You are on page 1of 59

Universidade Federal Fluminense

Instituto de Estudos Estratégicos


Graduação em Relações Internacionais

DO ONZE DE SETEMBRO À INVASÃO DO IRAQUE:


Uma Análise da Política Externa do Governo George W. Bush

Pedro Henrique Peres Suzano e Silva

Niterói
Abril de 2016
Universidade Federal Fluminense
Instituto de Estudos Estratégicos
Graduação em Relações Internacionais

DO ONZE DE SETEMBRO À INVASÃO DO IRAQUE:


Uma Análise da Política Externa do Governo George W. Bush

Autor: Pedro Henrique Peres Suzano e Silva

Monografia apresentada ao Curso de Relações


Internacionais da Universidade Federal
Fluminense – UFF, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Bacharel
em Relações Internacionais.

Orientador: Prof. Dr. Vágner Camilo Alves

Niterói
Abril de 2016
DO ONZE DE SETEMBRO À INVASÃO DO IRAQUE:
Uma Análise da Política Externa do Governo George W. Bush

Nome do Autor: Pedro Henrique Peres Suzano e Silva

Orientador: Prof. Dr. Vágner Camilo Alves

Monografia de Conclusão submetida ao Curso de Graduação em Relações


Internacionais da Universidade Federal Fluminense – UFF, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Bacharel em Relações Internacionais.

Aprovada por:

Orientador - Prof. Dr. Vágner Camilo Alves

Leitor - Prof. Dr. André Luiz Varella Neves

Niterói
Abril de 2016
AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaria de agradecer à minha mãe, que me criou com todo o amor que
ela pôde me dar e mais um pouco.
Em segundo lugar, gostaria de agradecer ao meu orientador, Prof. Vágner Camilo
Alves, cujas brilhantes sugestões fizeram deste trabalho o que é.
Em terceiro lugar, gostaria de mostrar meu infinito apreço aos meus amigos e
companheiros de curso. Há um pouco de cada um de vocês por trás do esforço que deu
origem a esse trabalho. Torna-se necessário destacar a colaboração de Mariana Guimarães
pelos valiosos insights e pela paciência, não necessariamente nessa ordem.
Finalmente, gostaria de agradecer à minha família, em especial a minha irmã, por todo o
apoio que recebi.
A todos os que me auxiliaram nesse trabalho,

Vocês tornam as vitórias mais doces e as derrotas menos amargas.


Nunca pense que a guerra, por mais necessária ou justificável que seja, não é um crime.
- Ernest Hemingway

Carpe… Hear it? Carpe… carpe diem. Seize the day, boys. Make your lives extraordinary.

- Sociedade dos Poetas Mortos

War, war just moved up a gear

I don’t think I can handle the truth

- Muse
SUMÁRIO

Introdução................................................................................................................................1

Capítulo I: Uma análise histórica do neoconservadorismo......................................................3

O neoconservadorismo no pós-Guerra Fria......................................................................3

Principais Temas no Neoconservadorismo em Política Externa..................................7

Internacionalismo não Institucional..................................................................................8

Unilateralismo...................................................................................................................9

Democracia......................................................................................................................10

Poder Militar....................................................................................................................11

Capítulo II: Princípios e Pilares da Política Externa Americana Pós-Guerra Fria.................14

Os três princípios.............................................................................................................14

Primeiro princípio: a democracia possui valores universais...........................................15

Segundo princípio: as democracias não lutam entre si....................................................16

A Missão Americana........................................................................................................16

Terceiro princípio: a promoção da democracia ajuda a segurança americana.................17

Capítulo III: As Reações do Governo Bush ao Onze De Setembro........................................19

O Discurso de West Point – junho de 2002......................................................................19

O Discurso de Cheney aos Veteranos de Guerras Estrangeiras – ago 2002.....................21

Capítulo IV: A Estratégia de Segurança Nacional Dos Estados Unidos.................................26

Fortalecer Alianças para Derrotar o Terrorismo Global...................................................28

Prevenção versus Preempção............................................................................................30

Prevenir Nossos Inimigos de Ameaçar a Nós, aos Nossos Aliados.................................31

Considerações Finais..............................................................................................................44

Referências..............................................................................................................................49
RESUMO

DO ONZE DE SETEMBRO À INVASÃO DO IRAQUE:


Uma Análise da Política Externa do Governo George W. Bush

Inserido na grande área da Política Internacional, o presente trabalho tem o objetivo de analisar as
manobras políticas que permitiram a invasão preventiva americana ao Iraque sob a égide de ação
preemptiva. A hipótese que buscamos defender é de que o léxico particular da administração Bush,
manifesto em discursos e em documentos oficiais, busca gerar precedentes para uma mudança de
regime no Iraque e pegar emprestada a legitimidade de uma ação preemptiva. Para isso, a
metodologia utilizada foi a análise de discurso. Por fim, concluiu-se que os documentos oficiais e
discursos da administração Bush de fato possuíam uma influência neoconservadora e que buscavam
estabelecer o Iraque como ameaça à segurança nacional americana, gerando justificativas para uma
invasão do país.

Palavras-chave: Doutrina Bush, Iraque, preempção, prevenção, neoconservadorismo

Niterói
Abril de 2016
ABSTRACT

FROM 9/11 TO IRAQI FREEDOM:


An Analysis of the Foreign Policy of the George W. Bush Government

The current work aims to analyse the political manoeuvres which allowed the preventative
invasion of Iraq under the cloak of preemptive action. The hypothesis we seek to defend is that
the Bush administration’s particular lexicon, manifested in speeches and official documents,
seeks to enable regime change in Iraq and aims to borrow the legitimacy granted to preemptive
actions. To that end, the methodology used has been the analysis of speeches and documents
elaborated during the George W. Bush government. It has been concluded that the speeches and
documents made by the Bush administration indeed had strong neoconservative influence;
moreover, the reasoning behind such documents sought to establish Iraq as a threat to American
national security and to generate precedents for an invasion of the country.

Key-words: Bush Doctrine, Iraq, preemption, prevention, neoconservatism

Niterói
Abril de 2016
INTRODUÇÃO

Os ataques terroristas de 11 de setembro são sem dúvida um dos eventos mais


importantes do Século XXI até o presente momento. Esses atentados serviram como
estopim para a invasão do Afeganistão e do Iraque por parte dos Estados Unidos, bem
como pela implementação da chamada Guerra ao Terror. Os reflexos de tal política
ainda são visíveis nos dias atuais, até mesmo para o olho mais destreinado. Por isso, é
necessária uma maior compreensão da mesma, identificando fatores e características
que permitiram a execução da chamada “Doutrina Bush” do jeito que ocorreu.
O presente trabalho, portanto, tem como questão central demonstrar a influência
da retórica da administração Bush e como ela possibilitou a invasão do Iraque e a
deposição de Saddam Hussein. Seu objetivo é fornecer uma melhor compreensão das
nuances que permitiram o lançamento da invasão preventiva do Iraque sob a égide de
ação preemptiva. Por isso, seu espaço amostral se limita ao primeiro mandato do
governo George W. Bush, de 2001 a 2004.
A hipótese apresentada é: os discursos da administração George W. Bush
codificam uma retórica neoconservadora que visa à mudança de regime no Iraque e que
busca justificar a invasão do Iraque como uma ação preemptiva. A metodologia
utilizada será a análise de discursos e documentos oficiais do governo. A razão de ser do
trabalho é fornecer um melhor entendimento sobre a chamada “Guerra ao Terror”, bem
como acerca da postura unilateral americana no começo do Século XXI, cujas
consequências até hoje ecoam no sistema internacional.
O primeiro capítulo, intitulado “Uma Análise Histórica do
Neoconservadorismo”, se inicia a partir de uma perspectiva histórica do
neoconservadorismo, relacionando-o com o contexto internacional do fim da União
Soviética e apontando como esse contexto moldou o pensamento neoconservador. Em
seguida, será feita uma análise de quatro temas fundamentais de política externa para
essa corrente de pensamento, apontados por Teixeira (2010).
O segundo capítulo, chamado “Princípios e Pilares da Política Externa
Americana Pós-Guerra Fria”, se baseia na análise de discurso realizada por Castro
Santos (2010) para apontar princípios de política externa comuns aos três presidentes
dos Estados Unidos após a Guerra Fria.
O terceiro capítulo, “As Reações do Governo Bush ao Onze De Setembro”,
expõe discursos da administração Bush após o 11 de setembro para analisar as
codificações desses discursos. Foram escolhidos dois pontos de inflexão: o discurso do
Presidente Bush na Academia Militar de West Point e o discurso do vice-presidente
Cheney na convenção dos Veteranos de Guerras Estrangeiras, ambos em 2002.
O capítulo quatro, intitulado “A Estratégia de Segurança Nacional Dos Estados
Unidos”, analisa o texto da National Security Strategy de 2002, primeiro documento
oficial do governo Bush a codificar, com termos concretos e de forma compreensiva,
como os Estados Unidos pretendem lidar com a ameaça do terrorismo.
Por fim, o trabalho apresenta considerações sobre o conjunto da obra, retomando
e reforçando os temas abordados.

2
CAPÍTULO I
Uma Análise Histórica do Neoconservadorismo

É impossível compreender o governo Bush e a invasão do Iraque sem ressaltar a


influência do pensamento neoconservador nas ideias, nos documentos, nos discursos e
na linguagem da administração. Por isso, esse capítulo tem como motivação situar o
neoconservadorismo no contexto histórico, apontando como as circunstâncias
influenciaram a perspectiva neoconservadora após a Guerra Fria. O corte temporal desse
capítulo, portanto, começa na queda da União Soviética e finda-se após os atentados de
11 de setembro.

O Neoconservadorismo no Pós-Guerra Fria


O Colapso da União Soviética caracterizou a queda de um gigante e o
surgimento (ou a prevalência) de um colosso. Se o fim da Segunda Guerra dividiu o
mundo em dois lados de uma disputa em escala planetária, o fim da URSS representou a
coroação de uma grande superpotência – os Estados Unidos da América. E com o
término da Guerra Fria, “havia grande necessidade de perspectivas coerentes para
substituir as premissas atualmente obsoletas que guiaram a conduta americana no
cenário mundial durante as décadas da Guerra Fria” (Brzezinski, 2007, p. 29)1.
As perguntas que surgiram com a queda da URSS, especialmente sobre o papel
global americano, foram gradualmente ganhando respostas – manifestas em “duas
versões do passado e visões do futuro crescentemente irreconciliáveis” que
“gradualmente emergiram como as perspectivas americanas dominantes quanto às
questões globais” (Brzezinski, 2007, p.30). Contudo, essas não deveriam ser
confundidas com ideologias, “pois não tinham um núcleo doutrinário ou um texto
central”; mas cada uma dessas visões expressava uma “predisposição e uma estrutura
para formulações relativamente flexíveis baseadas em um conjunto de convicções
amplamente compartilhado e definido um tanto frouxamente” (Brzezinski, 2007, p. 30).
Essas duas perspectivas, segundo Brzezinski (2007), eram a globalização e o
neoconservadorismo. A presente análise estudará apenas a última.
Comparado com a globalização, o neoconservadorismo era mais inflexível,
pessimista e maniqueísta; ele remetia deliberadamente à postura de Reagan e se

1
Todas as citações em inglês, especialmente de discursos e documentos do governo, serão traduzidas por
nós, salvo quando expresso o contrário.

3
legitimava por uma reinterpretação histórica que serve a si mesma2 (Brzezinski, 2007, p.
34).
Com o colapso da União Soviética e o triunfalismo subsequente, o
neoconservadorismo passou a buscar no passado recente as respostas para as perguntas
quanto ao futuro imediato da América, colocando a crença de que o fim da URSS teria
sido obra da virtude3 do presidente Reagan. Contudo, o culto neoconservador a Reagan,
no imediato pós-Guerra Fria, se apropria de parte da História: atribuir a derrota do
comunismo exclusivamente à virtude de Reagan “comprime a Guerra Fria a uma única
década” (Brzezinski, 2007, p. 36) e menospreza os esforços empreendidos desde o fim
da Segunda Guerra.
De fato, a perspectiva neoconservadora coloca importância vital na existência de
uma liderança capaz de representar essa virtude tanto no plano doméstico como no
internacional. Para os neoconservadores, o líder deve ser virtuoso a ponto de atingir os
objetivos políticos estadunidenses; distinguir com sucesso os amigos dos inimigos;
antecipar os eventos antes que eles ocorram; e moldar o ambiente para prevenir essas
ameaças (Teixeira, 2010, p. 46-47, grifo do autor).
Para o neoconservadorismo, existe um culto a um arquétipo de líder virtuoso,
capaz de utilizar os valores e ideais estadunidenses como substrato para a consecução de
objetivos nacionais. Segundo Teixeira (2010 p. 47), exemplos desses líderes oscilam;
Kagan e Kristol, dois expoentes do pensamento neoconservador e fundadores do think
tank Project for the New American Century (PNAC), apontam para Reagan; Wolfowitz,
vice-secretário de Defesa no primeiro mandato de George W. Bush e associado ao
PNAC, cita Truman; e Theodore Roosevelt é outro exemplo dado por Kagan e Kristol.
Os neoconservadores de forma geral parecem aplaudir a postura mais
incendiária de Reagan, que rompeu a détente e chegou a caracterizar a União Soviética
como o “Império do Mal”4. Como coloca Kissinger, “[Reagan] havia sido eleito em
reação a um período de aparente recuada americana para afirmar as verdades
tradicionais do excepcionalismo americano” (Kissinger, 1994, p. 763).
Todavia, o fim da Guerra Fria tirou da ideologia neoconservadora um inimigo
valioso: o comunismo, seu principal foco. Podhoretz (1996), que se auto-intitula um

2
Self-serving, no original.
3
Por “virtude”, atribui-se o sentido utilizado por Teixeira (2010) ao pontar que “entende-se como virtude
um conjunto de valores que determinada sociedade – no caso a norte-americana – entende como
modelares”.
4
A alcunha foi atribuída em um discurso de 8 de março de 1983, realizado em Orlando, Flórida, que está
disponível no site da Reagan Foundation (www.reaganfoundation.org).

4
paleoconservador, chegou a declarar a morte do neoconservadorismo. Segundo o autor,
com o fim da URSS, o neoconservadorismo perdeu o seu apelo de “intervencionismo
expansivo” que cresceu de paixões anticomunistas no ápice da Guerra Fria (Podhoretz,
1996). Mas a morte do pensamento neoconservador, para Podhoretz, “parece mais uma
ocasião para celebração do que para tristeza, pois o que matou o neoconservadorismo
não foi a derrota, mas sim a vitória” (Podhoretz, 1996).
Esse momento é definido com precisão por Teixeira (2010):

Dessa forma, com a inexistência de um foco externo


mobilizador, o pensamento neoconservador voltou-se para os
próprios Estados Unidos. Se havia alguma ameaça, ela estaria na
fraqueza desse país. Era necessário, portanto, assumir-se
efetivamente como a nação mais poderosa do globo, capaz de moldar
a ordem internacional de acordo com seus interesses e sua visão de
mundo (Teixeira, 2010, p. 32).

