição não se aplica apenas aos jambakus. Com efeito,

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encontram-se na região outras formas de mediação com entidades


espirituais que são igualmente integradas em cultos de aflição. Mas, de
entre todas, apenas os jambakus (e o culto comunitário do kansaré)
acompanharam os circuitos de migração8, como é referido em estudos
anteriores sobre o Casamansa (Teixeira 2001; Trincaz 1981), Portugal
e França (Carvalho 1998 e 2001; Saraiva 2008). Para uma melhor
compreensão da amplitude e âmbito de actividade destes ritualistas
apresento aqui três casos diferenciados que nos permitem perceber as
formas de adaptação do culto em contexto migratório e as suas
limitações eventuais.

TORNAR-SE JAMBAKUS

O primeiro jambakus que conheci, em 1992, era um emigrante em


França de nome Sábor que regressara à sua ilha natal, Jeta, a norte de
Bissau, para realizar o processo iniciático que o transformaria num
jambakus (Carvalho 2001). A sua história era particularmente
reveladora porque Sábor, filho de um jambakus emigrado no Senegal,
se tinha sempre recusado a seguir os passos do pai. Tinha emigrado
com a família para Dacar na sua infância, e daí partira para França,
onde terminou os estudos secundários e se tinha estabelecido. Na
sequência de várias hospitalizações consultou um jambakus residente
em França que lhe prescreveu a necessidade de regressar a Jeta para
realizar ofertas no altar do espírito da iniciação. Os vários contactos
com os ritualistas locais determinaram que Sábor deveria tornar-se um
jambakus por ser essa a vontade do pai, entretanto falecido, e a sua
recusa era a causa dos seus problemas de saúde. Apesar das suas

8 O culto comunitário do kansaré, um espírito protector que se encontra no centro das


comunidades locais e pode ser transportado para outro local, também foi levado pelos
migrantes manjaco para o Senegal (Carvalho 1998; Teixeira 1998). Não abordo este
processo por estar fora do âmbito do presente texto.

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reticências iniciais, Sabor submeteu-se a este processo em Março de


1993, e as suas dúvidas foram sendo paulatinamente ultrapassadas ao
longo da iniciação. No final da estação seca partiu para França, onde
passou a actuar como jambakus9. A aquisição deste estatuto implica
sempre a passagem de uma prova iniciática em que são transmitidos
conhecimentos secretos ao neófito, sendo a sua iniciação entendida
como a obediência a um sinal que lhe é transmitido por um seu
ancestral, ele próprio ritualista. O novo jambakus identifica-se com os
elementos da sua associação que actua como uma sociedade secreta, no
sentido em que possui um conhecimento esotérico e reservado10. O
longo ritual de iniciação, que implica a morte social do neófito
(encenada como uma verdadeira morte) e o seu renascimento como
jambakus, só pode ser realizado junto dos altares locais de pelos
membros da comunidade que vai integrar. Protegidos pelo secretismo
da noite, os jambakus iniciados transmitem ao neófito os
conhecimentos esotéricos da congregação. Esta associação é
caracterizada por uma hierarquia interna, onde se praticam actos de
união como a comensalidade ou a partilha de ofertas por prestação de
serviços. Note-se que características como a utilização de símbolos de
morte e renascimento, o perigo e o medo associados à iniciação, a
posição do neófito como um recém-nascido, a reclusão, a
comensalidade e a partilha de bens no grupo, são comuns a numerosas
iniciações em sociedades secretas11. O novo jambakus integra-se nas

9 Esta iniciação foi alvo de um estudo anterior (Carvalho 2001).


10 A adesão a sociedades secretas, ao contrário dos ritos de maturidade que se estendem a
todos os membros da comunidade do mesmo grupo etário e género, é sempre formal (La
Fontaine 1985).
11 Como realça Jean La Fontaine, a adesão a estas associações creates the boundaries
which separate outsiders from members, for it emphasizes in dramatic form the distance
that separates the two statuses between which initiands must pass. Experience of the
ritual and knowledge of its meaning both constitute secrets, possession of which is the
right of every member, and is denied to non-members (La Fontaine 1985: 58). O
segredo e a protecção dos conhecimentos transmitidos assumem um papel essencial
como marcadores da diferenciação dos membros do grupo, sendo protegidos por um
juramento de inviolabilidade (Jamin 1977; Zempléni 1993).

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festas da sua congregação, realizadas após as primeiras chuvas,


passando a oficiar no seu altar individual que consiste, como todos os
altares individuais, em receptáculos contendo a terra dos altares
centrais sobre a qual foram realizados sacrifícios propiciatórios.
Durante a sua iniciação é construído um pequeno altar coberto
(manjaco: puból) no quintal de uma casa da sua matrilinhagem ou no
centro da localidade de onde é originário. O altar constitui-se
invariavelmente em torno de um pequeno pote semi-enterrado,
receptáculo das libações realizadas onde se acumulam sangue dos
animais sacrificados, restos de vinho de palma vertido e de aguardente
oferecida. Em seu torno aglomeram-se os crânios dos animais
sacrificados, chifres que contêm terra dos altares nos quais o jambakus
pediu protecção e com cujos espíritos pode entrar em contacto, os
quais funcionam como altares secundários, e ainda conchas. Estas
últimas, como todos os crustáceos em geral, representam os que
“possuem carapaça”, ou seja, todos os que realizaram uma iniciação
num culto de aflição e possuem um novo estatuto e identidade resposta
cultural ao infortúnio prolongado que sobre eles se abateu, sinal óbvio
de uma desadequação social.
O ritual de iniciação que Sábor efectuou na associação dos
jambakus foi, em simultâneo, uma performance terapêutica12. Note-se
que, para Sábor, este foi entendido como um momento – quiçá final –
de um longo processo que implicou o recurso a terapias variadas e
mesmo à biomedicina. O seu percurso foi balizado pelos jambakus que
consultou tanto em França como localmente, os quais estabeleceram
um diagnóstico em conjunto com o paciente e indicaram o processo
terapêutico a seguir. Ao longo deste processo foram negociadas e
experimentadas soluções diversas: tacteamentos terapêuticos, práticas
discursivas e sistemas causais diferenciados, da biomedicina ao sistema

12 As características terapêuticas dos processos iniciáticos nas congregações de jambakus e


de ritualista do kansará foi também referida por Maria Teixeira para o caso dos
emigrantes manjaco em Ziguinchor (Teixeira 1996 e 1998).

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cosmológico local. Para Sábor os diferentes discursos nosológicos


apresentavam-se como explicações heterogéneas, mas complementares
que lhe permitiriam lidar com a dor e o sofrimento. No sistema
nosológico local a noção de doença não existe isolada, não é entendida
apenas como a consequência de uma causa patogénica. Pelo contrário,
o conceito de doença está inserido na noção mais lata de mal (le sens
du mal, na feliz definição de Marc Augé (Augé e Herzlich 1986), de
infortúnio, de desordem ao nível pessoal, social e cosmológico: por
isso apenas o discurso nosológico manjaco (por oposição ao da
biomedicina) podia responder à angústia sentida por Sábor que
relacionava os seus problemas de saúde e de trabalho. Uma vez
identificado como paciente são-lhe propostos percursos terapêuticos.
Estes podem ser variados e são entendidos como práticas que
conduzem a novos equilíbrios sociais – tratam-se de processos
ritualizados nos quais o paciente se assume como um neófito e que
visam muitas vezes uma alteração de estatuto, como no caso de Sábor
– e mesmo cosmológicos. De uma forma mais explícita do que nas
práticas biomédicas não é esperada uma eficácia imediata, nem são
invocadas causalidades unidireccionadas. Consequentemente, estes
percursos são negociáveis e adaptáveis. O próprio processo ritual joga
habilmente com o envolvimento do paciente, começando literalmente
pelo seu funeral e avançando pelo controlo do corpo e dos conheci-
mentos ministrados para terminar na festa colectiva e agitada do
kadjipa jambakus. Como se verifica noutros contextos, a eficiência
deste processo está directamente relacionada com a crença do paciente
e com a sua capacidade de tomar uma atitude diferente – positiva –
face aos problemas individuais.
Estas diferentes formas de relacionamento entre os homens e os
espíritos configuram outros tantos cultos de aflição alternativos. Mas
são os jambakus quem revela uma maior capacidade de adaptação e de
resposta aos diferentes problemas e desajustamentos recorrentes em
contextos de migração. Eles próprios emigrantes, dominando um

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discurso nosológico que relaciona a doença, o sofrimento e o infortúnio


com as referências cosmológicas e culturais dos seus pacientes, estão
particularmente aptos a indicar um percurso terapêutico significativo
para aqueles que os procuram. O percurso destes trabalhadores migrantes
é semelhante: após uma série de infortúnios – e aqui aplica-se o conceito
no sentido lato que lhe foi dado por Edward Evans-Pritchard ou Jeanne
Favret-Saada, de sucessão de acontecimentos nefastos de ordens
diversificadas – o paciente consulta um dos “adivinhos” ou jambakus
que exercem no seu local de emigração, o qual pode acusar um dos
espíritos autóctones enfurecido com a falta de pagamento de uma
promessa, ou interpretar o infortúnio como um sinal de descontenta-
mento de um espírito familiar. O jambakus define com o paciente a
oferta sacrificial necessária para satisfazer as entidades espirituais
identificadas e estabelece o local onde deverá ser realizada, podendo
indicar os altares autóctones. Esporadicamente o infortúnio é interpre-
tado como um aviso de que o paciente deverá ser submetido a um
processo de iniciação e tornar-se membro de uma das congregações
locais de ritualistas. Uma vez iniciado e dotado de um novo estatuto, o
emigrante é constrangido a actuar como adivinho ou ritualista junto
dos seus conterrâneos nos locais de migração. Deste modo é mantida
uma interligação ritual que se vai alimentando constantemente de
novos recursos entre o local de origem (física, mas também simbólica e
identitária) dos migrantes e o seu local de trabalho.

EXPORTANDO OS SISTEMAS TERAPÊUTICOS LOCAIS

Como vimos, o exercício da actividade de jambakus em locais de


migração implica sempre a ligação à autoctonia. Por um lado, os
jambakus têm de estar inseridos em congregações locais e, por outro,
todas as ofertas sacrificiais devem ser reportadas no altar do espírito de

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iniciação, através do seu consumo ritual neste local. Esta relação


implica formas de circulação complexas aqui exemplificadas por um
segundo estudo de caso, o de Luís Kapol, particularmente expressivo
da adaptação das congregações locais aos novos processos migratórios.
Quando conheci Luís Kapol, em 2005, este era um emigrante em
Portugal vindo de Caió, a norte de Bissau. O seu percurso migratório
iniciara-se nos anos 90 aproveitando o surto de obras públicas em
Portugal, e a sua viagem fora suportada pela família que o considerava
o mais apto de todos os irmãos para iniciar a longa aventura da
migração. Posteriormente o seu pai, chefe de uma congregação local de
jambakus, escolhera-o para ser o seu sucessor, e Kapol realizou o
processo de iniciação na congregação dirigido pelo pai – o que em si
representa já uma adaptação das formas de integração nestas
associações em que os novos jambakus são sempre seleccionados pelos
antepassados. Kapol foi iniciado em 1999 e, desde então, passou a
actuar como ritualista (adivinho e curandeiro) no seu espaço
doméstico, um apartamento que partilhava com outros imigrantes no
Bairro do Fim do Mundo, no concelho de Cascais. Diferentemente dos
marabouts e, em particular, de Mestre Kauso Baldé, evocado
anteriormente, a prática desta actividade ritual e terapêutica não é a
principal ocupação de Kapol. Em Portugal mantinha a sua actividade
de pedreiro durante a semana e apenas exercia como jambakus nas
horas livres e durante os fins-de-semana. Actualmente trabalha em
França e continua a desempenhar a sua dupla actividade. Kapol recebe
os pacientes e procura identificar o problema que os aflige através de
técnicas de adivinhação específicas (Carvalho 1998). Os sacrifícios
iniciais, de um galináceo e, em alguns casos, de um porco, são
realizados neste espaço ou no exterior da residência, e o sangue é
vertido sobre os chifre-contentores onde está depositado terra,
aguardente e sangue das várias ofertas realizadas durante a iniciação de
Kapol em Caió. Ele indica ainda o processo terapêutico a ser seguido e,
sempre que tal se justifique, faz preparações à base de plantas que

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trouxe de Caió e que administra aos pacientes. A maioria dos processos


terapêuticos seguidos implicam ainda a oferta de animais e bebidas nos
altares em Caió, seja para propiciarem os espíritos ou para agradecer os
resultados obtidos. Nestes casos os membros da congregação realizam
os sacrifícios e ofertas nos altares locais, sendo as despesas pagas em
Portugal e França pelos pacientes, geralmente da rede da Western
Union. É criado um circuito de terapeutas, de práticas, de discursos
nosológicos, de bens e dinheiro, que envolve diferentes actores em
diferentes continentes, desde os pacientes enquanto migrantes de
diversas nacionalidades às comunidades de ritualistas autóctones que
se assumem como as últimas detentoras da legitimidade deste
processo. Luís Kapol é um caso particularmente bem sucedido de um
ritualista que potencializa a capacidade integrativa das práticas rituais e
terapêuticas dos jambakus para as adaptar aos percursos
transcontinentais dos migrantes. Os seus clientes são maioritariamente
guineenses, embora se encontrem igualmente portugueses, cabo-
verdianos, angolanos, brasileiros e senegaleses. Todos procuram uma
mesma perspectiva holística e integrativa que lhes permita uma nova
actuação face aos problemas que apresentam. Mas os espíritos e altares
onde Kapol oficia não são universais: é a sua capacidade de
interpretação e de resposta à ansiedade dos seus pacientes que pode
explicar o seu sucesso como um ritualista transnacional. A actuação
dos jambakus no meio migrante representa uma resposta activa a
processos patológicos (do foro psíquico ou físico) sofridos pelos
migrantes, enquadradas pelo constante fluxo de referentes culturais
entre os pólos de vivência onde se processa a vida destes trabalhadores.
Partindo da constatação que o corpo é o local onde se focalizam
desadaptabilidades diversas, mas também o principal elemento criativo
de processos simbólicos onde se experimentam novos referentes
culturais, as performances terapêuticas manjaco são aqui entendidas
como formas de criação cultural e adaptação a um novo percurso social
e cultural.

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QUANDO TUDO FALHA: A EXPERIÊNCIA HOSPITALAR

O sucesso do ritual depende do capital social e económico do


neófito e nem todos os pacientes a quem os jambakus reconheceram a
necessidade de encetar um processo de ofertas sacrificiais o podem
fazer. O caso de Sábor é particularmente feliz na conjunção do apoio
familiar, do suporte da sua congregação e comunidade, e na aceitação
do neófito do seu novo papel. O capital investido no processo de
produção de um jambakus implica recursos financeiros, mas também o
manuseamento de um capital social aqui representado pelo seu entorno
familiar e a sua legitimidade genealógica, e a competência de utilização
de um repositório simbólico sincrético. Este processo congrega as
definições heterogéneas de resposta ao infortúnio, na acepção clássica
em Antropologia de repetição de elementos considerados nocivos para o
indivíduo. Trata-se de uma actuação longa, morosa e dispendiosa,
apenas acessível aos indivíduos que, para além da sua legitimidade
genealógica e da pertinência dos prognósticos levantados por outros
ritualistas, possam reunir o capital material e social necessários à
prossecução do seu processo. No contexto guineense as iniciações são
facilitadas pelo apoio das comunidades e famílias de origem,
sucedendo-se durante a estação seca para terminarem com a cerimónia
que celebra os novos jambakus. Em contexto migratório os custos desta
instância são violentamente acrescidos. Os indivíduos que procuram
interpretar os seus sintomas de infortúnio e desadaptabilidade nos
termos de uma cosmogonia guineense mas que não possuem redes
familiares ou comunitárias de suporte, são obrigados a socorrer-se dos
terapeutas migrantes para os apoiarem. Quando os casos se agravam e o
seu percurso os conduz ao meio hospitalar, são geralmente remetidos
para as consultas psiquiátricas. Apresentam sintomas diversos que
interpretam em termos culturais como “sinais” da sua necessidade de se
entregarem a um processo iniciático. Contudo, estes mesmos “sinais”
são lidos pelos profissionais de saúde, em particular no sector

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psiquiátrico, como alienação, alucinações, ou ainda delírio. O estudo de


caso aqui apresentado foi seguido numa instituição psiquiátrica em
Lisboa por uma equipa de médicos psiquiatras13. M. é uma mulher
originária de Bissau que trabalhava entre Portugal e Espanha em
serviços ocasionais, geralmente domésticos. Com dois filhos, um dos
quais a seu cargo, encontrava-se numa situação próxima da indigência,
sem trabalho regular, domicílio ou recursos para manter a família
monoparental. O seu internamento na instituição visava responder aos
seus problemas imediatos expressos num comportamento depressivo e
persecutório, tendo sido requerido por familiares. Foi diagnosticada
com Perturbação Esquizofrénica apresentando “humor depressivo,
alucinações auditivo-verbais, alucinações visuais e ideias delirantes de
conteúdo persecutório” (Tavares et al. 2009: 40). Contudo, na sua
interpretação, encontrava-se num processo de realização de diferentes
rituais que a conduziriam à posição de jambakus e portadora de defunto,
encarnando um espírito ancestral. A sua incapacidade para realizar o
longo e dispendioso processo ritual agravavam o seu estado depressivo,
e os seus problemas eram interpretados como outras tantas provações
induzidas pelos espíritos que pediam a sua atenção. O seu discurso e o
dos profissionais de saúde pareciam irredutíveis na busca de sentidos
diferenciados, apesar do empenho de ambos na compreensão mútua.
Este esforço conduziu a uma melhor compreensão do caso mas não o
solucionou, nos termos admitidos pela paciente.
O caso de M. conduz-nos à questão do diálogo possível em
contexto migratório sobre práticas terapêuticas, sobretudo no que
concerne a comportamentos considerados psicopatológicos em meio
clínico e hospitalar. A busca de diálogo encontra-se limitada pela
necessidade dos profissionais de saúde enquadrarem os comportamento
considerados desviantes em categorias nosológicas previamente
definidas, e é agravado pelo facto do discurso e autoridade médicas não

13 Este caso é analisado em detalhe por João Tavares, o clínico encarregue da paciente em
Tavares et al. 2009.

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serem reconhecidos pelos pacientes, e pelas próprias limitações criadas


pela instituição psiquiátrica e o seu carácter prisional. Estes factores
promovem a apatia e desinteresse por parte de pacientes que procuram
interpretar não apenas o seu mal-estar como a o discurso alógeno dos
terapeutas que os seguem. Por outro lado a resposta da psiquiatria tende
a interpretar os comportamentos desviantes de migrantes e membros de
minorias em termos de “culture-bound syndrome” (Pusseti 2006),
reflectindo a perspectiva dominante nos meios de nas sociedades de
acolhimento em que os migrantes são classificados como possuidores de
traços culturais irredutíveis e imutáveis. O determinismo cultural que
enforma estas interpretações esquece a capacidade individual e social de
adaptação, reacção, interpretação e manipulação de diferentes sinais e
símbolos culturais. Como notam Rolland Littlewod e Simon Dein, “It is
not that psychiatry’s inevitable grid, pathology, is necessarily inappropriate
for different societies, but pathology is just one possible grid and one that
carries with it particular assumptions about normality an abnormality,
which explicitly ignore considerations of power and of context of
observation, and what is observed, and how ‘observation’ itself might
shape it.” (Littlewod e Dein 2000: 23). No estudo de caso referido, o
principal problema vivenciado pela paciente prendia-se com a sua
incapacidade de responder às solicitações requeridas, por não ter capaci-
dade de assumir a sua família monoparental e o seu papel de ritualista na
sua sociedade de origem. As respostas que podiam ser dadas em meio
hospitalar não eram as que M. buscava, e ela rapidamente se esquivou a
continuar o tratamento e diálogo que os médicos procuraram estabelecer.

