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Oásis
#


Ed

SENHORA
APARECIDA
A madona negra brasileira
CARA DE PEIXE
A face mais antiga
da história
LER BONS LIVROS
Melhor forma para
manter a mente ativa

ENTREVISTA:
JULIAN ASSANGE
Por que o mundo
precisa do WikiLeaks
O hábito de desafiar o cérebro com
atividades estimulantes afasta e retarda
o surgimento dos processos de
por
declínio cognitivo

Luis
Pellegrini
Editor

J
ulian Assange, o criador do site WikiLeaks, é nosso perso-
nagem de capa neste número, em entrevista/conferência
realizada no TED. Ele faz importantes revelações sobre o
método de trabalho e os propósitos de sua organização, res-
ponsável por um enorme número de revelações a respeito de
negócios e ações escusas de governos e de grandes corpora-
ções. Considerado inimigo pelos governos de países como os
Estados Unidos e a Inglaterra, pelo fato de ter tornado públi-
cas informações reputadas como segredos de Estado, o austra-
liano Assange se defende. Para ele, não pode haver democra-
cia sem total liberdade de informação. Confira.
Sempre neste número, duas importantes pesquisas científicas
norte-americanas na área da neurociência ressaltam a impor-
tância de se viver no seio de uma comunidade que promova
a leitura. Ler, sem dúvida, melhora as capacidades empáticas
da pessoa. Mas confirmou-se agora que a leitura e a escritura
mantêm à distância o espectro da deterioração cognitiva.

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oásis .
Editorial
Mais uma vez, confirma-se que no mundo natural, que é o
mundo em que vivemos, tudo aquilo que não é usado apodre-
por ce ou se deteriora. No plano humano, essa verdade vale para

Luis
todos os níveis da nossa existência: físico, sexual, emocional,
mental, etc. Se para evitar a deterioração do corpo físico exis-
Pellegrini tem as longas caminhadas, as piscinas, a ioga e a ginástica, para
Editor
manter o cérebro em ação e bem treinado nada é melhor do
que a prática diária da leitura e da escritura.

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oásis .
Editorial
ENTREVISTA:

depoimento
JULIAN ASSANGE
Por que o mundo precisa
do WikiLeaks

oásis .
depoimento 4/36
O site WikiLeaks coleta e
publica vídeos e documentos
altamente sigilosos. Seu
fundador, Julian Assange, que já Nascido na Austrália, Julian Assange
desde muito jovem mostrou interesse
foi chamado para interrogatório pelos problemas de segurança na rede.
pelas autoridades dos EUA, Nos últimos anos, passou a se dedicar
a tarefas mais amplas e arriscadas rela-
conversa com Chris Anderson cionadas a negócios sujos de governos e
do TED, sobre como o site corporações.
funciona, o que ele já realizou Assange estudou física e matemática na
e o que o motiva. A entrevista Universidade de Melbourne. Ele é o au-
tor do Strobe, o primeiro port-scanner
inclui uma filmagem explícita de aberto e open-source, e contribuiu na
um recente ataque aéreo norte- redação do livro Underground: Tales of
Hacking, Madness and Obsession on the
americano em Bagdá

O
Electronic Frontier (Subterrâneo: Con-
tos de hacking, loucura e obsessão na
Vídeo: TED-Ideas Worth Spreading fronteira eletrônica).
Tradução: Daniel Sollero. Revisão: Durval Castro

Julian Assange

ativista da internet Julian As-


sange é o porta-voz do WikiLe-
aks, um controvertido website
controlado por voluntários, que
publica e comenta documentos
secretos vazados que informam
sobre alegados desvios e crimes
perpetrados por governos e por
corporações.

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Tradução integral da conferência de Julian
Assange ao TED

oásis .
depoimento 6/36
Tradução integral da conferência de Julian
Assange ao TED

Chris Anderson: Bem vindo, Julian. Foi divulgado que o WikiLe- que você vazou e o que aconteceu?
aks, seu bebê, nos últimos dois anos divulgou mais documentos JA: Esse é o Relatório Kroll. Era um relatório de inteligên-
sigilosos do que o resto de toda a mídia do mundo junta. Isso cia secreta encomendado pelo governo do Quênia após a
pode ser verdade? sua eleição em 2004. Antes de 2004, o Quênia foi governa-
Julian Assange: É, isso pode ser verdade? É uma preocupação - do por Daniel Arap Moi por uns 18 anos. Ele era um dita-
não é? - Que o resto da mídia do mundo esteja fazendo um traba- dor moderado do Quênia. Quando Kibaki chegou ao poder
lho tão ruim que um grupinho de ativistas consegue publicar mais - através de uma coligação de forças que tentavam acabar
informações desse tipo do que o resto da imprensa mundial junta. com a corrupção no Quênia - eles pagaram esse relatório,
CA: Como isso funciona? Como as pessoas divulgam os documen- gastaram mais ou menos 2 milhões de libras nisso e em um
tos? E como você garante a privacidade delas? outro relatório. E então o governo o engavetou e usou isso
JA: Acontece que eles são - ao que sabemos - informantes clás- para a negociação política com Moi, que era o homem mais
sicos. Temos uma variedade de maneiras para que eles possam rico - e ainda é o homem mais rico - do Quênia. Esse é o
fornecer informações para nós. Então usamos criptografia de Santo Graal do jornalismo queniano. Então eu fui até lá em
última geração para fazer as coisas pularem pela internet, para 2007, e consegui ter acesso a isso pouco antes da eleição -
esconder as trilhas, fazer que elas atravessem as jurisdições legais a eleição nacional em 28 de dezembro. Quando lançamos
como a Suécia e a Bélgica para legalizar essas proteções legais. esse relatório, o fizemos 3 dias depois que o novo presiden
Recebemos informações por correio, o correio normal, codificado
ou não, analisamos como uma organização de notícias normal,
formatamos - o que as vezes é muito difícil de fazer quando se fala
sobre gigantescos bancos de dados de informações - divulgamos
isso para o público e então nos defendemos contra os inevitáveis
ataques políticos e legais.
CA: Então vocês se esforçam para garantir que os documentos são
legítimos. Mas vocês realmente quase nunca sabem qual é a iden-
tidade da fonte.
JA: É isso, sim. É muito raro sabermos. E se descobrirmos em
algum momento então nós destruímos essa informação o quanto
antes (telefone toca) Que droga!
CA: Acho que é a CIA perguntando qual é o código para ser um
membro do TED.
Vamos ver um exemplo, de fato. Isso é algo que foi vazado alguns
anos atrás. Se nós pudermos mostrar esse documento... Essa é
uma história no Quênia há alguns anos. Você pode nos contar o

