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Niterói
Abril de 2016
Universidade Federal Fluminense
Instituto de Estudos Estratégicos
Graduação em Relações Internacionais
Niterói
Abril de 2016
DO ONZE DE SETEMBRO À INVASÃO DO IRAQUE:
Uma Análise da Política Externa do Governo George W. Bush
Aprovada por:
Niterói
Abril de 2016
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, gostaria de agradecer à minha mãe, que me criou com todo o amor que
ela pôde me dar e mais um pouco.
Em segundo lugar, gostaria de agradecer ao meu orientador, Prof. Vágner Camilo
Alves, cujas brilhantes sugestões fizeram deste trabalho o que é.
Em terceiro lugar, gostaria de mostrar meu infinito apreço aos meus amigos e
companheiros de curso. Há um pouco de cada um de vocês por trás do esforço que deu
origem a esse trabalho. Torna-se necessário destacar a colaboração de Mariana Guimarães
pelos valiosos insights e pela paciência, não necessariamente nessa ordem.
Finalmente, gostaria de agradecer à minha família, em especial a minha irmã, por todo o
apoio que recebi.
A todos os que me auxiliaram nesse trabalho,
Carpe… Hear it? Carpe… carpe diem. Seize the day, boys. Make your lives extraordinary.
- Muse
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................................1
Unilateralismo...................................................................................................................9
Democracia......................................................................................................................10
Poder Militar....................................................................................................................11
Os três princípios.............................................................................................................14
A Missão Americana........................................................................................................16
Considerações Finais..............................................................................................................44
Referências..............................................................................................................................49
RESUMO
Inserido na grande área da Política Internacional, o presente trabalho tem o objetivo de analisar as
manobras políticas que permitiram a invasão preventiva americana ao Iraque sob a égide de ação
preemptiva. A hipótese que buscamos defender é de que o léxico particular da administração Bush,
manifesto em discursos e em documentos oficiais, busca gerar precedentes para uma mudança de
regime no Iraque e pegar emprestada a legitimidade de uma ação preemptiva. Para isso, a
metodologia utilizada foi a análise de discurso. Por fim, concluiu-se que os documentos oficiais e
discursos da administração Bush de fato possuíam uma influência neoconservadora e que buscavam
estabelecer o Iraque como ameaça à segurança nacional americana, gerando justificativas para uma
invasão do país.
Niterói
Abril de 2016
ABSTRACT
The current work aims to analyse the political manoeuvres which allowed the preventative
invasion of Iraq under the cloak of preemptive action. The hypothesis we seek to defend is that
the Bush administration’s particular lexicon, manifested in speeches and official documents,
seeks to enable regime change in Iraq and aims to borrow the legitimacy granted to preemptive
actions. To that end, the methodology used has been the analysis of speeches and documents
elaborated during the George W. Bush government. It has been concluded that the speeches and
documents made by the Bush administration indeed had strong neoconservative influence;
moreover, the reasoning behind such documents sought to establish Iraq as a threat to American
national security and to generate precedents for an invasion of the country.
Niterói
Abril de 2016
INTRODUÇÃO
2
CAPÍTULO I
Uma Análise Histórica do Neoconservadorismo
1
Todas as citações em inglês, especialmente de discursos e documentos do governo, serão traduzidas por
nós, salvo quando expresso o contrário.
3
legitimava por uma reinterpretação histórica que serve a si mesma2 (Brzezinski, 2007, p.
34).
Com o colapso da União Soviética e o triunfalismo subsequente, o
neoconservadorismo passou a buscar no passado recente as respostas para as perguntas
quanto ao futuro imediato da América, colocando a crença de que o fim da URSS teria
sido obra da virtude3 do presidente Reagan. Contudo, o culto neoconservador a Reagan,
no imediato pós-Guerra Fria, se apropria de parte da História: atribuir a derrota do
comunismo exclusivamente à virtude de Reagan “comprime a Guerra Fria a uma única
década” (Brzezinski, 2007, p. 36) e menospreza os esforços empreendidos desde o fim
da Segunda Guerra.
De fato, a perspectiva neoconservadora coloca importância vital na existência de
uma liderança capaz de representar essa virtude tanto no plano doméstico como no
internacional. Para os neoconservadores, o líder deve ser virtuoso a ponto de atingir os
objetivos políticos estadunidenses; distinguir com sucesso os amigos dos inimigos;
antecipar os eventos antes que eles ocorram; e moldar o ambiente para prevenir essas
ameaças (Teixeira, 2010, p. 46-47, grifo do autor).
Para o neoconservadorismo, existe um culto a um arquétipo de líder virtuoso,
capaz de utilizar os valores e ideais estadunidenses como substrato para a consecução de
objetivos nacionais. Segundo Teixeira (2010 p. 47), exemplos desses líderes oscilam;
Kagan e Kristol, dois expoentes do pensamento neoconservador e fundadores do think
tank Project for the New American Century (PNAC), apontam para Reagan; Wolfowitz,
vice-secretário de Defesa no primeiro mandato de George W. Bush e associado ao
PNAC, cita Truman; e Theodore Roosevelt é outro exemplo dado por Kagan e Kristol.
Os neoconservadores de forma geral parecem aplaudir a postura mais
incendiária de Reagan, que rompeu a détente e chegou a caracterizar a União Soviética
como o “Império do Mal”4. Como coloca Kissinger, “[Reagan] havia sido eleito em
reação a um período de aparente recuada americana para afirmar as verdades
tradicionais do excepcionalismo americano” (Kissinger, 1994, p. 763).
Todavia, o fim da Guerra Fria tirou da ideologia neoconservadora um inimigo
valioso: o comunismo, seu principal foco. Podhoretz (1996), que se auto-intitula um
2
Self-serving, no original.
3
Por “virtude”, atribui-se o sentido utilizado por Teixeira (2010) ao pontar que “entende-se como virtude
um conjunto de valores que determinada sociedade – no caso a norte-americana – entende como
modelares”.
4
A alcunha foi atribuída em um discurso de 8 de março de 1983, realizado em Orlando, Flórida, que está
disponível no site da Reagan Foundation (www.reaganfoundation.org).
4
paleoconservador, chegou a declarar a morte do neoconservadorismo. Segundo o autor,
com o fim da URSS, o neoconservadorismo perdeu o seu apelo de “intervencionismo
expansivo” que cresceu de paixões anticomunistas no ápice da Guerra Fria (Podhoretz,
1996). Mas a morte do pensamento neoconservador, para Podhoretz, “parece mais uma
ocasião para celebração do que para tristeza, pois o que matou o neoconservadorismo
não foi a derrota, mas sim a vitória” (Podhoretz, 1996).
