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A noção de extimidade, do Outro interior, remete à questão da

imigração. Imigração é um termo relativamente recente. Ele é


contemporâneo, ao que parece, da revolução industrial, que traduz as
perturbações introduzidas pela aplicação e pelos resultados da ciência para
fins de produção. Estabelecer-se num país estrangeiro é algo que se
estendeu a uma escala de massa. É um fato novo, um fato moderno.

Mas ser um imigrante é também o próprio estatuto do sujeito na


psicanálise. O sujeito como tal é um imigrante – o sujeito como o
definimos a partir de seu lugar no Outro. Não definimos o seu lugar no
Mesmo. Não há outra morada senão no Outro. Para o sujeito, esse país
estrangeiro é o seu país natal. Existe, aliás, alguma significação no fato de a
psicanálise ter sido inventada por alguém que tinha uma relação original
com esse estatuto de estrangeiro, com esse estatuto de extimidade social.

Não há Outro do Outro; há gozo

O estatuto de imigrante questiona o círculo da identidade do sujeito. Isso o


leva a procurá-la nos grupos, nos povos e nas nações. É nesse sentido que
se deve perguntar o que faz com que o Outro seja o Outro e qual é a raiz de
sua alteridade. Esse Outro, do qual frequentemente fazemos uso aqui, se ele
é Outro, seria em relação a quê? Somos obrigados a colocar essa questão e
responder a ela: qual é o Outro do Outro?

Vocês devem saber que Lacan fez a si mesmo essa pergunta. Ele lhe deu
diversas respostas, e a mais evidente é que o Outro do Outro é o sujeito.
Nós tentamos situar a posição do sujeito e a posição do Outro
relacionando-as entre si. Porém, o que nos impede de sustentar essa
definição é que, nesse caso, o sujeito não nos dá nada de substancial, visto
que o definimos como um nada. Nós até barramos o seu significante
escrevendo-o como $. Se ele é o Outro do Outro, ele não nos oferece,
contudo, nenhuma consistência que determinaria esse Outro.
Há uma outra resposta sobre o que seria o Outro do Outro. Ela consiste em
diferenciar o Outro, em diferenciar, por exemplo, o Outro da linguagem e
até mesmo o Outro do significante e o Outro da lei. É inclusive com essa
distinção que Lacan termina seu escrito sobre a psicose.[1] Isso significa
afirmar que o Outro do Outro é um Outro que faz a lei do Outro.

Esse Outro pode ser nomeado por uma palavra da filosofia da lógica, a
saber, a metalinguagem. O Outro da metalinguagem é aquele que faz a lei
do Outro da linguagem. Ele estipula as suas regras – regras de formação da
linguagem, condições de validade de suas fórmulas, do que as torna
aceitáveis ou, ao contrário, as rejeita. Essa posição equivale a afirmar que
há Outro do Outro. É o Outro da lei na medida em que ele se diferencia do
Outro da linguagem. Isso supõe que, nessa ordem, é possível saber com
justeza aquilo que se diz.

Trata-se de uma posição contra a qual Lacan se voltou após tê-la


formulado. Ele a desmentiu, ele mesmo a contestou. Isso vai de par, aliás,
com a desvalorização do Nome-do-Pai como significante do Outro da lei,
desvalorização que chegou a ponto de fazer dele um tamponamento, aquilo
que recobre o fato de não haver Outro do Outro na linguagem. Por essa
mesma razão, não haveria metalinguagem, uma vez que não se pode
funcionar ou se comunicar senão na própria linguagem [...].

Que não há Outro do Outro não é, entretanto, a palavra final dessa história.
Há o gozo. Há o gozo como sendo aquilo em razão do qual o Outro é
Outro, e até mesmo como sendo aquilo por causa do qual o Outro é o
Outro. Como podemos definir esse conceito de Outro do Outro? Pode-se
defini-lo como o que faz Outro o Outro. E isso da maneira mais simples,
dialeticamente, se posso dizer.

Com efeito, se o gozo pode postular esse estatuto de Outro do Outro, eu


diria que é na medida em que, tal como o colocamos em função na
experiência analítica, ele aparece como o mesmo. Ele aparece como o
invariável. Eu disse o mesmo, e não o idêntico a si. Quando falamos de
identidade, de identidade a si, já alojamos a questão no registro
significante, com os paradoxos e as dificuldades que ele comporta. Mas o
gozo nos obriga a pensar um estatuto do mesmo, que não é o idêntico no
registro significante. É um caminho no qual Heidegger, uma vez mais, nos
precedeu.