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Tradução integral da conferência de Julian
Assange ao TED

te, Kibaki, tinha decidido se unir com o homem que ele deveria ti- JA: Sim.
rar do poder, Daniel Arap Moi. Esse relatório então se tornou um CA: Agora - nós vamos mostrar um pequeno trecho de um
albatroz morto no pescoço do presidente Kibaki. vídeo de um ataque aéreo a Bagdá. O vídeo é mais longo.
CA: E - quero dizer, para encurtar uma longa história - a notícia Mas aqui vai um pequeno trecho. Esse é - esse é um mate-
de que o relatório vazou chegou no Quênia não pela mídia oficial, rial intenso, devo avisá-los.
mas indiretamente. E, na sua opinião, isso mudou os rumos da Radio: ... de sacanagem, quando você os pegar apenas abra-
eleição. -os. Eu vejo seu elemento, uh, tem uns 4 Humvees, uh jun-
JA: Sim. Isso foi a primeira página do Guardian e foi impresso em to... Você está liberado. Certo. Atirando. Me avise quando
todos os países ao redor do Quênia na imprensa da Tanzânia e da você os pegar. Vamos atirar. Explodam eles. Vamos, fogo!
África do Sul. E aí, entrou no país vindo de fora. E isso, depois de (metralhadoras atirando) Continue atirando, continue ati-
alguns dias, fez com que a mídia do Quênia se sentisse livre para rando. (metralhadoras atirando) Continue atirando. Hotel
comentar a respeito. E passou por 20 noites direto na TV quenia- ...Bushmaster 2-6, Bushmaster 2-6, temos que sair, comece
na, mudou as intenções de voto em 10 por cento, de acordo com a contar! Certo, nós confrontamos todos os oito indivíduos.
um relatório de inteligência do Quênia, isso mudou o resultado da Sim, nós vemos dois passaros [helicópteros], e ainda esta-
eleição. mos atirando. Entendido. Eu peguei eles. 2-6, aqui é o 2-6,
CA: Puxa, então o seu vazamento mudou substancialmente o estamos móveis. Ops, desculpe, o que está havendo? Droga,
mundo? Kyle. Certo, hahahaha. Eu acertei eles.
CA: E qual foi o impacto disso?
JA: O impacto sobre as pessoas que trabalharam nisso foi
severo. Acabamos mandando duas pessoas a Bagdá para
pesquisar mais essa história. Esse é apenas o primeiro de
três ataques que aconteceram naquela cena.
CA: Então, quer dizer, 11 pessoas morreram nesse ataque,
certo, incluindo dois funcionários da Reuters?
JA. Isso. Dois funcionários da Reuters, duas crianças foram
feridas. Houve algo entre 18 e 26 pessoas mortas no total.
CA: E divulgar isso causou revolta generalizada. Qual foi
o elemento chave disso que causou a revolta, o que você
acha?
JA: Eu não sei. Acho que as pessoas puderam ver a enorme
disparidade de forças. Você vê homens andando nas ruas
relaxados, e então um helicóptero Apache aparece em uma
esquina disparando balas de canhão de 30 milímetros em

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Tradução integral da conferência de Julian
Assange ao TED

todo mundo - procurando qualquer desculpa para fazer isso - e esperança dela fazer algo bom. Porque as organizações que
matando as pessoas que estão resgatando os feridos. E esses dois sabem das coisas, que conhecem tudo de dentro para fora,
jornalistas envolvidos, que claramente não eram insurgentes, por- estão tendo trabalho para esconder. E isso é o que descobri-
que esse era o trabalho deles em tempo integral. mos com a prática. E essa é a história do jornalismo.
CA: Quero dizer, um analista de inteligência americano, Bradley CA: Mas há riscos nisso, tanto para os indivíduos envolvi-
Manning, foi preso. E supostamente ele confessou numa sala de dos e até para a sociedade toda, em que vazar pode ter uma
chat que enviou esse video para você, junto com 280.000 telegra- consequência não intencional?
mas sigilosos da embaixada americana. Quer dizer, será que ele JA: Não observamos isso com coisa alguma que tenhamos
mandou? divulgado. Nós temos uma política de imunização a danos.
JA: Bem, nós negamos ter recebido esses telegramas. Ele foi in- Nós temos uma maneira de lidar com informações que te-
diciado, uns cinco dias atrás, por ter obtido 150.000 telegramas e nham alguma coisa de pessoal - identificando pessoalmen-
divulgar 50. Agora, nós publicamos no início do ano um telegra- te a informação ali. Mas há segredos legítimos - você sabe,
ma da embaixada americana em Reykjavik. Mas que não era ne- seus registros com seu médico, esse é um segredo legítimo.
cessariamente conectado a esses. Quero dizer, eu era um visitante Mas nós lidamos com informantes que estão se apresentan-
conhecido daquela embaixada. do realmente bem motivados.
CA: Bem, se você recebeu milhares de telegramas diplomáticos da CA: Então eles estão bem motivados. E o que você falaria,
embaixada americana...
JÁ: Nós os teríamos liberado.
CA: Teriam?
JÁ: Sim.
CA: Por que?
JA: Bem, porque esse tipo de coisa revela o estado real de, diga-
mos, como são os governos árabes, os reais abusos de direitos
humanos nesses governos. Se você olhar os telegramas não confi-
denciais, é o tipo de material que está lá.
CA: Então vamos falar um pouco mais sobre isso. Em geral, qual é
a sua filosofia? Por que é correto encorajar o vazamento de infor-
mações secretas?
JA: Bem, há a questão sobre que tipo de informação é importante
para o mundo, que tipo de informação pode gerar uma reforma. E
há muita informação. Então as informações que organizações es-
tão fazendo um esforço econômico para esconder, isso é um bom
sinal de que quando essa informação estiver disponível há uma

