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Belo Horizonte – MG
Julho de 2010
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Victor Ribeiro Guimarães
Belo Horizonte
Julho de 2010
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A todos aqueles que embarcaram na arriscada aventura da representação
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Agradecimentos
Obrigado, em primeiro lugar, aos meus pais e familiares, que, mesmo sem saber e
talvez sem o desejar, criaram as condições para a escolha de uma carreira e de uma vida.
À minha orientadora, Rousiley Maia, que acolheu com tanta generosidade e carinho
meus desejos e minhas apostas, sempre com voz calma, escuta atenciosa, contribuições
precisas e a medida justa de incentivo e crítica.
Aos meus professores, que, durante a graduação, me ajudaram a trilhar o caminho
que tornou possível cada linha deste trabalho. Em especial, a Elton Antunes, pela experiência;
Simone Rocha, pela predileção; Vera França, pelos mundos possíveis; e César Guimarães,
pela presença insubstituível.
Aos companheiros do EME e da UFBA, por cada discussão e cada momento
irrepetível de partilha. Cito, de maneira especial, os que se tornaram também amigos para a
vida: Augusto, Vanessa, Diógenes, Rafa, Dilvan, Danilo, Sivaldo, Edna e Jamil.
A Débora e Ricardo Fabrino, comparsas de teoria e de café, que foram minha
inspiração, meu fôlego e meu motivo nos momentos de hesitação.
À Associação Imagem Comunitária e a todos os seus construtores cotidianos – Rafa,
Leandro, Nana, Paulinho, Neca, Michel e Clebin em especial –, cujas contribuições para estas
reflexões são imensuráveis.
Finalmente, agradeço aos amigos que foram o mais precioso presente que esta
universidade me possibilitou ganhar: aos Coalhados e aos Marighellas, pela alegria mais que
necessária na lida do dia-a-dia; e especialmente a Nuno, pelas palavras certas nas horas
incertas; Terê, pelo silêncio eloqüente e pela companhia; e Carol, pelo sorriso necessário,
pelas lágrimas sinceras, pelos conselhos e pelo amor.
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Sumário
1. Introdução …....................................................................................... 5
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1. Introdução
Max Horkheimer
A primeira inquietação que deu origem a este trabalho, ainda pouco mais que um
desejo difuso, remonta ao segundo semestre de 2008, quando cursei o Laboratório de
Pesquisa em Comunicação. Naquela época, uma das discussões capitaneadas pela professora
Simone Rocha girava em torno das representações da juventude de periferia em programas da
televisão brasileira. Durante a disciplina, escrevi, junto com os amigos Carol Abreu, Nuno
Manna e Rafael Azevedo, um artigo sobre a performance da cultura no programa Minha
Periferia.
Durante as aulas e, posteriormente, durante a escrita do artigo, eu começava a
vislumbrar as possibilidades de articular minhas leituras sobre Teoria do Reconhecimento,
realizadas no espaço do Grupo de Pesquisa em Mídia e Esfera Pública (EME), e a análise de
produções audiovisuais, que há muito me interessava. E sentia, cada vez mais, a vontade de
lançar um olhar não apenas sobre produções que dissessem dessa juventude, mas que fossem
realizadas por esses sujeitos. Com o tempo, a idéia foi amadurecendo, tornou-se um projeto
de pesquisa e, quase dois anos depois do estopim inicial, esta monografia.
Nesse meio tempo, um acontecimento foi crucial para o andamento da pesquisa: no
segundo semestre de 2009, quando meu objeto empírico – as produções da Rede Jovem de
Cidadania – já havia sido escolhido, recebi um convite de Ricardo Fabrino, amigo e
companheiro de EME, para integrar a Diretoria de Pesquisa da Associação Imagem
Comunitária, que estava sendo reestruturada. Decidi aceitar porque, além da ótima
oportunidade de trabalho, a proximidade com o objeto poderia facilitar o acesso a uma série
de informações e experiências que, de outra forma, não seriam possíveis. Embora essa tenha
peculiaridade tenha me causado preocupações durante o percurso (como manter uma distância
saudável em relação a um objeto e a uma instituição com os quais lidamos todos os dias?),
acredito que a escolha me permitiu constituir um olhar mais informado.
De certa forma, este trabalho é uma tentativa de conciliar duas paixões que
povoaram – nem sempre de maneira harmônica – meus pensamentos durante praticamente
toda a graduação. De um lado, a política, que se materializou nas disciplinas cursadas com a
professora Rousiley Maia, na vinculação ao grupo EME, na Associação Democracia Ativa, no
movimento estudantil; de outro, as imagens, e mais propriamente o cinema, que eu encontrei
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nas disciplinas com o professor César Guimarães e que nunca mais me deixou, desde então.
Em grande medida, o que se segue é apenas uma tentativa de falar de política e de imagem, no
mesmo movimento.
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Buscamos, com a análise, oferecer uma contribuição à análise das lutas por
reconhecimento em um campo onde esta ainda não encontra muita fertilidade: o da produção
audiovisual. Na maioria das vezes, o discurso verbal é aquele eleito como foco para as
análises desse tipo de conflito social. Com este trabalho, procuramos deslocar um pouco esse
eixo, e dirigir nosso olhar para um discurso que é produzido não apenas com palavras, mas
com imagens e sons.
O trabalho também busca evidenciar, por meio do investimento teórico e da
investigação empírica, as contribuições da Teoria do Reconhecimento para as preocupações
contemporâneas do campo da comunicação. Entendemos que o processo do reconhecimento é
da ordem das interações comunicativas, e que essa teoria tem muito a oferecer às pesquisas da
área. De modo inverso, argumentamos também que algumas abordagens da comunicação têm
muito a oferecer ao aperfeiçoamento do instrumental analítico da teoria e à compreensão das
lutas por reconhecimento na sociedade atual.
Além disso, ao invocarmos as formulações de George Yúdice (2004) na análise da
cultura como recurso na contemporaneidade, buscamos contribuir para a investigação de um
fenômeno contemporâneo de suma relevância, e que também se manifesta na produção
audiovisual.
Contudo, acreditamos que pesquisas qualitativas na área da comunicação não
precisam estar restritas a uma disciplina específica: “podem contribuir para um
desenvolvimento crítico e sustentado de reflexões e conversações sobre a mídia que estão
espalhadas na vida cotidiana” (GREEN, 1991: 216). Nesse sentido, outra das possíveis
contribuições do trabalho é proporcionar parâmetros de avaliação das produções audiovisuais
que podem ser utilizados pelas próprias organizações que trabalham com acesso público à
comunicação. A análise, que pretende revelar a construção de demandas por reconhecimento
no discurso dos programas, poderia subsidiar avaliações possíveis de serem realizadas pelas
referidas organizações.
Além disso, ao dar visibilidade, através da escolha como objeto de pesquisa, a
produções como essa, o trabalho pretende também evidenciar, numa sociedade marcada por
desigualdades das mais diversas, a existência de formas de resistência e emancipação
individual e coletiva, voltadas para a construção da autonomia dos sujeitos. Identificar as
formas de emancipação no interior de uma sociedade marcada pela dominação, mote da
Teoria Crítica, nos parece também uma justificativa plausível para um trabalho dessa
natureza.
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2. O visível e o possível: da visibilidade ao reconhecimento
Maurice Mouillaud
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“A noção de esfera pública representa o berço da noção de democracia deliberativa, ao qual se somam
os aportes provenientes da idéia kantiana de razão pública, da idéia habermasiana de razão comunicativa e dos
pressupostos de Apel e Habermas sobre a ética discursiva” (GOMES & MAIA, 2008, p. 21).
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função. Para o autor, a esfera pública é, fundamentalmente, uma instância de discussão
política livre e aberta entre cidadãos privados, que se constitui como arena intermediária entre
a sociedade civil e o Estado2. Sua principal tarefa é a de possibilitar, por meio da troca pública
de razões, a formação da opinião pública, permitindo, assim, o estabelecimento de uma
posição crítica frente à autoridade estatal. Como define Wilson Gomes (2008), trata-se
daquele
2
É preciso salientar que a esfera pública não é lugar e nem uma instituição: é, antes, uma estrutura de
comunicação que se materializa em diversas arenas e instituições.
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O que muda com a modernidade e a constituição de sociedades complexas é que a
manutenção de uma ampla “esfera de visibilidade pública” torna-se inexorável para a
democracia: “numa democracia de massa, não há como estabelecer consensos, reconhecer as
questões relativas ao bem comum e as posições em disputa eleitoral sem que se passe por um
tal meio essencial de sociabilidade” (GOMES, 2008: 134).
Nesse sentido, é preciso salientar que o funcionamento da esfera pública nas
sociedades atuais se diferencia enormemente daquele da época burguesa. O próprio
Habermas, em sua atualização do conceito em Direito e Democracia, define a esfera pública
como:
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A conexão entre mídia de massa e esfera pública aparece claramente, uma vez que
“aquilo que se dispõe ao conhecimento comum no espaço midiático de visibilidade pode ser
‘destacado’ do denso ambiente informativo e passar a alimentar diferentes discussões
politicamente relevantes” (MAIA, 2008a, p. 174). Embora os materiais dos media possam ser
objeto de apropriações das mais distintas entre os cidadãos, é inegável sua conexão estrita
com os debates que se estabelecem na esfera pública que se materializa em diferentes espaços
sociais – da mesa de bar ao plenário das casas legislativas.
No entanto, ao mesmo tempo em que se afirma que a visibilidade midiática é
essencial para a democracia, é preciso ressaltar também que o espaço dos media está longe de
cumprir com as exigências democráticas de abertura e participação. Como vêm apontando
uma série de estudos, “esse é um espaço de acesso restrito, que sofre forte pressão de
anunciantes, segue regras impessoais do mercado e está sob crescente controle dos
profissionais da mídia” (MAIA, 2008a, p. 180). Algumas das principais perguntas que têm
sido feitas nos últimos anos são: quem e o que se torna visível? Que temas ganham relevância
nesse espaço? E, mais especificamente, quem adquire acesso e voz nos espaços da mídia?
Essas são questões fundamentais do ponto de vista da democracia, uma vez que “a luta em
torno daquilo que é incluído na agenda pública é, em si mesma, uma luta por justiça e
liberdade” (BENHABIB, 1992, p. 79)3.
Nas palavras de Rousiley Maia (2008b), “os veículos de comunicação oferecem
oportunidades altamente desiguais de acesso dos atores sociais à esfera de visibilidade
midiática” (MAIA, 2008b, p. 106). A estrutura de oportunidades observada no sistema
midiático tende a reproduzir as desigualdades já verificadas nas relações sociais em geral.
Grupos que detêm mais poder de decisão na sociedade, como os representantes do centro do
sistema político e as elites – os “públicos fortes”, segundo Nancy Fraser (1992) – tendem a
influenciar muito mais a agenda e as escolhas dos media do que o cidadão comum, sujeito da
opinião pública – ou os “públicos fracos”, de acordo com a mesma autora. Além disso, grupos
marginalizados socialmente tendem a permanecer invisíveis ou a ser apenas objeto da fala de
outros atores nos media.
Embora siga uma lógica presente em outros campos da vida social, a configuração
da estrutura de acesso aos media é um processo complexo, com múltiplas causalidades e
variações contextuais. Para Rousiley Maia (2008b),
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No original: “The struggle over what gets included in the public agenda is itself a struggle for justice
and freedom”.
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“a definição de oportunidades resulta da interação do sistema dos media
com suas lógicas, seus compromissos profissionais e modos operatórios,
com os agentes de outros sistemas e ambientes de ação, em situações
concretas” (MAIA, 2008b, p. 106).
Na esteira dessas questões, muitos esforços têm sido feitos no sentido de determinar
a visibilidade de questões e grupos da sociedade civil, concentrados no que Habermas (2003b)
chamou de “periferia do sistema político”. Em Direito e Democracia, o autor confere um
papel fundamental a esses grupos, pois sua ação na sociedade é responsável por identificar
problemas, processar discussões e prover temas para a esfera pública.
As cotas de visibilidade conferidas à sociedade civil variam tanto em relação ao
tema quanto ao contexto político em que se inserem. No entanto, pesquisas recentes indicam
que, no Brasil, questões levantadas por grupos da sociedade civil têm adquirido pouco ou
nenhum espaço na esfera de visibilidade midiática (MIGUEL, 2008; GOMES, 2008). Como
veremos adiante (cap. 2), é no sentido de combater essas desigualdades que entidades que
trabalham com o acesso público à comunicação lutam para construir espaços nos media para
que grupos com poucas oportunidades possam se colocar na esfera de visibilidade pública.
No caso de nosso objeto empírico, o que as produções audiovisuais da Rede Jovem
de Cidadania colocam em questão é justamente a invisibilidade e a estigmatização das
juventudes que habitam as periferias da cidade. A Rede constitui, em grande medida, um
espaço para que esses jovens possam exercitar a produção de representações mais autônomas
e mais atentas a seus desejos de dizer sobre a própria condição.
Faz-se necessário ressaltar ainda que, do ponto de vista da democracia e da justiça,
não importa saber apenas quais temas e atores se tornam visíveis, mas os modos dessa
visibilidade. Numa tradição que remonta a Erving Goffman, diversos autores têm buscado
analisar como as questões públicas são enquadradas no ambiente midiático, e quais são os
fatores que concorrem na constituição desses enquadramentos (ENTMAN, 1993; GAMSON
& MODIGLIANI, 1989). Cada vez mais, os autores dessas investigações se voltam para os
contextos normativos institucionais e culturais em que esses enquadramentos ganham forma e
engendram debates (FERREE et al, 2002). O discurso midiático posiciona questões, sujeitos e
grupos sociais, com conseqüências diversas para a formação da opinião pública (SIMON &
XENOS, 2000; HANSEN, 2007; CHONG & DRUCKMAN, 2007; MAIA et al, 2008) e
mesmo para a auto-estima dos sujeitos.
Embora reconheçamos a interação dos diferentes fatores na estruturação da
visibilidade midiática, buscamos salientar neste trabalho que a estrutura de oportunidades e os
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enquadramentos efetuados pelos media obedecem a princípios mais amplos, que não são
determinados de forma autônoma por grupos ou mesmo por alguma instituição social.
Fortemente influenciado pelas teorias de Gilles Deleuze sobre o cinema, o autor nos
chama a atenção para um dado óbvio, mas que tem implicações muito importantes (sobretudo
no caso que buscamos analisar): o de que todo enquadramento determina um “fora”, um não-
enquadrado, uma “parte da sombra” (MOUILLAUD, 1997). Quando a superfície midiática
absorve determinados temas ou determinados atores e os torna visíveis de determinada
maneira, uma infinita parcela da realidade social permanece invisível: toda produção de
visibilidade é, necessariamente, a fabricação de uma invisibilidade.
Interessam-nos, sobremaneira, as implicações morais da produção de visibilidade
nos media. Afinal de contas, “a informação é o que é possível e o que é legítimo mostrar, mas
também o que devemos saber, o que está marcado para ser percebido” (MOUILLAUD, 1997,
p. 38). Quando os media dão voz a determinados grupos, ou quando posicionam de
determinada maneira os sujeitos, há nesse processo uma lida necessária com os consensos
normativos tácitos que fundam as relações sociais.