Dizemos o mesmo para não implicar os paradoxos significantes da


identidade, para opor às variações do Outro, à alteridade que é interna ao
Outro, a inércia do gozo – inércia que é encontrada eventualmente como
resistência ou obstáculo na experiência analítica, na medida em que ela se
inscreve na função da fala e no campo da linguagem. Essa inércia faz
pensar que essa função e esse campo não passam de ficção.

Não se escapa desse mesmo. Como podemos qualificá-lo, senão como o


que retorna ao mesmo lugar? É o que nos leva, aqui, a lhe atribuir o caráter
de real, a opor de modo conjugado o Outro e o real, a ponto de negar o
caráter real do Outro.

Não estou serrando o galho sobre o qual estamos assentados ao colocar a


questão de que há real no Outro. De fato, e por isso mesmo, diferenciamos
duas zonas nesse Outro. A questão é saber como elas se ajustam, como se
articulam, como se articulam o Outro e seu real. É nesse ponto que a
estrutura da extimidade precisa ser elaborada.

Implicações da ciência no avanço do racismo

Isso certamente faz de nós – é o que nos reprovam – anti-humanistas. O


humanismo universal não se sustenta. Não me refiro ao humanismo do
Renascimento, que está longe de ser um humanismo universal. Refiro-me
ao humanismo contemporâneo, que, de fato, não encontra outro suporte
senão o discurso da ciência: direito ao saber e contribuição com o saber.

Esse humanismo universal, que é um absurdo lógico, quer que o Outro seja
um igual. Supõe-se até mesmo saber como raciocina o Bom Deus como
sujeito suposto saber que a ciência convoca. Isso é acentuar
verdadeiramente que o Outro seja um igual. Esse humanismo se desorienta
completamente quando o real do Outro se manifesta como não sendo de
forma alguma um igual. Há, então, insurgência e escândalo. Não há outro
recurso senão invocar uma irracionalidade qualquer, o que leva a
ultrapassar singularmente o conceito do Outro asséptico.

É precisamente no momento em que o humanismo universal faz ouvir suas


pretensões que o Outro tem uma singular propensão a se manifestar como
não semelhante. É o que desorienta o progressismo, que está no âmago do
avanço do discurso da ciência enquanto universal que visa obter uma
uniformização, e especialmente uma uniformização do gozo. É na medida
em que a pressão do discurso científico se exerce no sentido da
uniformização que uma certa deformidade tem tendência a se manifestar, e
especialmente de um modo grotesco e horrível. Isso está ligado ao que se
chama progresso.

Tive, certa vez, a ocasião de dizer uma palavra sobre o racismo. O que me
pareceu convir totalmente ao tema da extimidade. Isso lhe deu inclusive
uma espécie de amplitude patética que nos faz suportar a dimensão dessa
questão do racismo. [...].

Eu já havia interrogado Lacan no contexto da entrevista que veio a se


chamar Televisão,[2] na qual ele profetizava o avanço do racismo. Eu lhe
perguntara o que o levava a dizer isso, pois uma coisa é prever e outra é
dizer. É preciso considerar que, em 1975, esse avanço do racismo não
parecia tão evidente assim, o que hoje não é mais o caso. Lacan não foi
pródigo em profecias na ordem histórico-social, mas quanto ao que está
em Televisão podemos dizer hoje que ele tinha razão. [...].

Certamente, ao se invocar as causas econômicas, sociais e geopolíticas,


pode-se explicar um vasto campo desse fenômeno; mas resta, apesar de
tudo, alguma coisa que faz pensar que ele não se dá somente nesse nível.
Há um resto que poderíamos chamar de causas obscuras do racismo, e não
é certo que seja suficiente protestar contra isso. Pode ser que protestar
contra isso seja o mesmo que esconder o rosto e desviar o olhar do que está
em questão. É sobre isso que a psicanálise, o ensino de Lacan, poderia
lançar o que eu não hesitei em chamar as luzes da razão. Eu não disse
a ciência, precisamente pelas melhores razões do mundo, pois a ciência não
deixa de estar implicada no avanço do racismo. [...].