Portanto, ao se voltarem para seu próprio país, delimitando as ações futuras dos
EUA:

(...)os neocons argumentavam que havia chegado o momento


de criar uma ordem mundial dominada pelos Estados Unidos. Ao
invés de cortar gastos militares e bases no exterior, os Estados
Unidos precisavam consolidar o seu poder em cada região do mundo
e derrotar os inimigos restantes. Alguns deles chamavam isso de o
“imperativo unipolar”. A missão da política externa dos Estados
Unidos deveria ser criar uma nova Pax Americana, eles exortavam,
prevenindo qualquer outra nação ou grupo de nações de se tornar
uma grande potência rival dos Estados Unidos (Dorrien apud
Teixeira, 2010, p.32, tradução do autor).

Nesse contexto em que os Estados Unidos eram a última superpotência global,


reuniu-se uma série de intelectuais, sob o comando de Richard Cheney, então Secretário
de Defesa de George H. W. Bush (“Bush I”) e futuro vice-presidente sob o governo
George W. Bush (“Bush II”), com o objetivo de definir uma estratégia que norteasse
esse chamado “momento unipolar”. O resultado desses esforços foi a Orientação do
Planejamento de Defesa5, datada de 1992. Esse documento “postulou uma visão
fortemente influenciada pela política tradicional do equilíbrio de poder enquanto
afirmava de forma brusca a superioridade militar global americana” (Brzezinski, 2007,

5
Defense Planning Guidance, no original.

5
p. 81). Essa visão está presente principalmente na preocupação com apagar uma
possível ameaça a regiões geopoliticamente importantes. Como aponta o documento:

Com o falecimento de uma ameaça militar global aos


interesses americanos, ameaças militares regionais, incluindo
possíveis conflitos originando no e do território da antiga União
Soviética, serão de primeira preocupação dos Estados Unidos no
futuro. Essas ameaças provavelmente surgirão em regiões críticas à
segurança dos EUA e de seus aliados, incluindo a Europa, a Ásia
Oriental, o Oriente Médio, e o Sudoeste asiático, e o território da
antiga União Soviética. Também temos interesses importantes em
risco na América Latina, Oceania e África Subsaariana. Em ambos
os casos, os EUA estarão preocupados em prevenir a dominação de
regiões chaves por uma potência hostil. (Department of Defense,
1992, grifo nosso)

A ideia de evitar o surgimento de uma grande potência hostil está relacionada a


ideia de manter e prolongar a primazia dos Estados Unidos como superpotência
mundial. Tal ideia é melhor explicada por Neves (2010):

Os aspectos adicionais que acompanham esta idéia central


são as seguintes: (a) Os Estados Unidos devem apresentar a
liderança necessária para estabelecer e proteger a nova ordem que
estava surgindo, convencendo potenciais competidores de que não
necessitavam aspirar uma posição mais agressiva para proteger os
seus legítimos interesses. (b) O outro ponto é que os Estados Unidos
devem desencorajar outras nações de industrialização avançada em
desafiar a liderança americana ou procurarem estabelecer uma
ordem política e econômica regional. (c) o terceiro aspecto é que os
Estados Unidos devem manter mecanismos para dissuadir potenciais
competidores de aspirarem um maior espaço regional ou o buscarem
uma dominação no globo como todo (Neves, 2010, p. 124).

O discurso da unipolaridade passou a ser complementado por uma ideia que


também ganhava força no pensamento neoconservador: a noção dos EUA como um
“império”, segundo a qual os Estados Unidos, por serem uma nação virtuosa, teriam
melhor posição para estabelecer uma ordem mundial, e que essa ordem beneficiaria um
número maior de países. Por isso, “para os neoconservadores, (...) o poder norte-
americano é em si o summum bonum6 da política mundial” (Mead apud Teixeira, 2010).
Ainda segundo Teixeira:

De acordo com Kagan (1998), uma das principais qualidades


dos Estados Unidos desde sua emersão como potência global seria a

6
Expressão latina que pode ser traduzida como “o maior bem” ou “o bem supremo”.

6
identificação de seus próprios interesses com os interesses dos outros,
o eu levaria o país a relacionar a prosperidade e a segurança
internacionais com as suas próprias. Assim, Kagan considera que “o
domínio norte-americano” é de crucial importância “para a
preservação de um nível razoável de segurança e prosperidade
internacionais” (Kagan, 1998, p. 34). Dessa forma, na argumentação
do autor, seria desejável e natural, dada a configuração do sistema
internacional, que os Estados Unidos perseguissem ativamente uma
política que visasse à manutenção de sua posição de primazia
internacional (Teixeira, 2010, p. 33).

Se a queda da União Soviética matou o neoconservadorismo, a queda das Torres


Gêmeas o trouxe de volta à vida com um ímpeto maior. O “foco externo mobilizador”,
que era o anticomunismo, foi substituído pelo antiterrorismo; assim, o
neoconservadorismo encontrou um novo inimigo. Contudo, tudo o que se produzira
após a “morte” do neoconservadorismo não foi descartado, mas sim aliado ao novo
inimigo. Desta forma, o discurso de “império benevolente” e de unipolaridade
americana se fundiu com o discurso antiterrorista. O ataque provocou a necessidade de
uma reação – entregue em proporção digna de um império. Como aponta Teixeira:

O 11 de setembro forçou os Estados Unidos a se reengajar no


mundo, a assumir o fardo do império sem embaraçamento ou
confusão. A missão dos Estados Unidos era agora clara para os
conservadores: defender a civilização e a liberdade contra a barbárie
e o terror (Robin, 2004, apud Teixeira, 2010).

Principais Temas do Neoconservadorismo em Política Externa


O objetivo dessa seção é expor alguns princípios universais que permeiam o
neoconservadorismo. Contudo, é importante apontar que, assim como em qualquer
corrente de pensamento, seria impreciso afirmar categoricamente o neoconservadorismo
como um movimento com coesão interna absoluta; fazê-lo seria ignorar os
posicionamentos distintos e o debate entre eles. Contudo é possível apontar um conjunto
de ideias ou um “mínimo denominador comum” (Teixeira, 2010, p. 51) em alguns
aspectos do pensamento. Portanto, o presente trabalho tomará como “mínimo
denominador comum” os quatro temas identificados por Teixeira (2010): o
internacionalismo não institucional; o unilateralismo; a democracia; e o poder militar.
Assim, esse capítulo fará breve exposição desses temas, demonstrando como o
neoconservadorismo os interpreta no contexto da política externa.

7
Internacionalismo não Institucional
Se colocássemos uma divisão entre “internacionalismo” e “isolacionismo”, o
pensamento neoconservador certamente estaria contido no primeiro espectro. Essa
característica se torna ainda mais evidente ao se comparar as discussões tidas no pós-
Guerra Fria, mencionadas no capítulo anterior. O neoconservadorismo pregava um
protagonismo americano como superpotência global; para isso, seria essencial o
envolvimento com assuntos externos. Não apenas isso, mas também seria de extrema
importância que os Estados Unidos tivessem a capacidade de prever e moldar o
ambiente internacional de acordo com seus interesses. Como coloca Teixeira:

Portanto, uma das principais características do pensamento


neoconservador é justamente seu caráter eminentemente
internacionalista, marcado pela defesa de um envolvimento ativo nos
assuntos globais, a partir da crença que os Estados Unidos têm a
responsabilidade, a capacidade e o interesse na construção de uma
ordem internacional que satisfaça seus objetivos. Assim, o argumento
neoconservador tenderá fortemente a defender uma política externa
“ativa” em contraste com uma política externa “reativa” ou
“defensiva” (Teixeira, 2010, p. 55, grifo nosso)

Essa denominação também diferencia o neoconservadorismo da postura liberal


internacionalista, pois o intervencionismo, para o pensamento neoconservador, não
possui um caráter humanitário; é defendido em termos de segurança nacional e em
termos de relações de poder. O neoconservadorismo também toma uma posição cética e
até mesmo descrente das instituições do sistema internacional. Como coloca Teixeira:

Contudo, a crítica dos neoconservadores às organizações


internacionais se tornaria ainda mais aguda após o final da Guerra
Fria, a partir de três argumentos principais: uma alegada falta de
legitimidade por parte de tais organizações, os eventuais entraves
colocados para uma atuação internacional norte-americana mais
contundente e a percepção de que muitos organismos internacionais
servem de fórum para países hostis aos Estados Unidos. A partir
desses argumentos, o neoconservadorismo busca minar as duas
principais justificativas para a existência de tais organismos – sua
eficácia e sua legitimidade (Teixeira, 2010, p. 56).

Um dos principais argumentos contra a legitimidade das organizações


internacionais – principalmente a ONU – está relacionado à crença neoconservadora na
democracia como valor supremo. Do ponto de vista neoconservador, seria moralmente
ilegítimo que os Estados Unidos dependessem da chancela das Nações Unidas,

8
compostas por alguns Estados que não são democracias (Teixeira, 2010, p. 57). Essa
crítica se tornou ainda mais veemente após o 11 de setembro. A retórica do governo
George W. Bush era de proatividade; por isso, o processo de deliberação do Conselho
de Segurança da ONU passou a ser visto como um obstáculo à própria segurança
nacional americana (Teixeira, 2010, p. 59).

Unilateralismo
A preferência pelo unilateralismo no discurso neoconservador é explicitamente
declarada (Teixeira, 2010, p. 59). Contudo, a literatura neoconservadora faz questão de
distinguir o unilateralismo usado pelos isolacionistas do chamado “novo
unilateralismo”. Para distinguir essa postura neoconservadora:

O novo unilateralismo define os interesses americanos muito


além da simples autodefesa. Em particular, ele identifica dois outros
grandes interesses, ambos globais: propagar a paz através da
manutenção da democracia e preservar a paz ao agir como um
equilibrador de último recurso (Krauthammer, 2002/2003).

A defesa do unilateralismo tem como base dois aspectos: primeiro, a falta de


legitimidade das organizações internacionais (abordada no tópico anterior); segundo, o
unilateralismo é visto como ferramenta para aumentar o espaço de ação da
superpotência americana, pois o multilateralismo imporia constrangimentos às ações de
política externa americanas. Essa defesa veemente do unilateralismo ganhou ainda mais
força com o caráter unipolar do pós-Guerra Fria:

A interpretação de que o sistema internacional havia se


transformado em unipolar deu ainda mais sustentação à defesa do
unilateralismo, que passava agora a ser acompanhada pela defesa da
unipolaridade. (...) Do ponto de vista neoconservador, o mundo havia
assumido uma configuração unipolar não apenas pela derrocada da
União Soviética, mas também por uma alegada falta de disposição
por parte principalmente da Europa de desafiar essa questão
(Teixeira, 2010, p. 62).

De forma resumida, o recurso ao unilateralismo, no pensamento neoconservador,


está ligado à ideia de evitar instituições, alianças, tratados e afins que sirvam de
contrapeso para a primazia e a predominância dos Estados Unidos no mundo. Essa
visão é particularmente reforçada após os atentados do 11 de setembro.

9
Democracia
A relação dos Estados Unidos com a Democracia é intrínseca e está
profundamente enraizada na cultura da “terra dos livres e lar dos bravos”7. A relação
cultural dos americanos com a democracia é única. No campo da política externa, essa
relação não é diferente. Como aponta Teixeira (2010):
Os neoconservadores, por sua parte, enfatizam de forma mais
vigorosa uma ligação intrínseca entre a promoção da democracia e o
interesse nacional norte-americano, a partir do entendimento de que
essa estratégia é essencial para garantir a segurança dos Estados
Unidos e reforçar sua supremacia no cenário internacional. Portanto,
a partir da conexão entre democracia e segurança, os
neoconservadores encaram a primeira sob dois aspectos
fundamentais. Primeiro, como um imperativo moral (...). Segundo,
eles avaliam que a promoção da democracia deve ser parte crucial da
estratégia de segurança norte-americana, pois essa seria não só um
imperativo moral, mas também “a melhor forma de assegurar a
manutenção de uma ordem mundial pacífica e próspera” (Teixeira,
2010, p. 64-65).

O primeiro aspecto se baseia na crença que a democracia é baseada em valores


universais comuns a todas as sociedades, em todos os pontos no espaço e no tempo. Por
isso, “A liberdade individual é um absoluto moral, e um sistema de governo que realça a
liberdade individual é moral e praticamente superior a todos os outros” (Selden apud
Teixeira, 2010, p. 65).
Já o segundo aspecto remete à teoria da paz democrática, pautada no princípio
de que as democracias não empreendem conflitos militares entre si. Logo, tomando esse
princípio como verdadeiro, a segurança nacional é diretamente proporcional ao número
de democracias no mundo. Como coloca Layne:

Por atrelar a segurança americana à natureza dos sistemas


políticos internos de outros Estados, a lógica da teoria da paz
democrática inevitavelmente empurra os Estados Unidos a adotar
uma postura estratégica intervencionista. Se as democracias são
pacíficas, mas Estados não democráticos são “causadores de
problemas”8, a conclusão é inescapável: as primeiras só estarão
verdadeiramente seguras quando os últimos também tiverem sido
transformados em democracias. (Layne, 2000, p. 46)

Assim, a teoria da paz democrática, se submetida a um extremo retórico, abre


espaço para justificar as ações internacionais visando a mudanças de regimes; visto que
depor um regime “causador de problemas” e implantar uma democracia em seu lugar
7
Referência a “The Star-Spangled Banner”, o hino nacional americano.
8
Troublemakers, no original.

10
aumenta a segurança em escala nacional e até mesmo global. Como explica Teixeira
(2010):

Assim, seria inútil a tentativa de incluir nações não


democráticas em acordos internacionais como forma de evitar, por
exemplo, a proliferação nuclear, pois não haveria como fazer tais
países “jogarem pelas existentes – o que quer dizer norte-americanas
– regras do jogo” (Kagan; Kristol, 2000, p. 18)[sic]. A estratégia
mais eficiente, a partir desse ponto de vista, seria “não a
coexistência, mas a transformação” do próprio regime vigente nesses
Estados (Kagan; Kristol, 2000, p. 20)[sic]. Portanto, está construída
a argumentação que serve de suporte para intervenções, inclusive
militares, em outros países, com o intuito último de efetuar uma
mudança de regime em nações consideradas não democráticas
(Teixeira, 2010, p. 68).