Chamamos a atenção aqui para o duplo sentido do “possível”, como assinala a
epígrafe de Mouillaud ao início do capítulo: de um lado, a possibilidade indica uma idéia de
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capacidade, ou seja: aqueles temas, atores e enquadramentos que tem oportunidades reais –
por via, muitas vezes, de uma intensa luta por visibilidade – de ocupar o espaço dos media; de
outro, indica uma noção de autorização, uma vez que há consensos normativos tácitos que
permitem ou não a esta ou àquela porção dos atores, temas e enquadramentos que circulam no
cotidiano da realidade social postular um lugar na arena de visibilidade engendrada pelos
meios de comunicação.
Como aponta o próprio Mouillaud (1997), esse processo não é propriedade da
produção midiática:
5
Há ainda uma terceira autora que vem sendo arrolada entre os proponentes de uma teoria do
reconhecimento: trata-se de Nancy Fraser (1997, 2000, 2001, 2003a, 2003b), que faz uma distinção entre lutas
por reconhecimento e lutas por redistribuição, e procura no conceito de status e na idéia de paridade de
participação as bases para sua empreitada teórica. No entanto, por considerarmos que ela parte de um lugar
completamente distinto, e que suas premissas não são compatíveis com aquelas que buscamos expor aqui, não
nos deteremos sobre suas contribuições para o debate.
6
No caso do primeiro, a base é a dialética do senhor e do escravo, presente na Fenomenologia do
Espírito, obra de maturidade do filósofo idealista alemão; no segundo, a referência fundamental são os escritos
do jovem Hegel em Jena.
7
No original: “Due recognition is not just a courtesy but a vital human need”.
15
Nessa direção, Honneth (2003a) busca nos escritos de juventude de Hegel uma idéia
de luta social que se contrapõe a uma longa tradição da filosofia moderna, iniciada com
Maquiavel e Hobbes. Contra a concepção individualista de uma luta por autoconservação
baseada em interesses, Hegel avança a idéia de uma luta por reconhecimento, que tem na
intersubjetividade sua dimensão fundamental: inerente à própria vida social há uma pretensão
dos indivíduos ao reconhecimento intersubjetivo de sua identidade, que se desdobra numa luta
moralmente motivada, travada em diferentes domínios.
Já em Hegel está presente a idéia que perpassa toda a teoria honnethiana: são as
expectativas normativas estruturalmente inscritas nessas relações de reconhecimento a
referência fundamental para compreendermos os processos de mudança social. Nesse sentido,
são as lutas por reconhecimento efetivamente travadas no cotidiano de nossas sociedades que
impulsionam as transformações no chão normativo que as fundamenta8. No dizer de Honneth
(2003a),
“Hegel defende naquela época a convicção de que resulta de uma luta dos
sujeitos pelo reconhecimento recíproco de sua identidade uma pressão intra-
social para o estabelecimento prático e político de instituições garantidoras
de liberdade; trata-se da pretensão dos indivíduos ao reconhecimento
intersubjetivo de sua identidade, inerente à vida social na qualidade de uma
tensão moral que volta a impelir para além da respectiva medida
institucionalizada de progresso social e, desse modo, conduz pouco a pouco
a um estado de liberdade comunicativamente gerada, pelo caminho negativo
de um conflito a se repetir de maneira gradativa” (HONNETH, 2003a, pp.
29-30).
8
Será preciso reter a idéia de que as lutas por reconhecimento conservam um potencial de desafiar
padrões normativos existentes, quando de nossa análise da materialização da luta dos grupos juvenis nas
produções audiovisuais da Rede Jovem de Cidadania.
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muitos pontos com os propósitos de Hegel. O ponto de partida da teoria da sociedade em
Mead nos diz que:
9
Essa tripartição já estava presente, ainda que em versões restritas, no pensamento tanto de Hegel
quanto de Mead. A operação de Honneth é a de delinear bem seus contornos, com a ajuda de outros aportes
teóricos e de estudos empíricos.
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E é na experiência do reconhecimento jurídico que adotamos uma atitude que o
autor chama de auto-respeito:
“No primeiro caso, como revela o uso da fórmula kantiana, temos de lidar
com um respeito universal pela ‘liberdade de vontade da pessoa’; no
segundo caso, ao contrário, com o reconhecimento de realizações
individuais, cujo valor se mede pelo grau em que são conhecidos por uma
sociedade como relevantes” (HONNETH, 2003a, p. 184).
Se, no reino dos direitos, é importante que sejamos reconhecidos como iguais, o
domínio da estima social é o lugar da particularidade: o objeto do reconhecimento são as
“propriedades particulares que caracterizam os seres humanos em suas diferenças pessoais”
(HONNETH, 2003a, p. 199). E também aqui, a relação do reconhecimento opera de forma
semelhante: a partir da experiência de ser reconhecido em suas peculiaridades pelos parceiros
de interação, o sujeito desenvolve um sentimento de auto-estima, que também é essencial
para o desenvolvimento de uma auto-relação positiva e para a formação da identidade pessoal.
Segundo Honneth (2003a), o pressuposto para que esse padrão de reconhecimento
seja possível é um horizonte de valores intersubjetivamente partilhado, ou um “quadro de
orientações simbolicamente articulado, mas sempre aberto e poroso, no qual se formulam os
valores éticos, cujo todo constitui a autocompreensão cultural de uma sociedade”
(HONNETH, 2003a, p. 200). Os sujeitos em interação só estão de condições de se estimarem
um ao outro se partilham uma orientação por valores e objetivos que indicam o significado
das contribuições de cada um para a comunidade, uma vez que “seu ‘valor’ social se mede
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pelo grau em que elas parecem estar em condições de contribuir à realização das
predeterminações dos objetivos sociais” (HONNETH, 2003a, p. 200).
No entanto, se é importante atentar para as contribuições individuais dos sujeitos –
uma vez que a estima nas sociedades pós-tradicionais não é mais dirigida a grupos fechados,
como os estamentos ou castas –, é preciso salientar também que as lutas por estima social são,
em grande parte, coletivas. Muitas vezes, a experiência afetiva dos sujeitos biograficamente
individuados é o mote para a formação de lutas coletivas, baseadas em traços partilhados por
um “nós”.
Nesse sentido, assinalada a dinâmica presente em cada domínio do reconhecimento,
é preciso atentar também para os discursos e práticas que frequentemente ameaçam a luta pela
autorrealização efetuada pelos sujeitos cotidianamente. Assim, aos padrões intersubjetivos de
reconhecimento, correspondem formas de desrespeito pertinentes a cada domínio.
No âmbito das relações primárias, Honneth distingue os maus tratos e a violação
como práticas que ameaçam a integridade física do sujeitos, e os impedem de dispor
livremente sobre seus corpos. Essa interdição cerra as portas para toda tentativa de construção
de uma auto-confiança básica, tão necessária para a inserção dos indivíduos na vida pública.
No campo das relações jurídicas, a privação de direitos e a exclusão são os tipos
ideais das formas de desrespeito. Em contextos em que os direitos assegurados pela lei aos
sujeitos não são devidamente cumpridos, ou quando há uma insuficiência no quadro jurídico
vigente (direitos que precisariam ser criados, que ainda não existem nos códigos autorizados),
a integridade social dos sujeitos é ameaçada, e a constituição do auto-respeito se vê
interditada.
Já nas relações de estima, Honneth (2003a) destaca a degradação e a ofensa como os
padrões do desrespeito. Práticas como o preconceito e a estigmatização influenciam
decisivamente a autorrealização dos sujeitos, ameaçando sua dignidade. Em contextos em que
situações assim são comuns, a construção da auto-estima é decisivamente dificultada.
No entanto, o mais importante a ser destacado em relação às experiências morais de
desrespeito é que elas se tornam o elemento motivacional decisivo para as lutas por
reconhecimento. Profundamente ancoradas nas vivências afetivas dos sujeitos, experiências
como essas se tornam impulsos para a resistência social e a luta por mudanças nos modelos
interpretativos vigentes. Como as relações de reconhecimento são ancoradas nas pretensões
normativas dos sujeitos, a vivência do desrespeito é um sinal do distúrbio dessas relações, e se
torna o motivo principal para a luta pela construção de padrões de reconhecimento ampliados.
19
Honneth (2003a) busca demonstrar, por exemplo, recorrendo a Marx e Sorel, como a
injustiça vivenciada pelas classes oprimidas motiva, continuamente, sua luta moral. O autor
busca não reduzir a compreensão dos conflitos sociais a uma luta pela afirmação de interesses
dados: para Honneth (2003a), as atividades de resistência política estão profundamente
conectadas à “rede cotidiana das atitudes morais emotivas” (HONNETH, 2003a, p. 255).
Nesse sentido, o trabalho dos grupos e movimentos mais ou menos organizados
consiste, em grande parte, em tornar coletiva e pública uma experiência e uma situação que,
em sua origem, era individual e privada.
10
No original: “individuals understand and interpret personal experiences of disrespect and self-
realization, seeing them as shared with others”.
20
“sociedades distintas valorizam diferentes contribuições. Lutas por
reconhecimento podem buscar deslocar os quadros interpretativos vigentes
para que outras atividades e contribuições sejam percebidas como
estimáveis” (MENDONÇA, 2009, p. 79).
Em nossa análise, tentaremos perceber como grupos sociais distintos buscam, por
meio da produção audiovisual, contestar padrões normativos vigentes, na tentativa de
modificar a distribuição da estima social na sociedade. As produções revelam um processo de
busca pela valorização de dimensões particulares da identidade dos sujeitos e grupos, em
contraposição aos discursos sobre esses atores que circulam na esfera de visibilidade pública.
Na luta por estima social, busca-se destacar características particulares das identidades,
frequentemente em oposição a discursos que são baseados em padrões interpretativos
hegemônicos.
Essa é uma luta que está profundamente conectada ao estabelecimento e à
manutenção do acesso dos grupos à esfera de visibilidade pública, uma vez que as
interpretações correntes sobre determinados atores dependem, em grande medida, de “qual
grupo social consegue interpretar de maneira pública as próprias realizações e formas de vida
como particularmente valiosas” (HONNETH, 2003a, p. 207). Quando os grupos se tornam
visíveis, e ainda mais quando têm a possibilidade de administrar a própria visibilidade de
maneira autônoma, configura-se a possibilidade de interferir sobre os consensos tácitos que
fundam as relações sociais, na busca por um ganho de estima.
Em nosso caso, os grupos juvenis que têm acesso à produção audiovisual por meio
da Rede Jovem de Cidadania buscam formular discursos que contestam padrões dominantes
de representação. Nas duas produções que nos dispusemos a analisar, há uma tentativa de
contestar a estigmatização presente no discurso hegemônico sobre o hip hop e o funk, duas
práticas culturais que contam com muitos adeptos entre os jovens de periferia.
No entanto, como adverte o próprio Honneth,
21
Como um processo eminentemente comunicativo, as lutas por estima realizadas
publicamente necessitam levar em conta o que Honneth chamou de “clima das atenções
públicas” – mas que poderíamos ampliar para aquelas expectativas mais ou menos tácitas que
configuram o “outro generalizado” pensado por Mead. Na luta por estima, a consideração do
outro (que pode ser entendido, muitas vezes, como a sociedade inteira) é condição sine qua
non para seu sucesso. A luta por reconhecimento se relaciona, mais uma vez, com a luta por
visibilidade, uma vez que é preciso “chamar a atenção da esfera pública”, caso se queira
incidir sobre ela.
Nesse sentido, grupos e movimentos, ao se apropriarem do espaço dos media,
“procuram atuar sobre as premissas do entendimento e interferir nos consensos éticos que
orientam a convivência social” (MAIA, 2008a, p. 186). Os media se tornam um lugar
privilegiado para abrigar as demandas por reconhecimento, uma vez que estas se dirigem a
amplas audiências. Nas palavras de Barbara Hobson (2003), “a mídia é um campo crucial no
qual os enquadramentos são transmitidos, bem como um espaço no qual têm lugar disputas
discursivas sobre quem e o quê é reconhecido”11.
Para compreendermos o que está em jogo nas lutas por estima específicas que são
empreendidas nas produções audiovisuais que buscamos analisar, lançamos mão de uma
noção proposta por George Yúdice (2004): a da cultura como recurso. Em seu livro A
conveniência da cultura, o autor busca dar conta de um fenômeno contemporâneo: a cultura,
em nosso tempo, deixa de ser definida socialmente como “em si”, e se torna “conveniente”,
“cultura para”: passa a ser mobilizada de acordo com propósitos específicos, e tem sua
legitimação baseada na utilidade. Baseando-se no conceito heideggeriano de reserva
disponível, Yúdice (2004) avança a noção de cultura como recurso, como meio para a
realização de fins variados.
11
No original: “The media is a crucial field in which frames are transmitted, as well as a site where
discursive contests take place over who and what is recognized” (p. 7).
22
crescimento econômico através de projetos de desenvolvimento cultural
urbano” (YÚDICE, 2004, p. 27).
É preciso salientar, aqui, que a noção de cultura como recurso não implica um
julgamento que diagnosticaria uma corrupção da idéia de cultura. Essa é, antes, uma
característica de nosso tempo: a mesma lógica pode estar presente em lutas legítimas ou em
ações puramente estratégicas para a promoção de interesses de grupos isolados. O autor
analisa, por exemplo, a experiência do grupo cultural Afro Reggae, que, em sua luta contra a
exclusão racial e a ilegalidade nas favelas do Rio de Janeiro, se utiliza da música e da dança
como plataforma para que a juventude da favela possa dialogar com sua comunidade e com a
sociedade como um todo. A produção cultural, aqui, serve como um recurso na luta pela
justiça social.
Postulamos, neste trabalho, a proficuidade da utilização do conceito de cultura como
recurso para o entendimento de algumas lutas por reconhecimento, sobretudo no campo da
estima social. Em nossa análise, buscaremos perceber como são formuladas, em meio a uma
luta por visibilidade, demandas por reconhecimento que têm, em seu cerne, a utilização da
cultura como recurso. Embora essa conexão não tenha sido vislumbrada pelo autor,
argumentamos que (e procuraremos demonstrar como) a cultura pode ser mobilizada como
recurso na luta por estima social.
23
Neste capítulo, buscamos articular a luta por visibilidade com os padrões normativos
subjacentes a esta, e postulamos que a formulação e a contestação desse chão normativo
podem ser compreendidas com o auxílio de uma teoria do reconhecimento. Especificamente,
procuramos caracterizar como as lutas por estima social podem estar conectadas à
mobilização da cultura como recurso. No capítulo seguinte, faremos uma caracterização de
nosso objeto empírico, buscando conectá-lo com as reflexões já empreendidas até este
momento.
