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UFRJ/ Museu Nacional/ PPGAS

Professores Moacir Palmeira (PPGAS/MN) e Marcos Otavio Bezerra (UFF)

Trabalho final do curso: Antropologia do Poder, 2016.2

O Fazer-se da Burocracia:
Notas sobre o Estado e a corrupção a partir da China Imperial

Aluna: Renata Barbosa Lacerda (UFRJ/ PPGAS)

Texto apresentado: WILL, Pierre-Etienne. Bureaucratie officielle et bureaucratie


réelle. Sur quelques dilemmes de l'administration impériale à l'époque des Qing. Études
chinoises, v. VIII, n.1, 1989, p.69-142.
1

INTRODUÇÃO

A relação entre a burocracia imaginada e praticada no cotidiano é um dos


principais temas de Pierre-Étienne Will (1989)1 em seu ensaio sobre a China imperial
intitulado Burocracia oficial e burocracia real: sobre alguns dilemas da administração
imperial na época dos Qing2. Duas obras são centrais na construção de sua
argumentação: o manual de 1699 do ex-subprefeito chinês Huang Liu-hung (traduzido
por Djang Chu em 1984) chamado Um livro completo sobre felicidade e benevolência:
um manual para magistrados locais na China do século XVII3; e o livro do seu
contemporâneo James H. Cole, cujo título é Shaoxing: competição e cooperação na
China do século XIX4. Apesar de serem diferentes em sua natureza, recortes espaciais e
temporais, ambas as obras retratam as realidades locais da China como “selvas” e, em
conjunto, mostram continuidades e descontinuidades históricas da formação do Império
chinês.

Huang Liu-hung foi magistrado (subprefeito) da subprefeitura de Tancheng,


local marcado pela miséria, violência e criminalidade. Seu manual retrata os vinte a
trinta anos que se seguiram à derrota dos Ming (década 1670) em certas regiões, com
foco nessa subprefeitura. Pierre-Étienne o aponta como um caso excepcional do que
seria um magistrado ideal, enfatizando que a maioria não se encaixava nesse modelo.
Porém, assim como os demais magistrados chineses citados no ensaio, Liu-hung revelou
em seus escritos sobre a vivência dos problemas da administração cotidiana o que
considerava ser o governo ideal e suas perversões, conforme pressupostos da tradição de
sua época.

1 Pierre-Étienne Will foi diretor de estudos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de 1988 a
2014, onde havia defendido sua tese em 1975, intitulada Burocracia e a fome na China do século 18,
dinastia dos Qing.
2 O império Qing foi a última dinastia imperial da China, de 1644 a 1912. Teve início quando os manchus
invadiram o norte da China em 1644 e derrotaram a dinastia Ming. Os manchus expandiram a dinastia
para a China propriamente dita e os territórios circundantes da Ásia central. Terminou com a Revolução
Xinhai, quando foi proclamada a República da China. Conforme Will, os Qing adotaram a escolha dos
Ming em favor de uma administração local a baixo custo e a acentuaram, concentrando-se mais do que
antes na cobrança de taxas e na responsabilização dos magistrados das subprefeituras para o bom
funcionamento da burocracia (1989, p.99).
3 No original, Fuhui: le “bonheur” qu'assure au peuple la “bienveillance” impériale relayée par les
fonctionnaires locaux. Os "manuais de funcionários" são publicados desde a dinastia Song (960-1279)
especialmente para o uso dos magistrados.
4 COLE, James H. Shaohsing: competition and cooperation in nineteenth century China. Association for
Asian Studies Monograph, n. XLIV., xv, 315 pp. Tucson, Arizona: University of Arizona Press, 1986.
2

Já James H. Cole é um historiador contemporâneo que participou do projeto


Ning-Shao da Universidade de Stanford (EUA), coordenado por William Skinner,
estudioso da história chinesa. Cole estudou mais especificamente dois distritos mais
urbanizados e densamente povoados (Shanyin e Guiji) da prefeitura de Shaoxing (Mapa
1), situada numa província próspera, onde a “lei da selva” integrava a “ordem das
coisas” e da onde se originava grande parte da elite burocrática chinesa durante a
segunda metade dos Qing (século XIX).

Mapa 1: Localização de Tancheng e Shaoxing

Fonte: Wikipedia.