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Tradução integral da conferência de Julian
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por exemplo, aos pais de alguém cujo filho está servindo o exér- governos. A luz é boa. Mas você nota a ironia no fato de que
cito americano no exterior, e ele diz, “Sabe de uma coisa, você para você jogar essa luz, você mesmo tem que criar um se-
publicou algo que alguém tinha um incentivo para liberar. E mos- gredo ao redor das suas fontes?
tra um soldado americano rindo de pessoas morrendo. Isso dá a JA: Não. Quero dizer, nós não temos nenhum dissidente da
impressão,- deu a impressão a milhões de pessoas no mundo todo WikiLeaks ainda. Nós não temos fontes que são dissidentes
de que os soldados americanos são desumanos. Na verdade, eles de outras fontes. Caso eles apareçam, isso seria uma situa-
não são. Meu filho não é. Como você ousa insinuar isso? O que ção difícil para nós. Mas presumimos que agindo dessa ma-
você falaria para isso? neira as pessoas sentem-se moralmente obrigadas a conti-
JA: É, nós recebemos um monte disso. Mas lembre-se, as pessoas nuar a nossa missão, a não ferrar com tudo.
em Bagdá, as pessoas no Iraque, as pessoas no Afeganistão - eles CA: Eu estaria interessado, apenas pelo que ouvi até ago-
não precisam ver o vídeo; eles veem isso todos os dias. Então isso ra - queria saber a opinião da audiência do TED. Você sabe,
não vai mudar a opinião deles. Não vai mudar a percepção deles. deve haver alguns pontos de vista sobre o Wikileaks e sobre
É isso que eles veem todos os dias. Isso vai mudar a percepção e o Julian. Vocês sabem, o herói - o herói do povo - trazendo
opinião daqueles que estão pagando por tudo isso. E essa é a nos- essa luz importante. O encrenqueiro perigoso. Quem tem a
sa esperança. visão do herói? E quem tem a visão do encrenqueiro perigo-
CA: Então você achou uma maneira de jogar uma luz no que você so?
vê como sendo esse tipo de segredos macabros das empresas e JA: Ah, por favor. Deve ter algum.
É um público moderado, Julian, um público moderado. Te-
mos que tentar melhorar. Vamos dar a eles um outro exem-
plo. Aqui está uma coisa que vocês ainda não vazaram, mas
eu acho que no TED poderíamos considerar que o fariam. É
uma história intrigante que acabou de acontecer, certo? O
que é?
Então essa é uma amostra do que fazemos todos os dias No
final do ano passado - em novembro do ano passado - hou-
ve uma série de explosões de poços na Albânia como o poço
que explodiu no Golfo do México, mas não tão grande. E
nós recebemos um relatório - um tipo de análise de enge-
nharia do que havia acontecido - afirmando que, de fato, os
seguranças de algum concorrente, várias empresas de pe-
tróleo competindo haviam, de fato, estacionado caminho-
netes lá e as explodido. E parte do governo da Albânia esta-
va envolvido, etc, etc. E no relatório de engenharia não

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Tradução integral da conferência de Julian
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tinha nada sobre isso. Então foi um documento extremamente que lidamos. Então temos que reestruturar para ter pessoas
difícil para nós. Nós não conseguíamos verificar porque nós não que vão lidar com questões da mais alta segurança nacional,
sabíamos quem escreveu isso e sabíamos qual era o propósito e também casos de segurança mais baixa.
disso. Então ficamos meio céticos que talvez fosse uma empresa CA: Então ajude-nos a entender sobre você, pessoalmente,
de petróleo concorrente que estava trazendo isso a tona. Baseados e como chegou a fazer isso. E acho que li que quando era
nisso, nós publicamos e dissemos, “Olhem, nós estamos céticos criança você estudou em 37 escolas diferentes. Será que isso
a respeito disso. Nós não sabemos, mas o que podemos fazer? está certo?
O material parece bom, parece certo, mas nós não conseguimos JA: Bem, meus pais trabalhavam no negócio de cinema e
verificá-lo” E recebemos uma carta essa semana da empresa que o depois em um culto, então juntando os dois...
escreveu, querendo rastrear a fonte - (risos) dizendo, “Ei, nós que- CA: Um psicólogo poderia dizer que essa é a receita para
remos rastrear a fonte.” E nós respondemos, “Conte-nos mais. A criar a paranóia.
que documento, precisamente, você está se referindo? Você pode JA: O que, o negócio de cinema?
nos provar que tem alguma autoridade legal sobre esse documen- CA: Você era também - quero dizer, você era um hacker
to? É realmente seu?” Então eles enviaram uma captura de tela desde jovem e teve problemas com as autoridades logo
com o autor na identificação do Microsoft Word. É. (Aplausos) cedo.
Isso acontece bastante. Esse é um dos nossos métodos de identi- JA: Bem, eu era um jornalista. Sabe como é, eu era um jor
ficar - ou verificar o que é aquele material, é tentar fazer com que
esses caras escrevam cartas.
CA: Você teve informação de dentro da BP?
JA: Sim, nós temos muitas, mas quero dizer, no momento, nós es-
tamos fazendo uma captação de recursos e esforços de engenha-
ria. E a nossa taxa de publicação nos últimos meses foi reduzida
enquanto nós reconstruímos os nossos sistemas para o interesse
público fenomenal que nós temos. Isso é um problema. Quero
dizer, como qualquer tipo de organização nova em crescimento,
nós estamos surpresos com o nosso crescimento. E isso significa
que estamos recebendo uma quantidade enorme de revelações de
informantes de calibre bem alto, mas nós não temos pessoal sufi-
ciente para processar e cuidar dessa informação
CA: Então esse é o principal gargalo, jornalistas voluntários e/ou
o financiamento de salários dos jornalistas?
JA: Sim, e pessoas confiáveis. Nós somos uma organização que
dificilmente vai crescer rapidamente por causa do tipo de material

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Tradução integral da conferência de Julian
Assange ao TED

nalista ativista bem jovem. E escrevi uma revista, que foi proces- da na mesa, e o apresentador falava “Isso nunca aconteceu
sada por isso quando eu era um adolescente. Então você tem que antes. O que faremos?” Bem, vamos apenas mostrar o site
tomar cuidado com hacker. Quero dizer, há um método que pode então para preencher todo aquele tempo. E nós nos torna-
ser feito para várias coisas. Infelizmente, naquele momento, era mos muito famosos na Islândia, fomos à Islândia e falamos
mais usado pela máfia russa para roubar a conta do banco da sua sobre o assunto. E havia um sentimento na comunidade
avó. Então essa frase não é tão legal quanto era antigamente. que isso nunca deveria acontecer novamente. E como re-
CA: Bem, eu realmente não acho que você estava roubando a con- sultado disso, trabalhando com alguns políticos islandeses
ta de banco da avó de ninguém. Mas e sobre os seus valores? Você e alguns especialistas em direito internacional, nós criamos
pode nos dar uma ideia do que eles são e talvez algum aconteci- um tipo de pacote legal para a Islândia se tornar um paraíso
mento na sua vida que ajudou a determinar esses valores? para a imprensa livre, com as maiores proteções jornalísti-
JA: Não tenho certeza sobre o acontecimento Mas os valores prin- cas do mundo, com um novo prêmio Nobel para liberdade
cipais são: homens capazes e generosos não criam vítimas, eles de expressão. A Islândia é um país nórdico. Então, como a
cuidam das vítimas. E isso era algo do meu pai e de outros ho- Noruega, é capaz de mexer no sistema. Há apenas um mês,
mens capazes e generosos que participaram da minha vida. isso foi aprovado por unanimidade pelo parlamento islan-
CA: Homens capazes e generosos não criam vítimas; eles cuidam dês.
delas? CA: Uau! Última pergunta, Julian. Quando você pensa so-
JA: É, e você sabe, eu sou uma pessoa combativa, então eu não bre o futuro, você acha que será mais como o “Big Brother”
sou muito bom com essa parte de cuidar. Mas de alguma forma exercendo mais controle, com mais segredos ou nós obser-
há outra maneira de cuidar das vítimas, que é vigiar os autores do vando o “Big Brother”, ou tudo isso acontecerá, nos dois
crime. Então isso é algo que está no meu caráter há bastante tem- sentidos?
po. JA: Eu não estou certo de como será. Há pressões enormes
CA: Então conte-nos, rapidamente nesse último minuto, a sua para harmonizar a legislação da liberdade de expressão e a
história: O que houve na Islândia? Você publicou algo lá, teve legislação da transparência ao redor do mundo - dentro da
problemas com um banco, depois uma empresa de notícias de lá comunidade europeia, entre a China e os Estados Unidos.
recebeu uma punição por ter publicado a história. Ao invés dis- Qual caminho vai tomar? É difícil ver. É por isso que hoje
so, eles divulgaram o seu lado da história. Isso fez você ser muito é um bom momento para se viver. Porque com apenas um
conhecido na Islândia. O que aconteceu depois? pouco de esforço nós podemos mudar de um jeito ou de
JA: Esse é um grande caso. A Islândia passou por essa grande outro.
crise financeira. Foi o país mais afetado de todo o mundo. Seu CA: Bem, parece que eu estou refletindo a opinião do públi-
setor financeiro correspondia a 10 vezes o PIB do resto da econo- co ao dizer, Julian, tenha cuidado e desejo todo poder para
mia. Então, nós lançamos esse relatório em julho do ano passado. você.
E a TV nacional foi proibida de veicular cinco minutos antes de JA: Obrigado, Chris (CA: Obrigado.)
ir ao ar. Como se tivesse saído de um filme, a ordem foi coloca-