CONCLUSÃO

A experiência da migração é propícia ao desenvolvimento de


diferentes patologias, mas igualmente ao experimentar de novas
terapias e criações culturais, diversos discursos nosológicos e múltiplas

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experiências terapêuticas. Nos casos aqui apresentados estes circuitos


representam um movimento contrário aos dos processos de globali-
zação e à circulação hegemónica dos fármacos e da biomedicina.
Enquanto mediadores entre diferentes contextos sócio-culturais, os
migrantes são os principais agentes das trocas transnacionais, definidas
por Nina Basch, Linda Schiller, e Cristina S. Blanc como os processos
pelos quais são mantidas as redes de ligação entre as sociedades de
origem e de trabalho (Basch et al. 1994: 7). Os trabalhadores migrantes
são mediadores e criadores transculturais que negoceiam práticas
culturais e interpretações simbólicas ao longo dos seus trajectos, como
ilustram os estudos de caso aqui apresentados. A experiência da
migração é particularmente propícia ao desenvolvimento de situações
limite em termos de experiências da dor e da desadequação cultural,
para as quais os terapeutas descritos neste texto encontram respostas
maleáveis e desejadas, mesmo quando os referentes, espíritos
autóctones da Guiné Bissau, não são imediatamente percepcionados
pelos pacientes. Os diferentes casos aqui abordados permitem-nos
entender a diversidade de situações experimentadas pelos terapeutas
migrantes, desde a valorização do seu papel de líderes comunitários à
adequação das congregações locais aos novos circuitos migratórios
referida no caso de Luís Kapol. Por outro lado a iniciação de Sábor
desenha um espaço múltiplo, onde são negociadas a sua identidade
social e profissional e que lhe permite ultrapassar a crise vivida e
actuar como um jambakus. Este acto exige o controlo de redes locais
de apoio e de um capital social e financeiro de que nem todos os
migrantes dispõem, como se verificou no caso de M. A experiência do
sofrimento e a busca de uma explicação e solução criam o espaço para
a criação de novos referentes e significados simbólicos. Marabouts e
jambakus são, neste processo, os agentes mais visíveis de um processo
criativo de integração de referentes culturais e discursos heterogéneos
que se cruzam, pelas ruas de Lisboa, nos múltiplos espaços de consulta
destes ritualistas.

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Capítulo 8

Percepções de risco e práticas de prevenção ao VIH/SIDA


entre jovens de origem cabo-verdiana em Portugal

Iolanda Maria Alves Évora*

* Centro de Estudos sobre África e do Desenvolvimento (CESA), ISEG


Este trabalho tem por base o relatório do “Estudo sobre o comportamento de
prevenção ao VIH/SIDA entre a população cabo-verdiana imigrada em
Portugal”, coordenado por Iolanda Évora e tendo como assistente de pesquisa
Irosanda de Barros. Os entrevistadores foram os seguintes: António Carlos
Tavares, Cláudia Graça, Gabriela Cunha e Lavínia Soares de Carvalho. O
estudo foi patrocinado pelo Banco Mundial e realizado sob proposta do CCSSida
de Cabo Verde e Ministério dos Negócios Estrangeiros de Cabo Verde.
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A VULNERABILIDADE: CATEGORIAS E CLASSIFICAÇÕES


CONTEMPORÂNEAS

A curta história da epidemia da SIDA contrasta com o grande


impacto da doença na ciência e na sociedade, como fenómeno que aflige
sociedades e culturas enquanto o VIH mina a vida dos indivíduos. Neste
tempo de medicalização social, em que o mundo age como se a
Medicina tivesse resposta para tudo (Ariès 1977), o cancro e a SIDA é
que tomaram as características hediondas e assustadoras das antigas
representações da morte, pois “é preciso que a doença seja incurável (ou
tenha fama de sê-lo) para que assim deixe transparecer a morte e lhe dê
seu nome (Ariès 1977: 141). Esta citação aplica-se – definitivamente e
recentemente – à SIDA e explica a força das metáforas que se lhes são
associadas por nós “ocidentais civilizados” que “estamos perto de
acreditar que não se morre mais, a não ser por engano, ou no fim de uma
longa existência, por obsolescência” (Giovanetti e Évora 1989: 129).
Os cientistas sociais e humanos procuram analisar e descrever a
dinâmica e o rápido crescimento do espaço simbólico em torno da
SIDA, o estigma que está relacionado à doença e o poder das roupa-
gens metafóricas que a acompanham, num tempo em que os avanços
da medicina transformam a infecção ao VIH numa condição crónica e
permitem relaxar a sentença de morte iminente, aliviando parte do
infortúnio dos que são informados de um resultado positivo. Em

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contraste, mantém-se a unanimidade sobre aqueles a quem se apontar a


maior vulnerabilidade; a SIDA é a doença dos dissidentes, dos cidadãos
marginais, dos isolados, das pessoas que são a parte mais vitimizada da
estrutura social. Após três décadas de descobertas, as pesquisas não
deixam dúvidas de que a SIDA tem apresentado um tipo de raio X
social de quem é classificado como periférico, desviante ou normal, e
transformou muitas populações “minorias” (i.e., homossexuais,
prostitutas, usuários de drogas, etc.) em “grupos de risco”, enfatizando e
projectando políticas de estigma e de marginalidade (Parker et al. 1991;
Treichler 1999). Assim, “culturas” marginais, periféricas ou desviantes
têm sido tratadas como “subculturas” inferiores e abaixo da cultura
hegemónica, em especial, pelas abordagens que apoiam-se seja na
noção clássica da cultura como normativa e a histórica ou nas actuais
representações convencionais sobre comportamentos de risco ao
VIH/SIDA que os definem como imorais e ilícitos. Tais noções e
representações contribuem para as percepções gerais acerca dessas
“subculturas outras”, definidas como “categorias de risco” – gays,
trabalhadores sexuais, usuários de drogas intravenosas, hemofílicos,
bissexuais e heterossexuais com múltiplos parceiros – e que são
amplamente retomadas nas pesquisas sobre o VIH/SIDA.
Em anos mais recentes, os imigrantes vêm sendo incluídos entre os
referidos grupos, indicando que a cultura e a vulnerabilidade e margina-
lidade sociais a que estão sujeitos torna-os mais propensos aos compor-
tamentos de risco e à ameaça ao VIH. Este capítulo debruça-se pois,
sobre as articulações que são procuradas entre a vulnerabilidade social
ao VIH/SIDA e a imigração. A reflexão considera a realidade de vida
de pessoas que física e psiquicamente tornam-se vulneráveis, menos ao
desenvolvimento da doença do que às representações, internalizadas ou
não, do imaginário social. Este aponta-as como sujeitos (potenciais),
por excelência, daquela doença que toda a sociedade precisa identificar
“como o próprio mal, uma doença que torne culpadas suas “vítimas”
(Sontag 1989).

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Pelo que acima foi descrito, considera-se que, nos últimos anos, as
ciências sociais e humanas têm mostrado como as metáforas da SIDA
transgridem “cultura”, ou seja, oferecem uma compreensão pandémica
ou universal da doença, livre das convenções contextuais do lugar,
status ou corpo. Neste sentido, muitos autores sugerem que a SIDA, tal
como o cancro, está “além da cultura”, e as metáforas que a descrevem
desmantelam fronteiras e categorias culturais, ao mesmo tempo em que
as imagens que se lhes associam mostram além da disrupção das
fronteiras internas do corpo, cruzam fronteiras nacionais e geográficas
e ultrapassam transgressões sociais e marcações sociais internas. Um
aspecto de concordância entre estudiosos é o de que a SIDA enfatiza
categorias sociais, ao defini-las como “grupos de risco”, e a ligação
entre SIDA e certos “grupos minoritários” realça quer a tão mencio-
nada “cultura da SIDA”, quer os grupos de risco ou outros aspectos
demográficos da doença.
Os cientistas sociais também debruçam-se sobre as “culturas locais
da SIDA”, e deixam claro que não existe “o soropositivo”, “o doente de
SIDA” ou, igualmente, “os riscos”. Como afirma Rodrigues (1999), a
questão não pode ser considerada generalizadamente: em cada subgrupo
existe um tipo de risco, circunstâncias objectivas próprias, bem como
comportamentos sexuais específicos, muitos deles fundados em
experiências colectivas, crenças, valores e preconceitos comuns aos
agentes de cada segmento. Retomando a perspectiva de Bourdieu sobre a
importância dos contextos e dos habitus de cada grupo social (Bourdieu
1972: 174), a autora enfatiza como estes estruturam as representações e
as práticas prevalentes e definem que para cada subgrupo sejam
diferentes: a maneira de buscar prazer sexual, os limites dentro dos quais
isso é considerado possível, o grau de transgressão social assumido
anteriormente, a constância com que praticam os actos sexuais mais
arriscados e o quanto acreditam ou não estar a correr riscos.
Estes aspectos são especialmente visíveis quando se trata de
jovens, particularmente sensíveis aos seus grupos de referência, cujas

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práticas parecem confirmar que, entre eles, a mudança comportamental


nem sempre está ligada à informação sobre o mecanismo da SIDA, ao
conhecimento sobre alguém afectado pela doença, ou ao nível cultural
das pessoas. Com efeito, alguns estudos já realizados (Macrae, 1992;
Rodrigues, 1999) encontraram como facto mais importante e com maior
correlação com a mudança, se o indivíduo acreditava que seus amigos
também estavam alterando as suas práticas.
Os jovens também tornaram-se um dos grupos a alcançar com
campanhas específicas de prevenção à SIDA, face à constatação feita a
partir de inúmeros estudos, do crescimento da prevalência da actividade
sexual entre este segmento social – nas duas últimas décadas – e a
diminuição da idade das primeiras experiências. As pesquisas mostram,
igualmente, que os adolescentes não parecem conhecedores das conse-
quências da actividade sexual, incluindo os significados da transmissão
da SIDA e as medidas a tomar para reduzir o risco. A literatura sobre este
grupo é vasta e consensual a propósito do modo como, pelo menos em
contextos das sociedades ocidentais, os adolescentes tendem a lidar
precariamente com situações em que “ganhos imediatos se contrapõem a
perdas só detectáveis a longo prazo, caso particular da actividade sexual,
sua relação com a infecção pelo HIV e o desenvolvimento da Aids”
(Monteiro 2002). Os dados também indicam que os jovens são os mais
permeáveis às macro-situações que envolvem as suas famílias e amigos,
e mais sensíveis a opiniões e ao controlo exterior (Monteiro 2002).
Os aspectos acima referidos são particularmente relevantes
tratando-se de jovens da comunidade imigrante de origem cabo-
-verdiana em Portugal, um importante grupo a abordar para o exame
das percepções e do comportamento social face à ameaça da epidemia
da SIDA e as concepções da vulnerabilidade social ao SIDA associadas
à imigração. A comunidade cabo-verdiana é das mais antigas da
imigração contemporânea em Portugal e constitui-se de uma população
significativamente jovem que vive, sobretudo, nas periferias urbanas
das principais cidades. Esta realidade mostra-se favorável à aplicação

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da análise da percepção do grupo em relação ao sentido de protecção e


das situações que correlacionam à noção de perigo e aos sistemas de
protecção que accionam visando o cuidado consigo mesmo. Com efeito,
as condições materiais e simbólicas de existência no seio desta
comunidade favorecem a relativização do enfoque epidemiológico de
risco e a incorporação de aspectos da dimensão social, em particular
numa abordagem à percepção do risco e dos cuidados rotineiros com a
vida e com a saúde em que procura-se as articulações entre os estilos de
vida e a localização dos sujeitos em posições sociais e históricas
(Monteiro 2002).

SIDA E IMIGRAÇÃO. AS CONTROVÉRSIAS DE UM BINÓMIO

O conhecimento da SIDA evoluiu quanto à imagem que dela se


tem, os tratamentos de que se dispõe e as mobilizações a que dá lugar.
Sobre a imigração, novas referências lhe são atribuídas em termos de
políticas, verificando-se, igualmente, mudanças nas representações de
que é objecto e nas realidades vividas pelas populações. No entanto,
para todos os países, a diminuição da imigração autorizada, o aumento
dos indocumentados e a emergência da “questão étnica”, além de
provocar maior invisibilidade da SIDA nas estatísticas, evidenciou a
actuação de antigas questões que continuam válidas quando aplicadas
aos dois termos e dizem respeito à questão fantasmática do imigrado
como vector de doenças. Como lembram alguns historiadores, toda a
epidemia põe à prova a relação com o estrangeiro no que este encarna
como o “outro perigoso”, construído como diferente – como suspeito –
e vindo de algures – portanto ameaçador. Para além da questão do
“perigo” infeccioso, o estigma vem sempre ancorar-se na desconfiança
e rejeição que pré-existem à epidemia e na qual ela vem se confrontar o
bem-estabelecido (Pollack 1992). Estes aspectos são suficientes para

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confirmar-se – no caso do binómio SIDA/imigração – a recorrência e a


repetitividade dos esquemas que aplicam a ideia de uma ameaça, quer
se trate do mundo do trabalho (ameaça ao emprego dos nacionais) ou
do espaço da cidade (ameaça para a ordem social).
No caso da imigração, estas posições estão reflectidas nos pressu-
postos que sustentam os programas de cuidados de saúde que os
poderes públicos (nos países de imigração) reservam aos imigrantes e
seus grupos, em particular, no que tange ao VIH/SIDA (Fassin 2001a).
Conforme o autor, em essência, as dificuldades em abordar os dois
termos se devem ao fato de que a preocupação central das autoridades
sanitárias desses países recai muito mais sobre o risco implícito de
contágio das suas populações nacionais por imigrantes do que sobre o
estado de saúde destes (Fassin op. cit. 2001a). No entanto, ao contrário
da controvérsia evidenciada pelas abordagens sobre contaminação e
cultura, o autor prefere evidenciar aspectos importantes da desigual-
dade e do direito que o binómio faz emergir, em particular, nos países
ocidentais que recebem imigrantes. Esta leitura parece-nos adequada
ao caso da comunidade cabo-verdiana em Portugal, por constatar-se
que, em geral, os programas de prevenção dirigidos aos imigrantes
chamam a atenção para a possibilidade de aspectos culturais de origem
serem potenciais bloqueios à assimilação das informações das cam-
panhas. Estes programas desconsideram, porém, que estes imigrantes
são originários de um país com baixos índices de prevalência ao
VIH/SIDA e reconhecido pelo sucesso da sua prevenção à epidemia1.

1 Desde a identificação do primeiro caso de Sida em Cabo Verde (1986) que o país é
apontado como um exemplo a seguir, pela forma como organizou-se para enfrentar a
epidemia e considerou o seu combate como uma das grandes prioridades nacionais. Com
efeito, o Banco Mundial atribuiu a classificação de muito satisfatório ao desempenho de
Cabo Verde na utilização dos recursos postos à disposição para o combate ao VIH/SIDA,
apontando o país como pertencente ao grupo dos países africanos que melhor
implementaram os seus projectos que o Banco Mundial financia na área da Luta Contra a
Sida. Este desempenho garante que todos os parceiros internacionais continuem a apoiar
o país na sua Luta Contra a Sida e a assegurar a sua permanência no grupo de países
com fraca prevalência para o VIH/SIDA (<1%) (CCS-SIDA, 2006).

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Ao mesmo tempo, devido ao carácter cada vez mais permanente da


presença de comunidades de imigração, a realidade das gerações
nascidas em contexto imigratório passou a ser apreendida muito mais
pela categoria de “minoria étnica” do que pelas categorias “imigrante”
ou “estrangeiro”. Em essência, o modelo da etnicidade pretende explicar
os obstáculos à adaptação dos imigrantes, atribuindo-os aos valores e
comportamentos com os quais estes se identificariam. A análise desses
factores elucidaria sobre o que impede os grupos e indivíduos de
competir em pé de igualdade com os autóctones ou mesmo com outros
grupos de imigrantes, pelo acesso aos recursos existentes (Rocha-
-Trindade 1990), entre os quais incluem-se os serviços públicos.
Como lembra Sandoval (2002), a dinâmica psicossociológica
contida na opção étnica de identidade social traz vantagens psicológicas,
materiais e sociais por se conhecer códigos que se tornam importantes
para a auto-identificação. Os elementos constitutivos da etnicidade
(linguagem, cultura, território, religião) que permanecem no indivíduo
ao longo da vida, reflectem-se em alguns conjuntos de relações sociais
sendo, por isso, particularmente importantes para a psicologia social que
se debruça sobre as relações em contexto migratório.
Todavia, quando há a intenção de fazer com que as marcas não se
apaguem, a etnia transforma-se numa forma de interacção na sociedade e
define as relações, percepções de si e dos outros, tornando-se o centro
organizador do mundo do imigrante, num tempo em que a supremacia
cultural pretende-se como supremacia genética. O caso da imigração em
França pode ser paradigmático pois, como assinala Fassin, em razão das
orientações particulares da etnopsiquiatria, o investimento do campo
teórico e empírico da epidemia no meio imigrante conduziu a uma forma
paradoxal de “naturalização do cultural”, este servindo de explicação ad
hoc para os problemas complexos da tomada em conta da doença entre
os imigrantes (Fassin 2000, 2001a). Por esta forma de abordar os
imigrantes, em particular, os africanos, os poderes públicos podem
operacionalizar uma política étnica da SIDA, por delegação de

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actividades de prevenção e mesmo de cuidados a intervenientes que


reivindicam um conhecimento particular destas populações.
Em síntese, esta nova denominação, ou dito de outra forma, a
categorização dos grupos em função da sua origem e de uma suposta
identidade são contestadas mas, na opinião de alguns autores, é
necessário partir dessas categorias para se ter um conhecimento preciso
da situação social e económica dessas colectividades, com especial
ênfase na quantificação detalhada. Porém, os críticos apontam que a
referência à origem estrangeira como factor de sistematização traz de
volta a eternização das associações implícitas entre imigração e
problemas sociais e valida, definitivamente, as identidades simbólicas
fundadas sobre a estigmatização (Spire 1999).
Entretanto, autores como Pollak concluem que os factores de risco
epidemiológico e as variáveis socioculturais tradicionais não explicam
todos os diferentes tipos de mudança observados no comportamento
sexual. É necessário pois, desenvolver análises que levem em conta,
simultaneamente, as predisposições individuais, o meio ambiente
imediato e as estruturas e normas sociais, cada um desses níveis
interferindo de modo específico na adaptação do comportamento
sexual ao risco de contaminação (Pollak 994: 203).
Neste sentido é que Parker (2001) alerta para a constatação de que
categorias (como por exemplo, homossexual, prostituição, parceira
sexual feminina para homens usuários de droga), utilizadas pela
perspectiva biomédica, para descrever comportamentos sexuais ou
aspectos importantes para vectores de infecção de interesse para a
epidemiologia da saúde pública, não são, na verdade, relevantes em
todos os contextos culturais. Mesmo nos contextos em que mais
circulam essas categorias, os significados desses conceitos não são
estáveis. Ao contrário, a análise cultural dos significados sexuais dirige
um foco mais cuidadoso às classificações locais, aos conceitos e
categorias que os membros de culturas específicas utilizam para
compreender e interpretar as suas vidas quotidianas (Geertz 1989).