24
3. Juventude(s) e comunicação comunitária: um olhar sobre a Rede Jovem de
Cidadania
Alberto Melucci
25
Faz-se necessária, contudo, uma pequena discussão teórica antes da apresentação de
nosso objeto empírico: afinal de contas, o que está em jogo quando falamos desses jovens e
dessa juventude? Discutir quem são esses sujeitos e qual é seu contexto de atuação é de suma
importância para nossa análise, caso queiramos lançar um olhar mais acurado sobre essas
práticas comunicativas.
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Existem diferentes condições históricas, sociais e políticas que se relacionam com
esse momento da vida. Vários autores apontam que a juventude só emerge como uma época
separada da vida humana na modernidade, resultado de condições sociais que não existiam
anteriormente (DAYRELL, 2005, p. 27). Além disso, é mister reconhecer que:
a forma como cada sociedade, e no seu interior cada grupo social, vai lidar e
representar esse momento é muito variada. Esta diversidade se concretiza nas
condições sociais (classes sociais), culturais (etnias, identidades religiosas, valores),
de gênero, e também das regiões, dentre outros aspectos (DAYRELL, 2005, p. 21).
O reconhecimento das imensas variações entre os modos de ser jovem nos faz
explorar as contribuições oferecidas por diversos autores (CARRANO, 2000; DAYRELL,
2005; ANDRADE, 2009) e adotar a ênfase na noção de juventudes, no plural. A juventude da
região metropolitana de Belo Horizonte, nesse sentido, é marcada por alguns aspectos
fundamentais, que a distinguem da juventude de outros lugares. Os indicadores sociais
também são claros ao apontar a desigualdade entre os modos de ser jovem: de acordo com
uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), um jovem
branco de 25 anos tem, em média, mais 2,3 anos de estudo que um jovem negro da mesma
idade (DAYRELL & GOMES, 2007, p. 6).
Mesmo no interior do grupo social ao qual dirigimos nosso olhar – jovens de
periferia da capital mineira –, é impossível falar de unidade. Há diferentes graus de atuação
organizada, diferentes interesses, diferentes estilos. No entanto, é preciso ainda fazer algumas
considerações sobre essas juventudes, no intuito de circunscrever nossa análise das práticas
comunicativas a um contexto.
Para Juarez Dayrell (2005), “na construção dos modos de vida juvenil, o mundo
cultural ocupa uma centralidade” (DAYRELL, 2005, p. 34). Embora essa não seja uma
exclusividade da situação contemporânea, uma vez que em toda sociedade os jovens foram
alvo específico de alguma prática cultural – vide os rituais de iniciação presentes nas
sociedades indígenas americanas –, nos dias atuais essa relação com a cultura adquire traços
específicos.
É preciso adotar um conceito de cultura bastante elástico para compreender os
diferentes modos que adquirem as relações entre juventude e cultura na contemporaneidade.
27
Num primeiro aspecto, é possível destacar a presença das “culturas” ou “subculturas”
juvenis12 – como os punks, os darks, os funkeiros, os jovens ligados à cultura hip hop, os
emos – que povoam o cenário urbano e significam espaços de autonomia e construção da
auto-estima para os jovens.
Sem nos deter num conceito específico, quando falamos em culturas juvenis nos
referimos a modos de vida específicos e práticas cotidianas dos jovens, que
expressam certos significados e valores não tanto no âmbito das instituições como
no âmbito da própria vida cotidiana (DAYRELL, 2005, p. 35).
Por meio dos diferentes estilos subculturais, os jovens manifestam uma série de
significados compartilhados, um conjunto de signos específicos que denotam a pertença a um
determinado grupo.
Nos últimos anos, e de forma cada vez mais intensa, podemos observar que os
jovens lançam mão da cultura como uma das principais e mais visíveis formas de
comunicação, expressa nos comportamentos e nas atitudes pelos quais se
posicionam diante de si mesmos e da sociedade (CAROLINA & DAYRELL, 2006,
p. 287).
12
Usamos as noções de cultura juvenil, subcultura, estilo cultural ou simplesmente estilo de forma
indistinta. Com qualquer dessas idéias, queremos nos referir às práticas culturais realizadas cotidianamente por
grupos de jovens, que são reunidas em universos culturais específicos – funk, hip hop, emo, etc. - e que são
fundamentais na construção da identidade juvenil. Reconhecemos a herança dos Estudos Culturais britânicos na
teorização sobre as subculturas e a resistência juvenil, mas, neste trabalho, não nos apegamos às sutilezas
conceituais que, porventura, diferenciariam essas noções. Autores como Dayrell (2005) também utilizam os
termos de maneira mais ou menos indistinta.
28
sociabilidade entre os jovens e no posicionamento destes no espaço público (DAYRELL,
2005).
De forma mais afeita a nosso objeto, é necessário destacar a efervescência cultural
protagonizada pelos jovens moradores de vilas e favelas das grandes cidades. Analisando o
universo da produção cultural nas periferias de Belo Horizonte, Áurea Carolina e Juarez
Dayrell apontam que:
30
A agregação tem caráter cultural e se situa no terreno da produção simbólica na
vida cotidiana. Existe um inter-relacionamento constante entre os problemas da
identidade individual e a ação coletiva; a solidariedade do grupo não está separada
da busca pessoal e das necessidades afetivas e comunicacionais dos membros, na
sua existência quotidiana (MELUCCI, 2001, p. 97).
31
mobilização social e cultural vibrante e de grande importância, que envolve principalmente a
população jovem” (LIMA et al, 2006, p. 30). É no intuito de interferir na distribuição da
visibilidade possível a esses grupos que os sujeitos procuram se engajar em práticas
comunicativas de caráter comunitário, na perspectiva do acesso público à comunicação13.
Nas lutas em torno da visibilidade para seus problemas e suas contribuições, e por
um diálogo possível com a sociedade que a forma, a cultura juvenil reivindica “o direito à
comunicação aberta, afirma a vontade de utilizar todas as redes de sociabilidade que a tornam
possível e de experimentar todos os canais expressivos e comunicativos que a sociedade
coloca à sua disposição” (MELUCCI, 2001, p. 104).
Mas os canais são poucos. Ainda há vários obstáculos para que as vozes dessas
juventudes possam ser amplificadas. Embora existam espaços em que a juventude aparece de
modo plural, em grande medida os maiores veículos de comunicação insistem em fazer
circular estereótipos sobre os jovens – seja numa visão romântica, que associa esse momento
da vida com um tempo de pura liberdade e de prazer, seja naquela imagem que considera a
juventude como um problema, o qual ganha visibilidade apenas quando vinculado ao aumento
dos índices de violência. Para o jovem de periferia, essa situação adquire traços bastante
perversos.
Na busca por uma intervenção nas partilhas da visibilidade pública, muitos grupos
juvenis se engajam em práticas comunicativas de caráter comunitário. As expressões
“comunicação comunitária” e “mídias comunitárias” referem-se a processos de produção
midiática realizados coletivamente por ou com pequenos grupos, considerados excluídos dos
processos hegemônicos de produção midiática (cf. LIMA, 2006).
Com os meios da comunicação comunitária, grupos marginalizados buscam
contestar uma representação hegemônica de suas identidades e reposicionar o debate em torno
de temas vitais para a própria constituição destas. Entendemos aqui as representações não
como entidades mais ou menos estanques, ao modo da psicologia social
(JOVCHELOVITCH, 2000), mas como uma prática, um tipo de trabalho fundamental para a
produção de sentido na sociedade (HALL, 1997).
13
A idéia de acesso público tem sua origem na experiência dos canais de televisão a cabo ocupados por
cidadãos comuns e entidades da sociedade civil, que foram uma realidade sobretudo na América do Norte. Trata-
se do reconhecimento de que o espaço da mídia deve ser disponibilizado, também, para setores não-
especializados e não-comerciais, na perspectiva da democratização da comunicação.
32
As representações que circulam na sociedade são produzidas em contextos de ação
conjunta pelos sujeitos. No dizer de Vera França:
Para o autor, o audiovisual cumpre um papel muito importante nesse processo, uma
vez que, ao contrário do isolamento da escritura, convoca o trabalho coletivo e fomenta a
interlocução entre os sujeitos. Além disso, essas práticas representam “a possibilidade de
pessoas que estão fora dos processos de produção da mídia descobrirem sua ‘metalurgia’
33
enquanto se expressam e dão visibilidade às suas questões” (ALMAS, LIMA & FILÉ, 2006,
pp. 185-186).
Uma outra dimensão importante está ligada à própria natureza do audiovisual. Ao
produzir, com seus próprios meios, narrativas próprias em imagens e sons, torna-se possível
para os indivíduos e grupos não apenas veicular suas idéias: torna-se possível encarná-las,
referi-las a um corpo, a um rosto; é possível fazer soar e fazer ouvir a própria voz. De posse
dos meios audiovisuais, é possível não apenas falar ou escrever sobre a periferia, mas colocá-
la em cena, mostrá-la, junto com os sujeitos que a habitam. O tornar visível, no contexto do
audiovisual, adquire novas características.
Os educadores de audiovisual da Rede Jovem de Cidadania vão ainda mais além:
34
tenha de ser uma tarefa exclusiva do cinema. É preciso reconhecer e diferenciar, na televisão
mesma, os espaços onde é possível perceber a construção de representações dissonantes.
Como apontam Martín-Barbero e Rey (2001), é preciso, atualmente, reconhecer que
“a televisão torna-se experiência comunicativa e cultural nos processos de ‘des-construção’ e
‘re-construção’ das identidades coletivas, lugar onde se trava a estratégica batalha cultural do
nosso tempo” (MARTÍN-BARBERO & REY, 2001, p. 10-11). Com seu poder de penetração
massiva, a televisão não pode ser descartada como oportunidade real de transformação na
distribuição das visibilidades e da construção de lutas por reconhecimento.
Nesse sentido, é na perspectiva de construir espaços para a veiculação das
demandas, das imagens e da voz dos grupos marginalizados que algumas entidades atuam na
perspectiva do acesso público à comunicação. Aqui, uma vez mais é necessário frisar que não
se trata de dar voz às comunidades, mas de oferecer espaços para a escuta de vozes que já
soam com toda força, mas que não têm oportunidade de se fazerem audíveis para amplas
audiências.
14
“A sustentabilidade da AIC é construída por meio de parcerias com dezenas de instituições e da
prestação de serviços em comunicação para a mobilização social, produção de mídias participativas e educação
midiática” (Informação disponível no site da instituição: www.aic.org.br. Acessado em 2 de maio de 2010).
35
serviços de saúde mental, moradores de vilas e favelas, escolas, ONGs e iniciativas
comunitárias de defesa dos direitos humanos e que realizam projetos de cultura e mobilização
social”15.
No entanto, embora trabalhe com públicos distintos, a juventude de BH se constituiu
como o principal parceiro da AIC na realização de iniciativas de acesso público à mídia
(experiências nas quais o audiovisual tem uma presença hegemônica).
15
Informação disponível no site da instituição: www.aic.org.br. Acessado em 2 de maio de 2010.
16
Atualmente, as experiências de produção em mídias comunitárias com grupos juvenis ultrapassaram os
limites da capital mineira: “A partir da experiência da RJC, a AIC passou a realizar inúmeras iniciativas no
campo das mídias comunitárias juvenis. Uma delas é o projeto Juventude de Atitude, que desde 2007 envolve
ações de mobilização específicas em algumas regiões mineiras – municípios da RMBH, Serra do Cipó e Vale do
Jequitinhonha – e séries videográficas sobre temáticas nascidas a partir de tais ações. Outra frente de destaque é
o Juventude do Jequi, que envolve núcleos de produção audiovisual que têm à frente jovens de Araçuaí, Itaobim
e Padre Paraíso, no Vale do Jequitinhonha” (Informação disponível no site da instituição: www.aic.org.br.
Acessado em 2 de maio de 2010).
36
para atuar como “correspondentes” (expressão cunhada para designar os jovens que atuaram
como agentes multiplicadores nas nove regiões de Belo Horizonte)17.
Nessa primeira formatação, o projeto contava com a participação de jovens de BH
envolvidos na produção coletiva de comunicação nas seguintes mídias: um programa de TV
semanal, exibido em televisão pública; um programa de rádio, veiculado em uma emissora de
caráter educativo; um jornal impresso, distribuído em escolas públicas; um site; um webzine;
uma agência de notícias, que produzia boletins informativos enviados a veículos de
comunicação e instituições do Terceiro Setor18.
Em 2003, iniciaram-se as atividades de formação/produção em mídias comunitárias
com os correspondentes. No segundo ano do projeto, os jovens envolvidos na RJC
protagonizaram a ampliação da rede a partir das iniciativas de mobilização juvenil já
existentes em suas comunidades, desenvolvendo atividades formativas geridas por eles
próprios (LIMA et al, 2006, p. 33).
Diante das articulações que estavam surgindo com os movimentos juvenis a partir
do projeto, a AIC procurou, em 2005, estabelecer uma articulação direta com os grupos
organizados e informais constituídos autonomamente pela juventude de Belo Horizonte. Com
o fim do primeiro patrocínio da RJC e a dissolução da estrutura dos 54 correspondentes, essa
participação direta dos coletivos juvenis tornou-se, com o passar dos anos, a marca da Rede
Jovem de Cidadania.
Atualmente, grupos e entidades altamente diversos entre si e com graus de
organização também muito distintos procuram a AIC com o desejo de produzir mídia
comunitária. Hoje, o programa Rede Jovem de Cidadania, exibido semanalmente na Rede
Minas de Televisão, tornou-se um espaço de visibilidade de grande importância para coletivos
ligados à juventude e à promoção da cidadania das periferias da Região Metropolitana de
Belo Horizonte.
Embora tenhamos feito um resgate da história do projeto Rede Jovem de Cidadania
como um todo, é importante ressaltar que nosso interesse de pesquisa se dirige a um recorte
bem específico: algumas produções da safra recente de programas de TV. Buscaremos
compreender a formulação de demandas por reconhecimento a partir da análise das produções
audiovisuais veiculadas no programa Rede Jovem de Cidadania, que vai ao ar aos sábados
17
Foi formado um grupo de 54 jovens correspondentes (seis indicações por região da cidade).
18
Com o passar do tempo, entretanto, a produção audiovisual uma importância cada vez mais central no
projeto, e tornou-se hegemônica.
37
(com duas reprises no meio da semana) na Rede Minas de Televisão, uma emissora de caráter
público, de sinal aberto, que abrange todo o território do estado de Minas Gerais19.
É importante dizer do caráter específico dessas produções. Ao mesmo tempo em que
se caracterizam como mídias comunitárias, posto que os sujeitos ordinários são os grandes
responsáveis pela enunciação, elas também atingem um espaço de visibilidade ampliada, por
meio de sua veiculação em um canal de televisão. Trata-se de produções elaboradas
comunitariamente, mas dirigidas à esfera de visibilidade configurada pelos meios de massa.
Os sujeitos querem se comunicar não apenas com suas comunidades, mas estabelecer um
diálogo com outros sujeitos em situações sociais distintas.
Contudo, ainda que nosso olhar se volte para os produtos, propriamente ditos,
fazem-se necessários alguns pequenos apontamentos sobre a metodologia do projeto, que
também é adotada em outras iniciativas levadas a cabo pela instituição.
