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Cultura e desenvolvimento humano

O papel do Estado e da sociedade civil na consolidação


da cidadania cultural

Eduardo Pordeus Silva

Sumário
Introdução. 1. Cultura no Estado moderno.
2. Da atuação do Estado no fomento à cultura.
3. Políticas públicas de cultura e cidadania
cultural. 4. Poder local e direito ao patrimônio
cultural. 5. Considerações finais.

Introdução
A cultura e as políticas culturais estão
incluídas nas agendas das políticas públi-
cas, pois se tornaram assuntos pontuais na
pauta do desenvolvimento socioeconômico
das cidades e das regiões no mundo.
Sendo assim, a partir do entendimento
acerca da cultura e das políticas a ela relacio-
nadas, aponta-se mais fácil dimensionar as
ações e os projetos em torno dos seus com-
ponentes, especificamente em se tratando do
patrimônio cultural (material e imaterial).
Dessa forma, o presente artigo aborda
esse universo teórico em relação à cultura
interligada às políticas públicas, particu-
larmente no âmbito do Estado brasileiro.
Consequentemente, traz o enfoque no cam-
po jurídico, porque o direito à cultura ou os
direitos culturais são elementos tendentes
a favorecer o desenvolvimento social, bem
assim fortalecer a cidadania cultural, como
Eduardo Pordeus Silva é Doutorando em se verá adiante.
Ciências Sociais pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte – UFRN. Mestre em 1. Cultura no Estado moderno
Ciências Jurídicas (Área de Concentração em
Direito Econômico) pela Universidade Federal Cultura é conceito bastante discutível
da Paraíba – UFPB. e discutido, porquanto atine aos aspec-

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tos materiais e imateriais (ou tangíveis e conjunto de conhecimentos de uma única
intangíveis) da vida humana. Assim, na pessoa; 2) o sentido que confunde expres-
maior parte das vezes, esse termo se presta sões como arte, artesanato e folclore, como
a caracterizar formas de comportamento sinônimas de cultura; 3) cultura como o
humano, as quais podem dizer respeito conjunto de crenças, ritos, mitologias e
à identidade, aos costumes, às memórias demais aspectos imateriais de certo povo;
e aos valores a serem preservados na so- 4) cultura para o desenvolvimento e acesso
ciedade. às mais modernas tecnologias; 5) o conjunto
Nada obstante Coelho (2007a, p. 9) de saberes, modos e costumes de determi-
afirmar que “[...] a cultura está forrada de nada classe, categoria ou de uma ciência
paradoxos1 [...]”, para Santos (2005, p. 50), (cultura burguesa, cultura dos pescadores,
“[...] a cultura é a dimensão da sociedade cultura do direito etc); 6) o conceito pelo
a qual inclui todo o conhecimento num qual se refere a toda e qualquer produção
sentido ampliado e todas as maneiras como material e imaterial de uma coletividade
esse conhecimento é expresso”.2 específica, ou até mesmo de toda a huma-
O termo cultura vem do vocábulo lati- nidade (CUNHA FILHO, 2000, p. 22,23).
no cultura, oriundo do verbo colere (que é No mais, observam-se os âmbitos da
cultivar, em sentido concreto de cultivar os cultura, quais sejam: artes plásticas (as
campos). Recentemente, vem adquirindo manifestações artísticas cujas finalidades
outra acepção, aplicada à própria pessoa são a criação de certa obra original e única,
humana, no sentido de significar o trabalho primando pela dimensão visual, ligadas à
ou o cultivo de si mesmo no âmbito espiri- arquitetura, ao desenho, à escultura), artes
tual, especialmente no campo das letras e cênicas (manifestações artísticas e culturais
do saber (GAMA, 1987, p. 173). sobre a cena e a recriação interpretativa
Consoante Cunha Filho (2006, p. 87), a de texto ou peça literária, por exemplo,
cultura se projeta, ultimamente, sobressain- o teatro, a dança etc.), música (a arte de
do-se na pauta dos debates particulares e combinar os sons da voz humana ou os
nas preocupações do Estado. O menciona- instrumentos musicais, ou isoladamente),
do autor, em outra obra, pondera acerca dos literatura (a manifestação artística pela
significados atribuídos à palavra cultura: 1) qual o uso da palavra é o principal meio
1
Falar acerca da cultura denota bastante com-
de expressão, tais como o livro, o jornal,
plexidade, porque, quando insuficientemente pen- entre outros), cine e audiovisuais (são as
sado, pode ensejar muitos equívocos, parcialidade atividades e manifestações artísticas, inde-
de entendimentos e, até mesmo, erros grosseiros. pendentes de suporte, quando se servem
uma vez que complexo e dinâmico, o mencionado
tema desdobra-se em vários tópicos, tomados assim
da linguagem da imagem em movimento
por Soveral (1992, p. 379,380): cultura e civilização; e do som para criar realidades sensoriais,
pluralidade e unidade de culturas; ato criativo e seus como o rádio, a televisão, vídeos, entre
componentes psicológicos, sociológicos e ontológicos; outros meios), patrimônio (referentes aos
ação cultural e ação técnica.
2
A cultura, pois, é a dimensão do humano, nas bens cujo valor se firma em testemunhos
suas expressões mais diversas, desde o nível conside- materiais de determinada cultura, em todas
rado mais elementar do fabrico de objeto com certa as suas concepções: tangíveis – arquitetô-
finalidade, até às elaborações abstratas e simbólicas nico, urbanístico, natural, ambiental, mu-
no campo das artes e do pensamento. Ela é sempre
ação da pessoa humana e toda a atividade humana seográfico, arqueológico, paleontológico,
desponta como expressão cultural (GAMA, 1987, p. histórico etc. – e intangíveis – gastronômico,
177) e apresenta significado espiritual, com relevância festas populares, línguas etc.); e arquivos
coletiva; tudo que se liga a bens não econômicos; e
e bibliotecas (são as instituições públicas e
tudo que se refere às obras de criação ou de valo-
rização humana em contraposição às expressões da privadas as quais tenham como finalidade
natureza (MIRANDA, 2006, p. 29). a aquisição e a conservação de livros, do-