Esse momento é definido com precisão por Teixeira (2010):
Portanto, ao se voltarem para seu próprio país, delimitando as ações futuras dos
EUA:
5
Defense Planning Guidance, no original.
5
p. 81). Essa visão está presente principalmente na preocupação com apagar uma
possível ameaça a regiões geopoliticamente importantes. Como aponta o documento:
6
Expressão latina que pode ser traduzida como “o maior bem” ou “o bem supremo”.
6
identificação de seus próprios interesses com os interesses dos outros,
o eu levaria o país a relacionar a prosperidade e a segurança
internacionais com as suas próprias. Assim, Kagan considera que “o
domínio norte-americano” é de crucial importância “para a
preservação de um nível razoável de segurança e prosperidade
internacionais” (Kagan, 1998, p. 34). Dessa forma, na argumentação
do autor, seria desejável e natural, dada a configuração do sistema
internacional, que os Estados Unidos perseguissem ativamente uma
política que visasse à manutenção de sua posição de primazia
internacional (Teixeira, 2010, p. 33).
7
Internacionalismo não Institucional
Se colocássemos uma divisão entre “internacionalismo” e “isolacionismo”, o
pensamento neoconservador certamente estaria contido no primeiro espectro. Essa
característica se torna ainda mais evidente ao se comparar as discussões tidas no pós-
Guerra Fria, mencionadas no capítulo anterior. O neoconservadorismo pregava um
protagonismo americano como superpotência global; para isso, seria essencial o
envolvimento com assuntos externos. Não apenas isso, mas também seria de extrema
importância que os Estados Unidos tivessem a capacidade de prever e moldar o
ambiente internacional de acordo com seus interesses. Como coloca Teixeira:
8
compostas por alguns Estados que não são democracias (Teixeira, 2010, p. 57). Essa
crítica se tornou ainda mais veemente após o 11 de setembro. A retórica do governo
George W. Bush era de proatividade; por isso, o processo de deliberação do Conselho
de Segurança da ONU passou a ser visto como um obstáculo à própria segurança
nacional americana (Teixeira, 2010, p. 59).
Unilateralismo
A preferência pelo unilateralismo no discurso neoconservador é explicitamente
declarada (Teixeira, 2010, p. 59). Contudo, a literatura neoconservadora faz questão de
distinguir o unilateralismo usado pelos isolacionistas do chamado “novo
unilateralismo”. Para distinguir essa postura neoconservadora:
9
Democracia
A relação dos Estados Unidos com a Democracia é intrínseca e está
profundamente enraizada na cultura da “terra dos livres e lar dos bravos”7. A relação
cultural dos americanos com a democracia é única. No campo da política externa, essa
relação não é diferente. Como aponta Teixeira (2010):
Os neoconservadores, por sua parte, enfatizam de forma mais
vigorosa uma ligação intrínseca entre a promoção da democracia e o
interesse nacional norte-americano, a partir do entendimento de que
essa estratégia é essencial para garantir a segurança dos Estados
Unidos e reforçar sua supremacia no cenário internacional. Portanto,
a partir da conexão entre democracia e segurança, os
neoconservadores encaram a primeira sob dois aspectos
fundamentais. Primeiro, como um imperativo moral (...). Segundo,
eles avaliam que a promoção da democracia deve ser parte crucial da
estratégia de segurança norte-americana, pois essa seria não só um
imperativo moral, mas também “a melhor forma de assegurar a
manutenção de uma ordem mundial pacífica e próspera” (Teixeira,
2010, p. 64-65).
10
aumenta a segurança em escala nacional e até mesmo global. Como explica Teixeira
(2010):
Poder Militar
A consideração do poder militar como um plano de ação sempre viável está
ligada ao não institucionalismo do pensamento neoconservador: a descrença nas
instituições como capazes de sustentar a ordem e a segurança empurra o pensamento
neoconservador em direção ao uso da força, por este ser uma postura mais certa9.
Após a Guerra Fria, esse tema recebeu bastante ênfase por causa dos debates
ocorridos dentro do próprio neoconservadorismo relativos ao papel dos EUA no novo
mundo unipolar. De forma gera, o pensamento neoconservador pregava a necessidade
de sustentar a superioridade militar americana, evitando o surgimento de uma outra
grande potência. Além disso, o neoconservadorismo apontava a necessidade de moldar
o ambiente internacional aos interesses americanos.
Essa ênfase se intensificou ainda mais após os atentados terroristas de 11 de
setembro, que reforçaram a postura unilateral do neoconservadorismo frente à nova
ameaça do terrorismo. Contudo, esse ponto será abordado em profundidade mais à
frente.
Sendo assim, a posse do presidente Reagan, em 1981, marcou o começo de uma
postura mais combativa frente à União Soviética, em detrimento da détente que
perdurava até então. A característica mais marcante de Reagan foi a obstinação em
perseguir o comunismo, apresentando uma “visão apocalíptica do conflito, tornada mais
suportável pela inevitabilidade histórica do resultado” (Kissinger, 1994, p. 768). Graças
9
“certa”, no sentido empregado, não tem conotação moral, mas possui uma conotação de ser mais preciso
ou previsível. Está empregada em um sentido utilitário.
11
a seu zelo com o combate ao comunismo e à sua postura mais agressiva frente à União
Soviética, Reagan teve grande aceitação dos neoconservadores; de fato, escritores dessa
corrente de pensamento, como Kagan e Kristol, louvavam a virtude e a liderança do
presidente.
Essa apologia veemente a Reagan demonstra um aspecto comum na filosofia
política do neoconservadorismo: a importância de um líder de caráter, capaz de
distinguir com sucesso os amigos dos inimigos e de usar uma virtude inata a todo
americano para a consecução dos objetivos políticos. Entretanto, o pensamento
neoconservador após a Guerra Fria perdeu o seu foco principal – o anticomunismo. Na
ausência deste foco, portanto, o neoconservadorismo foi declarado “morto” por
Podhoretz (1996), e seus restos mortais foram adaptados em uma doutrina que pregava
a superioridade militar americana; a manutenção da liderança americana através de
empecilhos ao surgimento de outra grande potência ou de outro rival significativo,
como fora a URSS nos anos anteriores; e a uma postura “imperial” americana, pautada
na virtude e eficácia dos Estados Unidos como líder político planetário. Com os ataques
de 11 de setembro, o neoconservadorismo encontrou mais uma vez um inimigo – o
terrorismo – e incorporou o que fora desenvolvido após a Guerra Fria em seu discurso.