A metodologia da Rede Jovem de Cidadania – que sofre reinvenções a cada dia,
devido às diversas contingências que perpassam o cotidiano da instituição, mas que se
mantém inalterada em algumas dimensões centrais – é baseada no que os próprios integrantes
da instituição (MELO et al, 2006a) chamam de “mídia-processo”. Trata-se de um
procedimento em que formação e produção caminham lado a lado, tornando-se dois
momentos simultâneos do encontro real entre a equipe da instituição e os sujeitos que
decidem se engajar na produção em mídias comunitárias.
Ao mesmo tempo em que é empreendida uma formação para a produção nas mídias,
são realizados produtos. Esse processo formativo/produtivo é focado na autonomia dos
sujeitos participantes para o planejamento e a realização, na produção coletiva e na ausência
de uma divisão de funções (pauta, roteiro, apuração, fotografia, direção, etc.). Busca-se a
experimentação com a linguagem, num processo em que o erro e o acaso possuem uma
dimensão fundamental. Além disso, os integrantes da equipe da instituição atuam como
propositores, e a experiência de produção em mídia comunitária adquire um caráter lúdico.
No caso da produção em audiovisual, a metodologia utilizada é o vídeo-processo: “o
jovem elabora um conhecimento próprio sobre a mídia ao longo do processo de produção”
(MELO et al, 2006b, p. 69). Num percurso em que não há uma divisão de funções entre os
participantes, chega-se aos produtos em meio a um engajamento coletivo na realização.
É preciso, entretanto, fazer uma ressalva importante quanto às dimensões
metodológicas das produções audiovisuais da Rede Jovem de Cidadania. Ao longo dos
19
Segundo uma estimativa da emissora, a audiência dos programas gira em torno dos 500 mil
espectadores.
38
últimos anos, houve um progressivo enxugamento da equipe de profissionais, causado pela
falta de patrocínio da RJC de 2007 a 2009, ao mesmo tempo em que a instituição insistia na
tarefa de manter a periodicidade semanal dos programas. Essa situação fez com que a
autonomia dos grupos e a atenção ao processo de produção ficasse, por vezes, dificultada.
Em termos práticos, o processo funciona atualmente da seguinte maneira: os grupos
chegam à AIC diretamente, e formalizam uma proposta de produção audiovisual baseada em
seus interesses e desejos. Os tempos e formatos do processo formativo/produtivo realizado
com cada grupo variam enormemente, tanto devido às disponibilidades dos próprios
proponentes quanto por força de contingências do trabalho da AIC. No entanto, se essa
flexibilidade manifesta uma diversidade muito grande entre as inserções de cada grupo, esse
fato não deve ser encarado como exclusivamente negativo. Já em 2006, os integrantes da
equipe responsável pelos programas diziam:
Nós não possuímos uma fórmula pronta para o fazer televisivo; muito pelo
contrário, o trabalho é sempre um desafio. Cada programa propõe uma série de
novos problemas, novas questões, obrigando-nos a repensar os formatos de acordo
com a proposta dos grupos (MELO et al, 2006b, p. 72).
Segundo a equipe do projeto, quase todas as propostas que chegam à AIC são
efetivamente executadas. Conforme a proposta dos grupos e de acordo com suas realidades,
os processos adquirem um caráter mais ou menos formativo, e os sujeitos se engajam mais ou
menos na produção. A realização dos programas, contudo, acontece sempre num encontro real
entre a equipe da AIC e os grupos juvenis: são sempre os grupos, de forma autônoma, os
responsáveis pelas escolhas temáticas e estéticas dos programas.
Neste ponto, chegamos ao momento propriamente analítico. É preciso agora
investigar, por meio de uma análise detida de algumas produções, as seguintes questões:
como, de posse dos meios para produzir e veicular um discurso a partir dos próprios
argumentos e da própria ação, os sujeitos elaboram demandas por reconhecimento em torno
das formas de desrespeito que os acometem? Como, especificamente, invocam a cultura na
luta por estima social? Antes, contudo, é necessária uma reflexão sobre nossas escolhas
metodológicas.
39
4. Trajeto metodológico: demandas por reconhecimento e linguagem
audiovisual
É difícil ver os conteúdos da experiência através das paredes da teoria. Muitas
vezes se tem de furar as paredes – ‘desconstruí-las’, ‘decompô-las’ –
para ver o que elas escondem
Zygmunt Bauman
Neste capítulo, buscamos definir em que consiste nossa análise das produções
audiovisuais da Rede Jovem de Cidadania. A seguir, tentamos clarificar nossa categoria de
análise – as demandas por reconhecimento –, bem como indicar como se constituiu nosso
percurso metodológico e as principais questões pertinentes às nossas escolhas.
A definição daquilo que buscávamos revelar por meio da investigação, como não
poderia deixar de ser, foi prévia a uma análise detida do material, e responde aos nossos
interesses de pesquisa. No entanto, foi apenas à medida que efetuávamos uma imersão no
material a ser analisado que as categorias foram ficando mais claras. Acreditamos que este
seja um processo importante, uma vez que elaborar categorias adequadas de análise:
20
Tradução nossa. Do original: “is as much a question of immersing oneself in the textual material to get
a general ‘feel’ for its content and structure prior the construction of categories, as it is a case of deriving
category ideas from the theoretical framework and questions which guide the research project”.
40
“as lutas por reconhecimento têm lugar em terrenos simbólicos, onde o discurso tem uma
importância crucial na própria organização da arena política, ao definir direitos, cidadania
e até mesmo o que conta como um recurso político” (HOBSON, 2003, p. 7)21.
A formulação discursiva de uma demanda é fundamental, uma vez que essa é uma
luta, em grande parte, simbólica, e que se dá em arenas de debate público, nas quais a mídia
tem um papel central. No caso das demandas por estima social, estas são dirigidas para a
sociedade como um todo, ou para a “comunidade de valores”, no dizer de Honneth (2003).
Em nossos objetos de análise, elas se constituem como reivindicações para que uma ou outra
prática cultural específica ligada aos jovens de periferia seja considerada válida, digna de ser
estimada pela sociedade. Essas demandas buscam contestar uma imagem depreciativa dessas
práticas e, por conseguinte, dos sujeitos a elas associados.
Nesse sentido, uma demanda que se dirige a uma prática específica é uma demanda
para que seus adeptos sejam considerados sujeitos com características peculiares, que devem
ser estimadas pela sociedade como um todo. Ao contestarem uma imagem considerada
preconceituosa, essas produções acabam por construir um novo lugar para seus adeptos.
Constituição do corpus
Antes de traçarmos uma breve descrição das produções audiovisuais que constituem
nosso corpus, é necessário dizer que o próprio processo de constituir um corpus, em nosso
caso, não pode ser separado do procedimento mais amplo de investigação. Durante os meses
em que desenvolvemos a pesquisa, entramos em contato direto com uma vasta gama de
materiais que poderiam vir a ser analisados. Assistimos a dezenas de vídeos exibidos na Rede
Jovem de Cidadania, desde o início do projeto, em 2003, até os dias atuais. Essa incursão na
história do projeto, por meio da experiência das imagens, foi fundamental não apenas para
que pudéssemos delimitar nosso corpus, mas também para fazermos um melhor recorte
temático, refinarmos nossas categorias e conhecermos um pouco mais do universo
audiovisual que é produzido cotidianamente pelos jovens.
Em determinado momento do percurso, decidimos trabalhar com produções que
tivessem como referente a produção cultural dos jovens de periferia de Belo Horizonte. Nosso
21
Tradução nossa. Do original: “Recognition struggles take place on symbolic terrains where discourse is
of paramount importance in organizing the political arena itself, by defining rights, citizenship, and even what
counts as a political resource”.
41
interesse de pesquisa, com o tempo, foi se dirigindo para o papel da cultura na formulação de
demandas por estima social, uma vez que nossas leituras indicavam a centralidade da cultura
para a vivência juvenil e a intensidade da produção nas periferias da cidade. Por fim, minha
experiência de espectador da Rede Jovem de Cidadania, associada às entrevistas e consultas
realizadas com os profissionais envolvidos no projeto e somada à experiência como integrante
da Diretoria de Pesquisa da Associação Imagem Comunitária fez com que fosse tomando
forma a convicção de que, atualmente, os grupos culturais juvenis são o principal público
propositor da RJC.
Assim, os programas escolhidos para compor o corpus foram os seguintes: Baile
Funk, vídeo de caráter documental, com duração de 23 minutos e 7 segundos, exibido pela
primeira vez na Rede Minas em 12 de dezembro de 2009 e Se essa rua fosse minha, produção
também de caráter documental, com duração de 22 minutos, realizada no âmbito do projeto
Juventude de Atitude22 e exibida pela primeira vez na Rede Minas em 27 de dezembro de
2008. As duas produções se dirigem a práticas culturais levadas a cabo por jovens da periferia
de Belo Horizonte, e buscam lançar um olhar sobre essas manifestações.
O programa Baile Funk nasceu como uma proposta conjunta do MC Jefinho – um
jovem MC de Belo Horizonte, que tem um histórico de outras parceiras com a AIC – e de
Clebin Quirino, que atualmente é um dos educadores da Rede Jovem de Cidadania e que
também trabalha com música. O objetivo do programa, segundo os propositores e
realizadores, era dar visibilidade às questões do movimento funk de Belo Horizonte. Para
eles, a articulação em torno desse estilo é ainda mais invisível socialmente do que aquela em
torno do hip hop.
O vídeo, de caráter documental, se constrói a partir de uma visita ao baile das
Quadras do Vilarinho, na região de Venda Nova, em Belo Horizonte23. Nesse espaço, são
realizadas entrevistas e produzidas imagens no interior do espaço onde acontece o baile e nas
22
Embora tenha sido realizado com recursos de outro projeto, o programa foi exibido no espaço da Rede
Jovem de Cidadania, e reflete a diversidade dos processos produtivos que compõem a Rede hoje. De acordo com
profissionais envolvidos e com o site do projeto, o Juventude de Atitude tinha como objetivo possibilitar à
juventude que produz cultura em Belo Horizonte (no caso da primeira fase do projeto) um espaço de expressão e
diálogo por meio da produção de documentários. No caso específico de Se essa rua fosse minha, foi realizada
uma série de encontros entre a equipe da AIC e o coletivo Família de Rua, no intuito de planejar e realizar o
vídeo. Mais informações disponíveis em: http://www.juventudedeatitude.org.br/projeto.html. Acessado em 9 de
junho de 2010.
23
As Quadras do Vilarinho, junto com as do Chiodi, no Bairro Industrial, são espaços que fazem parte da
história do funk em Belo Horizonte. Ainda no início dos anos oitenta, esse mesmo local abrigava os chamados
“bailes black”, que estão na origem do movimento funk na capital. Espaços como esses, como aponta Dayrell
(2005), “durante a semana eram quadras cobertas e nos finais de semana transformavam-se em templos da
música negra” (p. 48).
42
imediações. Os protagonistas da narrativa são pessoas envolvidas, de alguma forma, com o
movimento funk: Rafael Rebouças, administrador das Quadras do Vilarinho; Priscila e
Danilo, freqüentadores do baile (identificados como “funkeiros”); Lebão, DJ do baile, e
Bocão, MC.
Já o programa Se essa rua fosse minha é uma proposição do grupo cultural Família
de Rua, um coletivo de Belo Horizonte que trabalha com a promoção da cultura hip hop.
Fruto de um outro projeto da AIC – o Juventude de Atitude –, o vídeo foi exibido no espaço
da Rede Jovem de Cidadania em 27 de dezembro de 2008.
A produção, também de caráter documental, se constrói a partir de uma conversa
com integrantes do Família de Rua – OZLeo, Doug Monge, Castilho, Panchovilla e PDR –
sobre a principal iniciativa do coletivo: o Duelo de MC's, evento que ocorre sempre às sextas-
feiras, debaixo do Viaduto de Santa Tereza, na capital. A narrativa articula uma conversa em
torno da história do duelo, seus dilemas e contribuições para a cena hip hop na capital, com
registros do primeiro ano de vida do evento.
As duas produções possuem temáticas, propostas de discussão, contextos de
realização e características estéticas bastante distintas. No entanto, se tomamos por base os
traços metodológicos, a estrutura de funcionamento da Rede Jovem de Cidadania e a
concepção de acesso público que subjaz ao projeto, concluímos que não poderia ser de outra
forma: os grupos que propuseram os programas têm características próprias, assim como os
arranjos produtivos que deram origem aos vídeos. Se falamos em comunicação comunitária,
seria anacrônico esperar que essas produções não expressassem as peculiaridades dos grupos
e dos processos.
Diante disso, decidimos pela análise em separado das estratégias dos dois vídeos.
Acreditamos que, ao utilizar os mesmos operadores analíticos para as duas produções,
poderíamos perder as especificidades temáticas e estéticas dos programas, que são exatamente
aquilo que buscamos revelar com a análise. Isso não impede, no entanto, que encontremos
recorrências e características comuns entre os dois programas.
Além dos motivos supracitados, as duas produções foram escolhidas por se tratarem
de realizações mais recentes, que ainda não foram objeto de estudo e que dizem mais da atual
estrutura de funcionamento e das metodologias empregadas pelo projeto RJC e pela própria
Associação Imagem Comunitária.
43
Embora tenhamos realizado entrevistas com os realizadores das produções e com
profissionais da instituição responsável por produzi-las em parceria com os grupos, nossa
metodologia se dirige fundamentalmente para o estudo do material audiovisual. As entrevistas
realizadas tiveram caráter informativo, e dizem muito mais do contexto e da metodologia das
produções do que daquilo que buscamos investigar por meio da análise. A decisão de não
aprofundar as questões da pesquisa nas entrevistas com os realizadores se deve ao fato de que
nosso maior interesse é verificar, na análise da própria produção audiovisual, a construção das
demandas por reconhecimento. Acreditamos que a realização de entrevistas que revelassem
outros aspectos da luta poderia guiar em demasia nossa interpretação dos vídeos, e desviar o
foco de nossa atenção.
Nossa olhar se volta, nesse sentido, para o texto das produções audiovisuais.
Buscamos revelar, por meio de nossos procedimentos de análise, as principais estratégias de
construção dos vídeos, numa investigação aprofundada das escolhas estéticas e do uso da
linguagem audiovisual.
Sob esse aspecto, nossa investigação pode ser considerada um tipo de análise
textual. Foi necessário levar em conta, de maneira detida, os procedimentos próprios da
linguagem audiovisual, como tipos de enquadramento, duração dos planos, ângulos de
câmera, tipos de plano, escolha das locações, trilha sonora. Além disso, uma atenção especial
foi dada à montagem, entendida como o procedimento que rege a construção de uma obra
audiovisual. Evidentemente, não nos propomos a analisar cada um dos elementos em cada um
dos programas, mas articular essa análise com nossos objetivos de pesquisa.
Nossa análise, como não poderia deixar de ser, é devedora de procedimentos
consagrados historicamente pela análise fílmica. Como aponta Newbold (1998), a crítica
cinematográfica e a investigação sobre a linguagem do cinema ainda são as principais fontes
para qualquer análise de produções audiovisuais.