oásis .
depoimento 12/36
SENHORA APARECIDA

brasil
A madona negra
brasileira

oásis .
brasil 13/36
Lucy Penna, autora de Aparecida
do Brasil, a Madona Negra da
Abundância, explica os significados
do mito de Nossa Senhora e conta que ela considera um dos grandes mitos brasi-
leiros: Nossa Senhora da Conceição Aparecida.
como ele está ligado ao sagrado Sua busca resultou no livro Aparecida do Bra-
feminino. Lucy Penna infelizmente sil, a Madona Negra da Abundância, lançado
pela Editora Paulus.
faleceu em Goiânia, poucos
meses depois desta entrevista. Com a emoção que move os buscadores, o
olhar perspicaz da mestra e doutora em psico-
Psicoterapeuta de linha junguiana, foi logia clínica, a experiência de mais de 30 anos

C
uma grande pesquisadora de mitos de consultório e os conhecimentos reunidos em
inúmeros estudos sobre os símbolos sagrados
brasileiros e seus significados do feminino, Lucy seguiu os passos de Apare-
cida. Viajou no tempo, recompondo o cenário
político, social e econômico no qual emergiu a
padroeira. Seguiu o rastro da Madona Negra
Entrevista a: Andiara Maria indo em busca de diversas manifestações do
seu arquétipo. No Havaí, fez contato com Pele,
a deusa dos vulcões. Na Suíça, se emocionou
com a Madona de Einsiedeln, e do mesmo
modo com a Madona de Czestochowa, na Polô-
Como uma pequena imagem nia, e Nossa Senhora de Guadalupe, no México.
quebrada, encardida, pescada
no rio, tornou-se a santa padro- Em seu consultório em Goiânia (GO), onde
eira do País e tem sido capaz de viveu até falecer a 26 de agosto de 2011, Lucy se
atravessar séculos inspirando empolgava ao revelar os muitos significados do
uma devoção que atrai anual- mito de Aparecida. Os olhos de um verde pro-
mente 7 milhões de romeiros ao fundo, normalmente tranquilos, se agitavam.
maior centro de peregrinação Os cabelos e a pele acobreados ganhavam ainda
da América Latina? Em busca mais vida. Os braços da autora de Dance e Re-
de respostas que ultrapassam as crie o Mundo assumem gestos largos. Apareci-
fronteiras da religiosidade, a psicoterapeuta jun- da, ensina Lucy, nos adverte sobre a necessida-
guiana se entregou de corpo e alma à pesquisa do de de cuidar melhor dos nossos recursos

oásis .
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Basílica de Nossa Senhora
Aparecida, Aparecida SP

hídricos e nos indica como curar as feridas da alma coletiva Ele levantou 450 Madonas Negras cristãs, no eixo da Euro-
brasileira e tornar mais íntegro o caráter nacional, pondo fim pa e dos países de língua inglesa. No livro dele há um trecho
à corrupção e às desigualdades sociais para que tenhamos, sobre Aparecida e, quando percebi, estava profundamente
enfim, abundância. atraída pela figura da Nossa Senhora Aparecida do Brasil,
sendo que eu não era devota.
Você estuda o feminino sagrado há mais de 3 déca-
das e, em 1996, já havia abordado o milagre e Apa- Isso motivou sua pesquisa?
recida em uma pesquisa sobre as divindades femi-
ninas do Brasil. Seu interesse pelo tema nasceu ali? Não. Eu já morava em Goiânia e, quatro anos atrás, de re-
pente, acordei pensando em Aparecida, me senti motivada a
Sim, na época eu me debrucei sobre Aparecida e a questão me debruçar sobre ela e comecei a pesquisa.
do sagrado feminino, mas essa fase teve uma intermitência, Você trata Aparecida como um mito brasileiro. O que confe-
logo eu já estava estudando outros temas. Conscientemente re a ela esse caráter?
não estava ligada em Aparecida. O que me levou de volta a O mito é um sonho coletivo e o Brasil sonhou com a Madona
ela foram algumas viagens. No Havaí, por exemplo, tomei Negra, que apareceu e foi chamada Aparecida.
contato com Pele, a deusa dos vulcões. Era uma completa
novidade para mim. Foi algo que ficou no meu inconsciente Sonhou como?
fazendo uma teia. Mais tarde, na Inglaterra, comprei vários
livros, entre eles A Madona Negra, de Ean Begg. Ele teve to- Ela é uma cocriação nossa, porque os outros fatores são mis-
das as profissões do mundo e, já no fim da vida, foi fazer um tério, fazem parte do mistério. Por que ela é um sonho nos-
curso de formação junguiana e se interessou pelo assunto. so? Tentei entender isso levando em conta as condições so

oásis .
brasil 15/36
Rio paraíba do sul

oásis .
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Lucy Penna, autora de
Aparecida do Brasil,
a Madona Negra da
Abundância, explica os
significados do mito
de nossa senhora e
conta como ele está cada aos pedaços no rio Paraíba, mas pouca gente
ligado ao sagrado conhece os detalhes da história.
feminino
Os pescadores estavam angustiados, porque eram conside-
rados bons a ponto de receber a encomenda de pescar parte
do banquete em homenagem ao conde de Assumar, o novo
governador da província de São Paulo e Minas Gerais, que
passava pela Vila de Guaratinguetá, com uma comitiva de
quase 500 pessoas. Você imagina, tinha de ter muito pei-
xe. Eles passaram a noite pescando. Navegaram pelo rio e
não pescaram nada. Mas João Alves, seu pai, Domingos, e
seu tio Felipe não desistiram, apesar do cansaço. O rapaz
foi quem apanhou primeiro o pedaço do corpo e, depois, a
cabeça. Isso sempre me intrigou. Como é que a água do rio
está passando e vem um pedacinho da cabeça da santa? O
que é isso? De onde vem? Isso é um mistério. E esse é o lado
do mistério que acho apaixonante.