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cumentos e outros elementos de consulta estratégias de política cultural. Assim, em
à disposição das pessoas) (CARRASCO razão de suas características estruturais, em
ARROYO, 2006, p. 17,18). sua totalidade, devem ser tomadas a partir
A noção de cultura prende-se, muitas da responsabilidade compartilhada dentro
vezes, à sua antiga e frequente identificação do Estado.5
com os costumes, com as tradições e com A dimensão antropológica da cultura
os valores eleitos pela sociedade3. Mais se traduz na interação social dos seres hu-
recentemente, adotou-se, principalmente manos, os quais trabalham seus modos de
no âmbito internacional, a perspectiva de pensar e de sentir, elaborando seus valores,
entender a cultura sob o viés antropológi- suas identidades e diferenças e estabele-
co. Desta feita, a cultura é compreendida, cendo suas rotinas. “Desta forma, cada
especificamente, como a totalidade dos indivíduo ergue à sua volta, e em função
modos de vida, como os diversos modos de determinações de tipo diverso, peque-
de viver juntos, em relação com as noções nos mundos de sentido que lhe permitem
de herança e de integração sociais.4 uma relativa estabilidade [...]” (BOTELHO,
Para Cuche (1999, p. 10), a cultura é pro- 2001, p. 74).6
cesso de adaptação imaginada e controlada No que se refere à dimensão socioló-
pela pessoa humana, o que revela a subs- gica, a cultura é produto elaborado com a
tituição dos seus instintos de forma mais finalidade de construção de certos sentidos
flexível, facilitada e célere do que a adapta- e para alcançar algum público, com meios
ção genética, o que favorece adaptar-se ao próprios de expressão. Para que isso ocor-
meio e adaptá-lo ao ser humano, tornando ra, é imprescindível que à pessoa humana
possível a transformação do meio natural, sejam facultadas as condições de desenvol-
bem como demonstrando a vantagem de vimento dos seus talentos, ao mesmo tempo
ser mais facilmente transmissível às gera- em que existam canais os quais permitam a
ções seguintes. expressão de suas potencialidades. 7
No mais, é possível destacar duas 5
Sabendo o diferencial das dimensões da cul-
dimensões da cultura – a antropológica tura, podem-se entender os processos e os tipos de
e a sociológica. A compreensão em torno investimento governamental em diversos países, pois
delas é fundamental porque, do ponto de alguns têm como aporte a conceituação mais ampla de
cultura e já outros minguam ao universo específico das
vista da política pública, requerem distintas
artes. A abrangência dos termos de cada uma dessas
definições estabelece os parâmetros que permitem a
3
Vige, no Estado brasileiro, o princípio do respeito delimitação de suas respectivas estratégias (BOTE-
à memória coletiva, segundo o qual todo o acúmulo LHO, 2001, p. 74).
cultural produzido no Estado não pode ser preterido 6
Sob a dimensão antropológica, a cultura é toda
nas práticas de políticas públicas para não se perder ação humana, física ou simbólica, exercida no meio
os referenciais de origem. Por esse princípio, deve-se em que se vive e se mostra inadequada para delimitar
levar em consideração tudo o que já se foi vivenciado os direitos culturais, conforme ver-se-á mais adiante,
e praticado pelos antecedentes, mas não para se seguir porquanto todos os ramos do direito, já que são oriun-
os mesmos passos, e sim para respeitar a memória, pu- dos da criação humana, seriam, também, culturais
nindo a quem causar danos às referências memoriais, (CUNHA FILHO, 2006, p. 92,93). Ademais, é preciso
no tombamento a ícones de luta pela liberdade, aos acrescentar que a cultura, nessa percepção antropo-
quilombos e documentos a eles referentes (CUNHA lógica, para ser atingida pela política, “[...] é preciso
FILHO, 2003, p. 110). que, fundamentalmente, haja uma reorganização
4
A Organização das Nações Unidas para a Educa- das estruturas sociais e uma distribuição de recursos
ção, a Ciência e a Cultura (Unesco) (MONDIALCULT, econômicos” (BOTELHO, 2001, p. 74).
MÉXICO, 1982) assim define a cultura: “[...] conjunto 7
Trata-se aqui da cultura no sentido derivado,
de características distintas espirituais, materiais, inte- pois é elaborada com o fim de construir sentidos
lectuais e afetivas que caracterizam uma sociedade ou etc. A dimensão sociológica da cultura é o conjunto
um grupo social. Abarca, além das artes e das letras, diversificado de ações profissionais, institucionais,
os modos de vida, os sistemas de valores, as tradições políticas e econômicas, com visibilidade em si própria,
e as crenças”. compondo campo específico, no qual seja possível

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O fato de a dimensão sociológica da cul- Destaque-se que a visão acerca da cul-
tura denotar organicidade é que torna mais tura como ponte para o desenvolvimento é
fácil planejar a interferência do Estado por partilhada por Herrera Alamos (1990, p. 4)9,
meio de políticas públicas e, assim, buscar que traz considerações sobre a necessidade
resultados relativamente previsíveis. Nesta de fortalecer a cooperação internacional,
medida, cria-se o espaço apropriado de destacando o papel dos organismos inter-
acesso às diversas linguagens, até como for- nacionais e a importância da criação da
ma descompromissada, mas que, de certa Organização das Nações Unidas para a
maneira, colabora à formação de público Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)
consumidor de bens culturais. em 1945.10
Esse universo institucionalizado pode O processo cultural deita raízes nas po-
apresentar-se propício às políticas cultu- líticas culturais e no modo como essas são
rais, pois demanda visibilidade e estas capazes de enfrentar a realidade e desafios
podem ter ação efetiva porque é possível a da evolução cultural havida, especificamen-
elaboração de diagnósticos para enfrenta- te, nos Estados latinoamericanos, porquanto
mento de problemas de forma programa- essas políticas prendem-se a elementos
da, estimando recursos a serem alocados exógenos (pobreza, desequilíbrio ambiental,
e dirimindo as deficiências dos planos evolução tecnológica, entre outros) e que po-
e projetos governamentais, por meio do dem, estes, assumir forma de obstáculos ou
estabelecimento de metas a curto, médio e de veículo para o desenvolvimento de certa
longo prazos (Idem, p. 74,75). região (HERRERA ALAMOS, 1990, p. 7).
A cultura não se limita apenas ao valor A necessidade de conhecer, preservar
constituinte da sociedade, mas é direito e ampliar as bibliotecas e os arquivos
fundamental da pessoa humana, inclusive, nacionais e locais (públicos e privados),
possibilitando à pessoa humana o direito por exemplo, faz parte de toda política de
de participar da cultura e usufruir do pa- conservação da cultura e do patrimônio cul-
trimônio cultural (ROTHENBURG, 2004, tural. Diante disso, é premente estabelecer a
p. 45). Em outros termos, compreende-se a rede de informação que permita identificar
dupla configuração da cultura como dever e reconhecer o maior número de centros
e como direito constitucional, extraindo dessa natureza no âmbito da região e com a
dela a perspectiva prospectiva, com vistas a finalidade de detectar eventuais problemas,
legar para as gerações futuras o patrimônio carências e necessidades (Idem, p. 14,15).11
cultural adquirido e de modo a assegurar-
beneficiar do patrimônio cultural. Afirma-se que ela
lhes condições para seu próprio desenvol- “[...] pode ser um instrumento formidável de progres-
vimento cultural (Idem, p. 48).8 so econômico e social [...] Não é um mero instrumento.
O desenvolvimento cultural das sociedades é um fim
gerar (ou interferir em) “[...] um circuito organizacio- em si mesmo [...]” (KLIKSBERG, 2002, p. 485).
nal, cuja complexidade faz dela, geralmente, o foco 9
O desenvolvimento social é reconhecido por levar
de atenção das políticas culturais, deixando o plano em conta a sua dimensão cultural, pois a compreensão
antropológico relegado simplesmente ao discurso” de desenvolvimento adota a necessidade de favorecer
(BOTELHO, 2001, p. 74). as condições materiais e econômicas dos processos a
8
A cultura é tomada como instrumento libertador ele relacionados (HERRERA ALAMOS, 1990, p. 6).
da sociedade, pois envolve a emancipação da socie- 10
Nesse sentido é a Declaração Universal dos
dade, de sorte não apenas a descrever e compreender Direitos Humanos (1948), da Organização das Nações
a realidade, mas a apontar caminhos ou contribuir Unidas (ONU), que estabelece, em seu art. XXVII.1,
para a modificação desse universo. Nesse sentido, que todo ser humano tem direito de participar de
Silva (2001, p. 55), Santos (2005, p. 43) e Rothenburg forma livre da vida cultural da comunidade, de fruir
(2004, p. 59). Ela desponta como pilar do processo de as artes, bem como participar do progresso científico
desenvolvimento, cujos aspectos culturais deste são e dos benefícios daí decorrentes.
tão importantes quanto os econômicos, já que a pessoa 11
As políticas culturais podem ser intergoverna-
humana tem o direito fundamental de participar e se mentais, regionais ou coordenadas por Organizações