Também foram apontados quatro temas de política externa no
neoconservadorismo: o internacionalismo não institucional, o unilateralismo, a
democracia e o poder militar. Tais temas foram selecionados por Teixeira (2010) e estão
presentes constantemente na política externa para o pensamento neoconservador.
O internacionalismo não institucional se liga à ideia de que o um ativo papel de
intervenção no cenário global é necessário para potencializar e prolongar a
superioridade americana. Por esse motivo, os neoconservadores veem as instituições
internacionais como empecilhos à primazia americana. Além disso, a legitimidade e a
eficácia das organizações são questionadas, pois elas dão voz a Estados não
democráticos – o que representa um motivo de conflito, visto que a democracia é um
valor vital para o neoconservadorismo.
A opção neoconservadora pelo unilateralismo tem como função maximizar o
espaço de ação dos Estados Unidos no mundo, expandindo e prolongando seu papel de
superpotência. A preferência pelo unilateralismo no neoconservadorismo é
explicitamente declarada (Teixeira, 2010, p. 59).
O importante papel da democracia para a perspectiva neoconservadora é oriundo
da teoria da paz democrática e apresenta dois pontos: primeiro, o desejo de viver em
12
liberdade é um valor universal; segundo, regimes democráticos não lutariam entre si.
Por isso, exportar a democracia seria benéfico para qualquer sociedade em qualquer
tempo. Nesse ponto, atrela-se a exportação da democracia com a segurança coletiva.
Por fim, a importância dada ao poder militar pelo pensamento neoconservador
tem como objetivo prolongar a posição privilegiada dos Estados Unidos no sistema
internacional – a posição de única superpotência militar.
13
CAPÍTULO II
Princípios e Pilares da Política Externa Americana Pós-Guerra Fria
Os três princípios
Com o fim da Guerra Fria, a ideia do triunfalismo americano se propagou
vorazmente pelo mundo. Talvez o maior exemplo esteja em “O Fim da História”, de
Francis Fukuyama, que aponta a vitória do capitalismo sobre o socialismo como
representante de uma superioridade da democracia liberal, e toma como base a
teleologia para indicar a democracia liberal como último estágio na escala do progresso.
Mais importante, porém, é a relação entre democracia e segurança, que surge com
frequência após a queda da União Soviética. Após uma análise qualitativa e quantitativa
dos discursos de presidentes e secretários dos três primeiros governos após a Guerra
Fria (Castro Santos, 2010), percebe-se três pilares para a política externa americana
durante esse período:
14
A promoção da democracia faz o mundo mais seguro e mais
próspero para os Estados Unidos. Aqui democracia é ligada à
segurança e aos interesses americanos
Missão: Os americanos estão imbuídos de uma missão
perante a humanidade: trazer-lhe liberdade e democracia. (Castro
Santos, 2010)
15
Segundo princípio: as democracias não lutam entre si
A noção de que as democracias são um sistema de governo que dificultam e até
mesmo impedem a existência de conflito é oriunda do pensamento kantiano. Com o fim
da Guerra Fria, a noção de paz democrática ganhou mais força e norteou governos,
discursos e ações.
O segundo ponto pode ser brevemente resumido em: as democracias, por não
guerrearem entre si, são um sistema de governo benéfico para o mundo inteiro. Aqui se
une a democracia com a segurança global. Esse ponto complementa o primeiro, unindo
o apelo universal da democracia com uma utilidade universal para ela.
O pensamento neoconservador coloca ênfase no tipo de regime como
determinante da confiabilidade de um Estado e possui a crença de que “a liberdade
individual é um absoluto moral, e um sistema de governo que realça a liberdade
individual é moral e praticamente superior a todos os outros” (Selden, 2004, apud
Teixeira, 2010, p. 65). Por isso, o neoconservadorismo vê as democracias liberais como
confiáveis, enquanto Estados não democráticos são percebidos com suspeita.
A Missão Americana
A amálgama entre o desejo supostamente universal pela democracia e a utilidade
da democracia em escala global dá origem à chamada “missão” estadunidense: espalhar
a democracia. Torna-se um dever estadunidense difundir as benesses da liberdade e da
democracia para todo o mundo. George W. Bush faz referências constantes a essa
“missão”, tanto antes quanto depois da invasão do Iraque, como visto nesse discurso de
20 de setembro de 2001:
16
essa missão vem das nossas crenças mais básicas. Não temos desejo
de dominar, nem ambições imperiais. O nosso objetivo é uma paz
democrática, uma paz fundada sobre a dignidade e os direitos de
cada homem e mulher. A América age nessa causa com amigos e
aliados ao nosso lado, contudo nós entendemos o nosso chamado
especial: essa grande República liderará a causa da liberdade. (Bush,
2004, grifo nosso).
Deve-se notar que, por causa de seu caráter universal e benéfico, o “dever”
estadunidense passa a ser não apenas uma questão de utilidade, mas começa a se basear
em precedentes morais: se todos os países do mundo desejam ser democracias – e Bush
em especial ressalta isso algumas vezes–, e se o mundo inteiro seria afetado
positivamente pela difusão da democracia, é dever dos Estados Unidos auxiliar os
cidadãos dos países individuais a realizarem seus desejos, bem como beneficiar o
mundo inteiro, ao espalhar os valores liberais pelo planeta.
Mais importante, contudo, são as considerações feitas por Castro Santos (2010)
sobre esse ponto:
O terceiro princípio é crucial na composição da doutrina de
política externa americana no período do pós-Guerra Fria: ele liga a
dimensão normativa e ideológica da doutrina a sua dimensão
pragmática, possibilitando a sua implementação política. (Castro
Santos, 2010)
17
O conjunto desses três pontos constitui um arcabouço ideológico para os três
primeiros governos estadunidenses após a Guerra Fria. Percebe-se primeiro que a
democracia é, invariavelmente, desejada por todos os habitantes do planeta.
