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EDUCAÇÃO
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Professora do Curso de Letras da UFG /CAJ, Mestre em Educação e Doutora em Lingüística.
problema consiste em se munir de uma rede de análise que torne
possível uma analítica das relações de poder. (FOUCAULT,
[1980?], apud DRYEFUS; RABINOW, 1995, p. 202)2.
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Foucault, M. “Confession of de Flesh”, [1980?], p. 199.
tipo jurídico que emanaria de um poder central. Há, portanto, regiões de poder já que “la
société est un archipel de pouvoirs différents” (FOUCAULT, 1981, p. 187).
Foucault não deixa dúvidas de que faz uma leitura distinta das teses
marxistas em relação àquela feita por outros teóricos, que compreendem esses poderes
locais como sendo simplesmente uma derivação de um poder central. Segundo
Foucault, Marx não reconhece o que o primeiro chamou de “le schéma des juristes”
(esquema de juristas), que significaria dizer que foi a existência de um ponto central de
soberania que possibilitou a organização do corpo social e que permitiu em seguida a
proliferação de poderes locais e regionais. Para Foucault, Marx mostra justamente o
contrário: como a partir da existência primeira de pequenas regiões de poder – como a
propriedade, a escravatura, a oficina, o exército – os grandes aparelhos de estado
puderam se formar. Ou seja, para Foucault – discordando de Grotius, Pufendorf ou de
Rousseau – as teses marxistas dão conta da existência de uma unidade estatal que, no
fundo, é secundária em relação à existência primeira de poderes regionais e específicos
(FOUCAULT, 1981, p. 187)3. Nas palavras de Veiga-Neto,
4
FOUCAULT, M. L’impossible prison, recherches sur le systeme pénitentiaire au XIX siècle.
Paris, Éd. du Seuil. 1980, p. 122.
diretamente por ele. A intenção de Foucault era detectar a existência de poder que não
se originava no Estado ou em seus “aparelhos”. Para ele, inclusive, não haverá mudança
na sociedade se não houver modificação nos mecanismos de poder externos aos
aparelhos de Estado, “a um nível muito mais elementar, quotidiano” (FOUCAULT,
2001f, p. 150). Mas, se isso a priori indica uma mudança do foco de análise do centro
para a periferia, não significa que esse filósofo acredite que o poder possa estar
localizado em outro lugar que não o Estado, o centro. É condição sine qua non para a
compreensão das teses foucaultianas tomar o poder como não localizável em nenhum
ponto específico da estrutura social. Para Foucault, o poder funciona como uma rede
que incluiu todos, ou seja, da qual ninguém pode esquivar-se, para a qual não existe
nada que lhe possa ser exterior. Foucault, entretanto, preocupa-se em esclarecer que,
mesmo em instituições fortemente hierarquizadas – o exército por exemplo –, em que a
rede de poder possua uma forma piramidal, o “ápice” não é a “fonte” ou o “princípio”
de onde todo o poder emana, porque o vértice (os comandantes) e a base (os
comandados) da hierarquia se apóiam e se condicionam reciprocamente (FOUCAULT,
2001g, p. 221).
Perceber a microfísica do poder não se traduz apenas em deslocar a análise
do ponto de vista espacial, mas principalmente analisar o nível em que ela ocorre. Ou
seja, não basta concluir que não há um ponto central de onde o poder irradia toda a sua
fortaleza; é preciso compreender que analisar a microfísica do poder significa entender
os procedimentos técnicos que têm por objetivo o controle minucioso do corpo. Não
apenas o produto, mas todo o processo é alvo do micropoder, seus mais detalhados
gestos. Foucault preocupa-se com a existência capilar do poder, porque
Este texto (Soberania e Disciplina) foi escrito para aula do curso do Collège
de France de 14 de janeiro de 1976. Antes disso, porém, Foucault já havia se
encarregado de alertar sobre suas preocupações metodológicas na análise do poder; isso
ocorreu em Vigiar e Punir, obra publicada originalmente em 1975 (FOUCAULT,
2002). Essa obra, apesar do subtítulo Nascimento da Prisão, não tem como objeto de
estudo a prisão, mas toda uma tecnologia disciplinar. Manoel Barros da Motta (2003),
na apresentação do volume IV da edição brasileira dos Ditos e Escritos, encarrega-se de
resumir e sistematizar as idéias do filósofo francês a respeito das três regras metódicas
apresentadas naquela época:
a) a primeira refere-se à preocupação em não concentrar a análise apenas
nos efeitos repressivos e negativos do poder; é preciso captar do poder
também os efeitos positivos que ele pode induzir;
b) a segunda diz respeito aos castigos. Não se deve tomá-los simplesmente
como conseqüências do direito; é preciso enxergá-los como mecanismos
integrantes das técnicas de poder;
c) a terceira procura articular a história do direito penal e a das ciências
humanas. Foucault afirma que são as tecnologias de poder que estão na
base tanto da humanização da pena (história do direito penal) como do
conhecimento do homem (história das ciências humanas).