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É razoável entender que a preservação modo que, por falta de uma política
patrimonial, porque elemento da cultura, governamental bem definida e de-
deve levar em conta o estabelecimento de lineada, a cultura vem se tornando
condições de vida digna para a população, cada vez mais dependente do mer-
bem como a vitalidade de forma integral cado e de sua mão invisível. E perde
dos centros históricos, por exemplo (HAR- sua garantia de efetivar-se como
DOY; GUTMAN, 1992). Mas, o Estado direito fundamental” (BARBALHO,
tem que papel no fomento às atividades 2005, p. 42).
culturais e na promoção da diversidade Isso pode ser o marco de integração
cultural? atrativa e concreta para os vastos contin-
gentes de jovens latinoamericanos que se
2. Da atuação do Estado no encontram fora do mercado de trabalho e,
fomento à cultura igualmente, excluídos da educação formal,
porque os espaços culturais apontam alter-
A cultura avulta como direito sobre o nativas de crescimento pessoal.13
qual gravita a obrigação estatal de mantê- Amparar a cultura (ligada à educação)14
la e de promovê-la para fins de inclusão demanda do Estado a atuação a fim de
social com vistas ao respeito à dignidade propiciar à pessoa humana maior oportu-
da pessoa humana12, mormente previstos nidade de enriquecimento espiritual e de
nas constituições democráticas. formação profissional. Essa ideia leva ao
O Estado, em todas as suas esferas, tem entendimento de repelir a padronização
tarefa imprescindível na gestão cultural e, da cultura, o monopólio das ciências e das
de modo particular, o Poder Local, mais artes, a imposição de modelos culturais
próximo da realidade e dos interesses e prontos e acabados, o fortalecimento do
necessidades locais, tem papel relevante autoritarismo avesso ao livre exercício da
na valorização e na preservação da cultura, criação e da liberdade crítica do ser humano
bem como do patrimônio cultural. Em vista (TÁCITO, 1985, p. 5).15
disso, aborda-se que:
“[...] como o Estado, na sua interface 13
A integração social da cultura, nesse mesmo per-
com o setor privado, se redime da curso, pode criar aporte para integração da instituição
familiar, com consequências positivas para sociedade
atuação como contraponto, como etc. De fato, reconhece-se o caráter aglutinador da
alternativa, que é o que se espera de cultura, uma vez que ela mesma é propulsora do
um regime democrático... ou seja, a desenvolvimento material e humano da sociedade.
ampliação das séries de possibilida- Eis que: “A cultura é um ímã para o turismo e para
os jovens que querem começar suas vidas num am-
des de atuação em qualquer área. De biente agitado e agitador. É também um ímã para as
empresas inter ou multinacionais que, na medida do
Não-governamentais (ONGs) e podem se agrupar em possível, esperam combinar facilidades econômicas de
três eixos fundamentais, como destaca Herrera Ala- produção com ambiente estimulante para seus qua-
mos (1990, p. 14,15): o reconhecimento, a conservação dros, o mesmo ambiente que hoje costuma qualificar
e o cultivo ao patrimônio cultural; a criação cultural as chamadas cidades globais numa escala comparativa
em todos os seus aspectos, abrangendo as artes, a internacional” (COELHO, 2008a, p. 65).
literatura, a ciência e a tecnologia; a comunicação, a 14
O direito à educação e à cultura é meio da for-
transmissão e a difusão da cultura nos termos antes mação plena da personalidade; não se limita apenas à
mencionados, junto às instituições de educação, para defesa do patrimônio cultural material, para se afirmar
que assegurem a transmissão das tradições e sua na fruição de bens culturais e educacionais, na garantia
evolução, e uma vasta série de procedimentos para do patrimônio imaterial (TÁCITO, 1985, p. 5).
esse fim. 15
É preciso, consoante proposto por Chauí (1995,
12
Em outros termos, a cultura mostra-se mola p. 83), o alargamento do conceito de cultura para além
propulsora das atividades humanas, seja no âmbito do campo das belas-artes, “[...] tomando-o no sentido
do direito, da economia, da sociologia, da ecologia, da antropológico mais amplo de invenção coletiva de
arquitetura, entre outras áreas do conhecimento. símbolos, valores, ideias e comportamentos, de modo

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A lógica econômica tende a cobrar a “Mesmo nos países onde o investi-
atuação do Estado por meio dos recursos mento privado prevalece sobre o dos
públicos. Pommerehne e Frey (1987, p. 621) poderes públicos, como é o caso dos
tecem comentários sobre a necessidade de Estados Unidos, o Estado não deixa
intervenção estatal para assegurar a devida de cumprir um papel importante na
dignidade e qualidade da arte, no contexto regulação desse investimento, além
das discussões no universo artístico e cul- de manter uma presença no financia-
tural, bem como dentro dos parâmetros mento direto das atividades artísticas
exigidos pelo mercado. e culturais, cumprindo uma missão
Nesse percurso, explicam-se as razões de correção das desigualdades eco-
para justificar o intervento do Estado na nômicas e sociais, quer de Estados da
arte e na cultura, principalmente porque federação, quer de minorias étnicas
parte da denominada literatura econômica e culturais. Desta forma, os poderes
expõe os motivos da insuficiente ação do públicos nos Estados Unidos (nas
mercado no campo artístico e cultural. Na diversas instâncias administrativas)
maior parte das vezes, tratam-se de bens são um dos principais suportes da
públicos e deles decorrem efeitos estimu- vigorosa vanguarda artística ameri-
lantes para a economia, incrementando o cana, por exemplo”.
turismo, com impactos positivos para a São visíveis, de um lado, o direito de
economia regional e também para a gera- acesso à fruição material, no qual se tem
ção de emprego (POMMEREHNE; FREY, o direito de visita (direito de ter acesso ao
1987, p. 624). lugar que tenha valor cultural ou contenha
Em outras palavras, observa-se que é objetos com valor cultural) e o direito de
necessária a intervenção do Estado não visibilidade (direito de ver o bem cultural
somente no fomento das atividades e das sem impedimentos) e, por outra banda,
ações ligadas à cultura e, de modo particu- o direito de acesso à fruição intelectual,
lar, às políticas culturais. Ademais, é preciso por meio do qual se identifica o direito ao
o envolvimento para prover e promover as conhecimento, à informação e à utilização
atividades culturais, especialmente quanto do conteúdo dos bens culturais (NABAIS,
à preservação do patrimônio cultural. 2004, p. 10).17
Recusa-se a redução da cultura à polari- A cultura e, de modo particular, o pa-
dade entre popular e de elite, pois enfatiza trimônio cultural são inerentes à pessoa
que a diferença na criação cultural passa humana. Por isso, é pontual a valorização
por outro lugar, qual seja, entre a experi- da dignidade da pessoa humana na medida
mentação inovadora e crítica e a repetição em que se objetiva empreender políticas
conservadora, pois tanto uma quanto outra para os empreendimentos turísticos e a
podem estar presentes tanto na produção consequente geração de emprego e renda,
dita de elite quanto na chamada cultura inclusive com a valorização da urbanização,
popular (CHAUÍ, 1995, p. 82).16 pela política pública planejada.
Na observação de Botelho (2001, p. 79), À sociedade cabe produzir cultura e ao
tem-se que: Estado incumbe a garantia das condições
para que o direito ao acesso à cultura seja
a afirmar que todos os indivíduos e grupos são seres
culturais e sujeitos culturais”. exequível. Em outras palavras, a atuação
16
Em desfavor da visão autoritária, a qual apregoa
o Estado interventor na cultura, Chauí (1995, p. 82) não 17
Segundo Kliksberg (2002, p. 487,488), além de se
acata a atribuição do Estado como produtor daquele poder interligar cultura, políticas sociais e valores, a
elemento, pois, é diferenciado o estadismo cultural cultura também interage em prol da integração social,
(cultura oficial) do caráter público da cultura (o Poder para abrir canais para reforçar o capital educativo das
Público estimula a criação cultural da sociedade). populações pobres.