Segundo, o princípio de que as democracias não guerreiam entre si vincula a
segurança nacional dos Estados Unidos e a segurança global à existência de
democracias no mundo, pois leva à constatação de que a segurança global aumenta à
medida que o número de democracias do mundo cresce. Se levado ao extremo, essa
afirmação abre espaço para a transformação de regimes hostis em regimes
democráticos, mesmo que pela força, pois tal transformação seria benéfica para a
segurança mundial.
O governo George W. Bush atribui o terrorismo a regimes falidos, malignos,
tirânicos, ou qualquer combinação dos três; o terrorismo é culpa de déspotas, que são o
grande fator que corrompe o desejo universal de viver em democracia. George W. Bush
coloca:
18
CAPÍTULO III
As Reações do Governo Bush ao Onze De Setembro
19
representará não só o nosso poder, mas também a liberdade” (Bush, 2002, grifo nosso).
Esse pedaço do discurso aponta os Estados Unidos como um bastião da liberdade que
será carregada para os outros países, e faz referência à chamada “missão americana”.
No parágrafo seguinte, Bush novamente referencia essa missão, desta vez de
forma mais explícita:
A causa da nossa nação sempre foi maior que a defesa de
nossa nação. Nós lutamos, como sempre lutamos, por uma paz justa.
Uma paz que favorece a liberdade humana. Defenderemos a paz
contra ameaças de terroristas e tiranos. Nós preservaremos a paz
através da construção de boas relações entre as grandes potências. E
estenderemos a paz ao encorajar sociedades livres e abertas em cada
continente (Bush, 2002, grifo nosso).
O presidente também aponta que agora, a América enfrenta uma “ameaça sem
precedentes”; as Torres Gêmeas foram derrubadas não por um exército tradicional, ou
por um inimigo facilmente identificável, como era a URSS durante a Guerra Fria; mas
sim por uma organização sombria e por “algumas dezenas de homens malignos e
enganados” que atacaram o solo americano com um custo “muito menor do que o de um
único tanque” (Bush, 2002).
Se um grupo como a Al Qaeda conseguiu derrubar as Torres Gêmeas usando
aviões comerciais, Bush manifesta preocupação com a possibilidade de que grupos mal-
intencionados obtenham armas químicas, biológicas e nucleares, pois “quando isso
ocorrer, até Estados fracos e grupos pequenos poderiam obter um poder catastrófico de
atacar as grandes nações” (Bush, 2002).
Essa nova ameaça que surge – não mais um Estado, mas grupos terroristas com
possibilidades de obter armas capazes de causar grande destruição – torna a lógica de
dissuasão usada na Guerra Fria praticamente obsoleta:
Por fim, Bush dá uma prévia de qual seria a resposta adequada a essa ameaça
sem precedentes: “Se esperarmos as ameaças se materializarem completamente, teremos
esperado demais (...) Contudo, a guerra ao terror não será vencida na defensiva.
20
Devemos levar a batalha ao inimigo, interromper seus planos e confrontar as piores
ameaças antes de emergirem” (Bush, 2002).
O discurso de West Point começa a delinear e a codificar o novo modus
operandi dos Estados Unidos no sistema internacional: se antes a dissuasão e a
contenção garantiam estabilidade, agora a defesa dos Estados Unidos requer uma
postura vigilante e proativa para acabar com a nova ameaça do terrorismo e das armas
de destruição em massa antes mesmo que essa ameaça se materialize de forma
completa. Portanto, Bush se apropria da autodefesa e postula, de forma extremamente
abrangente, que a melhor defesa seria um ataque preventivo. Como coloca Goodnight:
21
mais ativa: “(...)percebemos que guerras nunca são vencidas na defensiva. Devemos
levar a batalha ao inimigo. Tomaremos todos os passos necessários para ter certeza que
nosso país está seguro, e nós iremos prevalecer” (Cheney, 2002).
Novamente Cheney aponta um “novo tipo de guerra contra um novo tipo de
inimigo”. Os inimigos agora seriam terroristas engenhosos e malignos, e “não há dúvida
que eles desejam atacar novamente, e que eles estão trabalhando para adquirir as armas
mais letais de todas as armas” (Cheney, 2002).
Para combater esses inimigos, aponta o vice-presidente, “A América e o mundo
civilizado tem apenas uma opção: aonde quer que os terroristas operem, nós devemos
achá-los onde eles residem, interromper seus planos, e trazê-los à justiça um a um”
(Cheney, 2002).
Cheney enfatiza a necessidade de continuar a guerra ao terror:
“O Afeganistão foi apenas o começo de uma longa campanha.
Caso parássemos agora, qualquer sensação de segurança que
possamos vir a ter seria falsa e temporária. Existe um submundo
terrorista por aí, espalhado entre mais de sessenta países (...) Mas
nós iremos, ao longo do tempo, encontrar e derrotar os inimigos dos
Estados Unidos” (Cheney, 2002)
Cheney, em muitos momentos, replica o que foi dito por Bush em West Point,
como a afirmação que “as velhas doutrinas de segurança não se aplicam” e que “a
contenção não é possível quando ditadores obtêm armas de destruição em massa”,
especialmente quando há a possibilidade de “compartilhá-las com terroristas que
pretendem infligir perdas catastróficas nos Estados Unidos” (Cheney, 2002)
Contudo, o discurso de Cheney tem uma ambição e uma presunção que não
existem no pronunciamento de Bush em West Point. O vice-presidente menciona
Saddam Hussein por nome em diversas ocasiões, apontando que Saddam “quebrou
sistematicamente” as resoluções e os compromissos com as Nações Unidas no que
tangia ao fim do desenvolvimento de armas de destruição em massa e do programa
nuclear iraquiano, e que na verdade, Saddam estaria em busca de “armas ofensivas cujo
propósito é infligir morte em uma escala maciça”, para que pudesse ameaçar “qualquer
um que ele quisesse, em sua própria região ou além dela”. (Cheney, 2002)
Cheney faz questão de enfatizar que Saddam enganou repetidamente os
inspetores das Nações Unidas, escondendo programas de mísseis e de produção de
armas químicas que teriam passado despercebidos pelos inspetores da ONU se não
fosse pela deserção do genro de Saddam, que entregou a localização de documentos
22
chave dos programas supracitados. O vice-presidente manifesta essa exposição de forma
a isentar Saddam de qualquer possibilidade de concordância ou de redenção, vilificando
Hussein de forma definitiva. Como escreve Cheney:
Com esse pano de fundo, qualquer um estaria certo em
questionar qualquer sugestão que deveríamos somente deixar os
inspetores de volta ao Iraque e acabar com nossas preocupações. (...)
