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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Diane Sousa da Silva Lima

FAZER SENTIDO PARA FAZER SENTIR:


Ressignificações de um corpo negro nas práticas artísticas
contemporâneas afro-brasileiras

Mestrado em Comunicação e Semiótica

São Paulo
2017
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP

Diane Sousa da Silva Lima

FAZER SENTIDO PARA FAZER SENTIR:


Ressignificações de um corpo negro nas práticas artísticas
contemporâneas afro-brasileiras

Mestrado em Comunicação e Semiótica

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre
em Comunicação e Semiótica sob a
orientação da Prof.(a) Dr.(a) Ana Claudia
Mei Alves de Oliveira.

São Paulo
2017
Ana Claudia Mei Alves de Oliveira

Banca Examinadora

Rosana Paulino

Maria Aparecida Junqueira


Agradeço à CAPES e à PUC- SP
por tornarem esta pesquisa possível.
AGRADECIMENTOS

“é preciso ter coragem para enfrentar


as coisas da vida, filhinha.”

Peço a benção àqueles que vieram antes, luzes que me guiam e me povoam
e que estão comigo não importa onde eu vá.
Dedico este trabalho a essa memória ancestral, em especial, a da minha bisavó,
Maria Catarina de Souza. Assim, agradeço:
À mamãe, Danúsia Maria Sousa da Silva, por acreditar, confiar e ser a pessoa de
quem herdo o desejo pelo caminho e devo a realização de todos os meus sonhos.
À minha irmã Denise, que ao traçar o seu destino, tornou possível o meu.
À vovó Dag, por ser a guardiã da nossa história. Aos meus tios e tias, primas
e primos, pela nossa união.
À Prof. Ana Claudia de Oliveira pela generosidade e por ter me ensinado a
decifrar os segredos do significado da vida. À Fernando Cordeiro, pelo com-
panheirismo, amor incondicional e por estar comigo em todos os momentos
com a sua tranquilidade e paz. Ao amigo de longa data, Tarcísio Almeida, por
todo o suporte emocional, pelas horas discutidas e pelo alimento do corpo e
do espírito. Agradeço aos dois ainda pelo projeto gráfico que conceberam, e
a Fernando pelas horas de diagramação.
À professora Leda Maria Martins, pela inestimável contribuição do seu conhe-
cimento. À Ana Godoy, pela revisão e acompanhamento. À Mayra Fonseca,
Yasmin Thayná e Juliana Luna, pelo incentivo, amor e carinho de sempre.
Aos colegas do CPS e da PUC-SP. À Jaqueline Zarpellon e Cida Bueno, pelo
suporte e colaboração. À Alexandre Bueno e Luciana Chen, pelas contribui-
ções na qualificação.
À todos os encontros que me fizeram sentir o sentido desta pesquisa e a todos
os artistas e intelectuais aqui reunidos, passagens de criação e transformação.
RESUMO

PALAVRAS-CHAVE: Esta pesquisa analisa os efeitos de sentido de um conjunto de obras e prá-


1. Cultura afro-brasileira. ticas artísticas contemporâneas afro-brasileiras a partir dos mecanismos
2. Práticas artísticas
discursivos da enunciação que configuram os regime de sentido, interação e
contemporâneas.
risco. Analisando um corpus formado por um conjunto de práticas e ações
3. Sociossemiótica.
que intervém nos espaços urbanos, midiáticos e institucionais tendo como
recorte temporal o início do século XXI até os dias de hoje, objetiva-se enten-
der como esse corpo negro por mecanismos enunciativos de suas escolhas
monta arranjos estéticos da plasticidade, figuratividade e tematização de um
conjunto de obras. Ao recombinar discursivamente os arranjos, constroem
novas narrativas, novos sentidos dotados de criticidade que objetivamos
mostrar, colaboram para a desconstrução dos estereótipos raciais. A hipótese
central da pesquisa é de que o fato de um corpo negro destinador assumir-se
enunciador, gozando da sua faculdade própria da condição humana de dar
sentido ao mundo, é capaz através das práticas artísticas, de criar rupturas
que contribuam para fazer sentir os estereótipos raciais do país. A segunda
hipótese é que essas práticas ao criar intervenções nos espaços midiáticos,
urbanos e institucionais rompem os regimes de invisibilidade que, sob efeito
de um racismo estrutural, operam nos circuitos oficiais e legitimadores da
produção cultural nacional. Ao acessar uma memória do corpo, a terceira
hipótese propõe que essas práticas atualizam em ato um conhecimento an-
cestral ressignificando o imaginário social, ­inaugurando novas formas de fazer
e possibilidades estéticas. Usando como arcabouço a semiótica de Algirdas
Julien Greimas, da semiótica do social de Eric Landowski e as contribuições
para a semiótica plástica de Ana Claudia de Oliveira, verificamos que através
da transitividade do se enunciar, o conjunto de obras analisadas mostram que
houveram significativas rupturas nos regimes de visibilidade corroborando
para um processo de ressignificação que se encontra em curso; também, que
ao ser ato de resistência, elas atualizam no presente, uma memória ancestral e
mítica que mantém ligados diferentes tempos e espaços. Ainda, que produzindo
afetações e intervindo nos espaços midiáticos, urbanos e institucionais, vimos
que diante da estrutura do programa racial, as práticas ainda são focalizadas
e restritas, limitando sua amplitude comunicacional. Ao fim, constatamos que
as possibilidades estéticas que inauguram nos apontam um futuro de apren-
dizado onde mais investimento em esteticidade e estratégias de visibilidade
são imprescindíveis para potencializar os seus sentidos ser sentidos.
MAKE SENSE TO MAKE FEEL:
Ressignifications of a black body in afro-brazilian
contemporary artistic practices

ABSTRACT

This research analyzes the effects of sense of a set of Afro-Brazilian KEYWORDS:


contemporary works and artistic practices from the discursive mechanisms 1.Afro-Brazilian culture.
2. Contemporary artistic
of enunciation that configure the regime of meaning, interaction and risk.
practices.
Analyzing a corpus formed by a set of practices and actions that intervene in
3. Semiotics of social
urban, media and institutional spaces, taking as a temporal cut the beginning practices.
of the 21st century to the present day, it aims to understand how this black body
by means of enunciative mechanisms of its choices aesthetic arrangements of
plasticity, figurativeness and thematization of a set of works. By discursively
recombining the arrangements, they construct new narratives, new senses
endowed with criticality that we aim to show, collaborate for the deconstruction
of racial stereotypes. The central hypothesis of the research is that the fact
that a target blackbody becomes an enunciator, enjoying its own faculty of
the human condition of giving meaning to the world, is able through artistic
practices to create ruptures that contribute to make the racial stereotypes of the
country. The second hypothesis is that these practices, by creating interventions
in the media, urban and institutional spaces, break the regimes of invisibility
that, under the effect of structural racism, operate in the official circuits and
legitimating national cultural production. When accessing a memory of
the body, the third hypothesis proposes that these practices actualize in an
ancestral knowledge, resignifying the social imaginary, encompassing new
ways of doing and aesthetic possibilities. Using as a framework the semiotics
of Algirdas Julien Greimas, the semiotics of the social of Eric Landowski and
the contributions to the plastic semiotics of Ana Claudia de Oliveira, we verified
that through the transitivity of enunciating, the set of works analyzed show
that there were significant ruptures in the visibility schemes in support of
a process of re-signification that is under way; also, that by being an act of
resistance, they actualize in the present, an ancestral and mythical memory
that keeps connected different times and spaces. Still, producing affections
and intervening in the media, urban and institutional spaces, we saw that
before the structure of the racial program, the practices are still focused and
restricted, limiting their communication amplitude. At the end, we find that
the aesthetic possibilities that we inaugurate point us to a future of learning
where more investment in aestheticity and strategies of visibility are essential
to potentiate their senses being sensed.
SUMÁRIO

TORNAR-SE MESTRA 9

CONSIDERAÇÕES INICIAIS 13

1 SIMULACROS ENGESSADOS: A LEI DA RAÇA E A RAZÃO NEGRA 39


1.1 A DIMENSÃO ENUNCIATIVA DA LEI DA RAÇA 41
1.2 A RAZÃO NEGRA E A CONSCIÊNCIA OCIDENTAL DO
NEGRO: MEMÓRIAS DA PLANTAÇÃO 45
1.3 PRODUZINDO A DIFERENÇA: ALTERIDADE X IDENTIDADE 51
1.4 DA MANIPULAÇÃO À PROGRAMAÇÃO:
ATUALIZAÇÕES E DISSEMINAÇÕES NO BRASIL COLÔNIA 55
1.5 O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O PROJETO DE
EMBRAQUECIMENTO 60
1.6 ESTEREÓTIPOS E RESISTÊNCIA 66

2 FAZER-SE NEGRO 71
2.1 ESTEREÓTIPOS 73
2.2 RESISTÊNCIA 99
2.2.1 E começa iconoclasta a demolir os mitos 99
2.2.2 Os jogos ópticos em Exu 105
2.2.3 Correntes marítimas 111
2.2.4 Um retorno ao país natal 124
3 PRÁTICAS ARTÍSTICAS CONTEMPORÂNEAS AFRO-
BRASILEIRAS NO SÉCULO XXI 141
3.1 AÇÃO BANDEIRAS – FRENTE 3 DE FEVEREIRO 144
3.2 A TRANSMUTAÇÃO DA CARNE – AYRSON HERÁCLITO 153
3.3 BOMBRIL – PRISCILA REZENDE 157
3.4 WHITE FACE, BLOND HAIR – RENATA FELINTO 162
3.5 ACEITA? – MOISÉS PATRÍCIO 166
3.6 NOTÍCIAS DA AMÉRICA / BANANA MARKET – PAULO NAZARETH 172

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 181


4.1 ENUNCIAR PARA ANUNCIAR: REGIMES DE
VISIBILIDADE, ENCONTROS ISOTÓPICOS E SENTIDOS 183
4.2 JOGOS ÓPTICOS INSTITUCIONAIS 188
4.3 FAZER SENTIDO PARA FAZER SENTIR: RUPTURAS E
RESSIGNIFICAÇÕES 189

REFERÊNCIAS 195
9

TORNAR-SE MESTRA1

Na dimensão mágica, espiritual e ritualística das culturas dos povos


originários e afro-brasileiros, aqueles que um dia foram aprendizes se
tornam mestres e mestras, a partir da sabedoria que apreenderam na
experiência vivida. Muitas vezes se recebe um novo nome e a titulação
é dada pelos demais da comunidade que, vendo a luz do saber emanada
em situações de aprovação nos ritos de passagem, enxergam que, enfim,
aquela pessoa está pronta.

Nesta missão que é dada no diálogo com o invisível, que pode ser nessa ou
em outra vida, é que se reconhece que o tornar-se mestre não se reduz à
cerimônia de titulação, mas na capacidade de crescimento encontrado em
cada desafio pelo caminho. Foi assim na minha casa, com a minha bisavó
Catarina que, atualizando a seu modo em gestos, por vezes cotidianos e
corriqueiros, uma herança coletiva tradicional, faleceu ano passado com
103 anos, sendo uma mulher muito respeitada e consultada por todos, em
nossa cidade, Mundo Novo, interior da Bahia. O que ela nos ensinou com o
fato de só saber escrever seu próprio nome é que o conhecimento não está
atrelado somente a uma função científica, mas sobretudo à consciência
1.  Título inspirado na
obra Tornar-se Negro – As relativa às ideias de compreensão e convivência com as coisas e pessoas.
Vicissitudes da Identidade Uma consciência espiritual que respeita o tempo. Que ao ler como o ven-
do Negro Bra sileiro to se move, criando as relações e mudando as coisas de lugar, consegue
em Ascensão Social de
Neusa Santos Souza. Rio enxergar que, por trás de toda adversidade, há sempre uma mensagem
de Janeiro: Graal, 1983. a ser escutada.
10

Assim como nos ritos de aprendizado ou de iniciação dessa gente minha,


foi nos últimos dois anos e meio que passei a compreender o sentido de tor-
nar-se mestra na vida. Sentada numa rede, em meio à Serra da Mantiqueira,
perguntei-me: mas afinal, o que é ser uma mestra? Não o mestrado como
uma titulação que, na ordem prática, é capaz de legitimar o conhecimento
e abrir portas no mundo-capital, mas ele com seu potencial de abrir outras
portas, portas para outros mundos. Uma etapa a ser cumprida para que
encaremos de frente as sombras que o barulho do cotidiano não é capaz
de nos fazer escutar.

Na reclusão e solidão que esse processo solicita, foram as dores empilhadas


e cobertas com centenas de máscaras que passaram a se revelar. Também
as marcas que pousam sobre os corpos racializados e os efeitos dos epis-
temicídios que, diferente dos estudos de caso no texto do livro do vizinho,
tornam-se presentificados na trajetória inscrita nos seus próprios passos.
É ser cobaia do seu próprio laboratório, pressionando com uma das mãos
as feridas e fazendo esforço para não perder, com a dor, um segundo da
consciência, de modo a escrevê-la com a outra.
11

É assim, ao menos, que a mensagem tem chegado aqui, e talvez por isso eu
tenha necessitado de tempo, pois é como se, antecedendo e circundando o
problema da dissertação proposta, eu precisasse compreender algo muito
maior. Semiotizar o significado da própria semiótica na vida: entender o que ela
diz, como ela diz e o que ela me traz. Foi quando tudo passou a fazer sentido.

Recobrar a verdadeira intenção, descer alguns níveis de profundidade, en-


trar em contato com o que está por trás e compreender a ética da estética
da produção de conhecimento. Um buraco misterioso, uma avalanche de
medos: da solidão, da liberdade, dos paradoxos, de não saber lidar com as
escolhas, a dúvida das incoerências e do que é preciso negociar sem que
isso desperte ou potencialize o que pode vir das sombras. Sombras proje-
tadas em todas as outras gavetas e afetos bricolados pela vida. Somado a
isso, foi necessário ainda mais tempo para entender o próprio objeto que,
sobretudo pelas suas deterioradas condições, necessita ser elaborado e
sustentado criticamente, carregando o peso da primeira vez. O quanto me
custa essa costura epistêmica que ronda um objeto tão despedaçado, que
fui atravessada no corpo e forçada a me deter.

Tornar-se mestra
é tornar-se negra.

É produzir um conhecimento que, antes de qualquer coisa,


é produzido no seu próprio corpo. É dar palavras a sentidos
que não tem nome e legitimar saberes em lugares que não
foram feitos para eles.
12
13

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
14

A arquitetura deste
trabalho está enraizada
no temporal. Todo
problema humano deve
ser considerado do ponto
de vista do tempo.
Franz Fanon
15

Nas curvas que desenham cada letra e no contorno de cada palavra,


adormecem os significados mais profundos que dão sentido ao Negro.
Neste gesto escultórico que lhe atribui forma através da própria capacidade
humana de dar sentido ao mundo, esse sujeito alijado da sua capacidade de
enunciação se constrói sob o olhar do seu possuidor, que cria em seu nome
a eterna contradição. Retirar-lhe a capacidade de se enunciar, de produzir
significado e sentido, foram as investidas preliminares para instaurar o seu
processo de objetificação: corpo-exploração, ao qual foi reduzido desde que,
nessa América, aportou, desde que aqui chegou e se fez negro-brasileiro
e, portanto, escravo da nação, condição que, ora física, ora subjetal, nas
suas diversas atualizações, se faz presente até os dias de hoje.

Ao situar-se entre o bem e o mal, o positivo e o negativo, o sujeito e o objeto,


o céu e o inferno, origina-se o que vamos chamar de sua pequena mitologia.
Nela, um percurso opositivo de sentidos se encontram entre o Eu-Branco
e o Outro-Negro. São como caminhos de forças, cabo de guerra semiótico
que, no ato de empregar valores, um tenta prevalecer sob o outro, formando,
como no desenho de uma encruzilhada, sua complexidade existencial: “essa
maneira de fixar a significação e o valor dos objetos a partir de critérios de
ordem instrumental deixa por princípio os seres e as coisas no estatuto de
realidades, por assim dizer, sem alma.” (LANDOWSKI, 2005, p. 94).

Irradiando das letras e das palavras, essa ética da objetificação é plasmada


nas mais distintas manifestações significantes que regem a nossa cultura:
nos discursos, nas práticas, nos objetos; impressos nos gestos mais sim-
ples da nossa cotidianidade e nas mais complexas experiências estéticas.
16

Contudo, o mesmo ato que lhe condena ao enclausuramento do espírito lhe


possibilita a salvação: se o sentido desempenha um valor central na cons-
trução do sujeito, “que é o que o significa e possibilita-lhe dar significado às
coisas do mundo e aos outros seres” (OLIVEIRA, 2013, p.15), ele é também
capaz de criar as condições para dar vida e significado a si mesmo. “Assim
é que a atividade humana como um todo pode ser tomada como uma fa-
culdade performática de fazer o sujeito ser” (OLIVEIRA, 2013, p.15), caminho
que o negro vai trilhar, ao longo dos tempos, no seu levante em busca do
seu estatuto de sujeito nas suas práticas de resistência e visibilidade.

Na investigação por essa estrutura profunda do que foi usurado e fos-


silizado, um inventário léxico nos auxilia a entender estes estereótipos
forjados, simulacros estes que se sustentam até hoje nos dicionários –
considerados os repositórios da sociedade –, consolidando o seu lugar
subalternizante, maléfico e selvagem. No Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa, encontramos a sua primeira definição. Nele, como substantivo,
Negro significa Cor, categoria cromática usada como marcador distintivo e
discriminatório para a construção da diferença sobre a ideia de Raça, seu
segundo significado. Além disso, a cor como formante plástico encontra
no seu aspecto figurativo uma outra isotopia, em que Negro significa o
escuro funesto, ou seja, o mortal, o letal. Negro, portanto, seria o nocivo e
o perigo: o símbolo cromático do medo e da morte.

Negro.
(A) n.m 1 (cor) noir 2 (raça) noir; um negro africano

(B) adj. 1 noir; fazer-se negro; nódoa negra;


nuvem negra 2 (raça) negro; arte negra 3 [fig] negro,
escuro funesto; ver tudo negro.

Como adjetivo, revela-se no Negro do francês Noir, aquilo mesmo que lhe
dá consistência e vida. Dizendo “fazer-se negro”, anuncia-se que ele não
passa de um processo de criação, ficção e efabulação, que, como veremos
no primeiro capítulo, se constrói a partir da Lei da Raça; uma invenção do
pensamento ocidental moderno que, num conjunto de enunciados teo-
rizados cientificamente, transforma o Negro numa figura pré-humana,
sinônimo da inferioridade e subalternidade, com o objetivo de fazer dele
um corpo de exploração. Esta cor e esta raça têm origem e localização.
Marca o território onde o negro africano passa a assumir o papel temático
17

do cativo e do vassalo durante a colonização, e o regime de escravidão. Sob


o Regime de Programação, conforme postulado por Eric Landowski (2014),
que se define pela regulação e prescrição de uma prática, o discurso da
Raça opera através de leis da causalidade. De forma taxionômica, constrói
uma visão segundo a qual a humanidade está dividida em espécies e su-
bespécies. Raça então é a isotopia que, marcada pela cor, confere ao negro
seu significado selvagem e animal, o que vai justificar a sua condição e
significação como escravo, isotopia também recorrente e encontrada no
dicionário Dicionário Caldas Aulete, quando diz que o Negro é:

S.m
11. indivíduo de raça negra
12. escravo

Ou ainda do seu feminino:

S.f
1. Mulher de cor preta
2. Escrava, cativa

Sob a ideia de uma nódoa negra, vemos os traços e sinais que o fazem
virar uma mancha. Sujeira e borrão que contamina a superfície alva e clara,
mas que também pode ser lido como um estigma: a desonra e a infâmia, a
indignidade, a vulgaridade, a miséria e a lama. Ainda, uma afronta, termo
que, apesar de carregar a ofensa e a humilhação, foi na contemporaneidade
positivado pelos jovens como símbolo da resistência afrodescendente.
Carregando os seus nomes e derivados, fez surgir no cotidiano mani-
festações culturais de todas as ordens, os denominados afrontamentos,
o enfrentamento afrodescendente, na busca pela enunciação das suas
verdades e instauração da sua identidade.

A mesma nódoa nos conduz, no feminino Negra, à imagem das feridas, à


doença, a mazela e, mais uma vez, ao perigo da morte.

Negra.
N.f. 1 (raça) 2. Ferida; ter o corpo coberto de negras;
trabalhar como uma negra.
18

Com a nuvem negra, vemos surgir o mau tempo, os maus presságios, a


obscuridade, as trevas e a escuridão. O negrume, que se diz ser:

Negrume.
S.m. 1. Escuridão, trevas, negror, negridão, negrura.
2. Nevoeiro espesso; cerração. 3. Tristeza, melancolia.

Além dos valores investidos sob a ordem moral e ética, aponta-se, no


verbete, uma isotopia de ordem patêmica, que dá nome aos estados de
alma e de ânimo: o sujo, a tristeza e a melancolia.

Da negrura, a sua qualidade como negro, surge a negridão que, no figu-


rativo, significa a crueldade, a perversidade e a ruindade. E também a
falta, o erro e a culpa, sentido que iremos explorar quando tratarmos das
relações entre alteridade e identidade e de como se constrói, na falta, a
produção da diferença.

Negrura.
S.f 1. Qualidade de negro; negridão. 2. Negrume.
3. Fig. Crueldade, perversidade, ruindade.
4. Fig. Falta, erro, culpa.

No Novo Dicionário da Língua Portuguesa, o Negro, além de ser um


indivíduo de raça negra, um ser, portanto, como visto anteriormente, ra-
cializado e involuído, aparece com uma denominação positivada na sua
relação cromática:

S.m
13. a cor de um corpo que absorve integralmente toda
a radiação luminosa visível que sobre ele incide.

Reunião de todas as cores, a cor do corpo Negro seria, por conseguinte,


um corpo múltiplo, diverso e plural por excelência, isotopia que será re-
tomada na história de resistência, ao colocar o negro sob o símbolo da
“diversidade racial”.
19

Tal definição é também encontrada no Dicionário Caldas Aulete, referin-


do-se a essa característica ótica tal como um buraco ou um corpo.

Negro.
S.m 1. A cor do piche; preto
adj. s.m. 2 diz-se de ou individuo de etnia negra
adj. 3 que apresenta a cor negra 4 diz-se dessa cor
5 ÓPT que absorve todos os raios luminosos visíveis
incidentes <buraco n.> <corpo n.>
[...]
ETIM lat. [...] é XV é a data para o subst. ‘a cor do piche’.

Nele, como visto acima, o primeiro significado de negro, datado em sua


etimologia do século XV, refere-se também a cor, dessa vez relacionando-a
com a cor do piche, que se define como:

Piche
S.m
Substância de coloração negra, excessivamente
grudenta, de textura resinosa e gomosa, obtida a
partir da destilação do alcatrão e da terebintina; pez.

Um outro sentido, já positivo, é a sua derivação como Nego, tratamento


carinhoso sobretudo entre negros, mas que, como mostra o verbete, pode
conter uma ambiguidade destacada pelo seu caráter irônico, guardando
uma pejoratividade mimética sobre a forma como se tratam os negros
quando em comunidade:

15. Nego;
16. homem, pessoa, indivíduo; nego | Negro
velho. Tratamento familiar carinhoso mais ou
menos equivalente ao de meu negro. | Meu Negro.
Tratamento familiar, carinhoso, e algumas vezes algo
irônico, equivalente a meu bem, meu amigo, meu
nego | Trabalhar como um negro. Trabalhar Muito
20

Interessante notar que, em todas as análises, Negro só significa pessoa


nesta definição relacionada ao Nego. Negro só seria um indivíduo quando
chamado por Nego. Nesse mesmo dicionário, como adjetivo, a palavra
Negro, além de reiterar a raça e a cor, é reforçada também de forma objetiva,
trazendo a ideia do encardido e sujo, desdobrando-se nos significados de
triste, melancólico, maldito e perverso.

Negro.
Adj.
1. De cor preta. 2. Diz-se dessa cor; preto.
3. Diz-se do indivíduo de raça negra; preto. 4. Preto.
5. Sujo, encardido, preto 7. Muito triste; lúgubre;
8. Melancólico, funesto, lutuoso 9. Maldito, sinistro.
10. Perverso, nefando

Por fim, gostaríamos de dar atenção a mais três sentidos. O primeiro, ao


retomar do Dicionário Houaiss o significado de Negro como definição de
arte negra e arte africana, o qual, conforme veremos no segundo capítulo,
recebe investimentos semânticos que a significam como uma arte menor,
naif e primitiva, ou aquilo que nos conduz ao produto da negrada, enquanto
união coletiva, traço determinante das suas manifestações artísticas:

Negrada.
1. negraria
2. Fig. Grupo de indivíduos dados a pândegas ou a
desordens
3. pessoal, gente

Arte negra apresenta ainda dois pontos centrais: o primeiro quando marca
a arte produzida por negros em sua característica também racial, fazendo
dela diferença em face da universalização do que seria a arte-arte, hege-
mônica e ocidental. Esse mesmo marcador em arte, bem como em tudo
que se refere aos afrodescendentes, será tomado posteriormente como
elemento afirmativo da negritude, ideologia e movimentação política de
positivação e ressignificação do Negro:
21

Negro.
(A) n.m 1 (cor) noir 2 (raça) noir; um negro africano

(B) adj. 1 noir; fazer-se negro; nódoa negra; nuvem


negra 2 (raça) negro; arte negra, arte africana
3 [fig] negro, escuro funesto; ver tudo negro.

Negritude
S.f. 1. Estado ou condição das pessoas da raça
negra. 2. Ideologia característica da fase de
conscientização, pelos povos negros africanos, da
opressão colonialista, a qual busca reencontrar
a subjetividade negra, observada objetivamente
na fase pré-colonial e perdida pela dominação da
cultura branca ocidental.

Para completar, a palavra Nègre, neste mesmo dicionário, chama-nos


atenção. Na língua francesa ela significa

Nègre
[Fr.] S. M.
Pessoa que esboça ou escreve obras assinadas
por outrem (escritor, político, etc).

O que nos remete a uma isotopia de um tipo de servidão intelectual


em que o trabalho forçado poderia ser identifcado também a uma
sujeição na autoralidade artística, um ghost-writer, como nos mostra
igualmente esse sentido figurado da expressão datado de 1757, no
Dicionário Houaiss
22

Nègre
[Fr., lit. ‘negro’]
S.m. (sXIX) p.us. verdadeiro autor de uma ou mais
obras publicadas sob assinatura(s) de outrem;
ghost-writer | ETIM fr. Nègre (1529) ‘individuo
de raça negra’, (1704) ‘negro usado no trabalho
escravo’ (1757) fig. ‘pessoa que escreve obras
assinadas por outrem’.

As relações entre as várias isotopias nos alicerçam na construção de um


quadro de figuras onde reside, até os dias de hoje, a mitologia construída em
nome da palavra Negro. Reiterando a nossa incursão, Achille Mbembe diz que,

[...] no dispositivo léxico do século XIX, o termo é uma peça-


-chave da taxonomia da segregação que domina o discurso
acerca da diversidade humana. O termo servia para designar
este homem, do qual a Europa não para de se interrogar: ‘será
um homem diferente? Será outro que não o homem? Será um
exemplar do mesmo ou será antes um outro que não o mes-
mo?’ Resumindo, dizer de alguém que ele é um homem negro,
é dizer que ele é predeterminado biológica, intelectual e cul-
turalmente pela sua irredutível diferença. Pertenceria a uma
espécie distinta. E era como uma espécie distinta que ele seria
descrito e catalogado. Pela mesma razão, devia submeter-se
a uma classificação moral também ela distinta. No discurso
proto-racista europeu, dizer homem negro, significava assim,
evocar as disparidades da espécie humana e remeter o esta-
tuto de ser inferior, ao qual o Negro está consignado, para um
período da história no qual todos os africanos tem um potencial
estatuto de mercadoria ou, como se diz na época, de peça da
índia. (MBEMBE, 2002, p. 131).

Explorar no figurativo de cada termo as recorrências que formam isotopias,


chegando ao nível fundamental onde adormecem os sentidos complexi-
ficados, e que articulados formam a sua mitologia, traz à tona os próprios
estereótipos e simulacros presentes até os nossos tempos. É com base
nessas isotopias, semas disfóricos e eufóricos que nascem com o regime de
escravidão, que se irá construir a coerência semântica do discurso científico
postulado em nome da Lei da Raça, bem como os termos positivados que
ajudam a retomar uma postura de resistência.
23

CROMÁTICO BIOLÓGICO MANIPULATÓRIO/ MORAL


ESTATÉGICO

- cor - raça - fazer-se negro - negrura


- ver tudo negro - individuo de raça negra
- mulher de cor preta - nódoa negra crueldade/perversidade
- cor do piche - ferida ruindade/falta
- nódoa negra erro/culpa

sujo - nódoa negra


+ a cor que absorve
sujo/encardido
+ afronta

PATÊMICO PAPEL TOPOLÓGICO CLASSIFICATÓRIO


TEMÁTICO

- escuro funesto - escravo - um negro africano - etnia negra


- escuridão/trevas - escrava/cativa + arte negra
- tristeza/melancolia - trabalhar como uma
- lúgubre/maldito negra/negro negrada
- núvem negra - négre

negrume

+ Nego: humano
- irônico +: Eufórico
- piche: grudento - : Disfórico

Esquema 1:
Análise léxica do mito negro.
Elaboração nossa.

Como, então, romper com esses estereótipos fossilizados ao longo do


tempo que, como uma mitologia, circulam os valores disfóricos sobre os
negros em nossa sociedade? É com base nessa questão que se estrutura o
problema dessa pesquisa, que busca analisar os efeitos de sentido de um
conjunto de obras e práticas artísticas contemporâneas afro-brasileiras a
partir dos mecanismos discursivos da enunciação que implicam os regimes
de sentido, interação e risco.

Analisando um corpus formado por um conjunto de práticas que inter-


vém nos espaços urbanos, midiáticos e institucionais tendo como recorte
temporal o início do século XXI até os dias de hoje, objetiva-se entender
como esse corpo negro por mecanismos enunciativos de suas escolhas,
24

monta arranjos estéticos da plasticidade, figuratividade e tematização


em suas obras. Ao recombinar discursivamente os arranjos, constroem
novas narrativas, novos sentidos dotados de criticidade que objetivamos
mostrar, colaboram para a desconstrução dos estereótipos raciais. É nosso
interesse também refletir sobre como esse objeto de valor contribui para
uma mudança dos processos criativos e produtivos, inaugurando para a
própria comunidade negra, novas possibilidades estéticas.

Assim, esse corpus, que não tem a pretensão de ser uma mostra cartográ-
fica e quantitativa, foi recortado de modo a apresentar uma diversidade
topográfica tendo em vista estratégias de visibilidade. Dizendo que a relação
entre sujeito e objeto é articulada pelo corpo, Ana Claudia de Olivera nos
indica a urgência de se edificar uma semiótica da corporeidade (OLIVEIRA,
2012) e é essa relação com o corpo como instaurador de sentido em ato,
que justifica a escolha das obras selecionadas. São elas: “Ação Bandeiras”
intervenção da Frente 03 de Fevereiro criada e realizada em 2005; “A
Transmutação da Carne” performance dos anos 2000 do artista Ayrson
Heráclito; “Bombril”, performance de Priscila Rezende criada em 2010;
“White Face Blond Hair”, performance de Renata Felinto realizada na Rua
Oscar Freire, São Paulo em 2012; “Aceita?”, 2013, foto-performance de
Moisés Patrício utilizando a rede social Instagram; e as ações realizadas
entre 2011 e 2012 “Notícias de América”, hospedado em espaço virtual e
“Banana Market”, do artista Paulo Nazareth.

A hipótese central da pesquisa é de que o fato de um corpo negro des-


tinador assumir-se enunciador, gozando da sua faculdade própria da
condição humana de dar sentido ao mundo, é capaz através das prá-
ticas artísticas, de criar rupturas que contribuam para fazer sentir os
estereótipos raciais do país. A segunda hipótese é que essas práticas
ao criar intervenções nos espaços midiáticos, urbanos e institucionais
rompem os regimes de invisibilidade que, sob efeito de um racismo
estrutural, operam nos circuitos oficiais e legitimadores da produção
cultural nacional. Ao acessar uma memória do corpo, a terceira hipótese
propõe que essas práticas atualizam em ato um conhecimento ancestral
ressignificando o imaginário social, ­inaugurando novas formas de fazer
e possibilidades estéticas.
25

Figura 1:
Mestre Didi. Èsù Amuniwa, 1972.
Fonte: SANTOS, 2014.

Segundo Neusa Santos Souza (1983, p.27), “uma das formas de exercer
autonomia, é possuir um discurso sobre si mesmo”. No plano das estratégias
discursivas e das práticas identitárias, construídas como vimos em uma
relação assimétrica, é através de processos de efabulação de estereótipos
que a branquitude adquire o privilégio de produzir a diferença como forma
de afirmar a sua própria identidade.

Nessa posição de pura exterioridade, baseada na crença de uma superiori-


dade racial, o estatuto da raça se instala como discurso social para controle
de uma identidade tida como ameaçada, mitificando e racializando, a partir
de categorias e hierarquias, o Outro-Negro.
26

Ao olhá-lo como um objeto despido de razão, esculpe a sua caricatura com


gestos frenéticos e truculentos, promovendo a sua negação ao ponto de
tirar-lhe a alma e o espírito e desqualificar-lhe enquanto sujeito.

Plasmados como discurso nas instituições que criam, organizam e disse-


minam a cultura visual no Brasil, estão presentes, quer seja nos objetos das
artes ou das mídias, os valores subalternizantes que, no plano da expressão e
do conteúdo, confirmam a superioridade da branquitude e o status do Negro
como corpo racializado. Essa crise de alteridade que se instaura numa política
de estereótipos é própria de um discurso colonizador no qual dissemina-se
por meio de imagens, pinturas, jornais, propagandas, mapas e livros todo
um sistema de representação, que cristalizando-se, forma a cartografia da
diferença. Falando sobre a obscenidade que há por trás do que a estética e
o discurso figurativo tentam mascarar, a natureza crua dos procedimentos
de violação do outro, Landowski diz que “o escândalo, se há, não decorre
[somente] do que se mostra, mas do como”: (LANDOWSKI, 1996, p.37):

[...] Há imagens que, seja o que for que mostrem, são construídas
de modo tal que nos dizem, primeiramente, que são imagens, a
serem recebidas enquanto tais. Outras, ao contrário, são arran-
jadas de modo a nos fazer esquecer, na medida do possível, o
que são – simulacros –, e que, mediante outros efeitos plásticos,
outros modos de organização dos jogos entre figuras, pretendem
colocar-nos em contato direto com o que elas “representam”.
Nisso exatamente reside a obscenidade, noção portanto aqui
empregada num sentido puramente epistemológico, remetendo
ao estatuto que o próprio objeto visual construído atribui a si
mesmo na sua relação com o “real”.

Figura 2:
Frans Post. Île de Itamaracá, 1637.
Fonte: MOURA, 2000.
27

Desde a mais remota imagem do negro brasileiro de que se tem registro2


2.  C a r l o s E u g ê n i o
Marcondes de Moura. – Île de Itamaracá, óleo sobre tela datado de 1637 de Frans Post –, é reinci-
A travessia da Calunga dente na iconografia o fato de as representações dos Negros atravessarem
Grande. Três séculos de
os tempos sendo concebidas pelo olhar do Outro: o branco, o viajante, o
imagens sobre o Negro
no Brasil. (1637-1899), estrangeiro, o europeu. Imagens que ora se transformavam em grandes
São Paulo, Edusp, 2000, alegorias – com a fantasia e o apelo comercial requerido na época em tor-
694 pp.
no da venda do exótico –, ora serviam para ilustrar trabalhos de natureza
científica, com intervenções descaracterizantes e erros de registro, pondo
em circulação, por meio da estética, os valores classificatórios que legiti-
mavam as relações de dominação entre colonizados e colonizadores. Além
disso, atendiam a uma concepção artística convencionalmente europeia,
como comenta Ana Maria Beluzzo citada por Carlos Eugênio Marcondes de
Moura no livro A Travessia da Calunga Grande – Três séculos de Imagens
sobre o negro no Brasil (1637-1899):

[...] esse legado iconográfico, assim como a literatura de viagem


dos cronistas europeus, só pode dá a ver um país configurado
por intenções alheias. [...] O olhar dos viajantes espelha ademais
a condição de nos vermos pelos olhos deles. [...] As obras con-
figuradas pelos viajantes engendram uma história de ponto de
vista, de distância entre modos de observação, de triangulação
do olhar. Mais do que enxergar a vida e a paisagem americana,
levam a focalizar a espessa camada de representação. Evidenciam
mais versões do que fatos. [...] As imagens elaboradas pelos
viajantes participam da construção da identidade europeia.
Apontam os modos como as culturas se olham e olham as outras,
como imaginam semelhanças e diferenças, como conformam o
mesmo e o outro. Diferentes e irredutíveis pontos de vista criam
uma alucinante memória de muitos brasis. (BELLUZZO, 1994, p.
8 apud MOURA, 2000, p. 24).

Ainda que a iconografia e a historiografia nacional sejam porta-vozes das


mais diversas mitologias e apagamentos da presença do negro brasileiro
– como, por exemplo, o mito da democracia racial e a teoria do embra-
queamento –, é sabido que foi à custa de muitos levantes, quilombagens e
rebeliões que também se pautou a sua história: séculos de uma trajetória
que, antes de tudo, também pode ser contada pelo seu viés de resistência.
Citando Gates, Leda Maria Martins enfatiza que os africanos que cruzaram
o Mar Oceano não viajaram e sofreram sós. Para ela,

[...] com os nossos ancestrais vieram as suas divindades, seus


modos singulares e diversos de visão de mundo, sua alteridade
28

linguística, artística, étnica, técnica, religiosa, cultural, suas


diferentes formas de organização social e de simbolização do
real. As culturas negras que matizaram os territórios ameri-
canos, em sua formulação e modus constitutivos, evidenciam
o cruzamento das tradições e memórias orais africanas com
todos os outros códigos e sistemas simbólicos, escritos e/ou
agráfos, com que se confrontaram. E é pela via dessas encru-
zilhadas que também se tece a identidade afro-brasileira, num
processo vital móvel, identidade esta que pode ser pensada
como um tecido e uma textura, nos quais as falas e os gestos
mnemônicos dos arquivos orais africanos, no processo dinâmico
de interação com o outro, transformam-se e reatualizam-se,
continuamente, em novos e diferenciados rituais de linguagem
e de expressão, coreografando a singularidade e alteridades
negras (MARTINS, 1997, p. 26).

Trazendo como forma de expressão central o próprio corpo, foi através


dessa interação e de um fazer-sentir que o Eu-Negro criou estratégias
possíveis de modos de gestão do Si, manipulando as precárias estruturas
de sua arquitetura cativa, para afirmar a sua identidade e a sua condição de
sujeito. Esses arquivos e repertórios da memória oral, que se desdobram
nas infinitas gerações,

[...] são microssistemas que vazam, fissuram, reorganizam, africana


e agrafamente, o tecido cultural e simbólico brasileiro, mantendo
ativas as possibilidades de outras formas de veridicção e percep-
ção do real que dialogam, nem sempre amistosamente, com as
formas e modelos de pensamento privilegiados pelo Ocidente.
(MARTINS, 1997, p. 35).

No livro Da Imperfeição, basilar para os estudos da semiótica, Algirdas


Julien Greimas postula sobre o estatuto da significação na experiência
estética e sua competência estésica como possibilidade de fraturar
o nosso automatizado cotidiano. Segundo Ana Claudia de Oliveira
(2002, p. 11),

[...] se esta vivência sensível opera transformações, é porque o


arranjo estético produz quebras de estereótipos e de simulacros
preconstituídos. Nessas condições é que se entreabrem novas
possibilidades de sentido a partir de outras valorizações.
29

Ao debruçar-se sobre a obra, Fiorin (1999, p. 102) pontua que,

[...] se o acompanharmos veremos que a estesia contém uma


fratura dos acontecimentos cotidianos, o enfraquecimento do
sujeito, o estatuto particular do objeto, a fusão sensorial do
sujeito com o objeto, a unicidade da experiência, a esperança
de uma futura conjunção total. Produzindo ora o que Greimas
chama de Fraturas ora de Escapatórias, a experiência esté-
tica nos conduz a uma ruptura e mudança de isotopia: nela
o tempo para, o espaço fixa-se e ocorre um sincretismo entre
sujeito e objeto.

Nessa direção, um dos aspectos que nos fazem entender a experiência


estética e a arte como articuladoras tanto de escapatórias quanto de rup-
turas no cotidiano é a sua condição estésica. Deslocando-se de um ideal
efêmero de arte pela arte, “finalidade sem fim”, Greimas diz que esta, “cuja
essência parecia estar encerrada nos objetos criados, penetra na vida que
se torna lugar de encontros e acontecimentos estéticos.” (GREIMAS, 2002,
p. 69). É do inteligível ao sensível, ao entrar em conjunção com o objeto de
valor, que o sujeito se descobre e se refaz, ressemantizando os “objetos
gastos que nos rodeiam e as relações intersubjetivas esgotadas ou prestes
a ser”. (GREIMAS, 2002, p. 85).

A partir do percurso gerativo de sentido, a semiótica nos oferece um ar-


cabouço teórico e metodológico capaz de esclarecer e reafirmar o papel
fundamental das manifestações artísticas negras do Brasil e da experiência
estética como dispositivo de resistência, sobrevivência e atualização dessas
práticas culturais. Um ponto central para entender a produção de senti-
dos dessa cultura, é a relação com o tempo que, na cosmogonia africana,
media todas as relações, tornando-se, a partir do culto ancestral, divino.
No candomblé de nação angola (banto), Tempo, Dembwa ou Kitembo é o
Nkisi Rei do Candomblé de Angola, aquele que representa a ancestralidade
e conecta as dimensões espirituais e físicas:
30

O Tempo é o mundo todo


e é o sangue da mulher.
Lá em cima o meu povo
Dembwa é o cajado de Lemba
e acima dele o Candomblé…
Dembwa é nkindu ia ngeemba
Vai levantar, vai levantar, vai
Dembwa é o rei aos pés do levantar,
maleembe,
vai levantar até aquele que
milho branco e saia de renda. morre logo
Menino caminha pra sonhar por morar em sua fé.
Dona Terezinha é o chorar Vai derrubar, vai derrubar, vai
derrubar,
Seu Zezinho de Aninha é o
chegar, vai derrubar até a vida mais
colorida
10 de agosto é dia de mudar.
e o argumento de quem bem
Dembwa é o ofício de abrir os
quiser.
braços
Para o ato de caçar, Dembwa
quando não há quem se abraçar
precisa cantar…
Dembwa é o pescador
Vento que nos perfurar,
esquecendo os laços
Dembwa precisa cantar…
nas águas que vão além do mar
Rio que cicatrizar, Dembwa
Dembwa é muita terra pra precisa cantar…
poucos passos
Pro Guerreiro nos guardar,
e muito perdão pra levar Dembwa é o lugar de guardar.
Dembwa é Zaambi tendo que Tiganá Santana. 3
esperar…
O Tempo pediu pra folha dançar
… pra folha dançar e nunca
parar… 3.  Dembwa (10 de agosto) é uma música composta pelo músico
Tiganá Santana com palavras em Kikongo e Kimbundo. Faz parte
e sempre curar o dia. do seu primeiro disco Maçalê, de 2010. Vídeo disponível aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=l8CoYySGblE
31

Na teoria semiótica, o tempo também é fundante quando se aproxima,


através da categoria continuidade vs continuidade, do próprio conceito de
estesia, que na definição de Ana Claudia de Oliveira (2010, p. 2), “é a condição
de sentir as qualidades sensíveis emanadas do que existe e que exala a sua
configuração para essa ser capturada, sentida e processada fazendo sentido
para o outro”. Nas palavras de Barros (1999, p.123)., a categoria continuidade
vs descontinuidade “é o denominador comum da aspectualização do tempo,
do espaço e dos atores, e rege a geração dos sentidos”.

[...] Não causa estranheza, portanto, que sua aplicação defina tam-
bém a estesia. Importa assinalar, porém, que a percepção estética
se caracteriza, por um lado, pela descontinuidade (de isotopia
semântica e veredictoria, de tempo, de espaço), por outro, pela
continuidade da relação de fusão ou de absorção do Sujeito e do
Objeto ou da ‘eternidade temporal’. Não são, porém, movimentos
opostos, pois é necessária a descontinuidade nos vários níveis para
que se produza, sobre o descontínuo, o efeito de sentido de uma
continuidade outra: não a da conjunção, mas a da fusão, não a
da duração, mas a da eternidade, não a do espaço sem limites,
mas a da continuidade das diferentes dimensões [...], e assim por
diante. É esse jogo entre a continuidade e a descontinuidade que
constitui o traço mais genérico da estesia. (BARROS, 1999, p. 123).