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efetiva do Estado não se circunscreve ao aspecto político, refere-se à privatização
apenas na defesa do patrimônio cultural; do público, caracterizado principalmente
é imprescindível criar condições para que pelo abandono das políticas sociais por
a sociedade formule e implemente as po- parte do Estado.19
líticas culturais e de preservação, à qual a Em outra obra, Chauí (2006, p. 68) critica
realidade do Brasil tem demonstrado ser a política neoliberal e os seus efeitos no
extremamente difícil. (FONSECA, 1997, p. campo da cultura:
43; CALI, 2005, p. 17).18 “[...] a posição neoliberal, que começa
Os grupos produtores de cultura e os a deitar raízes desde meados dos anos
espaços os quais desenvolvem atividades 1980, minimiza o papel do Estado no
culturais (teatros, salas de exposições, bi- plano da cultura: enfatiza apenas o
bliotecas, capoeiras, patrimônio histórico, encargo estatal como patrimônio his-
centros culturais, entre outros) encontram tórico enquanto monumentalidade
apoio dentro da lógica dos mercados de oficial celebrativa do próprio Estado
consumo de bens e de serviços culturais, e coloca os órgãos públicos de cultu-
de molde que a cultura esteja ao alcance ra a serviço de conteúdos e padrões
de todos. Nesse sentido, adverte Coelho definidos pela indústria cultural e
(2008a, p. 68) que: seu mercado.”
“De instrumento da crença, religiosa Justifica-se, de mais a mais, a atuação
ou ideológica, a mercadoria e, agora, estatal no campo das artes e da cultura para
a serviço. Essa é uma história da cul- garantir a existência das ofertas culturais e
tura, uma história em nada previsível seu usufruto pela sociedade, bem como na
mas concreta porque já se desenha questão da valorização, e preservação, com
no horizonte social. Fazer da cultu- sustentabilidade (POMMEREHNE; FREY,
ra um instrumento privilegiado do 1987, p. 625).20 Além disso, entende-se que
desenvolvimento urbano e humano “[...] é o valor cultural atribuído ao bem que
sem transformá-la em serviço: assim justifica o seu reconhecimento como patri-
se pode formular um dos maiores mônio e, conseqüentemente, a sua proteção
desafios a enfrentar agora”. pelo Estado [...]” (FONSECA, 1997, p. 38).
Chauí (1995, p. 78) não fica à mercê dos
acontecimentos políticos atuais e critica a 19
Ademais, na realidade brasileira: “[...] o neo-
presença crescente do neoliberalismo, en- liberalismo significa levar ao extremo a polarização
carência-privilégio, a exclusão sociopolítica das
tendido sobre dois aspectos principais. Em
camadas populares, a desorganização da sociedade
primeiro, o econômico, sobre o qual está a civil como massa dos desempregados, a natureza
acumulação do capital, que não necessita oligárquica e teológica da política, o autoritarismo
incorporar mais pessoas ao mercado (de social e o bloqueio à democracia. Um dos efeitos
trabalho e de consumo), propiciando o mais terríveis do neoliberalismo brasileiro tem sido
o esfacelamento dos movimentos sociais e populares
desemprego estrutural. No que concerne que foram os grandes sujeitos históricos e políticos
dos anos 70 e 80” (CHAUÍ, 1995, p. 78).
18
De acordo com Nabais (2004, p. 92), já acerca da 20
Cunha Filho (2003, p. 110,111), inclusive, comen-
valorização do patrimônio cultural: “[...] o património ta o princípio da atuação estatal à cultura. Consoante
cultural apresenta-se também como uma componente esse princípio de suporte logístico, as iniciativas
importante da constituição cultural e da constituição ligadas às práticas culturais devem ser oriundas da
económica e social, na medida em que contribui para sociedade, competindo ao Estado, sem este ser neces-
a realização dos direitos à educação e à cultura, ao sariamente autorizado a “fazer cultura”, apoiar essas
ensino, à educação física e ao desporto, e constitui um iniciativas, fornecendo a infraestrutura adequada para
factor importante de desenvolvimento económico e as mesmas. Ademais, “[...] o suporte logístico referido
social”. Nota-se aqui, especificamente, a interrelação é implementado por tarefas específicas, como a cons-
dos direitos aptos a conferir qualidade de vida à trução de teatros, centros culturais, possibilitação de
pessoa humana. acesso a recursos públicos.

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Assim, o Estado, em parceria com o 3. Políticas públicas de cultura e
setor privado, pode dar sua contribuição à cidadania cultural
política cultural das seguintes maneiras: i)
pela redução das barreiras burocráticas em De fato, as temáticas da política cultu-
relação ao financiamento da arte e da cul- ral23 bem como da gestão cultural ganham
tura; ii) pela consideração da importância relevância nos debates acadêmicos no Bra-
dos mercados privados na gestão cultural, sil, na medida em que buscam incorporar o
(sabendo que o ente estatal interage para discurso segundo o qual o enriquecimento
o fortalecimento desse sistema, criando os intelectual e material delas são potenciais.
direitos de propriedade e as medidas para Diferentemente das ações assistencialis-
melhorar a afirmação do direito de dispor tas dos poderes públicos, as ações culturais
do bem cultural); iii) pela continuidade de têm características libertadoras, tanto é que,
subsídios indiretos, sob a forma de des- segundo Feijó (1985), os governos autoritá-
pesas fiscais; apoio financeiro direto, de rios nunca conviveram, harmoniosamente,
forma a estimular a participação e fruição com a cultura, porque essa majoritariamen-
dos bens e eventos culturais; iv) por meio te replicava as ações estatais contrárias aos
da promoção de novos talentos, mediante direitos da pessoa humana no que se refere
ajuda financeira direta, de maneira contro- à liberdade de opinião, à igualdade, entre
lada e planejada (POMMEREHNE; FREY, outros direitos e garantias fundamentais.
1987, p. 636,637).21 Estas são as observações de Chauí (2006,
No entanto, é comum a redução do p. 135):
financiamento público do setor cultural. “Quanto à perspectiva estatal de ado-
O Estado, por ação ou omissão, protela os ção da lógica da indústria cultural e do
planos de desenvolvimento, ou age, insu- mercado cultural, podemos recusá-la
ficientemente, na promoção de políticas tomando, agora, a cultura como um
públicas relacionadas à cultura. Inclusive, campo específico de criação: criação
essa maneira de proceder leva à desvalo- da imaginação, da sensibilidade e da
rização da política cultural e à banalização inteligência que se exprime em obras
do patrimônio cultura.22 de arte e obras de pensamento, quan-
do buscam ultrapassar criticamente
21
Chauí (2006, p. 102) direciona-se assim: “Entre o estabelecido. Esse campo cultural
três escolhas possíveis – a oficial autoritária, a popu- específico não pode ser definido pelo
lista e a neoliberal –, fizemos uma quarta: aquela que
restringe o Estado à condição de assegurador público prisma do mercado, não só porque
de direitos, prestador sociopolítico de serviços e este opera com o consumo, a moda
estimulador-patrocinador das iniciativas da própria e a consagração do consagrado, mas
sociedade, enfatizando a natureza de classe da nossa também porque reduz essa forma da
sociedade e a obrigação de uma política, se quiser ser
moderna e democrática, de garantir direitos, quebrar cultura à condição de entretenimento
privilégios, fazer ser público o que é público, abrir-se e passatempo, avesso ao significado
para os conflitos e para as inovações”. criador e crítico das obras culturais.
22
Botelho (2001, p. 77) destaca que: “[...] hoje, o
Não que a cultura não tenha um lado
financiamento a projetos assumiu o primeiro plano
do debate, empanando a discussão sobre as políticas
culturais. Render-se a isso significa aceitar uma inver- que se está tratando de renúncia fiscal e, portanto, de
são no mínimo empobrecedora: o financiamento da recursos públicos”.
cultura não pode ser analisado independentemente 23
Pode-se afirmar que a política cultural é a ação
das políticas culturais. São elas que devem determinar do Poder Público, organizações não-governamentais
as formas mais adequadas para serem atingidos os ou empresas privadas baseada em procedimentos ad-
objetivos almejados, ou seja, o financiamento é deter- ministrativos e orçamentários, com vistas a melhorar
minado pela política e não o contrário. Mesmo quando a qualidade de vida da pessoa humana por meio de
se transferem responsabilidades para o setor privado, atividades culturais, artísticas, sociais e recreativas
isso não exclui o papel regulador do Estado, uma vez (COELHO, 1997, p. 293; FEIJÓ, 1985, p. 7-9).