Poder Militar
A consideração do poder militar como um plano de ação sempre viável está
ligada ao não institucionalismo do pensamento neoconservador: a descrença nas
instituições como capazes de sustentar a ordem e a segurança empurra o pensamento
neoconservador em direção ao uso da força, por este ser uma postura mais certa9.
Após a Guerra Fria, esse tema recebeu bastante ênfase por causa dos debates
ocorridos dentro do próprio neoconservadorismo relativos ao papel dos EUA no novo
mundo unipolar. De forma gera, o pensamento neoconservador pregava a necessidade
de sustentar a superioridade militar americana, evitando o surgimento de uma outra
grande potência. Além disso, o neoconservadorismo apontava a necessidade de moldar
o ambiente internacional aos interesses americanos.
Essa ênfase se intensificou ainda mais após os atentados terroristas de 11 de
setembro, que reforçaram a postura unilateral do neoconservadorismo frente à nova
ameaça do terrorismo. Contudo, esse ponto será abordado em profundidade mais à
frente.
Sendo assim, a posse do presidente Reagan, em 1981, marcou o começo de uma
postura mais combativa frente à União Soviética, em detrimento da détente que
perdurava até então. A característica mais marcante de Reagan foi a obstinação em
perseguir o comunismo, apresentando uma “visão apocalíptica do conflito, tornada mais
suportável pela inevitabilidade histórica do resultado” (Kissinger, 1994, p. 768). Graças

9
“certa”, no sentido empregado, não tem conotação moral, mas possui uma conotação de ser mais preciso
ou previsível. Está empregada em um sentido utilitário.

11
a seu zelo com o combate ao comunismo e à sua postura mais agressiva frente à União
Soviética, Reagan teve grande aceitação dos neoconservadores; de fato, escritores dessa
corrente de pensamento, como Kagan e Kristol, louvavam a virtude e a liderança do
presidente.
Essa apologia veemente a Reagan demonstra um aspecto comum na filosofia
política do neoconservadorismo: a importância de um líder de caráter, capaz de
distinguir com sucesso os amigos dos inimigos e de usar uma virtude inata a todo
americano para a consecução dos objetivos políticos. Entretanto, o pensamento
neoconservador após a Guerra Fria perdeu o seu foco principal – o anticomunismo. Na
ausência deste foco, portanto, o neoconservadorismo foi declarado “morto” por
Podhoretz (1996), e seus restos mortais foram adaptados em uma doutrina que pregava
a superioridade militar americana; a manutenção da liderança americana através de
empecilhos ao surgimento de outra grande potência ou de outro rival significativo,
como fora a URSS nos anos anteriores; e a uma postura “imperial” americana, pautada
na virtude e eficácia dos Estados Unidos como líder político planetário. Com os ataques
de 11 de setembro, o neoconservadorismo encontrou mais uma vez um inimigo – o
terrorismo – e incorporou o que fora desenvolvido após a Guerra Fria em seu discurso.
Também foram apontados quatro temas de política externa no
neoconservadorismo: o internacionalismo não institucional, o unilateralismo, a
democracia e o poder militar. Tais temas foram selecionados por Teixeira (2010) e estão
presentes constantemente na política externa para o pensamento neoconservador.
O internacionalismo não institucional se liga à ideia de que o um ativo papel de
intervenção no cenário global é necessário para potencializar e prolongar a
superioridade americana. Por esse motivo, os neoconservadores veem as instituições
internacionais como empecilhos à primazia americana. Além disso, a legitimidade e a
eficácia das organizações são questionadas, pois elas dão voz a Estados não
democráticos – o que representa um motivo de conflito, visto que a democracia é um
valor vital para o neoconservadorismo.
A opção neoconservadora pelo unilateralismo tem como função maximizar o
espaço de ação dos Estados Unidos no mundo, expandindo e prolongando seu papel de
superpotência. A preferência pelo unilateralismo no neoconservadorismo é
explicitamente declarada (Teixeira, 2010, p. 59).
O importante papel da democracia para a perspectiva neoconservadora é oriundo
da teoria da paz democrática e apresenta dois pontos: primeiro, o desejo de viver em

12
liberdade é um valor universal; segundo, regimes democráticos não lutariam entre si.
Por isso, exportar a democracia seria benéfico para qualquer sociedade em qualquer
tempo. Nesse ponto, atrela-se a exportação da democracia com a segurança coletiva.
Por fim, a importância dada ao poder militar pelo pensamento neoconservador
tem como objetivo prolongar a posição privilegiada dos Estados Unidos no sistema
internacional – a posição de única superpotência militar.

13
CAPÍTULO II
Princípios e Pilares da Política Externa Americana Pós-Guerra Fria

Após os atentados de 11 de setembro de 2001, percebe-se uma grande mudança


na postura do governo de George W. Bush. A postura, antes apática e “sem demonstrar-
se notável por qualquer senso de direção” (Brzezinski, 2007, p. 138), passou para uma
agressiva defesa, baseada em um forte first strike. O presente capítulo, baseado na
pesquisa de Maria Helena de Castro Santos, identifica três princípios de política externa
que pré-datam o governo George W. Bush, mas que se intensificaram ainda mais
durante o governo desse presidente. Além disso, esses três pontos tiveram uma
influência visceral no desenrolar da chamada “Doutrina Bush”, servindo ora como fim,
ora como meio, ora como justificativa para ações agressivas. Esses três princípios foram
ao mesmo tempo circunstâncias permissivas e princípios ativos para a nova postura do
governo. Apesar de não constituírem a única causa, os pilares expostos a seguir servem
também como estrutura para as ações de política externa tomadas por George W. Bush.

Os três princípios
Com o fim da Guerra Fria, a ideia do triunfalismo americano se propagou
vorazmente pelo mundo. Talvez o maior exemplo esteja em “O Fim da História”, de
Francis Fukuyama, que aponta a vitória do capitalismo sobre o socialismo como
representante de uma superioridade da democracia liberal, e toma como base a
teleologia para indicar a democracia liberal como último estágio na escala do progresso.
Mais importante, porém, é a relação entre democracia e segurança, que surge com
frequência após a queda da União Soviética. Após uma análise qualitativa e quantitativa
dos discursos de presidentes e secretários dos três primeiros governos após a Guerra
Fria (Castro Santos, 2010), percebe-se três pilares para a política externa americana
durante esse período:

Os valores e princípios da democracia liberal ocidental são


universais, isto é, todos os povos do mundo desejam tornarem-se
democráticos. Portanto, a promoção da democracia é para o bem da
humanidade.
Democracias não lutam entre si. Portanto, exportar
democracia significa promover a paz mundial. Aqui democracia é
ligada à segurança global.

14
A promoção da democracia faz o mundo mais seguro e mais
próspero para os Estados Unidos. Aqui democracia é ligada à
segurança e aos interesses americanos
Missão: Os americanos estão imbuídos de uma missão
perante a humanidade: trazer-lhe liberdade e democracia. (Castro
Santos, 2010)

Abaixo, se desenvolverá um pouco mais sobre cada ponto, pegando emprestados


trechos dos discursos e pronunciamentos de presidentes e do alto escalão do staff
presidencial.

Primeiro princípio: a democracia liberal possui valores que são universais


Com o fim da URSS, a democracia liberal saiu como vencedora, e os Estados
Unidos eram o seu campeão. A historiografia do período raramente hesitava em
contradizer o triunfo estadunidense, e obras como “O Fim da História?”, de Francis
Fukuyama, se tornaram verdadeiros bastiões a favor da democracia liberal. Segundo
Fukuyama (1989), a democracia liberal seria o último estado na escala evolutiva; o
ápice da liberdade e do progresso, e por isso sua vitória e sua predominância. Nas
palavras do próprio, “O triunfo do Ocidente, da ideia ocidental, é evidente
primeiramente na exaustão total de alternativas sistemáticas ao liberalismo Ocidental.”
(Fukuyama, 1989).
Por isso, percebe-se, em discursos dos três presidentes, que a democracia é tida
como um valor universal, e que poderia ser replicada em qualquer sociedade atual. Bush
II em particular manifesta-se a favor dessa proposição, por exemplo, no State of the
Union de 2004:

Também ouvimos dúvidas que a democracia é um objetivo


não-realista para o grande Oriente Médio, onde a liberdade é rara.
Contudo, é errôneo e condescendente presumir que culturas inteiras e
grandes religiões são incompatíveis com a Liberdade e com o auto-
governo. Eu acredito que Deus plantou o desejo de viver em
Liberdade em cada coração humano. E mesmo quando esse desejo é
esmagado pela tirania durante décadas, ele ressurgirá. (Bush, 2004,
grifo nosso).

Esse princípio será retomado ao longo de discursos e de documentos codificados


durante o governo George W. Bush, especialmente na Estratégia de Segurança Nacional de
2002.

15
Segundo princípio: as democracias não lutam entre si
A noção de que as democracias são um sistema de governo que dificultam e até
mesmo impedem a existência de conflito é oriunda do pensamento kantiano. Com o fim
da Guerra Fria, a noção de paz democrática ganhou mais força e norteou governos,
discursos e ações.
O segundo ponto pode ser brevemente resumido em: as democracias, por não
guerrearem entre si, são um sistema de governo benéfico para o mundo inteiro. Aqui se
une a democracia com a segurança global. Esse ponto complementa o primeiro, unindo
o apelo universal da democracia com uma utilidade universal para ela.
O pensamento neoconservador coloca ênfase no tipo de regime como
determinante da confiabilidade de um Estado e possui a crença de que “a liberdade
individual é um absoluto moral, e um sistema de governo que realça a liberdade
individual é moral e praticamente superior a todos os outros” (Selden, 2004, apud
Teixeira, 2010, p. 65). Por isso, o neoconservadorismo vê as democracias liberais como
confiáveis, enquanto Estados não democráticos são percebidos com suspeita.

A Missão Americana
A amálgama entre o desejo supostamente universal pela democracia e a utilidade
da democracia em escala global dá origem à chamada “missão” estadunidense: espalhar
a democracia. Torna-se um dever estadunidense difundir as benesses da liberdade e da
democracia para todo o mundo. George W. Bush faz referências constantes a essa
“missão”, tanto antes quanto depois da invasão do Iraque, como visto nesse discurso de
20 de setembro de 2001:

Isso não é, contudo, a luta apenas da América. E o que está


em risco não é apenas a liberdade da América. Essa é uma luta do
mundo. Essa é uma luta da civilização. Essa é uma luta de todos os
que acreditam em progresso e pluralismo, tolerância e liberdade.
(Bush, 2001).

Assim como nesse discurso de 2004:

E acima de tudo, terminaremos o trabalho histórico de


democracia no Afeganistão e Iraque para que essas nações possam
iluminar o caminho para outros e ajudar a transformar uma parte
problemática do mundo. A América é uma nação com uma missão, e

16
essa missão vem das nossas crenças mais básicas. Não temos desejo
de dominar, nem ambições imperiais. O nosso objetivo é uma paz
democrática, uma paz fundada sobre a dignidade e os direitos de
cada homem e mulher. A América age nessa causa com amigos e
aliados ao nosso lado, contudo nós entendemos o nosso chamado
especial: essa grande República liderará a causa da liberdade. (Bush,
2004, grifo nosso).

Deve-se notar que, por causa de seu caráter universal e benéfico, o “dever”
estadunidense passa a ser não apenas uma questão de utilidade, mas começa a se basear
em precedentes morais: se todos os países do mundo desejam ser democracias – e Bush
em especial ressalta isso algumas vezes–, e se o mundo inteiro seria afetado
positivamente pela difusão da democracia, é dever dos Estados Unidos auxiliar os
cidadãos dos países individuais a realizarem seus desejos, bem como beneficiar o
mundo inteiro, ao espalhar os valores liberais pelo planeta.

Terceiro princípio: a promoção da democracia ajuda a segurança


americana
Esse ponto, apesar de citado por George H. W. Bush e por Clinton, tem uma
forte predominância no governo de George W. Bush. É uma das grandes justificativas
para a aplicação da chamada Doutrina Bush e para a invasão do Iraque. O staff de Bush,
especialmente Condoleeza Rice, se utiliza bastante desse recurso em seus discursos.
Essa ideia, contudo, se manifesta em sua forma mais explícita no discurso do
State of the Union de 2006:

Em 11 de setembro de 2001, descobrimos que problemas


originados em um Estado falho e opressivo a sete mil milhas de
distância poderiam trazer assassinato e destruição para o nosso país.
Ditaduras abrigam terroristas, alimentam o ressentimento e o
radicalismo, e buscam armas de destruição em massa. As
democracias substituem o ressentimento com a esperança, respeitam
os direitos de seus cidadãos e seus vizinhos, e se juntam na luta
contra o terror. Cada passo em direção à liberdade no mundo faz o
nosso país mais seguro, e, portanto, nós agiremos audaciosamente na
causa da liberdade (Bush, 2006).

Mais importante, contudo, são as considerações feitas por Castro Santos (2010)
sobre esse ponto:
O terceiro princípio é crucial na composição da doutrina de
política externa americana no período do pós-Guerra Fria: ele liga a
dimensão normativa e ideológica da doutrina a sua dimensão
pragmática, possibilitando a sua implementação política. (Castro
Santos, 2010)

17
O conjunto desses três pontos constitui um arcabouço ideológico para os três
primeiros governos estadunidenses após a Guerra Fria. Percebe-se primeiro que a
democracia é, invariavelmente, desejada por todos os habitantes do planeta.
Segundo, o princípio de que as democracias não guerreiam entre si vincula a
segurança nacional dos Estados Unidos e a segurança global à existência de
democracias no mundo, pois leva à constatação de que a segurança global aumenta à
medida que o número de democracias do mundo cresce. Se levado ao extremo, essa
afirmação abre espaço para a transformação de regimes hostis em regimes
democráticos, mesmo que pela força, pois tal transformação seria benéfica para a
segurança mundial.
O governo George W. Bush atribui o terrorismo a regimes falidos, malignos,
tirânicos, ou qualquer combinação dos três; o terrorismo é culpa de déspotas, que são o
grande fator que corrompe o desejo universal de viver em democracia. George W. Bush
coloca:

Quando tiranos caem e o ressentimento dá lugar à esperança,


homens e mulheres em cada cultura rejeitarão as ideologias do terror
e se voltarão para a perseguição da paz. Em todo lugar que a
liberdade se mantém, o terror recuará (Bush, 2003).

Essa prática une o primeiro princípio (todos os habitantes do mundo querem


viver em democracia e liberdade) com o segundo (as democracias não lutam entre si,
por isso é melhor para a segurança global) e o terceiro (espalhar democracia facilita a
segurança nacional americana).
Assim, percebe-se que a segurança não só dos Estados Unidos, mas do mundo, é
atrelada à existência e à propagação da democracia, que possui um apelo universal de
ser adotada. Por isso, deve-se difundir a democracia em escala global.

18
CAPÍTULO III
As Reações do Governo Bush ao Onze De Setembro

O presente capítulo tem como objetivo analisar as reações do governo


estadunidense aos ataques terroristas de onze de setembro, apontando como as ações do
governo Bush permitiram, moldaram e sustentaram a invasão do Iraque em 2003. Essa
análise focará no discurso e no texto jurídico do governo; mais especificamente, em
como o discurso influenciou a invasão do Iraque. Para isso, serão analisados três pontos
de inflexão, baseados na sua ordem cronológica: o discurso do presidente Bush em
West Point, em junho de 2002; o discurso do vice-presidente Cheney aos veteranos das
guerras estrangeiras, em agosto de 2002; e a Estratégia de Segurança Nacional de 2002
(NSS-2002), datada de setembro, que terá um capítulo inteiro dedicado a ela. Esses três
pontos constituem o que Goodnight (2006) chama de “uma estratégia em três pontas”,
cujo destino seria o Iraque.