Um retorno de inspetores não forneceria garantia nenhuma de sua
conformidade com as resoluções da ONU. No contrário, existe um
grande perigo que [esse retorno] forneceria um falso conforto de que
Saddam estaria “de volta a sua caixa”. (Cheney, 2002)
Esse trecho é vital para completar a ideia postulada ao longo do discurso. Essa
ideia final tem uma progressão lógica com começo, meio e fim e passa por diversos
23
axiomas, que Cheney defende veementemente. Justamente por serem axiomas, sua
veracidade não será contestada na presente análise; apenas se apontará o caminho lógico
pelo qual Cheney passa para expor seu ponto de vista.
Primeiro, Saddam Hussein é um líder invariavelmente hostil aos aliados
americanos e à América, e a realização de suas ambições seria prejudicial para o Oriente
Médio, para os Estados Unidos e para a paz mundial. Segundo, Saddam Hussein tem
plena capacidade de enganar os inspetores da ONU e continuar com o seu programa de
mísseis e de armas químicas. Terceiro, “não há dúvida” que Saddam Hussein possui
armas químicas. Quarto, essas são “armas ofensivas com o propósito de infligir morte
em uma escala maciça”. Quinto, nada do que foi tentado nos últimos anos conseguiu
conter Saddam. Sexto, “o custo da inação é maior que o da ação”. É dizer, um ataque
preemptivo a Saddam Hussein teria um custo menor do que esperar até ter provas
conclusivas, ou até a obtenção de armas nucleares iraquianas. Como Cheney coloca no
discurso:
Alguns argumentam que Saddam é maligno, sedento por
poder e uma ameaça – mas que até ele cruze a linha de possuir, de
fato, armas nucleares, nós devemos descartar qualquer ação
preemptiva. Essa lógica me parece profundamente falha. (...) E muitos
de vocês que atualmente discutem que nós devemos agir apenas se ele
possuir armas nucleares mudariam de ideia e diriam que não
podemos agir porque ele possui armas nucleares. Basicamente, esse
argumento aconselha um curso de inação que poderia ter
consequências devastadoras para muitos países, incluindo o nosso
(Cheney, 2002).
24
“iminente”. O vice-presidente cita o ataque japonês a Pearl Harbor como uma tragédia
que poderia ser evitada, e faz alusão ao próprio 11 de setembro (“Se os Estados Unidos
pudessem agir preemptivamente em 11 de setembro, nós o teríamos feito, sem dúvida”)
para criar uma “retórica associativa que coloca em primeiro plano a ação contra um
dano que ainda pode ser evitado como compensação pela inação em prevenir uma perda
que não pode mais ser recuperada” (Goodnight, 2006).
Por fim, uma das grandes questões que o discurso de Cheney aponta – e que será
retomada com veemência na Estratégia de Segurança Nacional de 2002 – é o termo
iminência. Segundo o vice-presidente, limite para um ataque preemptivo não seria a
posse de armas nucleares, muito menos o uso das mesmas; a linha a ser cruzada seria a
posse de armas de destruição em massa por um Estado hostil, independente de uma
vontade ou possibilidade de essas armas serem lançadas. É dizer, não é o bastante que
haja um uso de fato de armas de destruição em massa, ou uma intenção declarada de
usar essas armas, mas apenas a posse desse tipo de armamento não convencional por
parte de alguns países já constitui motivo para uma ação militar e uma declaração de
guerra.
Novamente, Cheney aponta elementos claramente neoconservadores em seu
discurso. Percebe-se uma forte descrença no Iraque, visto como um Estado que não se
adequa aos regimes e às instituições; e que ameaça a segurança nacional americana.
25
CAPÍTULO IV
A Estratégia de Segurança Nacional Dos Estados Unidos
10
National Security Strategy, no original.
26
afirmações em conjunto manifestam os pilares de política externa americana levantados
por Castro Santos (2010).
O parágrafo seguinte continua essa linha de pensamento:
(…) Buscamos criar um equilíbrio de poder que favorece a
liberdade humana: condições nas quais todas as nações e todas as
sociedades podem escolher por si mesmas as recompensas e desafios
da liberdade política e econômica. Em um mundo que é seguro, as
pessoas podem melhorar as suas próprias vidas. Nós defenderemos a
paz ao lutar contra terroristas e tiranos. Preservaremos a paz ao
construir boas relações entre as grandes potências. Estenderemos a
paz ao encorajar sociedades livres e abertas em cada continente
(White House, 2002, introdução, grifo nosso).
27
como um grande perigo para nossos interesses nacionais como
Estados fortes (White House, 2002, introdução e grifo nossos).
28
Da ação direta e contínua usando todos os elementos do
poder nacional e internacional. O nosso foco imediato serão aquelas
organizações terroristas de alcance global e qualquer terrorista ou
estado patrocinador do terrorismo que tenta adquirir ou utilizar
armas de destruição em massa (ADMs) ou seus precursores;
Da defesa dos Estados Unidos, do povo americano, e de
nossos interesses em casa ou no exterior através da identificação e
destruição da ameaça antes que ela alcance nossas fronteiras. (...)
Enquanto os Estados Unidos buscarão constantemente alistar o apoio
da comunidade internacional, nós não hesitaremos em agir sozinhos,
se necessário, para exercer nosso direito de autodefesa através de
ações preemptivas contra tais terroristas, para preveni-los de
causarem dano ao nosso povo e nosso país(...) (White House, 2002, p.
6, grifo nosso)
Primeiro, essa passagem explicita quem será o alvo primário das ações
americanas: qualquer terrorista ou estado patrocinador do terrorismo que tenta
adquirir ou utilizar armas de destruição em massa (ADMs). Em consonância com o
discurso de Cheney aos Veteranos de Guerras Estrangeiras, a definição de inimigo
encaixa perfeitamente nas acusações feitas a Saddam Hussein. O foco da
administração Bush é combater o terrorismo e empreender a guerra ao terror e às
ADMs; o Iraque é um Estado considerado como possuidor de armas de destruição
em massa. Por indução, o Iraque se torna prioridade na política externa americana.
De fato, Brzezinski (2007) aponta que “Pelos próximos três a quatro anos [a partir
de 2002/2003], a obsessão dos altos níveis do governo11 eclipsou todas as outras
questões de política externa que a América enfrentou” (Brzezinski, 2007, p. 143).