112 Revista de Informação Legislativa


lúdico e de lazer que lhe é essencial e Por se falar em política pública, entende-
constitutivo, mas uma coisa é perce- se que é o instrumento da ação estatal e
ber o lúdico e o lazer no interior da de seus poderes constituídos, de modo
cultura, e outra é instrumentalizá-la particular do Poder Executivo e do Poder
para que se reduza a isso, supérflua, Legislativo, de caráter vinculativo e obri-
uma sobremesa, um luxo em um país gatório, o qual permite dividir as etapas
onde os direitos básicos não estão de concreção dos problemas políticos
atendidos.” voltando-se à realização dos fins do Estado
Sob esse ponto de vista, ao Estado de- democrático de direito e ainda passíveis
mocrático de direito compete o fomento da de exame de mérito pelo Poder Judiciário
cultura, efetivando, pois, projetos e ações (SILVA, 2004, p. 104).
nesse sentido. Por esse aspecto, o dever de Diante disso, revela-se a pertinência da
planejamento24 é fortemente ligado à noção política pública à política cultural, opor-
de política pública. Assim é que o poder tunidade em que o Estado25 é sujeito ativo
local, necessariamente, há de se imiscuir da promoção e do respeito à diversidade
dessa visão também, porque não é somente cultural, bem como à salvaguarda dos
o dever do Estado a promoção do desenvol- bens culturais26. Amartya Sen (2002, p. 168)
vimento. Conforme escreve Albuquerque também menciona que:
Júnior (2007, p. 74): “Os indivíduos vivem e atuam em
“Não se trata de pensar o Estado um mundo de instituições. Nos-
como o mecenas, o censor ou o for- sas oportunidades e perspectivas
mulador de bens culturais, mas como dependem crucialmente de que as
o regulador e o investidor em áreas e instituições existem e do modo como
em expressões culturais que não são elas funcionam. Não só as instituições
do interesse da iniciativa privada contribuem para nossas liberdades,
ou que não visem imediatamente como também seus papéis podem ser
o lucro, mas a formação de subjeti- sensivelmente avaliados à luz de suas
vidades mais democráticas e mais contribuições para nossa liberdade.
problematizadoras do mundo em Ver o desenvolvimento como liber-
que vivemos.” dade nos dá a perspectiva na qual a
Pode-se afirmar que o planejamento, o avaliação institucional pode ocorrer
orçamento, as metas compõem as políticas sistematicamente.”
públicas, nas quais a cultura e suas práticas, A política cultural deve estar em sin-
efetivamente, são levadas em consideração tonia com novos paradigmas: a sociedade
para se aferir emprego e renda em deter-
minada região, confirmando, justamente,
25
Aponta Chauí (2006, p. 135) que: “Nessa visão
múltipla da cultura, nesse campo ainda da sua defi-
a relação íntima entre cultura e economia nição antropológica, toma-se evidente a impossibili-
(POMMEREHNE; FREY, 1987). dade, de fato e de direito, de que o Estado produza
cultura. O Estado passa a ser visto, ele próprio, como
24
No mais, o dever de planejamento “[...] foi se um dos elementos integrantes da cultura, isto é, como
tornando instrumento usual na implementação das uma das maneiras pelas quais, em condições históricas
políticas econômicas intervencionistas praticadas determinadas e sob os imperativos da divisão social
pelos estados que, adotando-o, acabaram por viabi- das classes, uma sociedade cria para si própria os sím-
lizar uma aproximação maior entre o querer político bolos, os signos e as imagens do poder. É produto da
– concebido, em termos ideais, como a representação cultura e não produtor de cultura. E um produto que
do querer social – e as motivações particulares que exprime a divisão e a multiplicidade sociais”.
compõem o jogo econômico. O planejamento [...] 26
Appiah (2007, p. 177) considera que é atitude
passou a ser notado por uma outra qualidade, a da ética a conservação da cultura porque considerada va-
sua indispensabilidade aos processos de conquista do liosa e apresenta valor para todos, não se restringindo
desenvolvimento” (SILVA, 2004, p. 98). apenas a certos grupos ou certas pessoas.

