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A voz do poeta
Erotismo, poesia e psicanálise em entrevista inédita de Drummond
MARCELO BORTOLOTI
Lygia volta e meia a convidava para um café aos sábados. Numa daquelas
tardes, ela conheceu o poeta, gentil galanteador, brilhante comentarista de
literatura e "generoso com seu talento", como define Maria Lúcia.
Você poderia dizer alguma coisa sobre a sua intenção de não publicá-los
[os poemas de "O Amor Natural"] no momento, e a permissão que me
deu, tão gentilmente, para que pudessem ser abordados em minha tese de
doutorado sobre o erotismo na poesia de Carlos Drummond de Andrade?
Bem, a autorização e mesmo a sugestão que fiz de lhe mostrar esses poemas
para serem aproveitados na sua tese, a meu ver, é uma coisa óbvia, porque se
o objeto da tese é exatamente o erotismo na minha poesia, não havia nada
mais representativo do que esse volume inédito, porque ele trata
exclusivamente desse tema em suas muitas variações.
Você pode imaginar como nós sofríamos porque não tínhamos ainda bastante
lucidez de espírito para julgar na época o que fosse ou não pecado. Se era
pecado mastigar a hóstia no ato da comunhão, muito mais pecado seria
praticar digamos, o onanismo, ou tentar ver o nu feminino, o que aliás era
impraticável.
Mas essas coisas, essas tentações da idade, da infância e da adolescência,
eram todas consideradas pecados graves. Era como se o sentimento desse
pecado passasse a ser pecado realmente, porque nós o sentíamos como tal.
Isso nos aferroava a alma como um escorpião.
Você podia contar de novo aquele caso de zoofilia do poema "O Sátiro",
que fala sobre "Hildebrando insaciável comedor de galinha"?
Não me fale, isso é um dos maiores dramas da minha vida literária, que
extrapolou para a vida comum. Cometi a imprudência de recordar um fato
ocorrido na minha infância, em que um rapaz morador na minha cidade do
interior, foi acusado de praticar o ato sexual com uma pobre galinha, se é que
não fazia isso frequentemente. Talvez fizesse, pois lhe tinham dado o apelido
de Dedê Galo, o que faz supor que a prática era costumeira. Em suma, com a
maior falta de critério, eu contei essa história sem sequer me dar ao trabalho
de trocar o nome da pessoa.
Realmente, confesso, foi uma falha minha, porque magoei uma pessoa mais
idosa do que eu, pois eu era garoto quando ele era rapaz, e isso irritou-o
muito.
Ele resolveu tomar uma desforra. Deu uma entrevista em que acusava minha
família de coisas tenebrosas. Chocou-me ele ter colocado na dança minha
família, que não tinha culpa nenhuma no cartório, tanto mais que os fatos que
ele mencionava tinham sido deturpados. Daí resultou uma troca de cartas
muito desagradável e eu fui obrigado, me senti no dever de liquidar o assunto
escrevendo ao jornal que havia publicado a entrevista da pessoa.
Pedi-lhe para fazer aquilo que o Eça de Queirós pediu a Pinheiro Chagas. Há
um romance de Eça em que o Pinheiro Chagas se sentiu retratado de maneira
mordaz. Reclamou, e Eça então escreveu um artigo muito interessante que
terminava assim: "Por favor, retire-se da minha personagem".
Não seria um ataque gratuito; ela devia ter-se ferido por alguma coisa que eu
fiz. Até que afinal liguei os fatos -certa lentidão mental- e a última vez que
essa pessoa me falou eu reagi com uma série de xingamentos terríveis que
nunca mais ele falou. Então exorcizei essa pessoa e, parece, pus ponto final na
história, que foi muito desagradável, porque confesso a você que eu não tinha
intenção de ferir ninguém. Não custava nada alterar a qualificação dele, o
nome e a profissão. Foi mesmo, da minha parte, um erro.
Acho, Lúcia, que começou antes. Começou em Itabira, porque não havia a
menor informação sobre o corpo feminino. Os vestidos alongavam-se a ponto
de esconder até os sapatos, e as pessoas, no máximo, arregaçavam um pouco o
vestido para não se sujarem na lama da rua, nas poças d'água. O máximo que
se podia ver de uma mulher era o bico do sapato.
Indo para Belo Horizonte já rapazola, com essa imagem precária da mulher, e
encontrando ali um veículo muito útil para se recolher informação um pouco
maior, que era o bonde, onde as mulheres, para subir, tinham de, contra a
vontade, mostrar um pouco da perna, aquilo era uma delícia, pelo menos para
pessoas do interior, como eu. Já para os rapazes nascidos em Belo Horizonte,
não seria tanto assim.
É como um selvagem que vai à cidade e encontra todas essas máquinas, esses
recursos da civilização: fica espantado; a gente se espantava diante da perna,
já não direi da coxa, que essa não se via de maneira nenhuma. A palavra coxa,
eu a considerava altamente erótica.
Daí o fato de Mário de Andrade ter identificado na minha poesia aquilo de que
eu não me tinha dado conta: a quantidade enorme de pernas que passam -o
bonde passava cheio de corpos, mas eu só via pernas na hora de subir. Freud
explica isso, não é...
Quais as influências literárias que você foi recebendo desde que começou
a fazer poesia?
Olha, essas influências são inúmeras, e não são simplesmente literárias, são de
toda natureza. O "Almanaque Bristol", da minha infância, foi uma influência
que eu senti profundamente. As farmácias antigas tinham um cheiro especial,
devido à manipulação de certas essências que exalavam um perfume muito
agradável.
Tive essas influências todas; depois, através de meu irmão, fui adquirindo um
conhecimento maior dos simbolistas franceses, Verlaine, Mallarmé, Rimbaud
etc. E me apaixonei por eles. No Brasil esses poetas refletiam-se em Álvaro
Moreyra, em Eduardo Guimarães, do Rio Grande do Sul, e no nosso velho
Alphonsus [de Guimaraens], espécie de ídolo da mocidade do meu tempo.
Eu acho que uma pessoa humilde, a minha ama-preta, foi uma influência na
minha vida, influência existencial mas que refletiu na literatura, porque tudo
influi na gente, a casa onde se nasceu, os móveis, os objetos, os companheiros
de infância... Nós somos realmente um cadinho de influências.
Como deus maior, deus dos deuses, ele se permitia tudo, tinha todas as
possibilidades. Apaixonou-se por um adolescente; há as versões mais
variadas. Numa delas esse rapaz era um príncipe, na outra era um pastor. Pois
Júpiter encantou-se por ele, e para conquistá-lo, transformou-se numa águia,
desceu do Olimpo, bicou o rapaz e transportou-o pelo ar, levou-o para o
Olimpo. Lá, transformou-o numa coisa engraçada, no que se chamava de
escanção -homem que serve bebida nos festins - servia a Júpiter na intimidade
e aos deuses na vida social do céu.
Pratiquei esse ato por pura maldade, não tem outra explicação. Foi um ato
perverso, sem sentido -coisa que os animais não fazem. O animal ataca e mata
obedecendo à necessidade de alimentação, de sobrevivência, coisa que o
homem não tem porque pode subsistir sem eliminar seu parceiro.
Acho que o cruzamento entre macho e fêmea ocorre realmente sem maiores
incidentes, mas, na realidade, o animal irracional é aquele que tem a
sabedoria, o privilégio de viver a sua vida praticando sexualidade, sem
remorso, sem sentimento de culpa, com naturalidade e na época adequada. Ele
está programado; nós não estamos ou desobedecemos à programação da
natureza.