Segundo, a terminologia do segundo ponto (“identificação e destruição da
ameaça antes que ela alcance nossas fronteiras”) é abrangente a ponto de permitir
um direcionamento dessa definição ao bel-prazer do governo americano. Cabe aos
Estados Unidos definir o que é uma ameaça, já que a NSS-2002 usa critérios
arbitrários e moldáveis.
Outro ponto relevante do trecho é o uso do termo “ações preemptivas”. É
necessário distinguir “preempção” e “prevenção”, pois a diferença entre os dois
termos, embora sutil, é extremamente importante para a compreensão da NSS-
2002. Essa distinção será feita brevemente a seguir.
11
Top-level obsession, no original.
29
Prevenção versus Preempção
A Carta das Nações Unidas permite, sob o artigo 51, a autodefesa (“Nada
na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou
coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações
Unidas”.) (Nações Unidas, 1945, p. 30). Na própria jurisprudência americana,
Keller & Mitchell (2006) rastreiam o ponto de origem de discussões sobre a
legitimidade de autodefesa antecipatória a um caso de 1842, relativo a uma disputa
fronteiriça com o Canadá (Keller & Mitchell, 2006, p. 19). Os critérios usados
nessa ocasião tentam apontar condições nas quais a ação militar preemptiva seria
justificada e focam no grau de iminência e inevitabilidade de uma ameaça.
A NSS-2002 aponta – corretamente – a existência da ação preemptiva no
Direito Internacional. Contudo, uma ação preemptiva difere de uma ação
preventiva por diversos motivos. Um fator que diferencia os dois é o grau de
iminência do ataque. Freedman (2004) aponta:
Uma boa analogia é a usada por Rockmore (2006), advinda das artes
marciais: supondo um combate entre dois lutadores, A e B, no qual o lutador A
tenta atingir B com um soco na mandíbula, B pode retaliar com um chute no
estômago de A, antes que o golpe atinja; tal situação caracteriza preempção. Ainda
seguindo a analogia de Rockmore (2006), supondo que os Estados Unidos realizem
um ataque cirúrgico na Coreia do Norte alegando esperar um ataque nuclear norte-
coreano dentro de seis meses, a iniciativa estadunidense seria caracterizada como
prevenção. É dizer: toda preempção garante uma prevenção, mas o oposto não é
verdadeiro. Portanto, a linha a ser cruzada é a iminência do ataque. Como coloca
Rockmore (2006):
30
ataque que é iminente. (...) um ataque preventivo é um [ataque] no
qual o ataque não é esperado no futuro imediato. (...) Como em
ambos os casos, o adversário possui a capacidade e, presumidamente,
o desejo de lançar um ataque, uma diferença importante entre
preempção e prevenção militares concerne a se o ataque é iminente
ou apenas extremamente provável no futuro próximo. (Rockmore,
2006, p.1, grifo nosso)
12
Pode ser traduzidos como “Estados trapaceiros”; relativo à ideia de Estados que não jogam de acordo
com as regras e os regimes internacionais. Mantido em inglês ao longo do texto.
31
Patrocinam o terrorismo ao longo do globo; (...) (White
House, 2002, p. 14)
Logo, o começo do capítulo define algumas práticas dos rogue states que
constituiriam uma ameaça à segurança nacional e global. Além disso, apresenta “provas
irrefutáveis” que datam desde a Guerra do Golfo relativas à posse de ADMs por parte
do Iraque – reforçando o ponto de Cheney no discurso aos Veteranos de Guerras
Estrangeiras. Essa combinação favorece um imperativo de ação contra o Iraque.
Se o começo do capítulo se encarrega de definir e identificar os inimigos, o resto
do capítulo expõe uma “estratégia compreensiva para combater as ADMs” e coloca o
direito estadunidense à autodefesa. Segundo a NSS-2002, a estratégia compreensiva
inclui:
13
Rogue regimes, no original.
14
Impending, no original. Utilizou-se a tradução “impendente” ao invés de sua contraparte mais comum,
“iminente”, para manter a distinção entre os termos “impending” e “imminent”, visto que esse último é
usado mais frequentemente em um contexto específico.
32
de ameaça que impedem os Estados e terroristas
buscando ADMs, e, quando necessário, proibir a
permissão de tecnologias e materiais. Nós
continuaremos a construir coalizões para apoiar
esses esforços, encorajando seu crescente apoio
político e financeiro a programas de não-proliferação
e de redução de ameaças (...) (White House, 2002, p.
14, grifo nosso).
Esse parágrafo por si só retoma grande parte do que fora dito por Bush e por
Cheney e recapitula os temas mencionados na introdução da Estratégia. Contudo, ele
serve para introduzir e complementar pontos que são expostos (na forma de bullets ou
tópicos) nos parágrafos seguintes:
Na Guerra Fria, especialmente após a Crise
dos Misseis de Cuba, nós enfrentamos um adversário
geralmente do status quo e avesso a riscos15. A dissuasão era
uma defesa efetiva. Mas a dissuasão baseada apenas na
ameaça de retaliação é menos provável de funcionar contra
líderes de rogue states, mais dispostos a se arriscar,
apostando as vidas de seu povo e a riqueza de suas nações.
(White House, 2002, p. 15)
A passagem acima demonstra como o fim da Guerra Fria mudou o jogo a ser jogado:
agora, a destruição mutuamente assegurada não era o suficiente; enquanto antes a possibilidade
de destruição global em caso de primeiro ataque seria o suficiente para dissuadir ambos os lados
15
Generally status quo, risk-averse adversary, no original.
33
de atacarem, atualmente os rogue states e terroristas não parecem se importar para as
consequências retaliatórias.
Os dois tópicos seguintes ressoam a ideia apresentada no trecho supracitado:
16
Avowed tactics, no original.
17
Statelessness, no original.