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Não estando esta questão resolvida, entretanto, convém lembrar,


com Fassin (2001b), que a introdução de indicadores referentes à
origem dos imigrantes neste tipo de estudo deve ser acompanhada da
identificação simultânea de variáveis socioeconómicas, os cruzamentos
entre estes factores permitindo melhor articular as duas lógicas sociais.
Esta indicação singela, se não resolve o problema da conveniência das
abordagens centradas nas características que são atribuídas a um grupo
por causa da sua origem, pelo menos lembra que as orientações das
políticas públicas e das pesquisas devem estar atentas às consequências
de se manter um subgrupo definitivamente preso às suas origens, à cor
da pele e à sua herança cultural, como se a sua permanência num outro
lugar não trouxesse mudanças profundas nas suas formas de estar no
mundo, como se fosse possível viver num lugar sem nele envolver-se.
Como questiona Fassin (2001a), estando todas estas críticas
formuladas em relação à abordagem culturalista e à evidenciação da
etnia, como dar conta das especificidades de um subgrupo relativamente
às questões do VIH/SIDA ou das doenças em geral? Em primeiro lugar,
é preciso considerar a sua inserção social historicizando-a e, além dos
macro-fenómenos que caracterizam a sua entrada no novo lugar (a
história colonial e pós-colonial, as evoluções do mercado de emprego e
habitação), destacar os micro-fenómenos que se referem à existência
das pessoas – seu estatuto jurídico, as suas possibilidades de trabalhar e
alojar-se, suas relações com os nacionais e os outros estrangeiros, o
acesso à informação, à prevenção, ao tratamento, etc. Por conseguinte, a
questão não é mais a de procurar os “factores culturais” que explicam o
comportamento ou os “obstáculos culturais” dando conta das dificuldades
reencontradas pelos intervenientes, mas mais apreender a experiência
do estrangeiro em termos de condição social (Fassin 2001c), quer dizer,
na medida em que é uma produção da sociedade, que lhe define o
conteúdo e os limites jurídicos, económicos, políticos e culturais.
Em síntese, justifica-se a preocupação com a associação SIDA/
/imigração se o capital cultural que o grupo tem disponível (resultado

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quer da sua origem, quer da sua presença no lugar de destino) for


tomado, em primeiro lugar, como um dos vectores importantes das
atitudes diante do fenómeno, mas, igualmente, para compreender as
informações (precisas) do discurso médico e a possibilidade do uso dos
serviços médicos. Pensamos que a condição de imigrante nas
sociedades contemporâneas como a portuguesa circunscreve de forma
específica as características dos aspectos acima citados. Considera-se,
portanto, a importância do estudo do comportamento e o exame muito
detalhado de todos os factores que participam da “descodificação” feita
pelos indivíduos das informações sobre “fatos objectivos”, neste caso,
as informações sobre VIH/SIDA.

METODOLOGIA DE CAMPO E ANÁLISE DE DADOS

As teorias psicológicas e sociais pouco têm contribuído para se


compreender a baixa correlação encontrada, pela maioria dos estudos
realizados, entre os conhecimentos demonstrados pelas pessoas em relação
ao VIH/SIDA e as práticas preventivas e duradouras que deveriam adoptar.
Quer isto dizer que a divulgação sobre as formas de contágio e prevenção
da doença é considerada ampla e bem-sucedida, produzindo, contudo,
efeitos limitados em termos de atitudes concretas que induzam à
prevenção por parte da população atingida pela informação (Loyola 1994).
Abre-se, assim, um vasto campo de compreensão do desfasamento entre o
conhecimento e a prática, correspondendo à seguinte questão: o que leva
pessoas “normais”, que “só transgridem de vez em quando”, e que
conhecem intelectualmente seus próprios riscos, a não adoptarem,
privadamente, comportamentos preventivos?
As teorias psicológicas e sociais não têm respondido a esta
questão, em grande medida, porque procuram explicar os comporta-
mentos que ameaçam a saúde estabelecendo uma relação directa entre

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o conhecimento e a prática, consequentemente, fundamentando as


propostas de prevenção nos processos cognitivos de mudança de
comportamento, na decisão individual e no controlo da acção pelos
indivíduos (Rodrigues 1999). Por conseguinte, neste campo, cabe à
psicologia social que tem como arena de actuação o complicado meio
de campo entre a esfera individual e social (Spink 2003), retomar uma
nova base para o debate sobre a autonomia relativa das esferas social e
individual sem cair no reducionismo sociologizante ou psicologizante.
Para tal, o enfoque recai sobre o sujeito com produto e produtor da
realidade social e o objecto privilegiado passa a ser o processo de
aquisição de conhecimentos durante a acção do sujeito de dar sentido ao
mundo (Spink 2003). Deste modo, no caso deste estudo, descrevemos
dimensões essenciais da condição social dos jovens, particularmente
através da sua posição de jovens de origem imigrante que é afectada
pelas posições originais dos seus progenitores, estejam eles em
Portugal, noutro destino da emigração cabo-verdiana ou mantendo-se
em Cabo Verde. Os jovens a que nos referimos vivem em bairros
designados de “realojamento social” de centros urbanos em Portugal2.
O universo investigado abrangeu jovens com idades entre 16 e 26 anos,
incluiu cada género de forma equitativa e, no trabalho de campo,
procurou-se uma representação equilibrada dos principais bairros de
realojamento social de cabo-verdianos, ficando assim circunscrita a
classe social e a origem dos jovens.
Consideramos que, de acordo com os programas de combate ao
VIH/SIDA em Portugal, este grupo seria um dos mais atingidos por
campanhas de informação sobre o vírus e a epidemia dirigidas à popu-
lação de origem imigrante e/ou ao segmento mais pobre dos centros
2 Embora de muitas formas questionável, esta definição ou categorização social – em larga
medida atribuída pelo sistema de classificação social dominante a jovens de origem
imigrante nos países de imigração – é aqui considerada como ponto de partida pelas
implicações na experiência social destes jovens e nas condições materiais e simbólicas da
sua existência de que, por sua vez, dependem as decisões quotidianas em relação aos
cuidados com a saúde e a prevenção.

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urbanos portugueses, em particular, a jovens e estudantes. Por causa da


idade e o local de moradia (bairros construídos, em grande parte, por
iniciativa oficial como também devido a uma certa reivindicação e mobi-
lização dos moradores pela melhoria da moradia e dos equipamentos
sociais), deveríamos encontrar uma certa familiaridade com o tema no
que se refere ao conhecimento das vias de transmissão e ao efeito do
conhecimento sobre as práticas. Ao mesmo tempo, e embora circuns-
crevendo uma classe social, não encontraríamos uma homogeneidade
plena face à diversidade de modos de inserção e de situação de vida,
aqui incluindo-se a situação marital (casado, namorando ou sozinho).
O interesse neste aspecto aproxima-nos do desafio apresentado aos
estudiosos da SIDA pelo estudo do comportamento humano. Em geral,
os cientistas humanos tentam inferir directamente das suas variáveis
macro a explicação para as regularidades observadas nas práticas dos
agentes sociais. Entretanto, alguns deles advertem sobre a necessidade
de se levar em conta que “a forma como(os) scripts eróticos cultural-
mente constituídos são internalizados e reconstituídos a nível intrapsí-
quico e a forma como passam realmente a estruturar as interações dos
parceiros sexuais são questões-chave que precisam ser examinadas com
muito mais detalhes” (Parker 1994: 153). Os trabalhos na área enfatizam,
sem excepção, os valores, preconceitos, crenças e mitos. Por vezes,
falam da existência de “factores emocionais”, mas estes últimos são
geralmente mencionados de passagem, como efetivamente actuantes,
embora os autores não se detenham a explicitá-los ou explicá-los. Na
opinião de Rodrigues (1999), isto deve-se à crença de que factores
subjectivos e irracionais não podem ser capturados através do raciocínio
objetivo e lógico dos pesquisadores; por isso, “factores emocionais”,
“irracionalidade do comportamento”, “determinações inconscientes”
podem ser apenas mencionados e não estudados. No entanto, alerta a
autora, sem o estudo desses aspectos, nem mesmo a decodificação feita
pelos indivíduos das informações sobre “fatos objectivos” chega ao
conhecimento do investigador, ou seja, no caso das campanhas contra o

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VIH/SIDA, este não teria acesso aos modos como os indivíduos


compreendem e interpretam as mensagens que são veiculadas.
Entre os factores que parecem explicar a inexistência de estudos
sobre esses aspectos, a autora destaca a certeza sobre o carácter
individual dos processos psíquicos ignorando-se, porém, que muitos
processos psicológicos não são individuais: classificamo-los como
‘psicológicos’ devido às instâncias em que se passam e às leis pelas
quais são regidos. Por outro lado, sabemos, a partir de desenvolvi-
mentos teóricos mais recentes, que muitas vezes são criados e compar-
tilhados coletivamente (...) (Rodrigues 1999: 6).
Como orientação da nossa abordagem, retomamos, igualmente, a
noção de Sontag sobre o papel da SIDA no nosso tempo, e do novo
“universo do medo” que traz mudanças marcantes para a construção de
relações e de confiança, em particular, na situação de trabalho de campo.
Certamente que as relações face-a-face nunca são fáceis, mas quando o
tema é a doença, a morte ou a epidemia, a construção do diálogo privado
e da confiança consiste na questão etnográfica mais difícil, que interessa
aos cientistas sociais que recorrem a esta técnica de pesquisa. Por um
lado, o discurso sobre sexo traz uma oportunidade extraordinária para se
compreender a cultura, e investigar-se os desejos íntimos de vida,
especialmente os das margens; o medo pode abrir os informantes a uma
melhor discussão sobre suas práticas e conhecimentos íntimos, mas pode
também trazer pânico ou raiva a outros (Herdt e Boxer 1991). De um
modo ou de outro, as representações da SIDA, carregadas do ponto de
vista sexual e moral, trazem o estigma e o desprezo na face e estão entre
os maiores desafios de investigação que enfrenta o cientista social,
exigindo experiência e uma escuta competente e sensível aos discursos e
às condições em que são produzidos.
Pela natureza do objecto de pesquisa e a preocupação em
identificar padrões organizados de comportamentos e percepção,
utilizamos a metodologia de um estudo exploratório, em profundidade,
e do tipo qualitativo para captar aquilo que, no dizer de Rodrigues

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(1999), é digno de ser conhecido mesmo que não possa ser medido.
Conforme a proposta de captar conteúdos emocionais e significados
mais profundos das explicações dos jovens acerca dos comportamentos
preventivos face ao VIH/SIDA, a metodologia adoptada foi a de
entrevistas individuais, em parte abertas (discurso livre), e também
guiadas por roteiro. A utilização de uma técnica qualitativa, de
instrumentos mais ricos e menos rígidos mostrou-se mais adequada
para alcançar factores “irracionais”, denominação esta que, como
referimos acima, tem sido utilizada pelas ciências sociais em geral,
para designar factores que consideram como algo que existe mas não
pode ser apreendido pela razão. Ao mesmo tempo, o instrumento
adoptado permitiu a recolha detalhada de informações acerca do
contexto socioeconómico e do habitus do segmento social (Bourdieu
1972). Os dados sobre a migração bem como as condições objectivas
de vida (do indivíduo e do seu grupo) foram relacionados com as
disposições subjectivas detectadas no discurso livre, com destaque, no
caso deste estudo, nas disposições que não são individuais mas,
geradas ao longo da história do grupo e de acordo com as suas
condições objectivas de existência (Bourdieu, 1972).
Um estudo exploratório tal como o que realizamos fornece o
material acerca das ligações das diferentes variáveis entre si, quer
dizer, das explicações que os jovens produzem a partir das posições
que ocupam no interior dos seus grupos, em particular, neste caso, a
posição relativa à imigração (sua ou dos parentes mais próximos e
significativos) e ao tema do VIH/SIDA.
No processo global de análise, as informações recolhidas foram
ordenadas, estruturadas e interpretadas de acordo com uma orientação
geral da análise de conteúdo como um dos subcomponentes da análise de
discurso. Nesta fase do trabalho, procedemos, à ordenação do conteúdo
das entrevistas e das anotações dos diários de campo (incluindo os
relatórios de recusa), a leitura recorrente das transcrições das entrevistas,
os ensaios de organização dos conteúdos dos discursos em atenção à

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estrutura dos discursos individuais. Do mesmo modo, realizamos a


identificação de recorrências e singularidades dos assuntos e as
comparações tiveram em consideração as oposições entre a trajectória dos
géneros, as biografias individuais e os assuntos tratados (Évora 2004).

O CONHECIMENTO SOBRE O VIH/SIDA NA IMIGRAÇÃO

As percepções sobre segurança e perigo são intersubjectivas,


produtos da construção social, resultantes de consenso colectivo e de
socialização (Simpson 1996). Enquanto o perigo é objectivo, as
percepções de perigo não se originam directamente da observação do
mundo empírico, e o meio objectivo oferece apenas informação
ambígua e inconsistente, permitindo um amplo quadro de crenças
socialmente construídas. Neste sentido é que, em relação à SIDA, não
está em discussão que o perigo existe de verdade, mas que a
ambiguidade das indicações fornecidas pelo meio deixam amplo
espaço para a inferência e a interpretação.
Em geral, as percepções e construções em torno da SIDA indicam,
por um lado, uma reedição das interpretações morais e de determinados
discursos e práticas que têm sido tradição ao longo da história de
doenças como a cólera, a tuberculose, a sífilis ou o cancro (Sontag,
1989). Ao mesmo tempo, introduzem novos elementos relacionados às
suas características epidemiológicas e ao seu período histórico de
surgimento. As percepções de ameaça relacionadas à epidemia variam
conforme o contexto social, histórico e político; a natureza mais ou
menos desconhecida da doença; a proporção de casos de mortalidade e
morbidade; o lugar geográfico e o grupo populacional atingido
(Monteiro 2002). As restrições e proibições impostas por meio de regras
sociais dependem do grau de desordem social percebido e a ameaça à
continuidade do grupo que a doença traz consigo. Ou seja, o elemento
essencial da percepção social relativamente à SIDA depende do

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desconhecimento e da falta de controlo sobre a doença que, além de


mostrarem-se ameaçadores à continuidade do grupo social, poten-
cializam a transformação e a revisão de valores vigentes, fortalecem
forças conservadoras e, ainda, estimulam movimentos e reacções
voltados para a explicação do novo fenómeno (Monteiro 2002).
Aplicada à experiência que investigamos, torna-se evidente a
importância de se descortinar a lógica modeladora das representações e
práticas dos sujeitos sociais em relação à doença, fornecendo a
abordagem sócio-histórica os subsídios para o entendimento dos
sentidos subjacentes aos comportamentos dos jovens em relação ao
VIH. A SIDA não é uma doença que ameaça exclusivamente o corpo,
mas afecta directamente a identidade social das pessoas envolvidas,
razão pela qual se deve conhecer os aspectos sociais e morais nela
implicados. Em relação aos jovens, é preciso compreender o processo
de construção, manutenção e transformação dos discursos e das
práticas considerando-se a diversidade dos comportamentos e visões
do seu grupo social na sociedade complexa em que vivem. Em termos
da sua inserção quotidiana, por exemplo, os jovens apresentam o seu
bairro como uma das referências centrais em suas vidas, descrevendo o
que é bom e mau no lugar onde vivem, reproduzindo a dinâmica
característica de comunidades pequenas em que as pessoas convivem
com mais proximidade. Apontam para os problemas sociais, de
desemprego, gravidez precoce, drogas, violência, ausência dos pais,
mas também para actos de solidariedade, por exemplo, de avós que
cuidam dos netos enquanto os pais trabalham. Em geral, os rapazes
referem-se ao convívio nos espaços públicos e reclamam de mais
equipamentos sociais para a comunidade. As jovens criticam a
ausência de serviços de saúde que pudessem atender as pessoas e
oferecer um serviço permanente de esclarecimento dos jovens,
sobretudo sobre doenças e gravidez precoce. Nas entrevistas, fica
evidente que o que os liga ao bairro é a origem dos pais e do segmento
social a que pertencem e, do mesmo modo, o que os prende mais ao

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lugar é a falta de recursos para frequentar outros espaços. Nas


situações de desemprego, o bairro transforma-se quase que no único
refúgio possível, conduzindo à maior aproximação entre as pessoas que
se encontram nos lugares públicos e partilham das horas socialmente
destinadas à actividade laboral. Este convívio é descrito muito mais
como um suporte para uma situação de vida difícil do que como uma
alternativa para a ampliação de horizontes e visões do mundo; os
longos períodos de tempo que passam no bairro podem tornar-se uma
carga pesada, ilustrativos que são da falta de ocupação laboral. Ali
encontram seus pares afectivos e criam os filhos, sem muito lazer ou
convívio para além dos seus limites, o que é mais verdadeiro ainda
para os que moram em centros urbanos de menor dimensão.
Ao mesmo tempo, descrevem o bairro como um lugar de
aproximação necessária entre diferentes colectividades (portugueses,
cabo-verdianos, guineenses, angolanos, sãotomenses, etc.) e à
convivência frequentemente marcada pelas diferenças de origem. De
igual modo, os jovens, em geral, demonstram uma consciência da
percepção que o exterior tem do seu lugar de vida, frequentemente
vinculado à violência e à presença da polícia, o que faz com que as
pessoas que dali saem “carreguem” o rótulo e a má fama do lugar.
Inseridos num ambiente de grande vulnerabilidade social e fracas
perspectivas de mudança de vida, a lógica que orienta a sua noção de
risco reflecte a influência social na função imune, tal como encontrada
em vários estudos, como refere Kaplan (1987). Por seu lado, Parker
sublinha que deve-se considerar a complexidade dos factores que
influenciam a construção da experiência sexual, em particular, formas de
“violência estrutural” que determinam a vulnerabilidade social de grupos
e indivíduos, encontradas em pesquisas feitas em contextos tão
diferentes como zonas rurais profundamente pobres de países em
desenvolvimento ou zonas marginalizadas de cidades do mundo indus-
trializado. Neste trabalho, o autor considera os efeitos interactivos e
sinergéticos dos factores sociais tais como pobreza, exploração

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económica, poder de género, opressão sexual, racismo e exclusão social


(Parker 1991).
Segundo Kaplan (1987), padrões sociais e psicossociais que
reflectem ou estão associados às circunstâncias stressantes de vida
confirmaram-se como redutores da resposta imunitária. É necessário
pois, examinar de que modo tais padrões podem ser interpretados como
ameaças à aquisição ou manutenção dos marcos socialmente válidos,
incluindo o cumprimento das definições dos papéis sociais e a
aquisição das identidades socialmente válidas. Além do exame da
aquisição (problemática) de marcos sociais ou o cumprimento de
expectativas em relação a papéis que interferem na resposta à ameaça
da doença, procuramos conhecer as estratégias logradas pelo grupo ao
longo da sua existência e que, na percepção dos seus membros,
funcionam como práticas e explicações adequadas à protecção face ao
VIH. O exame destes aspectos é tão mais complexo se considerarmos
que a internalização da visão colectiva do perigo implica que o
indivíduo não precisará mais de uma socialização activa para manter
essa visão. Deste modo é que no estudo desenvolvido, encontramos
esta visão colectiva subjacente às explicações e percepções dos jovens
presentes no seu discurso e sugeridas pelas categorias de análise
(retiradas dos discursos) que dão conta das suas percepções e visões do
mundo e que são resumidamente apresentadas como se segue.

O SEXO E A SEXUALIDADE

As associações suscitadas por este tema conduzem os jovens a


questões gerais tratadas superficialmente3. Expressões do ponto de
vista fisiológico também são utilizadas para definir o sexo de uma

3 Por exemplo, em expressões como: sexo é bom, para uns é fantasia, todos gostam,
mesmo os animais, faz parte da vida, é saudável... é uma coisa que faz parte da nossa
vida, estamos todos aqui é devido a isso, sexo é tudo.