Além disso, é preciso dizer que a natureza dessas produções nos permite tratá-las
mais amplamente como produtos audiovisuais, sem que tenhamos que fazer referência a
procedimentos canônicos da linguagem televisiva ou a conceitos como o de gêneros
televisuais. O espaço de veiculação na Rede Minas de Televisão não contém grandes
exigências de caráter estético, e as produções são bastante livres – já foram produzidos desde
curtas-metragens de ficção, passando por videoclipes, produções de caráter mais documental,
vídeos experimentais, etc. Além disso, como são produções em que as escolhas estéticas e os
44
processos de produção dependem amplamente do encontro real entre os grupos e a equipe da
AIC, os vídeos tendem a ser bastante heterogêneos. Por tudo isso, acreditamos que as
ferramentas da análise fílmica nos permitem uma aproximação mais direta com o material
audiovisual, sem que seja preciso buscar uma coerência entre os programas.
Nosso primeiro movimento em relação às produções foi realizar uma transcrição em
três colunas de informação: na primeira, transcrevemos as falas dos entrevistados, quando
havia; na segunda, dispusemos as informações sobre a trilha sonora – efeitos, som ambiente,
descrição das músicas ou letras, também quando era necessário; e na terceira coluna,
descrevemos a trilha de imagem (descrição dos elementos visuais representados, escala dos
planos, ângulo de câmera, profundidade de campo, movimentos – dos personagens e da
câmera –, tipos de passagem de um plano a outro e outras informações relevantes)24.
Essa transcrição foi fundamental para que pudéssemos realizar um segundo
movimento, em alguma medida já analítico25, que foi de descrição das seqüências e planos
mais significativos das estratégias que identificamos nos vídeos. Chamamos de estratégias os
procedimentos narrativos de construção de um discurso sobre as duas práticas culturais em
questão – o funk e o hip hop.
Faz-se necessário observar que, na descrição, e posteriormente na análise, foi
necessário utilizar alguns termos clássicos da análise fílmica26. Estamos plenamente
conscientes da vasta discussão e polêmica em torno de alguns deles – como a noção de plano,
problematizada por Deleuze (1985) e Bonitzer (2007) –, mas decidimos utilizá-los sob rasura,
em sua acepção mais corrente, e com intenção mais descritiva do que para contestar os
próprios conceitos.
Assim, utilizamos com freqüência a noção de seqüência27, entendida como o
conjunto de planos que constituem um determinado trecho narrativo, e a de plano, entendida
simplesmente como a porção audiovisual compreendida entre o início e o final de uma
tomada (no material montado, o plano é o trecho de imagem e som compreendido entre um
corte e outro). Num mesmo plano, sempre descrevemos o enquadramento realizado, com uma
24
Um exemplo semelhante à nossa de transcrição pode ser encontrado na descrição e análise de uma
seqüência do filme Rebbeca, de Alfred Hitchcock, presente em VANOYE & GOLIOT-LÉTÉ, 2006, pp. 71-74.
25
“Já assinalamos e outros o disseram antes de nós: descrever um filme, contá-lo, já é interpretá-lo, pois
é, de uma certa maneira, reconstruí-lo (e até desconstruí-lo?)” (VANOYE & GOLIOT-LÉTÉ, 2006, p. 52).
26
As definições dadas aqui são de uso corrente na análise de produções audiovisuais, e podem ser
encontradas em VANOYE & GOLIOT-LÉTÉ, 2006.
27
Como é uma noção narrativa, a delimitação de uma seqüência por parte do analista sempre pode ser
contestada, uma vez que se pode argumentar que uma ou outra unidade narrativa começa ou termina em outro
momento. No entanto, o mais importante é que, em nossa análise, os trechos analisados sejam coerentes com o
material audiovisual.
45
atenção especial para os sujeitos filmados e para a forma em que são apanhados, além de
outros dados relevantes do ambiente ou das relações entre os personagens.
Como a delimitação do quadro sempre organiza os elementos presentes na imagem,
foi necessário identificar, quando de sua necessidade, o ângulo de enquadramento (se se trata
de uma tomada frontal, lateral, de uma plongée ou de uma contra-plongée28), se o
enquadramento é fixo ou em movimento (se a câmera é fixa ou se realiza movimentos, como
travelling e panorâmica29) e a escala de planos, entendida como o lugar da câmera em relação
ao objeto filmado (se se trata de um plano geral (que retrata o ambiente), plano de conjunto
(que inclui vários corpos filmados), plano médio (um personagem em pé), plano americano
(acima do joelho), plano próximo (acima da cintura), primeiríssimo plano (que revela apenas
o rosto) ou plano de detalhe (que é centrado em um pormenor)). Além disso, identificamos a
duração do plano (se mais longo ou se mais curto).
Se falamos de duração, já falamos de montagem. Na descrição e na análise,
enfatizamos de maneira particular a articulação entre os planos e as seqüências, e o modo
como cada um dos vídeos lidou com a organização narrativa das imagens e com a relação
entre imagem e som. A análise da montagem foi uma tarefa fundamental para que
pudéssemos dizer das estratégias de construção dos dois vídeos.
Feita a descrição das seqüências, foi preciso efetuar um terceiro movimento em
relação ao objeto. É importante notar que, dado nosso problema de pesquisa, nossa análise
não poderia se ater a desvendar os procedimentos estéticos mais ou menos explícitos nas duas
produções. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que buscávamos detectar regularidades e
desvendar estratégias de construção dos vídeos, tentávamos identificar os indícios da
construção de demandas por reconhecimento no campo da estima social, tendo como foco o
papel da cultura. Tentamos ver nas imagens e nos sons os traços de demandas por
reconhecimento em torno do funk e do hip hop, e tentamos demonstrar de que forma as duas
produções manifestam a construção dessas demandas.
Nesse sentido, nossa investigação se constitui como algo mais do que uma análise
textual, e busca contribuições na abordagem oferecida pela chamada análise do discurso,
entendida como “a disciplina que estuda a linguagem como atividade ancorada em um
28
Expressão francesa que faz alusão ao “mergulho” do espectador num ângulo dessa natureza. “Fala-se
de enquadramento em plongée, quando o objeto é filmado de cima; em contra-plongée quando ele é filmado de
baixo” (AUMONT & MARIE, 2007, p. 98).
29
O travelling é um movimento básico de translação do eixo da câmera, que pode ser lateral, para a frente
ou para trás; a panorâmica é um movimento de rotação em torno de um eixo (AUMONT & MARIE, 2007, p.
201).
46
contexto e que produz unidades transfrásicas” (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004,
p. 44).
Essa aproximação com a análise do discurso se dá no sentido de estudar o texto em
sua utilização real, no interior de uma prática comunicativa. Nosso recorte empírico são as
produções audiovisuais, mas estas são entendidas enquanto discurso, enquanto produção de
representações que dizem de um contexto, enquanto “traço de um ato de comunicação sócio-
historicamente determinado” (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004, p. 169).
Nossa análise é sócio-histórica na medida em que se interessa em interrogar a
produção audiovisual, considerando que esta “oferece um conjunto de representações que
remetem direta ou indiretamente à sociedade real em que se inscreve” (VANOYE &
GOLIOT-LÉTÉ, 2006, p. 55). Uma obra audiovisual, seja um documentário ou um filme de
ficção científica, sempre diz algo do “aqui e agora de seu contexto de produção” (VANOYE
& GOLIOT-LÉTÉ, 2006, p. 55)30. Dessa forma, investigar as representações produzidas pelos
jovens em parceria com a AIC é buscar, no texto, marcas de seu contexto histórico específico,
e da situação de reconhecimento na qual os sujeitos envolvidos nessas produções estão
inseridos.
Contudo, é importante salientar que, em uma produção audiovisual, “a sociedade
não é propriamente mostrada, mas encenada” (VANOYE & GOLIOT-LÉTÉ, 2006, p. 56)31.
Isso significa dizer que cada produção realiza escolhas estéticas, éticas e políticas, organiza
elementos (imagens e sons) e produz relações complexas com o real. Sujeitos, lugares, ações
e contextos são sempre colocados em cena, são sempre objeto de uma mise-en-scène
particular. A obra constitui sempre “um ponto de vista sobre este ou aquele aspecto do mundo
que lhe é contemporâneo” (VANOYE & GOLIOT-LÉTÉ, 2006, p. 56). E é nesse sentido que
nos dirigimos, em profundidade, aos traços específicos do uso da linguagem audiovisual em
cada uma das produções.
Nossa empreitada analítica busca, por meio da articulação entre análise textual e
análise do discurso, uma compreensão acerca da construção discursiva de demandas por
reconhecimento, com ênfase nas estratégias específicas adotadas por cada um dos vídeos. Na
escrita da análise, buscamos aliar a descrição das seqüências, a análise das regularidades no
uso da linguagem audiovisual e a referência a nosso problema específico de pesquisa.
30
Embora os autores dirijam suas reflexões para a análise do cinema, acreditamos que estas são
perfeitamente adaptáveis ao objeto em questão.
31
Grifos nossos.
47
5. A cultura como recurso na luta por reconhecimento: análise dos vídeos Baile
Funk e Se essa rua fosse minha
Cidinho e Doca
32
Com o tempo, o estilo musical continuará sendo o centro, mas outras linguagens também farão parte
das subculturas – no caso do hip hop, de forma mais ampla, com a incorporação das artes plásticas e da dança à
chamada “cultura hip hop”.
48
tempo (DAYRELL, 2005; HERSCHMANN, 2005). Pioneiros como a banda Earth, Wind &
Fire, no caso do funk, e os DJs Kool-Herc e seu discípulo Grand Master Flash, no que se
refere ao rap, são freqüentemente citados quando se fala das origens dos dois gêneros. Com o
passar dos anos, no entanto, o rap e o funk ultrapassaram as fronteiras, tornaram-se estilos de
sucesso e alcançaram uma penetração global.
No contexto brasileiro, a origem do funk e do hip hop remonta aos anos 70, época
dos “bailes black” – eventos que se proliferaram nas periferias dos grandes centros urbanos e
chegaram a Belo Horizonte no início da década de 80. Como aponta Dayrell (2005), os dois
estilos conviviam nesses bailes, juntamente com outros como o “balanço” e o charm. Foi
nessa época que o break, tipo de dança que depois seria identificado com a cultura hip hop, se
tornou bastante popular. O dado mais interessante dessa história é que os eventos eram
freqüentados por jovens pertencentes à mesma classe social e moradores dos mesmos bairros:
não havia ainda uma diferença entre os estilos, e eles transitavam de um a outro de forma
pacífica e não problematizada.
No início dos anos 90, contudo, ocorreu – de forma progressiva – uma nítida
separação entre o funk e o hip hop no Brasil, e de forma clara também em Belo Horizonte. De
um lado, alguns grupos passaram a se identificar de maneira mais clara com os bailes funk,
onde predominavam os “melôs” (músicas de ritmo dançante, de letras jocosas ou que
abordavam temas românticos). O crescimento e a afirmação do funk carioca nesse período
exercem enorme influência sobre os adeptos do estilo na capital mineira (DAYRELL, 2005),
a partir do sucesso das duplas de funkeiros, como Cidinho e Doca e, posteriormente,
Claudinho e Buchecha.
De outro lado, fortalecia-se o movimento hip hop, com a progressiva politização de
seus adeptos. A partir de uma incorporação de informações que eram difundidas para além
dos guetos nova-iorquinos, passaram a se entender como participantes do mesmo movimento
os adeptos dos chamados “quatro elementos” da cultura hip hop: o break (a dança de rua,
protagonizada pelos b.boys e b.girls); o grafite (linguagem das artes plásticas que surge das
“tags”, nos anos 70, cujo suporte privilegiado são os muros da cidade); os MC's (os “mestres
de cerimônia”, cantores que improvisam com o rap) e os DJs (aqueles que criam e
reproduzem as bases (ou o beat) para a improvisação dos MC's). Essas quatro linguagens se
reúnem no fenômeno das “posses”, agrupamentos típicos do movimento hip hop que se
multiplicaram na capital mineira nesse período (DAYRELL, 2005).
49
Como aponta Herschmann (2005), os estilos passaram a se diferenciar a partir da
radicalização do movimento hip hop. Com o tempo, estabeleceu-se uma clara dicotomia entre
“engajados” e “alienados”: o hip hop com uma postura de denúncia da realidade social, e o
funk identificado unicamente com o prazer e a alegria. A crítica dos adeptos do hip hop era
contundente:
É nesse contexto que funk e hip hop afirmam suas especificidades. De um lado, o
nascente rap paulista inscreve no panorama da canção popular brasileira uma afirmação da
diferença nunca dantes vista. De outro, a cultura funkeira enfatiza o papel ativo dos jovens
50
adeptos “em delimitar seu próprio território, construindo seus próprios meios de prazer,
muitas vezes, contra a natureza da identidade cultural nacional ou regional” (YÚDICE, 2004,
p. 180).
No entanto, embora haja muitas diferenças entre as duas subculturas, e um
movimento de afirmação das especificidades, há um dado essencial que, de uma maneira
assaz perversa, as une: ambas foram – e ainda são, em grande medida – objeto de discursos
estigmatizantes, que circulam amplamente nos media e – como não poderia deixar de ser – na
sociedade. Freqüentemente, o funk e o hip hop são identificados com as narrativas da
violência e da criminalidade nas grandes cidades do país, e os jovens adeptos dos dois estilos
– em sua grande maioria, moradores das periferias brasileiras – são tidos como sujeitos de
delitos. Como aponta Micael Herschmann, “a imagem deles [dos adeptos do funk e do hip
hop] aparece na mídia quase sempre associada às gangues e às organizações criminosas”
(HERSCHMANN, 2005, p. 19).
Mas esse estigma tem uma historicidade própria, que pode ser rastreada. Se
intentamos delimitar a instauração de um processo de estigmatização do funk – e,
indiretamente, do hip hop, como aponta Herschmann (2005, p. 96) – no Brasil, é inevitável
que nos deparemos com um evento crucial: os chamados “arrastões” em praias da Zona Sul
carioca em 18 de outubro de 1992. O acontecimento foi reportado da seguinte maneira pelo
Jornal do Brasil do dia seguinte ao ocorrido:
“Ontem, a Zona Sul do Rio tornou-se um campo de batalha, com arrastões de gangues de
adolescentes das favelas dos subúrbios da Baixada Fluminense, armados com pedaços de
pau. A Polícia Militar, com 110 guardas armados com revólveres, metralhadoras e rifles,
teve dificuldade de combater a violência dos vários grupos envolvidos no ataque. Mesmo
uma força policial paralela, constituída pelos Anjos da Guarda – um grupo voluntário cujo
objetivo é defender a população – entrou na briga” (Jornal do Brasil, apud YÚDICE,
2004, p. 168).
Nos dias que se seguiram, a população enfurecida da Zona Sul clamava pela
presença do exército nas ruas e exigia a pena de morte nos jornais cariocas. Não tardou muito
para que os infratores fossem identificados como sendo os funkeiros, ou “os jovens de favelas
das zonas Norte e Oeste do Rio que, nos fins de semana, freqüentam as danceterias que tocam
música funk” (YÚDICE, 2004, p. 168).