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civil e esta deve estar voltada para o seu de saúde e transporte, saneamento
desenvolvimento27. O controle social pode básico, entre tantos outros direitos.”
levar a consequências significativas à po- No entanto, não se pode cair no risco de
lítica cultural, bem como para a teoria do compreender o Estado sob o viés apenas
desenvolvimento econômico e humano. paternalista e, portanto, distribuidor de
Dessa forma, é necessário reconhecer que caridades. O desenvolvimento humano
a política cultural deve ser caracterizada comporta elementos entre os quais a cida-
pela participação social, de forma a confe- dania e a participação ativa da sociedade
rir maior espaço de representatividade no são metas prioritárias. Desse modo, as
setor da cultura (COELHO, 2007b, p. 17). políticas públicas são em prol da socieda-
Ora, a participação da sociedade civil na de, logicamente. Mas, interessa observar o
vida cultural é elemento indispensável nas interesse e a vontade dela mesma nos pro-
esferas públicas fundamentais, e ela mesma cessos políticos, conferindo a legitimidade
se concretiza “[...] em contextos de proximi- dos atos do governo.
dade, em praças e ruas, bairros, e cidades Nesse contexto, a cidadania cultural
concretas, relacionando o âmbito local e o surge como consequência das mudanças de
global, a memória e a inovação, num debate paradigmas necessárias ao Estado. Decerto,
criativo tenso” (PASCUAL, 2008, p. 54). a promoção da cidadania fomenta o contro-
Como se sabe, a cidadania não se con- le social em diversas áreas, estimulando,
figura somente como expressão da capa- assim, a busca pelo lazer e pela cultura.
cidade política de indivíduos em eleger Apontam-se as estratégias políticas para
seus representantes políticos. No mesmo cidadania cultural sob três vertentes: a)
sentido, expressa-se na condução e na ex- promoção do acesso ao conhecimento na
pansão de canais participativos e gestão de- sociedade complexa, pela democratização
mocrática dos assuntos públicos e, também, do conjunto de bens e de serviços culturais
na garantia do efetivo respeito e promoção produzidos histórica e contemporaneamen-
dos direitos fundamentais como condição te pela humanidade; b) incentivo ao capital
de desenvolvimento da pessoa humana. cultural como pilar para o desenvolvimento
Acresce Dias (2008, p. 216) que: socioeconômico local, identificando cadeias
“Os direitos reivindicados são o refle- produtivas geradoras de renda e crescimen-
xo da falta de condições materiais para to econômico; c) fortalecimento do papel
realização dos direitos fundamentais. social da cultura, tomada como o elemento
No espaço urbano, estas carências são capaz de integrar a pessoa humana a sua
refletidas na falta de segurança e de coletividade (PORTO, 2006, p. 72).
qualidade de vida, de moradia, do Por isso, muito se debate também a res-
acesso ao direito de propriedade, e do peito da democracia cultural que, na expli-
direito à moradia, do direito ao acesso cação de Botelho (2007, p. 173), pressupõe:
ao solo urbano, da falta de elemento a existência de vários públicos, não apenas
natureza a dar maior qualidade de de público uno e homogêneo; a existência
vida e saúde aos habitantes, da falta também do entendimento único para a legi-
timação das práticas de cultura; ela se apoia
27
O princípio da participação popular é consisten-
te na faculdade de a pessoa humana, individualmente em novas pesquisas, desinteressando-se
ou por organizações da sociedade civil, poder opinar, pelas variáveis de classe, renda, idade,
discutir acerca da política cultural a ser empreendida. domicílio como razões relevantes para o
Há mais prescrições constitucionais, pelas quais fa- menor ou o maior consumo cultural.28
cultam ao cidadão o direito de ação com a finalidade
de proteger o patrimônio cultural e também outras 28
A cidadania democrática e cultural contribui
normas as quais institucionalizam a participação por para a superação de desigualdades, para o reconheci-
intermédio de conselhos, comissões e outras instâncias mento das diferenças reais existentes entre os sujeitos
representativas (CUNHA FILHO, 2003, p. 109,110). em suas dimensões social e cultural. Ao valorizar

114 Revista de Informação Legislativa


Advirta-se que o tema dessas políticas dificuldade de avançar nas relações com os
está associado ao debate dos atores das demais ministérios e o próprio executivo.
políticas públicas e dos procedimentos para Mais próximo estão as ONGs e mesmo
a execução delas e que somente as políticas organismos internacionais como a Unesco
submetidas à discussão da sociedade dire- (SIMIS, 2007, p. 147).
tamente interessada podem ser entendidas, Assim, é pertinente afirmar que:
substancialmente, como políticas públicas “[...] a política cultural está (e quer
de cultura (RUBIM, 2007, p. 151). estar) no meio do quadro político,
Na visão de Oliveira e Silva (2008, p. em algum ponto entre a política
77): econômica, a social e a educacional
“[...] a política cultural só pode ser e a política para o desenvolvimento
pensada hoje enquanto ação cole- urbano. Esta talvez seja a tarefa prin-
tiva, criada e implementada com a cipal da política cultural urbana – ser
participação ativa dos indivíduos, uma espécie de junção e ‘correia de
sem o que não faz mais sentido. Pro- transmissão’ para assegurar a ligação
ximidade torna-se a palavra-chave entre os diferentes campos e tarefas
para designar a política cultural: políticas – proteger a diversidade,
quanto mais perto dos indivíduos, promover a cultura para se tornar um
mais viável torna-se sua participação, pilar econômico e incluir a sociedade
refletindo os desejos dos que dela se civil” (HEINRICH, 2008, p. 101).
beneficiarão.” No aprimoramento democrático, em
A essa evidência, tratar do direito à que ocorre a “[...] luta contra privilégios e
cultura envolve os aspectos essenciais para em busca de uma socialização, estão não
análise da obrigação estatal em suprir as ca- apenas bens materiais [...] o Estado é res-
rências reclamadas pela sociedade e, diante ponsável pela promoção da política cultu-
disso, operar políticas públicas nas quais ral, nela incluída a defesa do patrimônio”
privilegiem direitos há tempos protelados. (SIMIS, 2007, p. 135).
Ademais, reconhecida a cultura como À gestão pública local competirá im-
direito fundamental, inclusive declarado plementar as políticas de desenvolvimento
em normas jurídicas nacionais e interna- mediante a utilização de instrumentos
cionais, ao Estado e à sociedade civil res- jurídicos institucionais disponíveis, tal
tam o aprimoramento das ações políticas como a realização do planejamento,
específicas de cultura, com a participação votação orçamentária com participação
e o controle permanente para o aperfeiço- popular e atos normativos específicos de
amento dos espaços culturais. realização concreta dos comandos na esfera
A política deixou de ser balcão e se administrativa, pelos órgãos competentes
tornou pública e cultural, ao formular incumbidos de sua implantação (SILVA,
projetos e incentivar o desenvolvimento 2004, p. 128).29
cultural, articulando relações dentro e fora No caso de políticas para as áreas urba-
do governo, embora essa última nem sem- nas, torna-se premente garantir a participa-
pre tenha sucesso. Se por um lado a nova ção da sociedade, para configurar a gestão
formulação teórica que embasa a política
cultural exige maior articulação em rela-
29
Destaca Chauí (2006, p. 136): “Se o Estado não é
produtor de cultura nem instrumento para seu consu-
ção a todas as ações governamentais, nem mo, que relação pode ele ter com ela? Pode concebê-la
sempre isso se torna realidade. Há enorme como um direito do cidadão e, portanto, assegurar o
direito de acesso às obras culturais produzidas, par-
múltiplas práticas e demandas culturais, o Estado ticularmente o direito de fruí-las, o direito de criar as
está permitindo a expressão da diversidade cultural obras [...] e o direito de participar das decisões sobre
(CALABRE, 2007, p. 102,103). políticas culturais”.