Com base nesses dados e análises, Pierre-Étienne Will tem por objetivo
demonstrar como uma burocracia em formação e composta por um quadro de
funcionários predominantemente incompetente e/ou corrupto, se manteve em uma
extensão territorial em expansão (ver Mapa 2) por dois séculos e meio (1644-1912) 5. A
questão que abre o ensaio é: como funcionários espalhados por esse território, sujeitos a

5 Segundo Will, mais surpreendente à primeira vista é a prosperidade alcançada da dinastia Qing de 1680
a 1820.
3

duras obrigações e forçados a contornar regulamentos para sobreviver, encontraram


uma maneira de governar uma sociedade tão numerosa estruturada por instituições
costumeiras e redes de poder? Para ele, as variáveis formas de governo e de sua
organização burocrática se mantiveram através do equilíbrio instável de múltiplos
fatores sociais, políticos, institucionais, econômicos e morais.

Mapa 2: Território chinês nas dinastias Ming e Qing e na República

Fonte: Wikipedia.

Assim, no cotidiano da burocracia Will observa como seus agentes lidam com os
problemas estruturais criados pela burocracia oficial. O presente trabalho pretende
abordar essas questões apresentadas por Will à luz da literatura que trata do Estado a
partir da discussão sobre a corrupção.

CONFLITO DE LEALDADES

Ao descrever as mudanças da complexa organização burocrática do império


chinês, composta por uma categoria heterogênea de mandarins e seus subordinados
(funcionários subalternos), Pierre-Étienne Will (1989) mostra a construção do Estado
dinástico chinês por meio das práticas e representações acerca das tensões entre a
lealdade às próprias raízes e a lealdade estatal. Essas tensões caminharam lado a lado
como a oposição histórica entre os modos de reprodução por linhagem (nobreza de
sangue, reproduzida pela genealogia) e burocrática (nobreza de toga, assalariada,
reproduzida principalmente pelo sistema escolar) analisada por Bourdieu (2014).
4

Em síntese, até a implantação da República da China, os mandarins


tradicionalmente eram os burocratas de origem letrada, os quais tinham acesso aos
escalões superiores do aparelho estatal (acima dos subalternos) por meio de títulos
acadêmicos ou da compra de cargos – prática legal que se disseminou e cresceu durante
a dinastia Qing principalmente tendo em vista o aumento da captação de recursos. Esses
burocratas comandavam os yamen – escritórios governamentais, tais como os governos
provinciais, os ministérios e, na camada inferior da hierarquia do mandarinato, as
subprefeituras –, onde residiam.

Os magistrados (subprefeitos), por seu turno, eram burocratas que recebiam


baixos salários e eram responsáveis pelos yamen das subprefeituras, tendo sob os Qing a
principal responsabilidade do funcionalismo público. Em tese, deveriam estar
diretamente em contato com a população; porém, muitas das suas operações eram
delegadas para uma equipe de assistentes que contava com: (1) secretários privados
(muyou), conselheiros técnicos especializados, pagos pelos burocratas com seu próprio
salário – que os contratavam com base em seu caráter, pois a eles confiavam a
administração judicial ou fiscal dos yamen; (2) servidores pessoais (changsui) que não
têm salário e são responsáveis pela residência do burocrata, pela secretaria geral do
yamen, pela gestão das reservas de grãos, pela guarda dos portões e missões no exterior.

Como Bourdieu (2014) destaca no trabalho de Will, os teóricos legalistas


chineses tiveram um papel análogo ao dos juristas na França por terem construído um
discurso que buscava conciliar a lealdade ao imperador (logo, ao Estado e seus
funcionários) com a lealdade aos deveres locais e familiares (em especial a obediência
filial, baseada na filosofia confuciana), dando primazia à primeira. Parte dessa luta
simbólica travada em meio às tensões de lealdades deu origem a novas práticas e
normas regulamentares6, como a “lei de evitamento”, que remonta à dinastia Han (206

6
Outro exemplo dessa tensão de lealdades é exposta por Will ao abordar o recrutamento: “[Os Qing]
instituíram garantias institucionais através do desenvolvimento de procedimentos de avaliação e punição
dos funcionários, o que não tem equivalente nos regimes precedentes. O mesmo desejo de jogar em nos
dois lados da "lei" e do "homem" é encontrado no fato de que a grande burocratização dos procedimentos
de nomeação para cargos (com base em títulos, antiguidade, local em listas de espera...) foi
contrabalanceada pela margem de iniciativa deixada aos governadores provinciais para recomendar os
melhores entre os seus subordinados para as magistraturas classificadas como "importantes". O objetivo
era a seleção de uma elite burocrática (e não meramente intelectual ou moral)” (WILL, 1989, p.100,
tradução minha).
5

a.C. - 220 d.C.). Essa lei proibiu burocratas de trabalharem em suas províncias natais de
modo a prevenir o seu conluio com seus parentes e concidadãos.