Na esteira desses acontecimentos, o universo do funk carioca alcança uma
visibilidade que nunca havia experimentado. Embora o estudo já clássico de Hermano Vianna
(1988) apontasse que, ainda na virada dos anos oitenta para os noventa, havia um enorme
circuito de bailes funk nas periferias cariocas, que chegavam a reunir cinco mil jovens, os
51
grandes veículos de comunicação pareciam ignorar por completo essa realidade. O estudo de
Micael Herschmann (2005, p. 96) indica a quase inexistência de reportagens sobre funk nos
jornais anteriores a outubro de 1992.
Após os arrastões, o funk foi rapidamente identificado com a violência e o tráfico
de drogas nos morros cariocas. Os bailes eram descritos como antros de confronto violento
entre grupos de jovens, e a pretensa ligação com o crime era enfatizada:
“Como a maioria dos 2 milhões de funkeiros vive em favelas, eles ficam em consonância
com a liderança criminosa. Por influência apenas filosófica, os funkeiros tiram a diferença
na mão na rivalidade entre galeras ligadas ao Comando Vermelho e ao Terceiro
Comando” (Jornal do Brasil de 25 de outubro de 1992, apud HERSCHMANN, 2005, p.
101).
Os títulos das matérias (“Galeras funk criaram pânico nas praias”, “Hordas na
praia”, “Movimento funk leva à desesperança”33) indicavam o clima de “pânico moral”
(FREIRE FILHO & HERSCHMANN, 2003) que se instalou no cenário midiático da época.
Como aponta Yúdice (2004), nem todas as matérias colocaram a culpa nos
funkeiros. Algumas entrevistas com eles e com jovens das favelas da Zona Sul nos dias
seguintes apresentaram um quadro mais ambíguo:
“Sim, as gangues dos clubes funk realmente provocaram a comoção nas praias; sim, os
banhistas realmente ficaram muito amedrontados; sim, alguns jovens roubaram alguns
objetos das esteiras, embora não tenham faturado muito porque nenhum carioca ou turista
em sã consciência iria à praia com objetos de valor. Afinal de contas, o que as câmeras
captaram foram gangues rivais em conflito nas praias e meninos pulando pelas janelas
para dentro dos ônibus superlotados para voltarem aos seus bairros nas periferias da Zona
Norte e da Zona Oeste. Relatórios dos Anjos da Guarda e dos surfistas também sugeriram
que os furtos cometidos foram provavelmente por parte dos favelados da Zona Sul”
(YÚDICE, 2004, p. 170).
33
Todas citadas por HERSCHMANN, 2005.
52
sobretudo no caso do funk. Esses autores apontam um caráter ambíguo da representação do
funk na mídia de massa desde os arrastões: a “demonização” inicial foi seguida, em fins dos
anos noventa e na primeira década do século XXI, de uma “glamourização” nos media
(HERSCHMANN, 2005). O funk, de expressão cultural dos guetos cariocas, passou a ser
cultuado no “asfalto” por uma legião de jovens de classe média e alta, inclusive da própria
Zona Sul. O estilo passou a figurar com freqüência no horário nobre dos canais de televisão e
a preencher os cadernos de cultura dos jornais (HERSCHMANN, 2005), ao invés das páginas
policiais. Além disso, de forma análoga à legitimação do rap dos Racionais MC's e de
Sabotage pela crítica de música brasileira nos últimos anos, o funk brasileiro passou a ser
estimado esteticamente e a ser objeto de reapropriações por grandes expoentes da vanguarda
nacional e internacional da música pop.
Com o hip hop, aconteceu um processo semelhante. A manifestação cultural de
“pobres, pretos e raivosos”, identificada sob o signo da violência (DAYRELL, 2005, p. 66)
alcançou, nos dias atuais, um reconhecimento social bastante significativo. As ações do
movimento hip hop têm sido consideradas em esferas importantes como autênticas ações de
cidadania, e vêm recebendo inclusive financiamento estatal.
A dialética desse estigma – sobretudo no caso do funk – nos diz muito acerca dos
dilemas da visibilidade estabelecida pelos meios de comunicação. Antes dos arrastões de
outubro de 1992, o funk era praticamente invisível no cenário midiático, inclusive naquele
restrito à imprensa carioca. De uma hora para outra, os funkeiros são arremessados no centro
da visibilidade midiática, com conseqüências profundas não apenas para o funk enquanto
estilo, mas para suas próprias vidas individuais, se acreditamos na Teoria do Reconhecimento.
Mas essa intensa visibilidade inesperada adquire um caráter profundamente ambíguo, uma
vez que, ao mesmo tempo em que institui um estigma, estabelece as condições para a
valorização do estilo em espaços importantes.
Um olhar sobre essa situação atual poderia nos fazer crer que essa valorização no
centro dos media de massa significasse a superação do estigma. No entanto, os processos
sociais não seguem tão simplesmente a lógica do “oito ou oitenta”: a valorização e o estigma
convivem. E não há prova maior disso do que a própria existência de uma contestação do
preconceito nos discursos elaborados autonomamente por adeptos de ambas as subculturas,
nos vídeos que nos dispusemos a analisar.
53
Argumentamos que, no programa, é possível identificar a construção de uma
demanda por reconhecimento em torno do funk. A narrativa estabelece uma redefinição do
baile funk como um espaço de manifestação do prazer e da alegria, numa sutil e quase não
tematizada contraposição a visões correntes que o identificam com a violência, atribuindo-lhe
uma imagem profundamente negativa. Nessa construção, as práticas culturais que se
constituem em torno desse universo específico dos jovens de periferia aparecem como um
recurso na luta por estima social.
Eu comecei a vim com catorze anos, eu freqüentei uns dois meses, três, e aí... Assim
que eu fiz quinze anos eu recebi de presente começar a trabalhar no baile. Então,
comecei devagarzinho, e tal, pelas coisas mais básicas, até chegar hoje numa
questão mais de administração, mesmo, presente aqui, realizando os eventos,
participando junto com essa meninada que cês tão vendo lá embaixo aí.
54
Eu já fui exatamente da mesma idade deles, é, vinha pra trabalhar mas, convivendo
com eles da mesma faixa etária. Hoje eu tô um pouquinho acima, mas tamo aí, vamo
continuar muito tempo ainda.
Tipo assim... Foi... Inexplicável, foi... um renascer de novo. Porque até então eu não
vivia. O funk que me deu vida mesmo, que me deu alegria, que me deu tudo pra
mim viver que me... deu sentido na minha vida. Porque até então eu tinha uma
depressão muito profunda. Aí um amigo meu, que me levou lá, pra mim curtir o
baile, pra mim ver, pra mim sair de casa... Aí foi maravilhoso.
Eu sou DJ Lebão, DJ aqui das Quadras do Vilarinho... Tenho, trabalho com funk,
com... todas as vertentes da música, né? Há mais de dezenove anos. E tô aí... na
batalhe, né. Tô aí na luta. Correndo atrás, tá certo, como diz né, na gíria dos
funkeiros, né, correndo atrás. Buscando nossos objetivos, né? E é com funk, é com a
música, é com o som que eu sustento a minha família, né, sou casado...
55
O entrevistado é apanhado em primeiríssimo plano: trata-se de um homem negro, de
cerca de quarenta anos, muito bem vestido, com o cabelo estilizado e brincos na orelha.
Durante todo o relato do DJ Lebão – que continuará por alguns minutos – os planos
novamente se alternam entre a entrevista e as imagens de um baile da Vilarinho. Enquanto
ouvimos sua voz, um plano geral revela o palco e parte da platéia. No centro do palco, está o
próprio DJ Lebão, com outras roupas (calça preta, blusa branca, boné branco). Atrás dele, no
fundo do palco, há dois grafiteiros que compõem uma série de imagens com a inscrição
“Vilarinho”, bem grande e colorida.
Em todas as entrevistas, a tendência é que o plano dure e permita aos personagens
divagações amplas, relatos entremeados por informações bastante pessoais, além de algum
espaço para hesitações e derivas. Embora em alguns momentos haja o uso do jump cut34 –
estilo de edição de entrevistas marcado por cortes sucessivos, em que a performance do
personagem é montada de maneira bastante arbitrária –, os tempos desses testemunhos são
bastante dilatados, se tomamos como base de comparação as práticas correntes do jornalismo
televisivo35.
Esse estilo de montagem das entrevistas permite que os relatos ocupem um papel
significativo na narrativa, e que as histórias de vida desses sujeitos ligados ao funk
configurem uma estratégia importante na construção de uma demanda por reconhecimento.
Os relatos trazem a dimensão mais individual da luta. Por meio deles, percebemos que o funk
ocupa um lugar fundamental na vida de cada um desses sujeitos. As práticas culturais ligadas
ao estilo – a dança, a música, o espaço do baile, os modos de se vestir, as gírias dos funkeiros
– são mobilizadas com freqüência, em vários dos testemunhos.
A montagem das entrevistas permite que esses sujeitos apareçam em suas
especificidades individuais, enquanto sujeitos biograficamente definidos. Enquanto no
telejornal é comum que os sujeitos filmados correspondam a tipos sociais bem demarcados,
aqui há um espaço muito maior para que as diferenças apareçam – no conteúdo das histórias
que cada um conta, mas também nas modulações específicas de cada voz ou nos afetos de
cada rosto representado na imagem. Do ponto de vista do reconhecimento, esse dado é
decisivo, uma vez que, mesmo que se trate de uma luta coletiva em torno do funk, as
demandas por estima social têm sempre como referência o indivíduo, com suas características
peculiares e intransferíveis.
34
Para uma crítica do uso do jump cut, ver COMOLLI, 2006.
35
Para uma análise dos estilos de edição no Jornal Nacional, por exemplo, ver MANNA, 2009.
56
Nos relatos daqueles que têm o funk como profissão – caso de Bocão, Rafael e
Lebão –, as práticas culturais ligadas ao estilo adquirem um valor pragmático, além de
afetivo: o DJ Lebão diz que é com o funk que ele sustenta sua família. Em contrapartida, no
caso daqueles que poderiam ser definidos como amadores, no sentido mais literal do termo, as
práticas culturais ligadas ao funk adquirem um valor ligado ao afeto. Ice Girl atribui ao estilo
a possibilidade de atribuir sentido a sua própria vida.
Ao dizerem da importância do estilo em suas vidas – seja do ponto de vista
pragmático, seja na dimensão afetiva –, os testemunhos manifestam a tentativa de atribuir ao
funk um valor positivo, buscando influenciar, assim, a distribuição de estima na sociedade. Se
tomamos por base a imagem que circula socialmente sobre o funk e os bailes – que é
tematizada no próprio vídeo, como veremos adiante –, é possível apontar que os depoimentos
dos adeptos do funk, destacando o papel importante do estilo em suas vidas particulares,
atestam que essa subcultura é mobilizada, enquanto recurso, na luta por estima social.
57
estroboscópica, que vai ganhando foco enquanto as primeiras batidas do funk começam a se
delinear. Segue-se um plano geral de uma fila de jovens: mais tarde, saberemos que eles são
os freqüentadores do baile do Vilarinho. A sequência continua com uma série de planos
curtos que retratam grupos de jovens dançando funk, sempre em sincronia e com roupas
características. A montagem do fragmento remete à linguagem do videoclipe, com planos
curtos e ritmo acelerado. O movimento dos corpos, associado às variações da música, produz
um tom de alegria que perpassa todo o fragmento – o que só é confirmado por dois pequenos
planos de conjuntos de jovens que se abraçam e sorriem em direção à câmera (e ao
espectador).
Durante o trecho, a música que vem se associar às imagens é o “Rap da Felicidade”,
de Cidinho e Doca. Apesar do título da canção fazer referência ao outro estilo – rap –, esta é
considerada um clássico do funk nacional36. O fragmento da letra que é utilizado na sequência
diz:
36
O CD “Tributo ao Funk”, lançado pela Som Livre em parceria com o DJ Marlboro e com o programa
de televisão Caldeirão do Huck, traz o “Rap da Felicidade” como a principal canção do disco. A descrição do
CD, com um depoimento de Hermano Vianna sobre os funkeiros Cidinho e Doca, está disponível em:
http://www.submarino.com.br/produto/2/21784357/cd+caldeirao+do+huck:+tributo+ao+funk. Acessado em 31
de maio de 2010.
58
Em outro fragmento, a música que é associada às imagens é “Falam que é nóis”, do
MC Dodô, cuja letra diz:
59
um grupo de meninos que também dança. As meninas estão vestidas com uma saia curta e um
top; os meninos, com uma calça e uma camiseta brancas. No meio dessas imagens, vemos um
plano curtíssimo de uma placa verde que diz: “Aperte e Empurre”. A seqüência, marcada pelo
tom de descontração já característico, termina com a imagem em plongée de uma jovem na
platéia, que olha para a câmera, muito alegre, e faz um coração com as mãos. No mesmo
plano, a câmera apanha a tentativa de subir no palco de outra jovem, vestida de amarelo.
Nesses fragmentos, a associação entre som e imagem produz uma dupla exibição das
características do funk. Enquanto a trilha sonora traz vários exemplos de canções, com traços
estéticos que demonstram a diversidade do estilo, as imagens mostram os outros elementos da
subcultura: as danças próprias, com seus “passinhos” e sua sincronia, as roupas e o visual
característico dos funkeiros. Além disso, ao exibirem os corpos e rostos desses sujeitos, numa
abordagem marcada pela alegria, essas imagens constroem um lugar distinto para os adeptos
do funk.
A mobilização da cultura ganha aqui novos traços: os elementos da subcultura não
aparecem no discurso dos adeptos, mas como um recurso inscrito no próprio material
expressivo do vídeo. Dar a ver essas características específicas significa chamar a atenção
para as contribuições particulares que essas práticas culturais e esses sujeitos têm a oferecer.
Redefinições do funk
60
corpo dos jovens da equipe de filmagem: uma jovem segura o microfone, outro tem em suas
mãos uma segunda câmera37. A fala de Rafael no fragmento é significativa:
Quem vem prum baile funk, apesar de algumas pessoas dizerem o contrário... cem
por cento das pessoas que vêm pro baile funk, elas vêm procurando alegria, e paz.
Ninguém... Existem os problemas relacionados à aglomeração de pessoas, pode
existir uma coisa aqui outra coisa ali, mas noventa... noventa e nove não... cem por
cento das pessoas, elas vêm pro baile funk procurando alegria e paz. É uma diversão
e uma questão de socialização do pessoal, do jovem, principalmente esse jovem da
periferia. Então eu definiria baile funk como alegria e paz.
Em sua definição do baile funk e das intenções dos adeptos do estilo, Rafael
tematiza, de forma ao mesmo tempo sutil e bastante clara, o estigma que acomete os
funkeiros: a noção corrente de que o baile funk seria um espaço de hostilidade e violência,
freqüentado por sujeitos também identificados com a criminalidade. Embora não atribua esse
discurso a nenhum sujeito ou grupo específico – afinal de contas, essa é uma representação
que circula amplamente na sociedade –, Rafael busca estabelecer uma oposição àqueles que
“dizem o contrário”. Em sua fala, ele define o espaço do baile numa chave positiva, como um
lugar de alegria, de paz, de criação de possibilidades de socialização para os jovens de
periferia.