Brasília a. 47 n. 185 jan./mar. 2010 115


democrática, abrindo novas possibilidades valorização e recuperação do patrimônio
para essa participação na produção de cultural, a CF/88 define como concorrente,
atos legislativos, na fiscalização de atos do de modo expresso, a competência entre
poder público em geral, na participação de União, Estados-membros, Distrito Federal
audiências públicas, na formação de con- e Municípios (art. 23, incisos. III, IV, V e VI
selhos municipais, associação de bairros, 32
, e 30, inciso IX33).
bem como na delegação de competência ao O Poder Local municipal apresenta
cidadão como ator responsável pela prote- relevância para o devido enfrentamento
ção do patrimônio público e pela defesa do das mazelas sociais. Como adverte Botelho
meio ambiente (DIAS, 2008, p. 215).30 (2001, p. 75):
“[...] a ação sociocultural é, em sua
4. Poder local e direito essência, ação micro que tem no
ao patrimônio cultural município a instância administrativa
mais próxima desse fazer cultural.
A Constituição vigente expressamente Embora esta deva ser preocupação
estabelece a competência concorrente da das políticas de todas as esferas ad-
União, dos Estados-membros e do Distrito ministrativas, o distanciamento que
Federal para legislarem sobre o patrimônio o Estado e a Federação têm da vida
cultural e sobre a responsabilidade por efetiva do cidadão dificulta suas
danos causados a bens e direitos de valor ações diretas. No entanto, é claro que
artístico, estético, histórico, turístico e pai- não as impede. Em primeiro lugar,
sagístico (MARCHESAN; STEIGLEDER; seu apoio as legitima politicamente.
CAPELLI, 2007, p. 94). Em segundo, estas duas instâncias
Afirma-se que os Municípios, embora podem ter ações diretas, mas sempre
não estejam entre os habilitados a exerce- em parceria com o nível municipal –
rem essa competência legislativa prevista que deve ser sempre o propulsor de
no artigo 24 da CF/88 31, também têm com- qualquer ação conjunta.”
petência para a edição de leis que visem O patrimônio cultural liga-se também ao
a organizar e a tutelar o seu patrimônio meio ambiente34 e surge daí a necessidade
cultural, porque aos referidos entes cabe
legislar suplementarmente à legislação
32
“Art. 23. É competência comum da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: [...] III
federal e estadual no que couber (art. 30, – proteger os documentos, as obras e outros bens de
II), além do dever de fiscalização do patri- valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as
mônio histórico-cultural local. paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
Devido ao exercício do poder de polícia IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracteri-
zação de obras de arte e de outros bens de valor histó-
e à execução de ações relativas à prevenção, rico, artístico ou cultural; V proporcionar os meios de
acesso à cultura, à educação e à ciência; VI – proteger
30
Chauí (1995) trata da cultura política e da política o meio ambiente e combater a poluição em qualquer
cultural focando considerações acerca da cidadania de suas formas [...]”
cultural no contexto da cidade de São Paulo, que segue 33
“Art. 30. Compete aos Municípios: […] IX –
o ritmo da lógica de mercado. Eis por que justifica-se promover a proteção do patrimônio histórico-cultural
plenamente o envolvimento do Estado nas políticas local, observada a legislação e a ação fiscalizadora
que viabilizem a referida forma de cidadania nas quais federal e estadual [...]”.
se divorciem do autoritarismo social, calcado, forte- 34
Nesse sentido, conferir o seguinte pensamento:
mente, nas máquinas mitológica e ideológica pelas “No século XX começam a ser inseridas no patrimônio
quais inviabilizam projetos políticos democráticos. as preocupações com o meio ambiente e as produções
31
“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao dos ‘excluídos’, ou seja, passam a ser objeto de pre-
Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: servação a memória dos operários, dos imigrantes
[...] VII – proteção ao patrimônio histórico, cultural, e das minorias étnicas. Novas questões começam a
artístico, turístico e paisagístico; [...] IX – educação, surgir como o uso social do patrimônio; a relação
cultura, ensino e desporto;” entre o novo e o antigo, com a idéia de historicidade,

116 Revista de Informação Legislativa


de observância ao patrimônio natural como constatação, a cultura passa a ter lugar re-
forma de fortalecer a identidade cultural de servado. Por essa razão, diz-se ser domínio
um determinado povo; o patrimônio cultu- central das políticas públicas os temas re-
ral não fica, pois, radicado no que é material lacionados às políticas culturais (consumo
e fruto somente da ação humana, mas tam- cultural, práticas culturais, economia da
bém oriunda dos fenômenos da natureza, cultura, turismo, direito à cultura, direitos
quando certas paisagens naturais vão ao culturais, entre outros).
encontro das aspirações sociais, posto que A cidade e a cultura se interligam e,
há o fortalecimento da identidade cultural, assim, exigem a renovação e a expansão
bem como surge a paisagem natural como dos recursos culturais à cidade; o apoio às
fonte de geração de riqueza, investimento instituições culturais; novas formas de re-
para o turismo sustentável e ação presente lação com os problemas urbanos; estímulo
do Poder Público.35 às culturas diversas; promoção do desen-
Destarte, revela-se a face positiva das volvimento humano, além do econômico;
propostas de Chauí (1995, p. 82), segundo respeito aos direitos culturais; definição de
as quais entende que a cultura foi pensada indicadores culturais para nova gestão cul-
como direito da pessoa humana e a política tural da cidade; a cultura institucionalizada
cultural como cidadania cultural, sendo que e fazendo o centro nas políticas públicas,
esta tinha por objetivo também a cultura sem esquecer da sustentabilidade desse
política nova. Tanto é que afirma: processo; e o ativismo da sociedade civil no
“Há ainda uma outra modalidade contexto das políticas culturais (COELHO,
de ação estatal, mais recente, em 2008b, p. 9,10).
que o Estado propõe o ‘tratamento Por isso que se identificam alternativas
moderno da cultura’ e considera dentro da arena cultural (tomada a cultura
arcaico apresentar-se como produtor como motor para o desenvolvimento hu-
oficial de cultura. Por modernidade, mano), de modo a propiciar oportunida-
os governantes entendem os critérios des de inserção social para comunidades
e a lógica da indústria cultural, cujos marginalizadas, necessitando, contudo,
padrões o Estado busca repetir, por de planejamento político dentro do qual a
meio das instituições governamentais comunidade tenha direito de participação.
de cultura. Dessa maneira, passa a Detecta-se essa realidade de envolvimento
operar no interior da cultura com os dos atores sociais no que se refere à gestão
padrões de mercado” (CHAUI, 2006, dos bens culturais:
p. 114). “[...] as reivindicações das diferentes
Reforça-se o papel definitivo da cidade comunidades, no sentido da sua
na definição de políticas públicas, pois é por participação e envolvimento nos
meio do Poder Local que há mais contato processos de representação cultural,
direto com a realidade social. Diante dessa e também as exigências dos próprios
poderes políticos, preocupados com
pois todas as épocas são importantes na configuração a diminuição do capital cultural das
dos espaços urbanos; a relação do patrimônio com a
instituições culturais públicas” (ANI-
indústria cultural e turística; a participação popular
nas decisões; a descentralização administrativa; e a CO, 2005, p. 79).
inserção da política de preservação na política urbana A necessidade de controle social do
e regional” (RIBEIRO, 2005, p. 48). patrimônio cultural é importante, porque
35
Para Corrêa (2008, p. 118), “[...] o dilema da é consentânea dos mecanismos próprios
exclusão e da inclusão da maioria da população no
processo social repercute inevitavelmente nas políti-
de bem-estar social, de vez que faculta à
cas de preservação e promoção dos valores culturais comunidade local os instrumentos propi-
nacionais e regionais”. ciadores do direito fundamental ao desen-

