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O Materialismo Histórico em

14 Lições

L. A. Tckeskiss

1922

Primeira Edição: O livro sobre o materialismo histórico é formado por uma serie
de preleções proferidas na Universidade Comunista1 para as minorias nacionais do
Ocidente, no ano letivo de 1921-1922.

1
A Universidade Comunista dos Trabalhadores do Oriente, sigla KUTV, foi uma Instituição de ensino
superior da União Soviética fundada em 21 de abril de 1921, com sede em Moscou, por resolução
da Internacional Comunista e inaugurada em 21 de outubro de 1921. Em 1930 foi descentralizada e suas
funções foram repassadas para um número maior de Instituições de ensino superior. Conhecida
também como Universidade do Extremo Oriente.
Sumário

Introdução.......................................................................................1

Preleção Introdutiva...................................................................3

Lição I: Fenômenos Sociais e Acontecimentos


Históricos.........................................................................................7

Lição II: A Hierarquia das


Ciências..........................................................................................12

Lição III: A Teoria Organicista na


Sociologia......................................................................................18

Lição IV: Os Conceitos Básicos do Idealismo e


Materialismo..................................................................................23

Lição V: O Materialismo Francês e a Filosofia Crítica de


Kant...............................................................................................26

Lição VI: A Filosofia Após Kant-Fichte, Hegel e


Feuerbach......................................................................................31

Lição VII: Os Fundamentos do Materialismo


Histórico........................................................................................34

Lição VIII: O Papel e a Influência da Técnica na Evolução da


Sociedade.......................................................................................37

Lição IX: A Estrutura da Sociedade e a Divisão de


Classes...........................................................................................43

Lição X: A Luta de Classes como Força Propulsora da História e a


Formação da Psicologia de
Classe............................................................................................49

Lição XI: Liberdade e Determinismo; Atividade Social e Causalidade


Social.............................................................................................57

Lição XII: Direito e Arte do Ponto de Vista


Materialista....................................................................................65

Lição XIII: A Religião do Ponto de Vista


Materialista....................................................................................70

Lição XIV........................................................................................77
Introdução

O livro sobre o materialismo histórico que ora


apresentamos ao publico é formado por uma serie de
preleções proferidas na Universidade Comunista para as
minorias nacionais do Ocidente, no ano letivo de 1921-1922.

Nestes últimos anos, a literatura russa enriqueceu-se com


uma série de compêndios sobre o materialismo histórico, o
que facilita imenso a tarefa do professor.

O materialismo histórico foi entre nós introduzido como


matéria de cursos, e por essa razão já conta com um
programa elaborado e aceito. Durante o curso a que nos
referimos ainda não havia compêndios sobre a matéria. O
autor teve, portanto que elaborar um programa um tanto
diferente do atualmente aceito, mas que oferece, entretanto
algum interesse. O mesmo acontece com a apreciação de
alguns fatos.

Não será, portanto demais apontar ligeiramente os pontos


essenciais, que distinguem o nosso trabalho.

O materialismo histórico é ao mesmo tempo uma filosofia


materialista da historia e uma sociologia materialista.
Desvenda as leis estáticas da vida social e as leis dinâmicas
do desenvolvimento social. O seu método é o cientifico —
materialista. Funda-se sobre bases já determinadas nas
ciências naturais e antropológicas e forma os alicerces da
historia e da vida social como ciências positivas. Esses
conceitos são o fundo deste curso e determinam o seu
desenvolvimento lógico.

O curso pode ser dividido em quatro partes. A primeira, a


metodologia, compreende uma preleção introdutiva sobre o
objeto do materialismo histórico, subdividida em Quatro
lições. A 1ª destas lições explica o objeto da sociologia e da
historia; a 2ª a posição da sociologia e da historia na escala
das ciências (dificuldades em organizar a ciência da vida

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social e da historia); a 3ª as varias teorias sociológicas e a
critica da teoria organicista (spenceriana).

A segunda parte, a filosófica, compreende Três lições: a


1ª – Materialismo e idealismo e suas relações com a ciência;
a 2ª – O materialismo do século XVIII e a filosofia critica e
seu papel na ciência; a 3ª – O idealismo de Hegel e a
formação do novo materialismo cientifico (dialético).

A terceira parte, a sociológica, compreende Quatro lições.


A 1ª – Os fundamentos do materialismo histórico; a 2ª – O
papel e a ação da técnica no desenvolvimento da sociedade;
a 3ª – A estrutura da sociedade e a divisão em classes; a 4ª
– A luta das classes como força motriz da historia na
formação da psicologia das classes.