O Discurso de West Point – junho de 2002


Em primeiro de junho de 2002, o presidente George W. Bush discursou na
formatura da turma da Academia Militar de West Point. Embora tenha ocorrido numa
ocasião relativamente trivial – a formatura de uma turma, e não um opulento
pronunciamento transmitido em cadeia nacional e durante o horário nobre –, não se
deve menosprezar a importância desse discurso em particular. De fato, o discurso de
West Point é, discutivelmente, um dos pronunciamentos de política externa mais
significativos dos últimos tempos, colocado em um patamar de importância tão
significativo quanto o discurso de Truman sobre a Grécia e a Turquia, que inaugurou a
Doutrina Truman (Goodnight, 2006).
Bush começa o seu pronunciamento agradecendo aos generais e congratulando
os formandos. Após isso, Bush enaltece a extensa tradição da academia de West Point,
citando os nomes de Eisenhower, MacArthur, Patton e Bradley, exemplificando a rica
história da Academia, e interrompe essa alusão histórica com uma declaração que
parece soar nefasta: “A História também emitiu um chamado para a sua geração. No
ano passado, a América foi atacada por um inimigo cruel e engenhoso. Vocês graduam
dessa academia em um tempo de guerra” (Bush, 2002).
O presidente complementa: “Essa guerra tomará rumos que não podemos prever.
Contudo, estou certo disso: aonde quer que nós a carreguemos, a bandeira americana

19
representará não só o nosso poder, mas também a liberdade” (Bush, 2002, grifo nosso).
Esse pedaço do discurso aponta os Estados Unidos como um bastião da liberdade que
será carregada para os outros países, e faz referência à chamada “missão americana”.
No parágrafo seguinte, Bush novamente referencia essa missão, desta vez de
forma mais explícita:
A causa da nossa nação sempre foi maior que a defesa de
nossa nação. Nós lutamos, como sempre lutamos, por uma paz justa.
Uma paz que favorece a liberdade humana. Defenderemos a paz
contra ameaças de terroristas e tiranos. Nós preservaremos a paz
através da construção de boas relações entre as grandes potências. E
estenderemos a paz ao encorajar sociedades livres e abertas em cada
continente (Bush, 2002, grifo nosso).

O presidente também aponta que agora, a América enfrenta uma “ameaça sem
precedentes”; as Torres Gêmeas foram derrubadas não por um exército tradicional, ou
por um inimigo facilmente identificável, como era a URSS durante a Guerra Fria; mas
sim por uma organização sombria e por “algumas dezenas de homens malignos e
enganados” que atacaram o solo americano com um custo “muito menor do que o de um
único tanque” (Bush, 2002).
Se um grupo como a Al Qaeda conseguiu derrubar as Torres Gêmeas usando
aviões comerciais, Bush manifesta preocupação com a possibilidade de que grupos mal-
intencionados obtenham armas químicas, biológicas e nucleares, pois “quando isso
ocorrer, até Estados fracos e grupos pequenos poderiam obter um poder catastrófico de
atacar as grandes nações” (Bush, 2002).
Essa nova ameaça que surge – não mais um Estado, mas grupos terroristas com
possibilidades de obter armas capazes de causar grande destruição – torna a lógica de
dissuasão usada na Guerra Fria praticamente obsoleta:

Dissuasão, a promessa de retaliação maciça contra nações,


não quer dizer nada contra redes terroristas sombrias sem nação ou
cidadãos para defender. A contenção não é possível quando ditadores
desequilibrados com armas de destruição em massa podem utilizar
essas armas usando mísseis ou fornecê-las secretamente a aliados
terroristas (Bush, 2002).

Por fim, Bush dá uma prévia de qual seria a resposta adequada a essa ameaça
sem precedentes: “Se esperarmos as ameaças se materializarem completamente, teremos
esperado demais (...) Contudo, a guerra ao terror não será vencida na defensiva.

20
Devemos levar a batalha ao inimigo, interromper seus planos e confrontar as piores
ameaças antes de emergirem” (Bush, 2002).
O discurso de West Point começa a delinear e a codificar o novo modus
operandi dos Estados Unidos no sistema internacional: se antes a dissuasão e a
contenção garantiam estabilidade, agora a defesa dos Estados Unidos requer uma
postura vigilante e proativa para acabar com a nova ameaça do terrorismo e das armas
de destruição em massa antes mesmo que essa ameaça se materialize de forma
completa. Portanto, Bush se apropria da autodefesa e postula, de forma extremamente
abrangente, que a melhor defesa seria um ataque preventivo. Como coloca Goodnight:

“Nós devemos pegá-los antes que eles nos peguem”, dizia o


Presidente. Quem “eles” eram, e como essa visão poderia ser
refinada em política, cabe a diferentes membros do Executivo
anunciarem e defenderem. (Goodnight, 2006)

O posicionamento de Bush nesse discurso aborda diversos pontos do pensamento


neoconservador. Talvez o principal deles, e o mais fácil de se perceber, seja a afirmação da
necessidade de uma postura mais ativa no cenário internacional, fruto das postulações
neoconservadores sobre o novo papel “imperial” dos Estados Unidos após a Guerra Fria.

O Discurso de Cheney aos Veteranos de Guerras Estrangeiras – agosto de


2002
Meses após o teatral discurso em West Point, o vice-presidente Richard Cheney
profere um discurso inflamado aos Veteranos de Guerras Estrangeiras. Se o
pronunciamento de Bush foi abrangente e até mesmo vago, o de Cheney compensa toda
a superficialidade do discurso do presidente: Cheney aponta, por nome, Saddam
Hussein e o Iraque.
Cheney começa o discurso abordando algumas propostas da administração Bush
para os veteranos e apontando a existência de toda uma agenda para o futuro, mas logo
menciona que, “Contudo, o Presidente e eu nunca nem por um momento nos
esquecemos da nossa responsabilidade número um: proteger o povo americano de
ataques adicionais, e ganhar a guerra que começou no último 11 de setembro” (Cheney,
2002).
A partir desse ponto, o vice-presidente passa a discorrer sobre a guerra ao terror,
ora retomando e reforçando os pontos de Bush em West Point, ora esclarecendo alguns
pontos que o presidente não havia mencionado. Cheney retoma a ideia de uma postura

21
mais ativa: “(...)percebemos que guerras nunca são vencidas na defensiva. Devemos
levar a batalha ao inimigo. Tomaremos todos os passos necessários para ter certeza que
nosso país está seguro, e nós iremos prevalecer” (Cheney, 2002).
Novamente Cheney aponta um “novo tipo de guerra contra um novo tipo de
inimigo”. Os inimigos agora seriam terroristas engenhosos e malignos, e “não há dúvida
que eles desejam atacar novamente, e que eles estão trabalhando para adquirir as armas
mais letais de todas as armas” (Cheney, 2002).
Para combater esses inimigos, aponta o vice-presidente, “A América e o mundo
civilizado tem apenas uma opção: aonde quer que os terroristas operem, nós devemos
achá-los onde eles residem, interromper seus planos, e trazê-los à justiça um a um”
(Cheney, 2002).
Cheney enfatiza a necessidade de continuar a guerra ao terror:
“O Afeganistão foi apenas o começo de uma longa campanha.
Caso parássemos agora, qualquer sensação de segurança que
possamos vir a ter seria falsa e temporária. Existe um submundo
terrorista por aí, espalhado entre mais de sessenta países (...) Mas
nós iremos, ao longo do tempo, encontrar e derrotar os inimigos dos
Estados Unidos” (Cheney, 2002)

Cheney, em muitos momentos, replica o que foi dito por Bush em West Point,
como a afirmação que “as velhas doutrinas de segurança não se aplicam” e que “a
contenção não é possível quando ditadores obtêm armas de destruição em massa”,
especialmente quando há a possibilidade de “compartilhá-las com terroristas que
pretendem infligir perdas catastróficas nos Estados Unidos” (Cheney, 2002)
Contudo, o discurso de Cheney tem uma ambição e uma presunção que não
existem no pronunciamento de Bush em West Point. O vice-presidente menciona
Saddam Hussein por nome em diversas ocasiões, apontando que Saddam “quebrou
sistematicamente” as resoluções e os compromissos com as Nações Unidas no que
tangia ao fim do desenvolvimento de armas de destruição em massa e do programa
nuclear iraquiano, e que na verdade, Saddam estaria em busca de “armas ofensivas cujo
propósito é infligir morte em uma escala maciça”, para que pudesse ameaçar “qualquer
um que ele quisesse, em sua própria região ou além dela”. (Cheney, 2002)
Cheney faz questão de enfatizar que Saddam enganou repetidamente os
inspetores das Nações Unidas, escondendo programas de mísseis e de produção de
armas químicas que teriam passado despercebidos pelos inspetores da ONU se não
fosse pela deserção do genro de Saddam, que entregou a localização de documentos

22
chave dos programas supracitados. O vice-presidente manifesta essa exposição de forma
a isentar Saddam de qualquer possibilidade de concordância ou de redenção, vilificando
Hussein de forma definitiva. Como escreve Cheney:
Com esse pano de fundo, qualquer um estaria certo em
questionar qualquer sugestão que deveríamos somente deixar os
inspetores de volta ao Iraque e acabar com nossas preocupações. (...)
Um retorno de inspetores não forneceria garantia nenhuma de sua
conformidade com as resoluções da ONU. No contrário, existe um
grande perigo que [esse retorno] forneceria um falso conforto de que
Saddam estaria “de volta a sua caixa”. (Cheney, 2002)

A astúcia de um adversário engenhoso como Saddam tornou inúteis todos os


esforços tentados até o momento – “nada na última dúzia de anos conseguiu impedi-lo”,
afirma o vice. Por isso, Cheney urge um chamado à ação: “se todas as suas [de Saddam]
ambições forem realizadas, as implicações seriam enormes para o Oriente Médio, para
os Estados Unidos, e para a paz mundial” (Cheney, 2002).
Essa ameaça, segundo o vice-presidente, está próxima: Cheney afirma
categoricamente que “de forma simples, não há dúvidas que Saddam Hussein
atualmente possui armas de destruição em massa”, e que “não há base na conduta ou na
história de Saddam Hussein para questionar qualquer uma das preocupações que estou
levantando essa manhã” (Cheney, 2002).
Portanto, Cheney aponta a certeza de um perigo facilmente identificável –
Saddam Hussein e o seu suposto arsenal de armas de destruição em massa – que deve
ser combatido com “cuidado, deliberação e consultas com nossos aliados” (Cheney,
2002). Mas também emite um alerta ao povo americano: “os riscos da inação são muito
maiores que os riscos da ação” (Cheney, 2002).
Tendo em mente esse perigo, Cheney postula exatamente qual seria a melhor
forma de combatê-lo:
Como o ex-secretário de Estado Kissinger afirmou
recentemente: “a iminência da proliferação de armas de destruição
em massa, os enormes perigos que ela envolve, a reação de um
sistema de inspeção viável, e a hostilidade demonstrada de Saddam
Hussein se combinam para produzir um imperativo para a ação
preemptiva”. Se os Estados Unidos pudessem agir preemptivamente
em 11 de setembro, nós o teríamos feito, sem dúvida. Se pudermos
prevenir outro ataque ainda mais devastador, nós iremos, sem dúvida
(Cheney, 2002).

Esse trecho é vital para completar a ideia postulada ao longo do discurso. Essa
ideia final tem uma progressão lógica com começo, meio e fim e passa por diversos

23
axiomas, que Cheney defende veementemente. Justamente por serem axiomas, sua
veracidade não será contestada na presente análise; apenas se apontará o caminho lógico
pelo qual Cheney passa para expor seu ponto de vista.
Primeiro, Saddam Hussein é um líder invariavelmente hostil aos aliados
americanos e à América, e a realização de suas ambições seria prejudicial para o Oriente
Médio, para os Estados Unidos e para a paz mundial. Segundo, Saddam Hussein tem
plena capacidade de enganar os inspetores da ONU e continuar com o seu programa de
mísseis e de armas químicas. Terceiro, “não há dúvida” que Saddam Hussein possui
armas químicas. Quarto, essas são “armas ofensivas com o propósito de infligir morte
em uma escala maciça”. Quinto, nada do que foi tentado nos últimos anos conseguiu
conter Saddam. Sexto, “o custo da inação é maior que o da ação”. É dizer, um ataque
preemptivo a Saddam Hussein teria um custo menor do que esperar até ter provas
conclusivas, ou até a obtenção de armas nucleares iraquianas. Como Cheney coloca no
discurso:
Alguns argumentam que Saddam é maligno, sedento por
poder e uma ameaça – mas que até ele cruze a linha de possuir, de
fato, armas nucleares, nós devemos descartar qualquer ação
preemptiva. Essa lógica me parece profundamente falha. (...) E muitos
de vocês que atualmente discutem que nós devemos agir apenas se ele
possuir armas nucleares mudariam de ideia e diriam que não
podemos agir porque ele possui armas nucleares. Basicamente, esse
argumento aconselha um curso de inação que poderia ter
consequências devastadoras para muitos países, incluindo o nosso
(Cheney, 2002).

A combinação de todos os fatores acima aciona o precedente de autodefesa


estadunidense. Mais do que isso, essa oportunidade de preempção na verdade se
transforma em uma necessidade de preempção; os Estados Unidos se veem
praticamente obrigados a lançar um ataque preventivo, tanto pelo aspecto moral de
Saddam Hussein ser o inimigo a ser derrotado, quanto pelo aspecto fatalista de um
ataque futuro em solo americano.
Portanto, o discurso de Cheney aos Veteranos de Guerras Estrangeiras tem um
tom consoante com o discurso de Bush em West Point, pois ambos apresentam uma
série de ideias semelhantes relacionadas ao papel dos Estados Unidos como bastião da
democracia, à segurança nacional americana, e ao surgimento de uma nova ameaça.
Contudo, Cheney é muito mais profundo e específico que Bush, citando Saddam
Hussein por nome, apontando categoricamente que Saddam possui armas de destruição
em massa, e conclamando a necessidade de agir antes de um ataque, que está

24
“iminente”. O vice-presidente cita o ataque japonês a Pearl Harbor como uma tragédia
que poderia ser evitada, e faz alusão ao próprio 11 de setembro (“Se os Estados Unidos
pudessem agir preemptivamente em 11 de setembro, nós o teríamos feito, sem dúvida”)
para criar uma “retórica associativa que coloca em primeiro plano a ação contra um
dano que ainda pode ser evitado como compensação pela inação em prevenir uma perda
que não pode mais ser recuperada” (Goodnight, 2006).
Por fim, uma das grandes questões que o discurso de Cheney aponta – e que será
retomada com veemência na Estratégia de Segurança Nacional de 2002 – é o termo
iminência. Segundo o vice-presidente, limite para um ataque preemptivo não seria a
posse de armas nucleares, muito menos o uso das mesmas; a linha a ser cruzada seria a
posse de armas de destruição em massa por um Estado hostil, independente de uma
vontade ou possibilidade de essas armas serem lançadas. É dizer, não é o bastante que
haja um uso de fato de armas de destruição em massa, ou uma intenção declarada de
usar essas armas, mas apenas a posse desse tipo de armamento não convencional por
parte de alguns países já constitui motivo para uma ação militar e uma declaração de
guerra.
Novamente, Cheney aponta elementos claramente neoconservadores em seu
discurso. Percebe-se uma forte descrença no Iraque, visto como um Estado que não se
adequa aos regimes e às instituições; e que ameaça a segurança nacional americana.