Santuário de Aparecida

ciais, históricas e antropológicas que faziam parte da psique


das pessoas naquela hora. Qual era o estresse, o anseio e o
sofrimento delas, qual era aquela condição que daria, em ter-
mos da psique, a descoberta de uma fonte de misericórdia,
de uma fonte de alívio e de proteção. Elas eram totalmente
deserdadas ali, e não só os escravos. Todos estavam abando-
nados pelos órgãos públicos.

Todos sabem que a imagem de Aparecida foi pes-

oásis .
brasil 17/36
tão ocorreu a circunstância, a ânsia de eles acreditarem no
milagre para salvar sua sobrevivência. Foi nessa condição
que nasceu o mito. O mito se torna um sonho coletivo, mas
na sua origem pode ter ocorrido com um grupo pequeno de
pessoas ou, às vezes, uma pessoa que teve uma experiência
que a gente conhece como sendo o encontro com o mistério,
uma experiência luminosa, como quem pensa: “Hum, en-
tendi! Pesquei uma santa quebrada, mas é uma santa e ela
vai nos ajudar.” Aí vem o mistério, a rede cheia de peixes.
E a conjuntura começa a sair do controle racional, porque
várias pessoas se aproximam daquele evento e dizem: “Aqui
tem um toque de mistério. Vamos rezar, vamos pedir.”

Surge uma santa negra, num país onde reinava a


escravidão, e, de repente, todos começam a cultuar
a imagem.

Existe ainda o detalhe de que, depois que ele encon- Mas eram os negros, os mamelucos, os indígenas e os mu-
trou a santa, a pesca foi abundante. latos que estavam com ela. Demorou dez anos para que o
pároco da cidade se interessasse. E temos de perguntar:
Esse é o milagre. por que essa história não acabou? Por que não foi sufocada
e, apesar dos ataques que ainda sofre, por que a crença se
Qual é o simbolismo dessa história: um pescador espalhou pelo Brasil inteiro? Diante de um mito, é preciso
joga a rede e pesca o corpo e, depois, a cabeça de avaliar o contexto histórico. Ele pega uma amplitude da psi-
uma imagem, num rio caudaloso. Ao unir as duas que coletiva, portanto, da cultura daquele momento, e não
partes, percebe que é uma Nossa Senhora negra... só daquele local, mas da cultura do país. A partir disso, passa
a ser vivido pelas pessoas como se fosse um ser vivo que res-
O simbolismo pode ser visto em vários níveis. Naquela hora, pira com elas. Assim, Aparecida vai se tornando padroeira
ela foi identificada como uma santa católica. Eles não sabiam daquele lugar, padroeira do Brasil. Ela está dentro de nós e,
qual era a Nossa Senhora e a chamaram Aparecida. Apare- ao mesmo tempo, é um ser psíquico que extrapola as nossas
ce, Aparecida! Não havia esse nome no Brasil nem registro mentes, porque senão teria morrido quando acabou aquela
civil de alguma mulher batizada com esse nome. Também geração que viveu a escravidão. Nós estamos a três séculos
não era nenhuma santa de igreja até aquele momento. En- disso!

oásis .
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Papa Francisco, devoto de Aparecida,
beija a imagem da santa

oásis .
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me. O local é um centro de peregrinação que inspira a devo-
ção de católicos e até mesmo de protestantes. Lá, você mer-
gulha num simbolismo mais profundo que ultrapassa a cor
da pele, aqui no Brasil bastante vinculada à escravidão. Per-
cebe que esse negro é também a noite de onde emerge tudo
o que é criado. Dentro de uma amplificação possível nessas
condições, esse é o negro do útero da terra. As Madonas
Negras têm uma relação muito interessante com Gaia, com a
própria Terra, com o próprio planeta. Essa imagem do femi-
nino parindo tudo. A Madona Negra é uma formulação da
Grande Mãe Terra.

O que as Madonas Negras têm em comum, além da


cor?

A Madona Negra traz uma espécie de conteúdo encontrado


inclusive em madonas anteriores ao cristianismo, no sentido
da relação com nossos instintos básicos; portanto, da relação
com a sobrevivência, da relação com a criação, com a ferti-
lidade do planeta e da mulher. E, numa forma mais ampla,
com a criatividade, com a capacidade de inventar, de se criar
maneiras não apenas de sobreviver, mas também de evoluir.
Há uma circunstância muito interessante nos lugares mais
pesquisados por mim, como a Polônia, a Suíça, o México e
o Havaí: a crise social de identidade daqueles povos. Nes-
Você defende a tese de que Aparecida é uma mani- ses momentos de crise social, se ela não emergiu, emerge.
festação do arquétipo da Madona Negra. Como fun- E, quando emerge com essa força telúrica, ela representa a
ciona esse arquétipo que se manifesta tanto em um capacidade do povo de se reorganizar e lutar pela própria
país mestiço, como o Brasil, quanto em países de identidade. Há uma crise de identidade ameaçando a consti-
raça caucasiana? tuição do povo.

É assim mesmo, estranho. O impacto que tive na Suíça ao Qual era a crise que o Brasil atravessava quando a
conhecer a Abadia da Madona Negra de Einsiedeln foi enor- santa foi encontrada?

oásis .
brasil 20/36
inteiro. Uma das fontes para essa minha compreensão da
A nossa mestiçagem. Há um dado que acho importante: ela parição das águas (parição, não aparição!) é o mito dissemi-
não caiu negra no rio, mas colorida. Era policromada e teria nado na Amazônia inteira de que o povo das águas, como
ficado tanto tempo dentro do rio a ponto de embeber-se de são chamados os indígenas, veio de uma transformação de
uma mistura de lodo. Maria Helena Chartuni (a artista plás- seres que habitavam dentro dos rios.
tica que restaurou a imagem da santa depois que ela foi rou-
bada e quebrada, em 1978) me disse: “Lucy, os resquícios de Os índios Carajás, do rio Araguaia, têm o mesmo
cor estavam dentro de alguns dos fragmentos que me trou- mito. Antes de serem homens eram peixe, o arua-
xeram.” Antes se imaginava que alguém a tivesse esculpido nã.
negra para significar que era a Nossa Senhora dos escravos.
Aí entra mais uma dose de mistério, porque foi a água do rio É isso!
que a deixou negra.
De certa forma, essa é a teoria científica, a vida co-
Está claro que Aparecida é uma metáfora da alma meçou nas águas.
negra do Brasil. Mas, além disso, existe o fato de
que ela emerge das águas, assim como outras divin- Sim. Então, você vê um dado do inconsciente coletivo uni-
dades femininas brasileiras. versal com a vestimenta que ele tem para nós. As águas sig