A ciência não é, de forma alguma, algo que nos exonera do racismo, ainda
que possa existir um bando de sábios para explicar a que ponto a ciência é
antirracista. Pode-se, claro, desconsiderar as elucubrações pseudocientíficas
do racismo moderno, mas o que deve nos reter é o racismo como moderno.
Isso não tem nada a ver com o racismo antigo. Não adianta apelar para os
gregos ou para os bárbaros. Isso não tem nada a ver com a densidade que a
questão adquiriu para nós. Trata-se de um racismo moderno, ou seja, de um
racismo da época da ciência e, também, da época da psicanálise.

É fácil constatar que a ciência é profundamente desagregadora. Ela é


desagregadora em suas consequências técnicas, pois seu próprio discurso
explora um modo muito puro do sujeito, um modo que podemos dizer
universalizado do sujeito. O discurso da ciência é um discurso feito para e
por cada um que afirma “eu penso, logo sou”. É um discurso que anula as
particularidades subjetivas, que as destrói. Vemos essas subjetividades
gritar, se rebelar contra esse efeito que chega a ponto de dessubjetivar o
significante.

Existe essa função de universalidade da ciência. Ela é, nesse sentido,


antirracista, antinacional, anti-ideológica, o que é muito simpático. Mas de
um ponto de vista prático, isso conduz a uma ética universal, que faz do
desenvolvimento um valor essencial, um valor absoluto. As comunidades,
os povos ou as nações, tudo se ordena nessa escala com uma força
irresistível. O que havia de simpático no pensamento de Mao Tsé-Tung é
que ele negava essa escala, fazia objeção a ela. Lembro-me de ter feito,
para Lacan, o elogio dessa posição subjetiva. Ele não me tomou de frente,
mas de viés, dizendo: “sim, mas por quanto tempo?” O que foi bem
observado.

É porque é nessa escala que se encontram as comunidades, os povos e as


nações que existe, consequentemente, um bom número delas que são
qualificadas de subdesenvolvidas. No fundo, tudo está dito nesse termo, a
ponto de não haver senão subdesenvolvidos nessa Terra. A França, por
exemplo, treme para saber se é, de fato, suficientemente desenvolvida. Em
muitas esferas, ela se sente à beira do declínio em relação à exigência
irresistível do desenvolvimento.

Isso se encarnou sob a fachada – em geral humanitária – do colonialismo.


Naquela época, não se dizia “cada qual em sua casa”. Ao contrário, o que
se fazia era ir ver de perto para instaurar ordem e civilização. É engraçado
constatar que em nossa época vivemos o retorno disso, o retorno de
extimidade desse processo. Isso é tanto mais interessante na medida em que
se trata dos mesmos: eles pretendiam colonizar povos inteiros e hoje não
podem mais suportar que esses povos não estejam em suas casas.

Segregação e modos de gozo

É preciso admitir que esse desenvolvimento do discurso da ciência tem


como efeito bem conhecido desfazer as solidariedades comunitárias e
familiares. O discurso da ciência tem um efeito dispersivo, desagregador.
Podemos chamar isso de liberação – por que não? É uma liberação, mas
uma liberação que é estritamente contemporânea da globalização do
mercado e das trocas.

É preciso ver bem o resultado que Lacan aponta quanto à intenção daqueles
que só são sensíveis à vocação de universalidade da ciência e que às vezes
torcem o nariz para algumas de suas consequências econômicas e até
mesmo culturais. Uma coisa vai, aliás, junto com a outra. É impressionante
essa cegueira que não quer ver em que o discurso da ciência e a segregação
cultural fazem sistema.

Lacan observa que aquilo que responde a essa desagregação é a promoção


de segregações renovadas, que são, no conjunto, muito mais severas do que
jamais se concebeu. Ele o disse em uma frase profética que todos
compreendem: “Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu
equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de
segregação”.[3]

Segregação é justamente o que está em questão sob o nome um pouco


batido de racismo. O discurso da ciência não é nada abstrato. É um
discurso que tem efeitos sobre cada um, que tem efeitos significantes sobre
todos os grupos sociais, porque introduz a universalização. Isso não é, na
realidade, abstrato, mas alguma coisa que sempre traz um desafio.

