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Uma casinha bordada na pele do seu pulso:

A fuga da linguagem é sinal de sua vinda


Sobre o Poema para Hilma af Klint de Rubens Espírito Santo
Curso do méthodo, 8 de março de 2018

[...] Artur não disse-se disse isto auto aturo altar rito um furo
gramática desarticular arquitetura junção ao acaso decurso
discurso as coisas vão surgindo como quede [...]

Sobre o primeiro período deste trecho, podemos conjecturar:

Artur não disse-se → Artur não se disse → Artur não disse


coisas sobre ele → Artur abriu mão do juízo si por um tempo.

Artur abriu mão do juízo – também o fizeram os sinais de pontuação,


renunciantes de seu posto de tentar moldar a linguagem (... a escrita ínfima rejeita
separações …) disposta a desaguar em si mesmo, assinalando o fato de que ela
captura o que apenas existe antes dela, antes mesmo que o pensamento se atualize
numa nova frase cujo ar, enganador de atualidade, fazendo com que nela se paralise;
após Artur não ter dito sobre si, a linguagem, para ser, de fato, linguagem começa a
exigir que o discurso – ou melhor, sua aparência – faça um sacrifício de estar sob sua
frequente máscara e exerça uma queda de significado, dissolvendo sua algemas – os
nexos entre as coisas – que o levaram à uma prisão da concatenação lógica e linear.
Os episódios imagéticos e ininterruptos seguidas pela renúncia de Artur, as imagens
formadas por destruições e dissoluções de outras imagens, aqui, ganham autonomia
diante de uma suposta trama – mesmo que não haja um mero registro de fatos, a
suspensão promovida por estes quase-acontecimentos, mesmo que aparentemente sem
sentido, é o que dita o sentido. A imagem poética esqueceu seu conteúdo pois ela não
é sugerida pela poesia (...não é uma foto de parede sobre a cristaleira…), mas é
composta pela própria linguagem num modo que apenas ela pode, soberanamente,
criar.
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[...] o que susto ser me desenrola envolto num tecido sublime de mim [...]
O verbo sustar significa fazer parar ou parar; interromper; suspender. Neste
trecho, o pronome que assinala a existência de algo ou alguém que o eu da frase tenta
parar de ser, interromper, suspender; este algo, porém, mesmo estando envolto num
tecido sublime de mim, tem a capacidade de me desenrolar. Há um embate entre o eu
da frase e aquilo que o eu tenta fazer parar. Neste entrave de forças, parece não haver
ganhador, assim como parece não haver quem – eu ou o ser envolto num tecido –
esteja em cima ou embaixo; ambos implicam mutuamente não suas forças, mas suas
fraquezas – a fraqueza do ser que precisa do tecido sublime de mim para se cobrir e a
minha própria, que me entrego à coragem de descer pela esteira desse tecido, não
controlando mais meu próprio movimento. Ambos parecem terem sido despertos de
uma natureza enregelada pelo movimento da linguagem, reencontrando-se numa
semelhança conceitual que aniquila tudo que não sabe coexistir em sua corredeira.

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[…] uma casinha bordada na pele do seu pulso empunha


punhalada besouro coleóptero distante buraco ela em êxtase
puro atirada na cama sem sapato nem meias semi nua […]

O impulso que leva a escrever – a escritura já virou desenho – a imagem de


uma casinha numa metáfora que não se realiza – uma frase sem sujeito – quem
empunha a punhalada, a casinha ou o próprio pulso onde ela se localiza?
Nesta narrativa em abismo – o termo abismo em heráldica é uma expressão
que qualifica uma figura posta no centro do escudo1; aqui, um sinônimo para abismo
é coração – o movimento desta narrativa sem funções determinadas nos leva ao seu
coração – e vemos que lá não mora ninguém – mas o desenho deste ninguém
posicionado no centro deste movimento centrípeto é tão vivo que rasga uma trama já
rasgada – a tessitura da trama não está nela mesma – ela serve para mostrar o
movimento insistente da intermitente erosão de uma rocha sendo ferida dia após dia
por ondas anônimas e amorfas do mar e que a desagregação dessa rocha resulta num
inequívoco transporte de fragmentos que, depositados em outros lugares, podem dar
origem a novas rochas; neste processo, que só existe quando há algo a ser dito, a

1
André Gide usou termos da heráldica para cunhar o termo mise en abyme, ou narrativa em
abismo, expressão usada para se referir a imagens que contêm outras imagens dentro de si. É
usada tanto em literatura quando em artes visuais e cinema.
indiferença quanto à forma – o que não significa desprezo da forma, mas uma não
passividade a ela para existir e, consequentemente, uma necessidade de sua constante
transformação – mostra que o intemperismo vernacular é só uma fase de um processo
histórico sem fim.

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