25
CAPÍTULO IV
A Estratégia de Segurança Nacional Dos Estados Unidos

A Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSS-2002)10 foi


desenvolvida em setembro de 2002, pouco mais de um ano após os ataques de 11 de
setembro. O seu texto tem importante valor em codificar e oficializar os pontos antes
relatados por Bush em West Point e por Cheney no seu discurso aos Veteranos de
Guerras Estrangeiras.
Antes de analisar a Estratégia, contudo, é importante apontar que parte do staff
responsável pela codificação da NSS-2002 fora responsável pela estruturação da
Orientação do Planejamento de Defesa, em 1992. Por isso, percebe-se uma semelhança
temática entre os dois documentos. Como aponta Brzezinski:

(...)O documento [a Orientação do Planejamento de Defesa] plantou as


sementes intelectuais da política de preempção e prevenção unilaterais
que emergiram uma década depois. Até lá, os autores do rascunho,
que eram oficiais de nível médio em 1992, haviam reaparecido como
oficiais sênior do Departamento de Defesa e do CSN [Conselho de
Segurança Nacional], enquanto seu principal patrocinador, [à época]
Secretário de Defesa Cheney, emergiu à superfície em 2001 como o
vice-presidente dos Estados Unidos (Brzezinski, 2007, p. 81).

Apesar disso, a presente seção pretende analisar a importância da NSS-2002


para a construção do léxico Bush. Logo, o foco deste capítulo é analisar o texto da
Estratégia, começando por sua introdução.
O primeiro parágrafo da NSS-2002 começa a delinear o tom do texto:

(...) As pessoas em todos os lugares querem a possibilidade de


falar livremente; escolher quem os governará; cultuar a quem lhes
agradar; educar seus filhos – homens e mulheres; possuir
propriedade; e usufruir dos benefícios de seu trabalho. Esses valores
de liberdade são corretos e verdadeiros para cada pessoa, em cada
sociedade – e o dever de proteger esses valores contra seus inimigos é
o chamado comum dos povos amantes da liberdade através do mundo
e através das eras. (White House, 2002, introdução, grifo nosso)

Esse trecho contém duas afirmações fundamentais claras: a democracia é um


valor inquestionavelmente universal; e por isso é necessário defendê-la. Essas duas

10
National Security Strategy, no original.

26
afirmações em conjunto manifestam os pilares de política externa americana levantados
por Castro Santos (2010).
O parágrafo seguinte continua essa linha de pensamento:
(…) Buscamos criar um equilíbrio de poder que favorece a
liberdade humana: condições nas quais todas as nações e todas as
sociedades podem escolher por si mesmas as recompensas e desafios
da liberdade política e econômica. Em um mundo que é seguro, as
pessoas podem melhorar as suas próprias vidas. Nós defenderemos a
paz ao lutar contra terroristas e tiranos. Preservaremos a paz ao
construir boas relações entre as grandes potências. Estenderemos a
paz ao encorajar sociedades livres e abertas em cada continente
(White House, 2002, introdução, grifo nosso).

A grande adição desse parágrafo é a definição de um inimigo a ser combatido


(“terroristas e tiranos”), o que não fora feito por Bush em West Point; e, diferente do
que Cheney manteve no discurso aos Veteranos de Guerras Estrangeiras, essa definição
é abrangente o suficiente para ser aplicada a distintos regimes, e não só ao de Saddam
Hussein no Iraque.
Colocado o perigo a ser combatido, a NSS-2002 aponta uma urgência em agir:
“O perigo mais grave que a América enfrenta jaz na encruzilhada entre o radicalismo e
a tecnologia. (...) E, como uma questão de senso comum e autodefesa, a América agirá
contra essas ameaças antes que elas estejam completamente formadas” (White House,
2002, introdução). Contudo, não é qualquer ação que basta para impedir esse inimigo: é
necessário agir antes que o inimigo ataque: “A História julgará duramente aqueles que
viram esse perigo que se aproxima, mas falharam em agir. Nesse novo mundo que
adentramos, o único caminho para a paz e a segurança é o caminho da ação” (White
House, 2002, introdução).
Assim, a NSS-2002 reforça, em vários momentos, a necessidade de ação contra
o terrorismo e contra Estados que auxiliam o terrorismo – “pois os aliados do terror são
os inimigos da civilização” (White House, 2002, introdução) – como forma de
enfraquecer os grupos que ameaçam a segurança nacional americana.
A Estratégia termina a introdução com um parágrafo emblemático, que retoma
explicitamente os três pilares citados por Castro Santos (2010):

Por fim, os Estados Unidos usarão esse momento de


oportunidade para estender os benefícios da liberdade ao longo do
mundo. Nós trabalharemos ativamente para trazer a esperança da
democracia, desenvolvimento, livre mercado e livre comércio para
cada canto do mundo. Os eventos de 11 de setembro de 2001 nos
ensinaram que estados fracos, como o Afeganistão, podem posar

27
como um grande perigo para nossos interesses nacionais como
Estados fortes (White House, 2002, introdução e grifo nossos).

Portanto, a introdução da Estratégia de Segurança Nacional de 2002 aponta as


ideias basilares que serão desenvolvidas com mais clareza e profundidade ao longo do
texto. De forma geral, a importância da introdução é apontar: primeiro, que os Estados
Unidos lutarão para proteger e espalhar a democracia para o mundo todo; segundo, que
os Estados Unidos devem se defender da nova ameaça antes que seja tarde demais;
terceiro, que essa guerra é global, e envolverá esforços não só da América, mas de
nações amantes da liberdade de todo o mundo.

Fortalecer Alianças para Derrotar o Terrorismo Global e Trabalhar para


Prevenir Ataques Contra Nós e Nossos Amigos
O terceiro capítulo da Estratégia, intitulado “Fortalecer Alianças para Derrotar o
Terrorismo Global e Trabalhar para Prevenir Ataques Contra Nós e Nossos Amigos”
(tradução nossa), reforça os pontos abordados na introdução e nos discursos de West
Point e aos Veteranos de Guerras Estrangeiras.
O primeiro parágrafo do capítulo repete ideias expressas anteriormente, tanto na
introdução da NSS-2002 quanto nos discursos de Bush e Cheney:

Os Estados Unidos da América estão lutando uma guerra


contra terroristas de alcance global. O inimigo não é um único
regime político, ou uma pessoa, ou uma religião, ou uma ideologia. O
inimigo é o terrorismo – violência premeditada e motivada
politicamente realizada contra inocentes. (White House, 2002, p. 5)

No parágrafo seguinte, a Estratégia completa: “não fazemos distinções entre


terroristas e aqueles que conscientemente os abrigam ou os auxiliam” (NSS-2002, p. 5).
Essa frase aponta um forte maniqueísmo – “nós”, amantes da democracia, contra “eles”,
terroristas e tiranos. Tal categorização binária expande as medidas da Estratégia para
qualquer Estado que auxilie o terrorismo, e gera um precedente para ação militar contra
tais Estados.
Contudo, a parte mais importante do capítulo é o trecho em que a NSS-2002
determina as medidas concretas a serem usadas para combater esse novo inimigo:

Nós interromperemos e destruiremos as organizações


terroristas através:

28
Da ação direta e contínua usando todos os elementos do
poder nacional e internacional. O nosso foco imediato serão aquelas
organizações terroristas de alcance global e qualquer terrorista ou
estado patrocinador do terrorismo que tenta adquirir ou utilizar
armas de destruição em massa (ADMs) ou seus precursores;
Da defesa dos Estados Unidos, do povo americano, e de
nossos interesses em casa ou no exterior através da identificação e
destruição da ameaça antes que ela alcance nossas fronteiras. (...)
Enquanto os Estados Unidos buscarão constantemente alistar o apoio
da comunidade internacional, nós não hesitaremos em agir sozinhos,
se necessário, para exercer nosso direito de autodefesa através de
ações preemptivas contra tais terroristas, para preveni-los de
causarem dano ao nosso povo e nosso país(...) (White House, 2002, p.
6, grifo nosso)

Primeiro, essa passagem explicita quem será o alvo primário das ações
americanas: qualquer terrorista ou estado patrocinador do terrorismo que tenta
adquirir ou utilizar armas de destruição em massa (ADMs). Em consonância com o
discurso de Cheney aos Veteranos de Guerras Estrangeiras, a definição de inimigo
encaixa perfeitamente nas acusações feitas a Saddam Hussein. O foco da
administração Bush é combater o terrorismo e empreender a guerra ao terror e às
ADMs; o Iraque é um Estado considerado como possuidor de armas de destruição
em massa. Por indução, o Iraque se torna prioridade na política externa americana.
De fato, Brzezinski (2007) aponta que “Pelos próximos três a quatro anos [a partir
de 2002/2003], a obsessão dos altos níveis do governo11 eclipsou todas as outras
questões de política externa que a América enfrentou” (Brzezinski, 2007, p. 143).
Segundo, a terminologia do segundo ponto (“identificação e destruição da
ameaça antes que ela alcance nossas fronteiras”) é abrangente a ponto de permitir
um direcionamento dessa definição ao bel-prazer do governo americano. Cabe aos
Estados Unidos definir o que é uma ameaça, já que a NSS-2002 usa critérios
arbitrários e moldáveis.
Outro ponto relevante do trecho é o uso do termo “ações preemptivas”. É
necessário distinguir “preempção” e “prevenção”, pois a diferença entre os dois
termos, embora sutil, é extremamente importante para a compreensão da NSS-
2002. Essa distinção será feita brevemente a seguir.

11
Top-level obsession, no original.

29
Prevenção versus Preempção
A Carta das Nações Unidas permite, sob o artigo 51, a autodefesa (“Nada
na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou
coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações
Unidas”.) (Nações Unidas, 1945, p. 30). Na própria jurisprudência americana,
Keller & Mitchell (2006) rastreiam o ponto de origem de discussões sobre a
legitimidade de autodefesa antecipatória a um caso de 1842, relativo a uma disputa
fronteiriça com o Canadá (Keller & Mitchell, 2006, p. 19). Os critérios usados
nessa ocasião tentam apontar condições nas quais a ação militar preemptiva seria
justificada e focam no grau de iminência e inevitabilidade de uma ameaça.
A NSS-2002 aponta – corretamente – a existência da ação preemptiva no
Direito Internacional. Contudo, uma ação preemptiva difere de uma ação
preventiva por diversos motivos. Um fator que diferencia os dois é o grau de
iminência do ataque. Freedman (2004) aponta:

A prevenção tem sangue frio. [Ela] tem a intenção de lidar


com um problema antes que ela se torne uma crise, enquanto a
preempção é uma estratégia mais desesperada empregada no calor da
crise. A prevenção pode ser vista como preempção em câmera lenta,
mais antecipatória ou com mais visão de futuro, talvez até mesmo
olhando além das intenções atuais do alvo para aquelas que podem ser
adquiridas junto com capacidades grandemente melhoradas
(Freedman, 2004, p. 86).

Uma boa analogia é a usada por Rockmore (2006), advinda das artes
marciais: supondo um combate entre dois lutadores, A e B, no qual o lutador A
tenta atingir B com um soco na mandíbula, B pode retaliar com um chute no
estômago de A, antes que o golpe atinja; tal situação caracteriza preempção. Ainda
seguindo a analogia de Rockmore (2006), supondo que os Estados Unidos realizem
um ataque cirúrgico na Coreia do Norte alegando esperar um ataque nuclear norte-
coreano dentro de seis meses, a iniciativa estadunidense seria caracterizada como
prevenção. É dizer: toda preempção garante uma prevenção, mas o oposto não é
verdadeiro. Portanto, a linha a ser cruzada é a iminência do ataque. Como coloca
Rockmore (2006):

Em uso padrão nos círculos acadêmicos e de políticas


públicas, o termo “preempção”, discernido do termo “prevenção”, se
refere a um ataque militar que previne um adversário de infligir um

30
ataque que é iminente. (...) um ataque preventivo é um [ataque] no
qual o ataque não é esperado no futuro imediato. (...) Como em
ambos os casos, o adversário possui a capacidade e, presumidamente,
o desejo de lançar um ataque, uma diferença importante entre
preempção e prevenção militares concerne a se o ataque é iminente
ou apenas extremamente provável no futuro próximo. (Rockmore,
2006, p.1, grifo nosso)

Logo, a ação preemptiva é legítima. Um exemplo histórico desse tipo de


ação é o ataque de Israel contra forças egípcias no Monte Sinai, em 1967 (Keller &
Mitchell, 2006, p. 4). Já a ação preventiva não tem legitimidade. Outro exemplo
histórico de ação preventiva foi o bombardeiro israelense das instalações nucleares
do Irã, em 1981. Perante essa diferença, distinguir esses dois conceitos é vital para
entender a formulação da Estratégia de Segurança Nacional, pois ao longo do texto
da Estratégia, se usam os dois termos sem distinguir um do outro, taxando a
prevenção de preempção. Essa oclusão altera significantemente o significado da
NSS-2002, tratando ações de autodefesa ilegítimas como se fossem ações
legítimas.

Prevenir Nossos Inimigos de Ameaçar a Nós, aos Nossos Aliados, e aos


Nossos Amigos com Armas de Destruição em Massa
O quinto capítulo da Estratégia, por sua vez, tem a função de indicar como
os Estados Unidos pretendem agir perante a ameaça das armas de destruição em
massa. Para isso, o capítulo começa retomando mais uma vez as afirmações de
Bush e Cheney (“com o colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria, o nosso
ambiente de segurança passou por profundas transformações”; “Mas novos
desafios letais emergiram de rogue states12 e terroristas”) (White House, 2002, p.
13).
No parágrafo seguinte, a NSS-2002 define algumas práticas que
caracterizam os rogue states. Segundo ela, rogue states:

Estão determinados a adquirir armas de destruição em


massa, junto com qualquer outra tecnologia militar avançada, para
serem usadas como ameaças ou ofensivamente para conquistar os
desígnios agressivos desses regimes;

12
Pode ser traduzidos como “Estados trapaceiros”; relativo à ideia de Estados que não jogam de acordo
com as regras e os regimes internacionais. Mantido em inglês ao longo do texto.

31
Patrocinam o terrorismo ao longo do globo; (...) (White
House, 2002, p. 14)

Não obstante, o parágrafo seguinte cita diretamente o Iraque:

À época da Guerra do Golfo, adquirimos provas irrefutáveis


que os desígnios do Iraque não eram limitados às armas químicas que
[o Iraque] havia usado contra o Irã e contra seu próprio povo, mas
também se estendiam à aquisição de armas nucleares e agentes
biológicos (...) Outros regimes trapaceiros13 também buscam armas
nucleares, biológicas e químicas. A perseguição desses Estados a, e o
comércio global em, tais armamentos se tornou uma ameaça
impendente14 a todas as nações” (White House, 2002, p. 14).