34
Eles sabem que tais ataques falhariam. Ao invés disso, eles confiam
em atos de terror e, potencialmente, no uso de armas de destruição
em massa – armas que podem ser facilmente escondidas, lançadas
secretamente, e usadas sem aviso. (White House, 2002, p. 15, grifo
nosso)
36
as armas nucleares garante a essas tecnologias não nucleares o status de “armas
nucleares do homem pobre”18 (Panofski, 1998). Como coloca Goodnight:
Outro ponto que deve ser observado é a delimitação do limiar que justificaria a
ação militar contra um Estado. Assim como apontam Bush e Cheney nos seus discursos,
a NSS-2002 mais uma vez retoma a noção de uma nova ameaça que não pode mais ser
combatida pelos meios tradicionais da dissuasão e contenção: terroristas e Estados que
possuem ADMs (armas químicas, biológicas e nucleares) e que utilizarão essas armas
contra os Estados Unidos. Como as ADMs são “armas que podem ser facilmente
escondidas, lançadas secretamente, e usadas sem aviso” (White House, 2002, p. 15),
torna-se necessário “adaptar o conceito de ameaça iminente às capacidades e objetivos
dos adversários de hoje em dia” (White House, 2002, p. 15) e agir antes de um ataque
terrorista que causaria mortes de civis. Como aponta Goodnight: “A NSS-2002 parece
construir sobre a ideia de Kissinger que o limiar da iminência é a posse de armamento
não-convencional por uma potência hostil, e como tal, a posse de armas nucleares,
biológicas e químicas se encaixam na nova definição de guerra preemptiva”
(Goodnight, 2006, p. 10).
Contudo, a possibilidade e a capacidade de obtenção e produção de ADMs é um
limite extremamente volátil ─ especialmente sob a conceituação de ADMs da NSS-
2002, que engloba armas químicas e biológicas. Goodnight cita:
18
Poor man’s nuclear weapons, no original.
19
In omnibus fashion, no original. A expressão se refere a uma categoria abrangente a ponto de conter
objetos bastante distintos entre si, que ficariam separados em categorias diferentes caso uma análise mais
específica fosse instaurada.
37
“como uma usina química ou um laboratório podem ser convertidos
para a produção de armas, [então] qualquer Estado industrial
moderno pode ser acusado de ser uma potencial ameaça de armas
nucleares, biológicas, ou químicas. A questão se torna, crucialmente,
baseado em que evidências o conflito militar pode ser iniciado”
(Goodnight, 2006, p. 15-16).
20
Em aspas no original.
21
Now-or-later imperative, no original. Possui a conotação de ser um problema que possui um imperativo
de ação atualmente, e continuará possuindo esse imperativo mais tarde.
22
Moral and political high ground, no original. Está ligado à ideia de superioridade; no caso, possuir a
superioridade moral seria ter a legitimidade a seu lado.
38
Hussein atualmente possui armas de destruição em massa”, e “não há base na conduta
ou na história de Saddam Hussein para questionar qualquer uma das preocupações que
estou levantando essa manhã”) (Cheney, 2002) invertem o ônus da prova: não cabia a
Bush provar que Saddam possuía ADMs, mas sim cabia a Saddam provar que ele não
possuía armas de destruição em massa.
Devido à natureza furtiva da ameaça das ADMs, a NSS-2002 também relativiza
e obscurece a relação de proporcionalidade frente à nova ameaça. Segundo Goodnight:
23
Que serve a si mesmo; pode ser traduzido como “um fim em si mesmo”. Será mantido em inglês ao
longo do texto.
24
All-out war, no original.
25
Em aspas no original.
39
Todavia, a Estratégia codifica erroneamente o termo “preempção”; o léxico do
governo Bush, visto em discursos e pronunciamentos oficiais, bem como na própria
formulação da NSS-2002, usa os termos “preempção” e “prevenção” a seu bel-prazer,
sem distinguir um do outro. Por isso, “a distinção entre preempção e prevenção é
borrada na NSS” (Keller & Mitchell, 2006, p.4). Segundo Rockmore:
26
Entre aspas no original.
27
Embora o original conste como “preemption” and “preemption”, presume-se, pelo contexto da obra,
que Rockmore tinha o objetivo de diferenciar “preemption” and “prevention”
28
Goodnight tira essa declaração da transcrição de um briefing do Departamento de Defesa entre Donald
Rumsfeld e o General Pace, disponível em
http://222.defenselink.mil/news/Sep2002/t09262002_t0926sd.html
29
Por ser parte da transcrição de uma reunião do Depto. De Defesa, a citação tem um formato de diálogo,
como se Rumsfeld tivesse gaguejado ou mudado de ideia no meio da frase.
40
sobre o que “vai” ou “pode” acontecer em algum futuro indefinido,
“chame do que quiser”30. Portanto, a postura da administração Bush
funcionou para legitimar uma guerra [contra o] Iraque ao expandir a
definição de preempção e embaralhando a sua diferença da
prevenção.(Goodnight, p. 11-12, grifo do autor).
30
Goodnight tira essa citação de “Truman Got It Right”, de Michael Moore.
41
martírio na morte e cuja proteção mais potente é a falta de um Estado”) (White House,
2002, p. 15).
Segundo, já que “os Estados Unidos não podem mais contar apenas com uma
postura reativa, como fizemos no passado” (White House, 2002, p. 15), “nós devemos
estar preparados para impedir rogue states e seus clientes terroristas antes que eles
possam ameaçar ou usar armas de destruição em massa contra os Estados Unidos e
nossos aliados e amigos” (White House, 2002, p.14). É dizer, a Estratégia invoca uma
necessidade de reagir antes de um ataque em solo americano, pois tal ataque seria
devastador para o povo e a nação.
Terceiro, a Estratégia recorre ao termo “armas de destruição em massa”,
conceituado pela administração Bush como englobando armas químicas, biológicas e
nucleares. Essa definição eleva o status de armas não-nucleares, pois as coloca no
mesmo pedestal que as bombas atômicas. Essa conceituação é importante, pois:
31
Refere-se à forma da explosão de uma bomba atômica, que tem um formato parecido com um
cogumelo. Mushroom cloud, no original.
42
possíveis danos ao povo americano. Assim, a Estratégia postula esse novo limiar com
base no conceito de autodefesa – que, segundo Goodnight, lhe transfere uma
“superioridade moral e política” (Goodnight, 2006, p.10).
Quinto, a Estratégia busca utilizar prevenção e preempção de forma
intercambiável. Essa não-diferenciação está presente não só na NSS-2002, mas também
em discursos e comunicados de vários oficiais do governo – incluindo, por exemplo, o
próprio presidente, o vice-presidente e o Secretário de Defesa. De fato, Keller &
Mitchell (2006) apontam que “ao usar os termos ‘preemptivo’ e ‘preventivo’ quase
intercambiavelmente, o Secretário de Defesa Donald Rumsfeld enevoou ainda mais essa
distinção” (Keller & Mitchell, 2006, p.4).