Tal aspecto espaço-temporal encontra na filosofia africana uma intrínseca


e significativa relação, já que, para esses povos, a vida em si poderia ser
considerada, na totalidade do sentido, uma experiência estética. Nos seus
estudos sobre performance, reunidos no livro A Cena em Sombras, Martins
trata das influências das tradições iniciáticas africanas e do teatro africa-
no contemporâneo e de como ambos se manifestam no Brasil. Citando
Banham e Wake, aponta que:

[...] o dramaturgo e o ator africanos, assim, não são homens


isolados de seu povo, produzindo um material obscuro para uma
plateia intelectual elitista, mas, ao contrário, eles continuam a
tradição [...] griot, como um cronista da história do povo, uma voz
da consciência do povo, o estimulador de ideias e atividades. E
este é um papel familiar, tanto para o dramaturgo quanto para
a platéia. (MARTINS, 1995, p. 98).

Nessa direção, com o trânsito diaspórico e o regime de escravidão, apesar


de séculos de uma existência marcada pelo roubo do tempo, uma vez que
este passou a ser condicionado ao Eu-Branco numa relação servil e de
interdependência subjetal – apesar de ter sido sob a ideia de um atraso
32

e de uma involução postulada numa lógica evolutiva que a ideia de Raça


se definiu e difundiu, marcando perpetuamente estes corpos; apesar de
todo este descontínuo existencial –, foi a própria relação com o tempo o
antídoto usado pelo Outro-Negro para, através das memórias do seu corpo,
fundar um arquivo e, por meio dele, resistir.

A ancestralidade seria, então, a dimensão sagrada do entendimento do


tempo. No seu livro Afrografias da Memória, Leda Maria Martins, ao fazer
uma análise da estrutura ritual das cerimônias de Reinado – uma mani-
festação tradicional e performance mitopoética datada do século XVII que
reinterpreta, através da oralidade, durante gerações, as travessias dos
negros da Àfrica às américas –, diz que:

[...] esses festejos reatualizam todo um saber filosófico banto, para


quem a força vital se recria no movimento que mantêm ligados o
presente e o passado, o descendente e seus antepassados, num
gesto sagrado que funda a própria existência da comunidade
assim explicitada por Vincent Mulago: ‘Para o Banto, a vida é
a existência da comunidade; é a percepção na vida sagrada (e
toda a vida é sagrada) dos ancestrais; é uma extensão da vida
dos antepassados e uma preparação de sua própria vida para
que ela se perpetue nos seus descendentes. (MULAGO apud
MARTINS, 1997, p. 36).

Portanto, dialogando com elementos, condições e estrutruras sociais


do contemporâneo, e em como estes se relacionam com a realidade dos
afrodescendentes, as práticas artísticas que vamos analisar atualizam
não somente elementos do plano do conteúdo e da expressão, mas tam-
bém perpetuam, no seu nível profundo, uma outra estrutura mitológica,
própria e imanente da cultura, e que se organiza de forma paradigmática
entre passado, presente e futuro. Assim, nestas manifestações, para além
de uma relação de tematização e figurativização por parte do Eu-Negro
sujeito da enunciação – que numa análise prática, e por isso superficial
poderia implicar uma proposição semântica na qual operaria a oposição
de base arte vs política –, o que há é uma relação sagrada com as lutas de
resistência dos ancestrais caracterizando-as como um tipo de prática ritual
e coletiva “animada por um movimento cósmico que se exerce segundo
um ritmo que o artista negro procura exprimir”. (MARTINS apud LOPES,
1997, p.37). É através desse legado ancestral que as lutas de resistência
se plasmam nos eventos estéticos do presente.
33

Figura 3:
Reis Congos, 1950.
Fonte: MARTINS, 1997.

Há, no entanto, nas práticas atuais das artes consideradas contemporâ-


neas – e assim o são por carregarem a complexidade e as contradições de
diversos tempos –, uma observação em relação à espacialidade. Apesar de,
nas manifestações originárias, haver outros tipos de contrato e formas de
mediação entre destinador e destinatário, bem como formas de negociação
na relação público e privado que mediam as noções de visibilidade, o modo
como a cultura ocidental concebe e institucionaliza a arte dos dias de hoje
acaba por influenciar a própria fruição e apresentação dessas manifestações
com o público que, muitas vezes, tem uma instituição como mediadora.

Ainda que recriando e traduzindo um pensamento ancestral que instaura


o corpo como arquivo, fazendo dele passagem, linguagem e lugar primeiro
de produção de sentido, essas práticas contemporâneas passam também
a estabelecer negociações prescritas nesse contrato, acordos estes que
se dão a ver na obra, já que estes podem influenciar e gerar limitações da
ordem da sua execução, do seu conteúdo ou da sua recepção. A instituição
fomentadora que comissiona ou abriga a obra passa a ser um importante
destinatário que a sanciona na medida em que a escolhe e a visibiliza.

Esta relação mediada acaba por ser reflexo de uma atualização perante
o sistema social, político e cultural fazendo com que tais ressignificações
do presente, de alguma forma, se distanciem da tradição. Assim, em tais
intervenções, além de não haver uma tradução mimética nem no plano
34

da expressão nem do conteúdo relativos a ritos e cerimônias sagradas,


há também uma atualização da própria relação fundamental público vs
privado, razão pelas quais estamos nos referindo ao termo práticas que
segundo Oliveira, entende-se por

[...] um fazer cotidiano que caracteriza ações que se repetem, mas


não de modo redundante que esvazia o sentido. Ao contrário,
essas podem ser práticas de um indivíduo, de grupo social, ou, em
maior escala, da população da cidade. A repetição de uma ação,
de uma sequência delas dá-se no eixo sintagmático em interva-
los temporais e manifesta um modo de presença que é definido
pela constância acional na cotidianidade. Os traços recorrentes
mostram o que permanece na dinâmica transformacional e esses
promovem a identificação da prática. (OLIVEIRA, 2014, p.184).

Como forma de produzir um afrontamento ao racismo estrutural presente


nas instituições brasileiras produtoras de cultura, é em busca dessa visibi-
lidade em espaços de poder, da ampliação de seus discursos e do debate
de suas problemáticas que essas obras propõem ora intervenções insti-
tucionais, que invadem os espaços físicos, ora intervenções nos espaços
midiáticos e/ou virtuais, fazendo-se em coletividade, em uma relação a
qual arte e vida não se desligam.

Dessa forma, a relevância que damos a escolha desse conjunto de seis ar-
tistas, não estão balizadas pelos crivos de mercado, nomes de galeria nem
pelos seus currículos mas, pelo efeito de sentido que proporcionam e fazem
ressoar quando se aproximam da cotidianidade e da vida. Quando interpelam
e fazem pulsar a comunidade e a cidade, ou mesmo, quando se apropriando
de recursos midiáticos ou de novas mídias, percorrem as ondas, partilham
desejos, anseios e criam poderosas redes colaborativas. Também, quando
irrompem a monotonia com uma figuratividade imprevisível, recombinan-
do expressão e conteúdo de forma improvável, ainda que este seja apenas
presença: para muitos, deslumbramento, momento em que a presença,
aparência e estética do corpo negro é o suficiente para provocar estesia.

“Mas que sentido é esse que construímos no momento mesmo da intera-


ção?” (Landowski, 1997, p.10). Nos questionando, Landowski nos diz que
“de resto, se o ‘discurso’ (verbal, claro, mas também o do olhar, do gesto,
da distância mantida), nos interessa, é porque ele preenche não só uma
função de signo numa perspectiva comunicacional, mas porque tem ao
mesmo tempo valor de ato” ato de geração de sentido, e, por isso mesmo,
ato de presentificação. Daí essa ambição talvez desmedida: a semiótica do
discurso que gostaríamos de empreender – a do discurso como ato-, deveria
ser, no fundo, algo como uma poética da presença”. (Landowski, 1997, p.10)
35

Situando-se nos entres e interstícios, estas presenças expandem ainda as


convenções da arte e os aprisionamentos da linguagem, preenchendo zonas
que lhes cabem e criando outras que, fronteiriças, borradas e beirantes,
fazem-nos perguntar: é arte, candomblé, política, virtualidade? Filme,
performance, ativismo, evento, intervenção? Livro, rede social, fotografia,
instalação? Transmissão televisiva, embalagem, anúncio, capa de revista,
torcida, mendigo, ocupação?

Como um sujeito potencializado, na escalada por sua emancipação do


estatuto de objeto para a de sujeito, o que era um Eu-Outro se desdobra,
se presentifica e, em diálogo com a noção de tempo, se ressignifica. Dos
Regimes de Programação e Manipulação presentes nas diversas atuali-
zações que temos ao longo do tempo da Lei da Raça, e que analisaremos
no primeiro capítulo, vemos como a instauração do corpo como lugar de
arquivo e linguagem faz surgir um Eu-Negro que recria, em solo brasileiro,
a sua cosmologia, retomando como prática de vida um fazer conjunto.
Numa coalescência do sensível com o sentido plasmado através do sentir
do próprio corpo, Landowski diz que (2014, p. 50),

[...] o que lhes permite ajustar-se assim uma à outra é uma


capacidade nova, ou ao menos, uma competência particular
que o modelo precedente não tinha chegado a conhecer: a
capacidade de sentir reciprocamente. Para a diferenciar da
competência dita modal, nós a batizamos de competência es-
tésica. (LANDOWSKI, 2014, p. 50),

É através dessas práticas que se atualizam no presente e agem por contágio


entre o Eu-Negro e o Outro-Branco, que a produção de sentido em ato se
realiza sendo possível afetar os estados de alma para fazer o sentido, sen-
tido: “nesse gênero de transmissão corpo a corpo, o que imediatamente ‘se
sente’ é o ‘sentido’ mesmo. O sentido é sentido.” Diminuindo as distâncias,
estabelece-se uma relação “entre corpos que sentem e corpos sentidos”.
(LANDOWSKI, 2014, p. 51), manifestações que “possuem o poder de nos
fazer imediatamente participar (em graus variáveis, naturalmente) da pró-
pria experiência assim exteriorizada”. (LANDOWSKI, 1996, p. 39). A essa
interação Landowski chamou de Regime de Ajustamento, dizendo que:

Na programação, face ao sujeito, havia somente dadas quantida-


des de matéria e de energia, forças cegas que não se conheciam
a si mesmas e que também não podiam conhecer algo ou alguém
ao ser redor, mas que, em contrapartida, obedeciam sem o menos
equívoco ou desvio possível a determinadas leis naturais, cons-
tantes por definição. Com a manipulação, apareceram sujeitos,
atores maleáveis já que dotados de inteligência e de uma relativa
autonomia. Com o ajustamento, acabamos de reconhecer esses
36

mesmos sujeitos como dotados, ademais, de um corpo e, por isso


mesmo, de uma sensibilidade. Consequentemente, a interação
não mais se assentará sobre o fazer crer, mas sobre o fazer
sentir – não mais sobre a persuasão, entre inteligências, mas
sobre o contágio, entre sensibilidades: fazer sentir que se deseja
para fazer desejar, deixar ver seu próprio medo e, por esse fato
mesmo, amedrontar, causar náusea vomitando, acalmar o outro
com sua própria calma, impulsionar – sem empurrar!-só por seu
próprio ímpeto, etc. (LANDOWSKI, 2014, p.51).

Referindo-se às práticas rituais como acontecimento estético que não


carrega somente seu caráter comunicacional, mas, para ele, se manifesta
quase como uma epifania, Mbembe diz que há, nos procedimentos de
lembrança presentes nesses acontecimentos sincréticos, uma prática de
cura, já que as imagens podem variar e ser substituídas umas pelas outras.
Segundo o autor, “neste processo, estabelece-se uma relação extremamente
complexa entre o sentido/significação e a designação ou, ainda, aquilo a
que acabo de chamar manifestação”. (MBEMBE, 2014, p. 211).

Ao evocarem este Tempo de Cura4, estas práticas contemporâneas recriam


4.  Referência ao filme
essa atualização ancestral no seu modo de ser e estar, através de uma Tempo de Cura, obra
relação que se faz assimétrica, paradoxal, heterogênea, fragmentada e que voltaremos a citar
com mais detalhes no
irregular de olhar e viver o tempo. É essa condição de não haver plenamente
capítulo 2.2.
um tempo presente, já que não se rompe totalmente com o passado e o
futuro (MBEMBE, 2014, p.209), que vamos analisar nessas obras que, ao
fazer sentido (estética) para fazer sentir (estesia), buscam ressignificar os
valores usurados tendo em vista os regimes de visibilidade e sua relação
com os espaços institucionalizados da produção cultural e artística nacional.

Para tanto, no primeiro capítulo, Simulacros Engessados: A Lei Da Raça e a


Razão Negra, explicaremos como os simulacros foram construídos no dis-
curso científico, analisando a dimensão enunciativa da Lei da Raça e como
esta foi atualizada no Brasil, em diversos momentos, através do projeto
de braqueamento da população e do mito da democracia racial. Para isso,
exploraremos como se constrói a produção da diferença e as estratégias
que mediam as relações entre identidade e alteridade postuladas por Eric
Landowski juntamente com os Regimes de Manipulação e Programação.

É sobre o convívio concomitante entre opressão e resistência que discorre


Fazer-se Negro, o segundo capítulo, dividido em duas seções. Na primeira
seção, Estereótipos, a partir das mitologias encontradas na análise do léxico
verbal, discorreremos sobre como esse discurso foi configurado nas artes
37

contribuindo para a construção dos estereótipos raciais do negro no Brasil.


Com esse propósito, estabelece-se uma trama relacional analisando obras
representativas das artes visuais, da literatura, música, artes cênicas, da dan-
ça e do audiovisual – cinema e televisão. Já na segunda seção, Resistência,
tratamos das rupturas e dos fatos históricos que proporcionaram aos Negros
sua autorrepresentação, trazendo consigo suas subjetividades, reconhe-
cendo seu papel de sujeito em diferenciação ao de outros sujeitos. Sofrendo
influências de além-mar e impulsionados pelo desejo de liberdade, veremos
quando eles se anunciam e se inscrevem e como as manifestações originárias,
as confrarias, os movimentos intelectuais e as irmandades foram funda-
mentais na formação da consciência crítica através dos ideiais de negritude.
Entenderemos aqui as relações de institucionalização dos espaços artísticos
e as estratégias adotadas para manifestar-se nas tensões entre o público e
o privado, aprofundando-nos nas relações de interação e risco do Regime
de Ajustamento postulado por Landowski na lógica da união e do acidente.

No terceiro capítulo, intitulado, Práticas artísticas contemporâneas afro-


-brasileiras no século XXI, faremos uma análise plástica das obras em busca
dos seus efeitos de sentido. Em suas contribuições para a semiótica plástica,
Oliveira (2005, p. 109) diz que

[…] o conjunto textual permite compreender, além da sua sig-


nificação, também o estágio atual da linguagem, assim como
as modificações dessa que, lentamente, intervêm no sistema
e provocam transformações em função dos novos usos que se
impõem. Por essa razão, os registros da visualidade – como
processo – permitem uma compreensão tanto sincrônica quanto
diacrônica do sistema. Guarda essa produção o ser e o estar dos
sujeitos de cada época, de cada agrupamento social, graças
às marcas que um dado uso da linguagem põe em circulação.

Após estabelecer as correlações entre o regime de interação, os regimes


de sentido, apresentaremos, no quarto capítulo, nossas conclusões.

Usando como arcabouço o aparato teórico-metodológico da semiótica


edificada por Algirdas-Julien Greimas, da semiótica do social de Eric
Landowski e as contribuições para a semiótica plástica de Ana Claudia
de Oliveira, pretende-se analisar como esses arranjos sensíveis vêm in-
troduzindo, através de suas experiências ético-estéticas, novos valores,
ajudando-nos a entender como se traduz os levantes, as insurgências, as
rupturas e insurreições desse corpo de negra voz.
38
39

1
SIMULACROS ENGESSADOS:  A LEI DA RAÇA E A RAZÃO NEGRA
40

Humilhado e profundamente
desonrado, o Negro é, na ordem
da modernidade, o único de
todos os humanos cuja carne
foi transformada em coisa, e o
espirito em mercadoria. […] Mas –
e esta é a sua manifesta dualidade
–, numa reviravolta espetacular,
tornou-se o símbolo de um desejo
consciente de vida, força pujante,
flutuante e plástica, plenamente
engajada no acto de criação e até
de viver em vários tempos e várias
histórias ao mesmo tempo.
Achille Mbembe
41

O escuro medo na noite. O preto símbolo da morte. O homem-mercadoria,


o corpo-objeto. O vazio. Um buraco negro perdido no espaço e no tempo,
onde tudo é possível depositar. Mas como a imagem que temos hoje do
negro foi forjada ao longo do tempo? Quais os procedimentos utilizados
para transformá-lo em objeto e como o racismo se tornou uma prática e uma
estrutura na sociedade brasileira? São essas questões que essa pesquisa,
e esse capítulo em particular, irá abordar, ao semiotizar conceitos como Lei
da Raça e Razão Negra, analisando os efeitos de sentido desse discurso
ao longo da história e suas contribuições na construção dos simulacros,
estereótipos e identidade do negro brasileiro.

1.1
A DIMENSÃO ENUNCIATIVA DA LEI DA RAÇA

Para tanto, iniciaremos nos apoiando no que Achille Mbembe chama de


Lei da Raça, discurso enunciado ao longo da história e que, através de uma
intensa encenação actancial protagonizada pelo pensamento ocidental,
tornou-se o gesto fundador que significou a palavra Negro sob a égide da
subalternidade e da diferença:

Enquanto objetos de discurso e objetos de conhecimento, a África


e o Negro tem, desde o início da época moderna, mergulhado,
numa crise aguda, quer a teoria do nome quer o estatuto e a
função do signo e da representação. Aconteceu o mesmo com as
relações entre o ser e a aparência, a verdade e o falso, a razão
e a desrazão, e até a linguagem e a vida. De fato, sempre que
a problemática passa por Negros e África, a razão, arruinada e
esvaziada, não consegue deixar de andar às voltas sobre si mesma
42

e, muitas vezes, perde-se num espaço aparentemente inacessível,


no qual, aniquilada a linguagem, as próprias palavras deixaram
de ter memória. Com a extinção das suas funções comuns, a lin-
guagem transformou-se numa fabulosa máquina cuja força vem
simultaneamente da sua vulgaridade, de um incrível poder de
violação e da sua indefinida proliferação. Hoje ainda, e quando se
trata destas duas marcas, a palavra não representa necessaria-
mente a coisa, o verdadeiro e o falso tornam-se inextricáveis, e a
significação do signo não é mais adequada à coisa significada. O
signo não é apenas substituído pela coisa. A palavra ou a imagem,
muitas vezes, dizem pouco a cerca do mundo objetivo. O mundo
das palavras e dos signos autonomizou-se a tal ponto que não se
tornou apenas um ecrã para a apreensão do sujeito, da sua vida
e das condições de produção, mas ganhou uma força própria,
capaz de se libertar de qualquer ligação à realidade. A razão de
assim ser, podemos sem dúvida atribuí-la maioritariamente, à Lei
da Raça. (MBEMBE, 2014, p. 30).

É fruto desta semiose, do ato de significar e produzir sentido de intencio-


nalidade devastadora que, como vimos na análise léxica apresentada ante-
riormente, a palavra Negro passa a ser talhada e reinvestida com os valores
produzidos sob uma ideia de Raça. O rastro do movimento dado ao ato é o
de um corpo e de um espírito sendo sistematicamente divididos e classifi-
cados, ao passo que a sua memória é dilatada: susbstitui-la e escondê-la
o mais distante possível para que sua subjetividade se perca e não mais
se reconheça nem na sua palavra de batismo nem no nome que um dia foi.

Criação do imaginário das sociedades européias, Mbembe defende que toda


a fundamentação da ideia de raça se deu nos discursos e nas práticas do
saber a partir dos quais o projeto moderno ocidental de conhecimento e de
governança se difundiu. Para melhor entendê-lo, vamos nos valer do livro
Epistemologias do Sul, no qual Boaventura de Sousa Santos esclarece que a
epistemologia ocidental dominante, presente ainda hoje, foi construída sob a
base das necessidades da dominação colonial. Para tanto, segundo o autor,
criou-se um sistema de distinções visíveis e invisíveis que divide a realidade
social em dois universos ontologicamente diferentes. Trazendo a ideia das
linhas que separam os mundos imperialistas e colonialistas do Norte do
colonizado e oprimido Sul global, ele coloca que as distinções se tornam tão
violentas ao ponto de serem capazes de invisibilizar e transformar em inexis-
tente todo o outro lado da linha: “esta distinção invisível é a distinção entre as
sociedades metropolitanas e os territórios coloniais” (SANTOS, 2010, p. 32),
relação mediada por procedimentos que aplicam a apropriação e a violência.
43

Sob as lentes da semiótica, que toma os discursos e as práticas, seus objetos e


manifestações para entender o que eles dizem e como fazem para dizer o que
dizem enquanto totalidade de sentido – para nós tudo aquilo que, quando estamos
em relação, faz sentido por ser dotado de significação –, podemos entender o
gesto semiótico capaz de fundar o sujeito Negro em um ato de violação. Efeito
de sentido de um procedimento axiomático, de um investimento ético, poderí-
amos denominar da seguinte forma as variáveis e os elementos dessa relação:

X – o sujeito branco-competente, E – enunciação, ato pelo qual o


sujeito X faz o Negro ser, e Y – o sentido gerado

Nessa relação dinâmica e gerativa, o enunciado do discurso é o objeto cujo


sentido faz o sujeito Negro ser. O Negro seria, ao fim, o efeito de sentido da
dimensão enunciativa do discurso realizado: esse conjunto de enunciados cha-
mados de Lei da Raça. Na análise das relações de interação e poder presentes
nos discursos científicos postulados como uma Lei e que podem ser tomados
pela sua regularidade, o que Eric Landowski (2014) define organizar-se como
Regime de Programação, conseguimos apreender como o actante, o sujei-
to-destinador, caracterizado como competente em termos de saber e poder,
emprega os seus modos de fazer e como esses são qualificados. O curso da
história nos dá uma multiplicidade de ações marcadas pelo domínio e controle
sobre o sujeito Negro que é programado a assumir o papel temático dado pelo
destinador: o homem-coisa e o eterno escravo que, como objeto, é disposto
como algo sem vontade própria, diferentemente do sujeito homem guiado por
sua intencionalidade (organização do Regime de Manipulação nos termos de
Landowski [2014]). Assim posto, a Lei da Raça seria, portanto, o enriquecimento
semântico necessário para o surgimento da existência de um corpo-exploração
como corpo possuído e governado pelo mando de seu possuidor.

Feita essa afirmação, seria inquietante passar por aqui e não contestar essa
imagem fixa e estática da ciência e o seu discurso taxionômico, que, numa
dança entre uma sintaxe e uma semântica perfeitas, organiza o discurso
da racionalidade, que vemos preencher os “nomes próprios” de que fala
Greimas, “esses lugares vazios”, que transformou Negro em Raça e fez de
ambos coisa nenhuma:

[...] por aí se vê também de que modo, fazendo abstração dessas


exigências apriorísticas legítimas, uma vulgarização deformante e
por vezes malévola consegue apresentar o discurso científico como a
programação com vistas à sua transmissão, de um saber constituído,
identificando-o assim com o discurso didático. (GREIMAS, 1976, p. 6).
44

Figura 4:
Jaime Lauriano.
Terra Brasilis:
invasão, etnocídio e
apropriação cultural,
2015.
Foto: Filipe Berndt.
Fonte: internet.

Tomar o discurso científico como programação, identificado como a pres-


crição do discurso didático, é entender que, sob o regime de programação,
o enunciado do discurso científico é legitimador e operador de uma série
de programas fixados que, ao obedecer às leis de causalidade, atua sobre
o mundo material através de conjunções e disjunções, tendo por fim fa-
zer-ser novas realidades ou ainda modificar o estado de coisas ou pessoas
(LANDOWSKI, 2014). São essas características que o fazem estabelecer
um modo de apreensão do mundo radicalmente determinista, típico de
sociedades totalitárias, tecnocratas e, porque não dizer, escravocratas, em
que, entre a tração animal e uma máquina, existe um corpo negro destinado
a espoliação.Também, será esse mesmo discurso, que como veremos nos
próximos capítulos, servirá de base epistemológica para desconsiderar,
desqualificar e invisibilizar, através de novas categorias e hierarquias, as
manifestações artísticas contemporâneas afro-brasileiras nas estruturas
institucionais da produção da cultura nacional.

Nesse âmbito, antes de chegarmos a uma luta de corpos objetiva, com suas
torturas e avassalamentos comuns ao regime de escravidão, o que temos é
uma guerra semiótica, um confronto interactancial na tentativa de realizar
um investimento cognitivo desumanizante: energia a ser tomada e atraída
45

em proveito do Eu-branco para a concretização de seu próprio programa.


Portanto, ao falar de luta de corpos e evocar um cenário de batalhas e
confrontos entre negros e brancos, é preciso levar em conta também a
sua dimensão subjetiva, pois, se é no corpo que se produz sentido, é nele
que a significação se concretiza: a violência física à qual até hoje esses
corpos são submetidos são as forças materializadas e imanentes de uma
violência simbólica e intersubjetiva presente no esforço de modelização
da significação que a antecedeu.

Se a significação nasce da instauração e do reconhecimento das diferenças


(LANDOWSKI, 1992), foi essa estratégia a utilizada pela Lei da Raça para
significar e fazer-ser esse corpo moeda de submissão. Raça, por assim dizer,
não existiria como fato físico, antropológico ou genético, constituindo-se,
doravante, como um mito: uma invenção datada que atravessa os tempos
resistindo a todas as investidas de ressignificação, o que corresponde à
estruturação do mito. Isso não se dá sem implicações, como bem veremos.

1.2
A RAZÃO NEGRA E A CONSCIÊNCIA OCIDENTAL
DO NEGRO: MEMÓRIAS DA PLANTAÇÃO

Essa economia da ficção Mbembe vai chamar de processos de efabulação,


procedimentos que irão forjar a Razão Negra como um

[...] conjunto de vozes, enunciados, discursos, saberes, comentá-


rios e disparates, cujo objeto é a coisa ou as pessoas de origem
africana e aquilo que afirmamos ser o seu nome e a sua verdade
(os seus atributos e qualidades, o seu destino e significações
enquanto segmento empírico do mundo.) (MBEMBE, 2016, p. 57).

A consciência ocidental do Negro é então formada por um ato repetitivo,


um laborioso trabalho cotidiano que se “constitui em inventar, contar, re-
petir e pôr em circulação fórmulas, textos, rituais, com o objetivo de fazer
acontecer o negro enquanto sujeito de raça e exterioridade selvagem”
(MBEMBE, 2016, p.58). Ao se pôr em discurso, essa enunciação passa
a fazer sentido, transformando o que era antes uma posição virtual em
posições reais: “então, enquanto os simulacros encontram quem os adote,
nascem os ‘sujeitos’ que os assumem”. (LANDOWSKI, 1992, p. 172).
46

Tais reflexões nos ajudam a entender como se construiu a pretensa univer-


salidade da cultura ocidental que, para Santos (2010), tem o conhecimento
e o direito moderno como as manifestações mais vitoriosas disso que ele
chama de pensamento abissal:

[...] no campo do conhecimento, o pensamento abissal consiste


na concessão à ciência moderna do monopólio da distinção
universal entre o verdadeiro e o falso, em detrimento de dois
conhecimentos alternativos: a filosofia e a teologia. O caráter
exclusivo deste monopólio está no cerne da disputa epistemo-
lógica moderna, entre as formas científicas e não científicas de
verdade. […] a sua visibilidade assenta na invisibilidade de formas
de conhecimento que não encaixam em nenhuma destas formas
de conhecer. (SANTOS, 2010, p. 33).

Apesar de reconhecer que muito desse olhar sobre a África e seus des-
cendentes data da Antiguidade, Mbembe (2014) salienta que é a Idade
Moderna o momento decisivo para a sua formação, pelo trânsito constante
de coisas e pessoas e, também, pela elaboração de uma ciência colonial
na qual repousa o Africanismo, o total desprezo.

É através dessa força expansiva, de seu poder de reprodução e multiplica-


ção no espaço, submetendo tudo aquilo que estivesse ao alcance de seu
horizonte ao seu universo de ideias, costumes, língua e leis, que a ordem
colonial se sustentava. Uma visão segundo a qual a humanidade está
dividida em espécies e subespécies – categorias distintivas por meio das
quais se diferencia, separa e classifica hierarquicamente.

Foi na zona da plantação, portanto, o terreno onde os conhecimentos se


tornaram incomensuráveis e incompreensíveis, por não obedecerem a
nenhum dos critérios científicos de verdade, nem aos teológicos nem aos
filosóficos. Impossibilitado de existir em copresença, há um descompasso
nas relações de espaço e de tempo:

[...] o presente que vai sendo criando do outro lado da linha é


tornado invisível ao ser reconceptualizado como o passado ir-
reversível deste lado da linha. O contato hegemônico converte
simultaneidade em não-contemporaneidade. Inventa passados
para dar lugar a um futuro único e hegemônico […] não com-
prometendo de forma alguma, a sua universalidade. (SANTOS,
2010, p. 37.)
47

Figura 7:
Joaquim Pinto de Oliveira Tebas,
Pedra Fundamental da fachada da
Igreja de são Bento, colocada na
base do cunhal, 1766.
Fonte: ARAÚJO, 1988.

Figura 8:
Ex-voto. Colhido no Cruzeiro
da Menina, Patos, PA.
Fonte: ARAÚJO, 1988.

Figura 9:
Gutê. Borbuleta, 1986.
Fonte: ARAÚJO, 1988.

Figura 10:
Paulo Pardal. Hermafrodita
em autocoito, 1987.
Fonte: ARAÚJO, 1988.
47 48

Figura 5:
Rabelo. O menino Jesus aparece a Santo Antônio,
1749. Detalhe do anjo do teto do coro da Igreja e
Mosteiro de Santo Antônio.
Fonte: ARAÚJO, 1988.

Figura 6:
Octávio Araujo, François Boucher por que ou
O Promontório, 1987.
Fonte: ARAÚJO, 1988.

Figura 11:
Lista dos principais quilombos brasileiros.
Fonte: Bantos, malês e identidade negra. (1988).
49

Classificar e criar categorias sub-humanas foi, assim, o meticuloso tra-


balho de ficção enunciativa criado pelos humanismos dos séculos XV e
XVI. Baseado na ideia da inferioridade e degeneração, o racismo, conforme
aponta a historiadora Lilian Moritz Schwarcz (2017), molda-se segundo
um modelo científico referenciado numa ciência positivista e determinista,
gestada pelos princípios de igualdade disseminados a partir da Revolução
Francesa, em que o caráter biológico se torna decisivo para distribuir, em
escalas, todo o resto do mundo que fosse diferente da civilização européia.
Ainda segundo a autora, a primeira grande classificação das raças se deu
por volta de 1749, quando chegam ao público os três primeiros volumes
de Histoire Naturelle, escritos pelo conde de Buffon, fundando a tese da
debilidade e imaturidade do continente americano.

Chamando esse período de o ‘momento gregário do pensamento ocidental’,


Mbembe diz que, nele,

[...] o Negro é representado como um protótipo de uma figura


pré-humana, incapaz de superar a sua animalidade, de se au-
to-produzir e de erguer a altura do seu deus. Fechado nas suas
sensações, tem dificuldade em quebrar a cadeia da necessidade
biológica, razão pela qual não chega a moldar o seu mundo e
a conceder a si mesmo uma forma verdadeiramente humana.
(MBEMBE, 2014, p. 39).

Para ele, o momento gregário do pensamento ocidental será então “aquele


ao longo do qual, ajudado pelo instinto imperialista, o ato de captar e de
apreender ir-se-á progressivamente desligando de qualquer tentativa de
conhecer a fundo aquilo de que se fala.” (MBEMBE, 2014, p. 39).

À primeira vista, as razões avançadas para justificar o colonialismo eram de


ordem econômica, política, militar, ideológica ou humanitária. Tratava-se de

[...] conquistar novas terras, a fim de nelas instalar o excedente da


nossa população; encontrar novas saídas para os produtos das
nossas fábricas e das nossas minas e as matérias-primas para
as nossas indústrias; plantar o estandarte da civilização entre
as raças inferiores e selvagens e atravessas as trevas que as
envolvem; com o nosso domínio, assegurar a paz, a segurança e a
riqueza a tantos desafortunados que antes não conheciam estes
benfeitores; estabelecer em terras ainda infiéis uma população
laboriosa, moral e cristã, propagando o evangelho aos campo-
neses, ou ainda pôr fim, através do comércio, ao isolamento que
o paganismo engendra. (MBEMBE, 2014, p. 118).
50

Capturados de suas casas, foi na plantação, em uma terra antes desco-


nhecida, que homens e mulheres foram desprovidos de qualquer ideia de
humanidade. Animalizados e interditados de toda possibilidade de futuro,
passaram a ter uma vida que apenas fazia sentido na relação de servidão.
Ainda segundo Mbembe, durante a escravatura, a plantação afigurava-se
como a engrenagem essencial de uma ordem selvagem e cruel, na qual a
violência racial cumpria três funções:

[...] por um lado, visava enfraquecer as capacidades dos escravos


para assegurarem a sua reprodução social, na medida em que
eles nunca conseguiriam reunir os meios indispensáveis para uma
vida digna desse nome. Por outro lado, a brutalidade tinha uma
dimensão somática. Pretendia imobilizar os corpos, destruí-los
se necessário. Por último, atacava o sistema nervoso e procurava
extinguir todas as capacidades de as suas vítimas criarem um
mundo de símbolos. (MBEMBE, 2014, p. 259).

Instituição paranóica, é sob a égide de um medo molecular que a lógica


da plantação, constituída numa rede fragmentada de intrigas, submissão,
desconfianças, jogos e rivalidades, produz o Negro: “produzir o negro é
produzir um vínculo social de submissão e um corpo de exploração, isto
é, um corpo inteiramente exposto à vontade de um senhor, e do qual nos
esforçamos para obter o máximo de rendimento. (MBMBE, 2014, p. 40).

Definindo todas as gentes como almas vazias em terras sem lei, o olhar
ocidental apropriou-se delas, incorporando-as e cooptando-as, e as violou,
destruindo-as física, material, cultural e humanamente. No interior das
regras do direito e nos procedimentos de apropriação e violência, a Lei da
Raça passa a ter uma correlação direta com a extração de valor e a produção
do capital, fazendo emergir, a partir do trabalho escravo e das instituições
criadas com o tráfico negreiro, uma nova consciência planetária:

Não sabendo de todo distinguir entre o que está dentro e o que


está fora, os invólucros e os conteúdos, ela [a ideia de raça ou ra-
cismo] remete, antes de mais, para os simulacros da superfície. […]
Quanto ao resto, trata-se do que se apazigua odiando, mantendo
o terror, praticando o alterocídio, isto é, construindo o Outro não
como semelhante a si mesmo, mas como objeto intrinsecamente
ameaçador, do qual é preciso proteger-se, desfazer-se, ou que,
simplesmente, é preciso destruir, devido a não conseguir assegurar
o seu controle total. (MBEMBE, 2014, p. 25-26).
51

1.3
PRODUZINDO A DIFERENÇA: ALTERIDADE X IDENTIDADE

Quando a civilização europeia entrou em contato com o negro,


[…] todo o mundo concordou: esses negros eram o princípio
do mal […] negro, o obscuro, a sombra, as trevas, a noite, os
labirintos da terra, as profundezas abissais.
(Fanon, 1980, p. 154)

Após essa incursão pelos fatos ficcionados na história e o necessário


reconhecimento, no plano do conteúdo, do discurso científico efabulado
sob o nome de uma Lei da Raça, avançaremos a fim de analisar como se
descrevem as disparidades em termos de estatutos, papéis e posições que
demarcam e interdefinem as relações e interações entre esse Eu-Branco
e o Outro-Negro.

Logo, é preciso elucidar que o alterocídio de que fala Mbembe (2014)


não seria outra coisa que não a articulação entre identidade e diferença
experienciadas ao longo dos séculos entre os diferentes povos e, aqui,
centradas na civilização européia, e os efeitos do seu projeto de expansão
e dominação pelo mundo. Para Landowski (2002, p. 14),

[...] a produção da diferença, como se vê, só pode ser concebida


como um processo relativamente complexo que mobiliza pelo
menos dois planos. O primeiro é de ordem referencial; em geral,
ele é descrito (em função de uma clivagem de ordem filosófica
aparentemente a toda prova), seja em termos biológicos, seja
em termos sociológicos. Assim, ainda hoje, para uns, o que faz
com que o outro seja “outro” diz respeito pura e simplesmente às
leis da genética: a diferença é um fato de natureza; para outros,
ao contrário (mais numerosos?), trata-se, antes, de um fato de
sociedade […]. Seja como for, justificar assim o surgimento de
diferenças objetivas, de ordem biológica, econômica ou cultural,
não basta: é preciso, além disso, que as distinções “contatadas”
se tornem, de uma maneira ou de outra, significantes. É isso que
possibilita a passagem para um segundo plano, propriamente
semiótico, onde, como acabamos de notar, certas diferenças
reconhecidas no plano anterior (mas não todas), acham-se fi-
nalmente tratadas à maneira dos traços distintivos, do plano da
expressão de uma língua, isto é, consideradas como equivalente
de tantas posições “fonologicamente” pertinentes com vistas à
construção de um universo de sentido e de valores.
52

Baseado na crença de uma superioridade racial de uma hegemonia bran-


ca, o estatuto da raça acompanha a própria inabilidade do Eu-branco em
tratar com equidade todos os Outros concebidos como desiguais. Nesse
processo de racializar o que está a sua volta, constrói-se, na diferença com
o outro, a sua própria identidade:

[...] o que dá forma a minha própria identidade não é só a maneira


pela qual, reflexivamente, eu me defino (ou tento me definir) em
relação à imagem que outrem me envia de mim mesmo; é também
a maneira pela qual, transitivamente, objetivo a alteridade do
outro, atribuindo um conteúdo específico à diferença que me
separa dele. Assim, […] a emergência do sentido de identidade,
parece passar necessariamente pela intermediação de uma
alteridade a ser construída. (LANDOWSKI, 2002, p. 4).

Ao repetir padrões e construir simulacros, conduz-se a uma crise de al-


teridade, conflito este no qual se define e constitui o próprio conceito de
branquitude. Retomando Frankenberg, Piza o define como

[...] um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê aos outros e


a si mesmo; uma posição de poder não nomeada, vivenciada em
uma geografia social de raça como um lugar confortável e do
qual se pode atribuir ao outro aquilo que não atribui a si mesmo
(FRANKENBERG, 1995, p. 43 apud PIZA, 2002, p. 71).

Do alto de sua neutralidade e na impossibilidade de demarcar-se a si


mesmo, o seu posicionamento como raça torna-se dispensável: grava-se
com ferro em brasa o que de longe parecer escuro, desconhecido, con-
traditório e diferente. Para Piza (2002, p.85 ), “torna-se, na verdade, uma
porta de vidro. Gera transparência de um universo que é observado como
único, geral, imutável”. Nesse universo, onde reina absoluto como única
possibilidade de existência humana, “são os ‘Outros’ que devem mudar.
São os ‘Outros’ que devem se aproximar. São os ‘Outros’ que são vistos,
avaliados, nomeados, classificados, esquecidos […].” (PIZA, 2002, p. 85).

Mas o que justifica olhar o outro como um alien (do latim outro), um estranho,
e não como um outro com o qual possamos nos constituir como coletividade
humana? Uma das proposições de que trata os estudos da subjetividade,
refere-se ao medo. Medo de perder a si mesmo, receio da dissolução, tor-
nando necessário, quase de forma vital, controlar qualquer fluxo externo
que signifique ameaça ao equilíbrio interno e à estabilidade que se constitui
53

em coletividade. Seja do ponto de vista fisiológico (miscigenações de toda


a espécie), através do viés sócio-econômico e dos modos de vida, seja do
ponto de vista linguístico, religioso, jurídico, político ou de pureza étnica,
o que Landowski diz é que essa heterogeneidade potencial, à qual o grupo
de força se opõe com tanta intensidade, é uma relação paradoxal, pois é
este mesmo grupo que a faz existir: primeiro, “em superfície, produzindo
socialmente disparidades de toda ordem”, depois, num segundo momento,
“num nível mais profundo, construindo sem cessar, semanticamente, a
diferença”. (LANDOWSKI, 2002, p. 11).

Citando Franz Fanon, Maria Aparecida Silva Bento, em Psicologia Social


do Racismo (2002), fala que o medo produzido pelo contato de brancos
e negros pode ter sido motivado pelo medo da sexualidade, instância
altamente condenada pela igreja européia, provocando inúmeros geno-
cídios, inclusive contra mulheres, as quais foram satanizadas ao ponto de
desencandear o que ficou conhecido na Europa como caça às bruxas. Além
disso, ela relata o medo gerado a partir das epidemias que devastaram o
continente nos séculos XVI e XVII, e que desencadeou uma perseguição aos
culpados – estrangeiros, viajantes, marginais, negros, judeus, mendigos
e estranhos à comunidade. De modo que

[...] representar o outro como arauto do mal, serviu de pretexto


para ações racistas em diferentes partes do mundo. A agressivi-
dade pôde ser dirigida contra esse inimigo comum (a outra raça),
sentida como ameaça, ainda que na maioria dos lugares ela não
tivesse nenhum poder. […] É um tipo de paranóia que caracteriza
frequentemente quem está no poder e tem medo de perder seus
privilégios. Assim, projeta seu medo e se transforma em caçador
de cabeças. (BENTO, 2002, p. 38).

Do ponto de vista das práticas mediadoras das relações identitárias propos-


tas Landowski (2002, p.15), e que se estabelecem como posições a partir
das relações do quadrado semiótico da circulação de valores, tem-se em
relação de oposição a categoria de base assimilação vs. exclusão, e, nas
posições subcontrárias, a relação de oposição da categoria segregação vs.
admissão. Esses eixos do modelo de Landowski podem ser usados aqui
para ajudar na compreensão de como se dão semanticamente as relações
de alteridade entre o Eu-Branco e o Outro-Negro. Com a visualização
dessas relações, pode-se entender melhor a circulação entre as posições
pelos tipos de relações lógicas estabelecidos:
54

CONJUNÇÃO DISJUNÇÃO
(inclusão)
Assimilação Exclusão

Admissão Segregação
(agregação)
NÃO-DISJUNÇÃO NÃO-CONJUNÇÃO
Esquema 2:
Organização esquemática das relações
Fonte: LANDOWSKI, 2002.

Parece-nos que cada um dos termos poderia corresponder, em maior ou


menor grau, a momentos específicos, no decorrer da história, até a situ-
ação na qual nos encontramos atualmente. Excluir, assimilar, segregar e
agregar parecem ser procedimentos utilizados em momentos diferentes,
ainda que com uma mesma intenção.

Se tomarmos a Europa como território e objeto de valor, espaço topológico


onde se constituem e são constitutivas as relações de superioridade que
marcam a identidade e o pertencimento eurocêntrico para com o Outro-
Negro, estabelece-se uma relação de exclusão, exilando-os na colônia:
terras estranhas como eles, lugar de nada e de ninguém, espaço vazio, um
alhures, pronto a ser preenchido.

O que os efeitos de sentido de algumas das bricolagens que construíram as


fronteiras entre o Eu e o Outro – e que se apresentam, para nós, no plano nar-
rativo do discurso científico, aqui exposto – mostram, é que que a conjunção
total que precede a segregação, em nosso caso, a humanidade, deixou de
existir na medida em que, com a Lei da Raça, o Negro deixa de ser humano.
Claro que não vamos desconsiderar os pequenos gestos de solidariedade
que, em face do massacre puderam existir. Contudo, diante da carnificina e
mediante os contratos previstos no programa de instauração e regularização
da escravidão do Outro Negro a serviço do destinador Branco, não houve,
na escravidão de negros, nenhuma percepção da alteridade do outro, nada
que os conectasse em semelhança, capaz de atenuar os maus tratos físi-
cos por eles sofridos. É no Brasil colônia, com os primeiros povoamentos,
55

chegadas de gentes e brancos de todos os cantos e com as urbanizações, que


se manifestam no território nacional as práticas de segregação, assimilação
e admissão. Debruçaremo-nos sobre isso nas páginas a seguir.