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forma geral4 mas a preocupação com o controlo que é manifestada não


deixa claro a que tipo de solução referem-se5, ao mesmo tempo em que
são também trazidas considerações de ordem moral6.
Por um lado, as observações incluem referências a aspectos mais
específicos e a factos e opiniões relacionados a si mesmos, com
manifestações sobre a necessidade de “ser bem feito”. Ao mesmo
tempo, encontramos opiniões contrárias sobre a conveniência de se ter
vários(as) parceiros(as) como forma de protecção; os jovens e as
jovens trazem a ideia do sexo romântico porque cabe bem”, mas é
entre os rapazes que encontramos a aceitação da prática do sexo
somente por atracção física, enquanto uma das jovens sentencia que
“sexo tem de ser com envolvimento e como fruto de uma relação”. As
jovens mostram-se mais eloquentes em relação a esta afirmação e
partilham a ideia de que os rapazes não associam ambos.
Sobre a actividade sexual, há indicações de maior controlo dos
pais sobre as jovens antes da iniciação sexual e por meio da tentativa
de imposição de horários rígidos de frequência da rua, lugares frequen-
tados e convívio com amigas e rapazes. As que declaram-se virgens
afirmam a importância do espaço da escola para a socialização e as
trocas sociais que, no seu caso, têm menor probabilidade de ocorrer
noutros espaços da “rua”. Os jovens de ambos os sexos referem-se às
tentativas de controlo dessa vivência feminina por parte dos rapazes
nos espaços públicos, sobretudo, quando identificam que a jovem é
uma potencial candidata dentro do mercado amoroso que julgam estar
ao seu alcance. Verifica-se pois, uma tentativa de retardar a iniciação
sexual das meninas, com um tipo de controlo exercido, não apenas pela

4 Estas podem ser ilustradas, por exemplo, quando se referem que “é satisfazer o desejo
de uma mulher e um homem; é fazer amor, etc.”
5 “também temos que saber controlar com método contra, contra... como é que se diz?”
6 Por exemplo, como a expressão que se segue: “agora há muito sexo por dinheiro ou só
curtir; o gajo chega gosta um bocado da gaja e já faz sexo, antigamente era menos
falado, só era pai e mãe, agora uma criança de 10 anos também já sabe.

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família como pelos elementos (masculinos) do grupo alargado e da


comunidade que são mais próximos da jovem.
Este aspecto coincide com a constatação de que, para ambos os
sexos, o namoro é associado a sexo, para ambos os géneros, e a maioria
sugere que os primeiros encontros resultam rapidamente em carícias e
práticas mais frequentes como sexo. Pelas afirmações, o repertório
sexual e o número de parceiras dos rapazes é maior do que o das jovens
que afirmam fazer sexo com namorado/marido. A descrição da iniciativa,
do interesse pelo sexo e do protagonismo nas relações é frequente entre
os rapazes e referida apenas por uma jovem que mantém um relaciona-
mento com um parceiro que não pertence à comunidade imigrante.
As festas e as discotecas foram as actividades de lazer mais citadas
como espaços onde se sucede a convivência e a sociabilidade, pela
grande concentração de jovens e a ausência da vigilância familiar e da
comunidade mais ampla. Nestes espaços estão favorecidos quer o
relacionamento entre os pares, quer a experimentação sexual; neles
podem ser encontradas pessoas que, não sendo da comunidade,
representam o perigo do risco, do desconhecido, da doença e a esfera da
rua, em contraste com o ambiente da casa e da comunidade. Por serem
os lugares de encontro com o desconhecido e o anónimo, também estão
associados ao “sexo arriscado”, à imprevisibilidade e descontrolo, ao
contrário dos espaços familiares e comunitários que representam o
conhecido e o “sexo sem risco”.
Em contraste com uma exposição por meio de uma estética pessoal
de sedução (os rapazes referem-se à forma mais ‘ousada’ das jovens se
vestirem quando frequentam os lugares de encontro social), existe pouco
diálogo, muitas dúvidas sobre aspectos da sexualidade masculina e
feminina, controlo familiar e gravidez precoce. A virgindade não é
apresentada com um bem a ser preservado para o mercado matrimonial,
sendo mesmo associada à falta de experiência que, no dizer dos rapazes,
retira o prazer.
Há indicações da redução do valor moral e social da virgindade,
num sistema social em que as práticas de contactos físicos passam, com

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facilidade, ao acto sexual, o que leva a modificações no significado da


virgindade para as meninas e, consequentemente, na sua influência no
status social que lhes é atribuído e, anteriormente, encontrava-se
particularmente vinculado à virgindade.
A virgindade é facto quase não referenciado pelos rapazes, em
contraste com o alto valor que os mesmos atribuem à experiência
sexual múltipla e diversificada, ou seja, com parceiras do sexo feminino.
Enquanto para as jovens a constituição da identidade feminina se dá pela
afirmação da maternidade e da iniciação amorosa conjugal, para os
rapazes, a identidade está associada à demonstração da masculinidade
e pela aprendizagem sexual com mulheres que não pertencem “grupo
das que servem para casar”, como afirma um dos jovens.
A confirmar o estreito vínculo que percebem entre sexo e relação
afectiva, as jovens associam a sua primeira relação a coito vaginal, mas
afirmam, sem excepção, que aconteceu com o namorado. Na iniciação
sexual das jovens, soma-se à importância do vínculo amoroso, o
inesperado do acontecimento, tido como ocasional e fora do alcance ou
controlo de ambos.
As respostas à questão sobre a prática de sexo oral ou anal
mostram que a maioria associa sexo a penetração e diferencia este com
outras práticas sexuais que são negadas (sobretudo entre as jovens) ou
que ampliam as opções nesse campo. Há registos de preferência pelo
sexo oral entre as jovens, em oposição ao sexo anal, que é negado ou
sobre o qual revelam desconhecimento. Esta prática parece ser
desconhecida, mesmo por aqueles que, em seus discursos mostram-se
distantes de possíveis juízos de valor ou avaliações moralistas ou
qualitativas que tais práticas podem suscitar, em determinados grupos
sociais. Os rapazes admitem mais facilmente essas práticas,
verificando-se, no entanto, que a opção pelas mesmas não parece ser
fruto de um diálogo anterior ao acto sexual com as parceiras; deixam a
sugestão de que o acordo quanto a tais práticas depende da sua
permissão muito mais tácita, por meio de gestos e posturas corporais
de aceitação ou rejeição durante o acto sexual.

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As perguntas sobre prática homossexual foram recebidas com


surpresa por ambos os sexos, descrevendo ou o constrangimento
perante o preconceito social, ou uma distância (que não podemos
traduzir ainda por rejeição) dos entrevistados em relação ao tema e ao
relacionamento com pessoas com outras opções sexuais reveladas.

CONHECIMENTO E USO DO PRESERVATIVO

A ideia de inquirir sobre o medo face à SIDA tinha por objectivo


verificar o tipo de ansiedade em relação à doença e concluímos que o
medo parece ser maior quanto mais inseguras são as práticas
adoptadas, quer dizer, para a quase totalidade dos jovens, a dimensão
do medo é proporcional ao não uso ou uso irregular e incorrecto do
preservativo. Algumas falas sobre a doença são mais gerais, que pode
ser apresentada como “uma coisa de que toda a gente tem medo”, “de
que ninguém gosta de ter”. Em contraste, entre as observações sobre o
seu surgimento, destaca-se a atribuição a algo fora do controlo e sob o
qual pouco se pode fazer.
Em geral, o preservativo não é usado nem em fase de início de
namoro para ser abandonado depois e não há referências à
possibilidade de contaminação por via endovenosa. No entanto, os
rapazes manifestam preocupações e tendência a construir suposições e
fantasias negativas face ao perigo que, na sua opinião, representam as
jovens do local que têm como companheiros usuários de drogas.
Igualmente, não há referências a considerações morais ou reli-
giosas acerca do sexo antes do casamento; é fato que o namoro está
associado a sexo e, também, que a prevenção deve ser feita com o
preservativo ou a pílula mas, não encontramos referências ou pre-
ocupações ligadas às restrições colocadas por algumas religiões aos
métodos de controlo do VIH/SIDA.

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Para que compreendamos a lógica de protecção característica deste


grupo, torna-se necessário considerar que as atitudes de prevenção
dependem das condições de acesso a informações precisas, do capital
cultural disponível para compreendê-las e da possibilidade de uso de
serviços médicos. Estes factores estarão combinados no processo de
internalização e reprodução do modo de vida e das práticas acerca dos
cuidados com a saúde e os comportamentos preventivos orientar-se-ão
pelas representações sobre a doença e a saúde mais comuns neste grupo;
os jovens não se referem a preocupações com a saúde em geral, ou
precauções em relação à doença, indicando que a procura por serviços
médicos é feita somente em momentos em que o mal-estar físico se
manifesta. Para compreendermos o tipo de rotina em relação aos
serviços de saúde, é necessário considerar, por um lado, que este
segmento populacional não costuma manter a prática da saúde
preventiva, pelo menos nos moldes previstos pela lógica médica
ocidental. Ao mesmo tempo, soma-se que, conforme os estudos afirmam,
entre jovens, é mais distante a visão percepcionada da morte como uma
possibilidade – que levaria a outro tipo de utilização dos serviços
médicos –, lembramos que é neste período da vida (juventude) que a
morte, como possibilidade, está mais distanciada das pessoas jovens.
Embora todos afirmem a importância do preservativo, este não é
utilizado pela maioria, ou seja, mantém-se, claramente, a não
coincidência entre conhecimento/reconhecimento da sua utilidade e o uso
regular do preservativo como meio de protecção e prevenção. As razões
apresentadas referem-se a desconforto e incómodo, mas, o destaque é
dado ao factor de confiança no parceiro (conhecido e/ou o envolvimento
em relações estáveis com vínculo amoroso). Ainda em referência ao
não-uso do preservativo, um núcleo importante de significações parece
ser o que abriga, em simultâneo, o valor simbólico da maternidade e o
valor da gravidez como um bem simbólico. Ao mesmo tempo, aponta
para um espaço de controlo feminino e a idealização da maternidade e da
paternidade como bens importantes para a reprodução do grupo e a

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realização do ideal do feminino e do masculino. Neste sentido, com


frequência, os sujeitos consideram que as explicações se devem, por
exemplo, à existência de uma ideia mítica entre os africanos, de assegurar
a continuidade da “raça”, tendo um número elevado de filhos. Estas
permanências na memória colectiva, explicariam, na opinião dos sujeitos,
que jovens, com vínculo amoroso, muito novos já tenham um ou dois
filhos e constituam-se situações de “uma criança cuidar de crianças”.
Há referências de que estas situações constituem reproduções de
situações similares vividas pelas próprias mães, o que deixa implícito
que são situações vividas por indivíduos do sexo feminino.
Conhecer bem o parceiro é a viga mestra das representações que
sustentam o comportamento do não uso do preservativo, embora este
conhecimento não signifique, em todas as situações, uma convivência
prolongada com o mesmo e a familiaridade pode significar saber onde
mora, com quem saiu, qual é a família e, também em grande parte, se é da
mesma comunidade de imigrantes. É de se salientar que os núcleos
simbólicos da significação de protecção em geral (saindo da questão da
doença/saúde) fazem com que o universo da casa seja associado às
relações afectivas, amorosas, de hospitalidade, segurança, reprodução e
sobrevivência. Em contraste, a rua é o lugar do trabalho, da incerteza,
anonimato, da luta quotidiana, da imposição legal, da discriminação e das
restrições anunciadas à condição de sujeito pela pertença à imigração.
Sem dúvida que estas correspondências são essenciais nas
conclusões e indicações deste estudo, na medida em que o núcleo
central da noção de protecção está associada, principalmente, à
familiaridade e confiança, ao que é (des) conhecido e (não) familiar.

O VIH/SIDA: A LÓGICA DE PROTECÇÃO

Nos relatos, as consequências da SIDA não são minimizadas; ao


contrário de estudos com jovens universitários como o de Rodrigues

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(1999) – que alertam para a possibilidade de os bons conhecimentos


que estes têm novos medicamentos e os coquetéis estarem a estimular
os comportamentos de risco –, os jovens do nosso estudo não parecem
reconhecer que novas terapêuticas e formas de prolongar a vida com
SIDA permitem suspender a sentença de morte que a doença traz
consigo. Parece, muito mais, que os comportamentos de risco que estes
jovens mantêm em relação ao SIDA podem ser compreendidos, de
forma mais clara, caso sejam interpretados como integrantes do mesmo
núcleo de explicações (simbólicas) adoptadas face a situações de risco
de morte, em que poucos factores são objectivamente controláveis.
Nestes casos, a negação do risco parece ser um dos mecanismos mais
presentes nas condutas.
A lógica da protecção elucida sobre as visões dos jovens e das jovens
em relação ao universo do sexo oposto, conduzindo a uma hierarquização
dos seus membros: para os rapazes, o risco é hierarquizado de acordo
com a categorização da jovem; o uso do preservativo não se justifica se
for namorada, “de casa”, não conviver intimamente com rapazes
(sobretudo de outras regiões), não ter uma vida sexual muito activa e
diversificada em termos de parceiros, e não frequentar, com muita
assiduidade, os lugares de encontro (discotecas e festas). Para as jovens, a
hierarquização depende do interesse do rapaz em ter um relaciona-
mento amoroso muito mais que sexual e de ter “boas intenções”, quer
dizer, ser um potencial candidato no seu mercado amoroso e
matrimonial, mesmo que estas expectativas não se venham a realizar.
A maior insistência e preocupação com a gravidez não planeada
do que com o VIH/SIDA sustenta a hipótese de que o sexo é, em si,
uma actividade que implica risco, portanto, o preservativo não
significa a eliminação do risco da prática sexual.
Por outro lado, a lógica do que funciona como protecção associa-
-se às diferenças dos papéis atribuídos e esperados para os géneros: do
homem espera-se a atitude pró-activa de providenciar a resolução de
todos os riscos que comporta um acto sexual, no momento em que este

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se realiza. Não sendo o tema central da análise que aqui fazemos, é de


se supor, no entanto, que, em parte, a tolerância social manifestada
quando os jovens deixam “escapar” o controlo desta situação (resul-
tando em situações de gravidez, por exemplo), pode estar associada à
percepção de que trata-se, o acto sexual, de um momento regido, muito
mais por “factores irracionais” do que por razões controláveis. Em
contraste, a expectativa, em relação às jovens, é o do aprendizado do
controlo que devem exercer em relação à maternidade e à gravidez,
considerando-se que, pelas particularidades do contraceptivo, é exigido
um grau de planeamento e disciplina para a ingestão diária.
O que fica evidente neste grupo é a quase ausência de contacto e
proximidade manifestada com pessoas infectadas ou vivendo com o
VIH/SIDA. O perigo de contaminação é colocado no mesmo grau em
que “todas as pessoas” estão sujeitas, à excepção da probabilidade de
estar mais próximo por causa das jovens (do bairro) que diversificam
os seus parceiros e, ao mesmo tempo, são as prováveis parceiras dos
jovens do bairro.
Chama a atenção, igualmente, o número de abstinências declaradas
e a distância da última relação sexual entre jovens solteiros, homens e
mulheres, há mais de um ano ou dois. Entre os solteiros, os relatos
sobre as soluções encontradas para consumar a relação (em minha
casa, em casa dela, etc.) sugere problemas para os mais pobres, pois
exige uma gestão de horários e lugares conforme as disponibilidades dos
demais residentes ou amigos. No caso das jovens, esta gestão sequer é
colocada, suspeitando-se, assim que, mais uma vez, consideram-na
uma responsabilidade masculina. Pode-se, igualmente, supor que o
espaço familiar, no caso das jovens, não é considerado alternativa
como lugar de encontro, ao contrário dos rapazes que contam com os
amigos ou familiares próximos (também do sexo masculino) quando se
trata de resolver a questão (provisória) de um espaço privado.

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PROPOSIÇÕES PARA UMA CONCLUSÃO

Embora em carácter parcial, a análise não deixa dúvidas acerca da


pertinência em fundamentar-se as políticas de prevenção no seio desta
colectividade, tanto na transmissão adequada (e sempre actualizada) de
informações sobre o VIH/SIDA como nos sistemas culturais e de
crenças que sustentam as práticas de cuidados com a saúde.
A análise do material obtido pelas entrevistas indica que este
grupo possui um conhecimento generalista sobre o risco da SIDA e o
funcionamento do vírus, centrado no contágio por via sexual e na ideia
de que a presença da doença conduz à morte. A explicação sobre as
vias de contágio e suas consequências mostram que encontram-se
retidas, para este grupo, informações que já foram substituídas por
hipóteses mais avançadas no âmbito dos produtores do saber: Há os
que trazem informações incorrectas sobre as formas de propagação do
vírus, e também não se referem ao desenrolar da doença, ao que
acontece depois da contaminação ou ao tempo de incubação. Não
demonstram iniciativa de aproximação da informação sobre o
VIH/SIDA (obtida entre os amigos, pela televisão, na escola ou
serviços de saúde) nem é prática entre estes jovens procurar informa-
ção mais actualizada e específica referente às novas descobertas
científicas.
Entre o conhecimento que possuem e as práticas de prevenção
existe um hiato devido à não adopção de cuidados adequados. As
práticas que, acreditam, funcionam como sistema de protecção
baseiam-se essencialmente na familiaridade e confiança entre os
parceiros. Coincidindo com a valorização das actividades compar-
tilhadas, das trocas, da vizinhança, dos laços, da aproximação e da
integração com os que são mais próximos (familiares e amigos), a base
da lógica de protecção no âmbito das relações sexuais/amorosas
considera: a exclusividade sexual, a proximidade, o conhecimento e
familiaridade e o vínculo amoroso. Embora conhecido por todos na sua

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funcionalidade, o preservativo não é usado como medida de protecção


nas relações sexuais. A excepção ocorre ocasionalmente, em relações
com parceiros que não são considerados do mesmo meio, portanto, não
familiares e conhecidos. O preservativo é muito mais lembrado como
forma de controlo da gravidez.
Estando o sistema de protecção simbólica muito mais associado à
familiaridade e confiança no parceiro, ganha especial relevância o
contexto familiar e social que rodeia o jovem, pois é nele que encontra
os pares sexuais com os quais considera estar fora de risco ao praticar
sexo sem protecção. Quer dizer, a ideia de fazer parte do mesmo grupo
funciona como importante justificação para as atribuições de confiança
e a prática sexual sem preservativo. No entanto, a familiaridade e
confiança são rapidamente atribuídas a pessoas que, não sendo do
meio, são avaliadas pelo seu carácter (“é uma boa pessoa”) ou
pertencem a grupos facilmente identificáveis e próximos, com quem o
jovem descobre algum tipo de identificação.
Deve-se considerar o fato de que pertencer a uma colectividade de
imigrantes favorece a identificação entre os jovens, mesmo quando não
pertencem ao mesmo grupo de convivência. A imigração torna-se,
portanto, um elemento importante na “familiaridade” e “confiança”
atribuídas à pessoa, apressando o estabelecimento de atitudes de não
protecção nas relações mais íntimas. Além disso, a relação que pode
ser estabelecida entre SIDA e imigração, no caso aqui estudado, deve-
-se a que, se estes jovens não manifestam uma ligação objectiva com
Cabo Verde (traduzida em trocas ou deslocações ao país), esta ligação
se estabelece no plano simbólico (pais tradicionais que não falam sobre
sexo com os filhos) e, na prática, indirectamente, pelas pessoas
próximas que se deslocam entre Portugal e Cabo Verde. Inclui-se,
ainda, outras pessoas próximas, imigrantes em países europeus com os
quais mantêm ligações (os jovens fazem uso da rede de imigração
quando pretendem procurar um trabalho melhor em outro país europeu)
e que certamente mantêm algum tipo de relação com Cabo Verde.