A quarta parte compreende quatro lições, destinadas a


mostrar como o materialismo histórico investiga e explica
certas questões filosóficas de um lado, e por outro, como
explica complicados fenômenos sociais, cientificamente,
empregando o método materialista. A 1ª lição estuda a
questão da liberdade e da necessidade (determinismo); a 2ª
– o direito do Estado e a arte, do ponto de vista materialista;
a 3ª – a religião do ponto de vista materialista (cientifico); a
4ª – o papel das grandes personalidades e de acasos
importantes na historia, sempre do mesmo ponto de vista.

O curso tem o caráter didático. As preleções não foram


taquigrafadas. Foram apontadas por dois camaradas, alunos
do curso, Portnoi e Liberman, que só anotaram as linhas
gerais. Esses apontamentos serviram como matéria prima
que só foi trabalhada pelo autor, mas não transformada. Isso
se sente no estilo e em alguns enunciados. Se todas as
questões abordadas nesse curso fossem suficientemente
desenvolvidas, o nosso trabalho exigiria não uma brochura,
porem, inúmeros volumes, mas então perderia o caráter de
curso.

As preleções contem poucas citações das obras dos


mestres marxistas. O autor julgou que só viriam aumentar o
texto. O curso todo não é senão um ensaio de transmitir,
numa forma sistemática e logicamente concatenada, os

2
ensinamentos de Marx e Engels. Em algumas passagens tenta
o autor abordar a questão, empregando um método de
exposição diverso do usado habitualmente, diferindo também
a sua interpretação; terá sido original sem, contudo alterar o
aspecto geral da matéria.

Num curso são permitidas as repetições e liberdades


estilísticas.

Aproveito a oportunidade para externar meus


agradecimentos aos camaradas Portoin e Liberman que, com
seu devotamento, contribuíram para a publicação deste
curso.

Preleção Introdutiva

Que é o materialismo histórico?

O materialismo histórico é parte da concepção geral


marxista. O que é o marxismo e que lugar ocupa o
materialismo histórico na ciência social e particularmente no
marxismo?

Cada época social tem sua concepção da vida que surge


da ciência e da filosofia dominantes em dada sociedade e que
representam os interesses e pontos de vista das classes
dominantes. Assim, a concepção da vida na antiguidade era
diferente do que na época da escravidão; a concepção
burguesa é diversa da feudal e do mesmo modo a concepção
proletária já se distingue radicalmente da burguesa.

O marxismo é a concepção, isto é, o modo de encarar a


vida, do ponto de vista do proletariado e que permite esboçar
a concepção que terá a sociedade que ele esta destinado a
criar. Esta concepção surgiu algumas décadas antes
de Marx e com Marx ainda não se completou.

Afirmar o contrario seria estar fundamentalmente em


contradição com as bases do materialismo
histórico. Marx e Engels apenas indicaram as linhas gerais,
segundo as quais a concepção proletária se deve desenvolver

3
e, quando mais se desenvolve o proletariado, tanto mais se
deve desenvolver a sua concepção sobre a vida.

O materialismo histórico como parte do marxismo, estuda


as leis da vida social e a tendência do seu desenvolvimento. A
sociedade humana surgiu, por um lado, de agregados
inferiores e por outro, sendo composta de indivíduos isolados:
organismo, cujo desenvolvimento está subordinado a
determinadas leis químicas e biológicas, as quais por sua vez,
estão ligadas a fenômenos físicos e, por conseguinte, á
natureza em geral.

Realmente, nada existe na natureza que se ache isolado,


que seja independente, que não tenha relação com alguma
outra coisa. O materialismo histórico está, portanto,
estreitamente ligado ao determinismo e á moderna ciência
natural. Ele não se ocupa com o estudo das leis gerais da
natureza; forma, apenas, do resultado de todas as ciências a
sua base concreta, e emprega o método cientifico para o
estudo da vida social e seu desenvolvimento. O materialismo
histórico é, portanto, uma ciência cujo objeto é o estudo dos
fenômenos sociais.

Com relação a estes fenômenos o materialismo histórico


não se preocupa com pormenores, -- estabelece somente as
leis gerais básicas e as tendências do desenvolvimento da
sociedade. Tomando-se, por exemplo, os fenômenos sociais,
tais como o direito, a moral, a religião (que são, alias mais
antigos que a própria ciência social, e que, no entanto
até Marx não tinham sido cientificamente estudados), nota-se
que não são os pormenores desses fenômenos que formam o
objeto do estudo histórico-materialista. Este, somente
estabelece cientificamente seu conteúdo e as leis do seu
desenvolvimento.