Como se vê, qualquer investigação que pretenda embasar-se na teoria
foucaultiana, precisa ter presente não apenas a concepção de poder para Foucault, mas
ainda essas preocupações metodológicas, pois, se o poder não é uma coisa que se possa
apreender, a tarefa da análise deve ser a de identificar de que forma ele opera. Por isso,
para compreender o poder presente nas práticas de subjetivação das escolas onde a
pesquisa foi realizada, tivemos que nos voltar para seu funcionamento diário, para nos
remeter às suas micropráticas. Se não se examina a microfísica do poder em seu
funcionamento material, corre-se o risco de se permanecer na ilusão de que o poder
ocorre sempre de cima para baixo. Nesse sentido, procuramos voltar nosso olhar menos
para as grandes leis que regem a escola e mais para onde o poder se torna
verdadeiramente capilar, microfísico, nas interações lingüísticas que se estabelecem
cotidianamente na sala de aula, nos discursos que partem não apenas do “rei”, da
“soberania em seu edifício único” (FOUCAULT, 2001c, p. 181), mas também dos
“súditos”, em suas cotidianas práticas discursivas que determinam as múltiplas
sujeições que existem e funcionam no interior da escola. O investigador precisa destituir
seu olhar da tendência de se considerar todo poder como repressivo, como negativo, e
procuramos ver de que forma as relações de poder que se estabelecem nas práticas
discursivas têm positividade, ou seja, de que forma têm produzido sujeitos.
É nesse ponto que o conceito foucaultiano de governamentalidade torna-se
fundamental, porque nos auxilia a compreender as práticas que objetivam diretamente a
produção de subjetividades, porque “têm na população seu objeto” (MACHADO, 2001,
p. XXIII).
2. Governamentalidade5
Foucault pergunta-se qual é o traço distintivo do poder, e chega à conclusão
de que o poder é um tipo bem particular de relação entre indivíduos ou grupos. O traço
distintivo seria então a capacidade que têm alguns de determinar inteiramente a conduta
de outros, mas nunca de forma “exaustiva ou coercitiva” (FOUCAULT, 2003a, p. 384).
O exercício de poder, para Foucault, é assim – em toda acepção da palavra – um modo
de ação sobre a ação dos outros. Deriva daí um conceito muito importante, que é
amplamente utilizado pelos teóricos que se ocupam em estudar as relações de poder:
governamentalidade. Para ele, governar é “estruturar o eventual campo de ação dos
outros” (FOUCAULT, 1995, p. 244), o que significa retirar da noção de poder qualquer
5
Utilizo, por sugestão do Prof. Alfredo Veiga-Neto, o termo “governamentalidade” e não
“governabilidade” (Veiga-Neto, 2002)
conexão com o conceito de repressão. Ou, em outras palavras, poder-se-ia dizer que é
justamente o entendimento relacional e não substancial de poder que aponta para o
conceito de governamentalidade, como a ação sobre a ação dos outros.
Assim, não há possibilidade de governo sobre ações onde as determinações
estão saturadas. Apesar do aparente paradoxo, Foucault afirma que só há relações de
poder sobre sujeitos livres, aqui entendidos como “sujeitos individuais ou coletivos que
têm diante de si um campo de possibilidade onde diversas condutas, diversas reações e
diversos modos de comportamento podem acontecer”. Ou seja, a liberdade é
precondição da existência do poder. A escravidão, então, constitui uma “relação física
de coação”, porque não há o que governar uma vez que o sujeito não tem mais de uma
possibilidade de conduta (FOUCAULT, 1995, p. 244). O exemplo dado por Foucault
em outro dos seus textos é bastante esclarecedor:
É preciso lembrar, contudo, que não se pode analisar a relação de poder sem
se considerar a insubmissão da liberdade que lhe for correspondente, ou seja, não se
pode esquecer que, para Foucault (1995, p. 243), as relações de poder somente podem
ser articuladas com base em dois elementos: a) aquele sobre quem o poder é exercido
deve ser plenamente reconhecido até o fim como uma pessoa que age; b) todo um
campo de respostas, reações, resultados, e possíveis invenções seja aberto. Foucault
reforça aqui, de forma sistematizada, dois grandes pilares básicos da sua concepção de
poder: 1) só há possibilidade de governo onde houver possibilidade de ação, daí o
conceito de governamentalidade; e 2) onde há poder há resistência, conceito sobre o
qual falaremos a seguir.