No trecho seguinte, um primeiríssimo plano revela o rosto de Priscila: brincos,
maquiagem, o cabelo produzido. Sua fala é atropelada, cheia de hesitações e lacunas, mas a
duração do plano preserva algo de uma auto mise-en-scène, particular e intransferível. A
funkeira diz:
Eu falo com a minha mãe que... faz parte de mim, num tem como não. Que eu tô
assim ‘não, vô no baile’. E ela: ‘de novo?’. Porque eu fui segunda feira, e eu: ‘faz
parte, minha segunda casa’. Num tem como largar e eu acho que... o... é bom. A
pessoa critica, mas quando ela vem, ela não consegue parar também não. É viciante.
Num sei. É, eu num sei se é as pessoas, porque cê chega... Todo mundo chega aqui
com o pensamento de que todo mundo vai te xingar, vai te maltratar, vai fazer e
acontecer. E chega, todo mundo te acolhe? Aí cê acaba voltando, né? Eu já cheguei
sem esse pensamento, porque eu já conhecia todo mundo antes de começar a
freqüentar. Mas eu, nó, não consigo parar. Eu posso curtir tudo, pode acontecer
tudo, mas não paro.
- Êxtase. Puro êxtase. Ah... Porque o... é muito prazer, é muito inigualável, num tem
nada... que se compara a isso. É... aquela emoção, de ver o pessoal dançando, de
sentir aquela sensação, a música parece que ela toca, mas toca dentro. Dentro do
corpo inteiro, num é só no ouvido, num é só...... simplesmente cê curtir uma música.
Ela toca ni mim de uma forma que... mexe comigo até na veia. Tipo, rola o funk na
veia, assim, mesmo. É impressionante. É uma coisa... totalmente... absurda de se
dizer. Mas... é como se fosse no sangue mesmo, tivesse no sangue, ali.
A fala da MC enfatiza o prazer que se sente quando se vai a um baile funk. Aquele
espaço é definido como um lugar que abriga uma experiência singular, que afeta
profundamente os sujeitos. As imagens que se justapõem a seu depoimento exaltado acabam
por figurar as sensações que Ice Girl descreve: a emoção de sentir a música, os corpos que se
movem e se alegram com a dança. Os vários acenos para a câmera são um indício forte da
alegria vivenciada pelos freqüentadores do baile, e encontram uma confirmação na fala da
MC.
Dimensões como o prazer e a diversão são enfatizadas em todas as falas dos adeptos
do funk. O baile é definido como um lugar de alegria, de exercício da liberdade, de tessitura
de laços sociais. Em dois planos da entrevista com o DJ Lebão, o discurso caminha nessa
direção:
Aqui eu fico à vontade, aqui é um lugar que eu chego ali, se o cara... toma o
refrigerante dele, conversa com os amigos dele, ali ele num tem aquela pressão, o
cara vem aqui pra se soltar. É um momento de lazer na vida dele, com certeza.
(...)
Então, aqui é todo tipo de pessoas. E com certeza, todas as classes se misturam, se
encontram aqui e ali num tem A nem B, ali é todo mundo igual, todo mundo tá
curtindo, todo mundo tá ali buscando dançar, se divertir, eu acho que o mais legal é
isso aí.
Pra mim hoje: o baile funk... o baile funk muitas pessoas acha, é, que o baile funk é,
é briga, o baile funk é desavença, não... o baile funk hoje, graças a deus, né, eu falo
hoje, que o baile funk é o quê, o baile funk é cultura, é o lugar que as pessoas
diverte, é o lugar que as pessoas mostra seu estilo de vida, é um lugar que o pessoal
se veste, né, as meninas já sai com a cultura de casa de quê, hoje eu vou pro baile
funk pra curtir, pra mostrar a minha... o que eu sou. É um lugar desejado, porque eu
acho assim: o pessoal fica de segunda a sexta, de segunda a sexta, esperando o
sábado e domingo pra quê? Ô, eu vou no baile funk pra divertir, eu vou pro baile
funk pra curtir, eu vou pro baile funk pra encontrar meus... meus amigos. Porque o
baile funk hoje pra mim é o quê? É um lugar que a gente se encontra. É um lugar de
união, é um lugar que a gente revê os amigos. É um lugar que a gente s... pô... pô,
namorar. É um lugar que a gente encontra a pessoa que a gente gosta, e uma coisa
bonita.
Oi?
Ou, eu tô enrolado no escritório aqui, quanto tempo?
Quê que foi?
Quê que tem?
Ah, tá me chamando aí?
Quê que é? Os cara da moto?
Não, vê o quê que é e me dá um toque aqui, dois minutos, cinco... cinco minutos eu
desço.
Não, é que eu achei que cês iam entrar em alguma coisa... de questão mesmo, sobre
violência no baile, e tal, mas num... não! Até mesmo pra dismistificar... Cê tá
gravando, né? Até pra dismistificar... a questão que todo mundo pensa, pô, baile
funk é pancadaria, é só vândalo... e mostrar que não é isso que condiz com o que as
pessoas falam. Eu falo muito que... pra você criticar, pra você falar de um baile
funk, vem aqui. Vem conhecer a realidade do pessoal, conhece o dia-dia dessa
meninada, igual nós temos um projeto onde nós vamos na comunidade onde que o
cara mora, vamo lá, segunda, terça, quarta, o dia que der, trocamos uma idéia com
ele, vimos ele lá, como diz o outro, na quebrada dele como ele fala, e vimos ele aqui,
todo produzido, todo alegre, entendeu? Então eu acho que as pessoas antes de falar
alguma coisa negativa sobre baile funk, fica um convite aqui...
64
Nesse momento, vemos dois planos que enquadram o rosto de Rafael: inicialmente
uma tomada lateral, e depois uma contra-plongée. Em alguns momentos, o administrador do
baile se dirige frontalmente à câmera. Ele continua o convite:
Qualquer pessoa, e aí vale não é só pra Vilarinho não, que tiver uma má impressão
do baile funk vá a ele, freqüente e veja, o que você ver você tira suas conclusões,
num vai pela informação de terceiros não porque a informação às vezes ela chega...
um pouco deturpada, infelizmente as pessoas não conhecem a realidade.
O discurso de Rafael opõe as imagens negativas que circulam sobre o baile funk e a
realidade, que, segundo ele, é desconhecida pelas pessoas. O convite para freqüentar o baile é
um convite à reflexão do espectador e um incentivo à formação de novas imagens. O
discurso se dirige claramente a um outro generalizado (MEAD, 1934), e se configura como
uma tentativa de influenciar as interpretações sobre o funk que circulam socialmente.
Se é possível diferenciar duas tendências nas definições do funk – uma mais coletiva,
na voz daqueles que têm o estilo vinculado à profissão, outra mais ligada à dimensão
individual, na voz dos funkeiros –, não se pode dizer que essas falas, potencializadas pela
vinculação ao corpo, à voz e aos afetos do sujeito filmado, sejam mais ou menos potentes.
Construir novas imagens do funk é construir novos lugares para seus adeptos. Do
ponto de vista do reconhecimento, isso é decisivo. Destacar as contribuições particulares de
um grupo de indivíduos, por meio da exibição e valorização de suas práticas culturais, em
oposição ao preconceito dominante, é dar um passo importante na construção da estima
social.
65
A construção coletiva da história
Então eu falei, caralho,a gente quer, a gente precisa de um ponto onde o movimento
hip hop, a cultura urbana se encontre. Tenha... todo mundo tenha um acesso. Vamo
utilizar uma batalha de rima, que é uma coisa que tá em alta, que tem gente pra
fazer, e que os amigos fazem e que a gente faz, vamo utilizar isso pra gente criar
esse ponto de encontro. E foi tiro e queda.
Então assim... É... Foi, foi mesmo essa questão de acabar fortalecendo mais ainda
uma qualidade que já existe aqui, através de uma coisa que tava faltando. Os MC's
fazem free style, mas não tava tendo batalha. Então potencializou essa parada dos
MCs, e antes da gente ver já tinha dado resultado porque o Simpson foi campeão da
Liga Nacional...
67
Outra dimensão importante dessas falas é a descrição do funcionamento do Duelo de
MC's, que também ajuda a construir sua história, uma vez que o evento mantém uma mesma
estrutura básica desde seu início. É na fala de Monge que ouviremos uma descrição bastante
rica do que acontece todas as sextas-feiras debaixo do viaduto:
Além da coisa da... das batalhas assim que tem essa organização, desse momento de
inscrição, desse momento da primeira fase, depois semifinal e final, tem esses outros
momentos, assim. Enquanto tá tudo acontecendo, tá o grafiteiro ou a grafiteira no
canto pintando a sua tela; acabou a primeira fase das batalhas, que são quatro
batalhas, independente de oito ou dezesseis MC's, rola um pocket show – a pessoa se
inscreveu anteriormente, a gente faz uma divulgação de quem vai ser, então rola o
pocket show; acabou o pocket show, rola uma roda de b.boys e b.girls, e aí eles
mesmos se organizam, abrem a roda aqui no chão, e fazem a coisa acontecer... Então
assim, é um processo, que dura aí, o quê? Três horas, quatro horas? Três horas,
quatro horas, que é tipo, é intenso pra caramba assim...
Aí, dá uma idéia pr’ocês, ó. A primeira coisa... que o evento é de rua, né mano?
Num tem ajuda de custo, num tem grana, num tem governo, num tem nada. Tem a
força de vontade de cada um que ta aqui presente aqui, hein? Então ó: salva de
palmas pra todo mundo que ta aqui, mano. Tá bom?
Se a música em Baile Funk tinha um papel marcante enquanto trilha sonora, aqui ela
aparecerá, de forma decisiva, nos registros dos duelos. A performance dos DJs e MC's e sua
interação com o público serão os elementos mais importantes na utilização da música.
Essa escolha estética se mostra fundamental, uma vez que a exibição de batalhas
inteiras, em planos longos, permite a inscrição de uma prática cultural complexa, em
movimento, e na qual vários elementos da cultura hip hop dialogam, no mesmo espaço-
tempo. Dar a ver os duelos, registrados em seu momento mesmo de realização, é inscrever
materialmente as características específicas do estilo, e destacar suas contribuições peculiares.
69
Num desses registros, logo após a primeira fala de Monge supracitada, vemos o
trecho final da batalha que encerrou a Liga Nacional dos MC's de 2007, na casa noturna Circo
Voador, no Rio de Janeiro. Numa tela dividida em dois quadros, vemos a partir de dois
ângulos distintos – um plano mais fechado nos dois MC's que batalham, outro mais
distanciado, que apanha parte do público – o duelo entre Maomé (RJ) e Simpson (MG),
vencido pelo último. O fragmento final da improvisação de Simpson é o seguinte:
Logo após o término da rima, Simpson se dirige ao oponente e aperta sua mão.
Ouvimos o som do público que vibra e grita o nome do MC de Belo Horizonte. No plano
seguinte, vemos um plano geral do palco, e o apresentador da batalha declara Simpson como
o vencedor, para a alegria do público presente no evento.
Num outro momento do vídeo, vemos um trecho de uma batalha já no espaço
debaixo do viaduto, em Belo Horizonte. O MC Vinição tem em suas mãos o microfone e,
após um instante de espera pelo beat tocado pelo DJ, começa o ataque a seu oponente:
Aí, irmão
Sua rima é uma baba e não dá pra agüentar
Nem com onda de Catuaba e nem com Guaraciaba
(...)38
Por isso você pega no mic eu sempre me estresso
Por que é que saiu feliz?
Eu vou provar de novo e corto o mal pela raiz
Corto o mal pela raiz porque cê é bundão
Nunca teve o dom verdadeiro da improvisação
Porque cê não faz eu falo agora
O que cê faz não é rima, é poluição sonora
38
Trecho incompreensível.
70
podemos ver uma parte significativa da platéia. À medida que a rima vai evoluindo, e os
primeiros gritos de aprovação vão surgindo entre os adeptos da batalha, o enquadramento se
move para apanhar a reação do público. Em um momento do plano, vemos apenas os corpos
dos dois MC's: seus rostos sofreram um desenquadramento, e agora vemos com nitidez alguns
rostos dos freqüentadores do Duelo, que se pronunciam entre os dois corpos posicionados nas
bordas do quadro. Quando o trecho de improvisação supracitado termina, a reação é imediata:
várias pessoas levantam as mãos e gritam, em aprovação ao desempenho de Vinição.
Num pequeno trecho do registro de uma batalha, é possível identificar a presença de
vários traços da cultura hip hop: o visual característico dos adeptos, a base tocada pelo DJ, o
grafite que se anuncia nas paredes, a vinculação com o espaço da cidade e, claro, a
performance dos MC's. No entanto, mais que percebermos esses elementos separadamente, o
que o plano revela é a intensidade de uma prática cultural em constante movimento, apanhada
no tempo da improvisação e da reação do público.
O regime de montagem que comanda a exibição dessas práticas é o da inscrição
verdadeira, para usarmos a expressão de Jean-Louis Comolli (2008). Nesse fragmento de
produção audiovisual, está dada a relação real entre o tempo do registro, o espaço da cena, os
corpos dos sujeitos filmados e a máquina que assegura o registro – no caso, a câmera de
vídeo. A relação entre tempo, espaço, corpo e máquina assegura o registro de um encontro,
que, em nosso caso, inscreve concretamente as características singulares daquele um minuto e
quatro segundos da performance de um MC, e de suas relações com seu oponente e com o
público que o assiste.
A exibição das batalhas dá a ver uma prática bastante peculiar – a batalha de rima –,
mas que reúne os principais elementos de uma cultura. Acreditamos que é possível perceber,
nesses fragmentos, um movimento de mostração das propriedades concretas dessa subcultura
juvenil específica. Nesse caso, não sob a forma de um discurso que destaca suas
contribuições, mas na inscrição mesma dessas práticas na linguagem audiovisual. A
montagem assegura a intensidade do registro e dá a ver, de forma condensada, as
características peculiares de uma prática cultural e do grupo social que a esta se vincula. Do
ponto de vista do reconhecimento, essa maneira de destacar as características específicas do
grupo – utilizando-se da cultura como recurso – é fundamental na constituição de uma
demanda por estima social.
71
A terceira estratégia que nos dispomos a analisar é a tematização, nas falas dos
participantes do grupo cultural Família de Rua, de questões mais amplas sobre o hip hop e sua
vinculação com o espaço urbano. Nessas reflexões de caráter mais propriamente político, que
vão além da construção de uma história do Duelo de MC's, é possível perceber novos indícios
de uma demanda por reconhecimento em torno do estilo e de seus adeptos. Aqui, o Duelo de
MC's continua como a principal referência, mas as falas passam a se referir com mais ênfase
ao movimento hip hop como um todo, e a sua inserção no espaço da cidade.