Então, por que um psicanalista pode dizer essas coisas – e não somente no
nível do bom senso, embora seja preciso bom senso nessa questão? Não é
somente enquanto conhecedor do mundo contemporâneo que um analista
pode formular tais coisas. Há algo que faz com que isso possa ser
percebido mais lucidamente a partir do discurso psicanalítico, a saber, o
modo universal – que é o modo próprio com o qual a ciência elabora o real
–, que parece não ter limites, na verdade tem limites.

Estive com um biólogo encantador que estava empenhado em afirmar que


do ponto de vista dos genes não há raças. É preciso admitir que isso é
completamente inoperante. Mesmo que não existam raças no nível dos
genes, isso não deixa de nos perturbar. Pode-se repetir o quanto se queira
“nós, os homens”; é preciso constatar que isso não tem efeitos. Isso não
tem efeitos porque o modo universal, que é aquele da ciência, encontra seus
limites no que é estritamente particular. Encontra seus limites no que não é
nem universal, nem universalizável e que nós podemos chamar, com
Lacan, o modo de gozo.

É próprio a toda utopia social, da qual o século XIX foi pródigo, sonhar
com uma universalização do modo de gozo. É preciso diferenciar o gozo
particular de cada um do gozo que, enquanto modo, se elabora, se constrói
e se sustenta em um grupo. Em geral, não é um grupo muito extenso.
Estamos aí no nível de cada um – não simplesmente de cada um, mas de
cada um em seu próprio canto. Quanto às consequências dessa resposta,
que é o imperativo de gozo do qual cada um é escravo, o discurso científico
não tem nada a dizer, se considerarmos o universal no qual ele se
desenvolve.

Sabemos que o discurso da ciência não tem resposta nem mesmo quando
tentamos fazê-lo responder. Faz-se, por exemplo, educação sexual. É uma
tentativa para fazer de modo que o discurso científico responda. Supõe-se
que ele tenha resposta para tudo, mas pode-se verificar que ele fracassa. É
porque ele fracassa que a psicanálise tem seu lugar, na medida em que ela
procede de um esforço de racionalidade sobre os efeitos desse fracasso.

O biólogo, devido à sua profissão, acredita na relação sexual, uma vez que
ele pode fundá-la cientificamente. Mas é em um nível que não implica que
a relação sexual esteja fundada no inconsciente. Mesmo que o biólogo
verifique que os sexos se relacionem um com o outro, é em um nível em
que isso não fala.

Essa tentativa de fazer a ciência responder pelos paradoxos do gozo é uma


tentativa cujo final ainda não vimos. Estamos apenas no começo. É uma
indústria nascente. Mas é possível que já possamos saber que será em vão.
O discurso universal não tem nem mesmo a eficiência que tiveram os
discursos da tradição de uma sabedoria sedimentada, que permitiam
enquadrar o modo de gozo nos agrupamentos sociais de outrora.

É preciso observar que o discurso da ciência – e aquilo que vem junto com
ele, o discurso dos direitos do homem – teve como efeito contestar, arruinar
esses discursos da tradição. É o que faz a verdade do pensamento
contrarrevolucionário. É um pensamento vão, mas que foi muito bem-visto
desde o momento da revolução francesa por alguém como Joseph de
Maistre.[4] Vimos na sequência as consequências nefastas da soberania
popular.

Evidentemente, é preciso prestar bem atenção, pois do ponto em que


dizemos as coisas, se vê claramente como se dá a via da reação. O que
impede de tomar essa via é que o retorno ao antigo não é senão um voto
irrealizável. Estamos atracados ao trem da ciência, e é no seu interior que é
preciso operar. É preciso fazer com isso. A psicanálise não é de forma
alguma solidária da contrarrevolução. Ela é, ao contrário, totalmente
solidária da revolução científica e da revolução industrial. Ela se espalha
sobre o globo nos vagões da revolução industrial. É quando a
desnaturalização universalizante está suficientemente implantada que,
como se fosse por milagre, começa a haver essa vacilação, esse irreprimível
desejo de voltar atrás. A psicanálise, contudo, é solidária do puro sujeito,
do sujeito desnaturalizado.