No entanto, na interpretação do historiador James H. Cole, a redução das tensões


se deu num sentido imprevisto pelos legalistas: manifestou o comprometimento aos
locais de origem, uma vez que evitou que os burocratas se sentissem julgados
moralmente pelos seus concidadãos ao buscarem o enriquecimento – ou simplesmente
fontes alternativas aos baixos salários para seus gastos pessoais e profissionais –, além
de não impedir o envio dos recursos adquiridos extraoficialmente aos seus concidadãos
tendo em vista atender às suas expectativas por ter um cargo oficial (WILL, 1989, p.
103)7, o que será tratado mais adiante. A coexistência entre o comprometimento com as
“raízes” e a migração para outras regiões é mencionada no âmbito comercial por Cole
quanto ao período imperial e por Stafford (2006) com relação à China contemporânea.
Aquele observou, em meio ao fenômeno difundido de expatriação comercial, que os
comerciantes de grãos “estrangeiros” em Shaoxing se sentiam mais livres para especular
e deixar a população passar fome em um ano de inflação. Já Stafford aponta que é muito
comum em localidades rurais na China haver lojas de “estrangeiros”, pois para
comerciantes a familiaridade obrigaria os comerciantes a darem suas mercadorias aos
parentes e amigos, enquanto que para vendedores a familiaridade pode ser vista como
garantia de confiança, central na conceitualização da população das boas relações de
troca.

Desse modo, a lógica da ética chinesa é a mesma para comerciantes ou


funcionários estatais: é mais fácil explorar não compatriotas e os lucros feitos às suas
custas, seja por apropriação indevida ou por especulação, beneficiam compatriotas. A
partir da análise de Shore (2015) sobre a construção da Comunidade Europeia (CE,
serviço civil da União Europeia) e a corrupção generalizada nesse contexto de
burocracia altamente racionalizada, se poderia ainda estender essa interpretação para
além do contexto chinês e indagar: até que ponto o isolamento dos compatriotas e da
população do local de chegada pode gerar uma maior impessoalidade – a
“desfamilização” ou “desnacionalização” requeridas por uma burocracia racional-legal
aos moldes weberianos – e até que ponto as consequências disso podem ir contra as

7 Para outras referências acerca das expectativas de familiares ou outras pessoas próximas quanto à
melhora de vida e recebimento de ajuda por parte de quem conseguiu entrar num cargo público, cf. Das
(2015); Smith (2007); Blundo; Olivier de Sardan (2001); entre outros.
6

intenções de maior racionalização e transcendência dos criadores de normas desse


gênero8? Com base em Will, se pode afirmar que as condições de surgimento da
indiferença ao grupo de pertencimento local pode sim favorecer (e muito) a transgressão
às novas regras – de formas imprevistas no caso observado por ele e por Shore –, as
quais foram criadas a partir do discurso de racionalização correspondente à lealdade ao
Estado. Os próximos itens tratarão desses efeitos imprevistos e, de certo modo,
inevitáveis.

INTERMEDIÁRIOS, DELEGAÇÃO E NOMEAÇÃO

Além de ter facilitado formas de corrupção ou de enriquecimento não oficial, a


“lei de evitamento” contribuiu ainda para o que Will destaca como um dos principais
problemas estruturais da administração territorial da China: o isolamento total do
magistrado na sua circunscrição. Os manuais de funcionários escritos por burocratas são
repletos de queixas a esse isolamento, como por exemplo o manual de Huang Liu-hung
(subprefeito que administrou Tancheng no século XVII). Este retrata um mundo hostil
no qual os magistrados caíam de paraquedas e onde todos (até mesmo seus parentes)
tentavam derrubá-lo, mantê-lo na ignorância, isolá-lo da nobreza e do povo, tentando
usar a proximidade do poder para enriquecer e reforçar a sua própria posição social. A
única exceção apontada por ele eram os muyous.