1.4
DA MANIPULAÇÃO À PROGRAMAÇÃO: ATUALIZAÇÕES
E DISSEMINAÇÕES NO BRASIL COLÔNIA

Fazer acreditar, transformar em verdade e, mais que em verdade, transformar


em ciência, em algo acima de qualquer suspeita quanto à sua verdade, foi o
papel e a contribuição do discurso da Lei da Raça na formação da consciência
ocidental do Negro. Postas em discurso, as teorias se tornam o fundamento
para uma série de ações, práticas e procedimentos que sedimentaram as
bases de construção das próprias relações institucionais do Brasil colônia
que, como veremos neste trabalho, estão presentes no imaginário e, por-
tanto, nas bases estruturantes da sociedade brasileira, até os dias de hoje.

O que comprova a eficácia social desse discurso que, à primeira vista, parece
tão longínquo da nossa realidade, é a sua capacidade de fazer-crer e fazer-ser
operando um programa determinado para o sujeito e, em seguida, manipu-
lando estrategicamente para que, em coletividade, se cumpra o programa-
do: fazer o outro fazer. Mais do que fundar o objeto Negro, o pensamento
ocidental transforma o racismo em uma prática, atualizando o corpo negro
como objeto de exploração não somente do ponto de vista econômico, mas
sobretudo no plano simbólico. Para transformar o negro em mercadoria, foi
preciso destituí-lo da sua humanidade, descaracterizar sua identidade e todo
o rico e complexo sistema simbólico que, da África, esses corpos traziam,
como nos mostra Leda Maria Martins, em seu livro Afrografias da Memória:

[...] os africanos transplantados à força para as américas, através da


diáspora negra, tiveram seu corpo e seu corpus desterritorializados.
Arrancados do seu domus familiar, esse corpo, individual e coletivo,
viu-se ocupado pelos emblemas e códigos do europeu, que dele se
apossou como senhor, nele grafando seus códigos lingüísticos, filo-
sóficos, religiosos, culturais, sua visão de mundo. Assujeitados pelo
perverso e violento sistema escravocrata, tornados estrangeiros,
coisificados, os africanos que sobreviverem as desumanas condições
da travessia marítima transcontinental foram destituídos da sua
humanidade, desvestidos dos seus sistemas simbólicos, menos-
prezados pelos ocidentais e reinvestidos por um olhar alheio, o do
europeu. Esse olhar, amparado numa visão etnocêntrica e eurocên-
trica, desconsiderou a história, as civilizações e culturas africanas,
56

predominantemente ágrafas, menosprezou sua rica textualidade


oral; quis invalidar seus panteões, cosmologias, teogonias; impôs
como verdade absoluta, novos operadores simbólicos, um modus
alheio e totalizante de pensar, interpretar, organizar-se, uma nova
visão de mundo, enfim. (MARTINS, 1997, p. 24).

Silenciar, apagar, omitir e fazer esquecer foram algumas das principais es-
tratégias utilizadas durante séculos para reprimir não somente a identidade
negra como também sua participação na formação da nação brasileira.
Um dos elementos mais representativos do fazer calar e manter a tortura,
o medo e a dor nesse regime de silenciamento, próprio da política sádica
do colonialismo, foi a Máscara de Flandres. Além de cumprir a função de
↔↔ VEJA A FIGURA 14 NA

evitar que os escravizados comessem alimentos da plantação, servia para


PÁGINA 80.

manter o controle sobre a boca, o órgão por excelência da enunciação.

No século XIX, em território brasileiro, a Lei da Raça se atualiza mais uma


vez. Para alimentar o regime de programação, vamos ver atuar sobre esse,
em implicação, o regime de manipulação que instala na dinâmica um ou-
tro princípio, o da estratégia. Tal mudança é posta a partir de um retorno
à fabricação das questões relativas à ideia de raça que, instaurando-se
com o processo de globalização e seus efeitos, podem ser traduzidas, por
exemplo, na difusão dos ideais eugenistas. Sobre a manipulação, Landowski
(2014, p. 220) destaca que,

[...] do ponto de vista narrativo, a operação (regime de programa-


ção), se confunde com a execução de uma performance que tem
como efeito direto a transformação de algum “estado de coisas”,
a manipulação aponta para transformar o mundo mediante uma
condição estratégica prévia que tem em vista, se não em todos
os casos os “estados de alma”, ao menos a competência de um
outro sujeito, o ‘querer fazer” que o levará a agir, seja operando
por si mesmo sobre o mundo como tal, seja manipulando por sua
vez outro sujeito, seja até mesmo segundo outro procedimento
que ainda falta por identificar e por definir.

Não é coincidência que, com o fim do tráfico internacional de escravos e a


abolição de escravatura, haja uma biologização decisiva da raça com o for-
talecimento das teorias baseadas no pensamento evolucionista darwinista e
pós-darwinista que, segundo Schwarcz, partiam de três proposições básicas:

[...] a primeira tese afirmava a realidade das raças, estabelecendo


que existiria entre esses agrupamentos humanos a mesma distân-
cia encontrada entre o asno e o cavalo. A segunda instituía uma
continuidade entre caracteres físicos e morais, determinando que a
57

divisão do mundo entre raças corresponderia a uma divisão entre


culturas. Um terceiro aspecto apontava para a predominância
do grupo “raciocultural” ou étnico no comportamento do sujeito,
conformando-se como uma doutrina da psicologia coletiva, hostil
a idéia do arbítrio do indivíduo. (SCHWARCZ, 1996 p. 100).

A Eugenia – eu: boa, genes: geração – seria, portanto, um ideal político e


uma prática avançado do darwinismo social que, enaltecendo os tipos pu-
ros e em nome da fobia incutida sobre a possibilidade das miscigenações
raciais, passaram a enxergá-las como sinônimo de degeneração, levando a
ter como meta a intervenção na reprodução das populações. Ligada à noção
de que a capacidade humana estava exclusivamente relacionada à heredi-
tariedade e pouco devia à educação, a teoria eugenista foi ainda base para a
antropologia criminal, que afirmava ser a criminalidade um fenômeno físico
e hereditário e, por isso, visivelmente detectável através da estigmatização
de certos grupos raciais (SCHWARCZ, 2017). Tal fato nos ajuda a explicar,
por exemplo, o porquê de, nos anos 1990, a Academia de Polícia Militar usar
como máxima a frase “Negro parado é suspeito, negro correndo é ladrão”,
sentença que inspirou a obra coreográfica Movimento I: Parado é Suspeito5,
5.  Sobre este tra-
balho escrevi um do diretor Mario Lopes, que, em 2017, surge como mais uma fratura, entre
texto para a Revista outras práticas artísticas que veremos aqui, para discutir e visibilizar o
B ravo! que está
genocídio da população negra pelo Estado e seu braço armado, a polícia.
d i s p o n í ve l a q u i :
https://medium.com/
revista-bravo/negro-
Se o negro representa o perigo biológico, mais uma vez Maria Aparecida
parado -%C 3%A9-
suspeito-negro- Silva Bento nos elucida sobre o medo como um elemento presente na
correndo-%C3%A9- gênese das políticas institucionais de exclusão para manutenção dos
ladr%C3%A3o-
privilégios, sendo, por conseguinte, fundamental para a compreensão das
992b092f99
relações raciais no país:

[...] esse medo assola o Brasil no período próximo à Abolição da


Escravatura. Uma enorme massa de negros libertos invade as
ruas do país, e tanto eles como a elite sabiam que a condição
miserável dessa massa de negros era fruto da apropriação in-
débita (para sermos elegantes), da violência física e simbólica
durante quase séculos por parte dessa elite. É possível imaginar
o pânico e o temor da elite que investe, então, nas políticas de
imigração européia, na exclusão total dessa massa do processo
de industrialização que nascia e no confinamento psiquiátrico e
carcerário dos negros. (BENTO, 2002, p. 36).

Imobilizar um povo tido como insubordinado, atribuindo aos elementos


físicos próprios das características raciais os motivos da sua degeneração,
foi uma das medidas coercitivas ancorada tanto na medicina quanto na
58

política, através de propostas de emendas arianizantes que impediam


a imigração de pessoas negras no Brasil, ao passo que incentivavam a
imigração européia. O objetivo era embranquecer o povo brasileiro, ace-
lerando o processo através da miscigenação, o que levaria à assimilação e
a extinção do negro em nosso país, como fica claro na declaração de 1938
do Ministro das Relações Exteriores do Estado Novo, Osvaldo Aranha:

O Brasil precisa ser corretamente conhecido. Especialmente a sua


situação política. E, já que vai estudar os negros, devo dizer-lhe
que o nosso atraso político, que tornou esta ditadura necessária,
se explica perfeitamente pelo nosso sangue negro. Infelizmente.
Por isso, estamos tentando expurgar esse sangue, construindo uma
nação para todos, limpando a raça brasileira. (LOPES, 1988, p. 183).

Igualmente presente na tese de Sylvio Romero, crítico literário, promotor,


juiz e deputado, que afirma:

A minha tese, pois, é que a vitória na luta pela vida, entre nós, per-
tencerá no porvir ao branco; mas que este, para essa mesma vitória,
atento às agridas do clima, tem necessidade de aproveitar-se do
que é útil as outras duas raças lhe podem fornecer, máxime a preta,
com quem tem mais cruzado. Pela seleção natural, todavia, depois
de prestado o auxílio de que necessita, o tipo branco irá tomando a
preponderância até mostrar-se puro e belo como no velho mundo.
Será quando já estiver de todo aclimatado no continente. Dois
fatos contribuirão largamente para tal resultado: de um lado a
extinção do tráfico africano e o desaparecimento constante dos
índios, e de outro a imigração européia! (BENTO, 2002, p. 37).

Numa nação dita em transição, a assimilação foi a única forma possível de


explicar como um país miscigenado e fruto de um processo de escravidão se
aproximaria, em seu discurso, dos moldes europeus de civilização. Assimilar
seria, então, para Landowski, esse processo de padronizar e absorver para re-
modelagem e completa fusão a partir de um gesto que se desenvolve – diferente
da exclusão vista no período colonial – como fruto de um desconhecimento
mais “pensado” daquilo que fundamenta a alteridade do dessemelhante:

[…] sendo as atitudes e comportamentos que fazem a “diferença


“ do dessemelhante vistos, mais ou menos, como puros acidentes
da natureza – e não como elementos que assumiriam sentido no
interior de uma (outra) cultura -, o Outro se encontra de imediato
desqualificado enquanto sujeito: sua singularidade aparentemen-
te não remete a nenhuma identidade estruturada. E é finalmente
este desconhecimento – ingênuo o deliberado – que fundamenta
a boa consciência do Nós em sua intenção assimiladora: não só
o estrangeiro tem tudo a ganhar ao se fundir de corpo e alma no
59

grupo que o acolhe, mas, além disso, o que ele precisa perder de
si mesmo para aí se dissolver como lhe recomendam não conta,
estritamente falando, para nada. (LANDOWSKI, 2002, p. 7).

No caso brasileiro, dois fatos, portanto, precisam aqui ser recuperados: “o


desconhecimento deliberado” com a ação de apagamento da presença negra
na história e a desmedida crença na ideia de melhoramento, nesse projeto
de assimilação, ambos servindo de fundamento para a teoria do branque-
amento e, em seguida, para a construção do mito da democracia racial:

Sabemos que as medidas coercitivas visando à emigração maciça


dos negros para a Àfrica, principalmente após a grande Revolta
dos Malês em 1835; o envio de tropas predominantemente in-
tegradas por negros e mestiços à Guerra do Paraguai (no qual
morreram 2/3 da população negra do Império (Chiavenatto,
1980:194); a queima dos registros da escravidão e do tráfico
determinado por Ruy Barbosa; a não inclusão de nenhuma
referência a importante história da África Negra no programa
das escolas (e a apresentação do Egito como algo totalmente
desvinculado do continente africano); a pouca importância que
a história oficial dá à resistência do negro a escravidão e a sua
contribuição na formação da sociedade brasileira; a obsessão
em afirmar que o Brasil é uma “democracia racial”; a retirada
do item “cor” do censo demográfico; a promoção, a partir de
1990, de uma imigração maciçamente branca e européia – a
partir da falsa premissa de que o negro era um mal trabalhador
e o imigrante europeu, sim, é que era o agente mais eficaz para
acelerar a passagem do Brasil para o capitalismo (Chalhoub,
1986: 75) -, são algumas formas utilizadas, através dos tempos,
para embranquecer o povo brasileiro. (LOPES, 1986, p. 185).

Além de uma construção racional que, como vimos, atestava a inferioridade


do negro, e por isso o desqualificava como sujeito, não se pode perder de
vista que a tentativa de silenciamento nada mais é do que uma atitude
sistemática para que não sejam reparados os mais de 400 anos de apro-
priação violenta, concreta e simbólica, e para que não ganhe visibilidade a
gravidade moral e ética da violação institucionalizada dos direitos humanos.
Se pensarmos a Máscara de Flandres como uma imagem expandida, que
se atualiza ao longo do tempo em outras formas de enunciar, veremos que
ela continua presente quando, por exemplo, se invisibiliza qualquer tipo de
manifestação artística que se propõe a denúncia: abafou-se e desumani-
zou-se para o acúmulo, silencia-se para manutenção desses privilégios.

Nesse sentido, recalcar e rejeitar foram os primeiros passos para dar vida
ao desejado branqueamento nacional e agregar valor positivo à ideia de
60

mistura. Como nos mostra Lopes, no trecho citado acima, não é à toa que a
teoria de branqueamento coincide com o processo de industrialização. Neste,
por trás da ferverosa campanha para a promoção da imigração européia,
escondia-se a ideia de que não havia mão de obra especializada no Brasil,
resultando numa monopolização dos postos de trabalho pelos imigrantes e
na exclusão definitiva do negro na sociedade de classes. Impedido de colher
os frutos da universalização do trabalho livre, o branqueamento, como uma
invenção da elite branca, passa a ser incutido no negro como um ideal a
seguir, já que embranquecer-se seria, ao fim, símbolo de ascensão social.
Essa coerção, fruto de manipulação, deixa traços traumáticos na formação
da personalidade e na construção da identidade do negro, assunto sobre
o qual iremos nos ater com mais profundidade no próximo capítulo, já que
é plasmando-se na estética e em suas diversas manifestações e práticas
artísticas que ela se faz e se refaz, produzindo rupturas e resistência.

1.5
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O
PROJETO DE EMBRAQUECIMENTO

Gente misturada, povo de uma nação multicor, onde todos vivem pacifica-
mente, sem conflitos e sem vestígios de atraso. Foi assim que se formou,
como política nacional, a identidade do povo brasileiro. Estratégia de apaga-
mento, o mito da democracia racial tornou-se uma das principais armadilhas
para as políticas afirmativas, tanto no processo de construção da identidade
negra quanto no que diz respeito ao despertar de uma consciência coletiva
sobre a importância de olhar para a história na luta por direitos. Presente
no senso comum até os dias de hoje, o mito heróico das três raças foi o
estereótipo consolidado no nosso imaginário que, ao se valer do atributo
cor e de seu uso flexível, numa extensa propaganda oficial ocorrida nos
anos de 1920 e 1930, transformou o que era uma imagem negativa numa
visão enaltecida expressa pela ideia de democracia racial. Seus efeitos são
o nascimento de uma tolerância racial e o desenvolvimento de um racismo
silencioso e molecular, que se disfarça, se esconde e se atualiza diariamente:

De fato, amparada por intelectuais como Gilberto Freyre, mas


também Arthur Ramos e Donald Pierson, certo projeto oficial
de representação nacional, expresso pelo perfil mestiçado da
população e pelo convívio cultural e esportivo, transformou a
imagem do país de maneira que ele fosse reconhecido como
61

um exemplo no convívio amistoso entre raças. Amparado por


esse imagem é que, ainda nos anos de 1930, Walt Disney cria Zé
Carioca: um simpático papagaio brasileiro, malandro, bom de
samba, de capoeira e futebol. Era certa mestiçagem “inclusiva”
nacional que ganhava o mundo sob a forma de um papagaio,
animal que aparecia nos mapas sobre o Brasil desde o século
XIX e que representa a alteridade nas suas cores vivas e na sua
fala muitas vezes sem sentido. Também vinculada a esse dese-
nho do país foi a ampla pesquisa promovida pela Unesco, nos
anos de 1950, que elegeu o país como exemplo de convívio e de
relacionamento racial. (SCHWARCZ, 2017, p. 113)

É importante ressaltar que os argumentos pró-branqueamento se ancoram


numa adaptação brasileira da “teoria científica” de Joseph Arthur Gobineau
que, após uma visita ao Brasil, nos anos de 1869, disse que:

Nem um só brasileiro tem sangue puro porque os exemplares de


casamentos entre brancos e negros são tão disseminados que as
nuances de cor são infinitas, causando uma degeneração do tipo
mais deprimente tanto nas classes baixas, como nas superiores.
(CARONE, 2002, p.14).

Ainda segundo Iray Carone (2014, p.14), o racismo de Gobineau estava fun-
dado “numa visão poligenista da humanidade e condenava o cruzamento
inter-racial, que teria como consequências a perda da pureza do sangue
da raça branca e a produção de seres inférteis”, misturas que comprome-
teriam o desenvolvimento da nossa civilização. Essa concepção nos ajuda
a explicar de onde surge um termo tão amplamente disseminado e uma
imagem tão freqüentemente revisitada, tendo sido, posteriormente, posi-
tivada na TV, na literatura e, sobretudo, na música nacional: a do mulato e
da mulata brasileira. Serve-nos também como alicerce para compreender o
porquê de, nos dias de hoje, essa imagem ser um dos alvos prioritários de
desconstrução e crítica: “o mestiço seria o mulato, o equivalente ao mulo,
animal híbrido e infértil derivado do cruzamento do jumento com a égua
ou do cavalo com a jumenta.” (CARONE, 2014, p. 14).

Além da importação da força produtiva fundamentada no pensamento


liberal favorável à modernização industrial brasileira, uma outra linha
de argumentação pró-branqueamento, que reforçava a ideia de um me-
lhoramento da raça através da assimilação, foi produzida pelos juristas
positivistas brasileiros, que, ainda segundo Carone (2014), se baseava na
chamada “Lei dos três estádios” de Auguste Comte, um dos referenciais
científicos da teoria eugenista. Nela,
62

[...] a marcha para o progresso ou para a positividade das ciências


humanas, principalmente da sociologia, deveria corresponder
uma evolução das instituições sociais primitivas, tais como a
escravidão e o cativeiro dos homens praticados pelas socieda-
des antigas. Embora fossem progressistas na condenação da
escravidão tanto na Europa como nas Américas, eles defendiam
as concepções racialistas, segundo as quais as raças não só eram
definidas pelas características físicas comuns, mas também pelas
diferenças mentais transmitidas por hereditariedade. Do ponto de
vista político, supunham que as raças com maior desenvolvimento
evolutivo deveriam civilizar, tutelar ou absorver as raças com
desenvolvimento num estágio inferior. (CARONE, 2014, p. 15).

Conforme vimos anteriormente, além dos regimes de exclusão, segrega-


ção e assimilação, agregar também se tornou uma estratégia – ainda que
mascarada – para justificar um processo de apagamento transitório da
presença negra no Brasil. Para Munanga (2010, p. 450), “se de um lado,
a expectativa da miscigenação brasileira é discriminatória porque espera
que os negros clareiem em vez de aceitá-los tal qual são, de outro ela é
integradora como mecanismo de miscigenação”.

Tomar, então, os principais símbolos da cultura afro-brasileira tornou-se


uma forma de positivar e abrandar as políticas racistas inerentes ao processo
de miscigenação, elemento que ganhou força, por exemplo, nas mãos de
importantes teóricos e estudiosos da formação do povo brasileiro, como
indica Munanga referindo-se à obra de Darcy Ribeiro. Apesar de, em diversos
momentos, destacar a denúncia que Ribeiro faz da prática da miscigenação
como política de embranquecimento, Munanga assinala que não deixa de
haver, no célebre O Povo Brasileiro, um julgamento de valor que acaba por
aproximá-la dos discursos ideológicos defensores da democracia racial,
ao buscar no racismo nacional algo de positivo em contraponto a outras
formas de opressão e discriminação racial presentes na história:

Essa ideologia integracionista encorajadora do caldeamento, é,


provavelmente, o valor mais positivo da conjunção inter-racial
brasileira. Não conduzirá, por certo, a uma branquização de
todos os negros brasileiros na linha das aspirações populares
– afinal racistas, porque esperam que os negros clareiem, que
os alemães amornem, que os japoneses generalizem seus olhos
amendoados – mas tem o valor de reprimir antes a segregação que
o caldeamento. (RIBEIRO, 1995 apud MUNANGA, 2010, p. 451).

Mesmo ciente de o encontro de raças em solo brasileiro ter produzido as


diversas pluralidades com as quais nos deparamos todos os dias, o que
63

Munanga contesta é essa apologia da mestiçagerm como formação de


uma identidade nacional, integrada e consciente, como pregava Ribeiro.
Para ele, esse processo teria sido prejudicado pela ideologia e pelo ideal
de branqueamento:

[...] se todos – salvo as minorias étnicas indígenas –, negros, mestiços,


pardos, aspiram à brancura para fugir das barreiras raciais que
impedem sua ascensão socioeconômica e política, como entender
que possam construir uma identidade mestiça quando o ideal de
todos é branquear cada vez mais? (MUNANGA, 2010, p. 452).

Equívoco dos mais comuns nos dias de hoje, e discurso dos mais introje-
tados nas relações sociais do presente, esse tortuoso e ardiloso caminho,
tão custoso para ser desmistificado, chamado democracia racial, só mostra
o quão esculpido e estrategicamente manipulado ele foi, e o quão violento
foi e é a ação sobre o negro na história desse país. Ainda versando sobre os
efeitos das relações de admissão, Landowski nos ajuda a entender como
essa trama coercitiva, alimentada pela branquitude, levou-nos a essa crise
de identidade, dizendo que:

[...] para os grupos minoritários ‘acolhidos, o perigo é evidente: será


aquele, talvez ainda evitável, da expulsão, ou aquele outro, muito
mais difícil de contornar (porque inerente à própria dissimetria dos
dados do confronto), de uma absorção efetiva pela massa, de um
paulatino desaparecimento pelo apagar das diferenças. Evolução
quase inelutável porque, mais ou menos forçado, em uma verda-
deira mudança de identidade cultural parecerá provavelmente
representar a melhor chance, talvez mesmo o único meio de ga-
rantir, pelo menos a título pessoal, sua sobrevivência no ambiente
que o acolheu. Se a expressão – hoje meio desgastada – ‘crise de
identidade’ ainda pode ser aplicada adequadamente a alguma
coisa, é a este caso. (LANDOWSKI, 2002, p. 22).

Nesse sentido, o que Munanga sustenta – e com o que concordamos –,


nessa complexa discussão sobre a miscigenação racial, é que não se trata
de defender uma pureza racial, algo que iria na contramão do que vêm
enfatizando os movimentos negros brasileiros ao lutar pelo resgate de uma
identidade étnica e a construção de uma sociedade plurirracial e pluricul-
tural; mas de, no entanto, não “confundir o fator biológico da mestiçagem
brasileira (a miscigenação) e o fato transcultural dos povos envolvidos nessa
miscigenação com o processo de identificação e identidade, cuja essência
é político-ideológica” (MUNANGA, 2010, p.453 ). Reforçando que, fazê-lo,
seria cometer um erro epistemológico notável, ele conclui que,
64

[...] se do ponto de vista biológico e sociológico, a mestiçagem


e a transculturação entre povos que aqui se encontraram é um
fato consumado, a identidade é um processo sempre negociado
e renegociado de acordo com os critérios ideológico-políticos e
as relações de poder. (MUNANGA, 2010, p. 453).

O fato de as últimas investidas sistêmicas de constituição do racismo no


Brasil terem se constituído sob uma manipulação da estratégia de admissão
acabou por criar, ao fim, uma visão romântica e traiçoeira, que dificultou e
dificulta as lutas de resistência, jogando para o Negro a responsabilidade
sobre os efeitos forjados do embranquecimento. Sobre como se trama
essa visão, Landowski (1997, p.21) esclarece:

Enquanto a fórmula anterior se apresentava como um meio de


evitar o pior, na medida em que, por mais duramente segregativa
que fosse na prática, comportava, apesar de tudo, um princípio
de resistência opondo-se à dominação completa das pulsões
sociais centrífugas, a que abordamos agora [no caso a admis-
são], pode conduzir, se não ao melhor dos mundos, pelo menos
a uma forma de coexistência mais feliz, na medida em que, ao
favorecer por princípio a aproximação entre identidade distintas,
isto é, orientando-se globalmente no sentido de um movimento
centrípeto, ela também contém o princípio contrário, aquele de
uma resistência aos efeitos derradeiros desse movimento – à
laminagem das diferenças, à redução do múltiplo e do diverso
ao uno e ao uniforme.

Forjando esse “melhor dos mundos”, vemos que a criação do mito da


democracia racial brasileira e da miscigenação surge para abafar toda a
chance possível de libertação do Negro – seja de forma física ou simbólica
–, por meio de qualquer movimento e ação de resistência. Poderíamos dizer,
então, que ela é uma atualização dos sistemas de opressão da escravidão
e um efeito de sentido do discurso científico, plasmado em nome da Lei da
Raça – esta, como vimos, regida por um conjunto encadeado de passagens
entre o regime de manipulação (fazer-fazer) e o regime de programação
(fazer-ser). Com sua competência modalizadora, opera e manipula todo
o grupo social, introjetando a ética da inferioridade em nosso cotidiano:

[...] pensando nesses termos, o conceito de raça volta a ter impor-


tância como raça social, ou seja, uma categoria relacional refeita
socialmente e por consenso. Assim, raça é ainda operante, uma
vez que expressa o senso comum e a própria realidade cotidiana
e social. Se o conceito científico já não se aplica, seu uso diário o
refaz e essencializa a discriminação que se encontra escancarada
em nosso cotidiano. (SCHWARCZ, 2017, p.114).
65

Sobre o conceito de Raça social, Schwarcz explica que esta é uma “ex-
pressão encontrada por Nelson do Valle e Silva para explicar esse uso
travesso da cor e para entender o ‘efeito branqueamento’ existente no
Brasil” (SCHWARCZ, 2017, p.112). Isto é, o modo como estariam imbricadas
as discrepâncias entre cor atribuída e cor autopercebida e como “no país
esses fatores estão entrelaçados com as condições socioeconômicas e
culturais dos indivíduos.” (SCHWARCZ, 2017, p. 112).

Sob a ideologia do branqueamento, negar a si mesmo, seu corpo, história e


mente, tornou-se uma espécie de condição única para se integrar, para ser
aceito e ter mobilidade social na nova ordem econômica e social que se ins-
taurava. Foi nessa circunstância que milhares de famílias foram modalizadas
a agir apagando suas memórias, negando seu passado e desconectando-se
da sua ancestralidade, saberes e cosmologias. A cotidiana afirmação de
que, no Brasil, o maior preconceito é o social não passa, portanto, de uma
incoerência gerada pelo mito, já que classe e raça são conceitos construídos
conjuntamente. A pressão cultural do branqueamento e seus procedimentos
na vida do negro torna-se, então, uma das discussões centrais não somente
na produção da sua cultura, mas também da sua aparência e beleza:

[...] forjada pelas elites brancas de meados do século XIX e começo


do XX, a ideologia do branqueamento foi sofrendo importantes
alterações de função e de sentido no imaginário social. Se nos
períodos pré- e pós-abolicionistas ela parecia corresponder às
necessidades, anseios, preocupações e medos das elites brancas,
hoje ganhou outras conotações – é um tipo de discurso que atribui
aos negros o desejo de branquear ou de alcançar os privilégios
da branquitude por inveja, imitação e falta de identidade étnica
positiva. O principal elemento conotativo dessas representações
dos negros construídas pelos brancos é o de que o branqueamento
é uma doença ou patologia peculiar a eles. (CARONE, 2014, p. 17).

É preciso lembrar que praticar o racismo era uma constância nas relações
sociais cotidianas. Diminuir, invisibilizar e menosprezar as atitudes, o com-
portamento e a aparência dos negros e negras era normal e corriqueiro. Não
que hoje ainda não o seja, mas o fato de o racismo só ter sido considerado
crime a partir de 1989, com a Lei nº 7.716, fazia com que a discriminação
racial fosse uma condição existencial ainda mais intensa do que agora.
Com a constância dessa violência, sucumbir ao embranqecer-se se tornava,
então, uma verdade a ser perseguida para que não houvesse dor; verdade
essa que se transformou em padrão e repetição, jeito de ser e modo de vida.
Com o crescente distanciamento dos seus elementos identitários e em um
66

período no qual a consciência e o pensamento crítico, para muitos, ainda


eram inexistentes, ou mesmo como hoje, inacessíveis, o que se praticava
nas casas das famílias negras era a manutenção desse comportamento e
o não questionamento sobre a razão e o fundamento das suas condições.
Se toda a conjuntura social presente nos discursos e nas imagens apontava
que menos dor haveria se fosse branco, como não sucumbiria um corpo
marcado na memória da sua pele pelos mais cruéis maltratos? Entre o cons-
tante perigo de ter o seu disfarce revelado e a escancarada humilhação, é
certo que negar a sua identidade e promover diversas formas para atender
às demandas racistas do embranquecimento tornou-se uma alternativa
fortemente introjetada e presente na contemporaneidade, sendo umas das
principais discussões quando se reflete sobre as relações raciais no Brasil.

Para melhor qualificar o estatuto da brancura no domínio da racialidade,


Izildinha Baptista Nogueira nos auxilia, assinalando que:

A ‘brancura’ passa a ser parâmetro de pureza artística, nobreza


estética, majestade moral, sabedoria científica, etc. Assim, o
branco encarna todas as virtudes, a manifestação da razão, do
espírito e das idéias: ‘eles são a cultura, a civilização, em uma
palavra, a humanidade.’ (NOGUEIRA, 1998, p. 101-102).

Sobre essa busca por uniformização, que foram a miscigenação e o bran-


queamento, na tentativa de fazer com que o corpo negro perdesse a sua
qualidade de sujeito, Landowski (2002, p.21) diz que

[...] ‘é preciso’, se quiser limitar os efeitos desse processo, uma


vontade que, por definição, não proverá mais da ‘força das coisas’,
mas deverá emanar de alguma instância que exerça a função de
sujeito: cabe a cada uma das culturas postas em contato saber
e antes de tudo, querer ‘resistir’.

1.6
ESTEREÓTIPOS E RESISTÊNCIA

Diante de um panorama histórico em que exclusão, segregação, assimila-


ção e admissão se revezam nas relações de interação entre o Eu-Branco
e o Outro-Negro, objetivando o apagamento deste último, deixemos
uma questão: quais seriam os caminhos possíveis para ressignificar essa
identidade e como as manifestações artísticas vêm sendo tomadas como
modos de gestão do Si?
67

No plano das estratégias discursivas, fermentadas numa relação, como


vimos, assimétrica e desigual, o privilégio adquirido da branquitude na
construção de uma figura antiética, impossibilitando ao negro afirmar a
sua identidade, passa pelo uso inventivo dos estereótipos, que, segundo
Landowski, são tomados “não como descrição do Outro, mas como meio
expeditivo de reafirmar uma diferença”. (LANDOWSKI, 2002, p. 25).

A imagem excessivamente caricatural e simplista criada sobre o negro;


a “reunião barroca de anti-valores, o depósito do contrário e o túmulo do
negativo” (MBEMBE, 2012, p. 58); esse simulacro de caráter e contornos
tão grosseiramente esculpidos parece ser ainda, segundo o autor, uma
forma simplesmente posta pelo Eu-Branco para aterrorizar a si mesmo.
Assumir uma representação do outro tão rasa e desprovida de consistência
não seria uma declaração de que é impossível viver a sua identidade em
positividade e completude? A imagem construída, portanto, não viria a ser
um reflexo invertido dessa ausência de vida que não consegue se afirmar
sem que seja pela negação?

Postular categoricamente a finitude do Outro, pretender saber


o que ele é em sua ‘essência’ e, para caracterizá-lo, contentar-se
com a justaposição de uma série de clichês que fazem sobressair
seus ‘vícios’ ou suas ‘más-formações’, tudo isso provavelmente só
faz sentido para quem se satisfaz com uma visão simplista da
sua própria identidade (LANDOWSKI, 2002, p.26).

Ponto fundamental para entender a construção dos valores através das


práticas culturais e artísticas, Mbembe completa que é a partir daqui que

[...] “toda uma gama de intermediários e de instituições, tais


como sociedades eruditas, exposições universais, coleções de
amadores de ‘arte primitiva’’, colaborou, na devida altura, na
constituição desta razão e com a sua transformação em senso
comum ou em habitus. (MBEMBE, 2014, p. 57).

Com base nos discursos de poder que se expandem nas práticas de saber
e toma o mundo das palavras e das imagens, as linguagens assumem
papel central em aprisionar e dar contorno a esse corpo negro. Tomando
o teatro como investigação, Leda Maria Martins no seu célebre A Cena em
Sombras, diz que, no início do século XX, a presença dos personagens
negros e negras chega ao limite da invisibilidade:

[...] esta traduz-se não apenas pela ausência cênica da perso-


nagem, mas também pela construção dramática e fixação de
68

um retrato deformado do negro. […] Nesse teatro, o percurso


da personagem negra define sua invisibilidade e indizibilidade.
Invisível, porque percebido e elaborado pelo olhar do branco,
através de uma série de marcas discursivas estereotipadas, que
negam sua individualidade e diferença; indizível, porque a fala
que o constitui gera-se à sua revelia, reduzindo-o a um corpo e
a uma voz alientantes, convencionalizados pela tradição teatral
brasileira. (MARTINS, 1995, p.40).

As mesmas características podem ser encontradas em outros campos de


expressão que, criando suas figuras e temas referendados num imaginá-
rio racista, as articula e as movimenta, retroalimentando-as no cotidiano
social. Do ponto de vista de uma institucionalização dos espaços, havia
ainda um separatismo que definia o que era o bom e o mau gosto, a cultura
do povo e a das elites:

Tanto na colônia como no império, a ‘cultura europeia’ era um


‘quisto’ praticamente limitado aos salões da corte, conservatórios,
academias e saraus lítero-musicais. Esse ambiente no qual a
cultura branca vivia ilhada em pequenos espaços da sociedade
se estendeu até a Primeira República. (GILIOLO, 2013, p.18).

Coube, portanto, ao sujeito negro encontrar as estratégias para a sua


emancipação, os caminhos para a fuga de um desejado enclausuramento
do espírito. Nessa procura de si, incluí-se a busca por instaurar um arquivo,
recompor a história, inscrever-se e declarar sua identidade: “[aqui] o Negro
diz de si mesmo que é aquilo que não foi apreendido; aquele que não está
onde se diz estar, e muito menos onde o procuramos, mas antes no lugar
onde não é pensando. (MBEMBE, 2014, p. 59).

Foi em nome dessa sobra de humanidade e da reprodução, ainda que clan-


destina, dos modos de ser e existir, que, nesse confronto cotidiano, o negro
buscou, na resistência da ressignificação e reinvenção da manifestação da
sua cultura, uma forma de sobrevivência e afirmação.

Não abandonar a si mesmo, não ceder à renúncia da sua própria identida-


de e não permitir que se complete o destino programado de extinção de
qualquer rastro de memória sobre o seu passado têm sido, sem dúvida, o
grande legado que a existência negra tem construído ao longo dos séculos
de história do Brasil. Foi em face de si, assegurando-se na capacidade
intrínseca humana de produzir sentido, que o enunciar-se ganhou status,
para muitos, de prática de vida.
69

Atualizando o passado no presente, em um movimento que se faz para


frente e para trás, como numa viagem no tempo, a memória do corpo é
convocada como sustento de criação. Um corpo que não chegou e não sofreu
só. Tal proposição foi singularizada na já considerada lendária afirmação
dessa grande pensadora que é Leda Maria Martins, ao dizer que “A cultura
negra é uma cultura das encruzilhadas”. Para ela,

[...] com os nossos ancestrais vieram as suas divindades, seus


modos singulares e diversos de visão de mundo, sua alteridade
linguística, artística, étnica, técnica, religiosa, cultural, suas dife-
rentes formas de organização social e de simbolização do real.
As culturas negras que matizaram os territórios americanos, em
sua formulação e modus constitutivos, evidenciam o cruzamento
das tradições e memórias orais africanas com todos os outros
códigos e sistemas simbólicos, escritos e/ou agráfos, com que
se confrontaram. E é pela via dessas encruzilhadas que também
se tece a identidade afro-brasileira, num processo vital móvel,
identidade esta que pode ser pensada como um tecido e uma
textura, nos quais as falas e os gestos mnemônicos dos arquivos
orais africanos, no processo dinâmico de interação com o outro,
transformam-se e reatualizam-se, continuamente, em novos e di-
ferenciados rituais de linguagem e de expressão, coreografando
a singularidade e alteridades negras. (MARTINS, 1997, p. 26).

A esses momentos de emancipação, levantes e rebeliões descontínuos e às


rupturas travadas pelas lutas abolicionistas em nome da resistência negra,
Mbembe vai chamar de consciência negra do negro, um despertar formado
por uma vasta rede de pessoas comprometidas e ativamente implicadas
com a globalização intelectual do seu tempo e que fez circular pela diáspora
o imaginário negro moderno. Em busca de um novo modo de construção
de sua identidade, abre-se para novos possíveis, enunciando-se em um
devir, numa escrita que luta por “evocar, salvar, ativar e reatualizar a sua
experiência originária (a tradição) e reencontrar a verdade de si, já não
fora de si, mas a partir do seu próprio território”. (MBEMBE, 2014, p. 61).

Apesar de toda a sistemática objetificação e violência, do roubo do tempo


e de ter sua humanidade suspensa nas mais diversas práticas de crueldade
e desumanização, esse nome escravo continua a ser humano, a produzir
sentido e a tecer um mundo de significações. Através do gesto e da pa-
lavra, reconstroem laços, inventam línguas, religiões, danças e rituais, e
criam uma comunidade. De modo que a destituição e a abjeção que lhe
são impostas não eliminam de todo a sua força de simbolização.
70

Segundo Gilioli, a cultura afro-indígena era o traço predominante do co-


tidiano do período colonial, embora tais manifestações não fossem bem
aceitas – e algumas até proibidas pelas autoridades.” (GILIOLO, 2013, p.
18). Assim, reivindicando uma linguagem e seu estatuto de sujeitos, os
negros recriam as suas próprias manifestações culturais, costumes e prá-
ticas artísticas ressignificando, através da literatura, da música, das artes
visuais, da dança, do teatro, do cinema; das suas manifestações tradicionais
mito-poéticas-religiosas e sincréticas, os simulacros, os estereótipos e os
discursos efabulados e ficcionados, ditos em seu nome. Mais do que isso:
por meio da estética, põem em circulação uma axiologia que fratura a ética
subalternizante que rege a sociedade, articulando modos de gestão de si
na construção de um tempo de liberdade.

Se nesse capítulo nos debruçamos sobre a produção das questões raciais


e como se construíram as relações identitárias nos discursos através da
Lei da Raça, no capítulo a seguir nos voltaremos para a institucionalização
e fossilização da imagem fixada, pobre e reducionista produzida sobre o
Negro, mas também para como o ato de criação, elaborado como prática
artística, foi tomado como arma revolucionária para devolver o sentido,
firmar a identidade e ressemantizar o seu próprio ser.
71

2
FAZER-SE NEGRO
72

The future is dark, wich is


the best thing the future
can be, I think.
Virginia Woolf

O amanhã é escuro.
Maria Catarina de Sousa
73

Este capítulo não tem a pretensão de criar um volume quantitativo de


representações da história visual do negro na cultura brasileira, tampouco
cronológico. Diante do investimento necessário de informação e pesquisa,
temos a consciência de que tal intuito sequer caberia dentro de um capítulo
da dissertação, apenas sendo possível caso este fosse o seu propósito final.
Por isso, o nosso objetivo aqui é muito mais o de traçar relações anacrôni-
cas e sincréticas entre algumas manifestações representativas, de forma a
compor por um lado, uma mostra de como o sentido subalternizante sobre
o negro plasmou-se e difundiou-se, e por outro, como ao mesmo tempo,
os levantes e as práticas de resistência aconteciam criando descontínuos
na história tendo como instrumento essencial as experiências estéticas.

2.1
ESTEREÓTIPOS

Assim, a partir da análise léxica elaborada em nossas considerações,


tomaremos um dos sentidos da palavra Negro como aquele que deflagra,
através das manifestações artísticas, a sua própria criação: “fazer-se ne-
gro” torna-se então o gesto fundador de como o Eu-Branco, com vistas a
criar um estatuto de verdade, quis constituir a imagem, a alma e o espírito
sobre o Outro-Negro.

Contudo, é preciso antes pontuar que, sendo essa imagem produto de um


processo de efabulação, é impossível tomá-la tendo como ponto de partida
aquilo que nela não está contido e pertence ao mundo natural e existencial,
precisamente, tudo aquilo que não está pautado num essencialismo, na
74

alegoria, no total exorcismo ontológico do ser, na higienização, na frivolida-


de e no exotismo. Desse modo, olhar de forma gerativa para como se deu
essa construção não carrega outra intenção senão a de entender os seus
mecanismos operacionais, a fim de apreender os procedimentos neces-
sários que irão propiciar dispositivos de análise e criação tendo em vista
os descontínuos, rupturas e mesmo o seu total colapso epistemológico.
Levantes que há muito estão em curso e cuja cartografia nos interessa, a
fim de entender como suas constituições elaboraram as especificidades
das práticas do contemporâneo.

Figura 12:
Autoria não identificada
e Willem Blaeu (sculpt.).
Africae nova descriptio, 1665.
Fonte: MOURA, 2000.
75

As construções visuais e o estudo das visualidades tem sido não somente


significativos do fazer humano como também, “fundamentais na compre-
ensão da humanidade, na medida em que ela assegura um entendimento do
mundo, do ser, das esferas do conhecimento e, também, do desconhecido.”
(OLIVEIRA, 2005, p. 108).

Através dessa capacidade de mobilidade das visualidades no tempo e


no espaço, de sua possibilidade de se deslocar, podemos entender como,
em diferentes momentos da história, os semas disfóricos sobre o negro
se fazem e se refazem, atualizando-se continuamente como distintivo
marcador e reafirmador da sua condição objetal que se faz não somente
no plano do conteúdo e da expressão, mas na própria relação de poder e
visibilidade dos discursos criados pelo Eu-Branco sobre o Outro-Negro e
seus modos de mostrar:

[...] nesse encontro, enquanto um assume o papel de sujeito,


o que se mostra para ser visto, e atua sobre o parceiro, que
é conduzido pelo primeiro a vê-lo, o segundo assume, em tais
condições, o papel de objeto, aquele que é conduzido a ver.
(OLIVEIRA, 2005, p. 113).

Este jogo interacional está implicado, pois, nas posições que ocupam
e na visibilidade ostentada por aqueles que detêm as competências de
poder-fazer, um ato nefasto de violação que carrega como intenção não
somente construir um sentido global do negro, como também convencer e
criar um discurso de verdade de inferioridade do negro sobre ele mesmo.
Retomaremos a nossa preocupação em torno dos regimes de visibilidade
quando, na próxima secão, tratarmos da relação destes com as práticas
de resistência.

Assumindo na interação o lugar da construção dos sujeitos – ou dos seus


simulacros –, as imagens, na disputa entre o fazer persuasivo e os julga-
mentos epistêmicos, constroem um jogo de discursos veredictórios para
criar efeitos de verdade:

[...] é o código da verossimilhança, identificável com a ‘doxa’ do


grupo social. Sistema convencional entre outros, permite, efeti-
vamente, entre membros de uma comunidade que compartilham
seu domínio assegurar certa regularidade da comunicação.
Indentificando-se desse ponto de vista com o ‘universo de crenças’
do grupo considerado, ele fornece aos enunciadores em busca
76

de credibilidade uma parafernália de estereótipos expressivos,


adaptados às mais diversas situações e, paralelemente, outros
tantos estereótipos de leitura à disposição dos enunciatários.
(LANDOWSKI, 1992, p. 162).

O discurso, qualquer que seja a linguagem e a forma de manifestação,


então se apresenta como um acordo tácito ante um contrato de veridic-
ção (parecer-verdadeiro) e um contrato fiduciário (relativo às diversas
posições do crer). É, pois, por meio dos percursos temáticos e figurativos
que o enunciador assegura a coerência semântica do discurso e cria efei-
tos de sentido, sobretudo de realidade, que vão possibilitar a adesão do
sujeito-enunciatário.