Alguns fatos ou pretensas ciências sociais foram


por Marx e Engels analisados e estudados: são aspectos da
historia, da economia política, e as tendências do sistema
capitalista. Outros foram investigados por seus discípulos,
particularmente por Lenine, que melhor compreendeu e
desenvolveu a escola proletário-marxista.

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Á pergunta: qual é o objeto do materialismo histórico,
devemos responder que o materialismo histórico estuda os
fenômenos sociais e a historia.

À segunda pergunta: como ele as estuda, a resposta é: —


do ponto de vista marxista.

O materialismo, que antes era somente uma escola


filosófica, torna-se, alem disso, uma filosofia da historia.

O materialismo histórico estuda, portanto cientificamente


as sociedades e a historia.

Que significa porem estudar cientificamente uma coisa, e


qual é em geral, a finalidade de uma ciência? Que é a
historia? Pode ela construir uma ciência?

A finalidade da ciência é descobrir e estudar as leis


segundo as quais se apresentam os fenômenos. Para isso
deve a ciência descrever e determinar antes de mais nada os
fenômenos que se propõe estudar. A ciência deve, portanto
buscar as causas dos fenômenos dados e, com isso, também
as relações entre aquelas e estes. Aquecendo a água até
certo grau, obtemos vapor. Temos aqui dois fenômenos; um
conseqüência do outro. Existe, portanto entre eles uma
relação constante. Constatada essa relação entre os dois
fenômenos, obtemos uma lei empírica. O conjunto das leis
forma a ciência.

A finalidade de cada ciência é encontrar a relação


constante entre determinados fenômenos, para a previsão
dos mesmos, porque saber quer dizer prever e só poderemos
prever conhecendo as relações constantes entre os
fenômenos, — as leis (causas e efeitos).

Está claro que nem todos os conhecimentos já alcançaram


o verdadeiro grau cientifico, pois muitos fenômenos da
natureza e da vida ainda não foram estudados
cientificamente. Dizemos, portanto, que os conhecimentos em
geral estão ainda imperfeitos e incompletos; a sua finalidade
é, entretanto, o aperfeiçoamento, isto é, não deixar na

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natureza nem na vida um só fenômeno que não seja
cientificamente estudado.

O materialismo histórico, dizíamos, tem a missão de


estudar cientificamente e pelo método materialista, a história
e a sociedade (dois conceitos intimamente ligados entre si).
Não é, entretanto a ciência da sociedade em si; indica
somente o método e o processo no estudo das leis da vida
social e do seu desenvolvimento. Não se deve confundir o
materialismo histórico com a sociologia. Esta estuda e
determina as leis estáticas e dinâmicas da sociedade,
enquanto que o materialismo histórico indica somente o meio
pelo qual se descobrem estas leis.

Surge aqui uma questão: se cada ciência deve determinar


as relações constantes entre fenômenos dados, estes
fenômenos devem se repetir. Mas a historia é somente uma
substituição de fenômenos que não se repetem. Então, como
pode a historia ser estudada cientificamente?

Estas dificuldades explicam o fato de não ter, até Marx, a


história existindo com caráter cientifico. Existia apenas uma
filosofia da historia que procurava encontrar as tendências do
desenvolvimento humano e o materialismo histórico saiu de
algum modo, da filosofia da historia de Hegel.

O materialismo histórico criou uma base para a sociologia,


mas não é a ciência da sociedade que alias não pode
substituir; por outro lado descobriu as bases gerais do
desenvolvimento social, — do “progresso” humano,
determinando, cientificamente o conteúdo (a razão de ser) do
progresso em si.

O materialismo histórico, não é porem, a história.

O materialismo histórico é o método cientifico e o estudo


da sociologia, base cientifica para a novíssima filosofia da
história.

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Lição I: Fenômenos Sociais e Acontecimentos Históricos

Antes de mais nada, ao encetar a construção de uma


ciência, deve-se indicar o seu objeto, determinar o seu
conteúdo, distinguindo os fenômenos que nela vão ser
estudados. Assim se procede em relação a qualquer ciência e
assim também se deve proceder quanto à ciência social – a
sociologia.