Shapiro (2003) distingue a preempção e a prevenção na administração Bush:
43
CONSIDERAÇÕES FINAIS
44
estratégias e pensamentos que concerniam ao novo papel estadunidense após a Guerra
Fria. O conjunto dessas ideias prega a necessidade de um maior protagonismo
americano e da manutenção da primazia dos Estados Unidos no sistema internacional.
Para isso, seria necessário aumentar o papel dos EUA e simultaneamente evitar o
surgimento de qualquer grande potência que possa ameaçar essa supremacia. Essa
formulação está ligada à noção de que os Estados Unidos, por causa de seus valores
democráticos inerentes e pela superioridade no sistema internacional, possuem mais
capacidade de estruturar alguma ordem internacional. Com a queda das Torres Gêmeas,
essa nova roupagem desenvolvida para o neoconservadorismo foi utilizada contra o
novo inimigo que surgiu: o terrorismo.
Também se percebeu a postura intervencionista neoconservadora quanto a
alguns temas importantes de política externa. Percebe-se um forte internacionalismo
construído “a partir da crença que os Estados Unidos têm a responsabilidade, a
capacidade e o interesse na construção de uma ordem internacional que satisfaça seus
objetivos” (Teixeira, 2010, p. 55). Nota-se também uma descrença nas organizações
internacionais, porque essas teriam pouca legitimidade (visto que dão voz a países não
democráticos) e que servem de contrapeso às ações estadunidenses de política externa.
Além disso, o neoconservadorismo aborda uma preferência explicitamente declarada
pelo unilateralismo (Teixeira, 2010, p. 59), por causa da descrença nas organizações
internacionais. Por isso, a ênfase neoconservadora ao poder militar é dada como
ferramenta para sustentar e prolongar o protagonismo americano no sistema
internacional.
O pensamento neoconservador aponta também um papel forte da democracia
como imperativo moral, pois essa possui valores universais e aplicáveis a qualquer
sociedade no mundo, valores presentes na própria essência dos Estados Unidos e que,
por sua universalidade, não se limitam às fronteiras nacionais. Além disso, o
neoconservadorismo se aproveita das teorias da paz democrática – de forma simples, a
noção de que democracias liberais não lutam entre si – para postular os impactos
positivos dessa forma de governo para a segurança nacional americana e para a
segurança global. Assim, o neoconservadorismo vincula a existência e a difusão de
democracias aos interesses nacionais.
Esses ideais estão, em certa medida, presentes nos discursos dos três presidentes
após a Guerra Fria, como aponta Castro Santos (2010). De fato, três temas aparecem
com destaque nos pronunciamentos desses presidentes: a universalidade dos valores da
45
democracia; a noção de que democracias não lutam entre si; e a vinculação entre
democracia no mundo e a segurança nacional estadunidense e global. Por isso, aponta
Castro Santos (2010), os Estados Unidos carregariam consigo um propósito maior: a
missão de espalhar a democracia para o mundo.
Esses temas são percebidos novamente no discurso da administração Bush: o
pronunciamento presidencial na academia de West Point, o discurso de Cheney aos
Veteranos de Guerras Estrangeiras, e a Estratégia de Segurança Nacional refletem a
nova postura de liderança e proatividade estadunidense pregada pelo pensamento
neoconservador.
Todavia, o discurso de Bush em West Point marca o começo de uma “campanha
de três pontas” (Goodnight, 2006, p. 4) com destino ao Iraque. A importância desse
discurso jaz na manifestação e na construção de uma nova ameaça – rogue states e
terroristas com acesso a armas de destruição em massa e intenção de usá-las contra o
solo americano. “Mas novas ameaças também requerem um novo pensamento”, aponta
o presidente.
Por isso, Bush conclama uma postura estadunidense mais ativa na política
externa. Não uma postura reativa ou defensiva, mas sim uma postura que ataque antes
que as ameaças se apresentem. “Se esperarmos que as ameaças se materializem por
completo, teremos esperado demais” (Bush, 2002).
Essa visão é partilhada por Cheney ao dizer que “os riscos da inação são muito
maiores que os riscos da ação” (Cheney, 2002). Cheney, contudo, vai além do postulado
por Bush e afirma categoricamente: “não há dúvidas que Saddam Hussein agora possui
armas de destruição em massa” (Cheney, 2002). Cheney vilifica Saddam e o coloca
como um engenhoso e ardiloso adversário, capaz de enganar até mesmo os inspetores da
ONU. Com a posse de ADMs, Saddam seria uma ameaça à segurança nacional. Por
isso, aponta Cheney:
47
Essa noção, portanto, tem influência forte do neoconservadorismo,
especialmente da Orientação do Planejamento de Defesa de 1992, no que propõe um
papel ativo dos Estados Unidos em escala global, baseado na grande virtude da América
como líder mundial e dos benefícios que o exercício dessa superioridade traria ao
sistema internacional.
Sendo assim, o resultado do presente trabalho demonstra que a retórica do
governo Bush tem forte influência neoconservadora e permitiu a invasão do Iraque com
a intenção de mudar o regime de Saddam Hussein. O discurso do governo Bush também
visa a disfarçar a invasão preventiva do Iraque sob o manto de ação preemptiva,
tomando emprestada a legitimidade deste último tipo de ação.
48
REFERÊNCIAS
49
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security strategy. Pittsburgh, Pa: University of Pittsburgh Press, 2006.
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Center, inverno 2002/2003.
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http://web.stanford.edu/class/polisci243b/readings/v0002542.pdf
Nações Unidas. “Carta das Nações Unidas”, 1945,
http://unicrio.org.br/img/CartadaONU_VersoInternet.pdf
Neves, André Luiz Varella. “Governo George W. Bush (2001 – 2004): Uma análise
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Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Doutor em Ciência Política, 2010.
Panofski, Wolfgang. “Dismantling the Concept of ‘Weapons of Mass
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https://www.armscontrol.org/act/1998_04/wkhp98
Podhoretz, Norman. “Neoconservatism: a Eulogy”, 1996,
https://www.aei.org/publication/neoconservatism-a-eulogy/
Rockmore, Tom. “On Justifying the First Blow”. Ridgway Center Working Papers, 9,
2006.
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Shapiro, Miriam. “Iraq: The Shifting Sands of Preemptive Self-Defense,” American
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White House. “National Security Strategy of the United States of America”.
Washington, DC: 2002, www.state.gov/documents/organization/63562.pdf
50