Assim, muito além de um mero suporte, de um estímulo ou de


uma ilustração, o objeto visual […] é, em si, seu próprio mundo, um
universo figurativo que estabelece relações entre as figuras do
texto e as do mundo natural. De uma aproximação mais figurativa
e icônica desse mundo a um distanciamento, o discurso produz
efeitos de sentido que tornam sensível o mundo de referência.
Por meio de figuras é inscrito o conjunto de valores, que balizam
uma concepção de mundo. As mesmas figuras são também
basilares das diferenças entre os gêneros, ou seja, dos distintos
modos de fazer ver. Assim é que, no arranjo da figuratividade,
as formas de adesão e de convencimento são instaladas na
estruturação do objeto visível, por meio dos distintos simulacros
ou mundos de mundos nele arquitetados. A figuratividade, que
Greimas define como “a tela do parecer” (Greimas, 2002, p. 74),
ao formar os simulacros, permite conhecer nos textos visuais os
mecanismos do dizer verdadeiro, da construção de dado efeito
de verdade, mentira, ou segredo, que articulam a produção do
crer. (OLIVEIRA, 2005, p. 116).

Ao adentrarmos a produção iconográfica produzida pelos artistas via-


jantes a partir do século XVII, vemos plasmado, sobretudo, nas imagens,
o pensamento moderno ocidental, que se configura ora na tentativa de
documentar e classificar imageticamente a ideia de raça, circunscrevendo
portanto o negro na sua condição biológica, ora outorgando-lhe o papel
temático do escravo, de forma a legitimá-lo como verdade e construir o
seu discurso. A própria condição territorial de África, universo topológico
em que está circunscrito, foi ela mesma fruto de uma representação pi-
toresca e alegórica. Tal condição que elabora uma cartografia da ficção e
uma biblioteca colonial pode ser constatada na frase “‘Eu vi a África mas
nunca lá pus os pés’ de Jean-Baptiste Labat, reafirmando o destino de
África de ser possuída”. (MBEMBE, 2014, p.128).
77

Tal fato nos possibilita um contexto adequado para o entendimento de como


o texto visual, por meio de seu procedimento de figurativização, acaba por
ser depositário de valores e posições, “concepções e visões do mundo que,
uma vez postas em circulação, passam a existir”. (OLIVEIRA, 2005, p. 118).
Assim, segundo Barros, há etapas diferentes na figurativização:

[...] a figuração é a instalação das figuras, ou seja, o primeiro


nível de especificação figurativa do tema, quando se passa do
tema à figura; a iconização é o investimento figurativo exaustivo
final, isto é, a última etapa da figurativização, com o objetivo
de produzir ilusão referencial. Os efeitos de realidade, a que
se fez referência quando se examinaram os procedimentos de
ancoragem, resultam, portanto, da iconização do discurso. Na
iconização, mas também nas demais etapas da figurativização, o
enunciador utiliza as figuras do discurso para levar o enunciatário
a reconhecer ‘imagens do mundo’ e, a partir daí, a acreditar na
verdade do discurso. O enunciatário, por sua vez, crê ou não no
discurso, graças, em grande parte, ao reconhecimento de figuras
do mundo. O fazer-crer e o crer dependem de um contrato de
veridicção que se estabelece entre enunciador e enunciatário
e que regulamenta, entre outras coisas, o reconhecimento das
figuras. (BARROS, 1994, p. 72).

O que uma análise da figuratividade desses reiterados estereótipos ao


longo da história nos traz como diagnóstico, é que a sua iconização –
densidade, adjunção e sobrecarga dos seus traços e dos seus excessos,
seja nos discursos verbais ou visuais –, foi utilizada como procedimento
de persuasão veredictória, de modo a tornar mais fácil o procedimento de
reconhecimento entre o mundo artificial construído sobre o ser negro e o
Negro como significante, fato que distancia e mesmo aniquila a sua exis-
tência ontológica e sua natureza como parte da sua presença no mundo
natural. Fala-se então de um procedimento de representação motivada,
em que a imitação serve para reduzí-lo, afastando-o da sua riqueza e
potência de vida original.

Entre os procedimentos de um fazer persuasivo e um interpretativo, um


saber e um crer, não podemos deixar de considerar a relação fundante
de reconhecimento e identificação que engendra o ato epistêmico. No
contrato fiduciário, pressupõe-se o conhecimento do valor sustentado,
como vimos, por uma produção científica sobre o negro. Tais epistemes,
que recobrem as culturas, conforme postulado por Greimas, podem ser
definidas e analisadas como uma linguagem de conotação (GREIMAS,
78

1975, 220), marcada pelo trânsito incessante entre o natural e o cultural,


aquisição progressiva da realidade e do mundo do senso comum, em que
se manifesta a forma científica através dos efeitos de verdade que esta
ciência mesmo impõe:

[...] o saber precede o crer, visto que como estratégia persuasiva


ele desenvolve a tarefa da persuasão (manipulação) e recebe a
interpretação que, desta maneira, se pospõe como ato epistêmi-
co. Além disso, este último contempla o fator de transformação,
uma vez que mobiliza e altera os modos conjuntivos do sujeito
fazendo-o percorrer, confirmar ou alterar seus estados de crença
(da dúvida à certeza, do negado ao admitido...). Não apenas o
ato epistêmico transforma como também é uma sintaxe de reco-
nhecimento e de identificação; ou seja, se o fazer persuasivo (por
seus modos de demonstração ou de argumentação) apresenta
o objeto revestido com os valores veridictórios acionados, o ato
epistêmico ou fazer interpretativo compara o posto (o que se
sabe) com o proposto (o que se quer fazer saber). Noutros ter-
mos, esse reconhecimento local dos dados propostos no discurso
acarreta no ato epistêmico uma identificação desses dados ou
com a totalidade de uma “verdade” já assegurada como sabida
ou com um fragmento dela. (LOPES; BEIVIDAS, 2007, p. 36).

No intuito de fazermos um breve reconhecimento, propomos uma viagem


no tempo e no espaço, de modos a construírmos algumas relações sobre
como se dão a ver essas visualidades na história.

Segundo Moura, o maior legado documental ao retratar as imagens do


negro no Brasil, no período colonial, foram feitas por negociantes, diplo-
matas, militares, naturalistas, cartógrafos, viajantes, pintores, aquarelistas
e desenhistas, quase todos de passagem, residindo temporariamente ou
fixando residência tardiamente na colônia. Para ele, no entanto,

[...] parte desta iconografia é comprometida por erros de registro


ou por intervenções que as descaracterizam” já que “a reprodução
dos desenhos, tendo em vista as edições europeias, era feita por
pintores, gravadores e litógrafos que transferiam para as obras suas
próprias ideias, correspondentes a uma concepção artística con-
vencional formada por modelos europeus. (MOURA, 2000, p. 24).

Este cotidiano da colônia estava devidamente bem servido de atributos


demoníacos, sobretudo na descrição das manifestações mítico-poéticas ou
religiosas de negros e indígenas, nas quais suas crenças eram vistas como
uma das faces do inferno, tendo como ingredientes, dentre outras coisas,
79

Figura 15: Figura 16: Figura 19: Figura 20:


Hercule Florence. Nègresse Cabinda, 1828. Hercule Florence. Nègre Congo, 1828. Angelo Agostini. Pobre lavoura! Já não bastava o preto, vaes ter Angelo Agostini. Preto e amarello. É possível que
Fonte: MOURA, 2000. Fonte: MOURA, 2000. o amarello! Com o auxílio de duas raças tão intelligentes, ella ha haja quem entenda que a nossa lavoura só pode ser
de progredir de um modo espantoso. sustentada por essas duas raças tão feias! Mau gosto!
Fonte: MOURA, 2000. Fonte: MOURA, 2000.

Figura 21:
Figura 17: Figura 18: Johann Nieuhoff. Negers
Hercule Florence. Nègre Auça, 1828. Hercule Florence. Nègresse Rebolo, 1828. Speelende op KalabaSen, 1682.
Fonte: MOURA, 2000. Fonte: MOURA, 2000. Fonte: MOURA, 2000.
79 80

Figura 13:
Joaquim Lopes de Barros. Preto
de máscara, 1841.
Fonte: MOURA, 2000.
Figura 22:
Zacharias Wagener. Aldea.
Fonte: MOURA, 2000.

Figura 23:
Figura 14: Joaquim Candido Guillobel.
Edward Hildebrandt. Punishments Sem título, 1812-1816.
(castigos), 1846-1849. Fonte: MOURA, 2000.
Fonte: MOURA, 2000.
81

tensões sociais, enevenenamento de senhores, atabaques batendo nas


senzalas e vielas, quilombos, resistência nas matas, catimbós, calundus,
curas mágicas, advinhações, fornicações e aberrações sexuais. (SODRË,
2010). Ainda segundo o autor, em seu livro Da Diabolização à Divinização
– a criação do senso comum, “diabolizar, era uma forma utilizada pelos
europeus para aplicarem seus modelos de dominação política e ideológica
sobre as categorias sociais subalternas” (SODRË, 2010, p. 42), deixando
como legado para a posteridade “muitas ações repressivas que penetraram
a República e seguiram avante construindo bases sólidas para os estereóti-
pos e preconceitos alimentadores das representações negativas.” (SODRË,
2010, p. 43). Tais repressões irão impactar decisivamente na contenção para
que levantes e atos de resistência não eclodissem, bem como no retardo
do desenvolvimento das manifestações artísticas tendo o Eu-Negro como
enunciador, como veremos na seção a seguir.

Tais processos de diabolização vão ganhar espaço principalmente na li-


teratura, como nos mostra Domício Proença Filho ao falar que “a matéria
negra, embora só ganhe presença mais significativa a partir do século XIX,
surge na literatura brasileira desde o século XVII, nos versos satíricos de
Gregório de Matos”. (FILHO, 2004, p. 162). No poema Juízo anatômico dos
achaques que padecia o corpo da República em todos os seus membros e
inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia, fica posta a relação
de diabolização do negro e a visão de mundo de Matos (1976):

Que falta nesta cidade?... Verdade.


Que mais por sua desonra?... Honra.
Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.
O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.
Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio.
Quem causa tal perdição?... Ambição.
E a maior desta loucura?... Usura.
Notável desaventura
82

De um povo néscio e sandeu


Que não sabe que o perdeu
Negócio, ambição, usura.
Quem são seus doces objetos?... Pretos.
Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?...
Mulatos.
Dou ao demo os insensatos,
Dou ao demo a gente asnal
Que estima por cabedal
Pretos, mestiços, mulatos.6
6.  MATOS, Gregório de.
A teoria do branqueamento ligada à ascensão social e a ideia de ser um ato Poemas escolhidos. Sel.,
introd. e notas de José
nobre suportar os sacrifícios e as humilhações em nome de uma suposta
Miguel Wisnik. São Paulo:
incersão nos círculos de poder, fazendo crer o estatudo do Outro-Negro Cultrix, 1976, p. 37.
sobre o próprio negro, ganha materialidade em Escrava Isaura, escrito
por Bernardo Guimarães e publicado em 1872. Esta obra será,mais tarde,
adaptada para telenovela, nos anos de 1976 e 1977, pela Rede Globo de
Televisão, e mais recentemente, nos anos de 2004 e 2005, pela Rede
Record, reiterando a intenção explícita, mesmo um século depois, em
promover a atualização, mediante novos recursos tecnológicos e midiá-
ticos, de um pensamento que estrutura as relações raciais e de poder da
sociedade brasileira.

Ainda segundo Filho, na perspectiva de uma época marcada pelo roman-


tismo, “emerge o negro infantilizado, serviçal e subalterno, que se encontra,
por exemplo, nas peças de teatro O demônio familiar, de José de Alencar,
e O cego, de Joaquim Manuel de Macedo” (FILHO, 2004, p.165). Outro
personagem que vai reforçar esse estereótipo, juntamente com a ideia de
uma animalização, é a figura da Bertoleza, do romance O cortiço (1900), de
Aluísio Azevedo. A ideia de uma raça inferior estará presente em O Mulato,
também de Azevedo, e O presidente negro (1926), de Monteiro Lobato.
Declaradamente membro da Sociedade Eugênica de São Paulo, e amigo
pessoal de expoentes da eugenia no Brasil, como os médicos Renato Kehl
(1889-1974) e Arthur Neiva (1880-1943), Lobato foi responsável ainda por
83

criar um projeto eugênico meticuloso, através sobretudo da literatura infan-


til, e concretizado em obras como Reinações de Narizinho (1931), Caçadas
de Pedrinho (1933) e O Picapau Amarelo (1939). Esta última também tem
sido adaptada repetidamente desde os anos 1950, seja em animação ou
séries de televisão, sendo as produções da Rede Globo de 1977-1986 e
2001-2007 as mais populares. A emissora detém ainda os direitos de
Sítio do Picapau Amarelo e é a última editora dos livros, por meio de sua
divisão editorial. Tanto a investida de Lobato no campo infantil quanto a
massiva distribuição do conteúdo pela mídia, carregam a estreita relação
existente entre eugenia e educação. Segundo Bonfim,

[...] a relação com a educação cumpria a função de universalizar


para o conjunto da sociedade preceitos eugênicos e sanitários
[...] reorientando a conduta de adultos e incutindo nas crianças,
desde os primeiros anos escolares, os valores que deveriam levar
para casa. (BONFIM, 2017, p. 109).

No teatro Leda Maria Martins diz que o percurso da personagem negra


define sua invisibilidade e indizibilidade, projetando-se depois de 1851 em
três modelos prodominantes: o escravo fiel, o elemento pernicioso e/ou
criminoso e o negro caricatural. (MARTINS, 1995, p.40).

Nas Revistas Ilustradas do século XIX “um dos fatos que chamam a atenção
é a reprodução (ou recriação) de uma linguagem repleta de vícios que, se-
gundo os caricaturistas, era própria do negro escravizado.” (MOURA, 2000,
p. 31). Nestas concepções jocosas, satíricas e grotescas há uma integração
entre sentidos de ordem biológica, representações hiperbólicas dos traços
fenotípicos, bem como de ordem patêmica e moral, já que também tinham
como intenção a depreciação e a ironia sobre qualquer tentativa do negro
em participar da vida social e ocupar o espaço de cidadania no pós-abolição:

Toda busca de ‘sinceridade’ (em relação ao outro) ou de ‘autenti-


cidade’ (em relação a si mesmo) pressupõe, de fato, a colocação
em relação de dois discursos, um concebido como discurso do
não-sujeito (é o verossímel de tipo formulário, explicitamente
escorado pelo social), o outro recebido – não menos conven-
cionalmente, aliás – como o ‘discurso do sujeito’, aquele em que
ele ‘crê’. Ficaria para ser explorado, nessa perspectiva, todo
um leque de estratégias discursivas, a começar por diversas
formas de desembragem enunciativa, como a ironia e o gracejo,
por exemplo, pelos quais o enunciador produz um discurso
defasado em relação ao seu próprio verossímel, em relação
84

ao que se espera de sua ‘personagem’ ou de sua ‘imagem’. São


todos esses recursos estratégias para reforçar no enunciatário,
através do desvio interpretativo que eles lhe impõe, o sentimento
de que o enunciador ‘adere de fato’ ao espírito, quando não à
letra do que enuncia. Um plano mais geral, toda a infração às
‘conveniências’, toda a ruptura em relação à estereotipia das
condutas socializadas pode, sem dúvida, induzir o mesmo efeito
de sentido. [...] Correlativamente, o recurso aos procedimen-
tos de embreagem enunciativa só poderia, então, remeter, ao
contrário, a uma radical a-socialidade do sujeito: não contente
de persuadir outrem da verdade convencional dos papéis que
assumem, ele ainda quer se persuadir de que, no enunciado,
não é apenas a ‘linguagem’, o ‘social’, que fala por ele, mas que
é mesmo o ‘eu’ – Ego – que, sem mediação, diz sua ‘verdade’.
(LANDOWSKI, 1992, p. 163).

Também no século XIX, a fotografia foi uma fonte importante de docu-


mentação, seja dos considerados “tipos de preto” ou mesmo em diferentes
situações de trabalho, nos canavias, nas províncias ou nos engenhos. Com
o modernismo brasileiro, projeto baseado na ideia de uma mestiçagem
cultural e na diluição do conceito meramente genético das três raças para
criação de uma nova entidade eminentemente brasileira, vê-se instaurar o
ideal assimilacionista, do qual tratamos anteriormente no primeiro capítulo,
bem como também a consolidação do mito da democracia racial. Segundo
Gilioli, no livro Representações do negro no modernismo brasileiro – Artes
Plásticas e Música,

[...] diante de um ambiente de ideias que desejava ignorar ou até


remover os traços culturais negros do país, um modernista como
Mário de Andrade apostou em um caminho diferente. Acreditava
que era necessário criar padrões artísticos artificiais que unissem
todas as “culturas parciais” existentes no território. Intelectuais,
artistas, negros, indígenas, imigrantes, operários, camponeses,
analfabetos, industriais, oligarcas e governantes não poderiam
ter culturas autônomas, mas todas deveriam ser diluídas em
uma cultura nacional nova. Para Mário, cada um desses setores
poderia, no máximo, se sentir parcialmente representado nessa
cultura comum, mas nunca ofuscá-la. Essa cultura nacional a ser
construída, unindo os diversos segmentos da sociedade brasileira
em torno de um único ideal ao longo de gerações, era vista como
a única garantia efetiva de paz, ordem social e properidade para
o país. Esse raciocínio também estava presente na antropofagia.
(GILIOLI, 2013, p. 18-19).
85

Figura 25:
Arnaud Julien Palliere. Esposa
do artista com o filho no colo.
Fonte: MOURA, 2000.

Figura 27: Figura 28:


Johann-Moritz-Rugendas (del.) e Maurin (lith.). Johann-Moritz-Rugendas (del.) e Vigneron (lith.).
Mozambique, 1835. Benguelas, Congo, 1835.
Fonte: MOURA, 2000. Fonte: MOURA, 2000.

Figura 29:
Henrique Fleiuss. Passeio
hygienico dos bemaventurados
guardas fiscaes pelas ruas da
Figura 26: cidade os astros teem seus
Carlo Evangelisti. Impudica. satéllites os guardas fiscais tem
Typo negro brasiliense, 1898. seus tigrellites.
Fonte: MOURA, 2000. Fonte: MOURA, 2000.
85 86

Figura 30:
Johann-Moritz-Rugendas (del.) e
Maurin (lith.). Negros novos, 1835.
Fonte: MOURA, 2000.

Figura 31:
Modesto Brocos. A redenção de
Cam, 1895.
Fonte: Internet.

Figura 24:
Angelo Agostini. Cuidado, bellas filhas de terpsichore. As frutas são
saborosas, mas a quitandeira amarella é terrível e sem piedade.
Fonte: MOURA, 2000.
87

No entanto, apesar desse idealismo presente no modernismo, havia crité-


rios de seleção das manifestações que poderiam fazer parte ou não dessa
composição identitária nacional, sendo algumas delas, como o samba e o
maxixe, negadas por intelectuais como Mário de Andrade, que se incomo-
davam com o fato de o expoente reconhecimento e efervescência desses
ritmos poder concorrer com um projeto hegemônico das elites letradas
com efeitos de diluição. Assim,

[...] os modernistas aceitavam algumas manifestações culturais


negras, contanto que fossem aquelas derivadas de ‘quistos exóti-
cos’ e ‘reminiscências’ das tradições rurais, vistas como estando a
ponto de se extinguir diante da industrialização e do ‘progresso’.
Ou seja, só aqueles elementos considerados não ameaçadores.
Quase tudo que fosse cultura negra urbana (no caso da música, o
samba e o maxixe em especial) era encarado com desconfiança.
Por isso, Mário de Andrade buscou o samba rural paulista para
afastar as influências ‘negativas’ da ‘degeneração’ cultural do
samba urbano e resgatar a suposta ‘pureza’ rural da cultura
negra. (GILIOLI, 2013, p. 20).

Considerado como um projeto semi-oficial da política brasileira, e que con-


tava com a simpatia dos governantes dos anos 1920, o modernismo e sua
estética da mestiçagem se torna um dos movimentos culturais responsáveis
por disseminar o mito da democracia racial que, travestido numa ideia de
coesão nacional ou de luta contra a desagregação nacional, acabava por
pôr em prática a teoria do branqueamento, tão semeada no período:

[...] aquela época, especificamente foi um momento importante


para a construção desse mito, algo que Roquette-Pinto já defen-
dia desde a década de 1910 e que Gilberto Freyre popularizou
nos anos 1930. Os modernistas – escritores, artistas plásticos
e músicos – também foram cocriadores do mito da convivência
harmônica entre as raças no Brasil e se esforçaram em impedir
a percepção da identidade negra... (GILIOLI, 2013, p.69-70).

Seja nas obras de Anita Malfati, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade,


Oswald de Andrade, Portinari, Di Cavalcanti ou Lasar Segal,

[...] negros e indígenas tinham suas identidades étnicas diluí-


das sob outros nomes como mulato, mameluco, e outras. Estes
tipos também apareciam nas obras de maneira diferente que
os brancos. Enquanto homens e mulheres brancas apareciam
indicados por seus nomes, muito raramente negros e indígenas
eram personalizados. (GILIOLI, 2013, p. 57).
88

Essa representação classificatória e coletiva acabava por reafirmar os


sentidos de raça, bem como a desumanização desses “personagens”,
postos sempre no “lugar do negro”: o trabalhador, o exótico, o selvagem
e o primitivo. Essa tipificação, como vimos, própria dos artistas viajantes
do período colonial, era um procedimento habitual entre os artistas que,
inseridos ou fomentados pela oligarquia paulistana, acabam por remeter,
em suas obras, a um imaginário escravocrata, tradicionalista e colonial a
partir de suas memórias da infância:

O saudosismo da infância rural dos vários pintores do movimento


refletia o conflito entre o desejo de fazer a crítica social do pro-
gresso e de tentar manter os elementos da estrutura daquela
sociedade que pouco havia mudado em séculos desde os tempos
da colônia até aquele momento. (GILIOLI, 2013, p. 76).

Sobre este fato, em meio a tantos, merece atenção, como símbolo dessa
romantização, a obra A Negra, de 1923, de Tarsila do Amaral, caricatura
inspirada em uma das senhoras que trabalhavam em uma das fazendas
da sua família e que cumpre o papel temático da ama de leite. Ainda que
tenha rosto (algo já ousado, por dar ao negro alguma personificação), a
negra não carrega consigo uma identidade e apresenta algo reiteradamente
usado pelos artistas para situar-la sob a ideia de degeneração, salientando
lábios e mamas que aparecem exageradas, desproporcionais e disformes,
recurso plástico usado nas mais representativas obras da história do mo-
dernismo brasileiro.

No limiar das contradições de um período com tensões raciais e efeitos do


pós-abolição, Gilioli discorre sobre a não identificação racial de Mário de
Andrade e seu posicionamento em defender uma susposta inferioridade
cultural brasileira diante da civilização europeia, dizendo que

O ‘mata-virgismo’, esse resgate do ‘primitivismo’, pregava uma


arte mestiça, na qual a identidade negra, principalmente, deve-
ria ser diluída na identidade nacional. ‘Arte Negra’, só poderia
existir em Paris, porque lá a África era vista como um continente
exótico. No Brasil isso jamais poderia acontecer, pois significaria
dividir o país em conflitos e tensões sociais insolúveis. Isso refletia
talvez como o próprio Mário se sentia, sendo negro mas não
aceitando a sua própria identidade, o que é compreensível na
medida em que o seu embranquecimento era condição para que
fosse aceito – ou, ao menos, tolerado – no círculo normalmente
preconceituoso da elite do país. (GILIOLI, 2013, p. 85).
89

É importante destacar ainda que o próprio título Movimento Antrogofágico,


surgido após o quadro Antropofagia, de Tarsila, já revela em seu nome
e conceito a ideia de assimilação, história que será contada também em
Macunaíma: um herói sem nenhum caráter (1928), de Mário de Andrade, em
que o autor, parecendo narrar seu próprio drama, traz como personagem
principal um negro, a quem nomeia “medo da noite”, reiterando a isotopia
de ordem patêmica presente em nossa análise léxica:

Macunaíma é filho do cruzamento entre uma mãe indígena e o


“medo da noite”. Portanto, é produto do ser humano primitivo fun-
dido com a natureza assustadora e nasce na mata virgem. Quando
cresce, se embranquece, vira vários bichos e acaba mergulhando
na natureza para nela se perpetuar. (GILIOLI, 2013, p. 92).

A sexualização da mulher negra, sempre na figura da mulata, ou o negro


erotizado como objeto sexual, era também um estereótipo reiterado durante
o Modernismo. Raramente este Outro-Negro era deslocado para uma boa
condição social ou posição intelectual, características vistas, por exemplo,
na obra Banhistas, de 1934, de Cândido Portinari, e em Família na Praia,
de 1935, de Di Cavalcanti. Nas palavras de Filho (2004, p. 166),

[...] na literatura esta mesma sexualização vem desde Rita Baiana


ou do mulato Firmino, do livo O cortiço, passa pelos poemas de
Jorge de Lima, como “Nega Fulô”, está presente nos Poemas da
negra (1929), de Mário de Andrade e ganha especial destaque na
configuração das mulatas de Jorge Amado. A propósito, a ficção
do excepcional romancista baiano contribui fortemente para a
visão simpática e valorizadora de inúmeros traços da presença
das manifestações ligadas ao negro na cultura brasileira, embora
não consiga escapar das armadilhas do estereótipo. Basta recor-
dar o caso do ingênuo e simples Jubiabá, do romance do mesmo
nome, lançado em 1955, e da infantilizada e instintiva Gabriela,
de Gabriela, cravo e canela (1958), para só citar dois exemplos.

Foi na era do rádio e do disco, durante as décadas de 1920 e 30, e sob os


ideiais modernistas, que a música negra urbana ganhou espaço, mas travou
forças, como visto, com o tipo de música negra que deveria ser legitimada
pelos intelectuais de modo a não prevalecer sobre o que seria considerado
a composição ideal da identidade nacional. Segundo Theophilo Augusto
Pinto (2011, p. 8),

[...] se o rádio deu notoriedade e dinheiro, também contribuiu para


a manutenção do negro como um sujeito social e politicamente
90

afastado de debates mais “sérios”, como se ele não fosse perce-


bido como sujeito social e político, mas apenas artístico. Ligada
a esta ideia esteve um dos primeiros estereótipos do negro no
rádio, o malandro. Figurou o “orgulho em ser vadio”, proprietário
de uma ética oculta onde o ócio é uma conquista para alguém
antes associado à escravidão.

Na chamada Época do Ouro da música brasileira, que vai de 1929 a 1954,


a temática da sensualidade, a afirmação do mulato como a imagem da
esperteza e da malandragem e a discriminação racial através do traços
fenotípicos como o cabelo se tornam massivamente reiterados. São desse
período as marchinhas eternizadas na voz de Lamartine Babo como O teu
cabelo não nega, composição dos irmãos Valença datada de 1931.

O teu cabelo não nega mulata


Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega mulata
Mulata eu quero o teu amor
Também a canção Mulata assanhada, de Ataulfo Alves, de 1951, que depois
será interpretada pela cantora Elza Soares.

Ai, meu Deus, que bom seria


Se voltasse a escravidão
Eu pegava a escurinha
Prendia no meu coração
E depois a pretoria
É quem resolvia a questão
Ai, mulata assanhada.
Mas o que explica a contradição de termos, na história, a presença de artis-
tas e intelectuais negros, como Mário de Andrade, que não declarava a sua
negritude, ou Elza, que se sujeita a enunciar um canto de opressão? Qual
o custo emocional da sujeição, da negação da identidade e de, através da
possibilidade única de se manifestar através do seu corpo, dar voz a um
ato que a ele mesmo violenta? Quais os traumas que dezenas de artistas
viveram e vivem por serem impelidos a ocupar um lugar de violação a sua
identidade histórico-existencial?
91

Sobre as violências e os traumas sofridos pelo Eu-Negro e que o fazem


chegar a estados máximos de alienação e fetichização da brancura, tendo
como efeito, por exemplo, a não conscientização de sua negritude, a acei-
tação de um lugar de subalternidade e a enunciação de discursos racistas,
Neusa Santos Souza, em seu livro Tornar-se Negro ou as Vicissitudes da
Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social, diz que

O negro sabe que o branco criou a inquisição, o colonialismo, o


imperialismo, o anti-semitismo, o nazismo, o stalinismo e tantas
outras formas de despotismo e opressão ao longo da historia. O
negro também sabe que o branco criou a escravidão e a pilha-
gem, as guerras e as destruições, dizimando milhares de vidas.
O negro sabe igualmente que, hoje como ontem, pela fome de
lucro e poder, o branco condenou e condena milhões e milhões
de seres humanos à mais abjeta e degradada miséria física e
moral. O negro sabe de tudo isto e, talvez, muito mais. Porém,
a brancura transcende o branco. […] Nada pode macular esta
brancura que, a ferro e fogo, cravou-se na consciência negra como
sinônimo de pureza artística, nobreza estética, majestade moral,
sabedoria científica, etc. O belo, o bom, o justo e o verdadeiro
são brancos. O branco é, foi e continua sendo a manifestação do
Espírito, da Idéia, da Razão. O branco, a brancura, são os únicos
artífices e legítimos herdeiros do progresso e desenvolvimento
do homem. Eles são a cultura, a civilização, e numa palavra, a
‘humanidade’. (SOUZA, 1983, p. 4).

Depoimentos, vivências e casos na história, como estes e muitos outros,


ligados à incersão de negras e negros em espaços de poder massivamente
ocupados pela branquitude, acabam por deflagrar um tempo histórico em
que as discussões sobre consciência racial, identidade, negritude e direitos
humanos ainda estavam em formação ou mesmo em estado de profundo
desconhecimento e/ou negação, arquitetado pelos próprios efeitos de
como o racismo se estruturou na sociedade. Por isso, a autora diz que,

O racismo esconde assim o seu verdadeiro rosto. Pela repressão


ou persuasão, leva o sujeito negro a desejar, invejar e projetar um
futuro identificatório antagônico em relação à realidade de seu
corpo e de sua história étnica e pessoal. Todo ideal identificatório
do negro converte-se, desta maneira, num ideal de retorno ao
passado, onde ele poderia ter sido branco, ou na projeção de um
futuro, onde seu corpo e identidade negros deverão desaparecer.
(SOUZA, 1983, p. 5).

Assim, algo importante para salientar, sobretudo a partir do modernismo, é


que apesar de o movimento carregar a noção de luta de classes, pondo-se
muitas vezes num lugar de denúncia da elite aristocrática, ele não foi capaz
92

de reconhecer as problemáticas ligadas às questões raciais, tampouco


comprometer-se com as políticas afirmativas semeadas pelas entidades
negras que começavam a se organizar. Tal fato nos ajuda a pensar, inclu-
sive, na própria postura das elites da esquerda nos dias atuais e a contínua
exclusão das pautas dos negros como força motriz para solucionar os
problemas sociais do país, e também no impacto que o movimento vem
produzindo como referencial de uma identidade nacional no campo da arte
e da estética até os dias de hoje, entrevendo como o mito da democracia
racial perdura, se faz e se refaz.

Voltando à música, ela ainda foi posta à serviço de produzir um efeito de


verdade amplificado. O samba-exaltação consonante ao governo naciona-
lista da ditadura Vargas ganhou contornos em 1939, através do compositor
Ary Barroso, que neste ano lançou a música Aquarela do Brasil, tornando-
-se esta a marca registrada do país no exterior. O samba transformou-se
também num retrato célebre para reforçar a ideia de que não há racismo
nem discrimação e que se vive aqui o convívio harmonioso entre as raças:

Brasil! Meu Brasil brasileiro


Meu mulato inzoneiro [...]
Meu Brasil lindo e trigueiro,
Terra boa e gostosa, da morena sestrosa. […]
Ah! Abre a cortina do passado
Tira a mãe preta do cerrado
Bota o rei congo no congado.
Assim, segundo Omuro (2016, p. 12),

[...] mesmo na fase mais politizada da música popular brasileira,


nos anos 1960, na época dos grandes festivais, a questão do
mito da democracia racial não foi enfrentada de forma direta.
Outras questões sociais, políticas e econômicas foram bastante
discutidas, mas o racismo não. Para não ser radical nessa afir-
mação podemos considerar que a questão do negro foi tratada
pelas músicas que faziam parte da peça teatral “Arena conta
Zumbi”, que resgatou a memória das lutas de libertação dos
negros escravizados que fundaram o Quilombo dos Palmares,
no período colonial brasileiro. Nesse sentido pode-se destacar,
em 1966, o sucesso da música “Upa, neguinho”, de Edu Lobo e
93

Gian Francesco Guarnieri, na emocionante interpretação de Elis


Regina. Porém, como a música e a peça teatral falam do período
da escravidão, sua mensagem ampla de libertação nem sempre
foi compreendida como uma luta de libertação que permanecia
no presente. Afinal, como destacou Fernandes (1978) o mito
da democracia racial pressupõe que a abolição e a república
garantiram a igualdade de direitos entre negros e brancos e
que, portanto, os problemas dos negros ficaram no passado
escravista, colonial e imperial.

A discriminação de certos traços fenotípicos, como o cabelo crespo, ainda


encontra nessa expressão, nas décadas seguintes, outras versões, como, por
exemplo, em Nega do cabelo duro, cantada por Elis Regina, muitas vezes na
sequência de Aquarela do Brasil”. Na década de 1990, com o advento da Axé
Music, uma série de canções demarca os propósitos excludentes e apropria-
tivos do ritmo, personificadas entre eles na canção Fricote, interpretada por
Luiz Caldas, ou ainda em O canto da cidade (1992), em que a enunciadora do
verso “a cor dessa cidade sou eu, o canto dessa cidade é meu”, é uma cantora
não negra, delimitando as próprias relações raciais e de poder dentro da
música baiana –relação que já começa a ser contestada 20 anos antes com
a tomada das ruas pelo pioneiro da negritude, o Bloco Afro llê Ayê. Torna-se
hit, também, nos tempos áureos da Axé Music, nos carnavais de Salvador,
a música Meu cabelo duro é assim (1997), do grupo Chiclete com Banana:

Meu cabelo duro é assim,


cabelo duro, de pixaim
Nega não precisa nem falar,
nega não precisa nem dizer
Que o meu cabelo se parece é com você
No cinema, os estereótipos se reafirmam, como, por exemplo, nos filmes A
menina e o estuprador, de 1983, O saci (1953) e Brasa adormecida (1986).
Além de De pernas pro ar (1962), onde a personagem do Crioulo Doido era
interpretada por Grande Otelo, que fez outros filmes do estilo chanchada
onde a imagem do negro é sempre associada às figuras bufônicas como
o cômico, o sambista, o malandro e o moleque. As mulheres também são
representadas de forma subalternizante, “nos papéis da mulata ‘boazuda’,
sambistas, dançarinas e as recorrentes empregadinhas intrometidas como
nos filmes “De vento em popa” (Carlos Manga, 1957) e “Garotas e samba”
94

(Carlos Manga, 1957), por exemplo”. (CARVALHO, 2013, p. 85). Em O trapa-


lhão no planalto dos macacos, paródia e releitura brasileira dirigida por J.B.
Tanko do filme americano O planeta dos macacos, a cena de comicidade e
graça se dá quando a macaca protagonista se apaixona pelo personagem de
Mussum, o único negro do elenco principal. Cabe ressaltar que Os Trapalhões,
atração humorística e um dos maiores fenômenos de popularidade e audi-
ência no Brasil, acabou por receber o título de programa com maior duração
da televisão, com trinta anos de exibição, disseminando muitas vezes seu
conteúdo perverso e jocoso, que o personagem de Mussum assumia. Sobre
a relação animal e primitiva do negro, Souza (1983, p. 28) diz que:

A representação do negro como elo entre o macaco e o homem


branco, é uma das falas míticas mais significativas de uma visão
que o reduz e o cristaliza à instância biológica. Esta representa-
ção exclui a entrada do negro na cadeia dos significantes, único
lugar de onde é possível compartilhar de um mundo simbólico e
passar da biologia à história.

Já em Xica da Silva (1976), de Carlos Diegues, um dos mais populares filmes


históricos brasileiros, reitera-se vários estereótipos num mesmo persona-
gem com a protagonista interpretada por Zezé Mota, sendo uma mistura
da mulata, da negra de alma branca e da nega maluca, o que deflagra a
relação condicionada e alienante a qual artistas negras e negros vêm sendo
submetidos, caso queiram ter algum tipo de participação, protagonismo
ou realização profissional. Arremessamo-nos então na obra Em Busca dos
Jardins das Nossas Mães (In Search of Our Mother’s Gardens), livro da es-
critora e ativista feminista Alice Walker, que questiona como deve ter sido a
vida de muitas mães e avós que morreram com seus dons reprimidos, sem
possibilidade de se expressar:

Como a criatividade da mulher negra manteve-se viva, anos após


anos, séculos após séculos, quando na maior parte do tempo
da vida das pessoas negras na América era um crime punível
ler ou escrever? E a liberdade de pintar, esculpir, de expandir a
mente com a ação que não existia. Considere, se você suportar
imaginá-lo, qual teria sido o resultado se o canto também tivesse
sido proibido pela lei. (WALKER, 1983, p.234, tradução nossa).

Assim, é importante ressaltar que esses sentidos não se encerram numa


linha do tempo rígida e linear. Muito pelo contrário, tal como um vírus, eles
se atualizam e irradiam pelos séculos, sendo constantemente recuperados
95

pelo Eu-Branco com fins de manter a dominação dos corpos negros,


deixando marcas para que se reviva os traumas presentes no nosso ima-
ginário. Dessa forma,

[...] a violência racista, subtrai do sujeito a possibilidade de


explorar e extrair do pensamento, todo o infinito potencial de
criatividade, beleza e prazer que ele é capaz de produzir. O pen-
samento do sujeito negro é um pensamento que se auto-restringe.
Que delimita fronteiras mesquinhas à sua área de expansão e
abrangência, em virtude do bloqueio imposto pela dor de refletir
sobre a própria identidade. (SOUZA, 1983, p.10).

Para concluirmos, gostaríamos de apontar a necessidade de se pensar uma


ruptura epistemológica em relação à estutura do mito negro. Em Sobre o
Sentido I, Greimas nos mostra que na sua análise estrutural do mito de
Édipo, C. Lévi-Strauss diz ser possível reconhecer pela recorrência na
interpretação do texto de superfície, uma organização de conteúdos que
pode ser formulada como o correlacionamento de duas categorias biná-
rias de semas contraditórios ou contrários. Já sobre as estruturas míticas,
ele retoma o pensamento salientando que, do ponto de vista de um texto
plástico, este oferece uma leitura figurativa evidente e, ao mesmo tempo,
destituída de sentido, tamanha é a distância entre a perenidade dos mitos
e a insignificância do seu sentido aparente. Para Barthes (1980, p. 223),

[...] aquilo que permite ao leitor consumir o mito inocentemente


é o fato de ele não ver no mito um sistema semiológico, mas sim
um sistema indutivo: onde existe apenas uma equivalência, ele
vê uma espécie de processo causal: o significante e o significado
mantêm, para ele, relações naturais. Pode-se exprimir esta confu-
são de um outro modo: todo o sistema semiológico é um sistema
de valores; ora, o consumidor do mito considera a significação
como um sistema de fatos: o mito é lido como um sistema factual,
ao passo que é apenas um sistema semiológico.

E é em busca dessa significação mais profunda, que correlaciona no dis-


curso duas categonias semânticas heterogêneas e contraditórias sobre o
Eu-Negro, que reside a apreensão mítica que as práticas de resistência
ao longo da história irão se voltar à fraturar. Nessa direção, para Souza
(SOUZA, 1983, p.25.), que, no terceiro capítulo do seu livro Tornar-se Negro,
antecipa a ideia do mito nomeando-o de Mito Negro, este
96

configura-se numa das variáveis que produz a singularidade do


problema negro de modo que tal singularidade é tridimensio-
nalmente organizada i) pelos elementos que entram em jogo
na composição desse mito; ii) pelo poder que tem esse mito de
estruturar um espaço, feito de expectativas e exigências, ocupado
e vivido pelo negro como objeto da história; e iii) por um certo
desafio posto a este contingente específico de sujeitos: os negros.

Se a emocionalidade do EU-Negro se subordina ao conjunto mais geral


de injunções da história da formação social na qual ele se inscreve, como
se deram as práticas de resistência através das manifestações artísticas
na tentativa de ir em busca de um modo de gestão de si?

Incrustrado em nossa formação social, matriz constitutiva do


superego de pais e filhos, o mito negro, na plenitude de sua
contigência, se impõe como desafio a todo negro que recusa o
destino da submissão. Interpelado num tom e numa linguagem
que o dilacera inteiro, o negro se vê diante do desafio múltiplo de
conhecê-lo e eliminá-lo. Como Édipo, se encontra frente a frente
à Esfinge e seu enigma: é vital apoderar-se do conhecimento,
desvendar a resposta e assim destruir o inimigo para seguir
livre. Obviamente, cabe a negros e não-negros a consecução
desse intento, mesmo porque o mito negro é feito de imagos
fantasmáticas compartilhadas por ambos. Razão maior para
que tal empenho seja comum é o nosso anseio de construir
um mundo onde não mais seja preciso dividí-lo entre negros e
brancos. Entretanto, enquanto objeto de opressão, cabe ao ne-
gro a vanguarda desta luta, assumindo o lugar de sujeito ativo,
lugar de onde se conquista uma real libertação. O mito negro
se constitui rompendo uma das figuras características do mito
– a identificação – e impondo a marca do insólito, do diferente.
(SOUZA, 1983, p. 25-26).

Reiventar os mitos, libertar as energias escondidas, apagadas ou esque-


cidas, acordar potências e ressemantizar a própria existência tornou-se o
movimento fundante das manifestações culturais do Eu-Negro na busca
de eclodir os contornos da raça para promover a sua autodeterminação.
É sobre esse colapso epistemológico, manifestado no sensível como um
descontínuo no tempo, que nos debruçaremos a seguir.
97

Figura 35:
Christiano Jr. Sem título,
1846-1866.
Fonte: MOURA, 2000.

Figura 36:
Christiano Jr. Sem título, Figura 41:
1846-1866. Lasar Segall. Perfil de
Fonte: MOURA, 2000. Zumira, 1927.
Fonte: Internet.
Figura 37:
Christiano Jr. Sem título,
1846-1866.
Fonte: MOURA, 2000.

Figura 38:
Christiano Jr. Sem título,
1846-1866.
Fonte: MOURA, 2000.

Figura 42:
Lasar Segall.
Bananal, 1927.
Fonte: Internet.

Figura 39:
Autoria não identificada.
A market woman.
Fonte: MOURA, 2000.

Figura 40:
Christiano Jr. Sem título,
1846-1866.
Fonte: MOURA, 2000.
97 98

Figura 32: Figura 33: Figura 34: Figura 43:


Candido Portinari. O lavrador Candido Portinari. Candido Portinari. Café, 1935. Tarsila do Amaral. A negra, 1923.
de café, 1939. Mestiço, 1934. Fonte: Internet. Fonte: Internet.
Fonte: Internet. Fonte: Internet.
99

2.2
RESISTÊNCIA

Não há outro modo de começar este capítulo senão negando a sua própria
divisão, organização e linearidade. Pois, se há algo que atravessa este
trabalho, é a noção de tempo: tempo, aqui, torna-se então o elemento que
nos corta e nos faz ser.

Como vimos, fragmentado por destino, o tempo negro é aquele marcado


pela experiência de viver duplos em que se alternam o Eu-Negro e o
Outro-Negro projetado pelo Eu-Branco. A serviço do trabalho com-
pulsório, a gestão da vida passa a ter um possuidor, que além de ser
dono da carne e do corpo, tem a posse também da sua duração: é na
experiência vivida que se desenrola a relação entre proprietário e es-
cravo, e é ao explorar a alma e roubar o tempo que se acumula riqueza
e se constrói poderio.

Nestes termos, seria contraditório então tratar as práticas de resistência


tendo em vista um marco único histórico com um só descontínuo. Falamos
aqui, então, de várias rupturas e de uma luta que se constituiu em muitas
batalhas, com muitas feridas no mar, levantes nas matas e areia de sangue.
Também, de encenações, ondas sonoras, visualidades e fé, corpos sensíveis
e combatentes que, apesar de não estarem todos citados aqui, ajudaram
a tecer as redes dos movimentos que fizeram alternar os regimes de vi-
sibilidade. Desse modo, a intenção primeira desse capítulo é criar estas
tramas relacionais com outros pontos de vista, já que desde que a palavra
negro se forjava, a liberdade já se insurgia.