É, porem, muito difícil determinar o objeto da ciência


social, por ser difícil determinar a divisão e distinção dos
fenômenos sociais.

De fato, cada fenômeno social tem de estar ligado aos


esforços que forjam a sociedade, isto é, aos homens e os
fenômenos sociais devem, portanto ser o resultado da
atividade humana, que, como tal está relacionado com a
consciência humana.

O fenômeno torna-se então psicológico. Ao mesmo tempo


o fenômeno esta relacionado com todo o organismo humano,
que, por sua vez está submetido a determinadas leis
fisiológicas, químicas e físicas; o fenômeno social é, portanto,
ao mesmo tempo um fenômeno geral da natureza. Torna-se
por isso difícil a sua definição. Isso constitui mais um motivo
para a complexidade dos fenômenos sociais, isto é, o fato de
constituírem estes uma serie de vários e distintos momentos,
dos quais é difícil distinguir o momento especificamente
social, para com estes constituir o conjunto de fenômenos
cuja relação se procura determinar e que é a mola da vida
social.

Temos por exemplo, o suicídio, como um fenômeno da


vida social. Que vemos? De um lado é um ato da vontade
humana e, por conseguinte ligada ao ser psíquico, de outro, o
resultado de um processo físico constituído pela lesão que
ocasionou a morte. Temos aqui uma serie de momentos
psicológicos, físicos, químicos, fisiológicos, e também sociais;
e ao analisarmos o fenômeno do suicídio, temos que passar
sobre os vários momentos não sociais para nos determos
somente no momento social, que constitui o objeto de nossa

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investigação. Os atritos e movimentos do projétil, se a morte
foi produzida por bala, o jorrar do sangue, a destruição das
células e a morte como tal, não são ainda o momento social e
por isso não os estudaremos em nosso trabalho.

Mas, o que há de social no ato de investigarmos? O ato do


suicida foi executado por certos motivos que o determinaram,
motivos essencialmente individuais: o homem, por exemplo,
foi levado a esse gesto por uma desilusão, por pessimismo,
ou porque se achava em estado anormal de consciência. Até
aqui, poderá parecer que se trata de um momento psicológico
puro, por nos parecerem exclusivamente individual as causas
determinantes do ato. De fato, até aqui nada temos de social.
Mas levamos mais adiante a nossa analise, e formulemos a
seguinte pergunta: quais as causas que o levaram a
desilusão, quais os motivos do seu pessimismo e, seremos
forçados a responder que a causa da desilusão foi o não se
terem realizado as suas esperanças na vida; porque o lugar
por ele ocupado na sociedade, isto é, a sua posição social,
não lhe permitiu alcançar aquilo que desejava, numa palavra,
porque as condições existentes, nas quais se achava, não o
podiam satisfazer, e nada o prendia á vida, ao contrario, tudo
o compelia ao ato que praticou.

Aqui já temos alguma coisa de social.

Desde que tratamos de atos humanos, há de haver neles


sempre algum sentido social. É este fundo social que teremos
de destacar, investigar e analisar.

Preliminarmente devemos investigar se os atos humanos


se realizam obedecendo a leis ou espontaneamente. Se
obedecem a leis devemos procurar descobri-las, para se
poder prever os fenômenos. Tomemos o mesmo fenômeno do
suicídio. Sabemos pelas estatísticas, que em cada ano se dão
um certo numero de suicídios e, quanto mais desenvolvida é
a sociedade, maior é o seu numero. Já vemos por aí que o
fenômeno do suicídio não é casual, e deve obedecer a leis,
isto é, deve haver uma relação constante entre o fenômeno e
as causas que o determinam. Como tal deve ser possível a
sua previsão.

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Ora, descoberto e determinado o objeto a ser estudado
numa ciência, já se pode encetar a sua construção.

Em nosso curso teremos que lidar com fenômenos sociais


já destacados e a nossa missão consistirá em verificar se
existem determinadas leis que provocam esses fenômenos e
os regulam, e se entre fenômenos sociais diversos, existem
relações regulares e determinadas por leis.

Tomemos ainda o exemplo do suicídio e perguntemos: é o


suicídio um fenômeno constante, cujo repetição pode ser
prevista, ou é ao contrario meramente casual? Ora, ao
investigarmos este fenômeno, veremos que em sociedades de
igual nível de desenvolvimento, a percentagem anual de
suicídios é a mesma e que o fenômeno, em geral, é regular.