Em Aparecida, o que me chama a atenção é que ela emerge


do rio e, aos poucos, descubro que ela foi cocriada pelo rio.
Aqui já se tem uma condição que surge com a água, a água
criando a imagem de Aparecida como nós a conhecemos. E
isso dentro de um rio que se tornou de grande importância
econômica e social para aquela região. Pela nossa grande
abundância de água, temos madonas brasileiras envolvidas
com os rios e com o mar, de norte a sul. A qualidade da inte-
ração que nós temos com as águas é que precisa agora rece-
ber uma atenção mais cuidadosa. As águas falam para a nos-
sa psique, se comunicam conosco no nível subliminar. São
poderosas. Aparecida emerge do rio para nos mostrar que a
água não é silenciosa e, como a nossa psicologia está voltada
para esse feminino das águas, ela representa a maternidade
das águas. As águas vivas nos têm e vão nos parindo o tempo

oásis .
brasil Floresta Virgem às margens do Rio 21/36
Paraíba do Sul, gravura de Debret
Madona do Pilar, madona negra de Chartres

ouro. Ele movia a economia na época, e, por conseguinte, o


peixe, a sobrevivência. Hoje, nós não a vemos mais só assim.
Vamos dando conotações diferentes para a mesma imagem.
A questão de ela ter vindo sem cabeça, por exemplo, até ago-
ra nunca foi levantada. Mas não é ao acaso que Aparecida
vem com a cabeça quebrada. Eu, que trabalho em psicologia
com o corpo, dentro da noção junguiana do que é uma inte-
gridade, digo: corpo e cabeça são pares de opostos.

E você dá vários significados para esses pares de


opostos.

Faço uma listinha, porque isso é muito complexo. Hoje,


estamos dando uma conotação bem profunda da busca da
integridade, isso quer dizer caráter, caráter íntegro.

nificam símbolos de uma natureza profundíssima enquanto No mito de Aparecida, cabeça e corpo cortados re-
origem, transformação e regeneração. E Aparecida resume presentam uma fragmentação da alma brasileira?
tudo isso numa figura humanizada.
Em primeiro lugar, não entendi isso sozinha. Entendi estu-
Qual seria a mensagem de Aparecida emergindo dando outros autores brasileiros que, de certa forma, estão
das águas? aí mencionados, como o Sérgio Buarque de Holanda, o Ro-
berto Gambini e o diplomata Meira Pena, que se debruçou
Considerar a água um ser vivo. Cuidar com sabedoria dos sobre o povo brasileiro. Aparecida representa a divisão que
nossos recursos hídricos. nós temos entre uma herança materialmente trazida pelos
europeus, no sentido de uma civilização racional e baseada
É uma mensagem bem atual, mas e naquele mo- na ordem e no progresso, e uma herança indígena em que
mento histórico? a lógica era outra, a organização era outra. Os povos indíge-
nas acreditam que tudo no universo tem alma – as pedras,
Naquela hora, o que ficou mais evidente em Aparecida foi a as plantas, os animais, não só as pessoas – e procuram viver
identidade pela cor. A paixão por uma Nossa Senhora que em consonância com esses elementos. O mundo europeu
parece a mãe negra da gente. Nessa fase ela é o ouro negro, tinha perdido essa visão animista e adquirido outra, que nós
que virou ouro preto, a grande protetora de quem buscava o caracterizamos como cristã e também científica. Não se vê a

oásis .
brasil 22/36
Nossa Senhora de Montserrat,
Madona Negra da Catalunha

23/36
alma das coisas dentro da ciência. É essa característica que
hoje parece estar como uma espécie de grande desafio, “me
decifra ou eu te devoro”, dentro da nossa personalidade en-
quanto povo. Ou seja, nós vamos ter progresso e ordem neste
país sacrificando totalmente o outro lado, o lado que reve-
rencia e respeita a natureza, curte essa natureza exuberante
do País, o lado que gosta da sexualidade, gosta de festa?

Mas você também analisa a divisão entre cabeça e


corpo em um contexto bem político.
Deusa Pele, divindade
do vulcão, Havaí
Cabeça enquanto governo, corpo enquanto nação. Realmen-
te, a nação é como o corpo de um ser e o governo deveria ser
a cabeça, capaz de organizar. Mas no Brasil, no momento,
eu vejo uma separação impressionante. A abundância só vai
acontecer quando o corpo e a cabeça estiverem unidos. tamos como povo, como nação, de dar às coisas começo,
meio e fim, fazer projetos e terminá-los são tão grandes que
Cabeça e corpo continuam separados como há 300 me levam a dizer: “Puxa vida, Aparecida daqui a pouco vai
anos? sofrer outro ataque, vai se despedaçar toda.” Porque ela está
representando o despedaçamento dentro de nós.
Sim! Digo que o Imposto de Renda hoje é uma continuação
piorada do quinto que o conde de Assumar veio cobrar aqui. Você tocou em um ponto interessante: essa ima-
Aliás, é até maior, não é nem um quinto, é um terço, se não gem já foi vítima de vandalismo duas vezes. Por
for mais. E a gente não sabe para onde vai o dinheiro. Então, quê?
o corpo e a nação de um lado e o governo e a cabeça de outro
continuam tão afastados quanto no tempo do Brasil Colônia. Muito mais. Só se fala de dois ataques porque foram mais
É preciso assumir: “Tenho cabeça e corpo, então eu vou me bem documentados. É a mesma coisa que acontece quando,
administrar.” No plano da democracia, não é mais admissí- por exemplo, eu estou vivendo uma crise, passando uma si-
vel dúvida, nós temos de nos governar. Cada um de nós. Essa tuação difícil e aí tropeço na rua e torço o tornozelo, quebro
associação provoca dois tipos de comportamento que ten- uma perna. Seria um momento para eu parar e refletir um
to caracterizar: 1º) “Não confio no governo.” 2º) “Digo que pouco. Como é que estou andando? Para onde estou indo?
não confio, mas, se puder, quero estar lá e, quando estiver, Como pessoa, isso é possível, mas, como povo, precisamos
esqueço tudo o que ficou lá trás.” As dificuldades que enfren- nos educar, falar e discutir muito e encontrar maneiras co

oásis .
brasil 24/36
Já a função sociológica, mais ligada à cor de Aparecida,
significa: precisamos aceitar de verdade a nossa morenice.
Aparecida aponta para o perigo da dissociação coletiva por
conta da discriminação. Nós temos sim, dentro de nós, uma
inaceitação da nossa morenice. Somos um povo marrom! De
várias tonalidades, do escuro ao ocre dourado. Então, essa
já é uma questão ligada com a nossa sociologia e, portan-
to, com a evolução de indígenas e de descendentes afros na
sociedade galgando postos, como Marina Silva, descendente
negra dentro de uma candidatura à Presidência.

E a função espiritual?