Liu-Hung conta que era um desafio conseguir uma equipe de assistentes que não
tivesse cumplicidade com a sociedade envolvente e que fosse dedicada exclusivamente
ao subprefeito. Por meio de conselhos voltados principalmente para a proteção da
reputação desses funcionários isolados9, o ex-magistrado buscava transmitir seu
conhecimento sobre como lidar com os problemas cotidianos da administração estando-

8 No caso da CE, funcionários de diferentes países expatriados em Bruxelas formaram gradualmente uma
elite supranacional, cujo espírito de corpo é reproduzido através do chamado sistema paralelo de
administração, no qual se dão as práticas consideradas corruptas por determinados países-membro
(SHORE, 2015).
9 Liu-hung denunciava as constantes falsas acusações de homicídio voltadas aos administradores de
yamen, as quais visavam destruí-los por meio de processos judiciais e difamações, e que geralmente
vingavam uma vez que a presunção comum era a de que o acusado é culpado. Por isso aconselhava
fortemente os leitores de seu manual a protegerem documentos e correspondências oficiais para provarem
sua inocência se necessário (WILL, 1989).
7

se entre os seus superiores, a quem deveria agradar para ser notado, e os seus
subalternos, a quem deveria vigiar em todos os momentos de modo a se proteger10.

É interessante observar essa situação através da concepção estrutural do modelo


triádico que Bourdieu (2014) formulou com base em economistas11. Por um lado, nesses
relatos dos próprios magistrados é ressaltado o inconveniente de ser intermediário, estar
entre mandarins em cargos superiores e os próprios subalternos. Por outro lado, isto
decorre também de seu papel de superior que, por conta da imensa quantidade de tarefas
em suas mãos em um local desconhecido, é forçado a delegá-las a secretários privados
(muyou) e assistentes locais do yamen (servidores pessoais; changsui) sem salário –
estes possuem familiaridade com o território e contato direto com a sociedade, de quem
recebem comissões para todas as operações que realizam. Como determinadas pessoas
estavam interessadas a agir contra as leis e normas, formavam-se conluios entre
bandidos e servidores pessoais, o que gerava problemas para o comando dos
magistrados, cujo poder e caráter inclusive podia ser questionado por esses inimigos,
conforme alardeado por Liu-hung – risco previsto pela própria lógica de delegação de
poder (BOURDIEU, 2014).

Portanto, nesse segundo quadro, vê-se que os assistentes locais subalternos


costumavam usar sua posição estrutural para obter benefícios “próprios” (ou seja, para
sua família e próximos, seguindo a ética confuciana)12. Se nos anos 1670 isso já era
denunciado como corrupção a ser combatida, Will mostra como a situação se agravou e
disseminou no século XVIII, havendo esse tipo de “mal uso” do cargo público – que na
realidade era um “bom uso” das possibilidades oriundas de sua posição estrutural – por

10
Seguindo-se seus passos exemplares, o magistrado “dotado de bom senso e experiência, capaz de
preservar a sua dignidade, mas também saber as preferências dos seus superiores, poderia avançar sem
danos em sua carreira” (WILL, 1989, p.94).
11
Johnston (1996) comenta que o modelo triádico do principal-agent-client (PAC) e bastante frutífero
para estudar a corrupção burocrática. De abordagem interacionista, o PAC remete ao modelo dos
economistas evocado por Bourdieu (2014). Blundo e Olivier de Sardan (2001), por sua vez, falam em
interação entre funcionários, usuários do sistema público e intermediários na gestão pública.
12
Nessa posição de intermediário a manipulação do tempo é fundamental, como Bourdieu (2014) destaca
e Will observa: a velocidade é fundamental “não tanto para cumprir a letra da lei, mas a fim de manter a
máquina respirando, de constranger os subordinados nos tráficos e abusos que acompanham as suas
atividades cotidianas e impedir que organizem a corrupção. Liu-hung, por exemplo, expõe de maneira
concreta e detalhada como o magistrado deve levar rapidamente as queixas ao tribunal e manter
pessoalmente o controle de todo o processo, até a entrega do julgamento para os interessados: de fato, a
acumulação de processos e atrasos permite a intervenção de secretárias, capangas, advogados medíocres e
outras testemunhas falsas, aberta ou veladamente, os quais podem extorquir no procedimento o máximo
de fundos do queixoso [...].” (WILL, 1989, p.98, tradução minha).
8

parte dos muyou. Isso se deu principalmente nos anos 1770 e pode ser compreendido à
luz de dois acontecimentos: (a) a abolição formal, por Yu Minzhong (1773-1780), o
mais poderoso ministro do império, da regra costumeira que proibia relações pessoais
entre os grandes conselheiros e demais membros da burocracia, o que legalizou as
práticas de nepotismo, recomendação e tráfico de influência, até então realizadas com
descrição; (b) um escândalo em 1781, quando funcionários enviados pelo imperador à
província de Gansu descobriram que os burocratas locais (protegidos pelo governador
geral) vinham extorquindo há anos as contribuições destinadas aos celeiros públicos e
fundos voltados às vítimas da fome13.