O suicídio é, portanto um fenômeno constante,


obedecendo a leis, que permitem a sua previsão; tem
relações normais com outros fenômenos sociais e é
provocado por estes últimos.

O mesmo se dá com outro fenômeno, o “casamento” –


relações contratuais entre dois sexos, e mais claramente no
fenômeno do “roubo”. Estes dois últimos são fenômenos
sociais por excelência. São fenômenos constantes,
provocados por causas certas, leis determinadas e podem ser,
portanto investigados cientificamente.

***

Até aqui procuramos determinar o que seja um fenômeno


social geral. Mas cada fenômeno social pode ter também, em
certos casos um sentido histórico.

Tomemos mais uma vez o fenômeno do suicídio, mas


agora o suicídio de um certo homem publico (ou o furto de
importantes documentos diplomáticos); um tal fenômeno
social pode ser transformado num acontecimento histórico.
Por quê? Porque este fenômeno pode ter eco sobre uma serie
de outros fenômenos. Assim, desde que um fenômeno social
exerce grande influencia sobre o agrupamento de outros
fenômenos sociais, provoca novos fenômenos que trazem

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certa modificação á vida social, e torna-se deste modo, ao
mesmo tempo, um acontecimento histórico.

Alem dos fenômenos individuais com sentido social e


histórico, existem igualmente fenômenos sociais de caráter
coletivo, que também constituem acontecimentos históricos.
Tomemos por exemplo a guerra. O fenômeno tem caráter
coletivo; é desenvolvida entre coletividades distintas e,
muitas vezes exerce grande influencia sobre a marcha
posterior da vida social. É, portanto um acontecimento
histórico. O mesmo se observa com o fenômeno “revolução”
cujo sentido é a luta entre vários grupos sociais, graças á
qual, em ultima analise, é modificada a forma da vida social.

Cada acontecimento histórico e a historia em geral; — o


desenvolvimento da sociedade humana, a cadeia dos
acontecimentos históricos concatenados – devem, da mesma
forma que cada fenômeno social, ser estudados
cientificamente.

Devemos, pois encontrar os métodos científicos para


estudar os acontecimentos históricos.

Mas aqui surge uma questão importante: — a historia, tal


como era escrita antes e ainda como esta sendo escrita até
agora, pode ser objeto de investigação cientifica?

Tomemos a historia, tal como foi escrita pelos


historiadores há 2000 anos, a historia que já se escreveu
durante a idade media e nos tempos modernos, e a que foi
escrita nos últimos tempos; qual dessas “historias” pode
servir de objeto para a ciência?

A “historia”, simples narração dos fatos, é mesmo anterior


á formação dos caracteres escritos. A questão porem é
indagar como foi a historia escrita; o que era para os antigos
historiadores o essencial nas suas investigações, e qual a
historia que pode servir de objeto para uma investigação
cientifica.

Por um lado, foi a historia, na sua infância, adulterada e


incorretamente transmitida e por outro, não transmitia ela os

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fenômenos comuns da vida humana, mas somente os
acontecimentos que atraiam a atenção dos “historiadores” de
então.

Na historia antiga havia dois fatores que deixavam seu


timbre no sentido e no próprio modo de escrever a historia:
1º- a narrativa de certas lendas que circulam entre o povo
como fatos históricos; 2º- a atribuição dos acontecimentos
históricos á vontade e influencia de grandes personalidades. A
historia teve, portanto, o caráter biográfico dessas
personalidades, entrelaçada de narrativas e louvores
referentes aos seus atos.

Nessa historia não se encontram os fatos que indicam as


causas desses acontecimentos, nem o papel que neles
tomaram as massas.

Assim, a deturpação por motivos religiosos e a atribuição


de todos os acontecimentos á atividade de certas
individualidades, transformaram a historia em biografia
dessas personalidades, a qual pelo seu conteúdo não pode se
tornar uma ciência, pois a ciência só pode ser constituída
como já vimos, pela constatação de fatos que tenham entre si
uma relação constante.

Só casualmente, os historiadores gregos como Herodoto,


Thucidides, Plutarco e outros, deparam com a força,
influencia, atividade e interesses das massas e começam
parcialmente a descrever momentos característicos da vida
social, não tirando disso, entretanto, as conclusões
correspondentes.

Mas, os quadros reais, descritos por eles, quer da vida


social, quer da vida dos reis e chefes, dão-nos agora a
possibilidade de determinar, após um estudo cientifico, os
traços e formas mais importantes da vida de então. Tudo isso
no entanto eram apenas descrições, “historias” e não uma
historia cientifica.