Logo, o começo do capítulo define algumas práticas dos rogue states que
constituiriam uma ameaça à segurança nacional e global. Além disso, apresenta “provas
irrefutáveis” que datam desde a Guerra do Golfo relativas à posse de ADMs por parte
do Iraque – reforçando o ponto de Cheney no discurso aos Veteranos de Guerras
Estrangeiras. Essa combinação favorece um imperativo de ação contra o Iraque.
Se o começo do capítulo se encarrega de definir e identificar os inimigos, o resto
do capítulo expõe uma “estratégia compreensiva para combater as ADMs” e coloca o
direito estadunidense à autodefesa. Segundo a NSS-2002, a estratégia compreensiva
inclui:

 Esforços proativos de contraproliferação. Nós


devemos dissuadir e nos defender contra a ameaça
antes que ela seja desencadeada. Devemos garantir
que capacidades chave – detecção, defesas passivas e
ativas, e capacidades de counterforce, são integradas
em nossos sistemas de transformação de defesa e nos
nossos sistemas de segurança interna. A
contraproliferação também deve ser integrada na
doutrina, treinamento e equipamento de nossas forças
e as de nossos aliados para garantir que podemos
prevalecer em qualquer conflito com adversários
armados de ADMs.
 Esforços de não-proliferação fortalecidos para
prevenir rogue states e terroristas de adquirirem os
materiais, tecnologias, e expertise necessários para
armas de destruição em massa. Melhoraremos a
diplomacia, controle de armamentos, controles
multilaterais na exportação, e assistência na redução

13
Rogue regimes, no original.
14
Impending, no original. Utilizou-se a tradução “impendente” ao invés de sua contraparte mais comum,
“iminente”, para manter a distinção entre os termos “impending” e “imminent”, visto que esse último é
usado mais frequentemente em um contexto específico.

32
de ameaça que impedem os Estados e terroristas
buscando ADMs, e, quando necessário, proibir a
permissão de tecnologias e materiais. Nós
continuaremos a construir coalizões para apoiar
esses esforços, encorajando seu crescente apoio
político e financeiro a programas de não-proliferação
e de redução de ameaças (...) (White House, 2002, p.
14, grifo nosso).

A “estratégia compreensiva para combater as armas de destruição em massa”


começa com um ponto específico em mente, e não por coincidência: a primeira frase já
expõe a necessidade de “defender contra a ameaça antes que ela seja desencadeada”. A
grande razão de ser da NSS-2002 é postular e oficializar o direito estadunidense à
preempção, e a primeira frase do parágrafo destaca justamente esse aspecto.
A Estratégia então passa a resumir e justificar as razões pelas quais a preempção
é garantida:

Demorou quase uma década para que nós compreendêssemos


a verdadeira natureza dessa nova ameaça. Dados os objetivos de
rogue states e terroristas, os Estados Unidos não podem mais contar
exclusivamente com uma postura reativa, como fizemos no passado. A
inabilidade de dissuadir um possível atacante, o imediatismo das
ameaças atuais, e a magnitude dos danos potenciais que podem ser
causados pelas escolhas de armas dos nossos adversários não
permitem essa opção. Não podemos deixar nossos inimigos atacarem
primeiro. (White House, 2002, p. 15, grifo nosso)

Esse parágrafo por si só retoma grande parte do que fora dito por Bush e por
Cheney e recapitula os temas mencionados na introdução da Estratégia. Contudo, ele
serve para introduzir e complementar pontos que são expostos (na forma de bullets ou
tópicos) nos parágrafos seguintes:
 Na Guerra Fria, especialmente após a Crise
dos Misseis de Cuba, nós enfrentamos um adversário
geralmente do status quo e avesso a riscos15. A dissuasão era
uma defesa efetiva. Mas a dissuasão baseada apenas na
ameaça de retaliação é menos provável de funcionar contra
líderes de rogue states, mais dispostos a se arriscar,
apostando as vidas de seu povo e a riqueza de suas nações.
(White House, 2002, p. 15)

A passagem acima demonstra como o fim da Guerra Fria mudou o jogo a ser jogado:
agora, a destruição mutuamente assegurada não era o suficiente; enquanto antes a possibilidade
de destruição global em caso de primeiro ataque seria o suficiente para dissuadir ambos os lados

15
Generally status quo, risk-averse adversary, no original.

33
de atacarem, atualmente os rogue states e terroristas não parecem se importar para as
consequências retaliatórias.
Os dois tópicos seguintes ressoam a ideia apresentada no trecho supracitado:

 Na Guerra Fria, armas de destruição em massa


eram consideradas armas de último recurso cujo uso
arriscava a destruição daqueles que as usavam. Atualmente,
nossos inimigos veem as armas de destruição em massa como
armas de escolha. Para os rogue states, essas armas são
ferramentas de intimidação e agressão militar contra seus
vizinhos. Essas armas também podem permitir que esses
Estados tentem chantagear os Estados Unidos e nossos
aliados para nos prevenir de dissuadir ou repelir o
comportamento agressivo dos rogue states. Tais Estados
também veem essas armas como seus melhores meios de
vencer a superioridade convencional dos Estados Unidos.
 Conceitos tradicionais de dissuasão não
funcionarão contra um inimigo terrorista cujas táticas
juradas16são destruição gratuita que tem inocentes como
alvos; cujos supostos soldados buscam o martírio na morte e
cuja proteção mais potente é a falta de um Estado17. A
sobreposição entre Estados que patrocinam o terror e aqueles
que perseguem ADMs nos compele a agir. (White House,
2002, p. 15, grifo nosso)

Novamente se menciona as mudanças de paradigma no pós-Guerra Fria: antes, o


equilíbrio do terror era suficiente para impedir o uso de armas nucleares de ambos os lados; com
a posse de armas de destruição em massa por parte de rogue states, tais Estados, segundo a
NSS-2002, usariam, necessariamente, as ADMs como primeira escolha, pois veriam nesse
armamento não-convencional uma forma de contrabalancear a superioridade americana. Por
isso, a mera posse de ADMs por parte desses Estados constitui uma grande ameaça à segurança
nacional americana – ameaça que, por si só, compele os Estados Unidos a agir em legítima
defesa. De fato, a doutrina se aprofunda um pouco mais nos méritos das ações defensivas:

Durante séculos, o Direito Internacional reconhece que as


nações não precisam sofrer um ataque antes de tomar licitamente
ações para defender a si mesmas contra forças que apresentam um
perigo iminente de ataque. Acadêmicos legais e juristas
internacionais frequentemente condicionaram a legitimidade da
preempção na existência de uma ameaça iminente – mais
frequentemente uma mobilização visível de exércitos, marinhas e
forças aéreas se preparando para atacar.
Nós devemos adaptar o conceito de ameaça iminente às
capacidades e objetivos dos adversários de hoje em dia. Rogue states
e terroristas não buscam nos atacar usando meios convencionais.

16
Avowed tactics, no original.
17
Statelessness, no original.

34
Eles sabem que tais ataques falhariam. Ao invés disso, eles confiam
em atos de terror e, potencialmente, no uso de armas de destruição
em massa – armas que podem ser facilmente escondidas, lançadas
secretamente, e usadas sem aviso. (White House, 2002, p. 15, grifo
nosso)

Para um olhar desatento, a mensagem da NSS-2002 parece uma simples lógica


de indução: o Direito Internacional há séculos garante a possibilidade e a legitimidade
de agir preemptivamente contra uma ameaça iminente; com o fim da Guerra Fria, surgiu
uma nova ameaça; logo, é necessário adaptar o conceito de ameaça iminente, existente
há séculos, ao contexto atual. Todavia, a lógica por trás desse raciocínio e, mais
importante, os impactos dessa lógica, merecem uma análise muito mais profunda.
Primeiro, ao afirmar que “durante séculos, o Direito Internacional reconhece que
as nações não precisam sofrer um ataque” antes de se defender legitimamente, a NSS-
2002 apela para o caráter histórico e tradicional do sistema internacional, buscando a
legitimação das ações preemptivas na tradição e num status quo jurídico.
Nos parágrafos mais à frente, a Estratégia mais uma vez busca legitimar as ações
futuras dos Estados Unidos baseado em um passado histórico:

Os Estados Unidos há muito mantém a opção de ações


preemptivas para revidar uma ameaça suficiente à nossa segurança
nacional. Quanto maior a ameaça, maior o risco de inação – e mais
persuasivo o caso para tomar uma ação antecipatória para nos
defender, mesmo que reste incerteza quanto à hora e o lugar do
ataque dos inimigos. Para atrasar ou prevenir tais atos hostis por
parte de nossos adversários, os Estados Unidos irão, se necessário,
agir preemptivamente. (White House, 2002, p. 15, grifo nosso)

A ideia geral desse parágrafo é dividida em alguns pontos. O primeiro ponto é


demonstrar que o Direito Internacional há muito permite as ações preemptivas contra
uma ameaça iminente, e exemplificar que os Estados Unidos também há muito se
utilizam legitimamente desse recurso ao longo de sua história. Por tal razão, aponta a
Estratégia, há vários precedentes legais que permitem um ataque preemptivo com fins
de autodefesa.
O segundo ponto se relaciona ao surgimento de uma nova ameaça após a Guerra Fria,
composta por rogue states e terroristas que possuem, ou que podem possuir, armas de
destruição em massa, e que usarão, necessariamente, essas armas para ameaçar vidas inocentes e
a segurança nacional estadunidense. Para isso, a Estratégia aborda, em trechos já citados, que a
dissuasão e a contenção não são mais capazes de frear os rogue states. Por exemplo, a NSS-
2002 cita: “Mas a dissuasão baseada apenas na ameaça de retaliação é menos provável de
35
funcionar contra líderes de rogue states, mais dispostos a se arriscar, apostando as vidas
de seu povo e a riqueza de suas nações” (White House, 2002, p. 15); também cita que
“Atualmente, nossos inimigos veem as armas de destruição em massa como armas de
escolha”.
Terceiro, já que existe uma nova ameaça, e que essa está iminente – visto que o
Iraque possui armas de destruição em massa –, “Nós [os Estados Unidos] devemos
adaptar o conceito de ameaça iminente às capacidades e objetivos dos adversários de
hoje em dia” (White House, 2002, p. 15). Todavia, as capacidades e objetivos dos
inimigos incluem o uso de armas de destruição em massa – “armas que podem ser
facilmente escondidas, lançadas secretamente, e usadas sem aviso” (White House, 2002,
p. 15). De fato, as armas de destruição em massa são um armamento de difícil detecção
e cuja existência pode ser escondida até mesmo das Nações Unidas (visto que, como
Cheney cita aos Veteranos de Guerras Estrangeiras, as inspeções da ONU foram
burladas pelas artimanhas de Saddam Hussein). Para contra-atacar, a Estratégia postula
a necessidade de ataques preemptivos (ataques em legítima defesa quando há uma
ameaça iminente), “mesmo que reste incerteza quanto à hora e ao lugar do ataque dos
inimigos” (White House, 2002, p. 15).
Tal argumentação se utiliza de uma regressão histórica para apontar uma prática
legítima de autodefesa; identificar uma nova ameaça; e adaptar o conceito já existente
há anos a essa nova ameaça.
De forma geral, esses três pontos parecem sustentar a argumentação da
Estratégia ao apontar a necessidade de ataques preemptivos contra uma ameaça
iminente. Contudo, observando-se com mais detalhes, a NSS-2002 se apropria de
conceitos consagrados do léxico internacional e adiciona nuances que corrompem seu
significado original.
Um dos pontos a ser abordado é a definição de armas de destruição em massa
dada pela Estratégia. Através da expressão geral “ADMs”, a NSS-2002 congrega três
tipos de armas em uma única categoria: armas químicas, biológicas e nucleares.
Portanto, não haveria diferença prática entre um Estado que possui apenas armas
químicas se comparado a um Estado com tecnologia para a produção de bombas
atômicas. Segundo Panofski (1998), “conectar essas três classes de armas em uma única
categoria de ADMs eleva o status tanto de armas biológicas quanto de armas químicas”.
Colocar armas químicas e biológicas em um mesmo guarda-chuva que engloba também

36
as armas nucleares garante a essas tecnologias não nucleares o status de “armas
nucleares do homem pobre”18 (Panofski, 1998). Como coloca Goodnight:

[a sigla] ADMs – um acrônimo que conota o terror último – é


um símbolo útil que conglomera três ameaças distintas – armas
biológicas, nucleares e químicas – em um acrônimo que pode ser
usado de forma generalizada19 ao descrever as armas que o Iraque
possuía, tinha a possibilidade de possuir, ou poderia possuir no
futuro. Um termo tão abrangente, contudo, oculta o tamanho,
disponibilidade, e tipos específicos de ameaças enfrentados em
situações. Armas químicas, por exemplo, não são tão destrutivas
quanto bombas nucleares. Ainda assim, nas frases curtas do
argumento político, uma está associada à outra. Desta forma, o termo
“terrorista” também foi lançado para ocluir as diferenças entre
grupos seculares e religiosos que se encontram em guerra entre si.
“Terrorista” preencheu a lacuna do termo “inimigo”, e se segue que
todos os inimigos devem ser combatidos (Goodnight, 2006, p. 13).

Outro ponto que deve ser observado é a delimitação do limiar que justificaria a
ação militar contra um Estado. Assim como apontam Bush e Cheney nos seus discursos,
a NSS-2002 mais uma vez retoma a noção de uma nova ameaça que não pode mais ser
combatida pelos meios tradicionais da dissuasão e contenção: terroristas e Estados que
possuem ADMs (armas químicas, biológicas e nucleares) e que utilizarão essas armas
contra os Estados Unidos. Como as ADMs são “armas que podem ser facilmente
escondidas, lançadas secretamente, e usadas sem aviso” (White House, 2002, p. 15),
torna-se necessário “adaptar o conceito de ameaça iminente às capacidades e objetivos
dos adversários de hoje em dia” (White House, 2002, p. 15) e agir antes de um ataque
terrorista que causaria mortes de civis. Como aponta Goodnight: “A NSS-2002 parece
construir sobre a ideia de Kissinger que o limiar da iminência é a posse de armamento
não-convencional por uma potência hostil, e como tal, a posse de armas nucleares,
biológicas e químicas se encaixam na nova definição de guerra preemptiva”
(Goodnight, 2006, p. 10).
Contudo, a possibilidade e a capacidade de obtenção e produção de ADMs é um
limite extremamente volátil ─ especialmente sob a conceituação de ADMs da NSS-
2002, que engloba armas químicas e biológicas. Goodnight cita:

18
Poor man’s nuclear weapons, no original.
19
In omnibus fashion, no original. A expressão se refere a uma categoria abrangente a ponto de conter
objetos bastante distintos entre si, que ficariam separados em categorias diferentes caso uma análise mais
específica fosse instaurada.