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Constatada a relevância da pertença a uma colectividade imigrante


para estes jovens e que o seu sistema simbólico de protecção depende
em grande parte da referida pertença, as propostas de prevenção devem
partir da vulnerabilidade da condição de imigrante atribuída a esta
comunidade, porém, recusando uma visão culturalista que impute
somente à herança cultural e às tradições de origem do grupo as
explicações para as especificidade das condutas desta colectividade; é
preciso associar a experiência social destes jovens baseada em
importantes identificações com Portugal e o lugar onde vivem e na
partilha de símbolos adolescentes e nacionais com jovens portugueses
ou de outras comunidades imigrantes.
A vulnerabilidade social apresentada por estes jovens (pelas
condições materiais de existência) e a importância da comunidade
como suporte da sua experiência social e sexual indica a pertinência de
estudos comparativos com jovens de outras comunidades de imigrantes
cabo-verdianos (em Portugal e outros países de destino) e com
diferentes grupos de jovens, por exemplo, jovens vivendo na rua/abrigo
cuja maturidade sexual e social é desenvolvida longe dos meios
privilegiados dos jovens aqui referidos: a família e a comunidade.
A experiência social destes jovens acontece sobretudo no seio da
comunidade a viver em Portugal, a escola amplia os círculos de
amizade, mas a permanência pouco duradoura na instituição torna mais
importante a vivência no interior dessa comunidade. Consideramos
este fato pelas articulações entre lógica da saúde e a lógica da
protecção face às ameaças da vida quotidiana; ao invés do foco na
responsabilidade pessoal e na abordagem epidemiológica, a política de
prevenção centrada na dimensão simbólica da protecção de jovens do
segmento popular deve considerar, no caso aqui estudado, o imaginário
social construído em torno do imigrante, o que alimenta e difunde a
percepção sobre o imigrante e a percepção dos jovens sobre o seu
grupo: a atribuição de aspectos negativos de personalidade e da
presença em Portugal, a percepção de protecção encontrada nos

291
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vínculos de amizade, solidariedade e o valor das formas de interacção


social e da rede familiar e de vizinhança.
As campanhas educativas dominantes propõem o planeamento e a
negociação com o(a) parceiro(a) sobre prática de sexo seguro, visando o
uso do preservativo e/ou sexo sem penetração. No entanto, para este
grupo, o namoro não é concebido sem sexo e este não é percebido sem
penetração. Acrescenta-se que a primeira relação sexual não supõe
acordo prévio, não prevê a utilização de métodos preventivos e tem por
base motivações de natureza diversa como confiança, vínculo amoroso,
oportunidade, curioSIDAde. As políticas de prevenção devem considerar
que, ao contrário de uma lógica baseada na responsabilidade individual e
na igualdade dos direitos individuais, a experiência social destes jovens
tem por base roteiros masculinos e femininos e a assimetria entre os
géneros; associado ao papel social do homem como provedor,
responsável pela família e frequentador da rua, atribui-se ao jovem a
responsabilidade pela presença/ausência do preservativo nas relações. A
mulher, identificada com o meio familiar e os cuidados domésticos, é
apontada como a responsável pelo controlo da gravidez. As campanhas
devem partir do reconhecimento de formas de negociação entre os
parceiros e das áreas (e situações) em que estas negociações são mais
frequentes e facilitadas, podendo transpor as formas de resolução de
conflitos para a área dos cuidados com o VIH/SIDA.
Além disso, a perspectiva de que prevenção deve prever uma
concertação entre os parceiros, de acordo com as atribuições definidas
para cada género neste grupo, deve-se sublinhar, por este estudo,
alterações no valor da virgindade, o que pressupõe mudanças no status
social das mulheres. No caso dos homens, são evidentes as
contradições entre as exigências do papel social masculino de provedor
(apontados por eles e por elas) e as circunstâncias de vida dos rapazes
deste grupo, sujeitos às limitações do desemprego ou das situações de
emprego pouco valorizado e com salários baixos que os fragiliza no
papel masculino desejado.

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Constata-se que os pais e protectores são apontados como os


menos favoráveis para que se estabeleça um diálogo aberto no
ambiente doméstico, com os adolescentes, sobre sexo e doenças.
Entretanto, a referência a irmãos, primos mais velhos, tios e tias
(irmãos mais novos dos pais) como agentes que suprem esta distância
paterna em relação aos adolescentes permite adiantar que deve ser
considerada a possibilidade destes agentes serem também mobilizados
pelas campanhas de prevenção, funcionando como agentes
intermediários entre os serviços de saúde e os adolescentes.
Pela distância em relação aos serviços de saúde e não utilização dos
mesmos pelos jovens para informarem-se e serem auxiliados, é de se
propor que seja aprofundado o conhecimento sobre os hábitos e atitudes
voltados para a saúde preventiva, bem como as atitudes dos agentes de
saúde no relacionamento com este grupo. Deve-se conhecer o tipo de
representações que os agentes de saúde têm deste grupo e a forma como
estas representações afectam as suas práticas e os serviços prestados, na
medida em que, em parte, deles depende a imagem dos serviços de saúde
como lugares apropriados para se procurar as soluções e conhecimento
sobre questões de sexo e de saúde em geral. A experiência em relação
aos cuidados com a saúde feminina e a maternidade são um bom ponto
de partida para se conhecer melhor este campo.

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Capítulo 9

Nos caminhos dos orixás –


Assistência e vida comunitária
num terreiro de candomblé

Luís Silva Pereira*

* Professor Associado no Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA).


Investigador CEAS/CRIA
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APRESENTAÇÃO DA INVESTIGAÇÃO1

Visitei terreiros de candomblé e tendas de umbanda no Brasil (nas


cidades do Rio de Janeiro, em 1996, e de Macapá, capital do Estado do
Amapá, em 2000) e em Portugal (em Lisboa e num raio de cerca de
uma centena de quilómetros, desde Novembro de 2004) (v. Pereira
2006). Faço trabalho de campo desde Novembro de 2006 num terreiro,
ou “barracão”, como também é designado em Portugal.
Desde o início do meu trabalho em Portugal que a minha intenção
era fazer observações pontuais em vários barracões (e também, ainda
que com menos frequência, em tendas de umbanda), identificar as
diferenças e as relações entre eles, avaliar a liberdade dos pais-de-santo
e das mães-de-santo2 na orientação do culto (ainda que todos eles
afirmem a autenticidade e o respeito pela tradição), conhecer as
condições de implantação das religiões afro-brasileiras em Portugal, e,
finalmente, escolher um deles e aí levar a cabo um trabalho de campo o
mais intensivo e profundo possível.

1 Entre Outubro de 2006 e Setembro de 2007 o projecto “Religiões Afro-Brasileiras em


Portugal – Migração, Resistência e Rituais Terapêuticos” foi financiado pelo Centro de
Investigação e Intervenção, do Instituto Superior de Psicologia Aplicada.
Desde Outubro de 2007 que a pesquisa é financiada pela Fundação para a Ciência e
Tecnologia (F.C.T.) e que o projecto respectivo está integrado num grupo de projectos
cuja designação genérica é “Políticas de Saúde e Práticas Terapêuticas: Sofrimento e
Estratégias de Cura dos Migrantes na Área da Grande Lisboa”.
2 Sacerdotes-chefes do terreiro de candomblé. (v. Prandi 2005: 308).

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Desde que escolhi o terreiro, em Novembro de 2006, elaborei


histórias de vida, organizei entrevistas abertas, registei elementos
relevantes recolhidos em conversas informais, rituais curativos e
“festas” 3 . Esses elementos foram reunidos com o objectivo de
conhecer a organização do terreiro em causa, entender o candomblé e
avaliar a sua relevância no quotidiano dos que contactam com ele,
como adeptos, clientes ou simpatizantes (no presente texto, dedicarei
mais atenção aos primeiros).
Em Fevereiro de 2008, àqueles dados acrescentaram-se outros,
documentos da Associação Religiosa que me foram fornecidos pelo
pai-de-santo, como, por exemplo, testemunhos dos adeptos, alguns dos
quais utilizarei agora, guardando o anonimato dos declarantes. Em
muitos dos depoimentos repetem-se informações que eu próprio havia
recolhido e todos eles narram episódios que confirmei no terreno,
recorrendo ao contacto directo, pessoal.
A minha aprendizagem sobre o candomblé é contínua, os
elementos que vão sendo adicionados na prática do culto são
numerosos e no terreiro que analiso as funções dos adeptos vão sendo
cada vez mais e mais complexas.
Foram várias as razões que me levaram a escolher o terreiro em
causa, cujo anonimato mantenho ao longo da pesquisa, mas selecciono as
três que considero mais importantes: a primeira, ancora-se na minha
convicção, após várias visitas, de que o terreiro em causa não é lugar nem
meio para prejudicar pessoas, antes é um espaço de convivência pacífica
e de dedicação ao estudo e à prática de princípios enunciados como sendo
do candomblé; a segunda, porque é um terreiro muito regular no seu
funcionamento, particularmente no que respeita aos diferentes momentos
de culto, à formação progressiva dos adeptos e ao número de adeptos,
clientes e simpatizantes que afluem aos rituais, consultas e “festas”; a
terceira e última razão para a escolha do terreiro em causa prende-se

3 Todos os meses são realizadas “festas” dedicadas aos Orixás, por exemplo, a de Logun-
Edé (a “festa” maior, por ser esse o orixá do pai-de-santo), a feijoada de Ogum, a
fogueira de Xangô, etc.

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com o bom ambiente que encontrei para trabalhar, graças à


disponibilidade que todo o povo-de-santo teve, e tem, para me acolher.

HIERARQUIA E ORGANIZAÇÃO DO TERREIRO

O terreiro onde faço trabalho de campo existe há cerca de sete


anos. O pai-de-santo chegou a Portugal, vindo do Brasil, em 2000.
Iniciou a sua actividade na sua casa particular, atendendo pessoas e
tendo o lançamento de búzios 4 como meio de interpretação e
aconselhamento. Passado cerca de um ano, abriu um local onde
começaram as sessões de candomblé e formou uma Associação
Religiosa. Três anos após o início dessas sessões o terreiro mudou de
local e, simultaneamente, foi construído um novo terreiro, também fora
de Lisboa, mas mais distante desta cidade, no qual já podem ocorrer os
rituais mais complexos do candomblé (nomeadamente os que exigem
sacrifícios de animais), todos os orixás têm um espaço físico próprio
que lhe é dedicado e os adeptos têm os seus assentamentos5.
Assim, actualmente, este terreiro tem dois lugares onde funciona.
Um, perto de Lisboa, onde decorrem consultas diárias, da parte da
tarde, e uma sessão semanal, designada como “sessão de Exús”, à 2ª
feira à noite. Outro, a mais de uma hora de Lisboa, onde decorrem,
mensalmente, as “festas” e, semanalmente, as sessões de orixás (6ª
feira à noite) e os rituais curativos (ao fim-de-semana).

4 Os búzios utilizados no jogo são pequenas conchas de praia, ou cawris, usados como
moeda em várias zonas de África, como a do golfo da Guiné (v. Bascom 1980). Na
consulta, considera-se que o pai-de-santo está em comunicação com os orixás e que,
através desse contacto, pode identificar a natureza do ser humano que a ele recorre, a
sua relação com os orixás, o problema que o leva ao oráculo e o modo de o resolver (v.
Fainzang 1986 e Favret-Saada 1977; mais especificamente relacionados com o
candomblé: Abimbola 1969 e 1975, Bascom 1969, Maupoil 1981).
5 Conjunto de objectos que identificam os adeptos como pessoas ligadas pelos ritos do
candomblé a um orixá específico; é, também, a representação do orixá – v. Lody 1987: 18.

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Nesses sete anos desde que a Associação foi criada, e de acordo


com o que pude observar e com os dados que recolhi desde 2005,
cresceu o número de adeptos, clientes e simpatizantes, bem como o
número de eventos organizados pela comunidade, foram criados novos
espaços para uma prática mais adequada do culto e deu-se uma
progressão dos adeptos na aprendizagem do candomblé e na hierarquia
do terreiro.
O número de pessoas que contribuem para a organização e
funcionamento do terreiro, bem como a complexidade das funções de
cada uma delas e da interacção entre todas, revelam a aptidão do
candomblé para se adaptar a novos terrenos e a capacidade de
mobilização dos seus adeptos.
As setenta e nove pessoas que preenchem a hierarquia do terreiro
em análise são aquelas que têm um vínculo reiterado, constante, com o
candomblé, o qual implica dedicação às tarefas que lhes são
designadas, aprendizagem dos princípios e regras da religião e
progressão na referida hierarquia. Neste número, obviamente, não se
incluem os que saíram para formar o seu próprio terreiro, os que se
afastaram, os clientes, os simpatizantes.
O pai-de-santo é a autoridade máxima do terreiro. Acredita-se que
a escolha é feita pelos orixás, para que ele se entregue à aprendizagem
do culto, assuma o cargo e difunda o candomblé. Diz ter aprendido
com a mãe-de-santo que o iniciou no Brasil e ter cumprido todos os
preceitos do seu cargo ao longo dos anos. É ele que transmite os
conhecimentos e fundamentos do candomblé, formando, no processo,
todos os adeptos do seu terreiro. Realiza consultas diárias através do
Jogo de Búzios, faz trabalhos espirituais, determina e orienta os banhos
com ervas curativas e encabeça as sessões de Exús6 e de Orixás.

6 Exú é considerado como um mediador entre os orixás e entre estes e os humanos e,


também, como o orixá mais próximo do mundo material e dos humanos. Nada se faz
sem evocar Exú, nada se inicia sem o seu consentimento (v., entre muitos outros,
Bastide 2001 [1958]; Prandi 2001; Pereira 2008).

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É ajudado pelos Pais Ogãs (11), pelas Mães Ekedes (8), pelos Pais
Pequenos (3), pelas Mães Pequenas (3) e pelas Mães Criadeiras (4).
Outros adeptos também estão activamente ligados ao culto, como os
Filhos com Feitura de Orixá (6), os Filhos com Bori7 de Feitura (12) e
os Filhos com Bori (31).
Os Pais Ogãs têm tarefas específicas de apoio directo ao pai-de-
-santo, trabalhos relacionados com a formação dos adeptos (é o caso
das aulas diárias de instrumentos musicais usadas nas cerimónias,
como os atabaques e o agogô; os ensinamentos de cantigas e rezas, o
dos sacrifícios de animais e o do poder das ervas curativas).
As Mães Ekedes confeccionam as comidas para os orixás (e
também para os adeptos e outros participantes nas “festas” e nos rituais
curativos), mantêm as instalações em bom estado de ordem e higiene,
marcam as consultas para o Jogo de Búzios, orientam os visitantes do
terreiro, organizam os eventos.
Os Pais Pequenos e Mães Pequenas poderão ter, no futuro, após o
cumprimento das obrigações8 devidas (de 1 ano, dos 3, dos 5 e dos 7
anos), o cargo de pais e mães-de-santo. Apoiam directamente o pai-de-
-santo em várias tarefas, muitas delas relacionadas com as reuniões
religiosas e têm a incumbência de transmitir o seu conhecimento
àqueles que poderão ser novos chefes do culto.
As Mães Criadeiras supervisionam e ajudam os adeptos nos rituais
que implicam recolhimento (entre eles, o da iniciação).
Os Filhos de Santo com Feitura de Orixá encontram-se no escalão
anterior ao dos Pais e Mães Pequenos. Apoiam directamente os
Pais Ogãs e as Mães Ekedes, sempre que isso seja solicitado. São ras-

7 O Bori é um rito realizado pelo pai-de-santo, apoiado directamente pelos Pais Ogãs e
pelas Mães Ekedes. Ele é usado tanto para resolução de problemas genéricos quanto para
dar início à vida espiritual do adepto do candomblé. Implica um sacrifício animal (v.
Bastide 2001; Luz 2002; Prandi 2005). Segundo Luz (2002: 185): “Cerimônia litúrgica de
fortalecimento da pessoa, bo+ri significa adorar a cabeça, fortalecer a cabeça”.
8 Os dados que recolhi estão em sintonia com o que diz, a propósito dos candomblés em
São Paulo, Reginaldo Prandi (1991: 155), “A ideia de obrigação, no candomblé, é
sempre associada à obrigação ritual, ou seja, à relação entre o deus e o seu filho iniciado
para o seu culto”.

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pados9, têm de recolher durante 14 dias10, findos os quais saem para


tornar pública, junto dos outros adeptos, a sua iniciação.
Os Filhos com Bori de Feitura são recolhidos por um período de
três dias e considera-se que, nesse ritual, eles são fortalecidos
espiritualmente pelo seu orixá e ganham confiança para o passo seguinte.
Não são raspados, este ritual é usado para resolver problemas de saúde
(independentemente de a pessoa em questão querer ou não progredir no
conhecimento da religião), mas também como fase intermédia do adepto,
para o reforçar espiritualmente antes de ser raspado. Nesta fase já existe,
para quem quiser prosseguir no candomblé, uma aprendizagem de
orações e cantos próprios para comer, para dormir, para o banho com
ervas. Quando é feito este bori, o filho borizado já antes tinha incor-
porado na roda do terreiro. Esta é uma fase de preparação para o passo
seguinte, a raspagem, momento que marca a entrada, com responsa-
bilidades acrescidas, na comunidade do candomblé.
Os Filhos com Bori deram o primeiro passo dentro da religião.
Para aqueles que o desejam pode começar, então, a aprendizagem da
doutrina. Neste estádio ainda não há aprendizagem de cantos ou
orações. Os filhos com Bori, geralmente, ainda não incorporaram, mas
se já tiver havido incorporações, o processo acelera-se para o bori de
feitura, já que as incorporações (as “bolações”, como também são
designadas) são interpretadas como uma manifestação de que o orixá
quer que o seu filho siga a vida espiritual no candomblé.
Após a Feitura, o percurso até ao cargo de pai-de-santo implica
recolhimentos periódicos, segundo os regulamentos da Associação,
“para fortalecimento, transmissão de conhecimentos e fundamentos
dados pelo pai-de-santo e pelos Orixás. Este percurso tem a duração de
7 anos, que são preenchidos permanentemente com formações,
aprendizagens, preparações e doutrina espiritual, sendo sempre
transmitido por superiores hierárquicos”.

9 O ritual determina que o cabelo do adepto seja rapado.


10 Existem regras complexas quanto ao isolamento, assistência dada ao recolhido, comidas
e bebidas que pode e deve ingerir, banhos, etc.