Na idade media não se deram grandes modificações nesse


sentido. Somente após a grande Revolução Francesa, começa
a cristalizar-se a historia como ciência (indícios de um ponto

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de vista cientifico para os acontecimentos históricos,
encontramo-los até, anteriormente,
em Voltaire e Montesquieu).

Realmente, um acontecimento histórico tão importante


como a Revolução Francesa, executou colossais reformas na
vida social de então, reformas cujo conteúdo foram de tal
forma salientes que já não foi possível atribuir tais
acontecimentos á vontade de grandes personalidades ou a
certas casualidades. A participação e o papel dos diversos
grupos sociais na Revolução Francesa foi tão saliente, que os
historiadores tiveram que considerá-los, mostrando as
relações entre os grupos e a sua atitude em face dos
acontecimentos, etc.

Vemos então, que a historia era até certo momento,


escrita de tal maneira que jamais poderia ter sido objeto de
investigação cientifica. Só no começo do século XIX, mais ou
menos, principia-se a estudar a historia cientificamente.

Os acontecimentos históricos quer de caráter individual,


quer de caráter coletivo, devem também ser estudados
cientificamente. Devem ser determinadas as leis que
provocam esses acontecimentos e que os colocam em
relações constantes com outros fenômenos sociais.

Isso só se tornou possível quando os fenômenos sociais,


em geral, se tornaram objeto de investigação cientifica,
quando a ciência da sociedade, sua vida e desenvolvimento
podem assentar numa base solida e concreta.

Lição II: A Hierarquia das Ciências

Na lição precedente, estudamos os conceitos de


fenômenos sociais e acontecimentos históricos; procuramos
defini-los, concretizá-los; distinguimos os momentos físicos,
químicos e psicológicos que devem ser estudados pelas
ciências naturais correspondentes e pela psicologia, detendo-
nos somente sobre os momentos puramente sociais que
devem servir de objeto á sociologia e à historia.

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À pergunta: podem esses fenômenos servir de objeto para
uma investigação cientifica rigorosa, responderemos que, não
sendo produto do acaso os fenômenos sociais puros que
destacamos, mas constantes, isto é, que se repetem e estão
relacionados entre si, podem, por isso ser estudados
cientificamente e por conseguinte previstos.

O mesmo sucede também com os acontecimentos


históricos; vimos que, sendo esses fenômenos parte dos
fenômenos sociais em geral, podem igualmente ser
investigados cientificamente. Vimos ao mesmo tempo, em
que consistia a dificuldade do problema da investigação
cientifica dos fenômenos sociais.

Há, entretanto mais uma grande dificuldade sobre a qual


vamos chamar a atenção. Consiste essa dificuldade no fato de
cada fenômeno social estar relacionado com a atividade
humana que é, antes de tudo, a expressão da vontade.

Mas o homem supõe que a revelação de sua própria


vontade é um ato livre, que não está sujeito a lei alguma, e
isto ocasiona grande dificuldade ao estudo cientifico do
fenômeno.

O homem selvagem, explica, por exemplo, o trovão como


a revelação da vontade divina. Explica assim os fenômenos
naturais do mesmo modo que os fenômenos de sua própria
vida: sua atividade é o resultado de sua própria vontade; os
fenômenos naturais são para ele o resultado da vontade
divina.

Ora, desde que se empregou semelhante método na


observação dos fenômenos naturais, estes jamais puderam
servir de objeto a uma investigação cientifica. As ciências
naturais por si tiveram que percorrer longo caminho de
desenvolvimento antes de chegarem a se constituir em
verdadeiras ciências, e prepararem assim o terreno próprio
para o aparecimento da ciência social, que é por isso a mais
jovem de todas as ciências.

Mas há ainda uma outra dificuldade; os fenômenos


sociais, conquanto desarticulados, não deixam de ser

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fenômenos complexos, ligados a muitos momentos estranhos,
criando por sua vez mais um obstáculo á investigação
cientifica2.

É claro que somente depois que o homem aprendeu a


compreender os fenômenos naturais, e após longo caminho
de experiências, em que se acostumou a compreendê-los
cientificamente, só então pode ele encetar o estudo cientifico
dos fenômenos sociais. Alem disso, a atividade humana,
estando como está, relacionada com a vida em geral, só pode
tornar-se objeto de ciência quando se começou a investigar
as leis da vida em geral. E tanto assim, que a ciência da vida
– a biologia – é também uma das mais jovens no seu
desenvolvimento. Qual a razão disso? É que os fenômenos da
vida, tomados de um modo geral, tem formas especiais,
singulares (na vida vemos os fenômenos como resultado de
sua própria multiplicação), e para se explicar, até a bem
pouco tempo, procurava-se uma força vital especial que fosse
a causa da vida em si.