É exatamente essa eficiência do discurso da ciência que explica, parece-me,


as ressurgências atuais dos discursos da tradição. Por exemplo, o avanço
espetacular do islamismo. É uma reação. Como, aliás, o catolicismo, que
também retorna. Isso ocorre porque tais tradições fazem prescrições sobre o
que deve ser a relação sexual. É exatamente o que está na raiz da potência e
da eficiência contemporânea dessas tradições com relação ao discurso da
ciência.

A psicanálise, nesse sentido, é herdeira do sujeito da ciência, do sujeito


abolido ou universalizado da ciência. É um sujeito especialmente
extraviado quanto ao seu gozo, pois o que a sabedoria tradicional poderia
enquadrar desse gozo foi corroído, foi subtraído. Parece-me que é isso que
é preciso apreender para situar o racismo moderno com seus horrores
passados, presentes e futuros.

O ódio do próprio gozo na raiz do racismo

Não basta questionar o ódio do Outro, pois isso colocaria justamente a


questão de saber por que esse Outro é Outro. No ódio do Outro há,
certamente, algo mais do que a agressividade. Há uma constante dessa
agressividade, que merece o nome de ódio, e que visa o real no Outro. O
que faz com que esse Outro seja Outro para que se possa odiá-lo, para que
se possa odiá-lo em seu ser? Pois bem, é o ódio do gozo do Outro. É
exatamente essa a forma mais geral que se pode dar a esse racismo
moderno tal como o verificamos. É o ódio da maneira particular segundo a
qual o Outro goza.
Acontece que o vizinho te incomoda porque ele não se diverte como você.
Se ele não se diverte como você, isso quer dizer que ele goza de uma forma
diferente da sua. É isso que você não tolera. Bem que gostaríamos de
reconhecer o Outro como nosso próximo, mas com a condição de que não
seja nosso vizinho. Gostaríamos de amá-lo como a nós mesmos, mas
sobretudo quando ele está longe, quando ele está separado. E quando esse
Outro se aproxima, é preciso ser verdadeiramente otimista como um
geneticista para acreditar que isso produz um efeito de solidariedade, para
crer que isso leva imediatamente a se reconhecer nesse Outro.

Gostaríamos que, em nome do discurso da ciência, nos reconhecêssemos


no Outro precisamente como sujeito da ciência. Por exemplo, considera-se
muito importante lembrar que os matemáticos árabes trouxeram uma
contribuição essencial ao desenvolvimento das matemáticas. O que
significa reivindicar que sejamos todos irmãos na ciência.

Com efeito, de vinte anos para cá, como por milagre, há uma afluência de
contribuições, muito apaixonantes, aliás, sobre as matemáticas árabes. Mas
é preciso observar que, se começamos a nos precipitar para saber quais
diferentes etnias ou populações contribuíram mais para o discurso da
ciência, a coisa pode acabar muito mal. Haverá sempre alguém para dizer
“os árabes, sim; mas os africanos, não”. Não há, aliás, entre árabes e
africanos uma grande solidariedade. É muito perigoso reunir as etnias em
torno do que seria sua contribuição ao discurso da ciência. Além do mais,
isso não serve para nada.

A questão não é que não se possa se reconhecer no Outro como sujeito da


ciência; a questão é de se reconhecer no Outro como sujeito do gozo.
Quando o Outro se aproxima demasiado, há novos fantasmas que incidem
especialmente sobre o excesso de gozo do Outro. Poderia ser o caso, por
exemplo, do Outro que encontrasse no dinheiro um gozo que ultrapassaria
todos os limites. Sabe-se bem que esse excesso de gozo pode nos levar a
atribuir ao Outro uma atividade incansável, um grande gosto pelo trabalho
ou, então, imputar-lhe uma excessiva preguiça e uma recusa de trabalhar. O
que não é senão a outra face do excesso em questão.
É fácil constatar a velocidade com que se passou, na ordem das
imputações, das reprovações feitas em nome da recusa ao trabalho àquelas
de excesso de trabalho. De todo modo, o essencial nessa questão é que o
Outro rouba de nós uma parte de gozo. Isso é constante. A questão da
tolerância ou da intolerância não visa de forma alguma o sujeito da ciência.
Isso se dá em outro nível, que é aquele da tolerância ou intolerância ao
gozo do Outro – do Outro na medida em que ele é fundamentalmente
aquele que rouba o meu gozo.