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Neste terreiro, as obrigações são de 1, 3, 5 e 7 anos. A de 5 nem


sempre existe noutros terreiros – a explicação para este facto, dada
pelo pai-de-santo, é de que assim se prepara melhor o adepto para a de
7 anos, já que, considera ele, o intervalo entre 3 e 7 anos é demasiado
grande e cria muita insegurança e ansiedade entre os adeptos.
Periodicamente, são realizadas assembleias-gerais para gestão e
organização da Associação, pelos corpos administrativos que a
compõem. No entanto, a organização burocrática da Associação
Religiosa não revela o essencial da convivência entre os associados,
que é determinado pelas regras do candomblé, tal como ele é entendido
e praticado no terreiro em causa. Pelas diferenças que pude constatar
ao comparar vários terreiros, parece-me correcta a observação de Lody
(1987: 21): “Evidentemente, existem tantas sociedades quantos grupos
reunidos em terreiros, seguindo estritamente orientações tradicionais
ou recriando-as e transformando-as conforme as intenções daqueles
que detêm o poder temporal e o mando religioso”.
Apesar das diferenças de organização, segundo as nações11 ou a
vontade do pai ou da mãe-de-santo, o sentimento de comunidade é forte
nos terreiros de candomblé e ele representa a resistência do africano à
escravatura, à perseguição, à segregação e a outras formas de discrimi-
nação que os seus adeptos vêm sofrendo ao longo dos séculos.
O candomblé transporta a memória viva de uma história que não
foi apagada por todas essas formas de violência e que continua a ser
contada hoje, com referências africanas12 que resistiram à migração

11 A palavra nação, no candomblé, designa a origem do culto, diferenciado segundo a


zona geográfica do continente africano, o grupo cultural, a língua, as entidades
cultuadas, a liturgia (em variadíssimos aspectos, como os dos objectos sagrados, do
toque dos atabaques, etc. – v. Bastide 1971).
12 As histórias que são narradas, as línguas em que são contadas, a mitologia, a fauna, a
flora, a culinária, são só alguns exemplos desse enraizamento em África. O chão que se
pisa num terreiro de candomblé “é” chão de África. As roupas, os cantos, o toque de
atabaques, o transe, os orixás... todos esses elementos constituem uma actualização
simbólica de África. A propósito do candomblé no Brasil, Capone afirma (2004: 265):
“Esse movimento de volta a África, desde sempre presente no candomblé, é uma
reativação, mais simbólica que real, de uma tradição “pura” que deve ser reconstruída
em solo brasileiro”.

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forçada para o Brasil e que há cerca de três décadas lançaram raízes em


Portugal.

COM A AJUDA DOS ORIXÁS – ACONSELHAMENTO E SAÚDE

Centrarei a minha atenção em depoimentos prestados por algumas


das pessoas ligadas ao terreiro em análise, comentando casos
directamente relacionados com doença.
O tema “doença” é constante nas conversas e nas explicações que
um grande número de pessoas dá para o seu envolvimento com o
candomblé. Começando logo pelo pai-de-santo.
Segundo ele, não entrou nesta religião por devoção, mas por
necessidade. Diz que, “sem razão aparente, a partir dos 10 anos de
idade, era assolado por desmaios frequentes e grande instabilidade
física”. A sucessão de doenças, distúrbios ou desequilíbrios de saúde
levou-o, na companhia da mãe, a um hospital, onde uma médica,
médium iniciada, identificou a origem do mal-estar e pediu a um
colega que a deixasse resolver o problema. O médico lembrou que tais
práticas eram proibidas, mas perante a insistência da colega, acabou
por ceder. Após a aplicação do saber da médium (habituada a aplicá-lo
em situações semelhantes, na sua prática religiosa) e a consequente
recuperação do rapaz, ela disse à mãe que não se tratava de doença,
que ele tinha características mediúnicas e que a definitiva solução do
problema exigia a entrada no candomblé para realizar a sua natureza
como pessoa e ganhar um equilíbrio que de outra forma nunca teria.
A ida a sessões de candomblé revelou a necessidade de se entregar
ao trabalho espiritual, mas para o jovem essa não era uma opção de
vida que desejasse e nem a isso era incentivado pela mãe, adepta de
uma religião evangélica, em clara oposição às práticas das religiões
afro-brasileiras.

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Para aquele que hoje é pai-de-santo, a sua relação com a religião


estagnou durante anos, porque para ele não era pacífica a entrada no
candomblé. Queria viver a sua vida sem ter a vida de outros a seu
cargo. Teve vários negócios, frequentou a noite, entregou-se a prazeres
que a vida material e o desafogo económico lhe proporcionavam. Ao
mesmo tempo que isso acontecia, as pessoas procuravam-no para que
as aconselhasse, as ajudasse e lhes revelasse o futuro. Ele não queria
essa responsabilidade, não queria ter de abrir mão de comodidades em
nome de uma religião que lhe exigia estudo, dedicação, responsabili-
dade e o dever de ajuda a outros que necessitavam de aconselhamento,
saúde, equilíbrio. Progressivamente, e em consequência das facilidades
sentidas na vida material, instalaram-se nele a insatisfação e o tédio.
Esse estado determinou uma mudança progressiva e a sua entrega à
vida espiritual, como diz.
Foi em Portugal que se dedicou mais ao candomblé (apesar de ter
sido pai-de-santo no Brasil e de ali ter o seu próprio terreiro) e neste
país, a pouco e pouco, as pessoas foram procurando a sua ajuda e o
número de adeptos foi aumentando. O início do contacto, regra geral,
era feito através de uma consulta que tinha o lançamento de búzios
como uma das vias de interpretação e de adivinhação. Durante e após o
lançamento, o pai-de-santo falava dos orixás, da sua influência na
pessoa e no mundo relacional do consulente. Os problemas que
levavam a pessoa à consulta eram analisados à luz dos princípios do
candomblé, uma tendência dos acontecimentos era apresentada e parte
do futuro da pessoa era revelada. As pessoas com as quais falei
demonstraram a sua perplexidade perante o carácter certeiro das
apreciações e das previsões que o pai-de-santo produziu sobre elas.
Essa nova forma de entender o mundo criava nos consulentes uma
curiosidade em saber mais e em recorrer novamente a esta religião que
incorpora uma forte componente oracular.
A aflição que produzia a doença, a instabilidade nas relações
sociais, a insegurança no trabalho, foram algumas das razões que

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levaram essas pessoas à consulta. O candomblé foi adoptado como


religião por muitos delas, depois de consultas, rituais curativos e
participações em “festas”. As pessoas chegaram até ao pai-de-santo
porque viram o lugar do terreiro e decidiram visitá-lo ou porque
amigos ou parentes lhe aconselharam uma consulta.
Procurei recolher e interpretar todos os elementos que permitissem
entender como o candomblé contribuiu para o reequilíbrio na vida das
pessoas que a ele recorreram.
Desde logo, no terreiro, essas pessoas deparam-se com uma
concepção do mundo desconhecida para a maior parte delas. Os orixás
são entendidos como divindades, intermediários entre Olorun, o deus
supremo, e os mortais (v. Bastide 2001; Prandi 2005), “forças ou
energias que animam o mundo físico e espiritual, que agem e
interagem no mundo, e que garantem o equilíbrio do universo” (Pereira
2008). Os adeptos do candomblé acreditam que os orixás, apesar de
não serem visíveis no mundo material, estão presentes na natureza e
em todos os seres vivos que o habitam, como uma realidade, não
transcendente, mas imanente. Reequilibrar o indivíduo, reenquadrá-lo
no mundo, transmitir-lhe um conjunto de saberes que lhe permita
orientar-se e adoptar um comportamento adequado, traduz-se, no
candomblé, como que numa sintonização com o mundo dos orixás.
Estar bem consigo mesmo, com os outros e com o mundo em geral,
passa pelo conhecimento do mundo dos orixás, pelo respeito,
demonstrado nas atitudes, das regras de conduta que ele determina, por
uma dedicação esforçada e sincera ao conhecimento e à prática do
candomblé.
Assim, as concepções de saúde, sintoma, doença, estão
intimamente relacionadas com a religião (v. Brelet-Rueff 1975), os
distúrbios são interpretados como desequilíbrios energéticos,
decorrentes de imensos factores que integram a vida quotidiana dos
humanos, mas, em última análise, determinados pela ignorância ou por
outro tipo de distanciamento dos preceitos religiosos do candomblé.

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A compreensão do que designa axé, por exemplo, é fundamental


para entender a sua relevância nas concepções de saúde e doença,
equilíbrio e desequilíbrio, etc. Segundo diferentes autores, trata-se de
uma força vital, energia, a grande força inerente a todas as coisas (v.
Verger 1966), “força invisível, mágico-sagrada de toda a divindade, de
todo o ser e de toda a coisa” (Maupoil 1943: 334), “força contida em
todos os elementos naturais e seres, porém que necessita de certos
rituais e da palavra falada para ser detonado ou dinamizado” (Pessoa
de Barros 2000: 116), “força vital; de realização” (Adékòyà 1999:
124), “força, graça, energia, vibração” (Barcellos 1995: 125), “força
mágica, elemento dinâmico da natureza” (Lody 1987: 79), “força
circulante que movimenta o ciclo da vida” (Luz 2002: 184), “o poder
dos orixás” (Dow 1999 [1997]: 258).
De acordo com os elementos acima recolhidos, parte essencial do
trabalho do pai-de-santo consiste em enquadrar a pessoa e o problema
em causa com o mundo dos orixás, as suas energias, os princípios que
orientam e condicionam o mundo material. A manipulação e
canalização do axé para o indivíduo em carência são essenciais no
processo terapêutico ou assistencial e no desígnio de o equilibrar,
contribuindo para uma relação harmoniosa dele com o mundo.
A., uma adepta que prestou depoimento, diz que “durante mais de
10 anos, pelo meu desequilíbrio, dependia de calmantes, anti-
-depressivos, psicólogos e psiquiatras, chegando até a tentar o suicídio.
Para além dos problemas de saúde e financeiros, também tinha muitos
problemas espirituais.”. O caminho no candomblé foi longo e difícil:
“foi um caminho marcado a ferro e fogo por muita doutrina, mas
também seria injusta se não dissesse que recebi muito carinho e
respeito. Nunca, em toda a minha vida, recebi de outro ser humano um
apoio como o que Pai (...) me dispensou”.
São numerosos os adeptos que declaram terem dado um passo
decisivo para a resolução de um problema pessoal com a entrada no
candomblé. Nestes casos, também é o pai-de-santo que anuncia a

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necessidade de fazer um ou mais rituais curativos e promover a


iniciação. Foi o caso de A.: “(...) neste percurso de doutrina, fui sendo
abençoada com Axé de Saúde: nunca mais tomei medicamentos para o
sistema nervoso, nem nunca mais tive que frequentar um psicólogo ou
um psiquiatra. Para isto contribuiu o Bori que fiz em Fevereiro de
2004. Lentamente fui resolvendo os meus mais que muitos problemas.
Inevitavelmente, a minha fé, associada ao meu equilíbrio e evolução
espiritual, foi crescendo, de tal forma que em Agosto de 2006 fui
abençoada com uma Feitura. Hoje olho para trás e não me reconheço”.
De acordo com os depoimentos que coligi, a transformação
operada em quem se torna adepto do candomblé é assinalável – já que
o indivíduo muda a sua concepção do mundo e a atitude perante ele – e
teve efeitos positivos na vida das pessoas que escolheram essa via.
As perturbações no comportamento das pessoas são declaradas
pelas próprias e são conhecidas por todos os que frequentam o terreiro.
B., diz: “Eu era uma mulher bastante perturbada. Ao longo de 5 anos, fui
afligida por acessos de violência inexplicáveis, para os quais a medicina
não conseguia encontrar solução. Assim sendo, decidi procurar algum
tipo de ajuda espiritual, já que os médicos me consideravam doente
mental, aconselhando-me o internamento num Manicómio”. Na altura
em que esta senhora recorre ao pai-de-santo ele não tinha ainda estru-
turas que apoiassem a sua actividade em Portugal pelo que foram ambos
ao Brasil, onde foi feito o primeiro ritual curativo. No seu depoimento,
B. afirma: “voltei do Brasil uma mulher renovada. O meu Bori, realizado
em Outubro de 2001, teve um efeito espantoso na minha vida,
conseguindo eliminar de uma vez por todas os acessos de violência que
eu padecia. Esses acessos, tais quais ataques de epilepsia, atormentavam-
-me, já que manifestavam-se a qualquer hora e em qualquer local.
Prejudicavam tanto a minha vida pessoal como a profissional, já que os
ataques surgiam inclusive nas minhas horas de trabalho, afastando e
incomodando os clientes do meu estabelecimento comercial. Era tal a
violência dos meus acessos, que nem os meus três filhos e o meu marido

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eram capazes de me segurar. Por último, a minha própria família


começou a afastar-se de mim, pelo incómodo que a minha presença
causava”. Em Agosto de 2002 teve lugar a sua feitura e a sua ligação
ao terreiro tornou-se mais efectiva. Os distúrbios não se repetiram.
Nas narrativas sobre o modo como as pessoas chegam ao terreiro
de candomblé repete-se o discurso sobre os fracassos quando
recorreram à ciência biomédica e a satisfação produzida pelo encontro
com o candomblé, especificamente com o terreiro em análise e o seu
pai-de-santo.
D., que conheceu o terreiro em Junho de 2002, fez o seu Bori em
Novembro desse ano e a feitura em Novembro de 2003, diz-se
satisfeita pelo contacto com o candomblé e pelo cargo que ocupa,
referindo-se às melhorias do seu estado de saúde e equilíbrio em geral,
desde que teve contacto com o candomblé, através deste terreiro e do
pai-de-santo: “Por padecer de doenças crónica e degenerativa
(Parkinson, Esclerose Múltipla), verifiquei com grande agrado, que a
determinada altura, elas estagnaram no seu desenvolvimento,
provocando em mim uma melhoria bastante significativa. Estes
resultados nunca antes tinham sido alcançados através da medicina
tradicional”. Afirma esta Mãe-Pequena: “por fé, devoção e agrade-
cimento, dedico o meu tempo livre voluntariamente a esta casa, que
deu à minha existência a segurança, esperança, tranquilidade,
equilíbrio e qualidade de vida que hoje tenho e de que tanto preciso”.
A doença sem explicação, a frustração de não obter resposta nem
diagnóstico satisfatório, a aflição que o doente sente perante a situação,
leva muitas pessoas a procurarem alternativas ao recurso à medicina
ocidental. Muitas vezes esse processo estende-se ao longo de vários
anos, como é o caso de E.: “desde a adolescência que sentia um grande
sufoco no peito que me apanhava as costas, sendo uma dor
inexplicável, de uma violência atroz. Não tinha dia nem hora para
aparecer, chegava a qualquer momento. Vivia num constante
desespero, era uma dor de morte.

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Após inúmeras tentativas de encontrar uma solução, tendo


recorrido não só à medicina tradicional, como a todas as vias possíveis
e imaginárias na esperança de encontrar uma solução para o meu
problema, vi os meus esforços revelarem-se infrutíferos, já que
ninguém me conseguia resolver o problema, pois nada me era
diagnosticado.
Em 2005 (13 anos após), conheci a casa (...) que, depois de uma
consulta que efectuei, revelou que a causa do problema que me afligia
era puramente espiritual...
Comecei então a frequentar as sessões de Exú e, numa dessas
sessões, fui invadida por uma extraordinária e inexplicável sensação,
que me levou a perceber e confirmar a origem do meu problema.
Após uma conversa com o meu pai-de-santo, conclui que a
solução passaria pela realização de um Bori de Feitura. Graças a esta
decisão, consegui não só estabilizar a minha vida espiritual, como
também a minha vida sentimental”.
K. chegou ao terreiro devido à preocupação que tinha com a saúde
de uma sua irmã. “Desesperada pelos problemas de saúde que
afectavam a minha irmã, dediquei-me a uma procura que culminasse
na resolução dos problemas dela. Percorri vários sítios sem encontrar
uma solução. Orientada por uma pessoa amiga, desloquei-me (...) para
uma consulta – jogo de búzios – com o pai-de-santo desta casa. Em
toda a minha caminhada, em nenhum dos sítios que estive encontrei
um jogo que me tocasse tão profundamente. Apaixonei-me pelo rigor,
pela verdade e sinceridade que me foram transmitidos. Graças a estas
descobri que também eu precisava de orientação, porque me
encontrava no fundo do poço sem saber.
(...) Integridade, honestidade, amor e dedicação, apenas algumas
das qualidades desse homem que me orientou. Ao longo da minha
caminhada, repleta de dúvidas e espinhos, foi a amizade pelo meu pai-
-de-santo um dos principais pilares da minha permanência (...).
O meu percurso espiritual começou em Agosto de 2003 com um
Bori, tendo tido sequência em Maio de 2004 com a realização de um

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Bori de Feitura. Graças às mudanças que consegui incutir na minha


vida, evoluí espiritualmente, tendo sido então agraciada com uma
Feitura em Agosto de 2006. Esta Feitura fez de mim uma Filha de
Santo raspada no santo, pela mão do Pai (...).
Como Filha de Santo raspada, tenho a meu cargo algumas tarefas,
nomeadamente ajudar as Ekedes nas compras e confecção das comidas,
entre outras tarefas para as quais for requisitada. No entanto, faço da
passagem dos meus conhecimentos aos visitantes e outros Filhos de
Santo uma responsabilidade acrescida, (...) somos todos uma grande
família. Dedico-me de corpo e alma a todas as tarefas que me são
dadas, das mais humildes, até às mais pesadas em termos de
responsabilidade. Executo-as todas com a mesma dedicação e
empenho, sem pedir nada em troca.
(...) Amo esta nova família que recebi sem pedir. Hoje em dia sou
uma pessoa completamente diferente, tenho equilíbrio e paz interior. É
mais o que tenho, para o pouco que dei, afinal, recebi a saúde da minha
mãe, da minha irmã, e a minha própria. Dedico o que posso a esta casa,
na certeza de que estou no melhor caminho possível”.
Estes testemunhos revelam como o trabalho no terreiro é discipli-
nador e diferenciado, de acordo com a progressão no conhecimento do
candomblé e, consequentemente, com o lugar que os adeptos ocupam na
respectiva hierarquia. O ambiente familiar que é referido implica união
dos membros e afecto entre eles. Esse ambiente é construído através do
trabalho e da compreensão de todos quanto ao esforço que exige a
dedicação ao candomblé como meio de entender o mundo e de poder
operar nele de modo satisfatório. Os problemas dos membros são
socializados, para que os adeptos lembrem a sua progressão desde que
chegaram ao terreiro, bem como a razão das suas faltas e dos seus
fracassos, e para que através das atitudes manifestem a sua compreensão
dos problemas dos outros, sejam ou não membros da comunidade.
O tom das declarações transcritas repete-se na oralidade, na
convivência do grupo, nas placas que estão na entrada do novo terreiro,
nas quais estão gravados testemunhos dos adeptos. O valor da palavra

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remete-me para as de Verger (1972, citado por Dion 2002: 101): “Entre
os iorubás, a transmissão oral do conhecimento é tida como o veículo do
axé (...). O conhecimento, transmitido oralmente, tem o valor de uma
verdadeira iniciação pela palavra agente. A iniciação não se passa ao
nível mental da compreensão, mas ao nível dinâmico do comportamento.
Ela está fundamentada nos reflexos e não no raciocínio, reflexos
provocados por impulsos provenientes de um fundo cultural que
pertence ao grupo e que é válido sobretudo para ele”.
A tolerância dos adeptos relativamente a comportamentos de
quem recorre ao candomblé para equilibrar a sua vida revela a
capacidade que tem esta religião para se adaptar a diferentes terrenos e
para integrar indivíduos em dificuldade. São vários os exemplos de
casos de toxicodependência entre os adeptos e a suspensão desses
problemas, após a entrada na comunidade religiosa.
Diz N.: “Parei com vício da bebida e consegui finalmente
organizar a minha vida”. T., afirma: “Enveredei por uma vida de crime,
fui viciado em droga, atingindo finalmente o fundo quando me vi
entrar numa prisão. Tomando consciência dos meus maus caminhos,
tentei me recuperar de toda essa desgraça sozinho. Apesar de tudo, não
consegui. Graças à minha irmã, conheci (...) o Pai (...), onde recebi
uma grande energia positiva. Consegui então, através do Pai (...),
iniciar uma nova vida material e espiritual. Hoje sou outro homem,
digno e de bons costumes para com a sociedade.
Sou hoje um seguidor e defensor deste Axé, que se preocupa com
os bons princípios do ser humano, que leva uma doutrina de muito
respeito com os espíritos e segue os bons mandamentos da vida. A
minha vida é hoje muito mais espiritual que material”.
Os depoimentos prestados sobre a resolução de um problema
grave de saúde através do recurso ao candomblé revelam reflexões
sobre o assunto e manifestações de gratidão aos membros do terreiro e
ao seu pai-de-santo. No depoimento seguinte a explicação para uma
cura fica dentro do foro religioso, ela é atribuída à ligação ao terreiro e
ao que nele se passa, bem como, mais uma vez, é feito o confronto com

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a ciência biomédica. Diz R.: “Ao Pai (...) tenho uma gratidão especial,
porque (...) cuidou do marido de uma colega de trabalho que estava em
risco de vida, pela necessidade de um transplante de coração. Durante
as 4 semanas que antecederam a sua transferência do Hospital de
Lisboa para Coimbra, o mesmo esteve em risco de vida, até que, na
véspera da ida, aconteceu “um milagre”, expressão dita pelos próprios
médicos à minha colega. Eles não tinham explicação para o que
aconteceu e disseram-lhe: “Foi mão divina, acreditam em outras
forças? Isso aconteceu esta noite, com o seu marido”. O facto
aconteceu há dois anos, não tendo sido necessário o transplante.
Passado um mês, foi-lhe possível recomeçar a sua vida profissional,
encontrando-se bem actualmente. Os médicos não entenderam, mas eu
sim. Através de mim e com a minha Fé e dedicação, o Sr. Tranca-
-Ruas13 tratou-o sem eles terem conhecimento”.
No caso seguinte, a dor, o sofrimento, que provoca a doença de
um familiar, por um lado, e a fé no candomblé e no seu pai-de-santo,
por outro, são elementos decisivos para a permanência do adepto no
terreiro ao longo dos anos. Segundo U., “tive na dor a minha principal
motivação, dor essa que a minha família sentia pela doença que
assolava a minha mãe, e que médico algum conseguiu diagnosticar.
Assim, quando descobri que a doença da minha mãe tinha sido
aliviada, decidi conhecer a casa que possibilitou essa cura. Foi assim
que conheci o Pai (...).
Borizado em Dezembro de 2001, recebi o cargo de Ogan em
Junho de 2004. Tenho a meu cargo o auxílio directo ao pai-de-santo
nas diversas tarefas espirituais, assim como a realização de sacrifícios
para as Entidades cultuadas no Ilê14. Faço também questão de passar
aos visitantes e Filhos de Santo normas e regras de conduta, visando a
transmissão das boas práticas e costumes deste Ilê, evitando assim
condutas menos próprias num local de culto.