Os sujeitos tecem reflexões importantes sobre o hip hop e suas contribuições
específicas: as falas buscam destacar um uso legítimo do espaço público, e destacam o papel
do movimento hip hop na construção de uma iniciativa de cidadania. O movimento e seus
adeptos são associados a valores positivos, como o exercício de direitos e a ação coletiva
concreta. Do ponto de vista do reconhecimento, esse é um passo decisivo na tentativa de dizer
por que esse grupo específico deve ser estimado.
Ainda nos segundos finais do plano da batalha de Vinição, supracitado, ouvimos a
voz de Monge, que conta uma anedota ocorrida em um dia de duelo. A fala se inicia ainda no
fim do plano anterior, mas logo em seguida vemos o personagem em meio aos outros
integrantes da Família de Rua, num plano de conjunto. Ele diz:
Eu não lembro quem comentou assim, que a pessoa chegou, veio aqui, e aí no meio
da batalha a pessoa chegou no meu ouvido e falou ‘aqui, os cara num vão brigar aí
não, véi? Olha o quê que ele acabou de falar, véi. Se fosse eu dava na cara dele, fi’.
Falou desse jeito. Eu falei: a parada aqui é outra.
Nesse momento, vemos um novo plano do palco do duelo. Ao que tudo indica, o
plano retrata o julgamento, pelo público, do resultado do duelo entre Vinição e Kaso, cujo
último lance havíamos visto na seqüência anterior. O apresentador pede aplausos para o
primeiro e para o segundo, e logo em seguida declara Vinição como vencedor da batalha.
Após declarado o resultado, o enquadramento apanha a saída dos MC's, abraçados, depois de
haverem trocado ataques verbais durante a batalha. Ouvimos a voz de Monge, e logo em
seguida vemos seu rosto, em conjunto com os outros protagonistas do vídeo. O integrante da
Família de Rua diz:
Aí, na hora que terminou, passaram os MC's um zoando o outro, a pessoa olhou pra
mim e falou: ‘quê que ta acontecendo aqui, véi?’ Eu falei: hip hop”.
72
A anedota contada por Monge, em articulação com as imagens que confirmam a
descrição do comportamento dos MC's após a batalha, busca avançar uma imagem do hip hop
como o lugar do respeito, da convivência pacífica, em oposição a possíveis reações de
hostilidade e violência provocadas pela intensidade das batalhas. Na história relatada, Monge
atua no sentido de esclarecer, para o personagem que questiona, qual seria a essência do hip
hop. Ao definir o estilo, essa fala acaba por construir um lugar para seus adeptos, que são
identificados com os mesmos valores.
Em outro momento, temos uma panorâmica, à noite, do espaço debaixo do Viaduto
de Santa Tereza, onde são realizados os duelos. Começamos a ouvir a voz de OZLeo:
39
Nesse momento da fala de OZLeo, ouvimos uma voz no fora-de-campo, que lhe sugere a palavra
“pretensioso”. Mais um exemplo das interrupções e complementações efetuadas pelos personagens nas falas de
um e de outro.
73
2004)40. No discurso de OZLeo, essa imagem negativa é contestada, e um novo lugar é
construído para o espaço, que é considerado como pleno de possibilidades. A vinculação
desse discurso à figura de um sujeito ligado ao movimento hip hop é fundamental: é de seu
lugar específico que essa fala surge, e dificilmente ela poderia ser formulada de tal maneira
por outro ator na sociedade.
Em segundo lugar, a fala de OZLeo busca legitimar o uso daquele espaço pelo
movimento hip hop. Como já aconteceu em outras partes do Brasil41, o movimento em Belo
Horizonte se apropriou de uma fração do espaço urbano que perdeu a vitalidade para propor
novos usos e “trazer vida” para aquele lugar. A fala busca legitimar essa apropriação,
considerando-a perfeitamente válida, uma vez que aquele é um espaço que “ninguém quer”.
Em outro momento do vídeo, OZLeo se refere novamente à relação com o espaço
da cidade. Numa seqüência que articula primeiríssimos planos, que revelam seu rosto em
contra-plongée, e um plano de conjunto que o apanha em meio aos outros personagens, ele
diz:
Nós, enquanto cidadã... cidadãos, a gente tem o direito de ocupar o espaço público.
Então, a gente tem que fazer valer esse direito. Além de todos os outros direitos que
a gente tem e que a gente não faz valer. Porque a gente vive conivente com o que
eles impõem pra gente.
Novamente, sua fala busca legitimar a ocupação daquela fração do espaço urbano.
Agora, no entanto, seu discurso mobiliza a idéia de um direito de apropriação do espaço que
seria de todos os cidadãos, apesar de poucos lançarem mão deste. Sua fala avança a idéia de
que todos deveriam “fazer valer” esse direito, colocá-lo efetivamente em prática. Percebemos,
aqui, a tentativa de construção de uma cidadania que não diz respeito apenas ao grupo
envolvido e tematizado nas produções. Como já foi apontado na análise de outras lutas
(MENDONÇA, 2009), é possível perceber a busca por construir gramáticas morais válidas
para a sociedade como um todo, e não apenas para o grupo específico.
Na análise desse fragmento, é possível perceber também a imbricação entre as
categorias do reconhecimento: nem sempre se pode separar com clareza a luta por direitos, ou
por sua efetivação, da luta por estima social. Essa é uma constatação também presente na
40
Os autores analisam uma série de representações sociais que identificam essas pessoas, como a imagem
do “louco”, do “vagabundo”, entre outras.
41
As arquitetas Emika Takaki e Glauci Coelho analisaram a experiência de ocupação do espaço sob o
Viaduto de Madureira, no Rio de Janeiro, por parte do movimento hip hop. A ação cultural, para os autores, é
responsável pela “revitalização de espaços públicos residuais nas cidades contemporâneas” (TAKAKI &
COELHO, 2008, p. 126).
74
análise de Ricardo Mendonça (2009). No entanto, consideramos plausível seguir
argumentando que os indícios mais fortes são de uma luta por estima social, uma vez que
OZLeo se baseia nas contribuições da apropriação particular efetuada pelo movimento hip
hop para chamar a atenção para o direito de ocupar o espaço da cidade.
Numa seqüência semelhante, que articula planos de conjunto com planos um pouco
mais fechados na figura daquele que fala, vemos uma interessante reflexão trazida à tona por
Monge:
***
75
hop – que têm uma importância significativa para muitos jovens das periferias de Belo
Horizonte42. Acreditamos ter sido possível identificar, nessa valorização, vestígios da
construção de demandas por estima social dirigidas, respectivamente, ao funk e aos funkeiros,
e ao hip hop e a seus adeptos.
Em Baile Funk, percebemos inicialmente a construção de um lugar privilegiado para
o funk nos depoimentos de pessoas ligadas ao movimento funk e de freqüentadores do baile.
O estilo tem uma importância central na vida dessas pessoas. No caso de Se essa rua fosse
minha, a importância da iniciativa específica do Duelo de MC's é ressaltada por meio da
construção coletiva, nos depoimentos complementares dos integrantes do grupo cultural
Família de Rua, de uma história do evento. Em ambos os programas, é possível identificar,
nos depoimentos de sujeitos ligados ao funk e ao hip hop, a tematização das contribuições
específicas dessas práticas culturais.
Em segundo lugar, pudemos identificar a exibição das características específicas das
práticas culturais no próprio material expressivo dos vídeos. No caso de Baile Funk, por meio
da articulação entre a música característica do estilo e as imagens do baile do Vilarinho; em
Se essa rua fosse minha, através da exibição das próprias batalhas de MC's, que revelam uma
prática cultural em constante movimento.
Finalmente, acreditamos ter sido possível perceber, na definição do baile funk como
lugar de prazer e alegria e na atribuição de valores positivos à cultura hip hop, fortes indícios
de uma demanda por estima social com base nas práticas culturais específicas desses grupos
sociais.
Ao darem visibilidade às características peculiares dessas duas subculturas,
atribuindo-lhes uma importância singular nas vidas de seus adeptos, os programas acabam por
construir um lugar positivo para esses sujeitos, em contraposição ao estigma que acomete
essas práticas culturais e os indivíduos a elas vinculados. Ao destacar as contribuições dessas
práticas e desses sujeitos, os vídeos dão a ver uma demanda por reconhecimento no campo da
estima social, em cujo cerne está a cultura.
Estamos cientes de que essa elaboração de demandas por meio da linguagem
audiovisual não traz nenhuma espécie de garantia em relação às lutas travadas cotidianamente
por esses sujeitos. Afinal de contas, é necessário reconhecer que “a definição dos problemas e
as reivindicações elaboradas por um dado ator coletivo precisam ser reconhecidas pelo
restante da sociedade, o que pode implicar em assentimentos, negação ou oposição” (MAIA,
42
O estudo de Dayrell (2005) analisa justamente a dimensão de socialização presente nas relações dos
jovens com os estilos rap e funk.
76
2008a, p. 188). No entanto, acreditamos ter sido possível, por meio da análise, dar um
pequeno passo em direção à compreensão de como as lutas por reconhecimento ocorrem
efetivamente. Nesse caso, de como é possível perceber os indícios de uma luta em produções
audiovisuais que buscam dar visibilidade a práticas e grupos que sofrem de invisibilidade e
estigmatização.
77
6. Considerações Finais
Acredito não apenas que não existe sociedade sem espetáculo ,mas também
que não existe espetáculo sem sociedade, isto é,sem política, sem luta,
sem significação.
Jean-Louis Comolli
Talvez o grande desafio desta pesquisa tenha sido o de tentar compreender, de forma
próxima e com a devida atenção, o que está em jogo na construção das representações que nos
dispusemos a analisar. Nesse percurso, tivemos como aliada a Teoria do Reconhecimento, da
qual tomamos emprestados os conceitos-chave para nossa empreitada analítica. No entanto,
nessa lida diária com as produções audiovisuais, uma questão era recorrente: não estaríamos
dobrando nosso objeto empírico à força de nossas categorias? Afinal de contas, os sujeitos
que realizaram essas produções não tinham necessariamente em mente a fabricação de
demandas por estima social. Enxergar um determinado processo social como uma luta por
reconhecimento é sempre um esforço de interpretação, que contém riscos.
Como nos lembra um importante sociólogo contemporâneo:
“as teorias tendem a ser recipientes claros e bem talhados feitos para receber os
conteúdos limosos e lamacentos da experiência. Mas, para conservá-los aí, suas
paredes precisam ser duras; tendem também a ser opacas” (BAUMAN, 1998,
p.106).
78
de um “recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído”
(RANCIÈRE, 2005: p. 17).
Na Grécia antiga, nos lembra o autor, a democracia, assim como o teatro, reservava
lugares e tempos determinados para diferentes sujeitos ou classes. Em nosso caso, alguns
processos aproximam a luta por reconhecimento que acontece socialmente e as imagens
produzidas em meio a esse contexto: nos dois domínios, há sempre espaços e tempos de fala
para sujeitos específicos; coisas que se tornam visíveis ou que permanecem na sombra; coisas
que se pode dizer e coisas às quais se deve reservar o silêncio. O que está em jogo, nas
imagens ou na política, são formas distintas de partilhar o sensível na comunidade, diferentes
maneiras de produzir “rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que
se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer” (RANCIÈRE, 2005, p. 59).
Uma produção audiovisual produz um arranjo determinado de imagens e sons. Uma
luta por reconhecimento, entendida como processo de devir, é capaz de produzir também
novas partilhas do sensível: aqueles que não diziam de si vislumbram a possibilidade da
palavra; aquilo que permanecia na sombra alcança, por meio de discursos autônomos, a
superfície do visível publicamente; aquilo que se dizia de uma forma, passa a ser formulado
de outra. Nas duas produções, os adeptos do funk e do hip hop, muitas vezes relegados ao
silêncio no discurso hegemônico, alcançam a possibilidade de dizer de si; as características
positivas e as contribuições específicas das duas subculturas, muitas vezes invisíveis
socialmente, aparecem como recurso (YÚDICE, 2004) na luta por reconhecimento, inscritas
de diversas formas no material expressivo dos vídeos; dois estilos frequentemente associados
à violência e à criminalidade ganham novas definições, que os identificam com valores
positivos como a alegria, a igualdade e o exercício da cidadania. Desse modo, acreditamos
que os conceitos oferecidos pela Teoria do Reconhecimento, em sua formulação por Axel
Honneth (2003a), nos ajudaram a perceber os traços de uma luta que acontece socialmente,
mas que também é interna às próprias imagens.
As produções audiovisuais, no contexto da luta por visibilidade – inseparável da luta
por reconhecimento – engendrada por esses sujeitos, constroem também visibilidades (e
invisibilidades) em seu material expressivo, como não poderia deixar de ser. Mas muito do
que se torna visível nas imagens remete àquilo que, na sociedade, permanece na sombra.
“Pois as lutas se tornam sensíveis ou visíveis, rearticulam o visível e o invisível, se figuram,
passam pela figuração, pela encarnação, pela delegação, pela representação e pela mise-en-
scène, em suma” (COMOLLI, 2008, p. 101). Baile Funk e Se essa rua fosse minha buscam,
79
de maneiras singulares, contestar clichês que circulam socialmente. No interior de uma
representação, contesta-se as outras representações que estão presentes fora dela. As
visibilidades fabricadas pela imagem analisam, confirmam, rejeitam e tentam reconfigurar o
visível social.
Mas representar – sobretudo por meio do audiovisual – é também colocar sujeitos
em relação. Como nos diz Comolli, “é precisamente pelas representações que as sociedades se
certificam de suas relações com seus sujeitos. Como é por elas que os sujeitos têm uma visada
crítica sobre seu assujeitamento nas sociedades” (COMOLLI, 2008, p. 99). Afinal de contas,
“é pelo fato e que as sociedades articulam sujeitos que os sistemas de representação são
necessários e fundadores” (COMOLLI, 2008, p. 99).
Nas representações que nos dispusemos a analisar (como argumentamos antes), um
lugar específico é construído para os sujeitos aos quais elas se referem: as representações
criticam e propõem outras relações entre os sujeitos na sociedade. O estigma que acomete o
baile funk é contestado nos depoimentos dos funkeiros; o hip hop aparece nas imagens como
lugar de relações harmoniosas e pacíficas. Por meio da representação, a chance de pôr entre
parênteses as pretensas evidências dos discursos (ainda) hegemônicos.
Mas para avançar na compreensão de como essas lutas acontecem socialmente, e o
papel das imagens nessas reconfigurações da política, seria necessário uma referência não
apenas à imagem em si: em algum momento, é preciso ir em direção ao espectador. Afinal, “a
representação supõe um corte (cena/sala; ator/espectador; personagem/espectador), mas esse
corte é ainda uma relação” (COMOLLI, 2008, p. 106). As representações se situam na
mediação entre os sujeitos: mediação que pode ser muro, recusa da relação, mas que também
pode ser liame. Nas produções que analisamos, uma pergunta parece estar latente: num
mundo em que as relações sociais ganharam a forma da imagem, seria possível também
encontrar, por meio da imagem, novos modos de relação?
80
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