Will faz uso da ideia de “conexão Shaoxing” de Cole para buscar compreender
esse processo descrito no testemunho do muyou Wang Huizu, no qual salienta esse
contraste entre a dignidade, lealdade e trabalho árduo dos muyou no período em que
iniciou sua carreira (anos 1750), e o cinismo, a corrupção, a duplicidade14 e o espírito de
panelinha15 posterior (WILL, 1989, p.124-125). De modo a se reproduzir e aumentar
sua influência nacional em um contexto de crescente competição16, a elite intelectual da

13
Segundo Boltanski e Claverie (2007), os casos reconhecidos como sendo de corrupção (affaires) que
envolvem os detentores e os destituídos de poder, são formas de construção da crítica social que
transformam casos particulares de injustiça em princípios universais que mobilizam sentimentos, valores,
instituições e representações comuns. Assim, a situação que liga a vítima e o seu ofensor pode ser lida
como manifestação exemplar de uma conjuntura mais ampla, o que gera os escândalos. O objetivo destes,
por seu turno, é fazer com que a reparação de um mal particular passe para o domínio público através de
uma causalidade geral. Ao mesmo tempo em que, nesse processo, se identifica retrospectivamente
ofensas semelhantes, se projeta a crítica no futuro ao buscar impedir a reprodução dessas ofensas. No
ensaio de Will (1989), se enfatiza o escândalo como evidência do crescimento da corrupção entre
burocratas – inclusive porque casos particulares parecidos passaram a ser cada vez mais frequentes e o
escândalo buscava denunciar justamente essa crescente falta de controle da administração estatal. Mas
poderia ser lido ainda no sentido de crítica social também em ascensão que visava dar fim a práticas
injustas que perpassavam políticas voltadas aos mais pobres, o que remete ao que Gupta (2012)
caracteriza como paradoxo: programas sociais criados em nome dos pobres acabam negando a estes os
bens e serviços públicos a eles pretendidos em primeiro lugar devido à corrupção enquanto violência
estrutural.
14
Bourdieu (2014) reflete sobre a duplicidade do eu e o jogo duplo do burocrata ao mentir a si mesmo e
aos outros de que age para o universal quando na verdade se apropria deste por interesses próprios.
15
A ideia de panelinha para Will (1989) remete à concepção de Wolf (2003), para quem as panelinhas –
que se apoiam em elementos das amizades emocional e instrumental – estabelecem alianças informais
que asseguram a manutenção dos relacionamentos com pessoas da mesma ocupação profissional, sendo
mais relevante em situações de distribuição diferenciada de poder. Apesar de não aprofundar esse ponto
em seu artigo, o mesmo autor sugere ainda que as grandes organizações burocráticas supririam as
panelinhas, o que é uma das interpretações possíveis da ideia de “conexão Shaoxing” proposta por Cole e
vista como a formação de panelinha de moyou por Will.
16
Segundo Cole, no interior da localidade a competição se dá horizontalmente entre linhagens e
verticalmente entre classes ou grupos sociais. Ao nível do império, no entanto, ela se dá essencialmente
na horizontal, através dos esforços de cada comunidade para explorar os recursos daqueles ao redor,
controlar os seus mercados, minimizar a sua contribuição material para atividades de interesse geral,
adquirir influência política maior no sistema estatal (WILL, 1989, p.101-102).
9

província próspera de Shaoxing buscava ocupar o maior número possível de cargos no


aparelho administrativo do império, tanto por meio da estrutura regular das carreiras
burocráticas que se caracteriza pelos exames, quanto através da compra de cargos
subordinados ou não oficiais – opção escolhida quando não eram aprovados nos
exames, cada vez mais concorridos.