37
“como uma usina química ou um laboratório podem ser convertidos
para a produção de armas, [então] qualquer Estado industrial
moderno pode ser acusado de ser uma potencial ameaça de armas
nucleares, biológicas, ou químicas. A questão se torna, crucialmente,
baseado em que evidências o conflito militar pode ser iniciado”
(Goodnight, 2006, p. 15-16).

Ao postular que a posse de ADMs compreende, quase necessariamente, uma


intenção de uso por parte de rogue states (“Atualmente, nossos inimigos veem as armas
de destruição em massa como armas de escolha”) (White House, 2002, p. 15), a NSS-
2002 relativiza o limiar para intervenção preemptiva. É dizer, o ônus da prova se torna
mais dependente da posse de armas de destruição em massa, e até mesmo no potencial
de posse de ADMs por parte de um Estado, do que de fato nas intenções de utilizá-las.
Por isso, a possibilidade de virtualmente qualquer Estado que se enquadra na definição
de rogue state adquirir ADMs já se torna limiar o suficiente para a intervenção. Como
aponta Goodnight:

A estratégia da “preempção” 20 é uma postura estratégica


desejável em um caso dado, à medida que um proponente está
convencido que lidar com as armas de destruição em massa de um
adversário é um imperativo seja agora ou depois21. Visto que os
custos de aguentar um first strike são grandes, e visto que os graus
políticos de liberdade diminuem à medida que os arsenais nucleares,
biológicos ou químicos de um inimigo crescem, o limiar de provas que
necessitaria um first strike é baixo. Falsos positivos são riscos que os
que buscam a ação preemptiva estão preparados para correr
(Goodnight, 2006, p. 13-14).

A Estratégia codifica as ações preemptivas de forma a colocar em primeiro lugar


a segurança do povo americano, e com o intuito de basear tais ações na necessidade e no
direito à autodefesa. “Uma política nacional fundada em definições tradicionais de
preempção ocupa o terreno elevado moral e político22 porque faz da guerra uma questão
de autodefesa, quando todas as outras alternativas já falharam” (Goodnight, 2006, p.10)
Por isso, a construção do novo limiar da iminência (a posse de ADMs) em
comparação com o custo de inação (o risco apresentado a civis americanos) diminui
consideravelmente o padrão de provas exigido para deflagrar uma ação militar. No caso
do Iraque, as acusações categóricas (“de forma simples, não há dúvidas que Saddam

20
Em aspas no original.
21
Now-or-later imperative, no original. Possui a conotação de ser um problema que possui um imperativo
de ação atualmente, e continuará possuindo esse imperativo mais tarde.
22
Moral and political high ground, no original. Está ligado à ideia de superioridade; no caso, possuir a
superioridade moral seria ter a legitimidade a seu lado.

38
Hussein atualmente possui armas de destruição em massa”, e “não há base na conduta
ou na história de Saddam Hussein para questionar qualquer uma das preocupações que
estou levantando essa manhã”) (Cheney, 2002) invertem o ônus da prova: não cabia a
Bush provar que Saddam possuía ADMs, mas sim cabia a Saddam provar que ele não
possuía armas de destruição em massa.
Devido à natureza furtiva da ameaça das ADMs, a NSS-2002 também relativiza
e obscurece a relação de proporcionalidade frente à nova ameaça. Segundo Goodnight:

O deslocamento do termo “iminência” também põe em perigo


uma limitação adicional, “proporcionalidade”, com um paradoxo
resultante similar. A preempção só é justificada até o ponto em que
um ataque prestes a acontecer é prejudicado, mas não é justificada na
extensão que a sua invocação é um pretexto transparente e self-
serving23 para lançar uma guerra geral24. Contudo, na NSS-2002, a
ideia de proporção é relativizada não à força apropriada usada para
agir preemptivamente contra o sucesso de um ataque em progresso,
mas aos custos de esperar e se tornar uma vítima. Os danos de
sustentar um first strike, se comparados aos danos colaterais de
eliminar os inimigos sombrios de um estado falho, criam um cálculo
que favorece fortemente a “preempção”25 agora ao invés de mais
tarde. Por isso, o limiar de evidência de posse e intenção, requisitado
para a “preempção” justificada, é substancialmente diminuído pela
nova doutrina (Goodnight, 2006, p. 11).

Nesse trecho, Goodnight aponta mais uma distorção na codificação da NSS-


2002: ao invés de focar na proporcionalidade de um ataque preemptivo para invalidar,
por exemplo, um ataque específico, a Estratégia coloca a proporcionalidade de um
ataque em termos relativos à inação estadunidense frente a um Estado com ADMs –
ameaças que devem ser combatidas com “o uso de cada ferramenta no nosso arsenal”
(White House, 2002, introdução). É dizer, dado que determinado Estado possui ADMs e
que esse Estado se utilizará delas contra a população civil dos EUA, um ataque
preemptivo com sucesso – isto é, que acaba com a ameaça iminente – só terá êxito
quando um Estado não mais possuir ADMs, ou não mais tiver a intenção de usá-las. Tal
raciocínio abre precedentes para justificar a exportação de democracia como
forma de apagar a ameaça do uso de ADMs, visto que um regime democrático não
utilizaria essas armas.

23
Que serve a si mesmo; pode ser traduzido como “um fim em si mesmo”. Será mantido em inglês ao
longo do texto.
24
All-out war, no original.
25
Em aspas no original.

39
Todavia, a Estratégia codifica erroneamente o termo “preempção”; o léxico do
governo Bush, visto em discursos e pronunciamentos oficiais, bem como na própria
formulação da NSS-2002, usa os termos “preempção” e “prevenção” a seu bel-prazer,
sem distinguir um do outro. Por isso, “a distinção entre preempção e prevenção é
borrada na NSS” (Keller & Mitchell, 2006, p.4). Segundo Rockmore:

A dificuldade em entender a ação militar “preemptiva”26 é


que a NSS 2002 utiliza esse termo em um sentido incomum e fora do
padrão. Essa revisão especificamente autoriza a suposta ação militar
preemptiva ao chamar de “preemptivo” o que, no uso normal, se
enquadra sob o título de “prevenção”. Como resultado dessa revisão,
existem duas mudanças puramente linguísticas, que, tomadas juntas,
resultam em uma doutrina que especificamente autoriza o que era
chamado de ação militar preventiva. Por um lado, a antiga distinção
entre os termos “preempção” e “preempção” (sic)27 é simplesmente
obliterada, já que “preempção” agora cobre o que antigamente era
chamado de preempção, bem como prevenção – isto é, tanto um
perigo claro e presente quanto um possível perigo futuro. Por outro
lado, como consequência do novo uso de “preempção”, “preempção”
substitui o que costumava ser chamado “prevenção” (Rockmore,
2006, p. 3)

O uso dessa nova definição de preempção, contudo, não é exclusivo à NSS-


2002: embora esse novo significado tenha sido mencionado por Bush e Cheney em seus
discursos, o Secretário de Defesa Donald Rumsfeld também não faz distinção entre os
dois termos. Como aponta Goodnight:

O que pode ser dito dessa declaração do Secretário de Defesa


Rumsfeld? 28“A prevenção é também – tem uma conotação que é algo
mais aceitável que preempção. [Ela] soa mais justa – se é que existe
tal palavra; que você está tentando prevenir algo de acontecer no
último minuto é a implicação – a conotação dessa palavra pra
mim?[sic]29” Essa aparente confusão sem malícia é seguida de uma
inversão Orwelliana precisa do Direito Internacional. “Preempção é
levemente diferente no sentido que sugere que se você tem um motivo
para acreditar que algo vai acontecer, pode acontecer, que é
notavelmente desagradável, e você faz uma decisão consciente de ir e
impedir que isso aconteça.” Na visão do Secretário, a preempção se
torna desvinculada do que é um evento iminente e se torna predicada

26
Entre aspas no original.
27
Embora o original conste como “preemption” and “preemption”, presume-se, pelo contexto da obra,
que Rockmore tinha o objetivo de diferenciar “preemption” and “prevention”
28
Goodnight tira essa declaração da transcrição de um briefing do Departamento de Defesa entre Donald
Rumsfeld e o General Pace, disponível em
http://222.defenselink.mil/news/Sep2002/t09262002_t0926sd.html
29
Por ser parte da transcrição de uma reunião do Depto. De Defesa, a citação tem um formato de diálogo,
como se Rumsfeld tivesse gaguejado ou mudado de ideia no meio da frase.

40
sobre o que “vai” ou “pode” acontecer em algum futuro indefinido,
“chame do que quiser”30. Portanto, a postura da administração Bush
funcionou para legitimar uma guerra [contra o] Iraque ao expandir a
definição de preempção e embaralhando a sua diferença da
prevenção.(Goodnight, p. 11-12, grifo do autor).

Não obstante, o uso indiscriminado e intercambiável dos termos “preempção” e


“prevenção” embaça a linha entre os dois conceitos. Segundo Rockmore:

A confusão acadêmica é justificada, visto que o termo


“preemptivo” está sendo usado, talvez deliberadamente, em uma
forma diferente do padrão, que estende e amplia a justificação para
os Estados Unidos entrarem em guerra contra adversários reais ou
imaginados. A consequência é virar de ponta-cabeça a ideia de que a
ação militar deveria ser apenas defensiva, e portanto, iniciada em
resposta a um ataque já em progresso, ou no mínimo que já está
impendente, prestes a ocorrer, em autorizar ataques a adversários em
resposta a nenhum ataque. O resultado, que é discutivelmente
buscado intencionalmente na doutrina revisada, é estender a
legitimidade que normalmente seria garantida a um ataque
preemptivo – entendida como a resposta a um perigo claro e presente
– a qual ninguém além de um pacifista normalmente questiona, ao
que normalmente seria tomado como um ataque preventivo, cuja
justificação não é automática, e que requer uma defesa caso-a-caso
altamente incomum, bem como uma justificativa geral. (Rockmore,
2006, p. 3, grifo nosso)

Portanto, a NSS-2002 constrói e reforça cuidadosamente um léxico particular da


administração Bush ─ não restrito apenas ao presidente, mas também difundido no alto
escalão do governo, antes, durante e depois da invasão do Iraque. Esse léxico tem como
objetivo trajar uma ação preventiva com vestimentas de ação preemptiva, se
apropriando da legitimidade que esse disfarce lhe daria, para utilizá-la de pretexto para a
invasão do Iraque, no horizonte imediato; bem como para ter uma margem de manobra
internacional para repetir esse tipo de ação no futuro. A construção da imagem do
caráter “preemptivo” da NSS-2002 foi um processo composto por diversas camadas.
Primeiro, a Estratégia constrói uma nova ameaça – rogue states e terroristas com
possibilidade de usar armas de destruição em massa. Essa ameaça não poderia ser
contida pelos meios antigos de dissuasão e contenção (“Conceitos tradicionais de
dissuasão não funcionarão contra um inimigo terrorista cujas táticas juradas são
destruição gratuita que tem inocentes como alvos; cujos supostos soldados buscam o

30
Goodnight tira essa citação de “Truman Got It Right”, de Michael Moore.

41
martírio na morte e cuja proteção mais potente é a falta de um Estado”) (White House,
2002, p. 15).
Segundo, já que “os Estados Unidos não podem mais contar apenas com uma
postura reativa, como fizemos no passado” (White House, 2002, p. 15), “nós devemos
estar preparados para impedir rogue states e seus clientes terroristas antes que eles
possam ameaçar ou usar armas de destruição em massa contra os Estados Unidos e
nossos aliados e amigos” (White House, 2002, p.14). É dizer, a Estratégia invoca uma
necessidade de reagir antes de um ataque em solo americano, pois tal ataque seria
devastador para o povo e a nação.
Terceiro, a Estratégia recorre ao termo “armas de destruição em massa”,
conceituado pela administração Bush como englobando armas químicas, biológicas e
nucleares. Essa definição eleva o status de armas não-nucleares, pois as coloca no
mesmo pedestal que as bombas atômicas. Essa conceituação é importante, pois:

A flexibilidade retórica proporcionada pela categoria geral


“armas de destruição em massa” permitiu que os oficiais da
administração Bush apoiassem alegações de uma ameaça de
“ADMs” iraquiana (completa com a imagem nefasta de um
“cogumelo atômico”31) ao apontar para evidência de um possível
desenvolvimento de armas químicas (Keller & Mitchell, 2006, p. 9).

O ponto levantado por Keller & Mitchell é: categorizar armas biológicas,


químicas e nucleares em um só acrônimo “eleva o status tanto de armas biológicas
quanto de armas químicas” (Panofski, 1998). Por isso, a conceituação abrangente de
ADMs dada pela NSS-2002 exagerava qualitativamente o arsenal iraquiano: ao apontar,
com base em evidências de armas químicas e biológicas, que o Iraque possuía armas de
destruição em massa, atrelou-se a imagem do país à possível posse de armas nucleares.
Quarto, o caráter difuso da ameaça apresentada por terroristas e tiranos expunha
a necessidade de “adaptar o conceito de ameaça iminente às capacidades e objetivos dos
adversários de hoje em dia” (White House, 2002, p. 15). Uma vez que as ADMs –
“armas que podem ser facilmente escondidas, lançadas secretamente, e usadas sem
aviso” (White House, 2002, p. 15) – eram uma nova ameaça oculta, era necessário
alterar os motivos que justificariam uma ação preemptiva. Esse limiar se aproveita do
caráter fatalista da Estratégia e da relativização do ônus da prova, posto em termos de

31
Refere-se à forma da explosão de uma bomba atômica, que tem um formato parecido com um
cogumelo. Mushroom cloud, no original.

42
possíveis danos ao povo americano. Assim, a Estratégia postula esse novo limiar com
base no conceito de autodefesa – que, segundo Goodnight, lhe transfere uma
“superioridade moral e política” (Goodnight, 2006, p.10).
Quinto, a Estratégia busca utilizar prevenção e preempção de forma
intercambiável. Essa não-diferenciação está presente não só na NSS-2002, mas também
em discursos e comunicados de vários oficiais do governo – incluindo, por exemplo, o
próprio presidente, o vice-presidente e o Secretário de Defesa. De fato, Keller &
Mitchell (2006) apontam que “ao usar os termos ‘preemptivo’ e ‘preventivo’ quase
intercambiavelmente, o Secretário de Defesa Donald Rumsfeld enevoou ainda mais essa
distinção” (Keller & Mitchell, 2006, p.4).
Shapiro (2003) distingue a preempção e a prevenção na administração Bush:

Apesar da administração ter caracterizado sua nova abordagem como


‘preemptiva’, é mais acurado descrevê-la como autodefesa
‘preventiva’. Ao invés de tentar agir preemptivamente contra ameaças
específicas e iminentes, o objetivo é prevenir que ameaças mais
generalizadas se materializem” (Shapiro, 2003, p. 599)

Por fim, Rockmore aponta:

Contudo, a guerra ‘preemptiva’, como a NSS-2002 a compreende, e


que é de fato uma forma de guerra preventiva, não é a maneira mais
adequada de defender a democracia americana, nunca é moralmente
justificável, e, por essa razão, não deve nunca ser permitida de
ocorrer (Rockmore, 2006, p. 13).