Sabemos que o estatuto fundamental do objeto é o de sempre ter sido


roubado pelo Outro. Esse roubo de gozo é o que escrevemos como menos
fi (-ϕ) que, como se sabe, é o matema da castração. Se o problema tem o ar
de insolúvel, é porque o Outro é Outro dentro de mim mesmo. A raiz do
racismo é o ódio de meu próprio gozo. Não há outra raiz a não ser essa. Se
o Outro está no interior de mim mesmo em posição de extimidade, trata-se
igualmente de meu próprio ódio. [...].

Tudo isso nos leva a admitir que se quer bem ao Outro com a condição de
que ele se torne o mesmo. Quando se fazem cálculos para saber se ele
abandonará a sua língua, as suas crenças, as suas vestimentas, a sua forma
de falar, o que se trata de fato de saber é em que medida ele abandonará seu
Outro gozo. É a única coisa que está em questão.

As raças como efeito de discurso

É certamente em torno dessa intolerância ao gozo do Outro que as


identificações convergem, estas sim, históricas, e que têm ao mesmo tempo
uma grande parte de inércia e uma grande variabilidade. Isso me levou a
admitir a validade do termo “sexismo”, que está construído sobre o termo
“racismo”. [...].

É nesse nível que o racismo tem uma validade, ou seja, no sentido em que
homem e mulher são duas raças. Essa é a posição de Lacan. Duas raças,
não biológicas, mas no sentido da relação inconsciente ao gozo. A
diferença anatômica, sobretudo quando é verificada biologicamente, nos
leva a falar, de preferência, em complementariedade; mas no nível da
relação inconsciente ao gozo, há sexuação. Na sexuação, nós distinguimos
dois. No nível da sexuação, isso faz dois. Dois modos de gozo.

Sabemos, aliás, que sempre foi uma preocupação refrear o gozo feminino.
A educação das jovens foi durante séculos assunto filosófico. Há, aliás, um
efeito bem interessante em vermos progredir as tentativas de uniformização
do discurso da ciência nesse nível, a saber, a promoção do unissex, e isso
em níveis que podem parecer muito fúteis. Quer se trate da língua, da
crença, da vestimenta, vemos progredir esse efeito de uniformização.
Podemos nos alegrar ao ver as mulheres à frente de sociedades
multinacionais americanas. Elas agora estão no nível da tesouraria geral – o
que é bem conforme à tradição da dita burguesa nos cuidados do lar. O
efeito uniformizante se manifesta até mesmo nesse nível.

Isso não deixa de trazer problemas para os antirracistas. Se é preciso deixar


o Outro com o seu modo de gozo, isso coloca questões espinhosas. Por
exemplo, a prática da excisão em certa tradição africana. O que seria, nesse
caso, deixar o Outro com o seu modo de gozo? Seria permitir essa tradição,
que tem toda uma validade enquanto tal, ou impedir essa tradição em nome
dos direitos do gozo feminino? Eis um exemplo. Eis um caso moral para o
antirracista. É bastante problemático. Isso pode alimentar legitimamente os
debates.

A tolerância à homossexualidade procede da mesma rubrica. Existem aí


efeitos de segregação, se não voluntários, ao menos assumidos. Existem
espaços reservados, próximos de Los Angeles ou São Francisco, onde se
reúnem comunidades que atraem os que se assemelham. É uma forma
assumida de segregação. Eis aí processos de segregação, que nascem e se
desenvolvem sob os nossos olhos. Tais efeitos se produzem também no
nível das classes sociais.

O que é o antirracismo? Seria negar as raças? As questões sobre as quais


podemos operar – nos debates dos quais pude participar – são muito mais
aquelas que concernem à imigração do que aquelas que concernem ao
racismo. Nesse tipo de debate, o antirracismo é muito mais um manto sobre
a questão da imigração, na qual meios totalmente práticos podem operar.
[...].