Assim sendo, essa elite passou a dominar os ofícios de muyou, pagos pelos
burocratas do yamen para fornecer a este seus conhecimentos especializados (em
contabilidade e principalmente direito, no caso da elite de Shaoxing). A panelinha entre
os secretários privados (muyou) de yamen de diferentes níveis administrativos, o seu
saber especializado e sua competência técnica em escrita e nos procedimentos de
correspondência, lhes permitiam controlar as ordens vindas de cima e as informações
vindas de baixo, bem como favorecer a nomeação de seus concidadãos para outros
cargos muyou, organizando canais de recrutamento:

[...] condições nas quais se podia constituir redes de muyou que operavam em
concorrência com a hierarquia oficial dos funcionários e em conluio com a
hierarquia não oficial dos administradores (clercs) de yamen. A própria
noção de rede é incompatível com o que é suposto ser a especificidade dos
secretários particulares: sua independência e dedicação exclusiva ao seu
empregador. No entanto, o surgimento de panelinhas de muyou cujos
membros são dedicados aos interesses do seu grupo, em vez do que aos de
seus respectivos patrões, parece derivar de algumas de suas funções. Refiro-
me em particular ao fato de que os secretários particulares [muyou] de
altos funcionários (governadores, tesoureiros provinciais, prefeitos...) são
responsáveis por preparar as respostas às cartas e relatórios da parte
inferior da hierarquia. Os funcionários dos escalões inferiores buscam, para
facilitar as relações com os seus superiores, recrutar como conselheiros
[muyou] os protegidos daqueles funcionários; e esses últimos estão,
portanto, em posição para estabelecer e controlar um tipo de hierarquia
bis, semelhante ao dos administradores (clercs) por quem passam as
comunicações entre diferentes yamen. A predominância do povo de Shaoxing
na profissão de muyou não é a causa deste fenómeno, mas o acompanha e
alimenta. Aliás, o fato de falar o mesmo dialeto (compreensível só entre eles)
parece ter desempenhado um papel significativo na formação do que acabou
parecendo uma máfia, com seus ritos, seu saber-fazer secreto, zelosamente
protegido, cujos funcionários em exercício eram obrigados a recorrer.
(WILL, 1989, p.122-123; tradução minha).

Como Will conclui, “é na margem da estrutura oficial com as suas regras e


garantias, que pôde se desenvolver livremente um sistema de patronagem e de
cooptação formando uma bola de neve.” (idem, p.109). Havia assim um sistema de
recrutamento não oficial contrário às normas burocráticas oficiais, que escapava ao
10

controle das autoridades, era dominado por laços locais e familiares, e que gradualmente
foi monopolizando a burocracia (idem, p.110). Cabe abrir um parênteses a partir disso
para mais uma ironia dos princípios da “lei de evitamento”: ao passo em que tentava
promover a defesa do bem público contra o egoísmo de elites regionais (WILL, 1989,
p.102), estas passaram a dominar cada vez mais o funcionalismo público através do
sistema de recrutamento e da sua competição e cooperação em panelinhas,
aproveitando-se da dependência que os funcionários centrais tinham de sua
competência.

O principal fator que contribuiu para a profissionalização e multiplicação de


cargos executivos intermediários (servidores pessoais e secretários particulares) foi para
Will a contradição do isolamento do magistrado com a filosofia administrativa dos
séculos XVII a XVIII, que pregava as relações diretas entre a população e a
subprefeitura. Isso promoveu ainda ajudas e gastos de todos os tipos que os burocratas
locais deveriam manter com seus reduzidos salários (1989, p.97-98), ao passo em que se
reduziram os meios capazes de monitorar a realização das tarefas delegadas a essa série
de intermediários, aumentando assim os abusos, atrasos e irregularidades em detrimento
da maior parte da população.

CIRCULAÇÃO DE BENS: PRIVADO E PÚBLICO, FORMAL E INFORMAL

As expectativas geradas pela nomeação de alguém a um cargo público não


diziam respeito somente ao seu enriquecimento particular (e, indiretamente, de sua
família ou comunidade): uma parcela significativa dos rendimentos obtidos por ele
através de sobretaxas vai para os seus colegas e superiores na forma de ajudas e
presentes17. Em outras palavras, a competição entre clãs e panelinhas para monopolizar
a maior parte possível da estrutura burocrática é feita no interior desta através da
circulação de dinheiro (WILL, 1989, p.104-105).