Claro está, portanto, que só foi possível explicar


cientificamente os fenômenos da atividade humana, quando
se conseguiu explicar cientificamente os fenômenos da vida.
A ciência que estuda os fenômenos sociais ocupa, por isso, a
última posição na escala das ciências – na hierarquia das
ciências.

***

Lancemos um golpe de vista sobre essa hierarquia. Não


nos deteremos nas chamadas ciências normativas, ou
formais, isto é, cujo objeto é o estudo das relações mais
simples entre os fenômenos, as formas pelas quais as coisas
se nos apresentam (matemática e lógica). Apenas as

Um tanto diferente era a situação da historia: tínhamos diante de nós fatos, tais
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como as revoluções e as guerras, que já não podiam ser explicadas pela vontade
exclusiva de um homem. Tentou-se a sua explicação pela vontade conjunta de
muitos homens. Mas aqui surge a pergunta: porque querem todos esses homens, a
mesma coisa? Temos então que procurar as causas da vontade coletiva dos
homens; mas enquanto os acontecimentos se explicavam pela vontade, seja
embora a vontade coletiva, ficavam estranhos á ciência e deixavam de ser passiveis
de uma investigação com esse caráter.

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lembramos e passamos ás ciências naturais concretas
(ciências fenomenológicas).

Ao iniciarmos o estudo, a própria natureza se nos


apresenta como formando dois mundos: um vivo (orgânico) e
outro morto (inorgânico). Estudando o mundo “inorgânico”,
encontramos fenômenos de duas espécies: físicos e químicos.
E de duas espécies são também os corpos que aí vemos: 1º-
os compostos de um único elemento e que não podem,
portanto ser decompostos, 2º- os que se compõe de diversos
elementos e podem ser decompostos.

As leis, a que estão submetidos todos os corpos da


natureza, independentemente de sua composição (um ou
vários elementos ou substancias), são estudadas pelas
ciências — mecânicas e físicas. Essas leis são as mais gerais e
mais simples dentre as que estudam os fenômenos
(fenomenológicas ou concretas). As leis segundo as quais se
operam as ligações das varias substancias nas suas diversas
combinações são estudadas pela química. Essas leis não
abarcam toda a natureza, mas grande parte dos fenômenos
naturais estão a elas sujeitos. São menos gerais e menos
simples que as leis da mecânica e da física. É claro que todos
os corpos químicos estão sujeitos ás leis da mecânica, mas
nem todos os corpos estão sujeitos ás leis da química. Por
isso mesmo as leis da química são mais complexas que as da
mecânica e da física. É, pois evidente que o homem aprendeu
em primeiro lugar aquilo que é mais geral, mais fácil de
compreender, mais simples de observar.

De fato, a mecânica e a física são as ciências mais


antigas, e ocupam por seu grau de complexidade o primeiro
lugar na escala das ciências, seguindo-se-lhes a química.

Vejamos agora o mundo orgânico ou vivo, aqui vemos


desde logo, alguma coisa de novo; encontramos não somente
combinações de elementos ou substancias, como nos
fenômenos que formam o objeto da química. Os fenômenos
da vida representam algo mais do que simples ligações e
combinações de elementos químicos. A vida é o campo das
formas que se multiplicam. A multiplicação se opera pela
divisão das células, que constituem ou formam células novas

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semelhantes aquelas de que provieram. Assim, vemos que as
leis puramente químicas não nos podem replicar os
fenômenos da natureza orgânica (vida). Aqui deparamos com
fenômenos revestidos de um caráter novo, e submetidos,
portanto a leis especiais, com as quais se ocupa a biologia.
Essas leis são menos gerais e mais complexas que as da
química.

Não esqueçamos porem, que os fenômenos da natureza


organizada (orgânica) estão igualmente submetidos ás leis
mais gerais da mecânica, da física e da química. Mas, então,
alem disso, submetidos a leis de um caráter especial, e são
estas ultimas que vão constituir o objeto da nova ciência, — a
biologia3.