No texto A governamentalidade, elaborado para o Curso do Collège de
France, aula do dia 1 de fevereiro de 1978, Foucault (2001j, p.277) esclarece que o que
conduziu à questão do governo foi a preocupação com o problema específico da
população. Ele conta que, na Idade Média ou na Antigüidade greco-romana,
provavelmente havia tratados que se preocupavam em aconselhar os príncipes quanto
aos modos de comportamento adequados, quanto à melhor forma de exercer o poder
para receber a aceitação e o respeito dos súditos. Mas foi somente a partir do Século
XVI que começaram a surgir tratados da “arte de governar”. Foucault analisa as
condições histórias que possibilitaram essa mudança.
Segundo ele, a ruptura se deu porque a doutrina do príncipe ou a teoria
jurídica do soberano procuravam marcar uma descontinuidade entre o poder do príncipe
e as outras formas de poder, enquanto as artes de governar procuravam estabelecer uma
continuidade ascendente e descendente com as outras formas. Ascendente no sentido de
que o governante deve primeiro saber se governar, governar sua família e seus bens.
Descendente no sentido de que um bom governo pressupõe que os pais de família
saibam se governar, governar suas família e seus patrimônios, pressupõe que o
comportamento dos indivíduos esteja de acordo com o modelo proposto.
Na leitura de várias obras da época sobre a arte de governar, Foucault
encontrou várias definições de governo. No texto de La Perriére, esse filósofo observa
que a definição de governo não se refere em absoluto a território: “governam-se coisas”,
ou seja, o governo deve se ocupar dos homens em suas relações com as riquezas, com
os meios de subsistência. Uma mesma metáfora perpassava todos os tratados: a do
navio. Diz Foucault:
Sabemos que não se trata de uma pergunta fácil de ser respondida, até
porque qualquer resposta pouco elaborada poderia ser indício de que a questão não foi
analisada em suas múltiplas faces.
Além de afirmarmos que a escola ainda reluz como uma das principais
instâncias disciplinadoras, gostaríamos de problematizar o grau de importância do
mecanismo panóptico dentro da grande máquina disciplinar.
Entretanto, não atribui a ela o mesmo papel imputado por seu inventou,
como ratifica no mesmo texto:
Referências
DELEUZE, Giles. Foucault. Tradução de José Carlos Rodrigues. Lisboa: Veja, 1998.
DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além
do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995.
FOUCAULT, Michel. Les mailles du pouvoir. In: Dits et écrits, v. 4. Paris: Gallimard. 1981.
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel
Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução
de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
FOUCAULT, Michel. Omnes et Singulatim: uma crítica da razão política. In: ______.
Estratégia, poder-paber. Organização e seleção de textos de Manoel Barros da Motta.
Tradução de Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003a, p. 355-
385.
FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: ______. Estratégia, poder-paber.
Organização e seleção de textos de Manoel Barros da Motta. Tradução de Vera Lúcia Avellar
Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003g, p. 203-222.
MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do
poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2001, p.vii-xxiii.
MAIA, Antônio. Sobre a analítica do poder de Foucault. Tempo Social. Revista de Sociologia
da USP, São Paulo, 7(1-2): 83-103, outubro de 1995.
MOTTA, Manoel Barros da. Apresentação. In: FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-
paber. Organização e seleção de textos de Manoel Barros da Motta. Tradução de Vera Lúcia
Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. V-LX.
PANIAGO, Maria de Lourdes Faria dos Santos Paniago. Práticas discursivas de subjetivação
em contexto escolar. Tese de Doutorado. Araraquara: UNESP / Faculdade de Ciências e Letras,
1995.
SILVA, Tomaz Tadeu. O projeto educacional moderno: identidade terminal? In: VEIGA-
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245-260.
VEIGA-NETO, Alfredo. Espaços, tempos e disciplinas: as crianças ainda devem ir à escola? In:
CANDAU, Vera Maria (Org.). Linguagens, espaços e tempos no ensinar e aprender. Rio de
Janeiro: DP&A Editora, 2001. p. 9-20.