2.2.1
E começa iconoclasta a demolir os mitos

Como o leitor poderá perceber, as imagens referentes a este capítulo não


estão em plano sequência, ocupando um aqui-agora cronológico e suma-
rizado: enquanto estamos aqui, elas estão vivas e acontecem, insurgem-se
e amotinam-se pelos outros capítulos, disputando outros tempos e espa-
ços. Com essa proposta editorial, esperamos que o simples ato de parar
100

a leitura e voltar no tempo através das páginas traga uma experiência de


apreensão em que esse conhecimento se dê, tal como as batalhas e as
revoluções estéticas, através do corpo. Se é no corpo que a violência se
inscreve, é por ele que se faz caminho. E é solicitando o nosso que este
trabalho (também ele como prática) propõe um gesto de ressignificação:
uma prova de que nunca houve resignação e condescendência.

Figura 44:
Octávio Araujo. Iemanjá,
Rainha do Mar, 1972.
Fonte: Internet.
101

Esta revolução começa na palavra de tal forma que podemos dizer que
passada a própria sobrevivência às condições da travessia, a comunica-
ção com o gesto, com os sons e a língua, possa ser compreendida, como
o nosso primeiro ato de resistência. Dessa relação entre corpo e sentido,
Landowski nos diz que, no campo das pesquisas referentes às linguagens,
é preciso reconhecer no corpo,

[...] num nível intermediário entre o plano puramente biológico e


aquele propriamente semiótico, algumas propriedades que fazem
dele uma realidade sui generis, de caráter social, digamos, por
natureza predisposta a servir como instrumento que permite aos
sujeitos se comunicarem entre si. (LANDOWSKI, 1996, p. 24).

Apesar de todas as estratégias de exclusão e assimilação, tendo em vista


a dispersão e a desintegração desse sujeito epistemológico de origem
africana, vivenciamos no cotidiano modificações fonéticas e morfológicas
determinantes em nossa língua, fruto desses arquivos culturais presentes
na memória do corpo. Mais do que isso: a própria palavra é instauradora
de um modo de vida que reterritorializa formas ancestrais de organização
social e ritual, pelos gestos da oralitura africana. Reverenciando e refe-
renciando-se nas irmandades do Rosário de Minas Gerais, em seus rituais
de linguagem e enunciações mitopoéticas, Leda Maria Martins diz que:

A matriz africana é lida, assim, como um dos significantes consti-


tutivos da textualidade e de toda a produção cultural brasileira,
matriz dialógica e fundacional dos sujeitos que a encenam e que,
simultaneamente, são por ela também constituídos. Aos atos de
fala e de performance dos congadeiros denominei oralitura, mati-
zando neste termo a singular inscrição do registro oral que, como
littera, letra, grafa o sujeito no território narratário e enunciativo
de uma nação, imprimindo, ainda, no neologismo, seu valor de
litura, rasura da linguagem, alteração significante, constituinte
da diferença e da alteridade dos sujeitos, da cultura e das suas
representações simbólicas. (MARTINS, 1997, p. 21).

Tais aprendizados sobre a dimensão corporal na modelização dos proces-


sos de produção ou de apreensão de sentido se tornam fundantes para
entendermos essa presença negra nas américas:

Este processo de cruzamento tem engendrado, ao longo da his-


tória, jogos ritualísticos de linguagem e de performance culturais,
modulações semióticas que fundam estratégias de veridicção,
traduzindo-se numa reengenharia de operação sígnica plural e
plurivalente, instituidora e restauradora de sua significância. A cul-
tura negra é uma cultura das encruzilhadas. (MARTINS, 1997, p. 21).
102

Quando nos atentamos à analise do holocausto que foi a escravidão, não


podemos deixar de concluir que foi essa relação com o tempo e a ances-
tralidade que permitiu não somente a sobrevivência física do negro, mas
também que se mantivesse vivo o seu aparato filosófico e identitário que
formam a própria personalidade Africana. Em Bantos, Malês e Identidade
negra, Nei Lopes, citando o filosofo togolês Amewusika Kwadzo Tay, coloca
que a formação dessa persona compõem-se de quatro elementos centrais:
o corpo (invólucro corporal), o princípio biológico, o princípio de vida, e o
espírito, substância imortal. Ela se concebe ainda em três eixos principais
de relacionamentos que se cruzam. O eixo vertical, que liga a pessoa ao
seu ancestral; o eixo horizontal da ordem social, que mantém a pessoa
conectada com a comunidade cultural e a existência biolinear, própria da
pessoa. O equilíbrio da personalidade e da saúde mental depende, portanto,
do equilíbrio desse universo psicológico (TAY apud LOPES, 1988, p. 126).

Para o africano em geral e para o Banto em particular o ancestral


é importante porque deixa uma herança espiritual sobre a terra,
tendo contribuído para a evolução da comunidade ao longo da
sua existência, e por isso, é venerado. Ele atesta o poder do
indivíduo e é tomado como exemplo não apenas para que suas
ações sejam limitadas mas para que cada um de seus descen-
dentes assuma com igual consciência suas responsabilidades.
Por força de sua herança espiritual, o ancestral assegura tanto
a estabilidade e a solidariedade do grupo no tempo quanto sua
coesão no espaço. Assim, o culto aos ancestrais (míticos, reais
e familiares) tem uma repercussão inestimável na estatuária e
na escultura da tradição negro-africana, que são as manifes-
tações mais características da Arte Negra como um todo (e da
arte banta em especial), disntinguindo-a da arte europeia, por
exemplo. (LOPES, 1988, p.129).

Ainda segundo Martins, o conceito de ritual nas culturas africanas se definiria


como “um conjunto de ritos, de regras, como uma sequência de gestos, de
falas, que respondem às necessidades essenciais da comunidade” (MARTINS
apud HOURANTIER, 1995, p. 98), o que demarcaria, nessas práticas que
compõe o nosso corpus, seus aspectos ritualísticos, coletivos e sua função
social como resposta às urgências do presente. Em sua execução e repetição,
o ritual evocaria, para o africano, “um desses momentos sagrados da tra-
dição, no qual o grupo está em relação direta com o seu meio e enfrenta as
grandes instâncias da vida” (MARTINS, 1995, p.98), recriando e traduzindo
práticas ancestrais e formas de expressão imemoriais. Essa manifestação
ritualística do cotidiano deve-se, em grande parte, à tradicional mediação
do culto das divindades que permeia toda a atividade do africano.
103

De modo que falar de resistência e, para isso, evocar o Quilombo dos


Palmares e Zumbi como uma referência das diversas insurreições, levantes
e rebeliões ocorridos, é reconhecer mais do que sua estrutura militarizada
e fortificada que, na Serra da Barriga, hoje estado do Alagoas, chegou a
abrigar aproximadamente mais de 20 mil habitantes. É falar também de
um universo de disfarces, manobras, sistemas ambíguos, códigos duplos
e jogos de aparência que dar-se-ão a ver em muitas manifestações ne-
gras que, pelas condições, fazem-se numa héxis corporal e de expressão
estética distinta.

Segundo Starling e Schwarcz (2015, p. 98),

[...] a resistência escrava deu origem a mocambos ou quilombos


guerreiros, surgidos da América portuguesa a partir do século
XVI. A palavra ‘mocambo’ significa esconderijo; já quilombo foi
o termo utilizado em algumas regiões do continente africano,
especialmente em Angola, para caracterizar um tipo de acam-
pamento fortificado e militarizado, composto de guerreiros que
passavam por rituais de iniciação, adotavam uma dura disciplina
e praticavam a magia.

Assim, é baseado nesse intercruzamento de manifestações que veremos


diminuir os limites entre práticas de resistência e práticas artísticas na
escalada do Negro à sua condição subjetal.

Figura 45:
Planta do quilombo
chamado Buraco do
Tatu para a costa da
Itapoam. Salvador. Autor
desconhecido, 1764.
Fonte: Internet.

↔↔ VEJA A LISTA DOS PRINCIPAIS QUILOMBOS


BRASILEIROS NA PÁGINA 48.
104

Ainda segundo Starling e Schwarcz (2015), a partir da presença dos qui-


lombos, as autoridades portuguesas passarão a proibir qualquer tipo de
aglomeração com mais de seis escravos, regra que atravessará os séculos
servindo como forma de contenção das mais diversas reuniões dos negros
no Brasil, bem como de criminalização dessas expressões até os dias de hoje:

[...] o étimo ‘quilombo’, para início de conversa, é originário do


quimbundo significando ‘união’, ou ‘reunião de acampamentos’;
o nome Ganga Zumba parece significar algo como ‘feiticeiro
imortal’ (zumba em quicongo significa ‘imortalidade’); Zumbi,
por sua vez, é aportuguesado da voz bunda Nzumbi (espírito).
(LOPES, 1988, p. 139-140).

Dessa forma, podemos também confabular que, reunido no próprio sig-


nificado de Zumbi, considerado maior símbolo de resistência escrava do
Brasil, está o extrato que concerne ao modo pelo qual se dão as relações
entre resistência e ancestralidade nas suas mais diversas expressões:

[...] entre os bantos – como ressalta Theophile Obenga (1984:83)


– também tudo é arte: arte de falar, de cantar, de cozinhar bem,
arte de cumprir bem os rituais, as cerimônias, as festas; arte de
tocar bem o tambor, de esculpir bem as imagens dos ancestrais;
arte de saber se pentear, maquilar, vestir, andar, rir etc. E é o
mesmo Obenga que mostra que todos os povos bantos, com
algumas pequenas diferenças, têm concepções estéticas seme-
lhantes, nas quais a ideia de beleza está indissoluvelmente ligada
às de Bem, Vida e Verdade. Assim, em toda a África banta, é
belo o que é bom, vivo e verdadeiro, e que carrega dentro de si
uma tradição de ancestralidade, que a cria e diviniza (1984:78).
(LOPES, 1988, p. 139-140).

Debruçando-se sobre os arquivos e repertórios da memória oral que


engravidaram a América; as coreografias rituais que fundam uma tex-
tura discursiva e mítico-dramática; a cosmovisão que traduz toda uma
tessitura simbólica dos festejos e cerimônias; e todos os microssistemas
que reorganizam africana e agrafamente o tecido cultural e simbólico
afro-brasileiro (MARTINS, 1997), Leda Maria Martins fará uma das mais
importantes contribuições sobre as estéticas negras que temos registro
em nosso país, ao trazer a entidade Exu para explicar como se constrói o
processo de instauração de sentido e a estrutura de enunciação dos negros
transplantados para o Brasil.
105

As elaborações de Martins, sobre as quais nos aprofundaremos, são im-


prescindíveis ao estudo do nosso objeto, sobretudo daquelas expressões
que nos aproximam do conceito de práticas, que toamos aqui como cor-
pus e que estão ligadas à performance, às artes visuais, a dramaturgia, a
teatralidade e seus cruzamentos com a música e outras linguagens, como
o cinema, a dança e a literatura.

2.2.2
Os jogos ópticos em Exu

Ao trazer a produção de um sentido de dupla fala e, portanto, polêmica em


sua estrutura, a autora pontua que essa função marcadamente dialógica
das artes negras traz como efeitos “elaborações de formações discursivas
e comportamentais de dupla referência que estabelecem, em diferentes ní-
veis, um diálogo intertextual e intercultural.” (MARTINS, 1995, p. 54). Nessa
cultura das aparências, que se realiza em duas dimensões fundamentais
– o segredo e a luta –, irá se forjar, nas diversas manifestações, um êthos
africano que vai jogar com as ambiguidades do sistema, agindo nos inters-
tícios da coerência ideológica. (SODRË, 1983). Citando Molette, ela diz que:

A experiência da escravidão demandou a criação de uma técnica


de sobrevivência que deve ser apreciada se se quer compreen-
der o desenvolvimento do teatro afro-americano. Essa técnica
de sobrevivência é de duplo-sentido. As coisas nunca eram o
que pareciam ser, quando vistas e ouvidas pelo brancos. O uso
do duplo sentido era uma característica comum, utilizada pelos
praticantes das primeiras formas de comunicação artística, das
quais se originaram o teatro afro-americano – os artistas de me-
nestréis, os intérpretes de spirituals, os contadores de histórias e os
pregadores. (MARTINS, 1995, p. 54 apud MOLETTE, 1986, p. 33).

Somado ao jogo da duplicidade que viria a produzir certa originalidade,


Martins nos fala ainda de um profundo sentimento de comicidade e ironia,
além de uma assimetria que, no inglês, traduziu-se como o pimping: a
ginga portuguesa. Este mancar próprio de Exu, que se expressa também
no andar do negro, transborda, dando o caráter repetitivo da teatralização,
da performance e de outras visualidades:
106

O processo de dupla fala encontra uma imagem que o sinteti-


za, Exu, orixá que preservou seu nome próprio, no exercício de
renomeação dos deuses africanos efetuado pelo sistema políti-
co-religioso das Américas. Exu simboliza um principio estrutural
significante da cultura negra, um operador semântico da alte-
ridade africana na sua interseção cultural dos Novos Mundos.
Senhor das encruzilhadas e, principalmente, da encruzilhada
dos sentidos e dos discursos, ele é um trickster, uma instância da
mediação e significação através da qual a mitologia iorubá desliza
pela religião cristã, mantendo uma enunciação diferenciada e
descentralizadora. (MARTINS, 1995, p. 56).
↔↔ EXU COM SUA CABAÇA.
VEJA ESTA OBRA NA
PÁGINA 25.

Evocando Exu, Martins traça então uma analogia da entidade com o que
seria o Regime de Manipulação em sua interação e intencionalidade: carac-
terísticas que definem o próprio Exu como aquele que produz significado e
faz a comunicação com o divino no panteão das religiões de matriz africana:

Exú é um princípio dinâmico de individualização e, simultaneamen-


te, de comunicação e interpretação. Seu caráter de ambivalência,
multiplicidade, e sua função, no panteão dos orixás, como elemento
de mediação entre os universos humano e divino e como instância
propulsora e promulgadora de interpretação fazem dele um topos
discursivo e figurativo que intervém na formulação de sentido da
cultura negra. Ele detém o saber que permite decifrar as tábuas
de adivinhação de Ifá. Exú é jogo, é signo, é estrutura. Esse orixá
metaforiza a própria encruzilhada semiótica das culturas negras
nas Américas, sendo um princípio dialógico e mediador entre os
mitemas do Ocidente e da África. ( MARTINS, 1995, p. 55).

Essa possibilidade de ser muitos sem perder a originalidade, revela no


nível do enunciado, na organização da narrativa, dois programas narra-
tivos contrários ou contraditórios e, no nível da enunciação, da estrutura
da comunicação, competências modais enunciativas que vão das estru-
turas contratuais benevolentes (acordo mútuo e obediência) às estruturas
polêmicas coercitivas (provocação ou chantagem) (GREIMAS, 2013). O
reconhecimento desse tipo de estrutura na semiótica permite deflagrar
uma forma de sociabilidade pautada na luta, e que se manifesta na própria
teatralidade e teatralização cotidiana do negro brasileiro, onde performar
pode ser considerado, então, um modo de vida estampado

[...] em todos os rituais religiosos de origem africana, nos congados


e reinados, nos desfiles e organizações tradicionais do carnaval
negro, nas danças, nos jogos verbais e corporais e em variadas
outras formas de expressão eminentemente orais, em que se
aglutinam os elementos basilares de um Teatro Negro popular
de ascendência africana. (MARTINS, 1995, p. 56).
107

Figura 51:
Pantagomes.
Fonte: MARTINS, 1997.
Figura 52:
Gungas, 1996.
Fonte: MARTINS, 1997.

Figura 53:
Cantares. Capitão: Alceu
Valério de Lima, 1995.
Fonte: MARTINS, 1997.
Figura 54:
Sem título.
Fonte: MARTINS, 1997.
Figura 55:
Jean Baptiste Debret.
Le Vieil orphée africain
oricongo, 1826.
Fonte: MOURA, 2000.

Figura 49: Figura 50:


Carlos Julião. Rei e Rainha Irmandade da Nossa Senhora do
negros da Festa de Reis, 1776. Rosário. Afrografias da Memória.
Fonte: MOURA, 2000. Fonte: MARTINS, 1997.
107 108

Figura 46:
Processo de crescimento
do Òkòtò, caracol,
símbolo de Exu.
Fonte: SANTOS, 2014.

Figura 47:
Caracol-pião, símbolo do
crescimento.
Fonte: SANTOS, 2014.

Figura 48:
Unidades dinâmicas.
O triângulo tem três
lados. O 3 é o 2+1; o mais
1 simboliza a dinâmica
da ressurgência. Èsù
Òjíse-Ebo – Princípio de
reparação.
Fonte: SANTOS, 2014.

Figura 56:
Opon Ifà, a táboa de Ifá sobre a qual o
babalaô marca os sinais que indicam o
odu, a resposta à consulta feita ao Ifá.
A representação de Exu está presente
no Opon Ifà, algumas vezes apenas
os olhos, porque é ele quem fala e
dinamiza todo o sistema.
Fonte: SANTOS, 2014.
109

Do risco eminente da descoberta desse jogo de aparências, manipula-se


para agir nos programas de forma que se possa fazer sentir e estar junto,
em coletividade. Efeitos de uma condição de segregação nas relações de
identidade e alteridade entre o Eu-Branco e o Outro-Negro, tais manifes-
tações estão implicadas em uma lógica de sobrevivência em que as lutas
tinham como estratégia principal o mistério e o segredo. Diante da sistemá-
tica opressão, da condição cativa e do enclausuramento, negociava-se os
sopros de vida para agir às escondidas e organizar formas de comunicação
que codificadas em qualquer manifestação, estavam a serviço de resistir
à violência, expressar sentimentos e criar táticas de levante e rebelião.
Assim se fez o samba, a capoeira, os reinados, os congados, os batuques,
os sistemas mítico-religiosos, as danças, os folguedos, as brincadeiras e
todo um rico sistema cultural. Segundo Roger Bastide,

[...] o samba rural [...] apresenta-se como um enigma proposto


ao coro e que o corifeu deve resolver. O branco assiste a esse
jogo, mas é aqui mero espectador, sem compreender o sentido
do enigma, sentido que é dirigido contra ele. O que faz a beleza
desse espetáculo é o gênio inventivo do africano, sua capacidade
de criar um código que chamarei de código da ambiguidade, já
que o branco não chega a descobrir o verdadeiro significado
dos símbolos apresentados, e sua inteligência é sempre levada
a seguir uma pista falsa. (BASTIDE 1973, p. 178).

Analisando os regimes de visibilidade desta primeira fase de manifestações


originárias criadas e recriadas durante o período da escravidão, podemos
considerá-la como um universo cultural posicionado num regime de não-vi-
sibilidade, já que estes são ligados à intimidade, a privacidade e ao segredo
que, pela embreagem enunciativa, assumem um fazer persuasivo. Esta ideia
de um “privado coletivo”, manifesto na forma de uma consciência do nós,
foi fundamental para instaurar uma identidade comunitária e fundar uma
filiação de unidade social, tendo em vista a sobrevivência: “cada membro
(da unidade social) só descobre seu ‘si’ no ‘entre si’.” (LANDOWSKI, 1992, p.
87). Ela ainda será determinante de uma expressão que, feita para ser vista
e vivida entre-si, independe de um público ou de uma plateia legitimadora,
reforçando, ora pelas adversidades do local, ora pela memória cultural, uma
característica da própria arte africana em que arte e vida são inseparáveis.

Com a mudança de uma posição essencialmente objetal (escravo) para


uma presença cada vez mais participativa como sujeito (liberto), tal como
veremos no pós-abolição, há o surgimento de outros regimes. Nesses
termos, segundo Landowski,
110

[...] também poderiam ser distinguidos, no domínio dos sujei-


tos coletivos, de um lado, um conjunto de práticas discursivas
decorrentes da interioridade e do segredo do grupo – debates
a portas fechadas, deliberações entre associados ou filiados
a socidades secretas etc. – e, de outro lado, uma “palavra so-
cializada”, correspondente a um regime discursivo não menos
vital para o funcionamento de certas coletividades, o da publi-
cidade, no sentido primeiro do termo, isto é, em que a própria
produção do discurso pressupõe a presença de um público.
(LANDOWSKI, 1992, p. 87).

De certo que nessa linha do tempo entre o fim da escravidão e o pós-abo-


lição diversas manifestações se anunciaram na tentativa de expressão
e resistência, sobrevivendo, ainda, às diversas formas de repressão e
categorização que surgiram para demarcar a expressão produzida pela
“negrada”. Características que, ligadas ao primitivismo e à irracionalida-
de, opunham-se ao refinamento e ao racionalismo da branquitude, o que
deflagram, por exemplo, sistemas classificatórios que se convencionou
chamar arte popular e arte erudita. Sobre a produção de objetos, artefatos
e artes visuais, Renata Felinto pontua que

Não por acaso, muitos dos artistas populares são negros e mesti-
ços, muitos iletrados e que vivem em condições socioeconômicas
extremamente humildes e encontraram nas Artes Visuais um
modo de, em meio à massa populacional desassistida de baixa
renda, expressar suas essências, subjetividades e individualidades.
(SANTOS, 2016, p. 133).

Nestas relações culturais, também à portas fechadas, um centro de re- ↔↔ CONFIRA AS FIGURAS 7, 8, 9 E
10 NA PÁGINA 47.
sistência, proteção, manutenção e recriação fundamental são os espaços
dedicados ao culto das religiões de matriz africana, os quais servem de
sustentação filosófica para que outras manifestações aconteçam nas
relações entre o profano e o sagrado. Seja no Candomblé e suas diferen-
tes nações (ketu, angola ou jeje), na Umbanda, no Sistema Ifá, no Tambor
de Mina, Tambor de Caboclo, na Jurema ou no Batuque, todo um aparato
epistemológico plasmado em objetos, artefatos, indumentárias, ritmos,
instrumentos, ferramentas, gestualidades, sabores, tratamentos e arquite-
turas se constrói como um legado afirmativo da condição negra no Brasil.

Nestes tão complexos quanto distintos e fracionados movimentos em


busca da expressão que os retirasse de uma condição objetal, um salto é
necessário para entendermos um movimento de emancipação além-mar
111

que acaba por influenciar, no pós-abolição, em solo nacional, as demandas


políticas, bem como criar uma curva nas experiências estéticas: tratamos
do fenômeno da negritude.

Serão estes movimentos transatlânticos que irão criar uma modificação


nos jogos entre visibilidade e práticas artísticas e de resistência por anun-
ciarem uma mudança nas relações, antes pautadas na sobrevivência e no
disfarce, para um outro tipo de enfrentamento e denúncia, pensamentos
estes que irão influenciar, algumas décadas depois, o Brasil.

2.2.3
Correntes marítimas

O fenômeno do pan-africanismo e da negritude consubstancia uma im-


portante fase de construção e internacionalização dos movimentos negros,
já que, por meio do ato consciente de enunciação, passa a reverberar um
novo efeito de sentido que não mais o da mocambagem em uma interação
comunicacional internegros, mas, sim, o do direito à fala, da denúncia e da
exposição das condições sócio-políticas, tendo em vista atingir o Outro-
Branco. Tal regime de visibilidade que se inaugura pode ser resumido, por
exemplo, na afirmação de Alain Locke, em seu texto The New Negro, quando
diz que “é imperativo que compreendamos o mundo branco nas suas rela-
ções com o mundo não-branco. (LOCKE, 1961 apud SANCHES, 2011, p. 71).

Entre as suas complementariedades e divergências, ambos os movimentos,


o do pan-africanismo e o da negritude, tornam-se decisivos no questio-
namento das novas formas de captura do neocolonialismo, bem como
na criação de estratégias para surgimento de um devir negro no mundo.
De caráter transnacional, têm suas nascentes entre Estados Unidos, as
Antilhas e a Europa – principalmente a França –, irradiando, em seguida,
para o continente africano e demais países da América.

Saindo de uma posição defensiva para ofensiva, tais práticas de resistência


encontram no Haiti o grande divisor de águas da modernidade, por ter sido
esta a primeira revolução radical de essência antirracista, anticolonialista e
anti-imperialista feita por escravos e por ainda reivindicar os fundamentos
epistemológicos que forjavam a inferioridade e a ideia de uma raça negra:
112

“Não por acaso, Joseph Antenor Firmin (1850-1911), antropólogo haitiano,


foi o primeiro intelectual negro a transferir esse desafio para o campo
teórico e científico” (MOORE, 2010, p. 9). Em sua obra, De l’egalité des
races humaines [A igualdade das raças humanas], publicada em Paris,
em 1885, o intelectual rebatia as teses de Arthur De Gobineau sobre a
inferioridade racial e, junto com outros pensadores haitianos, funda as
bases antropológicas do pan-africanismo e da negritude.

Conceito basilar do movimento pan-africano foi o da dupla consciência,


cunhado pelo sociólogo e líder norte-americano William Edward Burghart
DuBois na obra The Souls of Black Folks [As almas da gente negra], de
1903, que explicita a condição de duplicidade do tempo negro:

[...] o Negro é uma espécie de sétimo filho, nascido com um véu


e dotado de uma segunda visão neste mundo americano – um
mundo que não lhe concede uma consciência de si verdadeira,
mas apenas lhe permite ver-se a si mesmo através da revelação
do outro mundo. É uma sensação estranha, esta dupla consci-
ência, esta sensação de se estar sempre a olhar para si mesmo
através dos olhos dos outros, de medir a nossa alma pela bitola
de um mundo que nos observa com desprezo trocista e piedade.
Sente-se sempre esta dualidade – um Americano, um Negro; duas
almas, dois pensamentos, dois anseios irreconciliáveis; dois ideais
em contenda num corpo escuro que só não se desfaz devido à
sua força tenaz. (DUBOIS, 1903, apud SANCHES, 2011, p. 51).

Dizendo que a história do negro americano era a história desse conflito e


que, portanto, não se tratava nem de esquecer o passado, nem de africa-
nizar a América, tampouco de embranquecer o negro, ele afirmava que
o desafio era “atingir um estado adulto consciente de si, fundindo esta
dupla consciência num ser melhor e mais verdadeiro.” (DUBOIS, 1903,
apud SANCHES, 2011, p. 51.).

Esta é, portanto, a finalidade do seu anseio: participar na cons-


trução do domínio da cultura, escapar à morte e ao isolamento,
proteger e usar os seus melhores poderes e o seu génio latente.
Estes poderes do corpo e da mente foram, no passado, estranha-
mente desperdiçados, dispersos ou esquecidos. […] Através da
história, os poderes de indivíduos negros brilham aqui e ali, quais
estrelas cadentes, morrendo, por vezes, antes que o mundo tenha
reconhecido adequadamente o seu brilho. O aspirante a erudito
negro viu-se confrontado com o paradoxo de que o conhecimento
de que o seu povo precisava era uma banalidade para os seus
vizinhos brancos, enquanto que o conhecimento que traria algo
113

de novo ao mundo branco era estranho à sua própria carne e


sangue. O amor inato da harmonia e da beleza, que pôs as almas
mais rudes do seu povo a dançar e a cantar, apenas suscitou
confusão e dúvida na alma do artista negro; pois a beleza que
lhe era revelada era a beleza da alma de uma raça que o seu
publico mais alargado desprezava, não conseguindo articular
a mensagem de um outro povo: Este desperdício de objectivos
duplos, este desejo de satisfazer dois ideais irreconciliáveis, teve
efeitos tristemente destrutivas sobre a coragem, a fé e os actos
de milhares e milhares de pessoas, levando-as frequentemente a
adorar falsos deuses e a invocar falsos meios de salvação, tendo,
nalguns momentos, parecido levá-los a sentirem-se envergonha-
dos de si mesmos. (DUBOIS, 1903, apud SANCHES, 2011, p. 52).

Se, como vimos, no pós-abolição, a assimilação e o embranquecimento


pautavam as instituições democráticas da modernidade, tendo em vista
a ascensão social do negro e as questões de transculturação entre África
e diáspora, metrópole e colônias, um segundo momento é marcado pela
luta por autodeterminação, mediante um projeto batizado, pelo líder pan-
-africano Marcus Garvey, de ‘redenção’.

Segundo Mbembe, para pôr em prática tal projeto, foi preciso fazer uma
leitura atenta do tempo do mundo. Se o que pautava as relações entre o
escravo e o senhor era o monopólio deste último sobre o futuro, Garvey
propôs uma redefinição do desejo negro que deveria ser o de se governar
por si mesmo, através de uma teoria do acontecimento produzida no futuro,
em que seria possível formar um grande império africano. Apoiando-se
na maior organização negra conhecida na história, a Universal Negro
Improvement Association (UNIA), o projeto político garveyista se desdo-
brava numa afirmação valorizadora e defensiva da raça negra: “descon-
sidero fronteiras no que diz respeito ao negro; o mundo inteiro é a minha
província até que o negro seja livre”. (MOORE, 2010, p.15).

Fundada logo após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a UNIA conver-


teu-se em uma gigantesca organização que, em seu apogeu, nas décadas
de 1920 e 1930, chegou a somar entre dez e quinze milhões de afiliados.
Sua meta: congregar todos os povos negros do mundo sob um mesmo
guarda-chuva ideológico e político e unir os povos da diáspora e os da
África, a fim de expulsar as potências imperiais, libertar todo o continente
africano e unificá-lo.
114

Nesse propósito grandioso, Garvey pretendia constituir os Estados Unidos


da África, grande potência industrial e militar continental que foi resumida
no slogan “Europa para os europeus. Ásia para os asiáticos. A África para
os africanos, no continente e no além-mar.” (MOORE, 2010, p.13).

Entidade mítica e abstrata, a África de Garvey não deixava de ser a busca


por um espaço possível de ressemantização do ser-negro como recipiente
usurado, sendo esse próprio retorno a promessa da restituição da história:
“o negro deve sentir tanto orgulho de ser negro quanto o branco de ser
branco.” (MOORE, 2010, p.11).

Essa efervescência intelectual e política produz ondas em toda a diáspora,


gerando afiliações múltiplas que promoverão a organização de diversos
congressos pan-africanistas, bem como farão surgir organizações, enti-
dades, teorias e publicações. Segundo Sanches, o que viria a reforçar essa
busca por uma formação internacional teria sido ainda a participação de
afro-americanos tanto na Primeira como na Segunda Guerra Mundial e o
consequente sentimento de inconformismo pelo não cumprimento das
promessas de igualdade e cidadania.

Ainda nos Estados Unidos, o Harlem, bairro de Nova York e centro de


uma grande onda migratória, torna-se palco do surgimento da Harlem
Renaissance, um movimento cultural, artístico e político que tinha como
objetivo, além da autodeterminação, contribuir para a afirmação da produção
artística negra, de modo a impactar a relação inter-racial entre negros e
brancos. Para tal, uma das premissas era reconfigurar os estereótipos do
negro rural e primitivo do Sul, e ainda construir uma nova representação
do negro consistente com as emergentes teorias dos intelectuais que es-
tavam por desmantelar a ficcionada inferioridade biológica. Nas palavras
de Alain Locke, um dos líderes do movimento e criador da antologia The
New Negro [O Novo Negro] de 1925:

Pense-se no Harlem como um exemplo disto; aqui, em Manhattan,


não só existe a maior comunidade negra do mundo, mas a primei-
ra concentração, na história, de elementos tão diversos da vida
negra. O Harlem atraiu o Africano, o Caribenho, o Americano
negro; reuniu o Negro do Norte e o do Sul, o homem da cidade
e da aldeia; o camponês, o estudante, o homem de negócios, o
profissional, o artista, o poeta, o músico, o aventureiro e o ope-
rário, o pregador e o criminoso, o oportunista e o pária social.
115

Figura 58: Figura 61:


Robert Walsh (del.) e T. Capa do jornal Légitime
Kelly, Sections of a slave Défense, 1932.
ship. 1830. Fonte: Internet.
Fonte: MOURA, 2000.

Figura 62:
Augusta Savage. Detalhe
da escultura The Harp.
Harlem Renaissance, 1939.
Fonte: Internet.

Figura 59: Figura 60:


Aimé Césaire. Lost Boy, poemas Aimé Césaire. Lost Boy, poemas
ilustrados por Pablo Picasso. ilustrados por Pablo Picasso.
Fonte: CÉSAIRE, 1986. Fonte: CÉSAIRE, 1986.

Figura 63:
L’Étudiant noir, número 1, 1935.
Fonte: Internet.

Figura 64:
Survey Graphic, revista editada
por Alain Locke.
Fonte: Internet.
115 116

Figura 57: Figura 65:


Aimé Césaire. Lost Boy, poemas Wilfredo Lam. Umbral, 1950.
ilustrados por Pablo Picasso. Fonte: Internet.
Fonte: CÉSAIRE, 1986.
117

Cada grupo chegou com os seus motivos e para atingir os seus


próprios fins, mas a experiência mais importante que viveram
foi a de se encontrarem. A proscrição e o preconceito lançaram
estes elementos dissimilares numa área comum de contacto e
interacção. Dentro desta área, a solidariedade e unidade racial
determinaram a fusão crescente de sentimentos e experiência.
Assim, aquilo que começou em termos de segregação, trans-
forma-se, cada vez mais, à medida que os seus elementos se
misturam e reagem, no laboratório de uma grande união racial.
Há que admitir que, até agora, os negros americanos foram
mais uma designação racial do que uma realidade factual ou,
para ser preciso, mais um sentimento do que uma experiência.
O principal elo entre eles tem sido mais uma condição do que
uma consciência comum; mais um problema do que uma vida em
comum. No Harlem, a vida negra está a agarrar a sua primeira
oportunidade de expressão de grupo e de autodeterminação.
(LOCKE, 1925 apud SANCHES, 2011, p. 63).

Essa passagem nos ajuda a entender como o movimento de conscienti-


zação caminhava paralelo ao de uma condição que (semelhante àquela de
sobreviventes da condição escrava), os tornava partícipes e refundadores
de toda sorte de manifestação cultural e artística. No entanto, o que os
movimentos políticos de conscientização racial vão tensionar, ainda que
com suas divergências e contradições, como o próprio Harlem Renaissance
(1920) e depois o New Negro Movement (1933), é a possibilidade do uso
da arte, sobretudo da literatura e da música, como instrumento politico e
publicitário de uma imagem positiva do negro. Tal condição fica explícita
na citação de Du Bois sobre a perspectiva instrumental da arte, no ensaio
de 1926, Criteria of the Negro Art, em que ele diz:

All Art is propaganda and ever must be, despite the wailing of the
purists. [...] Whatever art I have for writing has been used always
for propaganda for gaining the right of black folk to love and enjoy.
I do not care a damn for any art that is not used for propaganda.7
7.  W. E . B . D u B ois .
“Criteria of Negro Art”.
Apesar de influenciar as Américas, é certo que estes ideais criaram as
The Crisis, n. 32, out.
1926,, rpd. W.E.B. Du Bois suas divisões de opinião na época e nas gerações seguintes, no que diz
Reader, p. 324-328. respeito a uma definição da identidade racial do artista e de como ele deve
se manifestar, caracterizando-se como um dos primeiros embates entre
a dimensão utilitária e a dimensão artística da linguagem nas expressões
das culturas negras.
118

Foi também sob o invólucro da arte, do poético e do literário que o termo


Negritude foi pela primeira vez forjado, criando a sua primeira subver-
são: a da palavra. Ao trazer do francês nègre, termo substancialmente
depreciativo, ao invés do noir, forma elegante e respeitosa, Aimé Césaire,
ao escolher esta derivação primeira para cunhar a négritude, trazia como
intenção promover a sua ressignificação: “uma revolução na linguagem e
na literatura que permitiria reverter o sentido pejorativo da palavra negro
para dele extrair um sentido positivo” (CÉSAIRE apud BERND, 1988, p. 17).

Preocupado com o destino do homem negro na memória moderna e


combativo da ideia de uma pretensa universalidade europeia, a negritude,
aos olhos de Césaire, abria caminho para uma outra imaginação de uma
comunidade universal, onde a singularidade e a diferença se lançariam a
um futuro especificamente negro.

Na França, junto com Léon Gontran Damas e Léopold Sédar Senghor, Césaire
firma o pacto triunviral que funda formalmente a Negritude, criando, em
1935, em plena guerra ítalo-etíope, a revista L’Étudiant Noir [O Estudante
Negro]. Em companhia de outros martiniqueses, como Etienne Léro, René
Menil, J. M. Monerot, Pierre Yoyotte, e sua irmã Simone Yoyotte, funda, em
1932, o jornal Légitime Défense. Pautando a plena assunção de uma iden-
tidade racial que viria através de um re-enraizamento africano, o jovem
martinicano Césaire escreve, em 1939, o Diário de um Retorno ao País
Natal, “poema-manifesto que consagra, de maneira formal, a existência
da negritude como movimento, pensamento e ação” (MOORE, 2010, p. 16):

Minha negritude não é uma pedra, surdez


Arremessada contra o clamo do dia
Minha negritude não é uma
mancha de água morna
Sobre o olho morto da terra
Minha negritude não é uma
torre ou uma cathedral
Ela mergulha na carne vermelha do solo
Ela mergulha na carne ardente do céu
Ela rompe o desânimo opaco
com a sua justa paciência
119

Sendo, no poema, o lugar onde pela primeira vez a palavra irrompe, Césaire,
ao rejeitar qualquer tentativa assimilacionista, exalta o protagonismo negro,
defendendo que o racismo deveria ser confrontado no próprio terreno de
sua enunciação: a raça:

Verdadeiro grito enunciador de um pensamento teórico insur-


recto e de uma prática militante de desalienação do Mundo
Negro, o Diário anuncia uma telúrica metamorfose: do gesto
de emancipação individual e reinvenção pessoal, para uma
reinvindicação coletiva assentada numa enunciação teórica; de
um protesto localizado, voluntariamente confinado ao literário
e ao artístico, a uma proposta política de revolta planetária.
(MOORE, 2010, p. 17).

Apesar dos limiares que se desdobraram nas ambiguidades entre Césaire e


Senghor – o primeiro pregando contra qualquer tipo de alienação cultural
ao buscar o retorno às origens sem essencialismos folclóricos e armadilhas
pseudo-universalistas, e o segundo que sucumbiu aos ideias de mestiça-
gem e assimilação que viria a desembocar no que chamou de Euráfrica –,
um importante dado de suas trajetórias é o envolvimento que tiveram no
que viria a ser o movimento surrealista.

Alvo de embranquecimento, no que se refere ao ocultamento de seus ideais


e de seus adeptos, segundo Rosemont e Kelley, o Surrealismo, apesar de
raramente reconhecido como tal, teria sido o maior movimento moderno
de origem europeia do qual homens e mulheres de descendência africa-
na participaram com equidade e em considerado número (ROSEMONT;
KELLEY, 2009).

Proclamado em 1924, pelo próprio André Breton, no Manifesto do Movimento


Surrealista, como um movimento enfaticamente antieurocêntrico, os
mesmos autores ressaltam ainda que, apesar de sempre identificado
(provavelmente pela ousadia das suas intenções) com o absurdo, o sem
sentido e a irrealidade, tais características eram exatamente o contrário
do que era considerada sua prática: olhar com mais realidade, a partir da
expansão da consciência existencial, para elementos do cotidiano que
estavam negligenciados, perdidos, excluídos, esquecidos, escondidos e
ignorados (ROSEMONT; KELLEY, 2009). Por isso, segundo Jean-Claude
Michel, no livro The Black Surrealists, entre os valores atribuídos aos poetas
surrealistas estava a rejeição de qualquer forma de dominação:
120

For them, when poetry is freed from all literary restraints, all-logical
and moral prejudices, it becomes eminently revolutionary. Such
poetry could stimulate realistic dreams or incite to the vision of a
New World order, which could induce the readers to get engaged
in revolutionary acts of liberation. For the surrealists, the poet must
be a leader, among those who have committed themselves in the
struggle for a New World of justice and love. This concept of poetry
as action, knowledge, and foresight was also the concept held
by the majority of Negro-African poets. (MICHEL, 2000, p. 2).

Assim, três pontos centrais nos chamam a atenção entre Negritude e


Surrealismo: o primeiro, a interação inter-racial em um movimento de arte
europeia; o segundo, a tomada consciente dessa arte como lugar sensível
de ressignificação e denúncia através de uma ruptura estética; e o terceiro,
o fator visibilidade, já que, segundo Michel, é através desse movimento
que a negritude se revela e se torna amplamente reconhecida entre as
duas guerras mundiais.

Isto posto, o que nos interessa, portanto, aqui, explanar é que não se
trata exclusivamente de nomes de batismo e nem de como a história da
arte ocidental vai oficializar o movimento surrealista. O importante é ver
como os artistas negros e negras, declaradamente “surrealistas” ou não,
desenvolveram uma poética e uma forma de expressão única, capaz de
buscar nas profundezas de uma epopeia espiritual o que seria a essência
ontológica do ser negro. Buscando a destruição das palavras, rejeitando
a prosa, destituindo a língua do colonizador, Sartre vai reconhecer que,

[...] com Césaire, a grande tradição surrealista se arremata,


assume seu sentido definitivo e se destrói: o surrealismo, movi-
mento poético europeu, é tomado aos europeus por um negro
que o volta contra eles e lhe consigna uma função rigorosamente
definida (SARTRE, 1968, p. 113).

Cèsaire, por outro lado, dirá não renegar

[...] as influências francesas. Quer eu queira ou não, sou um poeta


de expressão francesa e é evidente que a literatura francesa me
influenciou. Mas aquilo sobre o que eu insisto é que houve, a partir
dos elementos que me eram fornecidos pela literatura francesa,
um esforço para a criação de uma língua nova, capaz de exprimir
a herança africana. [...] Estava pronto a acolher o surrealismo
porque ele era um instrumento que dinamitava o francês. Ele
lançava tudo aos ares. (CÉSAIRE apud DEPESTRE, [19-?], n.p.)
121

Assim, o que estes movimentos do início do século XX nos deixam como


legado para pensar suas novas afiliações geo-geracionais, passada tan-
tas décadas, é o uso consciente da criação de um descontínuo no tempo.
O tempo se torna, então, uma unidade fundamental de ação, dado que,
diferente de outros momentos históricos, há a perspectiva revolucionária
de se imaginar alguma possibilidade de futuro, conforme nos fala Mbembe
(2002, p.39):

[...] ser negro, e portanto escravo, significava não ter futuro


próprio, em si/para si. O futuro do Negro era sempre um futuro
delegado que o seu senhor lhe oferecia como uma dádiva, uma
alforria. Por isso, a questão do futuro enquanto horizonte a atingir,
através de um trabalho seu, que lhe permitia a autoprodução
de sujeitos livres, responsáveis por si e para com o mundo, era
central nas lutas dos escravos.

Se na condição escrava a liberdade de expressão era ora tolhida, ora censu-


rada ou mesmo irrealizável, tais movimentos, ainda que com suas limitações
estruturais, lançam-se à esperança e ao inesperado, onde a experiência
estética é arregimentada como estratégia de visibilidade e ressignificação.
Ao promover uma ruptura no tempo, através de um fazer sentir, busca-se
fundar um novo sujeito por meio de um retorno às nascentes do ser que
não seja essencialmente negra – na concepção do que instituiu a raça –,
mas que carregue o passado como uma via de expansão existencial.

Ao propor uma desconfiguração do eurocentrismo e questionar os prin-


cípios de universalidade ajustando-se a um público não negro, aposta-se,
apesar das extremas políticas de segregação racial, sobretudo nos EUA,
e dos possíveis riscos de apropriação e exotismo, na visibilidade das pro-
blemáticas, na afirmação do sujeito e na interação comunicacional. Na
iminência de viver nos duplos, sustentar os paradoxos e passear entre os
limites, a reviravolta que esta geração oportuniza, é a possibilidade de um
fazer-sentir na e através das manifestações da arte.

Assim, a decisão que tomamos em olhar atentamente para os imbrica-


mentos entre Negritude e Surrealismo como um fato de resistência, em
detrimento de outras irrupções tão importantes quanto na história, deve-se
à omissão da presença de artistas negros na elaboração do que viria a ser
o movimento, seguido do fato de a própria palavra negritude surgir num
ato de criação como parte desse contexto. Como veremos a seguir, se não
122

encontramos documentos no Brasil que mostram uma conexão explícita


das influências de artistas negros no surrealismo como movimento institu-
cionalizado, tanto nas artes visuais como na literatura, não podemos deixar
de notar que certos valores se reiteram como parte da própria concepção
da negritude e no modo surrealista de pensar a prática da arte. Retomando
o Diário de um Retorno ao País Natal, obra expoente dessa união e con-
siderada, pelo meio intelectual francês e por nomes como Sartre, como o
grande grito negro, Combe observa que

[...] o narrador do Diário opera uma conversão do olhar (sobre


si, sobre sua “condição de negro”) pela qual ele escapa enfim
do olhar do Outro, que o reduz a estereótipos. Nessa dimensão,
ele reverte também a posição de fala. De objeto do discurso,
o Negro passa a ser sujeito da enunciação no próprio ato do
poema, que usa a linguagem, antes passiva, em sua forma ativa.
(COMBE, 2015, p.13 ).