Para mim, ela significa um alcance metafísico no seguinte


sentido: a relação do feminino é a relação da escuta do mis-
tério, da escuta mais atenta de poderes transcendentes que
muns de compreensão. Isso, enquanto o corpo de uma nação atuam nesse planeta, atuam no Sistema Solar e em outras
precisa de educação, e muita educação. Conhecimento. esferas maiores que nós, seres humanos; comunicam com
ondas magnéticas, e outras ondas que ainda não desco-
De acordo com o mitólogo norte-americano Joseph brimos, informações importantíssimas para que saibamos
Campbell, que você cita no livro, o mito tem quatro quem somos, de onde viemos e para onde vamos.
funções: espiritual, filosófica, sociológica e pedagó- O feminino é capaz de abrir, acolher esse tipo de informa-
gica. Quais seriam elas no caso de Aparecida? ção ainda não decifrado. Ele se traduz por essa qualidade da
alma humana de poder, sejamos homens ou mulheres, rece-
A função pedagógica do mito diz o seguinte: enquanto você ber uma informação que não decodificamos imediatamente
tiver a cabeça separada do corpo, você não tem fartura na no racional, mas sentimos que ela nos transforma.
vida. Cabeça significando capacidade de organização, pre- O feminino no mundo, como abordagem do real, é essa
visão de recursos, planejamento, direção de vida. O corpo abordagem que torna o visível e o invisível comunicantes.
significando a força de trabalho, a alegria de viver e o gosto Primeiro, aceita o invisível como real também. Por que real?
de saber que eu estou fazendo porque gosto de estar com as Porque me atinge, me modifica, me comove e me estimula.
pessoas na fartura, na abundância. Alegria! Principalmente A função espiritual do mito Aparecida é a aceitação de um
alegria de viver, e a sexualidade está dentro disso. feminino sagrado que, neste país, fala em todos os recantos,
simbolizando a integração necessária para a evolução da

oásis .
brasil 25/36
consciência coletiva do Brasil, no sentido de maior igualda-
de, solidariedade e criatividade.

O mito atua na psique coletiva independentemente


da compreensão que se tem dele?

Ele atua tão forte na psique inconsciente da maior parte


das pessoas que o mito Aparecida permanece vivo até hoje.
Agora, cutucando meus colegas psicólogos, nós estamos no
Brasil tentando formar a nossa cabeça, estudando mitos que
foram vivos para povos do outro lado do mundo. Formidá-
vel! Fantástico! Já fiz esse caminho. Mas é preciso outro es-
quema para entender quem somos nós aqui, onde estamos.
A gente deve parar de estudar deusas gregas, romanas e não
sei mais das quantas e passar a estudar os nossos mitos, que
são extremamente valiosos.
Prestaríamos um serviço de utilidade pública. Porque isso
representa uma terapia socializada, vamos dizer assim. Te-
mos de nos apoiar nos mitos da nossa gente. Eu cito o Macu-
naíma, mas há muitos outros que representam essa criação
das questões da nossa psique, como os sonhos coletivos de
grupos. E o que são sonhos coletivos? Estão representando o
quê? Os nossos anseios frustrados, a nossa sombra, que são
nossas dificuldades, como encostar o corpo, ser meio malan-
drinho, preguiçoso e assim por diante. É preciso que a gente
se valorize. Nós criamos esses mitos.

Por fim, como uma imagem tão pequenina tem ta-


manha força? Você já encontrou uma resposta?

Tem um mistério. Nós nos debruçamos sobre o mistério não


para obter respostas, mas para fazer outras perguntas.

oásis .
brasil 28/36
animal
CARA DE PEIXE
A face mais antiga
da história
oásis .
animal 27/36
O que existe em comum no nosso
sorriso e no de um antepassado dos
peixes, hoje extinto? Muito mais do
que se possa imaginar à primeira xima à China atual entre 450 e 415 milhões
de anos. Ela é o mais antigo animal a possuir
vista. Um fóssil de animal aquático um aparelho bucal semelhante ao dos mo-
encontrado na China remete dernos vertebrados, entre eles o homem.
para trás a origem do aparelho Ele tem a nossa mesma boca
mastigador dos vertebrados

O
Um fóssil perfeitamente conservado desse
proto peixe que remonta a 419 milhões de
Por: Equipe Oásis anos foi descrito pelo paleontólogo Min Zhu,
membro do Instituto de Paleontologia e Pa-
leoantropologia dos Vertebrados, órgão da
Academia Chinesa de Ciências, em Pequim,
em artigo publicado na revista Nature.

O fóssil apresenta o característico sistema


ósseo composto de três elementos ainda hoje

lhe bem a imagem ilustrativa que


abre esta matéria. Depois, olhe-se
no espelho. Não existe uma certa
semelhança? Para os biólogos evo-
lucionistas, nós humanos e o Ente-
lognathus primordialis - um peixe
primitivo que viveu no período
Paleozoico - compartilhamos uma
característica somática fundamen-
tal: a forma da mandíbula.

Essa criatura aquática viveu numa área pró-


Um detalhe do fóssil mostra a parte superior
“encouraçada” da cabeça, a boca e a mandíbula.
oásis .
animal
Foto: Min Zhu / Nature
Ilustração do Entelognathus
primordialis

29/36
Uma árvore genealógica complicada

O Entelognathus primordialis pode ter sido um mem-


bro atípico da classe dos placodermos, antepassados dos
peixes que rondavam nos oceanos entre 430 e 360 mi-
lhões de anos, quando na Terra ainda existia um único
continente chamado Gondwana. Esses animais, caracte-
rizados por uma verdadeira armadura óssea ao redor da
cabeça e do tórax, possuíam uma mandíbula de estrutura
primordial composta de poucas e amplas placas ósseas (e
não de uma complexa estrutura de ossos menores como
acontece no caso dos modernos peixes ósseos.

Min Zhu cientista chinês Dos placodermos se originaram os peixes cartilagino-


sos (como os tubarões) e os demais peixes que possuem
esqueleto ósseo. Até agora acreditava-se que as caracte-
rísticas faciais dos placodermos tivessem se perdido no
usado pelos vertebrados para mastigar: um osso maxilar decorrer da evolução, e que o último antepassado comum
inferior (a mandíbula) no qual se assenta a arcada dentá- aos vertebrados de hoje fosse mais parecido com um tu-
ria, e dois ossos superiores: o pré-maxilar, no qual estão barão primitivo, com um esqueleto cartilaginoso coberto,
inseridos os dentes incisivos, e o maxilar, que contem os no máximo, de pequenas placas ósseas.
dentes caninos e os molares. Nos mamíferos (homem in-
cluído) os dois ossos superiores encontram-se fundidos. O fóssil encontrado na China, no entanto, é uma espé-
cie de híbrido que reúne muitas características dos pla-
A disposição desses ossos é substancialmente a mesma codermos (como o corpo encouraçado, que os tubarões
dos modernos vertebrados: a do Entelognatus seria, por- não possuem) e também alguns traços somáticos dos
tanto, a primeira “cara” com as características que esta- vertebrados modernos, como a existência de mandíbula.
mos habituados a associar a ela. O desenvolvimento de A origem da forma do nosso rosto terá de ser, portanto,
uma mandíbula poderosa representou um passo funda- remetida para trás no tempo, à época desse animal pré-
mental na evolução dos vertebrados. Os primeiros peixes -histórico possuidor de uma mandíbula gigante.
ósseos a desenvolveram, provavelmente, para melhor
capturar presas maiores e mais rápidas.