Com o intuito de racionalizar essa economia informal de trocas18 dentro da


burocracia, as reformas do imperador Yongzheng (1720-1730) oficializaram uma parte

17
Will (1989) aponta que os vários cargos no serviço público são objeto de um ranking informal em
função de sua rentabilidade esperada por meios não oficiais que só são possíveis pela hierarquia oficial.
18
Bourdieu (2014) chama esta circulação clandestina de bens de “extorsão legal de fundos” da população
através de taxas elevadas, que se destinam ao pagamento das despesas pessoais e profissionais dos
11

das sobretaxas (haoxian) que davam rendimentos aos funcionários. Os “benefícios de


integridade” criados permitiram o pagamento de salários aos burocratas, que por sua vez
pagavam com essa renda agora legalizada a sua equipe, inutilizando em tese as formas
costumeiras (não oficiais) de ajuda e troca de presentes. Num contexto de
subfinanciamento estrutural da administração territorial, se teria com isso a
possibilidade de aumentar a confiabilidade, lealdade e o espírito de corpo burocrático
dos funcionários intermediários. Mas esse sistema rapidamente encontrou seus limites
devido ao aumento da necessidade de criação de mais cargos executivos pelo império e
à inflação e aumento do custo de vida no início do século XIX. Com esse aumento de
gastos por parte dos burocratas, eles tiveram que buscar meios ilícitos de renda para
manter a máquina administrativa operando.

É importante realçar que Will enfatiza que as sobretaxas chamadas de haoxian,


apesar de muitas vezes terem sido consideradas suborno, são na verdade um conjunto de
"direitos costumeiros" que não podem ser simplificadas pela noção de corrupção (1989,
p.92). Nesse sentido, sua interpretação que questiona a pertinência da ideia de suborno
para o caso chinês vai ao encontro da noção de economia ritual de Stafford, baseada na
ideia que a reciprocidade familiar (valorizada pela ética confucionista) serve de modelo
para as demais reciprocidades, o que implica no fato de que “[...] when people in China
“cultivate relationships” (yang guanxi) with the powerful or the useful, this is often
done through familiar idioms of gift-giving and reciprocity, rather than through outright
bribery.” (2006, p.10-11)19.

Além disso, de forma semelhante ao que Shore (2015) diz a respeito da


percepção dos próprios funcionários da Comunidade Europeia de que práticas
consideradas corruptas são inevitáveis, Will mostra como na percepção dos próprios
magistrados (mesmo dos mais “puros”) há certas práticas nessa economia informal que
servem para "alimentar a integridade" do funcionário (nas palavras de Huang Liu-hung),

burocratas e os salários dos funcionários subalternos. Como Will (1989) destaca, apesar de ser uma
circulação informal isso não significa que não fosse altamente regrada. Huang Liu-hung por exemplo
aconselhava que os presentes (produtos locais) para os superiores deveriam ser enviados em datas fixas e
em número que não gerasse a inimizade de seus sucessores (WILL, 1989, p.93).
19
E as práticas chamadas de guandao, que remetem à circulação de presentes na China, fazem parte do
cotidiano até hoje de acordo com Johnston (1996): “Chinese citizens [...] have had little difficulty in
judging guandao as undemocratic and corrupt, even though its legality and political status are in flux, and
despite the fact that clear distinctions between public and private sectors of the economy have yet to
emerge.” (JOHNSTON, 1996, p.332-333).
12

sendo assim indispensáveis para o funcionamento da administração (WILL, 1989, p.92;


nota 51), por mais que mantenham a crítica ao abuso dessas práticas.

Para complexificar ainda mais as fronteiras geralmente presumidas entre o


informal e o formal, Will evidencia que era comum nos Qing:

[...] o pagamento de despesas públicas com o dinheiro do bolso de


funcionários – isto é, uma parte destes fundos não orçamentados e não
contabilizados, mas que não foram (ou foram muito pouco) embolsados pelos
funcionários, serviram de uma maneira ou outra ao serviço público. (WILL,
1989, p.93; tradução minha).

Este embaçamento de fronteiras analíticas é sugerido ainda pela ambiguidade de


alguns termos, como o de “despesa pública”, muitas vezes associado à noção de
"cortesias a fazer" no manual de Huang Liu-hung. Portanto, a burocracia imaginada por
esse magistrado supunha um sistema regrado de financiamento paralelo à administração
oficial, mas que não se corrompesse na busca apenas da obtenção de benefícios
particulares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: O OFICIAL E REAL

Levando tudo em consideração, talvez se possa concluir que, para Will, a


burocracia “oficial” está por fazer-se com a burocracia “real”. No fazer-se da
burocracia, a representação oficial implica e promove práticas não oficiais, ao passo em
que as denúncias baseadas em um determinado modelo burocrático e nos casos de
abusos acabam por motivar a sua contínua reforma. A própria concepção ideal da
burocracia potencialmente contém as possibilidades tanto para a imposição quanto para
a transgressão dos limites colocados pelas normas legais e sociais; as próprias práticas
contêm potencialmente as possibilidades para a reprodução ou reforma das normas. A
distinção é antes de tudo analítica. Tem-se assim uma espécie de imbricamento de
práticas e representações, do cotidiano local e da translocalidade do Estado, de modo
semelhante ao que é formulado por Gupta com relação à Índia: “[...] practices are
configured, enabled, and mediated by discourses and representations [...] the production,
reception, and repetition of representations are in turn configured and mediated by
practices.” (GUPTA, 2012, p.77).