Acredito, no entanto, ser inoperante afirmar que não há raças. Para que não
houvesse raças, seria preciso que existisse o Outro do homem. Em geral,
para aceder a esse lugar, se faz apelo ao animal, que não pode ocupá-lo
nem dizer o que pensa disso. Essa é toda a questão. Eventualmente, é o
animal que se toma como emblemático de um Outro gozo, aquele que
valeria a pena. Dizer que o animal é o Outro do homem não é convincente.
Seria preciso haver seres falantes de outro planeta para que se pudesse,
finalmente, dizer “nós, os homens”. É o que faz o caráter, no final das
contas tão otimista, da ficção científica. Isso dá uma forma de existência
fantasmática a esse “nós, os homens”.

Portanto, há raças. Há raças que não são físicas. Há raças que respondem à
definição de Jacques Lacan: “uma raça se constitui pelo modo como se
transmite, na ordem de um discurso, os lugares simbólicos”.[5] O que
significa que as raças são efeitos de discurso. Isso não quer dizer
simplesmente efeitos de blá-blá-blá. O que não significa, por outro lado –
como gostaria um gentil professor de medicina –, que se deva tomar as
crianças desde o maternal para lhes explicar que o Outro é o mesmo.
Evidentemente, é mais simpático dizer isso do que dizer que o Outro é o
Outro. Mas seria talvez melhor tornar esse Outro mais dócil do que negá-
lo. Quando se diz que uma raça é um efeito de discurso, isso não quer dizer
que é um efeito de discurso que se sustente na escola maternal. Isso quer
dizer que esses discursos estão aí. Eles estão aí como estruturas. Não basta
soprá-los para que voem. [...].

É a localização, o uso do gozo em um discurso que faz as diferenças.


Enfim, não acredito que tenha me afastado do termo “extimidade” ao falar
do racismo. Eu apenas dei à extimidade algumas cores mais patéticas.

Tradução e edição do texto: Frederico Feu e Yolanda Vilela


Jacques-Alain Miller é psicanalista e analista membro da escola (AME) da
Escola Brasileira de Psicanálise (EBP). Ele fundou, em 1992, a Associação
Mundial de Psicanálise (AMP), da qual foi Delegado Geral de 1994 a 2000.
São de sua responsabilidade a edição e a publicação dos Seminários, de
Jacques Lacan. Entre suas principais publicações destacamos: Le Neveu de
Lacan. Satire. Paris: Verdier, 2003 e Vie de Lacan. Paris: Navarin, 2011.

Derivas Analíticas agradece a Jacques-Alain Miller pela amável


autorização de tradução e publicação deste texto. Agradece também à
revista Consecuencias por meio de seu editor Mario Goldenberg (EOL),
por ter pinçado do curso Extimité (1985-1986), de JAM, esse extrato sobre
o racismo, que conserva toda a sua atualidade.

Notas

[1] LACAN, (1957-1958) 1998, p. 590.

[2] LACAN, (1970) 2003, p. 508-543.

[3] LACAN, (1967) 2003, p. 263.

[4] Joseph-Marie de Maistre (Saboia, 1 de abril de 1753 - 26 de fevereiro


de 1821) foi escritor, filósofo, diplomata e advogado. Foi um dos
proponentes mais influentes do pensamento contrarrevolucionário
ultramontanista no período imediatamente seguinte à Revolução Francesa
de 1789. Era a favor da restauração da monarquia hereditária, que ele via
como uma instituição de inspiração divina. Argumentava também a favor
da suprema autoridade do Papa, tanto em matérias religiosas como em
matérias políticas (Fonte: Wikipédia. Acesso em: 27 fev. 2016).

[5] LACAN, (1972) 2003, p. 462.

Referências
LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose (1957-1958). In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro.
Revisão técnica de Antonio Quinet e Angelina Harari. Preparação de texto
de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 537-590. (Campo
Freudiano no Brasil).

LACAN, J. O aturdito (1972). In: ______. Outros escritos. Tradução de


Vera Ribeiro. Versão final de Angelina Harari e Marcus André Vieira.
Preparação de Texto de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 448-
497. (Campo Freudiano no Brasil).

LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da


escola. In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Versão final
de Angelina Harari e Marcus André Vieira. Preparação de Texto de André
Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 248-264. (Campo Freudiano no
Brasil).

LACAN, J. Televisão (1970). In: ______. Outros escritos. Versão final de


Angelina Harari e Marcus André Vieira. Preparação de Texto de André
Telles. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 508- 543.
(Campo Freudiano no Brasil).

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