Brasília a. 47 n. 185 jan./mar. 2010 117


volvimento humano. Daí ser importante a do espetáculo, no intuito de atrair mais
sistemática de atuação, principalmente do cientistas, técnicos informáticos, turistas e
Poder Público, para que a educação formal outros peregrinos estrangeiros que as farão
seja realmente reformada e aberta para mais multicultural. A partir daí, surge a
incluir as pessoas, conscientizando-as de problematização acerca da capacidade para
suas responsabilidades, em detrimento das se construir, com tanta diversidade, cidades
desigualdades sociais. do reconhecimento (GARCÍA CANCLINI,
À participação da sociedade civil ne- 2008, p. 25).
cessária a efetivação de ações políticas que Essa, a propósito, é a visão de Pascual,
privilegiem o direito à informação, especifi- segundo a qual “a cultura assumiu uma
camente a educação patrimonial, porque: maior centralidade no recente processo
“[...] a complexidade da proteção de globalização [...]” e a sua centralidade
de uma coleção tão extensa de bens dentro do processo de globalização “[...] diz
culturais dispersos em tão imenso respeito a todos, setores públicos, privados
território tem implicado a adoção de e sociedade civil e leva a repensar imagi-
ações pontuais no campo das políti- nários, tanto nos âmbitos globais como nos
cas públicas devotadas à defesa do locais” (PASCUAL, 2008, p. 52).
patrimônio e do turismo. Estas têm Destarte, o tema do patrimônio cultural
sido respaldadas pela implantação é, em grande parte, restrito e dirigido, de
de cursos de Educação Patrimonial e um lado, pelos intelectuais que atuam em
Educação Ambiental, tomadas como aparelhos burocráticos e, de outro, pelos
instrumentos para a construção da interesses da indústria do turismo, entre
cidadania, do progresso econômico outras práticas comerciais. Algumas em-
e da preservação dos bens culturais e presas, assim, aparelham o Estado para
sócio-ambientais” (PELEGRINI, 2006, que este aja em nome de seus interesses
p. 121,122). econômicos mais imediatos (CORRÊA,
García Canclini (2008, p. 19) questiona 2008, p. 90).37
se as sociedades estão transformando as O enfoque de desenvolvimento econô-
cidades por meio do conhecimento e da mico de determinadas cidades ou regiões
cultura ou se estão convertendo as urbes tem muito que ver com as formas de
em espetáculo cultural sem haver modifi- desenvolvimento humano, ao tornar a de-
cações substanciais em face das desordens mocracia como algo próximo da realidade
estruturais. Para o citado autor, já que a brasileira, por, essencialmente, afastar as
chamada espetacularização do social exis- formas de manobras ímprobas nos gover-
te desde há muito (missas, desfiles etc.), nos, em todas as esferas, e que desgastam
a sua hipertrofia, dada a realidade atual os incipientes processos de participação
de industrialização da cultura, aumenta o política, malferindo, diuturnamente, a
risco de desvio à satisfação de necessidades coisa pública.
sociais básicas. As liberdades como meio para o de-
No século XXI, as chamadas cidades senvolvimento são, assim, prementes para
multiculturais36 adotam o perfil caracte- que os direitos humanos civis, políticos,
rístico de desenvolver bairros do conhe- econômicos e culturais sejam promovidos,
cimento ou dos museus ou da cultura e
37
É de grande responsabilidade recolocar a so-
Nas cidades, esse fenômeno bastante frequente,
36
ciedade civil no centro do debate político, no que diz
traduzido na redução desse espaço ao espetáculo, fica respeito à função social da memória, bem como do
atrelado ao predomínio do marketing e à captação de patrimônio cultural (CORRÊA, 2008, p. 90), afastando
investimentos sobre o sentido social dos bens materiais a tradição do Estado autoritário e centralizador quanto
e simbólicos (GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 19). à gestão do patrimônio cultural.

118 Revista de Informação Legislativa


providos e respeitados, e daí a necessidade inclusão. O que pode parecer à pri-
de cada vez haver o fortalecimento entre so- meira vista uma afirmação que beira
ciedade e Estado, para tornar viável o proje- o lugar comum, revela uma proble-
to de gerenciamento da coisa pública. mática das mais centrais para a teoria
Por essa razão, ao identificar a liberdade democrática. Uma vez que a inclusão
e as oportunidades de promoção da pessoa não ocorre por meio do apagamento
humana na sociedade, a partir da perspec- daquilo que condiciona a exclusão,
tiva do desenvolvimento social, Amartya mas, justamente, pela reafirmação
Sen (2000, p. 71) observa que: desse condicionante, o processo de
“Os fins e os meios do desenvolvi- inclusão provoca mudanças radicais
mento exigem que a perspectiva da que rearranjam a posição relativa dos
liberdade seja colocada no centro do sujeitos que já estavam plenamente
palco. Nesta perspectiva, as pessoas inseridos na sociedade. Tomando o
têm de ser vistas como ativamente poder como uma equação de soma
envolvidas – dada a oportunidade zero, ver-se-á que para cada sujeito-
na conformação do seu próprio des- grupo incluído corresponde alguma
tino, e não apenas como beneficiárias perda de poder para um grupo ante-
passivas dos frutos de engenhosos riormente incluído. Isso explica em
programas de desenvolvimento. O muitas medidas as dificuldades das
Estado e a sociedade têm papéis de experiências participativas.”
sustentação, e não apenas de entrega No contexto da consecução das políticas
sob encomenda.” urbanas, a participação popular afigura-se
Porém, a realidade vivenciada pela como requisito indispensável à validação
sociedade brasileira, no que se refere à cor- e eficácia dos atos do Poder Público relati-
rupção política e toda sorte de escândalos vamente ao patrimônio cultural, com vistas
políticos denunciados, amiúde, pelos meios ao aquecimento da economia local e da
de comunicação de massa, concorrem à promoção do desenvolvimento humano.
indisposição e à indiferença dos cidadãos Dessa maneira, é possível se compreender
quanto ao aprimoramento dos canais par- que somente “o povo pode apontar as
ticipativos e à participação social na gestão necessidades e as urgências para vida com
da coisa pública. maior qualidade nos espaços urbanos”
As atividades, os bens e os serviços (DIAS, 2008, p. 213).
culturais possuem dupla natureza, tanto
econômica quanto cultural, que são porta-
5. Considerações finais
dores de identidades, valores e significa-
dos, não devendo, portanto, ser tratados A cultura é direito da pessoa humana e,
unicamente como se tivessem apenas valor por isso, urge ser respeitada e promovida,
comercial. Urge reconhecer a cultura como competindo ao Estado, principalmente,
prioridade para o desenvolvimento socio- criar os mecanismos pelos quais permita,
econômico e como necessidade básica da continuamente, o empreendimento de po-
pessoa humana. líticas à finalidade de proteção dos direitos
Nunca é demais exaltar que vige o humanos também relacionados à cultura.
embate entre democracia e inclusão para Nesse percurso, é forçoso concluir, ain-
promover as transformações reclamantes da, que o patrimônio cultural, como parte
de justiça social, pois, como lembra Pinto integrante da cultura, lança as bases para
(2005, p. 105): atrair e para gerar riquezas econômicas,
“A questão fundamental, então, bem como favorecer o respeito aos modos
reside na dicotomia democracia e de vida, às crenças, aos costumes e tudo

Brasília a. 47 n. 185 jan./mar. 2010 119


mais que tenha intervenção humana; que atividade turística, sendo eles próprios
a diversidade cultural deve ser valorizada detentores de bens culturais ou ofertando
pelo Estado e que as políticas culturais insuficientemente referidos bens ao lazer,
podem estar focadas no sentido de propor- à ciência e à educação, por exemplo –, po-
cionar qualidade de vida à coletividade. dem ficar prejudicados, principalmente nos
Ademais, entende-se hodiernamente a tempos de crise econômica e de arrecadação
economia como intimamente relacionada de tributos.
à cultura para consolidar novos processos
de inclusão social e geração de emprego e
renda. Sendo assim, os bens culturais e, em Referências
particular, o patrimônio cultural denotam
valor social e econômico, aptos a atrair fi- ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Gestão
nanças para circulação de renda e trabalho, ou gestação pública da cultura: algumas reflexões
sobre o papel do Estado na produção cultural con-
seja pelo turismo, seja pelo investimento em temporânea. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas;
pesquisa científica. BARBALHO, Alexandre (Orgs.). Políticas culturais no
Ora, determinado patrimônio cultural Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007.
só pode ser usufruído e fruído quando ANICO, Marta. A pós-modernização da cultura. Ho-
houver a salvaguarda e o despertar do inte- rizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 23, p.
resse geral da pessoa humana, beneficiária 71-86, jan./jun. 2005.
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