A literatura sobre corrupção e a cultura pública sobre o tema costumam associar


à sua discussão, além da delimitação de tipos, causas e consequências, as possíveis
13

soluções para esse “problema” que ameaçaria os regimes políticos20. Porém, como
reformar e combater algo mutável e imbricado também no “’funcionamento real’
cotidiano dos serviços estatais” (BLUNDO; OLIVIER DE SARDAN, 2001, p.8;
tradução minha)? Para muitos teóricos, não há como se vislumbrar o fim do que se
entende contextualmente por corrupção, por estar inscrita enquanto prática e crítica
social. Ao mesmo tempo, como o método diacrônico de Will revela, o próprio problema
da corrupção ou transgressão das normas é colocado de diferentes modos ao longo do
tempo.

Conforme lembra Bourdieu, a “transgressão que se mascara em nome do


universal contribui um pouco para fazer avançar o universal [na medida em que] será
possível utilizar o universal contra ela para criticá-la” (2014, p.516). Permanece assim
tanto os ideais de universalidade opostos às lealdades ditas familiares – os quais tomam
formas histórica e contextualmente variadas no cotidiano da administração estatal –
quanto o modo de pensamento vinculado à família. O transcendental e o local, o oficial
e o real, o legal e o ilegal, o público e o privado, a racionalidade e a corrupção, e assim
por diante, se retroalimentam e seus limites são objeto de disputas no fazer-se da
burocracia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLUNDO, Giorgio; OLIVIER DE SARDAN, Jean-Pierre. La Corruption Quotidienne


en Afrique de l’Ouest. Politique Africaine, n° 83, out. 2001.

BOLTANSKI, Luc; CLAVERIE, Elisabeth. Du monde social en tant que scène d’un
procès. In: Boltanski, L. et al (Org.). Affaires, scandales et grandes causes. De Socrate
à Pinochet. France: Stock, 2007.

BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

DAS, Veena. Corruption and the Possibility of Life. Contributions to Indian


Sociology, v. 49, n. 3, 2015.

20
Para uma das principais referências teóricas a respeito da corrupção enquanto problema social e
político, cf. Heywood (1997).
14

GUPTA, Akhil. Corruption, politics, and the imagined state. In: Red Tape.
Bureaucracy, structural violence, and Poverty in India. London: Duke University Press,
2012.

HEYWOOD, Paul. Political Corruption: Problems and Perspectives. In: Heywood, P.


(Ed.). Political corruption. Oxford: Blackwell Publishers, 1997.

JOHNSTON, Michael. A la recherché de définitions: vitalité politique et corruption.


Revue internationale des sciences sociales, n. 149, set. 1996.

SHORE, Cris. Culture and Corruption in the EU: Reflections on Fraud, Nepotism and
Cronyism in the European Commission. In: Haller, D. and Shore, C. (Org.)
Corruption. Anthropological Perspectives. London/MI: Pluto Press/Ann Arbor, 2005

SMITH, Daniel Jordan. A Culture of Corruption: Everyday Deception and Popular


Discontent in Nigeria. Princeton, Princeton University Press, 2007.

STAFFORD, Charles. Deception, corruption and the Chinese ritual economy. In:
Latham, K., Thompson, S. and Klein, J. (Org.) Consuming China: approaches to
cultural change in contemporary China. London, UK : Routledge, 2006. Disponível
em: <http://eprints.lse.ac.uk/25180/>. Acesso em 10 dez. 2016.

WILL, Pierre-Étienne. Bureaucratie officielle et bureaucratie réelle. Sur quelques


dilemmes de l'administration impériale à l'époque des Qing. Études chinoises, v. VIII,
n. 1, 1989, p. 69-142.

WOLF, Eric. Parentesco, amizade e relações patrono-cliente em sociedades complexas.


In: Feldman-Biaco, B. e Ribeiro, G. L. (Org.) Antropologia e poder. Constribuições de
Eric R. Wolf. São Paulo: Editora Unicamp, Editora UNB e Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2003.

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