A NSS-2002, portanto, é construída sobre um arcabouço neoconservador, que


sofreu mutação com o fim a Guerra Fria e retornou após o ataque às Torres Gêmeas. Por
isso, ela está embebida em conceitos e valores neoconservadores, como a necessidade
de uma postura ativa no cenário internacional; o desejo universal pela democracia; o
apreço pela ação unilateral; a importância do poder militar; e, mais importante, a
possibilidade de efetuar uma mudança de regime, mesmo que por meio da força, em
nome da segurança nacional americana e global.

43
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve a função de analisar as ações do governo Bush,


entendendo as normas, pensamentos e fatores que condicionaram a postura
estadunidense após a Guerra Fria. Para isso, apresentou-se o contexto histórico após a
queda da União Soviética e a influência desse contexto no pensamento neoconservador;
também foram expostos alguns temas de política externa importantes para o
neoconservadorismo, e como essa forma de pensamento analisa e debate tais temas.
Também foram analisados alguns princípios presentes no discurso dos três primeiros
presidentes americanos após a Guerra Fria.
Além disso, o trabalho tem o objetivo principal de compreender o papel do
discurso da administração Bush como condicionador, postulador e defensor da postura
dos Estados Unidos frente à ameaça do terrorismo, dos rogue states e das armas de
destruição em massa. Por isso, se expôs o discurso e o léxico do governo Bush em três
pontos de inflexão: o discurso de Bush na academia militar de West Point, em 2002; o
discurso do vice-presidente Cheney na convenção dos Veteranos de Guerras
Estrangeiras, também em 2002; e a Estratégia de Segurança Nacional de 2002 (NSS-
2002).
O contexto histórico do governo Bush I é vital para entender o governo de
George W. Bush. À época, o neoconservadorismo tinha um foco especial pela virtude
(entendida, em termos simples, como a capacidade política de utilizar os valores
americanos para alcançar os objetivos nacionais dos EUA) do presidente Reagan, que
viam em postura mais agressiva a causa do fim da Guerra Fria. Essa perspectiva
“comprime a Guerra Fria a uma única década” (Brzezinski, 2007, p. 36). De fato, o
culto neoconservador a Reagan apresenta uma característica dessa corrente de
pensamento. Segundo ela, o líder deve ser virtuoso a ponto de atingir os objetivos
políticos estadunidenses; distinguir com sucesso os amigos dos inimigos; antecipar os
eventos antes que eles ocorram; e moldar o ambiente para prevenir essas ameaças
(Teixeira, 2010, p. 46-47).
O status de “única superpotência” após a Guerra Fria tirou um ponto importante
do neoconservadorismo – um inimigo palpável e concreto que servia de foco
mobilizador (Teixeira, 2010). De fato, a importância desse foco era tamanha que
Podhoretz (1996) chegou a declarar a morte dessa corrente de pensamento. Durante a
ausência desse foco, portanto, o neoconservadorismo se concentrou em formular

44
estratégias e pensamentos que concerniam ao novo papel estadunidense após a Guerra
Fria. O conjunto dessas ideias prega a necessidade de um maior protagonismo
americano e da manutenção da primazia dos Estados Unidos no sistema internacional.
Para isso, seria necessário aumentar o papel dos EUA e simultaneamente evitar o
surgimento de qualquer grande potência que possa ameaçar essa supremacia. Essa
formulação está ligada à noção de que os Estados Unidos, por causa de seus valores
democráticos inerentes e pela superioridade no sistema internacional, possuem mais
capacidade de estruturar alguma ordem internacional. Com a queda das Torres Gêmeas,
essa nova roupagem desenvolvida para o neoconservadorismo foi utilizada contra o
novo inimigo que surgiu: o terrorismo.
Também se percebeu a postura intervencionista neoconservadora quanto a
alguns temas importantes de política externa. Percebe-se um forte internacionalismo
construído “a partir da crença que os Estados Unidos têm a responsabilidade, a
capacidade e o interesse na construção de uma ordem internacional que satisfaça seus
objetivos” (Teixeira, 2010, p. 55). Nota-se também uma descrença nas organizações
internacionais, porque essas teriam pouca legitimidade (visto que dão voz a países não
democráticos) e que servem de contrapeso às ações estadunidenses de política externa.
Além disso, o neoconservadorismo aborda uma preferência explicitamente declarada
pelo unilateralismo (Teixeira, 2010, p. 59), por causa da descrença nas organizações
internacionais. Por isso, a ênfase neoconservadora ao poder militar é dada como
ferramenta para sustentar e prolongar o protagonismo americano no sistema
internacional.
O pensamento neoconservador aponta também um papel forte da democracia
como imperativo moral, pois essa possui valores universais e aplicáveis a qualquer
sociedade no mundo, valores presentes na própria essência dos Estados Unidos e que,
por sua universalidade, não se limitam às fronteiras nacionais. Além disso, o
neoconservadorismo se aproveita das teorias da paz democrática – de forma simples, a
noção de que democracias liberais não lutam entre si – para postular os impactos
positivos dessa forma de governo para a segurança nacional americana e para a
segurança global. Assim, o neoconservadorismo vincula a existência e a difusão de
democracias aos interesses nacionais.
Esses ideais estão, em certa medida, presentes nos discursos dos três presidentes
após a Guerra Fria, como aponta Castro Santos (2010). De fato, três temas aparecem
com destaque nos pronunciamentos desses presidentes: a universalidade dos valores da

45
democracia; a noção de que democracias não lutam entre si; e a vinculação entre
democracia no mundo e a segurança nacional estadunidense e global. Por isso, aponta
Castro Santos (2010), os Estados Unidos carregariam consigo um propósito maior: a
missão de espalhar a democracia para o mundo.
Esses temas são percebidos novamente no discurso da administração Bush: o
pronunciamento presidencial na academia de West Point, o discurso de Cheney aos
Veteranos de Guerras Estrangeiras, e a Estratégia de Segurança Nacional refletem a
nova postura de liderança e proatividade estadunidense pregada pelo pensamento
neoconservador.
Todavia, o discurso de Bush em West Point marca o começo de uma “campanha
de três pontas” (Goodnight, 2006, p. 4) com destino ao Iraque. A importância desse
discurso jaz na manifestação e na construção de uma nova ameaça – rogue states e
terroristas com acesso a armas de destruição em massa e intenção de usá-las contra o
solo americano. “Mas novas ameaças também requerem um novo pensamento”, aponta
o presidente.
Por isso, Bush conclama uma postura estadunidense mais ativa na política
externa. Não uma postura reativa ou defensiva, mas sim uma postura que ataque antes
que as ameaças se apresentem. “Se esperarmos que as ameaças se materializem por
completo, teremos esperado demais” (Bush, 2002).
Essa visão é partilhada por Cheney ao dizer que “os riscos da inação são muito
maiores que os riscos da ação” (Cheney, 2002). Cheney, contudo, vai além do postulado
por Bush e afirma categoricamente: “não há dúvidas que Saddam Hussein agora possui
armas de destruição em massa” (Cheney, 2002). Cheney vilifica Saddam e o coloca
como um engenhoso e ardiloso adversário, capaz de enganar até mesmo os inspetores da
ONU. Com a posse de ADMs, Saddam seria uma ameaça à segurança nacional. Por
isso, aponta Cheney:

“a mudança de regime no Iraque traria consigo um número de


benefícios à região. Quando as ameaças mais graves forem
eliminadas, os povos amantes de liberdade da região terão uma
chance de promover os valores que poderiam trazer a paz
duradoura” (Cheney, 2002).

Os princípios postulados nesses dois discursos são manifestados de forma ainda


mais grandiosa na formulação da Estratégia de Segurança Nacional de 2002. A
Estratégia faz referência ao caráter universal dos valores democráticos; à nova ameaça,
46
composta por rogue states e terroristas com armas de destruição em massa; à
necessidade de uma postura ativa dos Estados Unidos, mesmo que de forma unilateral,
para acabar com essa nova ameaça; e à exportação de democracia (“por fim, os Estados
Unidos utilizarão esse momento de oportunidade para estender os benefícios da
liberdade ao longo do mundo”) (White House, 2002, introdução).
Contudo, a codificação da Estratégia possui algumas peculiaridades em seu
léxico particular: no texto da NSS-2002, adiciona-se nuances que pervertem o
significado original dos conceitos usados na Estratégia. Um dos exemplos é a
conceituação de armas de destruição em massa (ADMs): para a administração Bush, a
categoria de ADMs compreende armas químicas, biológicas e nucleares. Em função
dessa abrangente classificação, ao dizer que o Iraque possuía ADMs (por causa das
armas químicas), a administração Bush deu a entender que a ameaça era muito maior e
“completa com a imagem nefasta de um ‘cogumelo atômico’” (Keller & Mitchell, 2006)
do que de fato seria.
A conceituação de ADMs não foi o único termo cujo significado foi alterado
pela Estratégia: a NSS-2002 utiliza os termos “preempção” e “prevenção” de forma
indiscriminada, o que acaba borrando a distinção entre os dois (Keller & Mitchell, 2006,
p. 4). Contudo, é importante distinguir uma da outra, pois a ação de legítima defesa
preemptiva (ação relativa a um perigo “claro e presente”) (Rockmore, 2006, p. 2) é
legitimada pelo Direito Internacional. Já a ação preventiva, apontada como uma ação
em resposta a um perigo futuro, porém não iminente (Rockmore, 2006, p. 2), não possui
legitimidade internacional. Por isso, a NSS-2002 utiliza os dois termos
intercambiavelmente, com o objetivo de enevoar a distinção entre os dois e realizar uma
ação preventiva contra o Iraque enquanto se aproveita do manto protetor da
legitimidade, garantido pela preempção.
Portanto, o léxico do governo Bush condicionou um direcionamento da política
externa estadunidense para o Iraque. As ideias por trás desse léxico são fortemente
neoconservadoras, e fazem referência a diversos temas apontados por Teixeira (2010).
Discutivelmente o mais importante dos temas é a mudança de regime em Estados não
democráticos, mesmo que pela força, como parte da política internacional e da
segurança nacional americana, bem como da segurança global. Ao apontar Saddam
Hussein por nome como uma ameaça, e ao demandar uma postura ativa e unilateral (se
preciso), a NSS-2002 busca abrir precedentes de legítima defesa para efetuar uma
mudança de regime no Iraque em nome da segurança nacional americana.

47
Essa noção, portanto, tem influência forte do neoconservadorismo,
especialmente da Orientação do Planejamento de Defesa de 1992, no que propõe um
papel ativo dos Estados Unidos em escala global, baseado na grande virtude da América
como líder mundial e dos benefícios que o exercício dessa superioridade traria ao
sistema internacional.
Sendo assim, o resultado do presente trabalho demonstra que a retórica do
governo Bush tem forte influência neoconservadora e permitiu a invasão do Iraque com
a intenção de mudar o regime de Saddam Hussein. O discurso do governo Bush também
visa a disfarçar a invasão preventiva do Iraque sob o manto de ação preemptiva,
tomando emprestada a legitimidade deste último tipo de ação.

48
REFERÊNCIAS

Bush, George W. “Address to the Nation”. September 20, 2001,


http://presidentialrhetoric.com/speeches/09.20.01.html
________________. “Commencement Address at the United States Military Academy
at West Point”, 2002, http://www.nytimes.com/2002/06/01/international/02PTEX-
WEB.html
________________. “Update in the War on Terror”, 2003,
http://presidentialrhetoric.com/speeches/09.07.03.html
________________. “State of the Union Address”, 2004,
http://presidentialrhetoric.com/speeches/01.20.04.html
Brzezinski, Zbigniew. Second Chance: Three Presidents and the Crisis of American
Superpower. New York: Basic Books, 2007.
Castro Santos, Maria Helena. “Exportação de democracia na política externa
norteamericana no pós-Guerra-Fria: doutrinas e o uso da força”. Revista Brasileira de
Política Internacional, 53,1, (2010),
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-73292010000100009
Cheney, Richard. “Remarks at the Opening Session of the 103rd National Convention
of the Veterans of Foreign Wars”, 2002,
http://www.theguardian.com/world/2002/aug/27/usa.iraq
Department of Defense. “Defense Planning Guidance”. Washington, DC: 1992,
http://nsarchive.gwu.edu/nukevault/ebb245/doc03_extract_nytedit.pdf
Fukuyama, Francis. “The End of History”. The National Interest, 16 Summer, 1989,
http://www.wesjones.com/eoh.htm
Freedman, Lawrence. Deterrence. Cambridge: Polity Press, 2004.
Gilson, Thomas. "Just War and Preventive Force Doctrines: An Ethical Analysis of
Opposites," SPNHA Review: Vol. 7: Iss. 1, Article 2,
http://scholarworks.gvsu.edu/spnhareview/vol7/iss1/2
Goodnight, G. Thomas. “Strategic Doctrine, Public Debate and the Terror War”,
2006,
http://mercury.ethz.ch/serviceengine/Files/ISN/46186/ipublicationdocument_singledo
cument/0033de26-0e34-4a69-942d-0bfd1bdf54fb/en/Goodnigh_Strategic_Docl.pdf

49
Keller, William W., e Gordon R. Mitchell. Hitting first: preventive force in U.S.
security strategy. Pittsburgh, Pa: University of Pittsburgh Press, 2006.
Kissinger, Henry. Diplomacy. New York: Simon & Schuster, 1994. Krauthammer,
Charles. “A New Type of Realism”. The National Interest, Nova York: The Nixon
Center, inverno 2002/2003.
Layne, Christopher. “Kant or Cant: The Myth of the Democratic Peace”, 2000,
http://web.stanford.edu/class/polisci243b/readings/v0002542.pdf
Nações Unidas. “Carta das Nações Unidas”, 1945,
http://unicrio.org.br/img/CartadaONU_VersoInternet.pdf
Neves, André Luiz Varella. “Governo George W. Bush (2001 – 2004): Uma análise
geopolítica das Guerras do Afeganistão e do Iraque”. Tese apresentada à Faculdade
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Doutor em Ciência Política, 2010.
Panofski, Wolfgang. “Dismantling the Concept of ‘Weapons of Mass
Destruction.’”Arms Control Today, 1998,
https://www.armscontrol.org/act/1998_04/wkhp98
Podhoretz, Norman. “Neoconservatism: a Eulogy”, 1996,
https://www.aei.org/publication/neoconservatism-a-eulogy/
Rockmore, Tom. “On Justifying the First Blow”. Ridgway Center Working Papers, 9,
2006.
https://www.ridgway.pitt.edu/Portals/1/pdfs/Publications/Rockmore.pdf
Shapiro, Miriam. “Iraq: The Shifting Sands of Preemptive Self-Defense,” American
Journal of International Law, 97, jul, (2003).
Teixeira, Carlos Gustavo Poggio. O Pensamento Neoconservador em Política Externa
nos Estados Unidos. São Paulo:Unesp, 2010.
White House. “National Security Strategy of the United States of America”.
Washington, DC: 2002, www.state.gov/documents/organization/63562.pdf

50

You might also like