Nessa perspectiva, o que o Diário nos abre é a possibilidade de fundar


um sujeito que não somente pensa a prática artística na sua dimensão
funcional, mas faz dela mesma lugar de experimentação e manifestação
de sua condição epistemológica: um jeito negro de fazer e de realizar a sua
existência semiótica através das linguagens. Assim é que a negritude de
Cèsaire não se põe somente a serviço de uma posição semântica, mas age
no como as características elementares da condição negra (portanto do
que é produzido como consciência) e sua sintaxe diferenciadora se mani-
festam na forma, alterando os usos da linguagem. Fica posta nesta obra
matricial um aprendizado sobre as diferenças entre o uso da linguagem
na sua dimensão artística e em sua dimensão utilitária ou no que seria
a diferença entre falar sobre e falar com/sendo ou em mais ou menos
esteticidade, que muito tem para contribuir com as discussões sobre arte
e política nos termos da negritude no contemporâneo. Foi a partir desse
projeto que o surrealismo se configurou como forma de expressão, antes
de vir a se tornar fórmula, metodologia e modelo.

Longe de se contentar em relatar (ou descrever) a tomada de


consciência do “Ser Negro”, no modo narrativo (ou descritivo)
que tenderia a objetivar ou delimitar uma identidade negra
pré-existente por assim dizer, o poema se realiza na e pela lin-
guagem. Descrever, contar, analisar a Negritude faria de novo
e efetivamente um balanço a posteriori de uma experiência
existencial e política encerrada [...] Assim, o Diário de um retorno
ao país natal, põe em cena o processo pelo qual o Negro ao “se
123

desalienar”, chega ao status de sujeito de fala, isto é, de sujeito.


Ser Negro, doravante, não é mais ser dito, mas se dizer Negro, se
reconhecer e se aceitar como tal. O poema faz assim literalmente
advir a consciência de si de Ser Negro, que não existe fora da
linguagem. (COMBE, 2015, p.14 ).

A propósito das relações entre o surrealismo na pintura e na literatura


referimos a obra do artista de ascendência chinesa e congolesa Wifredo
Lam, o livro de poemas de Aimé Césaire, Lost Boy, ilustrado por Picasso,
a publicação encabeçada por Etienne Léro e Simone Yoyotte, Legítima
Defesa, que, juntamente com o grupo de artistas, são considerados os
primeiros negros surrealistas, e as incursões do jazzista, pintor e um dos
precursores do movimento spoken-word, Ted Joans. Além disso, a negri-
tude entra numa nova fase do pensamento com o trabalho do cientista
senegalês Cheikh Anta Diop e do psiquiatra martinicano Frantz Fanon,
explodindo, segundo Moore, em outras manifestações, como as lideradas
por Stockley Carmichael e Rap Brown, na forma do movimento Black Power,
nos Estados Unidos, no movimento rastafariano, no Caribe, ou inspirando o
jazz/poetry do The Last Poets, primeiro grupo de rap surgido nos Estados
Unidos, precursor do hip-hop. A negritude se reflete ainda no funk de
James Brown, no afro-beat de Fela Kuti, no reggae de Bob Marley e de
Peter Tosh, no movimento de consciência negra de Steve Biko, e, no Brasil,
principalmente na fundação do Teatro Experimental do Negro –TEN, no
surgimento do Bloco Afro Ilê Aiyê e, enfim, na constituição do Movimento
Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, o MNU. (MOORE, 2010). Já
nas artes visuais no Brasil, a única menção a um artista negro considerado
em seu formalismo, surrealista é Octávio Araújo (1926-2015)8.
8.  Na mostra Territórios:
artistas afrodescendentes
no acervo da Pinacoteca,
Diante das próprias cisões entre os dois conceitos de negritude tratados por
um espaço importante
foi dedicado ao artista Senghor e por Césaire, formando uma estreita e perigosa fronteira entre
recebendo o nome de Sala afirmação e assimilação pela rota do primitivismo, o conceito surrealista
Octávio Araújo.
de Césaire não encontra na historiografia oficial seus pares no Brasil, bem
↔↔ VEJA O TRABALHO DO como, no momento da escrita deste trabalho, não se encontra nenhuma
ARTISTA OCTÁVIO ARAÚJO
NA PÁGINA 47. citação em fontes brasileiras que relacione os imbricamentos do surrealismo
como modo de pensamento com as experiências estéticas que o sucederam
com a Negritude. Como não é o foco desta pesquisa, fica o nosso desejo
e a certeza de retomá-la com a entrega e a necessidade de que carece, de
modo a empreender com mais recursos de tempo esta investigação. No
entanto, não podemos deixar de considerar que os valores éticos e estéticos
124

presente na força do que enuncia a sua palavra se refaz e se recria em


novas redes, interpelando e provocando aqueles que, no contemporâneo,
buscam as práticas artísticas como lugar de ressignificação e resistência.

Palavras? quando nós controlamos os quarteirões do mundo,


quando nós abraçamos os continentes em delírio, quando for-
çamos as portas vaporosas, palavras, ah sim, as palavras! mas
as palavras de sangue fresco, as palavras que são maremotos e
eripselas e malárias e lavas e queimadas, e explosões da carne e
explosões de cidades... (CÈSAIRE, 1983 apud COMBE, 2015, p.17 ).

Se o desdobramento de uma relação inter-racial no surrealismo abriu


precedentes, em seu sentido global, ao exotismo, não deixa de existir, nas
nascentes do seu significado como valor fundamental, uma proposta de
negritude possível de experimentação, já que para o projeto da branqui-
tude a surrealidade reside na mera iminência do negro se enunciar na sua
individualidade e existir.

2.2.4
Um retorno ao país natal

Passado um ano da abolição da escravatura, foi proclamada a República no


Brasil, em 1889. Em busca de enunciar-se como sujeito político e crítico, de
modo a manifestar-se diante do cenário de marginalização do alvorecer da
República, libertos, ex-escravos e descendentes iniciaram e fortaleceram
movimentos de mobilização racial negra no país, processo que veio tanto
a fortalecer as organizações coletivas preexistentes quanto criar agrupa-
mentos como clubes, associações e agremiações em diferentes estados
do país. Segundo Domingues (2007, p.103 ),

De cunho eminentemente assistencialista, recreativo e/ou cultu-


ral, as associações negras conseguiam agregar um número não
desprezível de “homens de cor”, como se dizia na época. Algumas
delas tiveram como base de formação “determinadas classes
de trabalhadores negros, tais como: portuários, ferroviários e
ensacadores, constituindo uma espécie de entidade sindical”.

Como grande expoente artístico da época temos a figura de Luís Gama


(1830-1882), líder abolicionista, advogado e poeta negro, considerado o
precursor do movimento abolicionista no Brasil, ainda que efetivamente
125

não o tenha forjado como um projeto organizado de negritude nos moldes


dos que conhecemos no contemporâneo. Filho de Luiza Mahin, negra livre
que integrou diversas insurreições de escravos, Gama foi o primeiro a expor
em versos a afetividade negra, e sua postura irônica e transgressora, ma-
terializada na coletânea Primeiras Trovas Burlescas (cuja primeira edição
é de 1859), acaba por inaugurar o discurso de afirmação racial no país.

Outro escritor a deflagrar a condição social urbana e suburbana, sobretudo


do Rio de Janeiro, é Lima Barreto (1881-1922), ficcionista e precursor de
um romance social eternizado em obras como Clara dos Anjos, de 1922,
que aborda a vida de uma mulher negra e pobre sobrevivente de uma
sociedade patriarcal, além de Triste fim de Policarpo Quaresma (1915)
e Cemitério dos Vivos, obra incompleta que narra a sua experiência no
Manicômio Nacional, onde foi internado duas vezes – em 1914 e em 1918
–, por causa do alcoolismo. Segundo Schwarcz, autora da biografia Lima
Barreto, triste visionário, esta obra traz em alguma medida, uma profunda
análise de como os manicômios reforçavam as teorias darwinistas sociais
e a falsa ideia de que a população negra seria uma ‘raça degenerada’.
(SCHWARCZ apud D’ANGELO, 2017).

Nas artes visuais, Conduru relata que, no final do século XIX e início do XX,
a representação de negros e negras entra em uma nova etapa:
↔↔ VEJA A FIGURA 5 PÁGINA 47.
[...] embora haja muito ainda para saber do trabalho dos artistas
negros que se formaram na Academia Imperial e, depois, na
Escola Nacional de Belas Artes, a autoimagem não parece ser
a questão central, nem mesmo muito relevante em suas obras,
que parecem ocupadas em exibir o domínio das ditas belas
artes para atender os anseios de uma clientela ocupada em
mimetizar o gosto europeu. Se a afro-descendência de autores
como Firmino Monteiro, Pinto Bandeira, Estevão Silva, os irmãos
Arthur e João Thimóteo da Costa não obriga suas paisagens,
retratos e naturezas-mortas, a imediatamente delinearem um
estilo afro-brasileiro, vincula suas obras à problemática cultural
afro-brasileira justo por serem complexas auto-representações:
não figuram temas afro-referidos, mas externam suas visões do
outro, da cultura ocidental. (CONDURU, 2012, p. 51).

Simultâneo a este período, assistimos ao surgimento de uma imprensa


negra com jornais e periódicos especializados e que, publicados por ne-
gros, tinham como objetivo abordar as questões sociais e raciais da época,
conseguindo “reunir um grupo representativo de pessoas para empreender
126

a batalha contra o ‘preconceito de cor’” (DOMIGUES, 2007, p. 104), termo


que, segundo Domingues, era o corrente na época:

Em São Paulo, o primeiro desses jornais foi A Pátria, de 1899,


tendo como subtítulo Orgão dos Homens de Cor. Outros títulos
também foram publicados nessa cidade: O Combate, em 1912; O
Menelick, em 1915; O Bandeirante, em 1918; O Alfinete, em 1918;
A Liberdade, em 1918; e A Sentinela, em 1920. No município de
Campinas, O Baluarte, em 1903, e O Getulino, em 1923. Um dos
principais jornais desse período foi o Clarim da Alvorada, lançado
em 1924, sob a direção de José Correia Leite e Jayme Aguiar.
Até 1930, contabiliza-se a existência de, pelo menos, 31 desses
jornais circulando em São Paulo. (DOMIGUES, 2007, p. 104).

Ainda segundo o autor,

[...] estes jornais enfocavam as mais diversas mazelas que afeta-


vam a população negra no âmbito do trabalho, da habitação, da
educação e da saúde, tornando-se uma tribuna privilegiada para
se pensar em soluções concretas para o problema do racismo na
sociedade brasileira. Além disso, as páginas desses periódicos
constituíram veículos de denúncia do regime de “segregação
racial” que incidia em várias cidades do país, impedindo o negro
de ingressar ou freqüentar determinados hotéis, clubes, cinemas,
teatros, restaurantes, orfanatos, estabelecimentos comerciais
e religiosos, além de algumas escolas, ruas e praças públicas.
(DOMIGUES, 2007, p. 105).

No entanto, diante dos diversos processos assimilacionistas em curso e


da chegada da violenta repressão dos anos de vigência do Estado Novo
(1937-1945), foi sendo impossibilitado qualquer movimento contestatório
e, com ele, um discurso mais veemente sobre a condição do negro. Assim,
o movimento cultural, político e social mais contundente a ser organizado
no Brasil se deu a partir do Teatro Experimental do Negro (TEN). Fundado
no Rio de Janeiro, em 1944, e tendo Abdias do Nascimento como sua
principal liderança, o TEN foi um dos pioneiros em trazer para o país os
pensamentos e reflexões do movimento da negritude francesa articulados
por Aimé Cesairé, Léon Gontran Damas e Léopold Sédar Senghor, que,
naquele instante, “mobilizava a atenção do movimento negro internacional
e que, posteriormente, serviu de base ideológica para a luta de libertação
nacional dos países africanos”. (DOMINGUES, 2007, p. 110). Segundo o
próprio Abdias, em texto que descreve a experiência do movimento,
127

[...] o TEN se propunha a resgatar, no Brasil, os valores da pessoa


humana e da cultura negro-africana, degradados e negados por
uma sociedade dominante que, desde os tempos da colônia, por-
tava a bagagem mental de sua formação metropolitana européia,
imbuída de conceitos pseudo-científicos sobre a inferioridade
da raça negra. Propunha-se o TEN a trabalhar pela valorização
social do negro no Brasil, através da educação, da cultura e da
arte. (NASCIMENTO, 2004, p. 209).

Com fermento revolucionário, o TEN trazia como destino original a for-


mação de um grupo teatral constituído apenas por atores negros, o que
progressivamente se desdobrou em diversas ações como a publicação
do jornal Quilombo, o oferecimento de inúmeros cursos, a fundação do
Instituto Nacional do Negro, do Museu do Negro, além da organização
do I Congresso do Negro Brasileiro e a realização do concurso de artes
plásticas que teve como tema Cristo Negro, com grande repercussão na
opinião pública. Ainda segundo Nascimento (2004, p.211),

Polidamente rechaçada pelo então festejado intelectual mulato


Mário de Andrade, de São Paulo, minha ideia de um Teatro
Experimental do Negro recebeu as primeiras adesões: o advogado
Aguinaldo de Oliveira Camargo, companheiro e amigo desde o
Congresso Afro-Campineiro que realizamos juntos em 1938; o
pintor Wilson Tibério, há tempos radicado na Europa; Teodorico
dos Santos e José Herbel. A estes cinco, se juntaram logo depois
Sebastião Rodrigues Alves, militante negro; Arinda Serafim, Ruth
de Souza, Marina Gonçalves, empregadas domésticas; o jovem e
valoroso Claudiano Filho; Oscar Araújo, José da Silva, Antonieta,
Antonio Barbosa, Natalino Dionísio, e tantos outros.

Nas pistas de uma abertura de diálogo e de uma inversão de papéis entre


o Eu-Negro e o Outro-Negro, o TEN, aos moldes da negritude, estreia
no palco do Teatro Municipal, onde antes nunca pisara um negro como
intérprete ou como público, com a montagem do espetáculo O imperador
Jones, de Eugene O’Neill, estrelado pelo ator estreante Aguinaldo Camargo.
Essa conexão com o movimento da negritude fica declarada no relato que
conta a tentativa de participação no Primeiro Festival Mundial das Artes
Negras, realizado em Dacar, no ano de 1966, do qual o TEN foi omitido da
delegação brasileira:

A fusão dos elementos trágicos plásticos e poéticos resultaria


numa experiência de négritude em termos de espetáculo dramá-
tico que o TEN propunha-se a apresentar ao Primeiro Festival
Mundial das Artes Negras, realizado em Dacar no ano de 1966.
128

Com a conquista da independência do Senegal, Dacar havia


se tornado a capital da négritude, movimento político-estético
protagonizado pelos poetas antilhanos Aimé Césaire e Léon
Damas e pelo Presidente do Senegal, poeta Léopold Senghor.
A négritude proporcionara ao movimento de libertação dos
países africanos grande impulso histórico e fonte de inspira-
ção. Ao mesmo tempo, influenciou profundamente a busca de
caminhos de libertação dos povos de origem africana em todas
as Américas, prisioneiros de um racismo cruel de múltiplas di-
mensões. No Brasil, enfrentando o tabu da “democracia racial”,
o Teatro Experimental do Negro era a única voz a encampar
consistentemente a linguagem e a postura política da négritude,
no sentido de priorizar a valorização da personalidade e cultura
específicas ao negro como caminho de combate ao racismo. Por
isso, o TEN ganhou dos porta-vozes da cultura convencional
brasileira o rótulo de promotor de um suposto racismo às aves-
sas, fenômeno que invariável e erroneamente associavam ao
discurso da négritude. (NASCIMENTO, 2004, p. 218).

O golpe militar de 1964 e a repressão do período representou um signi-


ficativo retrocesso para os movimentos de negritude e as organizações
político-culturais em ascensão, reforçando o já conhecido sentimento de
clandestinidade. Ainda assim, em 1974, em plena ditadura, nasce, no espa-
ço sagrado do Terreiro de Candomblé da nação gêge-nagô Ilê Axé Jitolu,
situado no Curuzu-Liberdade, um dos bairros de maior população negra do
país, uma das mais revolucionárias formas de organização de resistência
negra sob o nome de Associação Cultural Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê.

Disputando o espaço de visibilidade do carnaval, símbolo da maior expressão


cultural da cidade e lugar no qual se concretizava o mito da democracia
racial, o Ilê Aiyê, ao trazer o afoxé e se inspirar na cultura ancestral dos
terreiros e nos cruzamentos entre EUA, Jamaica e Bahia, cria uma das mais
potentes expressões da negritude. Tomando as ruas no verão de 1975, com
o refrão “Que bloco é esse? Eu quero saber. É o mundo negro que viemos
mostrar pra você...”, o bloco liderado por Vovô (Antônio Carlos dos Santos)
e sob as bênçãos de Mãe Hilda Jitolu teve grande repercussão na mídia,
que condenou a iniciativa chamando-os de racistas:

BLOCO RACISTA – NOTA DESTOANTE – Conduzindo cartazes


onde se liam inscrições tais como: Mundo Negro, Black Power,
Negro para você, etc., o Bloco Ilê Aiyê, apelidado de Bloco do
Racismo, proporcionou um feio espetáculo neste carnaval. Além
da imprópria exploração do tema e da imitação norte americano,
revelando enorme falta de imaginação, uma vez que em nosso
129

país existe uma infinidade de motivos a serem explorados, os


integrantes do Ilê Aiyê, todos de cor, chegaram até a gozação dos
brancos e das demais pessoas que os observavam do palanque
oficial. Pela própria proibição existente no país contra o racismo
é de esperar que os integrantes do Ilê voltem de outra maneira
no próximo ano, e usem em outra forma a natural liberação do
instinto característica do carnaval. (Jornal a Tarde 12 de fevereiro
de 1975, apud ARAUJO, 2002, p.7)

Cruzando Bahia e Jamaica, nasce com os blocos afros o samba-reggae.


Num ciclo de conexões diaspóricas que liga Bob Marley e o movimento
do reggae em ascensão na Jamaica, e estes aos ideais do garveyismo dos
Estados Unidos, o ritmo causa enorme impacto na indústria da world music,
fazendo surgir, além do Ilê Aiyê, o Olodum (1979), o Muzenza (1981), o Malê
Debalê (1980) e o Ara Ketu (1981). Tais movimentos conquistam um dos
grandes feitos do século XX no Brasil, no que diz respeito à reverberação
das suas ações afirmativas, ainda que, até hoje, tenham que negociar com
as estruturas racistas de poder e do capital, que comandam o que vai ser
visto e o que não vai ser visto no carnaval de Salvador.

Aquele pequeno grupo de jovens que se intitularam Bloco


Carnavalesco Ilê Aiyê, foi acusado de quase tudo; radicais,
subversivos, intolerantes e até mesmo de querer destruir a bela
e formosa “democracia racial brasileira”, modelo perfeito de
convivência racial e que deveria servir de exemplo para o mun-
do.[...] Fosse através dos seus cânticos rebeldes e de protestos,
onde a afirmação da sua origem Africana era cantada em prosa
e verso até a exaustão, fosse através do comportamento, onde os
cabelos trançados ou rastafáris e as roupas e os adereços eram
expostos de forma gritante, fosse através da criação de escolas
alternativas, a população negro mestiça da cidade de Salvador,
passou a ser vista. (ARAUJO, 2002, p. 8).

Na mesma década, no Rio de Janeiro, outro movimento ganha repercussão


com a ideia de Filó Filho (Asfilófio de Oliveira Filho) de criar a “Noite do
Shaft”, em 1972, no Clube Renascença – agremiação fundada em 1950
para abrigar sócios negros e pardos. O evento foi tornado serial e passou
a incluir dança e teatro, sempre com atores e atrizes negros. Em 1974,
Filó formou a banda Soul Grand Prix (SGP) e passou a produzir bailes em
clubes das periferias da capital carioca. Em razão da grande repercussão,
o movimento que visava também a conscientização racial é batizado pela
imprensa de movimento Black Rio, termo empregado pela jornalista Lena
Frias (falecida em 2004), na primeira reportagem publicada em um veículo
130

de grande circulação, o extinto Jornal do Brasil. A matéria, intitulada “O


orgulho (importado) de ser negro no Brasil – Black Rio” (FRIAS, 1976), insiste
na inscrição BLACK RIO nas quatro páginas que ocupa. O movimento Soul
do Brasil, teve ainda como outros expoentes os artistas Tim Maia, Wilson
Simonal, Gerson King Combo, Cassiano, Jorge Benjor (naquele tempo,
Jorge Ben), Lady Zu, Di Melo, Banda Black Rio, até os contemporâneos
Sandra de Sá, Ed Motta, Farofa Carioca, Seu Jorge, Funk Como Le Gusta
e Grooveria Eletroacustica, além de Wilson Simonal, Noriel Vilela e Dom
Salvador e Abolição.

Assim em 1978, tendo como pano de fundo essa articulação de práticas


afirmativas através das manifestações político-culturais, nasce o Movimento
Negro Unificado (MNU), influenciado por ideologias marxistas e pela luta
a favor dos direitos civis dos negros estadunidenses, onde se projetaram
lideranças como Martin Luther King, Malcolm X e organizações negras
marxistas, como os Panteras Negras.

Figura 66:
Rubem Valentim. Altar
Sacral, 1968.
Fonte: MOURA, 2000.

Figura 67:
Emanuel Araújo. Flexa de
Xangô, 1987.
Fonte: ARAÚJO, 1988.
131

Nesta segunda metade do século XX, nas artes visuais, alguns artistas deixam
marcas importantes, seja na produção de um pensamento preocupado com
o universo cultural afro-brasileiro, seja do ponto de vista da construção da
sua subjetividade. Entre eles, Rubem Valentim, Abdias do Nascimento, Jorge
dos Anjos, Mestre Didi, Yêda Maria, Emanoel Araújo, Heitor dos Prazeres e
Otávio Araújo, os quais, em sua maioria, fazem suas incursões no universo
mítico-poético-religioso de matriz africana. Segundo Conduru (2012, p. 65),

[...] seus trabalhos configuram uma vertente que é, simultanea-


mente, uma inflexão étnico-culturalista específica, original mesmo,
no campo da arte moderna e uma resposta plástico-artística,
algo tardia, no processo de emergência de uma nova postura
de entendimento sobre a problemática do negro e do mulato na
sociedade brasileira contemporânea, nos anos 1940 e 1950 […].

No entanto, segundo Renata Felinto (2016, p.148), dos anos 1950 até a década
de 90, “há um silêncio no que diz respeito à produção de arte com temática
ligada à cultura afro-brasileira por parte de artistas negros e mestiços […]”,
observação que a autora faz tendo em vista os espaços institucionaliza-
dos da arte ou aqueles onde se consagra o erudito. A pesquisadora ainda
relata que, até os anos 1990, as “obras de arte que tratam da temática
afro-brasileira por muito tempo se restringiram ao tema afro-religioso”
(SANTOS, 2016, p.151), fazendo com que a arte afro-brasileira ou enunciada
por artistas negros e mestiços se tornasse sinônimo de arte afro-religiosa.

Assim, ela aponta que os artistas que inauguram, na cronologia da história


da arte afro-brasileira, uma figuratividade que enuncia o pensamento crí-
tico e reflexivo, tais como aqueles pautados no conceito da negritude, são
Rosana Paulino (São Paulo, 1967), que se utiliza de técnicas mistas como
gravura, desenho e instalação, e o fotógrafo Eustáquio Neves (Juatuba,
MG, 1955). Sobre Paulino, Santos (2016, p.274) diz que:

A condição da mulher negra na sociedade brasileira tem sido a


sua tônica dominante. Paulino, após o pioneirismo de Yêdamaria,
é a artista afro-brasileira que possui maior circulação no mercado
de arte nacional e internacional, com positiva aceitação de sua
produção por galerias, curadores e museus. Dando continuidade
a uma tradição iniciada por Rubem Valentim entre os artistas
“negrodescendentes”, como a artista prefere nomear, ela de-
senvolve uma carreira acadêmica paralela a de artista visual.
132

Figura 68:
Rosana Paulino, Parede da Memória9, 1994-2015.
Fonte: internet/site da artista.

9.  No catálogo da
mostra Territórios: ar-
tistas afrodescendentes
no acervo da Pinacoteca
(2016), curada por Tadeu
Chiarelli, consta que a
obra de Paulino encontra-
-se em processo de tom-
bamento segundo confir-
ma a sua importância um
dos textos que compõe o
catálogo escrito pela pes-
quisadora Fabiana Lopes:
“na obra Parede da
Memória, 1994, Rosana
Paulino organiza em gra-
de pequenas almofadas
de tecido que podem tota-
lizar 1.500 unidades. (...)
Os retratos são de onze
membros da família da
artista (homens, mulhe-
res, adultos e crianças).
Na montagem da obra,
as imagens se repetem
num jogo de combinações
que aciona nossa memó-
ria dos álbuns familiares.
(...) Costurando trechos
da sua memória pessoal
com tradições populares
coletivas (do coletivo fe-
minino, do coletivo religio-
so, de crenças populares
regionais), Paulino cria um
monumento, um memorial
para o sujeito negro, e
usa, num ato subversivo,
operações estéticas para
fechar as lacunas da me-
mória nacional sobre esse
sujeito”. (LOPES, 2016,
p,39-40).
133

Apesar de tais fluxos, difícil é precisar os fatores que fizeram com que,
a partir dos anos 1990, houvesse, nessa área de expressão, o desenvol-
vimento de uma produção que vem se apropriando da linguagem como
veículo de ressignificação através da noção do tempo: olhando para ela,
vemos uma tomada da competência estésica da estética como forma de
promover um descontínuo que, ao fazer uma incursão nas temporalidades
e espacialidades do ser negro, enuncia o seu discurso crítico. Analisando
estas características, parece-nos que o conceito de contemporâneo da
arte afro-brasileira não é outra coisa que não aquela produção que leva
o outro a sentir estesicamente, atualizando passado, presente e futuro
numa complexa trama semi-simbólica, em que se alternam as dimensões
artísticas e utilitárias da linguagem.

Segundo César (2014, p.105), “ao desabrigo das grandes narrativas de


legitimação”, a arte, em especial a partir da década de 1960, perde o seus
limites espaço-temporais, não possuindo mais valor ou sentido no seu
ensimesmamento, e sim no se refazer em relação aos contextos em que
se situa e aos valores e fluxos da vida social, cultural, cotidiana, políticos e
ideológicos. Tais macrotendências globais, próprias do seu sistema, junto
com a expansão do mercado de artes visuais do Brasil, pode ser um dos
fatores, do ponto de vista institucional, a nos ajudar a explicar a crescente
visibilidade dessa produção. Consoante a esses motivos citados pela auto-
ra, queremos destacar as ações do curador e gestor Emanoel Araújo, que
inaugura, em 2004, o Museu Afro Brasil, bem como a presença cada vez
mais marcante das iniciativas privadas no âmbito da cultura, através ou
não de leis de incentivo. Tal abertura tem trazido a associação de grandes
marcas e organizações como patrocinadoras e fomentadoras dos espaços
culturais e museus, a exemplo do Museu de Arte de São Paulo (MASP),
Museu de Arte do Rio (MAR), Bienal de São Paulo, Itaú Cultural, Instituto
Tomie Ohtake, Centro Cultural Banco do Brasil, Caixa Cultural, Red Bull
Station, dente outros. Juntam-se a estas, outras iniciativas privadas ou
com recursos internacionais, como SESC, Goethe Institute e Videobrasil.

Ainda que atentas às ambiguidades dessa interação e com o olhar crítico


que precisamos ter sobre as capturas que o sistema do capital pratica em
suas diversas fases sobre os corpos negros, é a partir dessas presenças
institucionais que algumas interações estão se dando e com estas, alguns
efeitos surgindo. Como exemplo, gostaríamos de, brevemente, citar os
134

protestos que ocorreram nas redes sociais em maio de 2015, com o adven-
to do uso do blackface10 na peça de teatro A Mulher do Trem, inserida na
10.  Maquiagem usada
programação do Itaú Cultural, evento que, ganhando grande repercussão por não negros sendo um
na internet e na mídia, acabou levando a instituição a rever sua estru- reconhecido e recorrente
recurso na história da dra-
tura racial em seus modos de produção. Tal fato gerou a primeira ação
maturgia para representar,
realizada com foco na cultura afro-brasileira em 30 anos de instituição, caracterizar e reforçar es-
nomeadamente, a criação do programa Diálogos Ausentes, o qual ajudei tereótipos racistas atribu-
ídas aos negros.
a construir e do qual fui mediadora durante um ano e meio de atividades.
O objetivo do programa foi, através de mais de 18 ciclos de encontros,
discutir a presença de negros e negras nas artes visuais, cinema, teatro,
dança, literatura e música, encerrando suas atividades com a exposição
Diálogos Ausentes, que aconteceu no final de 2016, no Itaú Cultural, em
São Paulo, e em 2017, em uma nova montagem no Galpão Bela Maré, no
Rio de Janeiro. Dessa exposição fui a curadora10 juntamente com a artista 11.  N a o c a s i ã o e s -
Rosana Paulino, fato que levantamos o questionamento, se não pode ser crevi o texto “Diálogos
Ausentes e a Curadoria
considerado, ainda do ponto de vista de um diálogo institucional, uma das
como Ferramenta de
primeiras exposições curadas por mulheres negras no contexto brasileiro12. Invisibilização das
Também no Itaú Cultural, desenvolvi um programa de seis meses com Práticas Artísticas
Contemporâneas Afro-
foco em conscientização racial que nomeei “A.gentes – Um programa de
Brasileiras” disponível em:
não-ficção artístico-científico para conscientização racial e descoloniza- <http://d3nv1jy4u7zmsc.
ção do pensamento”, que aconteceu durante seis meses no Auditório do cloudfront .net/wp -
content/uploads/2017/01/
Ibirapuera e era formado por aproximadamente 20 a 25 colaboradores de
di%C3%A1logosausentes_
todos os setores da instituição. dianelima-rev_02.pdf>.

12.  Acre ditam os que


Sob essas mudanças e outras consolidações, como vimos, já em curso, diante da lacuna existente
relações às quais a distância histórica nos permitirá ter mais recursos sobre a prática curatorial
realizada por mulheres, so-
de análise, toda uma geração de artistas visuais estão produzindo e
bretudo negras, no Brasil
circulando com suas obras, como Sidney Amaral (falecido em 2017), e América Latina, esta é
Rosana Paulino, Eustáquio Neves, Jaime Lauriano, Ayrson Heráclito, uma questão que levanta
a discussão para uma in-
Daniel Lima, Dalton Paula, Sonia Gomes, Eneida Sanches, Aline Mota,
vestigação mais profunda
Heberth Sobral, Antônio Obá, Musa Michelle Mattiuzzi, Jota Mombaça, a ser considerada.
Marcelo D’Salete, Rubiane Maia, Romullo Conceição, Tiago Gualberto,
dentre outros. Vale citar ainda a contribuição da revista O Menelick 2º ato
e do AfroTranscendence, programa de imersão em processos criativos
com foco na promoção da cultura afro-brasileira contemporânea, do qual
também sou a idealizadora/curadora e que foi realizado nos anos de 2015
e 2016 no Red Bull Station, e em 2017 no Galpão Videobrasil como parte
da exposição Agora Somos Todxs Negroxs?, curada por Daniel Lima.
135

Figura 71: Figura 72: Figura 77:


Mestre Didi. Ilê Aiyê. TEN – Teatro Experimental do Negro.
Fonte: Internet. Fonte: Internet. Concurso Boneca de Pixe, 1948.
Fonte: Internet.

Figura 78:
Luíz Gama, Correio Paulistano, 1870.
Fonte: Internet.

Figura 73: Figura 74:


Mãe Hilda Jitolu. Juarez Paraíso. A boca
Fonte: Internet. do mundo.
Fonte: ARAÚJO, 1988.

Figura 75: Figura 76:


Heitor dos Prazeres. Black Rio.
Fonte: Internet. Fonte: Internet.

Figura 79:
TEN – Teatro Experimental
do Negro.
Fonte: Internet.

Figura 80:
Black Rio no Jornal do
Brasil, 1976.
Fonte: Internet.
135 136

Figura 69:
Abdias Nascimento (Otelo) e
Ruth de Sousa (Desdêmona) em
Otelo de Shakespeare.
Fonte: ARAÚJO, 1988.

Figura 70:
Abdias Nascimento. Raízes, 1988.
Fonte: ARAÚJO, 1988.

Figura 81:
Eustáquio Neves, da série “A boa
aparência”, 1999-2000.
Fonte: Internet.
137

Figura 82:
Mostra Diálogos Ausentes. Curadoria:
Diane Lima e Rosana Paulino, 2016/2017.
Itaú Cultural, São Paulo.
Foto: André Seiti.
Fonte: Acervo pessoal.

↔↔ PARA VER O TRABALHO DO Ainda segundo Cesar, boa parte da historiografia e da crítica de arte “avalia
ARTISTA JAIME LAURIANO
ACESSE A PÁGINA 44. os dois momentos paradigmáticos da arte nacional, a Semana de 22 e as
experimentações neoconcretas, como resistentes à dimensão pública da
arte” (CESAR, 2014, p. 125). De modo que, com isto, podemos reafirmar
as nossas incursões sobre o racismo estrutural presente nas instituições
artísticas do país, já que se há algo que vimos nestes dois últimos capítulos,
é a quem as ruas e a categoria popular está subjugada e pertence.
↔↔ PARA VER O TRABALHO DO
ARTISTA SIDNEY AMARAL
ACESSE A PÁGINA 194.

Por conseguinte, se há uma mudança no Brasil, a partir dos anos 1990,


sobre os limites entre a oposição cunhada no coração da modernidade,
que considerava não haver dimensão estética na esfera pública, seja ela
no que concerne à figuratividade ou à ação, não podemos afirmar que a
produção afro-brasileira do início do século XXI, sobre a qual nos debru-
çamos, está a responder às transposições dos limites canônicos da arte
e aos estalos da sua envelhecida pátina. Porque o fariam, se nunca esti-
veram lá e se este nunca foi um espaço ocupado e permitido? Tal como
uma história que corta em vértices paralelas, parece-nos mais coerente
138

Figura 83:
AFROTRANSCENDENCE
– Tempo de Cura. Filme.
Direção: Ana Paula
Mathias. Direção Criativa/
Curadoria: Diane Lima.
Produção: NoBrasil. São
Paulo, 2016.
Disponível em:
<https://www.
youtube.com/
watch?v=WttKnEldnD0>.

considerar a possibilidade de estas práticas intervencionistas serem reflexo


de um pensamento antirracista e anticolonial fermentado na negritude e
disseminado nos últimos 15 anos, numa nova fase de internacionalização,
afiliações e de novas teorias, sobretudo com o tráfego de informações na
internet e o fenômeno glocal (a exemplo, o feminismo negro e interseccional,
a crescente produção acadêmica, a entrada de jovens negras e negros no
ambiente universitário ou mesmo, a efervescência do movimento hip hop
13.  A ação performática
como lugar de conscientização racial).
“A presença negra” foi
idealizada pelos artistas
Sujeitos potencializados, eles se enunciam contestando a dívida histórica, Peter de Brito e Moisés
Patrício em 2014 e o ma-
as categorizações às quais foram sempre submetidos, as ausências dos ar-
nifesto está disponível na
tistas negros e a invisibilidade da produção, como assim o fez, por exemplo, revista OMenelick2o.Ato
a performance A Presença Negra13, que, ocupando galerias de arte apenas – número 15.

com o recurso plástico das presenças negras, gerava olhares e interrogações.


139

Figura 84:
Dalton Paula. A Cura, 2016.
Foto: Paulo Rezende.
Fonte: Site do artista/internet.

A CURA
Como falar das ausências, Reescrevo,
se eu não podia falar?
Me conto,
Forças resistentes passeiam
E curo o seu olhar sobre mim.
Movimentam a boca
Nesses diálogos ausentes, sou presença
Boca, há muito controlada por ferro
Fratura no que seu projeto criou
Sou livre sem máscara
Desestabilizo e me experimento
Vozes ecoam
Me lanço
Suspiro
Não espero mais pelo que não sou
Quem cura, cura o que?
Não sou mas o seus olhos em mim
Discurso.
Minha arte é da desconstrução
Um genocídio da memória
Afeto
Enuncio:
Nesse espaço-tempo sou dispositivo
Onde está a cura para o meu trauma?
Crio uma contra-história
Quem, me invisibiliza?
E falo a minha própria língua
Sou parte de um projeto colonizador.
É curando que eu me curo.
E por isso, parto de mim
Me desnudo.
Desenho a minha própria cor e forma.
Diane Lima para
Meu gesto, meu movimento Diálogos Ausentes, 2016.
140

Ao entoar memória e retomar as tradições das performances negras, que


aparecem menos no seu plano do conteúdo e da expressão e mais no
seus modos de presença, essas práticas fazem do corpo instrumento que,
dando-se em discurso na sua duração, produzem sentido em ato em um
fazer-sentir reativo. Ajustando-se no corpo a corpo, trazem suas condições
de estar ora à margem, ora em diálogo com os espaços institucionais como
fator afirmativo e de visibilidade da causa e do seu fazer artístico. Segundo
Ana Claudia de Oliveira (2002, p. 43),

[...] é o artista quem faz ver ressignificativamente o mundo. No


construir o enunciado de seu texto, no qual ele se instala enquanto
enunciador, faz enunciativamente o enunciatário sentir pelo arran-
jo da linguagem — quer seja pelo seu construir material, quer seja
pelo seu construir proferidor — que o já não se relaciona mais com
os objetos como antes. […] Na duração das ocorrências que são,
melhor dizendo, modos de sentir, o sentido se faz sendo sentido,
portanto, num texto em situação, que, como define Landowski, é
um texto em ato cujo sentido faz o sujeito ser.

Por fim, o que estes enunciados estão a construir, mais do que obras de
arte autorreferenciadas, é um espaço onde se pode instaurar um sistema
de circulação de valores, construído na e pela relação interativa entre artista
e público, onde a emergência do sentido se dá na experiência do vivido em
espaços e tempos distintos, fazendo-nos sentir o sentir do outro através
da sua copresença sensível e contagiante.
141

3
PRÁTICAS ARTÍSTICAS CONTEMPORÂNEAS AFRO-BRASILEIRAS
NO SÉCULO XXI
142

Among me
from my self
to my self
outside any constellation
clenched in my hands only
the rare hiccup of an ultimate
raving spasm
keep vibrating
word.
Lost Boy, Aimé Césaire

Quem nunca esteve na


encruzilhada, não sabe escolher
caminhos.
Nego Bispo
143

As práticas artísticas que iremos analisar formam um conjunto de seis


intervenções que anunciam rupturas nos espaços urbanos, midiáticos e
institucionais. Para selecioná-las, analisamos a produção dos últimos quinze
anos, de forma a montar um corpus que apresentasse uma diversidade topo-
gráfica, tendo em vista estratégias de visibilidade. Além disso, nos voltamos
àquelas que estão a serviço de um projeto crítico e reflexivo sobre alguns
dos estereótipos raciais do país, de modo a vermos como e o que enunciam
na virada do século XX para o XXI. Tratando-se de uma análise dos seus
modos de presença no mundo, através do que se dá a ver na figuratividade
do que enunciam e não no coletado em diálogo com o artista (como ocorre
em outros métodos), escolhemos intervenções com alto nível de estetici-
dade e que nos oferecesse, uma complexidade de relações para analisar os
regimes de interação, sentido e risco, bem como o plano do conteúdo e da
expressão. Assim, essa análise não tem a pretensão de ser um recorte car-
tográfico dessa produção, considerando estas duas últimas décadas. Outros
enunciadores negros também assim o fizeram, marcando esse período com
uma produção notadamente importante. O que fizemos foi então assumir um
ponto de vista de onde será possível recuperar algumas das suas interações.
Pelo seu caráter performativo, faremos uma análise dos seus resíduos, em
sua maior parte material audiovisual e fotografias. São elas:

Ação Bandeiras, intervenção da Frente 3 de Fevereiro, criada e realizada


em 2005; A Transmutação da Carne, performance dos anos 2000 do ar-
tista Ayrson Heráclito; Bombril, performance de Priscila Rezende, de 2013;
White Face Blond Hair, performance de Renata Felinto realizada na Rua
Oscar Freira, São Paulo, em 2012; Aceita?, de 2013, foto-performance de
Moisés Patrício utilizando a rede social Instagram; o Notícias de América,
hospedado em espaço virtual, e Banana Market, ambos do artista Paulo
Nazareth realizadas entre 2011 e 2012.
144

Figura 85:
Ação Bandeiras. Intervenção
realizada pela Frente 3 de
Fevereiro, 2015.
Imagem: Frente 3 de Fevereiro.
Fonte: internet.

3.1
AÇÃO BANDEIRAS – FRENTE 3 DE FEVEREIRO14

Mais eis que surge, como herói pop, milagro, vislumbre de padim,
raio de xangô, o 3 de Fevereiro, o grupo um tanto comitiva guerreira,
liga da justiça e bloco. Do saco surge a bandeira, azougue para não
terminar o carnaval. E ela vai se desfraldando sem hinos, no síncope
do gupo. Aberta como um símbolo, não da nação, coisa maior, mas
daquelas pequenas e senhoras selvagerias. Escancarada clama os
céus a incerteza do sentido. Estandarte anunciado a derrota da
certeza unívoca. Zumbi Somos Nós. Frase gravada no ar, incógnita na
calçada. Zumbi Somos Nós. Zumbi guerreiro ou párias? Vencedores
ou vencidos? Imortal herói ou mortos vivos? Zumbi Somos Nós.
Senhores ou fantasmas? Estandarte ou mortalha? Uma ferida expos-
ta no meio da rua, uma questão colocada para todos sem nenhum 14.  Assista ao regis-
floreio. Não mais a opção por ser marginal ou ser herói, mas pelo tro da intervenção dis-
menos poder ser. Aquela bandeira ali aberta era de solução do linear ponível em: <https://
e a dispersão dos sentidos até então possíveis. Zumbi Somos Nós. w w w.yo u tu b e . co m/
Ricardo Muniz Fernandes (FRENTE 3 DE FEVEREIRO, 2006) watch?v=hX3GFEHsTSs>.
145

A Frente 3 de Fevereiro, formada por diversos artistas de áreas diferentes,


como artistas plásticos, cineasta, músicos, historiador, socióloga, dançari-
na, advogada, cenógrafo e atores, nasceu da mobilização do grupo por um
acontecimento da realidade: a morte do jovem negro Flávio Sant’ana que,
confundido com ladrão, foi assassinado pela polícia militar de São Paulo.
Junto com a fundadora Maurinete Lima, seus integrantes são Achiles Luciano,
André Montenegro, Cássio Martins, Cibele Lucena, Daniel Lima, Daniel Oliva,
Eugênio Lima, Felipe Brait, Felipe Teixeira, Fernando Alabê, Fernando Coster,
Fernando Sato, João Nascimento, Julio Dojcsar, Maia Gongora, Majoi Gangora,
Marina Novaes, Pedro Guimarães, Roberta Estrela D‘Alva e Will Robson.

Confrontando a ideia de que no Brasil se vive uma democracia racial, a morte


do jovem, fato que apesar de ocorrido em 2004 continua a representar
muitos casos até hoje, trouxe à tona a tipificação do jovem negro como
suspeito e constante ameaça, deflagrando as perversas práticas sociais
estruturadas do racismo.

Observando como o caso passou a ser narrado na mídia, o coletivo perce-


beu que, na maior parte das vezes, o dado racial desaparecia das notícias,
confirmando o assassinato como apenas mais um caso de violência.

A partir dessa invisibilização do fator raça e de como se reiteram nos


discursos o ocultamento das atualizações do racismo no transcurso do
tempo, a Frente se questionou: como então racializar este evento? Como
trazer à tona o racismo por trás da ação violenta da polícia, legitimada por
uma sociedade também racista e violenta?