oásis .
animal 30/36
Reconstrução do
Entelognathus
primordialis

31/36
LER BONS LIVROS

neurociência
Melhor forma para
manter a mente ativa

oásis .
neurociência 32/36
Se você for um leitor voraz, sua
mente não será a única beneficiária.
Os efeitos positivos do hábito da
leitura provavelmente recairão
personagens complexos e de personalida-
também sobre os seus amigos e de multifacetada efetivamente melhora
seus familiares. Ler, particularmente a nossa capacidade de entrar na pele do
próximo.
livros de narrativa, pode melhorar
nossa capacidade empática, como Os cientistas recrutaram três grupos de
voluntários que se dedicaram a três tare-
demonstra recente estudo norte-

A
fas diversas: o primeiro grupo teve de ler
americano. textos narrativos de alta qualidade, todos
eles agraciados com o prestigioso prê-
Por: Equipe Oásis mio literário norte-americano National
Book Award; o segundo teve de ler tre-
chos de bestsellers vendidos online (his-
tórias com personagens bastante “rasos”
inseridos em situações de sabor popular
e mundano); ao terceiro grupo nada foi
dado para ler.

A todos, depois, foi solicitado identificar


as emoções escondidas atrás de algumas
expressões faciais: um teste de empa-
habilidade de se conectar com tia no qual os que tinham lido romances
as emoções dos outros, in- mais “empenhados” obtiveram claramen-
tuindo as suas convicções e te os melhores resultados.
antecipando os seus desejos,
é conhecida como importante Os livros são necessários
teoria da mente. Alguns pes-
quisadores da New School for Social Re- O estudo dos resultados estimulantes
search em Nova York quiseram verificar deixou, no entanto, algumas dúvidas em
se a experiência de leitura de situações suspenso: quais são, por exemplo, as si-
literárias desenvolvidas em romances com tuações contidas no fio narrativo que fa

oásis .
neurociência 33/36
dades empáticas da pessoa.

Os “ratos de biblioteca” permanecem jovens


Outra importante pesquisa, também norte-america-
na, soma-se à que foi comentada acima e demonstra
que a leitura e a escritura mantêm à distância o es-
pectro da deterioração cognitiva.

Confirma-se pela enésima vez que a natureza não


perdoa: no mundo natural, que é o mundo em que

zem – realmente – a diferença? Pode ser, perguntam


alguns pesquisadores, que se trate simplesmente do
maior esforço cognitivo empregado para enfrentar
uma leitura “culta” o fator que incrementa também
as capacidades relacionais.

A pesquisa, de qualquer modo, ressalta a importân-


cia de se viver no seio de uma comunidade que pro-
mova a leitura. Ler, sem dúvida, melhora as capaci-

oásis .
neurociência 34/36
processos de declínio cogni-
tivo. Isto é o que revela um
amplo estudo norte-america-
no publicado na revista Neu-
rology. Esses resultados con-
firmam aquilo que o senso
comum já conhece há muito
tempo.

Pensamento e memória

O estudo foi desenvolvido por


um grupo de pesquisadores
do Rush University Medi-
cal Center de Chicago. Esses
neurocientistas monitoraram,
através de uma bateria de
testes, as atividades de pen-
samento e memória de 294
indivíduos de idade avança-
da. Os voluntários, que foram
seguidos durante cerca de 6
vivemos, tudo aquilo que não é usado apodrece ou se anos, tiveram de responder um questionário a res-
deteriora. No plano humano, essa verdade vale para peito dos seus hábitos de leitura e de escritura du-
todos os níveis da nossa existência: físico, sexual, rante a juventude, a idade adulta e a velhice.
emocional, mental, etc.
Depois da morte dos voluntários, acontecida a uma
Se para evitar a deterioração do corpo físico existem idade média de 89 anos, os cientistas examinaram
as longas caminhadas, as piscinas, a ioga e a ginás- através de uma autopsia os seus cérebros para iden-
tica, para manter o cérebro em ação e bem treinado tificar sinais fisiológicos de demência, como lesões,
nada é melhor do que a prática diária da leitura e da placas e aglomerados neurofibrilares (depósitos pro-
escritura. O hábito de desafiar o cérebro com ativi- teicos que se acumulam sobre as fibras nervosas).
dades estimulantes afasta e retarda o surgimento dos Tais anomalias são muito comuns em pessoas de

oásis .
ambiente 35/36
idade avançada e podem causar importantes défi-
cits de memória e de cognição. Nos pacientes que
sofrem de Mal de Alzheimer essas placas, devido a
uma proteína chamada betamiloide, se depositam
progressivamente sobre os neurônios tornando-os
incapazes de transmitir impulsos. Alguns pesqui-
sadores creem que esse mesmo processo pode ser
uma das causas prováveis de doenças escleróticas e
autoimunes como a esclerose múltipla.

Diferenças impressionantes

Os pacientes acostumados às atividades intelectivas


mostraram uma taxa de declínio cognitivo 15% mais
lenta em relação a quem cultivou menos os hábitos
de ler e escrever. doentes de Alzheimer funciona realmente para im-
pedir ou retardar o avanço da doença”, comenta a
Em particular, ficou evidente que manter um alto rit- médica Patrizia Spadin, presidente da Associação
mo de leitura até mesmo em idades avançadas reduz Italiana para a Doença de Alzheimer. “Claro – con-
o declínio da memória de 32% em relação à norma. tinua Patrizia Spadin – a atividade ‘formal’ de re-
Quem, ao contrário, abandona (ou quase abandona) abilitação cognitiva conduz a resultados mensurá-
o hábito de ler e escrever com o passar dos anos, cor- veis e comprovados. Mas também encontrar-se com
re o risco de uma piora da memória 48% mais rápida amigos, dar um passeio, viajar, praticar um esporte,
do que os que se mantêm ativos e em treinamento. ler um bom livro, fazer palavras cruzadas e comer
Os dados foram ajustados também com base nas di- de modo sadio, além de influenciar positivamente
versas quantidades de placas e aglomerados encon- o estado de humor, beneficia as células cerebrais e,
trados durante as autopsias. Em outras palavras, ao portanto, a mente. Para quem se sente impotente em
lado dos fatores físicos que causam demência senil, face de uma doença tão devastadora como a demên-
calculou-se também o peso da atividade cognitiva na cia, é fundamental saber que essas armas existem,
prevenção e deterioração das faculdades cerebrais. funcionam e devem ser usadas na batalha contra a
deterioração cognitiva.
“A pesquisa confirma que tudo aquilo que, instinti-
vamente, os muitos familiares proporcionam a seus

oásis .
neurociência 36/36

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