13 Entidade incorporada pelo pai-de-santo nas sessões de Exú.


14 Em língua iorubá, “terra, chão, lar, terra natal”. No caso, o terreiro de candomblé.

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Se pela dor entrei, por amor fiquei. Um ano após o início do meu
casamento, eu e a minha esposa decidimos aumentar a nossa família.
Seguiram-se 3 anos, ao longo dos quais a minha esposa tentou
engravidar sem sucesso. Após um trabalho espiritual realizado pelo Pai
(...), não só conseguiu a minha esposa engravidar, como também, dois
anos após o nascimento do meu filho (...), ele ganhou uma irmã (...). A
felicidade passou assim a ser uma constante nas nossas vidas. Mas as
mudanças na minha vida não cessaram por aí. Por motivos alheios à
minha vontade, eu era um viciado no jogo. Fazia do casino e do bingo
a minha segunda casa, o que naturalmente criava-me bastantes
problemas no lar, não só pela minha notável ausência, mas também
pelas dificuldades financeiras que este hábito criava à minha vida
familiar. Mais uma vez, com o auxílio deste Ilê, consegui vencer este
obstáculo, o que trouxe a estabilidade e harmonia no lar.”.
Como afirmei, centrei-me nos casos de pessoas que recorreram ao
candomblé devido a doença. Esta categoria não é tão marcada no
candomblé quanto noutros universos que a interpretam e classificam.
Juntamente com ela, a concepção de pessoa, que integra forças ou
energias que a perpassam de modo dinâmico, e os condicionalismos da
existência humana, são elementos que remetem para uma concepção
integradora da doença em causa, a qual é interpretada, consoante os
casos, como a manifestação de um desequilíbrio, um desajuste no
comportamento, uma desarmonia nas relações sociais, uma
instabilidade, uma insatisfação que conduz a rupturas no que é
considerado como uma normal interacção entre o indivíduo e o meio.

CORAÇÕES ABERTOS, CAMINHOS ABERTOS – INTEGRAÇÃO

Existe uma forte semelhança entre o que é descrito por Lépine


(2000), a propósito do trabalho que efectuou em dois terreiros em
Salvador da Bahia, Brasil, e o que pude observar, particularmente no

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terreiro onde trabalho, perto de Lisboa. A autora afirma (2000: 139 e


140) que “candomblé não é folclore, nem é apenas religião ou
ideologia, quer entendamos por ideologia uma visão globalizante do
mundo, quer entendamos uma fantasmagoria, um conjunto de ideias
falsas, que disfarçam a situação real de um grupo oprimido. Trata-se de
sociedades, de comunidades com vida própria. Um terreiro de
candomblé tem sua gente, seu pedaço de terra, suas técnicas
tradicionais de trabalho, seu sistema de distribuição e de consumo de
bens, sua organização social, bem como seu mundo de representação.
O terreiro insere os homens em novas relações, articulando-se, no
entanto, ao nível da infra-estrutura, com a sociedade de classes, já que
muitos de seus membros pertencem simultaneamente aos dois
sistemas, e que parte dos rendimentos da comunidade provém do
trabalho destes membros como elementos de uma classe inserida na
sociedade capitalista.”
A propósito das diferenças de organização em diferentes terreiros,
que se verificam no Brasil e também em Portugal, diz Prandi (2005:
101): “O candomblé, como as demais religiões, está sempre em
movimento, em mudança. Quando se compara a religião dos orixás que
hoje se professa nos terreiros brasileiros com aquela que ainda hoje
resiste em solo africano, muitas são as diferenças, como são
igualmente diversas as práticas e concepções religiosas encontradas
aqui e em Cuba, e mesmo entre diferentes denominações brasileiras,
cubanas e de outros países americanos. Muita mudança teve que
acontecer no processo de instalação na América das antigas religiões
dos escravos. (...) Religião que não muda morre”.
As pessoas que integram o terreiro têm profissões variadas15 e a
maior parte delas conheceu-se no terreiro. As horas, os dias, os anos pas-

15 Optei por deixar os testemunhos sem referência à profissão dos declarantes, para deixar o
texto mais “limpo”. Como complemento do que afirmo no texto acima, eis as respectivas
profissões: A – encarregada de refeitório; B – empresária; D – reformada da Função
Pública da Administração Local; E – empresária; K – doméstica; N e T – ajudantes de
culto do candomblé; R – administrativa/coordenadora; U – condutor de pesados.

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sados juntos no terreiro, com a motivação de viverem o candomblé, com


regras próprias de convivência, cimentou as relações entre os adeptos.
As “festas” decorrem com organização, mas sem crispação, ainda
que as tarefas sejam muitas e a azáfama colectiva seja evidente. “As
coisas” no candomblé têm de acontecer no momento certo e são os
orixás que determinam o tempo. Às vezes há pressa, mas é raro. A hora
marcada e o atraso são ambos relativos, quando se entende que os orixás
marcam o tempo de acontecer. O tempo de preparação das comidas, dos
objectos que devem estar presentes no ritual, das roupas (impecavel-
mente limpas, no trabalho e na cerimónia, nos rituais curativos e na
“festa”, especialmente coloridas na “roda” de orixás), tudo isso – e mais –
implica imensa dedicação e trabalho e deve acontecer no momento certo.
O tempo não é só, nem sobretudo, o do relógio, esse é o tempo
dos homens, é preciso que tudo se acerte, que os vários trabalhos,
tarefas, ocupações, conversas, arranjos, disposições dos filhos e do pai-
-de-santo estejam em conjunção, que o momento seja propício, esse é o
momento em que se pode começar o que todos esperam e que é feito
em conexão, em concordância com os orixás, os senhores do tempo e
da hora certa em que os acontecimentos decorrem.
O que também se celebra é o sucesso da empresa que é preparar e
participar numa “festa”. O encontro começa cedo e a preparação da
“festa”, ou mesmo de um ritual mais simples, começa dias antes, com
as compras, efectuadas pelas mulheres, de tudo o que é preciso para
que ela decorra de acordo com os preceitos do candomblé.
No terreiro em análise há tarefas específicas destinadas aos
homens e às mulheres 16 . Elas cozinham 17 , organizam, fazem e

16 A propósito da importância das mulheres e do trabalho que está a seu cargo nos terreiros
de candomblé, lembro o exemplo do terreiro da Casa Branca do Engenho Velho (ou “Ilê
Axé Iyá Nassô Oká”), em Salvador da Bahia (historicamente, este é o primeiro terreiro
de culto africano na Bahia e em todo o Brasil), no qual desde a fundação só se faz mãe-
-de-santo (isto é, nunca houve um homem chefe do terreiro), e o trabalho que ali
desenvolveu Maria Salete Joaquim (2001).
17 A cozinha onde se prepara a comida para os orixás é separada daquela onde se prepara a
comida para os participantes.

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orientam inúmeras acções (de acordo com o lugar que cada uma ocupa
na hierarquia) na casa principal, na sala onde decorre o ritual, nos vários
espaços nos quais têm de intervir para que tudo esteja de acordo com os
preceitos religiosos. Elas mudam de ocupações, tratando da comida, da
ordem e da limpeza, do bom ambiente em que decorre a convivência,
dos filhos carnais e dos filhos-de-santo que necessitem da sua acção,
despindo e vestindo roupas, pendentes das directivas do pai-de-santo,
sempre separadas do universo dos homens, que corre ao lado do seu.
Nesse universo, as ocupações são os trabalhos pesados, o transporte e a
ordenação de alguns objectos, os consertos que exijam força física, as
construções, mas também o sacrifício de animais, a preparação dos
atabaques e dos outros instrumentos rituais, os trabalhos desempenhados
de acordo com o lugar que cada um ocupa na hierarquia do terreiro e
com as respectivas funções e tarefas que lhes estão adscritas.
A grande odisseia do trabalho masculino ocorreu com a
construção do novo terreiro. As mulheres quiseram participar, e
algumas delas fizeram-no, até ao momento em que o pai-de-santo pôs
cobro ao que era uma verdadeira violência para as mulheres
envolvidas, muitas delas com bolhas nas mãos e outros problemas que
manifestavam a dificuldade que sentiam em suportar o trabalho pesado
de construir casas, levantar muros, carregar tijolos, fazer cimento, etc.
Por outras razões, e também por determinação do pai-de-santo,
homens e mulheres comem separados, trabalham separados, convivem
separados, ainda que as pessoas e os grupos se cruzem constantemente.
Mesmo em dias de “festa”, seja na sala ou no pátio onde se come, há
mesas para homens e mesas para mulheres, organizadas de acordo com
a hierarquia do candomblé e com a atenção especial que se deve aos
convidados.
Esta organização é determinada pela vontade do pai-de-santo que
não quer “confusões” como as que diz ter assistido no Brasil, onde,
segundo ele, muitas pessoas frequentam o candomblé pela ideia de
poder encontrar aí par amoroso, álcool e comida. A preocupação do
chefe religioso é manter o respeito pelo culto, evitando ambiguidades

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nas relações entre as pessoas que frequentam o terreiro e intenções não


desejadas nos que a ele recorrem. Não é consumido álcool, a comida é
sã, suficiente e sem luxos, mas confeccionada com cuidado e
dedicação. Os casais estão constituídos e frequentam o terreiro com os
filhos. Aqui não há “paqueras”, porque, diz-se, “encantamentos” só
com os orixás, encantamentos amorosos são para fora das actividades
relacionadas com o candomblé e também têm regras18.
Neste contexto, julgo adequada a apreciação de Lody (1987: 23),
segundo a qual, “transgredir as determinações que impõem os limites
do ser homem e do ser mulher nos postos de mando e hierarquia de
cargos é romper a unidade religiosa, com consequências inclusive
sobre o axé, ponto intocável e fonte geradora de toda a engrenagem da
temporalidade e das intervenções dos deuses no poder dos homens.”
No terreiro em que faço trabalho de campo é fomentado o respeito
pela família e por relações amorosas estáveis e legalizadas. Não há
censura ou comentários à homossexualidade e, em geral, as escolhas
sexuais não se comentam abertamente, nem se exibem. A própria
comunidade integra um número elevado de casais já constituídos,
alguns deles casados pelo registo civil e pelo ritual do candomblé.
Não se rejeita uma pessoa pelo seu passado, por mais censurável
que ele seja e essa atitude é determinada pelas próprias regras religiosas.
Aos olhos dos valores do candomblé, todos podem ser recuperados,
todos podem ser recebidos. Quem tenha “o coração aberto” será bem
recebido no candomblé, que é apresentado como uma comunidade de
indivíduos que não fecham o seu coração a alguém que peça ajuda. Para
quem traga um coração aberto, os caminhos da vida abrem-se, com a
ajuda dos orixás. Essa é uma frase proferida com frequência neste

18 Já o candomblé da Bahia, segundo Lima (2003: 174 e 175), “apresenta em sua estrutura
uma forma extrema de evitação de relacionamento intragrupal que é a interdição de
relações sexuais e casamento entre seus membros. Os irmãos, pais e mães-de-santo são
proibidos de manterem relações de sexo, exactamente como nos sistemas familiares
tradicionais entre parentes de santo.
Essa interdição é uma das formas mais respeitadas do que nos candomblés de nossa
análise, se chama de euó ou quizila (...) “coisa proibida” (...)”.

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terreiro, como um voto, a manifestação de um desejo, a revelação do que


se vive no candomblé: “corações abertos, caminhos abertos”.
Mais uma vez, encontro semelhanças entre aquilo que observei e o
que foi analisado por Lody (1987: 24 e 25) em terreiros de candomblé,
em Salvador, Bahia: “Um forte e elaborado parentesco ditado pela
hierarquia e pela iniciação forma uma verdadeira família, sujeita a
deveres (...). Os membros de um terreiro assumem um tipo de relacio-
namento que reproduz os princípios de uma família ordenada por laços
consanguíneos. O chamado parentesco ético, moral e religioso do
candomblé assume um papel de coesão e manutenção do poder
estabelecido (...). Cada terreiro de candomblé é uma família, onde a
dirigente é titulada de mãe e o dirigente de pai, ampliando-se esses
apelos hierárquico-afectivos para os ogãs, também pais, e equédis,
também mães. (...) Essas designações, a princípio, parecem estranhas
dada a quantidade de mães e pais que um filho-de-santo incorporará na
sua família não-consanguínea”.
O ambiente é cálido, os que chegam são bem recebidos e, se é a
primeira visita de alguém ao terreiro, os adeptos, discretamente,
procuram saber quem é. Não há desconhecidos a circular pelo terreiro.
Se ninguém conhece o recém-chegado, um dos ogãs ou uma das ekedes
procurará informação junto do desconhecido, para saber como chegou
até lá, por que meios, através de que pessoas. Tudo isso é feito com a
maior discrição e cortesia. Uma vez identificada a pessoa, ela é
recebida com cordialidade, encaminhada, acompanhada e, sempre que
necessário, são-lhe dadas indicações sobre o modo de se comportar em
diferentes situações que podem ocorrer. Ao longo dos diferentes
momentos relevantes na vida do terreiro há adeptos que entre as suas
funções têm a atenção que devem prestar à forma como os presentes se
comportam, ao modo como estão vestidos, ao lugar que ocupam. Tudo
em nome do candomblé, para que a “festa” corra bem, para que
ninguém destoe e tudo fique “odara”19.

19 “Bonito e bom” – Prandi 2005, p. 306; “bom e bonito, útil e belo” – Luz 2002: 190;
designa as qualidades de “eficácia e beleza” – Luz 2002: 97.

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O objectivo principal deste comportamento é agradar aos orixás,


que gostam de harmonia, beleza, persistência nas iniciativas, sucesso
nas empresas a que se propõem os seus filhos. É nas “festas” que se
juntam mais pessoas no terreiro que começou a ser construído em 2004
e que está pronto, com os orixás organizados por grupos, em diferentes
edificações, desde o início de 2009.
A construção do novo terreiro foi feita num terreno agreste, onde só
havia uma casa em ruínas. Com a dedicação e o trabalho dos adeptos,
aos fins-de-semana, ergueu-se do chão uma nova casa e as dependências
que hoje existem. A construção, que teve várias etapas ao longo dos
anos, é narrada com um misto de alegria e de orgulho pelos muitos
envolvidos. Hoje, existem um terreno cuidado e murado, uma casa
ampla, com duas salas e três quartos, um salão para as “festas” e as
sessões de orixás (uma por semana, para além das “festas”), três casas de
banho, duas cozinhas, cerca de 8 edificações para os orixás e para os
assentamentos, uma área para os banhos rituais, um parque infantil, uma
zona para os animais destinados aos sacrifícios e uma área de árvores e
plantas, maioritariamente relacionadas com o candomblé.
Festeja-se os orixás, segundo os dias do calendário religioso.
Festeja-se os orixás, que ajudam aqui na terra os homens e as mulheres
que lhes rendem culto e que vivem de acordo com as suas regras e o
seu mundo. No entanto, perceber como se organiza a hierarquia e como
estão distribuídas as tarefas e quais os princípios que governam a
convivência não é suficiente para perceber como funciona o terreiro.
Um elemento fundamental que mantém a comunidade coesa é o
acompanhamento constante do pai-de-santo aos seus filhos-de-santo.
As diferentes posições que cada um ocupa não determinam qualquer
tipo de limitação no acesso que todos têm ao responsável máximo do
terreiro. As dúvidas, as angústias, os medos, as doenças, o emprego ou
a falta dele, os relacionamentos amorosos, as mortes e os nascimentos,
enfim, os vários episódios que marcam a vida das pessoas são comen-
tados com o pai-de-santo, que tem a seu cargo o aconselhamento, a

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ajuda, o apoio dos seus filhos. Não só dos seus filhos, mas também dos
clientes, que vêm e podem ficar durante o tempo de uma sessão, de
uma consulta, de um aconselhamento, mas que podem juntar-se ao
grupo e abraçar o candomblé como a sua religião, como uma nova
forma de pensar, de entender o mundo, de se orientar na vida, de viver.
Os adeptos reúnem-se todos os fins-de-semana. As comidas são
consumidas em grupo. Alguns dos adeptos ficam a dormir na casa,
outros vão e regressam no dia seguinte. São vários os casais com
filhos, que passam esses fins-de-semana convivendo, comentando a
sua vida, conversando sobre assuntos diversos, relacionados com a sua
profissão, os seus interesses, anseios ou preocupações, enquanto
cuidam as crianças e elas brincam umas com as outras.
Diz Lody (1987: 23): “Cada tarefa no candomblé (...) é alvo de um
aprendizado sistemático, orientado por pessoas mais velhas, experientes
e altamente conhecedoras de cada mister. Assim, a iniciação religiosa
integra-se ao aprendizado especializando-se para cada função que o
noviço receberá após a passagem da vida comum para o axé, visto aí
novamente como o elo insubstituível dos deuses com os homens em tudo
aquilo que ele ocupa, faz ou conhece, dentro e fora do terreiro”.
Claro que nem tudo é organização, hierarquia, ordem. Há
momentos, pessoas, sentimentos que desequilibram, que criam insta-
bilidade, tensão. Os ciúmes, por exemplo, são uma constante no
terreiro. O ambiente é semelhante ao de uma família unida e, assim,
parece normal aos próprios envolvidos que os filhos tenham, com
frequência, manifestações daquilo que categorizam como ciúmes.
Como escreve Barcellos (1995: 129), “Divergências são normais.
Porém, quando uma Comunidade parte para o campo do desentendi-
mento total, das intrigas, e isto se torna um hábito, compromete a
energia da Casa e o equilíbrio do Axé”. Mais uma vez, é o pai-de-santo
que avalia, arbitra, concilia e resolve os problemas de modo a que o
ambiente não se degrade. Ciúme é considerado como manifestação de
afecto, o que é desejável no terreiro, em demasia desloca da comuni-