Ao realizar diversas ações que tinham como método de trabalho a ideia de


cartografia, foi-se com elas tentando decompor o modo como a história ia se
desdobrando em novas práticas sociais, de forma a inscrever no cotidiano,
com as intervenções, outras formas de sociabilidade. Ao convocar a esfera
do sensível, cria-se uma nova narratividade para a cidade, a partir de uma
interação que, segundo Oliveira, pode ser entendida como:

[...] um ato transitivo entre sujeitos. […] um ato que possibilita


apreender, compreender e interpretar a relação que se estabelece
entre cidade e população. A relação é de uma inter-ação tanto
da cidade quanto da população, que são os sujeitos parceiros
do próprio mecanismo operatório da construção do sentido.
(OLIVEIRA, p. 196, 2014).
146

Através dessa realização micropolítica, instaura-se na cidade um modo


de presença que, com sua constância actancial, faz a cidade ser e, com ela,
também os sujeitos. Segundo Greimas (1976), nesse processo comunicacio-
nal e de significação há um encadeamento numa sequência de enunciados
de estado e enunciados de transformações.

Produzindo efeitos de dizer verdadeiro, a mídia manipula as experiências


vividas na cidade, passando, através da força da mediatização e sua fun-
ção de ser ponte entre os fatos narrados e os vividos, a veicular um único
ponto de vista da realidade. O que a Frente faz ao propor um retorno à
cidade como palco dos fatos é instaurar, na enunciação, um outro modo
de vê-los, um segundo ponto de vista.

Ao recorrer aos artifícios da linguagem através de uma intervenção artís-


tica, que se faz sincrética pela diversidade dos modos de construir seus
arranjos, a ação do corpo se constitui sendo a própria mídia, produzindo,
segundo Landowski (2014), efeitos de ajustamento reativo, ao fazer o outro
sentir a partir da presença, moldando um novo estado de alma e de ânimo.

A cidade se torna, então, o lugar onde a ação do acidente estético e o


contágio sensibilizador estésico atuam (OLIVEIRA, 2014), criando uma
diferenciação entre uma cidade experienciada e vivida pelo sujeito negro
e aquela experiencida pela transmissão do noticiário, esta última mediada
pelos interesses das grandes corporações comunicacionais que, na estrutura
da sociedade brasileira, torna-se um decisivo sancionador da imagem e
condição do negro no Brasil.

É contra essa edição da vida e por sua série de contratos que recortam a
cidade selecionando o que deve ficar oculto e apagado e visibilizando o
que deve ser apreensível, que tais práticas artísticas se impõem, na busca
por afetar os sujeitos e a própria cidade, que do dia a dia passa a ser velada
por outras narrativas.

Uma das ações que o grupo realizou e que trazemos para análise foi a
intervenção Bandeiras. Nela, discutiam o racismo e o futebol, tendo o
campo, o estádio e as relações que deles emanam como lugar por exce-
lência onde se reconfigura o mito da democracia racial. A motivação do
grupo veio do episódio acontecido no dia 13 de abril de 2005, quando, na
147

final do campeonato Taça Libertadores da América, jogo disputado entre


o São Paulo Futebol Clube e o time argentino Quilmes AC, no Estádio
do Morumbi, na capital paulista, o jogador argentino Leandro Desábato
cometeu injúria racial contra o atacante são-paulino Edinaldo Batista
Libânio, mais conhecido como Grafite. A expressão usada para cometer o
crime que estava sendo transmitido pelas redes de televisão foi “Negrito
de mierda, enfia la banana en el culo”:

Após campanhas anti-racistas no futebol europeu, tivemos no


Brasil um caso sem precedentes: o jogador argentino Leandro
Desábato, do clube Quilmes, ficou preso cerca de dois dias,
por acusação de racismo durante um jogo. As ofensas racistas
foram dirigidas ao jogador Grafite do São Paulo Futebol Clube.
A sociedade se manifestou revelando jogos ideológicos para
além do futebol. A situação foi o ponto de partida para a nossa
investigação. (FRENTE 3 DE FEVEREIRO, 2006, p. 63).

Investigando as transmissões em cadeia nacional, os arquivos televisivos,


os textos publicados na imprensa; assistindo as mesas de debate, os de-
poimentos de jogadores, torcedores, diretores de clubes e juízes e todas
as manifestações racistas e antirracistas que, com a amplitude do debate,
passaram a se revelar, o grupo executou a Ação Bandeiras:

O campo de ação foi o estádio de futebol, onde abrimos, com


apoio de torcidas, três bandeiras gigantes (20m X 15m), com
mensagens que questionam o racismo na sociedade brasileira:
Brasil Negro Salve, Onde Estão os Negros? e Zumbi Somos Nós.
Intervenções em grande escala e em um espaço onde se pressu-
põe a convivência harmônica entre as diferenças etno-sociais.
(FRENTE 3 DE FEVEREIRO, 2006, p.63).

Em um vídeo de 6min50s, o grupo edita e reconstrói a narrativa que deu


vida a ação. Analisaremos, pois, esse registro audiovisual das interven-
ções ocorridas entre os meses de julho, agosto e novembro de 2005, que
contemplam três atos: o primeiro se deu no dia 14 de julho de 2005, com a
abertura da bandeira “Brasil Negro Salve”, na capital paulista, no Estádio do
Morumbi, mesmo cenário onde se deu o crime contra Grafite. “Onde Estão
os Negros?” constituiu a segunda ação, levada ao Estádio Moisés Lucarelli,
na cidade de Campinas, no dia 14 de agosto daquele ano. A última ação
foi executada com a abertura da bandeira “Zumbi Somos Nós”, levada ao
Estádio do Pacaembu, na cidade de São Paulo, no dia 20 de novembro de
2005, Dia da Consciência Negra.
148

São Paulo, 14 de julho de 2005


Em uma área com vista para prédios que mostram o espaço urbano, a
ação se inicia em silêncio, com o grupo ajeitando e estirando um grande
tecido branco que, como uma tela, é grafado com a pintura revelando,
com a ênfase no gesto das mãos o próprio ato que marca o nome que
carrega a intervenção: Ação Bandeiras. Vermelho e preto são as cores
escolhidas. Na próxima cena, uma câmera que se movimenta sem ins-
tabilidade, aparentemente sendo carregada nas mãos, flagra um grupo
de policiais. Barulho, gritos de vendedores ambulantes sonorizam o
espaço, onde no fim aparece a bandeira fechada no chão. Fogos de ar-
tifício explodem anunciando os preparativos para o começo da partida.
Um locutor assume a narração e entra a imagem aérea, registro da TV
Globo, mostrando o colorido dos fogos e suas fumaças. A partida está
sendo transmitida ao vivo pela maior rede televisa do país. Ainda com
as imagens da TV e a narrativa do locutor, aparecem os jogadores en-
trando em campo e o grito das torcidas que se exaltam no autorizar do
arbitro. Um corte e em seguida gol. A câmera mostra a torcida que co-
memora com mais fogos de artifício de cor vermelha. Na sequência, a
imagem fixa parece aguardar o momento de a bandeira se abrir. Ela se
desenrola devagar e, aberta por inteiro, revela o seu conteúdo: “Brasil
Negro Salve”. Três câmeras diferentes flagram em diferentes momen-
tos e ângulos a bandeira que permanece hasteada enquanto, ao redor,
mais fogos de artifício a sinalizam. Imagens da Rede Globo se alternam
com as câmeras fixadas e preparadas para o registro do grupo. Fim do
jogo e, em seguida, a torcida comemora com pulos e gritos de guerra.
Imagens do alto flagram, em meio a fumaça, a multidão se dissipando
no retorno para casa.
149

Campinas, 14 de agosto de 2005


Em uma espécie de blitz na porta do estádio, os policias vistoriam a
bandeira, pedem para abri-la. Diversos olhares curiosos os flagram.
Segurando-a, a torcida entra pelos portões do estádio e se encami-
nha para a arquibancada. Uma equipe de TV é filmada e, nas imagens
seguintes, uma comemoração: as torcidas vibram e a bandeira se abre:
“Onde Estão os Negros?”. Uma segunda câmera filma o movimento das
mãos por baixo segurando a bandeira. As pessoas pulam e torcem e o
som de uma bateria de escola de samba ressoa na torcida.

São Paulo, dia 20 de novembro de 2005


Uma câmera filma a torcida em fila aguardando o momento de entrada.
Policiais montados em cavalos fazem a ronda e dão as ordens para que
o grupo dê a volta e entre por uma outra entrada. O grupo corre e, em
seguida, a torcida, com bolas em preto e branco, vibra na arquibanca-
da, aguardando o momento da partida. Uma coreografia com braços
e mãos é registrada até que uma equipe de jornalistas é flagrada no
campo entrevistando um jogador. Em meio a gritos, a bandeira se abre:
“Zumbi Somos Nós”. Ouvimos um grito de guerra e, ao fim, a assinatura
com a autoria da Frente 3 de Fevereiro. Na sequência, as assinaturas das
duas instituições que comissionam as intervenções: Associação Cultural
Vídeo Brasil e Goethe Institute.
150

O que vemos na Ação Bandeiras é o que se pode chamar de uma realização


mútua a partir de uma paixão ou mais paixões. Para que a ação se realize,
vemos o encadeamento dos quatro regimes de interação: manipulação,
programação, ajustamento e acidente. Do grupo para a torcida, há uma
estratégia que os faz fazer a ação e que opera sobre um fazer-ser: fazer ser
parte do time e fazer ser parte da causa, emprestando o espaço dedicado
ao momento mais sublime de exibição da paixão futebolística para dar
lugar a uma manifestação artística.

A manipulação acontece no momento em que o grupo, a partir do prin-


cípio de intencionalidade, convence a torcida a participar de um grande
espetáculo celebrando algo maior do que o futebol, com a promessa de
fazê-lo actante de um fato social que diz respeito a todas e todos. Com
um procedimento do tipo tentação, estabelece-se o contrato pelo qual a
torcida passa a apoiar a causa.

Nesse momento, o destinador-arte, dotado de um saber crítico, opera


conscientizando a torcida a fazer-ser, revelando as relações de poder
existentes, a violência da polícia e o que está por trás do mito da demo-
cracia racial. Sendo o caráter esportivo uma das qualidades do ser negro,
eternizado simbolicamente ao longo da história e sendo o local do jogo a
topoplogia para a concretização do ideal pacífico do convívio das raças,
tem-se o espaço coerente para o debate. A partir do princípio da causali-
dade física, uma das formas de regularidade do Regime de Programação,
a torcida passa a assumir o papel temático do negro, transformando a sua
condição de manipulado do sistema político e midiático para partícipe da
manipulação. Assim, o que era espetáculo aparece como manifestação em
um lugar atípico, de onde não se espera nenhuma mobilização política, e,
pela surpresa que engendra, toma de assalto e desarticula os programas
de controle da mídia e da polícia.

Temos então o regime de ajustamento em torno da ação. O primeiro entre


o grupo e a torcida quando, por contágio, sentem juntos, no segurar das
bandeiras, a sua negritude ou consciência crítica. O segundo entre a ação
e o público que, através dessa competência estésica enunciada na grande
tela, estabelece relação com o enunciado.
151

Com o delegar de vozes das duas instituições que assinam o comissio-


namento da ação, temos mais uma interação entre elas e a Frente 3 de
Fevereiro que, com as diversas ativações que realizam, geram visibilidade
e despertam atenção, ocupando um espaço institucionalizado na produção
de arte contemporânea. Juntos, como num contra-ataque, produzem, criam
o ajustamento com o público através dos veículos midiáticos marcando
suas posições sócio-políticas e posicionando seus interesses através da
arte perante a sociedade brasileira, a mídia e o Estado.

Esta ação, portanto, não se encerra no risco contingente de ser flagrada


e virar notícia. Mas se alastra tornando-se ela mesma uma mídia, que
será exibida nos mais diversos espaços de arte e/ou debate político, já
que reiteram valores como criticidade, genuinidade, façanha e ousadia,
desejáveis para o mercado da arte. Segundo Landowski,

[...] os lugares de emergência do sentido são muito mais indeter-


minados, e a fronteira do não sentido mais indistinta quando se
passa à ultima configuração, aquela fundada sobre o ajustamen-
to. Os riscos – os fatores de incerteza – se acham em seu nível
mais alto sobre o plano prático. Esforçar-se para permanecer a
cada instante em estreito contato com o outro para poder sentir
ou pressentir sua dinâmica própria; deixá-lo fazer para que se
revele; ajustar-se a seus movimentos a fim de canalizá-los sem
contradizê-los em nenhum momento: ao manter-se assim cons-
tantemente no limite, o risco de catástrofe – e de queda no sem
sentido – é de todos os instantes. (LANDOWSKI, 2014, p. 60).

Dependente da aleatoriedade e da sagacidade da rede de televisão, o


risco que a intervenção anuncia passa pela sua eminente possibilida-
de de produzir, como efeito de sentido, a insensatez, não conseguindo
concretizar a intencionalidade que tem como princípio, em razão de todas
as manipulações e operações que precisam acontecer com êxito ao longo
da sua execução.

Ao fim, é contra a normalidade dos esquemas interpretativos preestabe-


lecidos, consagrados e difundidos pelas mídias que fazem do futebol seu
símbolo maior de contradição que instituições sancionadoras, Frente 3 de
Fevereiro e torcida produzem um descontínuo no que havia sido pré-pro-
gramado, criando em sua ordem e estrutura interna o que poderíamos con-
siderar o Regime de Acidente. Trata-se, portanto, de uma descontinuidade
disfórica para os sistemas de controle e eufórica para a equipe de Ação.
152

Em Brasil Negro Salve, vemos a construção do duplo sentido. Escrita com


as cores do time da torcida, São Paulo Futebol Clube, Brasil Negro Salve
se apresenta como uma reverência aos Negros Brasileiros, um “salve”,
expressão coloquial sobretudo entre os jovens das periferias e também
como um pedido de socorro: Brasil Negro Salve, que se apresenta na
categoria cromática marcando de vermelho e sangue os nomes Brasil e
Salve e ressaltando em preto o significante Negro. O valor fundamental é
morte versus vida.

Pintando a bandeira como uma tela, o enunciador coletivo substitui então


os elementos figurativos recorrentes nos estandartes das torcidas orga-
nizadas por palavras-chave possíveis de carregar sentido e produzir um
efeito polêmico quando no ajustamento com o enunciatário, seja plateia,
audiência ou visitante.

Em Onde Estão os Negros?, vemos uma colocação incisiva e direta que


expõe de forma mais objetiva a intencionalidade da ação. A multidão, se-
gurando a bandeira, faz coro ao questionamento que interroga a presença
e a ausência dos negros nos espaços midiáticos e em todos os lugares
onde ele se faz presença: onde estão os negros onde você está? A questão
leva o enunciatário à reflexão, ajustando-se a obra independente da sua
localização. O valor fundamental é ausência versus presença.

Já Zumbi Somos Nós assegura de forma imperativa um modo de presença


realizado por um ato de resistência assinalada por um elemento histórico
e cultural, símbolo dos mais conhecidos da cultura afro-brasileira. Assim,
Zumbi Somos Nós que estamos retornando para infiltrar e fraturar os
regimes de opressão. Zumbi Somos Nós todos, torcida e multidão que
assume uma outra identidade, a sua própria identidade, e age surpreen-
dendo a indústria do futebol e as lógicas culturais. Mas também Zumbi
Somos Nós vítimas, mortos-vivos, fantasmas, que voltamos para cobrar
o que nos foi retirado, assombrar a vida de quem um dia tirou a vida dos
nossos. Que viemos trazer o pânico e reforçar o medo, o medo que tanto
teme a branquitude, de misturar-se, de degenerar-se, de viver numa nação
negra. De em pleno século XXI, precisar lutar para que todo o acúmulo de
riqueza construído em quase 400 anos a partir desse corpo-exploração
seja restituído em medidas combativas de divisão de renda, de modo
que privilégios sejam revistos dando lugar a uma política estrutural de
153

reparação nacional. Aqui, Zumbi dos Palmares, símbolo maior da luta contra
a escravidão e dos levantes quilombolas é convocado a trazer aquilo que
está por trás do seu nome: a força do espírito presente, guerreiro, imortal,
mágico e invisível reiterando, na intervenção, sua memória ancestral e sua
probabilidade mítica. O valor de oposição de base é Morte versus Vida.

3.2
A TRANSMUTAÇÃO DA CARNE – AYRSON HERÁCLITO15
15.  Assista ao registro
da intervenção disponí-
vel em: <https://vimeo.
Artista visual e curador, doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia
com/27360990>.
Universidade Católica de São Paulo e professor do curso de Artes Visuais
do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia (UFRB), Ayrson Heráclito nasceu em 1968, em
Macaúbas, na Bahia. Vivendo entre as cidades de Cachoeira e Salvador,
suas obras transitam pela instalação, performance, fotografia e audiovisual.
Entre os trabalhos mais relevantes da sua carreira está a performance e
videoinstalação A Transmutação da Carne, apresentada no Goethe Institute,
na capital baiana, nos anos 2000.

Figura 86:
Ayrson Heráclito, Transmutação da Carne, 2000.
Foto: Reprodução.
Fonte: Site do artista.
154

Na nossa entrada na leitura do vídeo de 3min56s encontramos, nos primei-


ros instantes, em fundo preto, o nome do artista e o título A Transmutação
da Carne, que já anuncia a ideia de ressignificação que a performance
sintetiza e sustenta: tomar o elemento carne, ao qual foi reduzido o corpo
negro, como investimento primeiro de ressemantização através de uma
ação desse próprio corpo. Nele também está presente seu caráter ritualís-
tico, com a apropriação da manifestação artística como uma atualização
ancestral e transcendental, já que transmutação é a conversão energética,
material e espiritual de um elemento em outro.

No primeiro quadro, exibido em três écrans, imagens diferentes são postas


simultaneamente, mostrando o desdobrar da ação que é feita por quatro
performers, um deles o próprio artista. Na primeira imagem, vemos o
público ao fundo observar um pé revestido numa bota de carne subindo
numa grelha quadrada. O vídeo, em câmera lenta, dilata o tempo para que
os detalhes da ação sejam capturados mais atentamente. Ao estabilizar-se
em cima da brasa quente, vemos sair fumaça dos pés. Na segunda imagem,
uma mão marca a ferro em brasa o peito do artista, que veste a mesma
roupa de carne. Do alaranjado da brasa quente sai a fumaça que toma o
rosto do performer. Na terceira imagem, um outro performer também deita
sob um manto de carne colocado na cama de brasa, sendo depois enrolado
por mais três outros. A imagem deste corpo sendo assado ganha toda a
tela, passando depois a se repetir entre as demais.

Ao fundo, uma voz em off narra uma carta. Trata-se do relato do comissário
do Santo Ofício ao senhor reverendo Antônio Gonzalez Fraga sobre as
heresias feitas pelo mestre de campo García de Ávila Pereira de Aragão.
As ditas heresias detalham algumas das torturas praticadas contra os
negros pelo mestre.

Na sequência, os três écrans voltam a tomar a tela. Na primeira imagem


o performer anda sob a cama de brasa, na segunda há o registro da
marcação do ferro na carne e na terceira a durabilidade da ação do corpo
sendo assado.

Essa dilatação temporal reforça a resistência do corpo à ação e o eminente


risco ao qual se expõe para realizar o ato artístico, reforçando os valores de
originalidade e ousadia requisitados pelo sistema da arte. Levando a ação
até as últimas consequências, em um ato hiperbólico e dialógico, o artista
155

reproduz uma prática de tortura que, no regime do risco, poderia resultar


num desfecho em que, para se ajustar, se coloca no cálculo da destreza do
ensaio e a sorte de um destino mítico.

Na performance, este corpo se apresenta como lugar primeiro de cone-


xão com o passado, com os fantasmas que rondam o holocausto que foi
a escravidão, e com a morte. A roupa de charque vestida no presente é a
pele negra de outrora. É o elemento que conecta os tempos, que atualiza a
memória e revivifica as dores de um gado humano. Diante do ocultamento
da história, o som, o cheiro da carne assando e a combustão que toca na
ferida transmutada e estetizada pela arte se faz com um forte apelo con-
ceitual, em que a distância que separa a carne do corpo é o próprio tempo.

O charque, por ser uma carne mestiça, barata e salgada, arremessa-nos


também à música A Carne, interpretada por Elza Soares no álbum Do
cóccix até o pescoço (2002), que diz: “A carne mais barata do mercado é
a carne negra”, também evidenciando a ideia do corpo como produto de
valor apenas monetário e desprovido de humanidade.

Entre o sal do charque e da travessia que salga a pele dos escravizados, os


restos de carne espalhados pelo chão, as ferramentas, bacias e pedaços
de pano reforçam a ideia do uso do espaço como um açougue, onde se dá
mas também se constrói a cena. Este espaço é o Instituto Cultural Brasil

Figura 87:
Ayrson Heráclito,
Transmutação da Carne,
2000.
Foto: Reprodução.
Fonte: Site do artista.
156

Alemanha – ICBA- Goethe, o qual passa, junto com o grupo, a assumir os


riscos da ação, marcando uma troca de valores com delegação de vozes.
Há, portanto, uma manipulação do artista sobre os demais integrantes,
fazendo-os fazer a performance. E também um ajustamento e o assenti-
mento do público com a obra, compreendendo o regime de interação de
junção cuja intencionalidade e regularidade conduz ao regime de união
já que esta se faz em ato abarcando todo o corpo. Sendo uma videoins-
talação, A Transmutação da Carne ganha novos públicos e se ajusta em
novos contextos à medida que se desloca como objeto artístico, seja em
exposições e espaços de exibição, seja em salas de aula e veículos espe-
cializados de arte e cultura.

Em março de 2015, quinze anos depois, o artista refaz a performance na


mostra Terra Comunal – Marina Abramović + MAI, dedicada à obra da
artista sérvia Marina Abramović. Sendo um dos grandes nomes da per-
formance mundial, a obra acaba por ampliar seu espectro de visibilidade,
atualizando-se em um novo contexto com um novo público, mesmo uma
década após sua criação. Pela visibilidade mediática da artista, a inter-
venção realizado no SESC-Pompéia, cria novas interações institucionais,
questionando-nos sobre quais são as insígnias, outrora de senhores de
engenho da Bahia colonial, que marcam os corpos negros em grandes
metrópoles como a cidade de São Paulo. Apresentam-se como valores
fundamentais na ação a relação sujeito versus objeto.

Figura 88:
Ayrson Heráclito, Transmutação
da Carne, 2000.
Foto: Reprodução.
Fonte: Site do artista.
157

Figura 89:
Priscila Rezende.
Bombril, Memorial MInas
Gerais Vale, 2013.
Foto: Guto Muniz.
Fonte: Acervo da artista.

3.3
BOMBRIL – PRISCILA REZENDE16
16.  Assista ao registro da
intervenção disponível em:
<https://www.youtube.com/
Priscila Rezende (Brasil, 1985) é artista visual de Belo Horizonte, Minas Gerais,
watch?v=2uEWS9eNPmE&t=18s>.
graduada em Artes Visuais pela Escola Guignard – UEMG (Belo Horizonte)
com habilitação em Fotografia e Cerâmica. Trazendo o corpo como centro
da sua produção artística, Priscila criou, em 2010, a performance Bombril,
obra que mais do que discutir a aparência, reconstitui a violência presente
em um dos mais reiterados estereótipos: a isotopia do cabelo crespo com
o Bombril, nome de uma marca de esponja de aço que, de tão presente no
consumo das casas, passou ela mesma a significar a própria coisa.

A performance, apresentada pela primeira vez na abertura da Bienal Zero,


mostra universitária da UEMG, acabou por ser, para a própria artista, um
processo de conscientização, deflagrando um pensamento constante nessa
pesquisa que é a interrogação sobre “como a criação nos cria?”, uma vez
que não somente carrega a função de comunicar e afetar o destinatário,
mas também e principalmente de ser veículo de pesquisa, conhecimento
e reconhecimento do próprio artista.
158

Na análise da performance, realizada pela segunda vez em 2013, no Memorial


Minas Gerais Vale, diferente da primeira versão apresentada em um espaço
dentro da universidade, a rua é utilizada como dispositivo topológico. No
filme, que mostra trechos intercalando registros e entrevista, é nítida a
presença de um público, tanto passante como espectador, este último aco-
modado nas escadas do que parece ser a entrada da instituição. Enquanto
o ato acontece, a vida segue seu fluxo com o vai e vem de pedestres e
carros que param e parecem não crer nas telas do inesperado da vida que
corta suas vias.

Na fotografia, com plano superior, há um contraste entre os tempos. No


desenho geométrico que corta o quadrado da foto se vê o encontro de
elementos urbanos, presente nas pedras portuguesas da calçada e na linha
que risca o caminho de um piso tátil usado para pessoas com necessidades
especiais. Além desse traço eidético, há ainda a disposição das panelas com
seus círculos e enquadramento mostrando que o público é constituído em
sua maioria por não negros.

Sobre a arte como prática ligada a cotidianidade, Oliveira diz:

Em muito supomos que, com essa penetração na ordinariedade do


que se vive, a arte quer aí fazer visível ocorrências significantes,
justamente porque, em sua maior ou menor extensão, são elas
que ressignificam a vida e o vivido: enquanto arte, ela persiste
em seu papel crítico e de ruptura com o estabelecido, o usurado,
e esvaído de sentido. (OLIVEIRA, 2002, p. 54).

Uma outra isotopia que a imagem nos traz é a da função de doméstica


ligada ao significado encontrado na análise léxica referente à Negra, em que
se diz “trabalhar como uma negra”. Assim, a indumentária nos arremessa
àquelas usadas pelas mulheres escravizadas, traços presentes tanto nos
formantes matéricos quanto cromáticos.

Em um dado momento, o cabelo escuro encharcado de sabão aparentan-


do cinza, e transformando-se ele mesmo em Bombril, cumpre o papel de
exercer o trabalho mais árduo que há na cozinha: arear panelas, deixá-las
brilhante e enfrentar as sobras e os restos da comida. Um trabalho duro
feito por aquilo que há de ser o material mais resistente, a palha de aço,
metal com características pouco maleáveis e sem movimento, que arranha
e desgruda, que dá brilho e por isso perde o seu, diferente dos cabelos
159

Figura 90:
Priscila Rezende.
Bombril, Memorial MInas
Gerais Vale, 2013.
Foto: Guto Muniz.
Fonte: Acervo da artista.

lisos e sem gordura que esperam na sala o sopro do vento, do carinho e


do toque. Por trás do produto feito para limpezas pesadas, se vê a mulher
negra: aquela que, disposta na prateleira, é convocada para o serviço pe-
noso, para empregar a sua força numa atividade que, de tão “suja, preta e
encardida”17, sequer precisa de um instrumento: de tanto ser confundida
17.  Alguns dos três sig-
nificados de Negra em com ela, recorre ao seu próprio corpo.
nossa análise léxica. Ver
Considerações Iniciais.
O gesto demarca contorções de pernas e braços causando efeitos patêmicos
de desolação pela impossibilidade de tomar o cabelo firmemente e com
habilidade para lavar as panelas. Essa força empregada revela o trabalho
braçal, entre mãos ao alto e panelas na cabeça, refazendo um movimento
que traça os caminhos da dor e dos segredos da cozinha, memórias de
avós, bisas, mães e tias que atravessaram gerações resistindo ao Bombril
das cozinhas. O discurso e a materialidade da obra parte, assim, dos
elementos constitutivos da própria biblioteca ficcional colonial, e é essa
liberdade de revidação o primeiro dispositivo de incômodo quando esse
outro se confronta com o ato: “a dinâmica do corpo em movimento […] não
se encontra, pois, alheia à dinâmica da visão. Muito pelo contrário, ambas
são conclamadas pelo fazer emissivo a re-construir juntas a estruturação
da significação. (OLIVEIRA, 2002, p. 35).
160

Outros dois pontos importantes que dialogam com a obra é, primeiro, o fato
de que, em 2013, o estilista Ronaldo Fraga usa em seu desfile no São Paulo
Fashion Week, o maior evento de moda do país, penteados para os quais
se vale também do Bombril. Visivelmente partindo de uma construção de
imagem de moda no mínimo acrítica e fetichizante, o fato ganhou grande
repercussão na mídia a partir do posicionamento de artistas negros que
não concordaram com a defesa do estilista ao dizer, em meio a muitas
contradições, que estaria fazendo uma crítica ao racismo. Sendo um enun-
ciador não negro que fala, em um espaço que, muitas vezes, se esvazia de
criticidade, a licença poética a qual diz ter usado o estilista acabava por
somente reforçar a isotopia entre o cabelo crespo e o Bombril, diferente
da performance de Rezende que, em todos os recursos plástico utilizados,
pautou-se numa contundente denúncia.

O segundo ponto importante é que, em 2015, a marca Bombril também


cometeu um ato racista ao veicular uma imagem de uma doméstica ne-
gra no anúncio publicitário postado no Facebook, no Dia do Trabalhador
Doméstico, divulgando o projeto social Casa Bombril, um centro de for-
mação gratuita para domésticas. No texto, Bombril dizia: “Vamos home-
nagear quem mais brilha nos lares de todo o país! Aproveite a data para
conhecer a Casa Bombril, um projeto social que ajuda a desenvolver ainda
mais a vida profissional das domésticas! Afinal, o brilho delas é uma das
coisas que fazem de nossa casa um verdadeiro lar!”. O episódio denunciou
a ética da marca sobre as cores de quem usa e quem compra reforçando
a manutenção servil à qual estão à mercê as empregadas domésticas na
versão atualizada do século 21 de amas e escravas.

Figura 91:
Desfile do estilista
Ronaldo Fraga em
desfile no São Paulo
Fashion Week, 2013.
Foto: Internet.
161

Sobre a intervenção institucional que realiza, a apresentação de Bombril


acontece no Memorial Minas Gerais Vale, projeto museológico situado
numa edificação datada de 1897 e que tem como gestora e mantenedora
a Fundação Vale da mineradora Vale. Sancionando o discurso da perfor-
mance, a instituição, além de lhe conferir status de obra de arte, põe em
prática o projeto curatorial que tem como objetivo, “criar experiências e
sensações que levam os visitantes do século XVIII ao século XXI”18. Nessa
18.  Informações sobre a
missão do Memorial Minas relação intersubjetiva, a performance, ao intervir no espaço institucional,
Gerais Vale encontram-se leva-nos também a rever a história do negro nas minas, onde foi a força
disponíveis em: <http://
braçal para a extração de ouro, pedras e outros minérios nos séculos XVII
memorialvale.com.br/
pt/sobre-o-memorial/ e XVIII. Ainda segundo Oliveira,
apresentacao/>.

[...] a semiotização dessas obras nos leva a assinalar que os


sentidos explicitados nessa convivência de contrários ou am-
bigüidade poética são ressemantizadores do processo de
significação, mostrando que o objeto não tem um sentido fixo
e único, porém, que esse é mutável em relação direta com o
convívio dos sujeitos, com as identidades que, para ele, assu-
mem dado objeto. Essas se mantêm, não sendo, pois, reduzidas
a um mesmo, mas sendo, também, a revelação de um outro.
(OLIVEIRA, 2002, p. 42).

Figura 92:
Priscila Rezende.
Bombril, Memorial MInas
Gerais Vale, 2013.
Foto: Guto Muniz.
Fonte: Acervo da artista.
162

A obra, no intuito de querer ser vista, ainda carrega como traço fundante
o risco, em razão das grandes variações de estados patêmicos que pode
despertar, principalmente entre transeuntes. Nesta interação, o olho é
conduzido para que se veja a estruturação do mito racista sobre o negro,
que, segundo Grada Kilomba (2010), pode encontrar cinco diferentes
mecanismos de defesa do ego até o estado de conscientização: negação,
frustração, ambivalência, identificação e descolonização. Assim, observa-
mos o uso do mesmo recurso de linguagem visto na performance anterior,
uma figura metonímica em que o Eu-Negro, numa reviravolta em face de
sua capacidade de enunciação, reflete e reencena criticamente, de modo a
deflagrar, na manifestação sensível, a dramaticidade do ato de violação que
acomete sua existência, tomando e levando até as últimas consequências
seus sentidos significantes para fins de ressignificação.

Por fim, em 2015, Bombril serve de inspiração a uma cena no curta-me-


tragem Kbela – uma experiência audiovisual sobre ser mulher e tornar-se
negra da cineasta Yasmin Thayná. Apesar de não entrar no circuito do
cinema comercial, o filme teve grande repercussão tanto entre o públi-
co negro (sobretudo a juventude) quanto nos debates sobre o mercado
cinematográfico, onde vem pautando a ausência de mulheres negras no
cinema e os estereótipos reiterados nas imagens.

Apresentam-se como valores fundamentais na ação Bombril, a relação


sujeito versus objeto.

3.4
WHITE FACE, BLOND HAIR19 – RENATA FELINTO

19.  O vídeo da inter-


Renata Felinto (1978, São Paulo) é artista visual e educadora, doutora em venção encontra - se
Artes Visuais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professora disponível em: <https://
w w w.yo u tu b e . co m/
na Universidade Regional do Cariri – Urca, situada no Juazeiro do Norte,
watch?v=r1WqvnAhE6Q>.
Ceará. Em sua trajetória como artista e pesquisadora, vem se utilizando
de diversas plataformas e linguagens onde combina arte e educação para
discutir, dentre um universo amplo de questões, identidade e gênero.
Pensamentos, investigações e reflexões que estão reunidos na sua tese
de doutoramento, na qual teoriza sobre a identidade afrodescendente nas
artes visuais contemporâneas.
163

Figura 93:
Renata Felinto. White Face and
Blonde Hair, 2012.
Foto: Reprodução.
Fontes: Site da artista / internet.

Em uma das suas obras, a videoperformance White Face and Blonde Hair,
da série Também Quero Ser Sexy, de 2012, Felinto cria uma personagem
que joga com as relações de alteridade entre o Eu-Branco e o Outro-Negro,
discutindo classe e raça. O próprio nome da obra em inglês já carrega
o valor do importado e do estrangeiro como uma correspondência ao
dispositivo topológico no qual a performance está inserida: a rua Oscar
Freire, lugar onde se situam as grifes internacionais, avaliado como um
dos metros quadrados mais caros da América Latina e reduto oficial do
turismo e consumo de luxo da cidade de São Paulo.

Ao discutir a luta de classes e seu imbricamento com as questões raciais,


a performance nos lança não somente para as relações mais superficiais
de posições de poder e consumo que deflagra a rua Oscar Freire, mas
também às estruturas que lhe antecedem: a própria história de exclusão do
164

Outro-Negro, que permanece, mesmo no pós-abolição, alijado de adentrar


na nova fase do capital, não participando perante a lei nem a sociedade, da
transição para o sistema de trabalho livre. Fora do novo regime de organi-
zação da vida e do trabalho, são as vítimas de um projeto de modernização
ultraconservador, no qual suas existências se tornam obsoletas tanto na
força de trabalho como na de consumo.

Assim, o que fica posto na rua Oscar Freire é que, além da ausência de
negras e negros como consumidores, há ainda a sua ausência como ven-
dedores: levando em consideração um lugar onde o padrão de beleza da
branquitude é fundamental para efetivação do consumo, o Outro-Negro
sequer pode servir de espelho, sendo relegado a cargos como os de limpeza
e serviços gerais, funções que enfatizam a sua invisibilidade como aqueles
que não ocupam, com a aparência vista como fora dos padrões, o espaço
central da compra, santuário do luxo e altar da beleza.

Na tentativa de se ascender socialmente, quanto maior a brancura, maior


a possibilidade de êxito e aceitação, máxima que faz a personagem chegar
aos limites dos estímulos que cercam a teoria do branqueamento transfor-
mando-se ela mesma na caricatura do branco. Para Neusa Santos Souza,
“a história de ascensão social do negro brasileiro, é, assim, a história de sua
assimilação, aos padrões brancos de assimilação social”. (SOUZA, 1983, p.23).

A performance engendra, então, uma mudança na relação: de serviçal


a consumidora, de consumida a servida. Se à mulher negra é conferido,
conforme vimos em Bombril, o papel temático daquela que tem parte
da sua vida ofuscada pelo trabalho, em White Face and Blonde Hair a
performer alterna as posições, assumindo com recursos plásticos a iro-
nia num gesto hiperbólico que acentua caracteres do Eu-Branco na sua
própria imagem. Dessa forma, a prática artística leva mais uma vez os
estereótipos e o racismo ao limite da sua significação, mostrando, através
da sua figuratividade, o quanto o sentido é violento e absurdo quando
posto efetivamente em ação. Tal como as sátiras e as imagens jocosas
do início do século XIX20, que ridicularizavam as tentativas de inserção
20.  Ver capítulo 2.1
de negras e negros em espaços de poder dominados pela branquitude,
a performance acaba por provocar, em quem olha, os mesmos efeitos
patêmicos de perplexidade e escárnio, revelando o choque da branquitude
diante daquele corpo visto como estranho.
165

Usando preto e branco, óculos escuros e colar de pérolas, o figurino


nos remete ao consagrado estilo Channel, símbolo maior do luxo e da
alta costura, que carrega na sua plasticidade uma estereotipia máxima
ao universo topológico no qual se circunscreve. A peruca loira e lisa,
comprida e com franja, ganha leves movimentos com o abanar do leque
que ostenta ao parar diante de cada loja. O batom vermelho finaliza o
ponto de atenção no rosto, coberto com uma maquiagem excessiva-
mente branca: o cabelo loiro e a face branca representam a denúncia
do adulterado e do artificial, deixando visível, nos formantes eidéticos
e cromáticos, os rastros que desmascaram as tentativas de alcançar a
beleza tão cara ao esteta e à indústria da beleza, e que, ao fim, justificam
o seu valor como aquele que faz mágica, disfarça, esconde e convence:
o fazer-crer como talvez o maior objeto de valor instaurado na relação
de consumo da rua Oscar Freire.

Este desejo incontido pela pele branca se concretiza na face, mas também
na gestualidade: encena bocas de frivolidade e olhos de surpresa. Brinca
com o tempo livre, a liberdade sempre perseguida e o desejo pelo ócio, um
vivido gasto entre goles de café e leituras de revista num pomposo bistrô.
Assim, se a lógica do capital se baseia na relação trabalho X tempo, observar
a vida e vagar também se coloca como uma contradição inquestionável
para o corpo negro.

Por isso, ela ajeita os cabelos em movimentos sensuais, fazendo charme


quando leva o guardanapo a boca, exibindo etiquetas e suas regras de
comportamento. Ao desfilar na rua, recebe olhares, entra em lojas, des-
lumbra-se com as roupas e com o brilho. Finge experimentá-las e sai
sorridente, ostentando a conclusão do percurso narrativo que se propôs
cumprir. A passarela que escolhe, e de que faz essas calçadas, são as luzes
que necessita para se fazer vista, ambiente máximo das contradições,
das diferenças sociais e das ausências. De tão improvável, será ela uma
verdade, uma mentira? A equipe de audiovisual que a acompanha incita,
com a sua permanência, a questão.

Interessante notar também que, ao longo de todo o filme, a angulação da


câmera, que na edição centraliza o quadrado na tela, a captura de longe
como um terceiro olho. Um olho paparazzi, um olho branco que interroga,
estranha, interpela, sonda, encara, persegue e mira. O mesmo olho que
166

a questiona: sendo ela uma criação nossa, será ela uma verdade ou uma
mentira? Será ela uma ficção da nossa ficção?

Essa interrogação fica suspensa por não haver ninguém que a sancione,
apenas a personagem manipulando o destinatário: fazer-crer para fazer-
-fazer seu jogo. No contrato fiduciário presente no interior do discurso
enunciado, as marcas que vão organizar o dizer verdadeiro no contrato de
veridicção é a própria realização do consumo. Dessa forma, a personagem
está à mercê do Eu-Branco, do imprevisível, e em busca dos possíveis efeitos
que se colocam no espaço como fratura: “por meio de uma relação dialogal
e intersubjetiva, […] a interatividade é uma condição para a existência da
obra”. (OLIVEIRA, 2002, p. 55).

Por fim, na edição do filme de 2min4s, a categoria cromática preto e


branco presente na roupa, repete-se também na cartela inicial do vídeo,
que ostenta a assinatura White Face and Blonde Hair com uma tipogra-
fia minimalista própria das composições das marcas de luxo. Já a trilha,
criada pelo artista e músico Felinto, traz a Cavalgada das Valquírias, ato
III da ópera do alemão Richard Wagner (1813-1883), remixada com batida
do funk, ambientando a atmosfera satírica, irônica e de contradição entre
estes dois mundos.

Apresentam-se como valores fundamentais na ação a relação ser versus


não poder ser.

3.5
ACEITA? – MOISÉS PATRÍCIO21
21.  Veja a intervenção
disponível em: <https://
w w w.instagram .com/
Artista visual, Moisés Patrício (São Paulo, 1984) trabalha com fotografia,
moisespatricio>.
vídeo, performance, rituais e instalações. Desde 2013, iniciou a série de
imagens Aceita? – uma foto por dia da mão direita em um período de
dois anos, usando como plataforma de mediação institucional a rede
social instagram22. 22.  N o endereço
@moisespatricio

Analisando os regimes de interação da obra, para que o destinatário entre


em regime de ajustamento com o objeto de valor, é preciso que ele siga o
167

perfil do artista, de modo a receber diariamente o conteúdo na sua timeline.


Desde então, a obra Aceita? começa o seu percurso interativo. Quando
disponível na rede social para comunicação, convida o outro a participar
da performance, propondo-lhe com a interrogação a reflexão e o diálogo
que o plano da expressão e do conteúdo ali irão alimentar.

Vemos então o encadeamento dos quatro regimes: manipulação, progra-


mação, ajustamento e acidente. Para fazer-ser, operando o percurso do
enunciado, é preciso, antes, fazer-fazer, manipulando o destinatário para
fazer-seguir. Nessa interação, a visibilidade será decisória para a manipu-
lação: quanto mais visibilidade, medida em termos de seguidores, maior o
risco de conquistar mais seguidores. Mais pessoas se ajustando ao objeto
do valor, consequentemente maior será a probabilidade de, por sedução,
o destinatário aderir ao programa, uma vez que ele já foi sancionado po-
sitivamente por outras pessoas que os números revelam.

Figura 94:
Moisés Patrício. Aceita?
Foto: Reprodução.
Fonte: Internet/ Instagram do
artista.
168

Figura 95:
Moisés Patrício. Aceita?
Foto: Reprodução.
Fonte: Internet/ Instagram do
artista.

Além disso, a possibilidade de experimentar e testar antes de efetivar o


contrato põe o futuro seguidor diante do valor de liberdade tão caro ao
fazer artístico. Flanando, ele, tendo recém-encontrado o perfil, interage
com o que se dá a ver pelas imagens, e estas, se de acordo com o código
de verossimilhança do seu repertório cultural, geram o ajustamento que o
levará a aderir ao contrato, para que receba, religiosamente, a informação
desencadeadora do assentimento.

A visibilidade midiática do artista em outros veículos, para além do que


revela a própria rede social, também é considerada. Como sancionadores,
fazem o destinatário buscar, querer a vivência com a performance e a
experiência de ser desafiado. Esta, diferente dos modos já reconheci-
dos de interação das instituições preparadas para o consumo de arte,
faz-se presença em tempos e espaços distintos, atestando o regime de
interação por manipulação de caráter patêmico, “com vistas ao atuar
sobre o ‘ser’, os ‘estados de alma’ e os ‘afetos’ do outro”. (LANDOWSKI,
2008, p. 62).
169

Em um movimento paralelo, analisando como se desenvolve no plano da


expressão a performance-performance para construção da fotografia, o
artista, ao interagir com o espaço urbano, coleta as imagens pelo caminho.
Por onde passa, recolhe vestígios, lixo, restos, sobras, artefatos e seus
resíduos, montando, por meio desses atravessamentos, as fotografias
que irão produzir sentido. Mais do que objetos, eles se colocam como
formantes figurativos de isotopias sobre as relações humanas, onde as
questões ligadas à cultura afro-brasileira são um tópico central como
temática, mas também sobre a forma como um artista negro enuncia seu
mundo. Aceita que o artista seja eu? Aceita que te guie através das minhas
mãos? É a primeira leitura possível quando a mão – símbolo dos acordos
e das ofertas – que se estende é negra e do candomblé, posicionamento
religioso demarcado com a pulseira de búzios que, como repetição, é rei-
terada em todas as fotos.

Tendo em vista todos os processos de diabolização e intolerância religiosa


que dissecamos nos capítulos anteriores, aumenta-se assim o risco de não
efetivação do contrato. O desafio que se coloca ao artista é o de, através
desse caminho, e num espaço topologicamente delimitado de um quadrado,
preencher a tela com a mão e com elementos que traduzam, no instantâneo
das redes, as informações que vão cativar a atenção do público.

Em 2015, a plataforma Instagram inaugura um formato de negócio abrindo a


possibilidade de gerar visibilidade com postagens patrocinadas. Entretanto,
quando o artista inicia o seu uso, em 2013, a plataforma de fato oferecia
modos mais democráticos de criação e de fazer presença para a audiência,
fornecendo ferramentas técnicas mais acessíveis que se configuravam como
uma alternativa para burlar as estruturas institucionais do sistema da arte.
A visibilidade gerada nas redes o leva aos jornais especializados e, assim,
aos espaços institucionais, criando um percurso contrário ao de muitos.

Apesar da presença nesse espaço alternativo, o artista ainda precisa aderir


a alguns contratos com a empresa-plataforma. Entre eles, o da eminente
necessidade de contratar um serviço de acesso à internet e aceitar os
termos e condições para usuários que o limitam em relação à publicação
de certos conteúdos, a exemplo da nudez; e também de estar vulnerável
às mudanças desses próprios termos.
170

Nesse âmbito, a obra também se restringe a um público que está na rede e,


portanto, aceita suas regras e compartilha das suas estruturas. No entanto,
ela não se limita ao espaço virtual. O artista, na estratégia de visibilidade que
construiu, refaz o movimento, adentrando, com o valor midiático conquis-
tado, os espaços institucionais, possibilitando ao público ter acesso a obra
em sua materialidade ao romper as fronteiras do ciberespaço: na galeria,
o artista é reconhecido e a interação, antes somente virtual, é efetivada.

Entre o on e off line e essa poética da presença, a figuratividade da obra


cria as suas rupturas com a sua capacidade estésica. Das dezenas de
imagens disponíveis no perfil do artista, selecionamos dez que dão conta
de mostrar a diversidade dos percursos temáticos e dos investimentos
figurativos que enuncia.

Na primeira delas, a mão negra pintada de branca reitera um dos princi-


pais estereótipos, aqui vistos, atrelados à teoria do branqueamento. Esta
mesma relação sobre os efeitos do branqueamento, ligada à aparência e a
beleza, estão postas na imagem, onde o artista, encontrando um pedaço de
papelão pelo caminho, vê nele escrito “Alisa e Tinge – O legítimo” expondo
o quanto as práticas de branqueamento ainda estão vivas e presentes em
nosso cotidiano. Os valor presente na ação é ser versus não poder ser.

Em seguida, o artista se posiciona quanto a politica nacional, relacionando as


notícias que estão a correr sobre os rumos da presidência e o impeachment
da ex-presidenta Dilma Roussef, fatos que se dão a ver no fundo sobre o
qual a mão está centralizada, em que, além de gráficos, se lê em francês
Adieu, Brésil (Adeus, Brasil). No texto verbal, a mão oferece: “Diretas Já”.
Aceita? Poder escolher e não poder escolher são as valores do ato.

Também, para questionar os efeitos políticos sobre as condições de su-


balternidade de outros grupos destituídos de poder, o artista oferece mil
cruzeiros, dinheiro hoje em dia sem valor, cuja estampa é o rosto de uma
pessoa indígena. Como valor fundamental temos sujeito versus objeto.

Dentre as composições, uma nos chama atenção pelos valores eufóricos


presentes na palavra que traz e que não havíamos considerado em nossa
análise léxica. Em um fundo cinza, o artista oferece um pacote de biscoito de
chocolate que se chama Negrito. Numa relação positiva, a palavra derivada
171

de negro tem uma isotopia com chocolate e com um terceiro sentido que,
segundo o Dicionário Caldas Aulete, quer dizer:

Negrito. [De negro + -ito] Adj. E s.m. Tip. Diz-se do, ou tipo de
traços acentuadamente mais fortes que o normal, especialmente
quando usado em certos destaques tipográficos (entradas de
catálogos, cabeças de verbetes, etc.); normandinho.

Assim, o artista joga com esses valores positivos para oferecer o negrito
como algo bom e gostoso, ainda que com “seus traços acentuados” onde
o valor está na relação ser versus não poder ser.

Três imagens reiteram o importante debate da intolerância religiosa. Na


primeira delas, vê-se sobreposto a um azulejo branco uma bíblia aberta.
Em cima da bíblia, a mão oferece um martelo. Seriam estes escritos os
únicos e verdadeiros da história? A justiça é feita baseado neste livro?
Qual o seu veredito num diálogo inter-religioso?

Em outra imagem, em um fundo de listras nas cores vermelho, preto e dois


tons de azul, o artista oferece Cristo na cruz. Interessante notar que, em
ambas as obras, apesar de o artista ter uma crença diferente, elas convivem
na mesma imagem, deixando em aberto ao outro a possibilidade de exercer
a sua fé. Já quando ele parece tratar especificamente das perseguições que
tem sofrido, por exemplo, o candomblé, a mão aparece vazia. O destino
lido nos traços das mãos se revela no plano secundário. No fundo branco,
as contas de exu, simbolizadas no vermelho e preto, estão presas em um
dos dedos e mergulhadas em um prato branco cheio de algo semelhante a
sangue. Despossuído da sua crença, o que resta é a violência e a barbárie.
Aceita? Nas três temos como valores tolerância X intolerância.

Para finalizar, as questões de gênero também são alvo de interrogação.


Estendida sobre um fundo azul, a mão oferece dois bonecos negros de mãos
dadas que, nus e iguais, não são definidos com traços nem masculinos nem
femininos. A união se coloca como mais importante do que as relações
binárias. Em uma outra imagem, um pênis é desenhado sobre a mão que
goteja gotas pelos dedos. Símbolo de contestações pela necessidade em
se repensar as masculinidades e o sistema patriarcal, a imagem deixa em
aberto se o artista oferece repulsa, comicidade ou desejo. Temos como
valores masculino versus feminino.
172

Assim, a série Aceita? coloca-se como uma prática artística no tempo do


instantâneo, atualizando-se diariamente para o destinário-consumidor, que
encontra nessa relação comunicacional um jeito não linear e subjetivado
de acessar a informação. A selfie, nome que se convencionou dar nas re-
des sociais à foto tirada de si mesmo, coloca-se no trabalho não para dar
visibilidade à imagem do artista, a sua face e a exposição do seu cotidiano
de forma literal e documental. Diante dos espaços restritivos e de exclusão
do mundo da arte e na impossibilidade de, muitas vezes, artista e público
os adentrar, a selfie concentra-se na mão, enunciando seus modos de
vida e as situações às quais o corpo negro é submetido, articulando seus
pensamentos e interagindo com os objetos do cotidiano. A arte como uma
prática de vida, documentando, ao alcance da mão, as memórias efêmeras
de um tempo: fruições que se põem a serviço do coletivo. Um ajustamento
que pode provocar, a partir da sua trajetória e pensamento, assentimento
ou ruptura, efeitos de sentido do que o artista irá encontrar pelo caminho.

3.6
NOTÍCIAS DA AMÉRICA / BANANA MARKET – PAULO NAZARETH23
23.  O resíduo da intervenção
encontra-se disponível em:
<https://www.youtube.com/
Nascido em 1977, na cidade de Governador Valadares (MG), Paulo Sérgio
watch?v=L15IQrwBWqc>, e
da Silva é o Paulo Nazareth, artista formado pelos caminhos, pelo escultor em <http://latinamericanotice.
baiano Mestre Orlando (1944-2003), com quem aprendeu a entalhar ma- blogspot.com.br/>.

deira, e também pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde


licenciou-se em desenho e plástica, e tornou-se bacharel em desenho e
gravura no ano de 2005.

Dedicado ao campo da performance, mas não essencialmente, diz, em uma


passagem do seu livro, ter sido nomeado por um jovem artista salvadorenho
como aquele que faz uma arte de conduta (NAZARETH, 2012). Desafiando
os limites da vida, cria e produz sentido em sua prática artística a partir
de uma trajetória caminhante, em que o risco é parte imprescindível dos
encontros estéticos que conduz por meio do seu corpo. Em contato com o
desconhecido, sai em busca do outro, alteridades afro-ameríndias, corpos
dissidentes, as gentes de fronteira, sujeitos actantes que, em ato, participam
do reorganizar do sentido da obra.
173

Figura 96:
Paulo Nazareth. Banana Market.
Foto: Reprodução.
Fonte: Internet/site do artista.

Das centenas de resíduos, pensamentos e movimentos que o seu caminhar


produz, o artista parece ir reconfigurando a possibilidade quase jornalística
dos seus deslocamentos para enunciar o seu modo de presença no mundo.
Se ora ressignifica os artistas viajantes dos 1700, ou afirma, ao modo dos
comunicadores e pregadores das feiras livres –ele mesmo tem em Palmital
(MG) uma barraca chamada Paulo Nazareth – Arte Contemporânea LTDA
–, deixemos como interrogação, mas o que nos dar a ver seus passos é
que o artista amplia o indizível por trás da palavra notícia, incorporando-a
tanto no plano da expressão e do conteúdo quanto na dinâmica do trabalho.
Dessa forma, recorre ao formato panfleto e utiliza a plataforma blogspot
como lugar de registro e arquivo, documentando, através de fotos, dese-
nhos, objetos, artefatos diversos e vídeos, os seus projetos entre os anos
de 2007 e 2013. Assim, o público tem disponível o seu acervo em Notícias
24.  Disponível em:
<http://latinamericanotice. de América24, em Cadernos de África e ainda em outro endereço de nome
blogspot.com.br/>. Paulo Nazareth – Arte Contemporânea LTDA.
174

Conscientes de que toda tentativa de definição é capaz de também ela


promover um desencontro entre realidade e imaginação, entre as nossas
impressões com o resíduo do caminho e o próprio caminho, nos propo-
mos a elaborar apenas algumas interrogações e reflexões sobre o projeto
Notícias de América, até sua participação, em novembro de 2011, na Feira
de Art Basel Miami.

Destino mítico
de um sobrevir
Entre os anos de 2011 e 2012, Notícias de América consistiu em uma viagem
feita a pé, em que o artista valeu-se de diferentes conduções, como barco e
ônibus, quando assim se fez necessário. Numa espécie de residência móvel
em trânsito, em que se recorre ao destino, o seu objetivo prático era chegar
aos Estados Unidos cruzando a América Latina. Seu agravante era cortar
desertos, terras, águas e florestas sem, no entanto, molhar os pés: tomado
por pó e poeira, ele devia trazer impresso, do sul ao norte, memórias-solo
da América. Na página principal do blog onde documentava a viagem,
o artista dizia: “proyecto:noticias de América [America news] residencia
en transito + residency by accident = atraviesar America Latina antes de
llegar a los EUA:que todo el polvo del camino se quede en mis pies + viver
en blooklin y saber lo que se pasa ahi _ go to Blooklin,NY /USA living there
and know what happane there, but before walk by Latin America: that
every Latina America land to be in my foot _”.

Nos regimes de interação, sentido e risco que a performance nos conduz


a analisar é de um fazer sobrevir de probabilidade mítica com o qual nos
deparamos. Nela, o artista leva às últimas consequências uma teia complexa
de relações onde reafirma a fricção entre arte, prática e vida questionando
valores que se refazem nas fronteiras: mutações entre significado e sig-
nificante que se reativam com a sua presença, seja do ponto de vista da
subjetividade ou das geografias.

Como a criação
nos cria?
175

Em face da incapacidade dos fragmentos, com os quais temos contato, de


dar conta, em sua profundidade, do tempo vivido, resta-nos uma abertura
para refletir sobre as respostas que o próprio ato de viver num estado de
descontínuo absoluto produz no artista, e que se faz enunciado em todas
as formas que encontrou para se expressar: momento em que, mais uma
vez, congela o tempo na intenção de capturar os instantes sentidos.

Se a capacidade estésica, esta qualidade de fazer o outro sentir, cria as


suas bases no descontínuo, na ruptura do tempo, a prática do artista como
uma irrupção no cotidiano é palco de incertezas, já que, movediça, não nos
oferece garantia nenhuma sobre o seu sentido. Ao oferecer o risco puro,
abala a ordem criando a partir de si uma dinâmica própria: um expresso
fazer-junto fruto de um encadeamento de ajustamentos e dos acúmulos
da experiência vivida pelo próprio artista em seu caminhar.

No plano simbólico – do ponto de vista do regime de sentido –


todas essas descontinuidades produzem o mesmo tipo de efeitos.
Não dando vazão a qualquer forma de compreensão, elas nos
colocam diante do sem sentido; excluindo toda possibilidade
de antecipação, elas não nos oferecem moralmente seguran-
ça alguma: em uma palavra, elas nos afundam no absurdo.
(LANDOWSKI, 2014, p. 71).

Desse modo, Notícias de América talvez seja uma das práticas das quais
tratamos que mais pode ser representativa do que Greimas chamou da
‘espera do inesperado’, e que define, entre aleatoriedade e sensibilidade, o
próprio acontecimento ou acidente estético: “estranho regime de interação
no qual o comportamento do outro – agora, o puro acaso – não dá motivo
à interpretação alguma fundada na razão e não oferece garantia alguma
no plano prático.” (LANDOWSKI, 2014, p. 72).

O fato de carregar como princípio uma intencionalidade – a de chegar ao


destino, cumprindo suas promessas, a caminhada como o passo dado
para romper programas – exige que se alterne manipulação, ajustamento
e acidente, os quais, de acordo com o acaso, faz o artista assumir o estatuto
semiótico de um actante joker de papel crítico e catalítico.

Este catastrófico nos leva a retornar com mais cautela para ver como este
fenômeno do corpo a aleatoriedade remete a uma probabilidade mítica,
176

“dependente de uma instância transcendente e impenetrável, a fatalidade.”


(LANDOSWSKI, 2014, p.78). Falamos então de um destino mítico que, em
nome de uma força maior que o guia, o faz desafiar e conjurar as marcas
inscritas no seu próprio corpo para deflagrar como se manifestam os
programas dos sistemas de poder e opressão nas subjetividades e nas
estruturas levados de sul a norte.

De caráter metamórfica e invocativa, a performance peregrina se con-


funde com um rito no qual se ressignifica por contágio, na problemática
da união, o imaginário sobre a América Latina. Nessa energia cósmica
que se lê no pó e na poeira dos seus pés, há um traçado de tempos e es-
paços distintos. E é com esses mesmo pés que caminha em direção aos
encontros estéticos: através da sua imagem, resultado de muitos latinos,
migrações forçadas, movimentos compulsórios de penetração, violência,
afeto, paixão e ira, joga com o Outro a partir dos efeitos de sentido da sua
aparência, referindo-se ao seu duplo: negro-exótico, mestiço-perverso, o
sujo, o forasteiro, o bandido.

Figura 97:
Paulo Nazareth.
Notícias de América.
Foto: Reprodução.
Fonte: NAZARETH,
2012.
177

Coletando memórias fragmentadas, reclama entre suas fronteiras múltiplas


identidades de descendente dos índios Krenak e dos afro-americanos,
manto camaleônico que renegocia todas as vezes em que é abordado ou
gera, nesses encontros estéticos, o incômodo do atravessamento:

Com essa história de ser mestiço e viajar por América, mudo de


cor todos os dias… em casa as gavetas não estão tão definidas,
mas seguindo mais ao norte tudo é bem arrumado, há o bairro
dos negros, dos árabes, dos chicanos e outros tantos. Tem dia que
sou niger/preto/negro, mas não posso abrir a boca porque assim
posso mudar de cor, tem dia que sou árabe, paquistanês, índio e
outros tantos adjetivos que podem mudar de acordo com os olhos
do outro e as palavras da minha boca. Seja como for, às vezes nos
Estados Unidos da América, quando eu entro em lojas de ‘brancos’
todos ficam com medo, incluindo eu. (NAZARETH, 2012).

Ao assumir a precariedade matérica das expressões que cria, o artista passa a


revelar a precariedade da sua própria condição vivendo no limite da apresen-
tação, da representação e da vida vivida. A figuratividade, então, expressa nos
registros fotográficos que analisamos, apresenta, antes de tudo, uma recusa
aos regimes de veridicção que sancionam comumente a própria ideia de obra
de arte. Instalando-se e sendo parte da obra, o artista, ao ser o enunciador e
narrador junto com o que coletou pelo caminho, instaura um fazer-sentir em
que sua presença se torna ela mesma uma entidade: no espaço expositivo, é
o cruzamento de corpos e a exclamação de ser testemunha do absurdo que
narra aquele contador de histórias, que produz em ato, sentido.

Sobre esse código de ambiguidade presente nas mais diferentes formas de


expressão da cultura afro-brasileiro, Leda Maria Martins nos fala do enigma
e do segredo, que faz com que, entre ironia, dialogismo e assimetria, seja
difícil para o Eu-Branco descobrir o verdadeiro significado do que artistas
como Paulo apresentam como obra: nela, “toda tentativa de decifração
sempre é levada a uma pista falsa”. (MARTINS, 1995, p. 57).

Pó, poeira e fetiche


O gesto de lavar os pés no Rio Hudson, em Nova York, revela o desfecho da
caminhada e da sua imanente ritualística, oferecendo-nos uma camada de
dizeres que, podendo ser qualquer coisa, são também o toque do frescor
da água lavando as dobras do caminho que navegou depois de seis meses
178

e o entendimento sobre a importância de cada aprendizado feito em cada


destino. No retorno, há a participação na Feira de Art Basel Miami, na qual
se instala no espaço expositivo com a obra Banana Market, resíduos fruto
do seu caminhar no risco:

A gestos de caráter explicitamente religioso se mesclam [...]


práticas de conjuração da sorte que dependem da superstição.
Tais campeões – tais apaixonados – do ajustamento são mestres
na arte de amoldar-se à dinâmica de uma força infinitamente
superior à sua [...] apenas pelo jogo, corpo a corpo, das sensibi-
lidades, perceptiva ou reativa [...]. Na medida em que esse tipo
de práticas eminentemente arriscadas que constituem ao mesmo
tempo seu ofício, sua paixão e sua razão de viver, os colocam a
cada instante à beira da descontinuidade catastrófica – no limite
do acidente -, esses campeões do ajustamento são também, se é
possível assim dizer, os grandes campeões da superstição face
ao acidente possível. (LANDOWSKI, 2014, p. 86-87).

Na imagem registro do vivido, o artista questiona o próprio riso: zomba-


ria instaurada como valor na instalação de si mesmo como aquele que
subverte o próprio desejo da instituição arte contemporânea diante da
novidade e aquilo que, em outras palavras, dadas por ele, não é outra
coisa se não o exotismo.

Figura 98:
Paulo Nazareth. Notícias de América.
Foto: Reprodução.
Fonte: Nazareth, 2012.
179

Figura 99:
Paulo Nazareth. Notícias de
América / Banana Market.
Foto: Reprodução.
Fonte: Nazareth, 2012.

Ao questionar os valores plásticos, matéricos, ao se lançar ao risco e ofere-


cer o acidente à instituição, ele se coloca no limiar entre a possibilidade de
realização ou do eminente fracasso: morte, enfermidade, encarceramento
ou qualquer outro padecimento para o seu próprio corpo, seu veículo de
trabalho e objeto de valor.

A arte como empreendimento sanciona a performance do artista, acei-


tando o contrato fiduciário. Assumindo o risco da performance, reitera o
seu posicionamento transgressor, ao dar à obra o mesmo valor que tem a
vida: limites que o artista se colocou para, ao fim, subverter e questionar,
no espaço de visibilidade, a própria instituição.

Fiel ao seu caminho, ele leva às últimas consequências os efeitos da ex-


posição que o seu corpo experimentou nos diversos rumos que seguiu.
Parodiando, devolve à instituição o fetiche: bananas, pés sujos, placas,
terra, poeira, histórias, contos, fotografias, roupas, sotaques e odores.

Em um vídeo curto, disponível na internet, da sua presença na Feira, o ar-


tista assume o papel de um vendedor de imagem e de bananas, e denuncia
estar tendo a sua imagem roubada pelos presentes nascidos nos Estados
Unidos da América. Ostentando uma placa onde se lê “my image of exotic
man for sale”, (vendo minha imagem de homem exótico), performa sua
180

entidade mítico-crítica numa apresentação que, hiperbólica, questiona os


contratos de um dos maiores eventos de consumo de arte do mundo. Na
mira de celulares, cobrava pelos produtos que expunha, mas também pela
espetacularização e fetichização midiática da sua presença. Entre o online e
off-line, a apresentação e a representação, seu ser e seu duplo, transpunha
para o ambiente institucional as cartografias que publicava em seu espaço
virtual. Nessa estratégia de duplicidade cênica e semântica, movimenta o
jogo ritualístico das aparências, permitindo resistir à violência assimilatória
com a qual se relaciona, constituindo um entre lugar que preserva a sua
alteridade: um questionamento sobre o valor da arte e da vida. Temos como
valores fundamentais morte versus vida e sujeito X objeto.
181

4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
182

O futuro está sempre aqui,


no passado.
Amiri Baraka
183

4.1
ENUNCIAR PARA ANUNCIAR: REGIMES DE VISIBILIDADE,
ENCONTROS ISOTÓPICOS E SENTIDOS

Conforme concluímos, em nosso percurso até aqui, não se pode conceber


enunciação sem a participação de um corpo onipresente, e é a partir da
autonomia deste corpo que o Eu-Negro vai tomar a experiência estética
como recurso de anunciação, ressignificação e visibilidade. Sujeito poten-
cializado, recorre à memória e a recupera pelo ato da enunciação, saindo
da condição de objeto para a de sujeito:

Tratando-se agora de repensar a questão em termos de ressigni-


ficação, aquilo que pudera parecer suficiente colocar na posição
passiva de um objeto significante, portanto “a ser lido”, de repente
se vai tonar figura inversa ou, mais exatamente, complementar:
a de um leitor. [...] Em vez de o corpo somente prestar-se a ser
decriptado, ele próprio que agora vai ‘ler’- ler outro livro aberto, e
construir seu sentido. O corpo torna-se semioticamente ativo. [...]
é ele o corpo, que encontra em primeiro lugar o mundo em torno
de si, que o sente por todos os seus órgãos perceptivos e que
finalmente – talvez – o fará significar. (LANDOWSKI, 1996, p. 30).

Tendo em vista esta ruptura e os diferentes momentos da história que


marcam as manifestações artísticas negras no Brasil e na diáspora, é
possível analisar seus regimes de visibilidade a partir dos seus modos de
presença. Olhando para esta breve digressão que fizemos, entre práticas
artísticas e de resistência, se tivemos na primeira fase, que vai até a aboli-
ção, um universo cultural posicionado num regime de não-visibilidade, em
um segundo momento, no pós-abolição, vemos manifestar-se, na sintaxe
narrativa, um destinador-manipulador que, dotado de competência, age na
busca de transformar os sujeitos e criar rupturas nos contratos, tendo em
vista a ressignificação dos estereótipos e sua autodeterminação. Assim,
184

[...] as funções escópicas elementares não se acham mais sim-


plesmente ‘exercidas’ pelos protagonistas (um plano por assim
dizer neutro e desembreado) enquanto fazer emissivo (‘ser
visto’) ou receptivo (‘ver’), mas, assumidas (ou recusadas) e ‘exi-
bidas’ ou dissimuladas por eles; elas se tornam por sua vez,
por uma espécie de embreagem enunciativa, o objeto de um
discurso segundo que as assume à maneira de fazer persuasivo
e/ou interpretativo. O espaço pragmático, ‘objetivo’, em que se
escrevem as relações de ‘visibilidade’, quando assim refletido
pela ‘consciência’ que dele tomam reciprocamente os sujeitos,
transforma-se, então, em campo de manobras cognitivas (fazer
saber/fazer crer). (LANDOWSKI, 1992, p.100).

Tentando persuadir o outro do valor do valor, a tática manipulatória pre-


sente no fazer dessas práticas carrega como princípio de intencionalidade
a ressignificação do programa racial:

[...] procurar [...] fazer o outro colaborar com o próprio projeto, é


portanto convidá-lo a aceitar uma maneira determinada de hie-
rarquizar os valores. Em pequena escala, é, em outras palavras,
contribuir para construir intersubjetivamente uma axiologia co-
mum, uma comunidade de julgamento. Mas antes disso, é obrigar
ou, pelo menos, incitar o outro a dirigir um olhar crítico sobre os
programas que o guiam, a questioná-los ou pelo menos – se insiste
em manter-se neles – a devolver-lhes um sentido que talvez tenham
perdido por força de repetição: intromissão perturbadora sem a
menor dúvida, mas que pode também ser interpretada positiva-
mente, como uma contribuição à ressemantização das práticas
individuais ou coletivas tornadas rotineiras, isto é, reduzidas a
estereótipos de comportamento. Nesses diversos aspectos, por
mais trivial, modesto ou egoistamente interessado que possa ser
o objetivo visado pelo manipulador, toda manipulação constitui
um passo rumo a uma re-fundação do social enquanto universo de
sentido e de valores assumidos e partilhados. Tal é, parece-nos,
a significação última desse regime. (LANDOWSKI, 2014, p. 93).

Nesta configuração, no que diz respeito à dimensão escópica, algumas


relações passam a se constituir. A primeira, relativa a este destinador pri-
vado-coletivo (movimento organizado tendo a negritude como condição
identitária), em que a intenção da enunciação não mais se esconde, mas se
revela, já que, antes, ocupando papéis privados próprios da sua condição
cativa, havia uma relação comedida entre o que podia e o que não podia
ser visto, levando a um querer não ser visto.

De tal forma que como um corpo-livre, competencializado como sujeito do


fazer (avaliaremos em sequência as considerações sobre as modulações
185

dessa liberdade), muda-se a relação objeto-sujeito entre um Outro-Negro,


que era submetido à condição de só poder ser visto pelo outro ou encer-
rado na condição de poder não ser visto, para um Eu-Negro que, ao criar
condições de visibilidade para se-fazer-ver, agora é visto. Tais condições
de visibilidade estão implicadas na semântica narrativa: alternando as
categorias sobre as modelizações do ser vs. parecer temos uma mudança
também na modalização veredictória e do querer, levando a efeitos de
sentido passionais ou afetivos que vão modificar o sujeito de estado:

S1 EU-NEGRO S2 OUTRO BRANCO

Condição escrava
Poder/querer não ser visto ----------------------------- Querer não ver/ Não querer ver

Pós-abolição
Não poder se fazer ver ----------------------------- Poder ser visto pelo outro.
Fazer ver através de si

Contemporâneo
Querer ser visto ----------------------------- Querer ver
Não querer ver
Não querer não ver

Quadro 1:
Regimes de visibilidade
Este quadrado semiótico relativo aos regimes de visibilidade foi elaborado baseado no proposto por Eric
Landowski (1992) onde:
S1 – actante;
S2 – observador;
---------- – contrariedade (eixos).

Nessa economia dos intercâmbios visuais, em que se supõe uma contra-


tualização do direito de olhar, o risco eminente que o Eu-Negro se coloca, ao
sair de uma relação de reserva recíproca e ignorância mútua com o Outro-
Branco, é o da fetichização ou objetificação. Sendo seduzido ou tentado pela
figuratividade, pode acontecer que o não querer não ver do Eu-Branco esteja
intrinsicamente ligado a um desejo fetichista, baseado apenas na curiosidade
de ver o exótico e o primitivo, levando a construir uma relação que se pauta na
persuasão para reiteração destes valores. Neste caso, o programa narrativo
do Eu-Negro, na tentativa de fazer o Outro-Branco entrar em conjunção com
os valores em sua integridade, ao ter como efeito uma posição contraditória/
186

contrária ou um não querer por ser interpretado como um dizer falso, gera
novos limites na comunicação intersubjetiva, configurando-se um quadro
de ignorância mútua em relações transgressoras de base polêmica, na qual
os actantes passam a ser vistos como antissujeitos com um estatuto de anti-
valor: alternam-se entre um e outro os efeitos de sentido relativos às paixões
como exibicionismo, repugnância, fetichismo, atrevimento e recato, ou ainda,
frustração, cólera, indiferença, medo e aversão. Persistência, decepção e
revolta são um dos efeitos passionais que se reiteram continuamente no Eu-
Negro, ao não conseguir cumprir o seu programa narrativo, que consoante
com o seu desejo de expressão, intenta também, como sujeito semiótico, a
modificar os estados de alma e refundar o social.

São esses os riscos que correm, portanto, as intervenções institucionais,


midiáticas e urbanas, “ao percorrer as etapas de uma progressiva colocação
em comum do ‘privado’” (LANDOWSKI, 1992, p. 96): a descompartimentação
de si, a abertura para o outro e a aproximação podem ter como reciprocidade
o fetiche pelo fetiche, ou ainda, o interesse mútuo de ressignificação da
relação. Em outras palavras, transformar o outro através do fazer-sentir
ou ser novamente manipulado para uma condição de objeto:

[...] por mais frágil e vaga que seja essa intuição, ela fundamenta
para o sujeito a possibilidade de um outro modo de construção de
sua identidade, e, por isso mesmo, abre caminho, tanto no plano
cognitivo quanto no plano prático, para outros tipos de atitudes
e de relações perante outrem. Seu poder libertador se deve ao
fato de ela fornecer um ponto de apoio a partir do qual cada um,
se quiser, pode tentar pensar e gerir sua própria identidade en-
quanto positividade, ou, em outras palavras, sem ter mais que, para
fundamentá-la, passar necessariamente pela negação do Outro.
Então, e somente então, a partir desse ponto de ruptura (de ordem
“epistemológica”, como deve ser), desaparecem os sintomas da
crise de alteridade e começam de fato a colocar-se os problemas
de uma autêntica busca de identidade. (LANDOWSKI, 1997, p. 27). 25.  O Programa
Narrativo (PN) do regime
de junção é assim formu-
Dentre os encontros isotópicos relativos aos valores das obras analisadas, lado por Greimas: PN= F
vimos que é alvo recorrente de denúncia, nos programas narrativos das [S1 à (S2 Ov )], no qual:
F = função
ações, a oposição objeto versus sujeito, já que o objeto de valor, na maior à = transformação
parte das intervenções em situação, será o risco que se coloca o próprio corpo: S1 = sujeito do fazer
S1 = sujeito do estado
= conjunção
PN25 = F (ver/experienciar a intervenção) {S1 (Eu-negro) à Ov = objeto-valor
[S2 (Outro-Branco/público) Ov (sujeito/objeto-corpo)]}. (GREIMAS; COURTÉS,
1979, p. 353).
187

Esta relação fica posta, por exemplo, nas intervenções Bombril, Banana
Market/ Notícias de América, White Face Blond Hair, A Transmutação
da Carne e Aceita?. Na Ação Bandeiras, o objeto de valor será a bandeira.

TEMAS FIGURAS VALORES

Ação Bandeiras: Ação Bandeiras: Ação Bandeiras:


Morte vs. Vida Corpo – corpo do outro – Morte vs. vida
Morte vs. Vida bandeira Morte vs. vida
Ausência A Transmutação da Carne: Visibilidade vs. invisibi-
A Transmutação da Carne: Corpo – carne lidade
Violência Bombril: A Transmutação da Carne:
Bombril: Corpo – cabelo Objeto vs. sujeito
Aparência/violência White face blond hair: Bombril:
White face blond hair: Corpo Objeto vs. sujeito
Aparência/violência Aceita?: White face blond hair:
Aceita?: Corpo – mão – objetos Ser vs. não poder ser
Risco Notícias de América: Aceita?:
Notícias de América: Corpo – corpo do outro – Poder escolher vs. não
objetos poder escolher
Risco
Banana Market: Objeto vs. sujeito
Banana Market:
Corpo – corpo do outro – Ser vs. não poder ser
Fetiche
objetos – banana Ser vs. não poder ser
Sujeito vs. objeto
Tolerância vs intolerância
Masculino vs. feminino
Tolerância vs intolerância
Ser vs. não poder ser
Tolerância vs intolerância
Notícias de América:
Morte vs. vida
Banana Market:
Objeto vs. sujeito

Quadro 2:
Encontros isotópicos
188

4.2
JOGOS ÓPTICOS INSTITUCIONAIS

Relacionar-se com as instituições legitimadoras da arte é interagir com os


espaços de poder, de visibilidade e, também, com suas regras, valores e ambi-
guidades. Isso porque, apesar de no seu fazer a maioria das práticas artísticas
que analisamos assumirem como lugar de ação o espaço urbano e midiático,
elas, ou por terem sido previamente comissionadas ou por se apresentarem
como objeto de valor artístico, acabam por ter que negociar com esse próprio
sistema, caso queiram ter o seu valor econômico reconhecido, razão pela
qual aqueles instantes efêmeros (essencialmente feitos para não carrega-
rem a sua durabilidade e serem historicamente, como linguagem artística,
dispositivos de contestação da instauração de valor econômico através da
reprodutibilidade da arte) são registrados de modo a integrarem exposições
ou serem adquiridos por galeristas e colecionadores. Em contrapartida, é
essa desintegração e possibilidade de resíduo parasitário que irá aumentar
a visibilidade da ação, fazendo-a cumprir sua função de ajustar-se a novos
públicos e fazer sentido. Não sendo estas regras gerais, vimos ainda ações
independentes que, mesmo sem comissionamento, conseguiram criar, pos-
teriormente, estratégias de sancionamento e reconhecimento institucional
para instaurar a troca de valor econômico.

Um outro ponto importante é que, relacionando-se ou não (por condição


de alijamento histórico) com os espaços institucionais, as presenças destes
trabalhos não deixam de questionar a invisibilidade, já que negar o espaço
institucional ou buscar outras estratégias alternativas de visibilização/reali-
zação do trabalho não somente tem em vista criar um descontínuo na história
da arte (no que se refere ao cânone do espaço artístico em disjunção com o
cubo branco) mas, também, manifestar-se contra o racismo estrutural e seu
impacto, que vai desde a produção de conhecimento com as categorias e
hierarquias nas pesquisas curatoriais até a ausência do público nos espaços
expositivos. As instituições ainda hoje continuam a reproduzir os mesmos
sistemas de valores baseados em estruturas racistas produtoras da diferença
entre o público e o privado, a rua e os espaços expositivos, o tradicional e o
emergente e o popular e o erudito. São estas categorias que acabam por ser
definidoras das delegações de vozes, das sanções e dos regimes de visibili-
dade na produção cultural nacional, alijando o Eu-Negro do sistema de arte.
Desta forma, intervenções artísticas junto com intervenções curatoriais nos
espaços institucionais se tornam imprescindíveis, pela abertura em instaurar
novos valores, criar rupturas e ressignificar aquilo que foi usurado.
189

Nessa direção, duas questões ainda são centrais: a curadoria como fer-
ramenta de invisibilização dessas práticas e a noção de liberdade da qual
falamos anteriormente. Diante das estruturas e dos valores, já tratados por
nós, e que são centralizados na figura de um curador chefe ou de um grupo
de gestores, estes, ao se colocarem numa posição de não querer ver, podem
ter como posição contrária, por parte dos artistas, reserva, intimidação ou
prévia retaliação, quando se trata de expressar suas identidades. Tal fato
nos faz pontuar que a liberdade não é expressa integralmente, da mesma
forma que não o é quando estes corpos são vigiados pelos sistemas de
controle nos espaços públicos. É nesta falta de espontaneidade do corpo
negro enunciador que a violência racista obtém seu máximo efeito:

[...] assim é que para afirmar-se ou para negar-se, o negro toma


o branco como marco referencial. A espontaneidade lhe é um
direito negado, não lhe cabe simplesmente ser – há que estar
alerta, não tanto para agir, mas sobretudo para evitar situações
em que seja obrigado a fazê-lo abertamente. (SOUZA, 1983, p. 27).

Assim, as intervenções institucionais podem ser compreendidas como


estratégias que, ao assumir os riscos da interação, instalam uma economia
da restituição, usando a presença e as trocas de valores como dispositivos
reparadores de uma dívida histórica ligada ao roubo do tempo, à exploração
do corpo e à exclusão do sistema de trabalho assalariado.

4.3
FAZER SENTIDO PARA FAZER SENTIR:
RUPTURAS E RESSIGNIFICAÇÕES

Desse modo, para subverter a lógica de assimilação, estas práticas artísticas


reiteram na figuratividade alguns elementos notadamente polêmicos do
seu repertório estético reforçando categorias, como o duplo sentido e a
ironia, para afirmar a sua intencionalidade, que não mais visa dissimular,
mas, sim, denunciar. Nas isotopias das figuras, vimos que, ao assumir os
riscos de expor a violência racial usando como linguagem o próprio cor-
po, juntamente com objetos e elementos estereotipados, se instaura um
fazer-crer para fazer-sentir que produz, no destinatário, sentido. Sobre
essa relação entre risco e ajustamento Landowski diz que:

Generalizando, deve-se perguntar se o ajustamento enquanto tal,


esse equilíbrio instável entre abandono e controle, entre deixar-fazer
190

e retomar, não é sempre (mesmo em graus desiguais na prática)


um jogo com o limite, uma maneira de roçar o impensável, de
aproximar-se cada vez mais perto do irreversível, a ponto de, fre-
quentemente, acabar por cair nele. Desse ponto de vista, um das
mais belas páginas que esperam por ser escritas a título de uma
semiótica existencial aplicada teria por tema a arte da derrapagem
controlada. Porque é possível que toda prática de ajustamento seja
antes de tudo um pôr a prova a si mesmo através de uma relação
total e arriscada com o outro, um pôr-se à prova que, para atingir
seu pleno valor, exigiria ser levado até seu ponto extremo. No ápi-
ce do ajustamento, a realização última só poderia ser alcançada
assumindo-se o risco da morte.“ (LANDOWSKI, 2014, p. 87).

Assim, ao produzir sentido em ato, o aparato da enunciação empregado


pelos artistas abre um não-aqui e um não-agora repleto de outras tempo-
ralidades e espacialidades através de embreagens e debreagens que são
presentificadas por meio do próprio corpo, mas também do espaço, das
imagens, cheiros, sons e/ou objetos que instalam. Criando um descontí-
nuo, as intervenções detêm uma qualidade de presença intimamente e
estesicamente ajustadas às disposições e às expectativas do público e do
desconhecido, “não para dobrar-se a eles mas para poder captar, reavivar
[e] cumprir suas potencialidades de sentido.” (LANDOWSKI, 2014, p. 87).

Na apreensão das noções de tempo, descontínuos, embreagens, debreagens


e da competência estésica das experiências estéticas sistematizamos a
relação da seguinte maneira:

USURA ˜
= NÃO VIDA

EXPERIÊNCIA ESTÉTICA – FAZER SENTIDO

FRATURA

Fazer-sentir
Passado Competência estésica Futuro
Memória Promessa
Não-aqui | Não-agora
Ancestralidade Esperança
Descontínuo
Ressignificação

TEMPO NEGRO
Esquema 3:
Tempo negro
Elaborado com base na obra Da Imperfeição de GREIMAS, 2002.
191

Sobre a força, a intuição e a confiança, das quais tratamos repetidas vezes,


relativas ao destino mítico, próprias dos regimes de acidente e do ajusta-
mento, fica posto na própria macrotemática de resistência que os artistas
evocam, que se trata de um fazer que transcende os tempos e se atualiza
no presente como herança ancestral. Este legado não está necessariamente
explícito na figuratividade, mas implícito na sua estrutura e nos seu mo-
dos de presença. Sobre esta qualidade da ancestralidade na formação da
subjetividade no Eu-Negro, Neusa Santos Souza assinala que:

[...] os antepassados ocupam um lugar privilegiado na história


do negro, particularmente do negro brasileiro. Substancialmente
investidos de uma energia libidinal, suas palavras têm estatuto
de verdade e força de lei e seus projetos não realizados são o
destino dos descendentes. Assim, estas figuras ancestrais – mais
ou menos remotas – constroem o sistema Superego Ideal do Ego,
viabilizando a interiorização das exigências e ideias a serem
cumpridos por filhos, netos, bisnetos, ad infinitum. (SOUZA,
1983, p. 35/36).

De modo que o corpo social, ao se posicionar no espaço do indivíduo e


do coletivo, fronteira entre a subjetividade e a cotidianidade, do públi-
co e do privado, pode ser convocado seja pela precariedade, seja pela
originalidade que traz como formante matérico, já que, tendo em vista
os processos de violação que sofreu e sofre na relação de produção da
diferença com o Outro-Branco, torna-se lugar emergencial para conduzir
processos de ressignificação. Assim, esta precariedade/não poder fazer,
no contemporâneo, ligada como vimos a um regime de visibilidade de
um poder/querer não ser visto ou não poder se fazer ver, estaria ainda a
reiterar uma forma ancestral do fazer artístico como prática de resistência
ou vice-versa: despidos de qualquer aparato, elementos e ferramentas de
expressão, o Eu-Negro cria e refunda mecanismos que, fazendo do corpo
linguagem e lugar de discurso, num cruzamento entre tempo (memória) e
espaço (África-Brasil), institui um jeito de fazer originário, tendo em vista
a sua própria precarização como corpo-exploração e vulnerabilidade. O
fato de este valor se refazer no presente deve-se à eficácia dos programas
raciais em construir sistemas de controle para limitar as estratégias de
mobilização e expressão, razão pela qual, para aumentar a capacidade
comunicacional das experiências estéticas, não as mantendo focalizadas
e restritas num entre-si, faz-se necessário um investimento continuado
em produzir mais esteticidade e, por assim dizer, resistência, atentando-se
ainda aos sistemas de captura do capital próprios do mercado da arte em
suas novas configurações.
192

Apesar de trazerem tais heranças ancestrais, estas manifestações do


corpo são semi-simbólicas, ligadas às artes visuais e não às artes da cena,
o que faz com que, no seu caráter performático, haja uma predisposição
à imagem em detrimento da palavra e da estilização dos movimentos, e
também a uma não estruturação linear da ação, já que, como apresentação
e não representação, elas estão abertas ao acidente.

Tais imbricamentos se dão a ver nos procedimentos complexos que rea-


lizam, gerando mais ou menos esteticidade entre o plano do conteúdo e
da expressão, e na limiaridade com que alternam o uso da linguagem em
sua dimensão utilitária e artística. Segundo Tatit, citando Valéry (1991),

O parâmetro de eficácia e de produtividade das linguagens


utilitárias está, “na rapidez com que se pode transitar pelas
palavras ou pelos gestos, transformando-os em valores abs-
tratos independentes da matéria que os veiculou. Ou seja, uma
comunicação bem sucedida em nosso cotidiano cognitivo supõe
que houve rápida conversão do plano da expressão em plano
de conteúdo e que o primeiro pôde ser, também imediatamente,
descartado. Tudo como se as práticas utilitárias precisassem
renegar constantemente a fixação das modulações corporais
em nome do êxito das articulações intelectivas. No caso das
linguagens artísticas, o parâmetro de encanto está justamente
na prática inversa de preservação do plano da expressão – do
significante – por meio de recursos rítmicos altamente compro-
metidos com a matéria sonora ou somática. [...] A forma artística
decorre, portanto, da necessidade básica de reconstituição e
perpetuação do corpo sensível no ‘corpo’ da obra. (VALÉRY,
1991 apud TATIT, 1996, p. 206).

É esse equilíbrio que faz destas práticas, significativas, no que diz respeito
aos desafios propostos pela negritude em seu projeto de tomar o fazer
sensível da arte como prática de resistência, já que estas também rompem
a dicotomia falsamente debatida de que o fato de se enunciarem tendo em
vista questões políticas poderia levá-las a uma redução ou esvaziamento
da sua esteticidade – ao nosso ver, o maior desafio que temos para expe-
rimentar e transpor, uma vez que as noções de belo estão implicadas em
um dizer que, para o destinador-julgador, pode ser falso ou verdadeiro.

Contudo, isto não quer dizer que agir na perspectiva utilitária de fazer uma
crítica social seja sempre o seu destino, pois está implícito na busca por
193

autodeterminação, justiça e liberdade a provocação imanente de ultra-


passar a raça, deixando para as gerações futuras a possibilidade de uma
fundação ontológica do ser negro.

Sobre este devir negro, inventar-se e recriar-se consciente da sua negritude


para-além-da-raça é um dos caminhos possíveis que vemos descortinar-se
em um entre-si: a retomada da descoberta do si acontecendo no privado-
-coletivo, lugar onde se forjam as identidades coletivas e onde o Eu-Negro
se isenta da relação de interdependência com o Outro.

Atentando ao fato de que, ao analisar estas intervenções, fazemos um


recorte de um movimento em processo, consideramos que elas podem
ser tomadas como um marco que, instaurando um jeito de fazer distinto,
abre uma perspectiva de futuro para práticas porvir.

Por fim, enquanto a partilha da diferença não se faz projeto de humanidade,


enquanto a luta dos negros for por igualdade de partes, enquanto houver
racismo, discriminação, extermínio, exploração e desigualdade; enquanto
houver ausência de direitos e universalidade, precisaremos trabalhar no
presente com e contra o passado que se atualiza, cobrando reparação,
redistribuição e responsabilidade, em um caminhar que se faz legítimo
na escalada do Eu-Negro por um presente de dignidade.
194

Figura 100:
Um artista a frente do seu tempo. Nossa
homenagem.
Sidney Amaral. Castigo. 2014.
Fonte: O Menelick 2º Ato.
195

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