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dade para o indivíduo uma atenção exagerada que pode criar desequi-
líbrios indesejáveis. Se o passado de todos é conhecido por todos é
porque, como já vimos, a verbalização, a narrativa, é valorizada e
considerada indispensável para a resolução do problema. Mas as
palavras podem ser perigosas e devem ser interpretadas, entendidas e
colocadas num sentido que corra a favor do terreiro, não contra, que o
indivíduo em dificuldade seja resgatado e não que arraste o ambiente
colectivo juntamente com a sua desgraça pessoal.
Todos os problemas referentes a pessoas que mantêm alguma
relação com o terreiro tendem a ser socializados – mesmo os
problemas que aqueles que não são do candomblé tenderiam a pensar
serem íntimos ou privados ou circunscritos ao conhecimento do pai-de-
-santo e de quem a ele recorre (seja adepto, cliente ou simpatizante).
Não existe privacidade no sentido que normalmente se atribui à
palavra, porque, segundo o pai-de-santo, “quem não fala do passado e
quer privacidade ainda não deixou o passado para trás”. Esta frase
explica sucintamente boa parte da vida da comunidade e o facto de se
falar abertamente das dificuldades nas relações amorosas, das doenças,
de aspectos mais ou menos sombrios da vida dos adeptos. A aceitação
do passado de cada um, por parte da comunidade dos filhos-de-santo,
só necessita de uma manifestação de vontade de mudança de quem
recorre ao candomblé. Isso mesmo se pode perceber quando o pai-de-
-santo diz que “não devemos ter vergonha do que fizemos no passado,
mas do que fazemos no presente ou faremos no futuro”.
Uma vida nova começa quando se entra no candomblé. Não há
acto, hábito, atitude, comportamento, que não possa ser resgatado com
a entrada no candomblé, com a aceitação das suas regras, a qual se
deve manifestar em atitudes adequadas à vontade de mudança do novo
adepto. Para ele é um mundo novo que começa. O passado servirá só,
ao ser recordado, para servir de exemplo, para lembrar o caminho que
foi feito depois da entrada na comunidade. Daí para a frente começa
uma nova contagem das boas e das más atitudes e o passado torna-se

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uma referência, que não deve ser esquecida, mas que não deve pesar no
espírito e nos actos do adepto, do cliente ou do simpatizante. No
candomblé, se as pessoas estiverem de corações abertos, os caminhos
também estarão abertos à sua frente. Segundo os adeptos, tudo isso
acontece graças aos orixás, que reconhecem a generosidade dos
corações dos seres humanos e que retribuem transmitindo-lhes as suas
energias, abrindo horizontes, resolvendo problemas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O candomblé, para além de ser uma forma de entender o mundo e


de actuar sobre ele segundo um código ético e religioso, sustenta-se
numa comunidade estruturada, com uma hierarquia conhecida por
todos os envolvidos, a qual repercute no quotidiano dos adeptos em
diferentes funções e tarefas que lhes são atribuídas, bem como no
conhecimento de todos daquilo que é esperado da parte de todos e de
cada um, o que faz desse conjunto de adeptos uma verdadeira comu-
nidade de seres humanos ligados entre si, solidários na fé e na acção.
A doença é um tema recorrente na explicação dada pelos adeptos
sobre a sua adesão ao candomblé. Esses e outros problemas que não
abordei neste texto, são apresentados, socializados, discutidos entre
todos e analisados e resolvidos pelo pai-de-santo, recorrendo à teoria e
à prática do candomblé. Esta forma de convivência entre os membros
da comunidade é particularmente relevante no reforço da fé dos
adeptos e na união entre eles, em torno do pai-de-santo.
A vida comunitária, sustentada no trabalho colectivo e no sistema
de atitudes estabelecidos pela tradição e pelas determinações do pai-de-
-santo, é o suporte quotidiano desta religião, o sustento espiritual dos
adeptos e a base da estabilidade que lhes permite entender o mundo e
encará-lo com determinação e confiança acrescidas.

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CONCLUSÃO
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Justiça, cidadania, migrações e saúde

Josep Maria Comelles*

* Doutor em Medicina pela Universidade de Barcelona. Doutorado em


Antropologia Social pela École des Hautes Études en Sciences Sociales
(EHESS) de Paris. Especialista em Psiquiatria. Especializado em Antropologia
Médica e História da Ciência. Professor na Universitat Rovira i Virgili,
Tarragona
Tradução de Luís Silva Pereira
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Quando o bispo Basílio fundou em Nicea o primeiro hospital em


320 d.C., a sua intenção era acolher os desvalidos da numerosa colónia
de homens imigrantes, que vinham de zonas rurais e careciam de
família e suporte social na cidade (Miller 1997). Velava Basílio pela
sua cidade – civitas, polis –, e a instituição que criou, o hospital – a
hospitalidade (ver Gotman 2001) –, era um dispositivo que se situava
no exacto centro de um modelo de justiça redistributiva que buscava
assegurar a paz social (Assier-Andrieu 2000). Vinte séculos mais tarde
os fluxos migratórios nas nossas sociedades exigem respostas das
nossas actuais civitas, isto é, da sociedade civil e das suas instituições
representativas, já que os fluxos migratórios, ainda num contexto de
opulência, continuam a suscitar os mesmos problemas de acolhimento
e hospitalidade que ontem e dão lugar a debates sobre como acolher,
como atender, como reformular a noção e a prática de suporte social e
atenção em situações de crise, como obter justiça.
No entanto, algo mudou na hospitalidade. Os modelos já não são a
hospitalidade individual, a exercida pelos grupos primários, mas as
formas e as funções da hospitalidade colectiva. Se em Nicea era o
bispo que tratava de compensar o desinteresse dos curiae – as
autoridades civis – pela justiça, na Baixa Idade Média e até hoje,
actualmente são as municipalidades, as fundações privadas e o Estado
a constituírem-se como as peças-chave na prestação de serviços, tendo

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a justiça como uma das suas funções fundamentais no campo da


vertebração do social. Os sistemas de seguro social estenderam
universalmente à cidadania dispositivos de atenção sanitária, os quais
pela sua própria natureza não deveriam – ainda que por vezes o façam
– distinguir entre cidadãos de primeira ou de segunda classe, porque a
noção jurídica de cidadania, mesmo na sua extrema diversidade, não
aceita etiquetas.
Falo pois primeiro de sociedade e de justiça, só agora de médicos
e de medicina. A hospitalidade, a assistência, são âmbitos globais de
sociabilidade dentro dos quais estão a atenção às doenças e à saúde.
Mas a medicina e os médicos só são alguns dos mediadores e
ferramentas que tornam possível a justiça, mas não são os únicos nem
resolvem todos os problemas. Nem sequer, historicamente falando,
foram tão indispensáveis quanto hoje. Por isso falamos de processo de
medicalização para explicar, a partir de uma narrativa histórica, a sua
actual hegemonia na prestação de serviços públicos desde um ponto de
partida na Baixa Idade Média muito mais modesto (Garcia Ballester et
al. 1989). Hegemonia construída a partir de um espectro de intervenção
que variou com o tempo, já que tanto as grandes epidemias quanto a
morbimortalidade massiva por endemias de doenças infecto-
-contagiosas ou por fome deixaram de ser o seu objectivo na Europa,
ainda que continuem a ser indispensáveis em países menos
desenvolvidos. Campanhas que partiam da ideia de uma doença de
base biológica que atravessava todas as capas sociais, “le pauvre en sa
cabane ou le chaume le Louvre, est sujet a sa loi/ et la garde qui veille
aux barrières du Louvre n’en défend pas nos Rois” (Malherbe), e essa
porosidade entre os limites sociais obrigou a que os dispositivos
higienico-sanitários incidissem nos focos de miséria da sociedade
porque as epidemias saltavam os limites dos bairros da civitas rica.
Riqueza construída – desde a chamada Revolução Industrial –
pelas mãos de milhões de homens e mulheres que emigraram: no início
desde os meios rurais próximos aos focos iniciais de emergência do

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capitalismo industrial. Posteriormente, desde um hinterland mais


amplo dentro de cada Estado nacional, muito rapidamente mais além
das suas fronteiras, desde os territórios coloniais ou outros países. Mas
também procurando, para além dos mares, aproveitar a boleia do
desenvolvimento dos Estados Unidos, do Canadá ou da América
Latina, ou Nova Zelândia, Austrália ou África do Sul. Alguns à força,
como os escravos africanos ou os delinquentes europeus enviados a
Botany Bay. Depois, desde os finais do século XX, o mundo ficou
pequeno e as migrações convertem qualquer pequeno lugar do Alentejo
ou do Minho num cadinho multicultural.
Que isto tem efeitos sobre o sector saúde é algo de que não cabe
dúvida e este livro, produzido desde o Portugal metropolitano e desde a
cidade que viu e viveu intensamente a complexidade migratória desde
o século XV, torna-o manifesto. Ao princípio a partir de uma viagem
fascinante entre a modernidade extrema, o uso da Internet como forma
de dépaysement cultural (Maia) – para construir o relato da doença
pelos profanos, frente às acções da medicina colonial para implantar as
suas políticas no Ultramar (Varanda), nos tempos do Portugal não é
um país pequeno. Ambos textos falam de comunicação social e de
práticas sociais, falam de formas de aculturação, mas sobretudo falam
de práticas para construir a doença. O caso da doença do sono mostra
uma acção unidireccional bem clássica do que foi a acção sanitária
colonial sob o guarda-chuva de uma “ciência médica” benfeitora da
civilização mas destinada a preservar antes de tudo a saúde do
proletariado que trabalhava nas minas; o outro capítulo mostra como as
redes na Internet – para quem possa ter acesso a ela – se convertem
numa ferramenta de produção global de conhecimento – muito
horizontal e pouco hierárquica – que destrói as fronteiras
administrativas e quase não tem fronteiras linguísticas. Se no contexto
colonial a acção médica quer identificar, taxonomizar e classificar a
doença do sono dentro de uma operação sanitária clássica destinada a
salvaguardar interesses essencialmente económicos, na nova

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sociedade, a construção cultural da hepatite dá lugar à construção de


formas de identidade ubíquas – os hépatants em que os poucos
francófonos que restam podem reconhecer a metonímia do épatant e
que se traduzem pela emergência de uma linguagem de siglas, que
compartilham os hépatants – que combina a terminologia do registo
clínico com a sua ressignificação social e que serve, não sem ironia,
para construir a sua nova identidade pessoal.
Mas o processo de hibridação cultural a que deram lugar as
políticas sanitárias coloniais dentro do processo de medicalização não
deixa de ser um aspecto marginal na posição que hoje ocupa a
medicalização na sociedade global. Se até há um par de décadas este
mantinha o programa traçado na Baixa Idade Média e
institucionalizado desde o século XVIII, hoje há uma mudança
evidente de paradigma, com as políticas sanitárias dos Estados e da
OMS, visto que a indústria da comunicação e dos bens destinados ao
corpo situam o conjunto da população mundial num processo
complexo, multicultural, multifactorial, de discursos sobre a saúde, a
doença ou o corpo, que dá lugar a processos evidentes de hibridação
cultural. Pussetti entra em cheio no tema evocando os processos de
construção da doença e o modo como transformam os corpos em
espaços multiculturais. De Angola e da Internet à Guiné-Bissau, onde
no século XXI ainda ressoam os ecos da colónia que se enquadram
numa dialéctica local, com as transformações sociais e culturais da
sociedade global e a partir do processo de somatização das aflições
cujo objectivo é o marketing de objectos – alguns deles os
medicamentos –, serviços ou comunicação. Mas não só na antiga
colónia africana. Também nos frutos da violência política e económica
nas políticas de refugiados, um feixe que nunca está à margem do
sofrimento e da aflição e que se projecta sobre os sistemas de saúde das
sociedades receptoras e no modo como nestas se verbaliza e a
verbalizam (Santinho). Mas também enlaçam as histórias dos
refugiados, muitos deles emigrantes clandestinos que viajam em

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embarcações frágeis, como nos tempos do tráfico de escravos, e que,


diferentemente destes, que não tiveram quem escrevesse sobre eles,
paradoxalmente, o registo escrito e as entrevistas clínicas dão-lhes um
direito de palavra e a possibilidade de os conhecermos. Refugiados ou
imigrantes legais, as experiências migratórias são complexas e os
contrastes culturais poderosos, em sociedades nem sempre muito
habituadas a gerir a diversidade, por isso Mourão discute os problemas
das rupturas biográficas, das formas que adopta a percepção do
sofrimento e a sua expressão.
O fenómeno migratório incide fortemente e transforma
profundamente algumas velhas concepções antropológicas sobre a
distinção entre biomedicina, ou o processo de medicalização ocidental,
como se prefira, e as chamadas práticas populares. Por isso, os quatro
restantes capítulos encaram como, no contexto migratório, se produz
uma profunda remodelação dos processos de pluralismo assistencial
que subvertem alguns esquemas iniciais. Os mais importantes são dois,
no meu entender: por um lado, a ideia decimonónica de que a
folkmedicina em certo modo precede a biomedicina, algo que está hoje
completamente desautorizado se se contempla como nas sociedades
avançadas também a religião ocupa um espaço na gestão e na
percepção do sofrimento (Sarrò) ou se torna uma ferramenta mais do
dispositivo (Silva Pereira), frequentemente a reboque da incapacidade
do sistema biomédico – do próprio estado do bem-estar – em resolver
aquelas aflições, fruto de contradições sociais e de construções
culturais. A biomedicina não é o último recurso, mas, paradoxalmente,
é o primeiro. Sim, primeiro, automedicamo-nos com medicamentos de
farmácia, depois, vamos às instituições biomédicas, mas depois ainda,
apesar do seu custo marginal, empregamos os recursos marginais, para
irmos mais além das respostas do sistema. Mas também combinamos
magistralmente, nas margens das margens o de além e o de aqui e
assim construímos novas identidades (Carvalho) ou reinterpretamos os
discursos biomédicos (Évora).

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Face à ideia ingénua de que a biomedicina pretende simplificar,


protocolizando, o conjunto da patologia, a antropologia médica conduz
a pôr em relevo a sua complexidade, os seus matizes, as suas margens.
No ponto em que as tendências teóricas da ciência buscam um edifício
de evidência simplista, a antropologia põe em relevo a impossibilidade
de o alcançar para além de algumas receitas práticas limitadas a uma
série limitada de patologias. Como pode medir-se o sofrimento? Como
pode medir-se a dor? Porque sobrevivem mais uns do que outros?
Porque é que na sociedade civil e laica alguns devem recorrer à
religião? Porque é necessária a irracionalidade na saúde e não é só
limitada à arte? Porquê a aflição e não a doença? Porque é que ainda
no século XXI devemos lutar contra a doença para reduzir a aflição? A
resposta a todas estas perguntas não é simplesmente o desdobramento
de dispositivos de uma maneira mecânica, tem que ver com a
hospitalidade e a justiça, algo muito mais amplo, talvez mais vago, mas
que remete directamente para a prática política e para a ideologia –
liberte, égalité, fraternité – que deveria inspirar o desejo de justiça no
mundo actual. Isto obriga-nos a não reduzir a patologia a conceitos
como vulnerabilidade ou biologia, obriga-nos a convertê-la num caso
que está imerso na complexidade e que deve ser compreendido, não só
para tratá-la, o que também deve ser feito, mas para que o conjunto da
cidadania, da civitas, compreenda porque deve ser tratada como se de
ela mesma se tratasse. Porque a sua principal riqueza é ser nosso
património comum, e é assim que poderemos desenvolver melhores
práticas e alcançar maior justiça. São perguntas e interrogações, feitas
a propósito de um feixe de leituras, escritas frente ao Oceano que se
perde no horizonte, desde o Cabo das Tormentas à Lisboa decadente
que tanto me fascina, desde os campos de ouro do Alentejo ou desde as
escarpas de Sagres, desde onde se pode sonhar, no século XXI, que se
contempla a Cruz do Sul na coberta de um veleiro impulsionado pelos
ventos alísios, no mar em que vão e vêm os cidadãos do nosso tempo.

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BIBLIOGRAFIA

ASSIER-ANDRIEU, Louis, 2000, Réflexions sur le droit du “social”,


Cités, Philosophie, politique, histoire, 1, pp. 9-37.
GARCÍA BALLESTER, Luis, Michael R. MCVAUGH, e Agustín
Rubio VELA, 1989, Medical Licensing and Learning in
Fourteenth-Century Valencia, Philadelphia, American
Philosophical Society.
GOTMAN, Anne, 2001, Le sens de l’hospitalité. Essai sur les fonde-
ments sociaux de l’accueil de l’autre, Paris, Presses Universitaires
de France.
MILLER, Timothy S., 1985, 1997, The Birth of Hospital in the
Byzantine Empire, Baltimore, The Johns Hopkins University Press.

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ÍND ICE

AGRADECIMENTOS ................................................................................. 9

INTRODUÇÃO ............................................................................................ 13

PARTE I – GOVERNAR A DOENÇA: HISTÓRIA, POLÍTICAS E PRÁTICAS


Capítulo 1 – O sofrimento como modelo cultural: Uma reflexão antropológica
sobre a memória religiosa na diáspora africana ............................................ 33
Ramon Sarró

Capítulo 2 – Hepatite C: Vivência da doença, do tratamento e da cura ........ 53


Marta Maia

Capítulo 3 – Um cavalo de Tróia na colónia? As missões de profilaxia contra a


Doença do Sono da Companhia de Diamantes de Angola (Diamang) .......... 79
Jorge Varanda

PARTE II – CORPOS QUE SOFREM: IDIOMAS DA DOENÇA


Capítulo 4 – Labirintos do trauma: A verbalização do sofrimento nos refugiados
em Portugal ................................................................................................... 113
Cristina Santinho

Capítulo 5 – Outras vidas, outras histórias: A consciência cultural na narrativa


terapêutica com migrantes ............................................................................ 153
Ana Mourão

Capítulo 6 – Corações queimados: A dor da memória nas narrativas de pacientes


Bijagós .......................................................................................................... 191
Chiara Pussetti

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PARTE III – CORPOS QUE SOFREM: IDIOMAS DA DOENÇARITUAIS E


ITINERÁRIOS DO SOFRIMENTO: PLURALIDADE TERAPÊUTICA
NA ÁREA DA GRANDE LISBOA
Capítulo 7 – Pluralidade terapêutica entre os migrantes guineenses ............. 231
Clara Carvalho

Capítulo 8 – Percepções de risco e práticas de prevenção ao VIH/SIDA entre


jovens de origem cabo-verdiana em Portugal ............................................... 261
Iolanda Évora

Capítulo 9 – Nos caminhos dos orixás – Assistência e vida comunitária num ter-
reiro de candomblé ........................................................................................ 297
Luís Silva Pereira

CONCLUSÃO – Justiça, cidadania, migrações e saúde ............................... 331


Josep Maria Comelles

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