Examinando mais detidamente os fenômenos orgânicos


notamos que nem todos são semelhantes. Há organismos que
possuem a faculdade de movimentação, outros há que não o
possuem. E veremos ainda que, mesmo entre os que
possuem a auto-movimentação, duas categorias se nos
apresentam: nuns a auto-movimentação é provocada pelo
consciente (como no homem) noutros essa auto-
movimentação não é provocada pelo consciente, mas pelo
instinto. Essas diferenças porem não são tão profundas que
motivassem a existência de uma nova ciência para estudá-
las. Com efeito, entre os organismos mais desenvolvidos sem
auto-movimentação (vegetais) e os mais rudimentares com
auto-movimentação (protozoários) não há quase diferença
alguma. E o mesmo se observa ainda com relação aos
organismos mais desenvolvidos com auto-movimentação
instintiva e os mais rudimentares com auto-movimentação
consciente (animais e selvagens).

Para explicar os fenômenos da vida criou-se uma teoria que se chamou vitalista.
3

Esta teoria explicava de uma maneira simplista os fenômenos, atribuindo-os a uma


força especial, — a força vital. Esse era, alias, o modo antigo de explicar todos os
fenômenos: — por uma força especial imaginada para o caso. Assim também na
explicação dos complexos fenômenos da vida esse método anti-cientifico dominou
por muito tempo.

16
Todos os fenômenos da vida são fenômenos da mesma
espécie; não existem leis especiais da vida para vários
organismos4.

Tomemos por exemplo o homem. Vemos que está sujeito:


1º- ás leis da mecânica e da física (força de gravidade da
terra, etc.); 2º- ás leis da química (a nutrição de seu
organismo se realiza em obediência as leis da química); 3º-
ás leis especiais da biologia (multiplicação, movimento e
crescimento); 4º- ás leis psico-fisiologicas (associação de
idéias, conceitos, emoções, etc.).

Alem desses fenômenos estudados nas ciências acima


referidas, surge diante de nós uma serie de outros
fenômenos, constantes também e determinados por causas,
ligados á atividade humana na vida em sociedade.

Podem as leis anteriores e disciplinas cientificas, explicar e


investigar cientificamente a atividade humana no seu aspecto
social? Não.

A atividade humana nesta esfera é provocada pela


necessidade de satisfazer as múltiplas e variadas exigências
da natureza humana indispensáveis ao seu desenvolvimento.
Essas são demasiadamente complexas. A atividade de cada
individuo está sempre ligada á de outros e á toda a
sociedade. E esta atividade é que forma a vida social.

Devemos, por conseguinte, descobrir as leis da atividade


humana em sociedade e que não foram estudadas nas
ciências anteriores. Devemos, pois criar uma nova ciência, —
a sociologia, que vem a ser uma das ultimas na hierarquia
das ciências. Seu objeto serão os fenômenos que não podem,
como já vimos, ser explicados pelas leis das ciências que a
precederam.

Desde que a vida humana se desenvolveu em formas superiores, tentou-se


4

determinar as leis a que estão submetidos os fenômenos do consciente e surgiu


assim a psicologia. Mas, como veremos adiante, a psicologia está intimamente
ligada à sociologia e forma parte desta.

17
Lição III: A Teoria Organicista na Sociologia

Na lição anterior estabelecemos a hierarquia das ciências.


Mostramos porque razão as ciências se sucediam nessa escala
e frisamos, aí, os motivos pelos quais deve a sociologia ser
colocada em ultimo lugar. Na presente lição deter-nos-emos
nas principais teorias sociológicas criadas na época de seus
primeiros passos. Veremos como de um ponto de vista geral
foram feitas as primeiras investigações no sentido de dar á
sociologia um caráter cientifico, e, do ponto de vista particular
do materialismo dialético, em que a colocou Marx.

Augusto Comte procurou lançar as bases da sociologia


como ciência. Spencer levou mais adiante esta tentativa, que
no seu desenvolvimento foi recebendo a contribuição de uma
série de outros cientistas.

As varias teorias mais importantes em sociologia, tomadas


de um modo geral, podem ser classificadas em: 1º) as que
procuram as leis gerais da sociologia na psicologia; 2º) as
que vêem essas leis na biologia; 3º) a teoria marxista.

Ao estabelecer a hierarquia das ciências, vimos que a


ciência dos organismos, isto é, da vida, é ainda uma ciência
nova; que dela surgiu mais recentemente ainda a psicologia,
ou melhor, a psicofisiologia, que explica até certo ponto, a
atividade individual. E só após esta é que se pode formar a
ciência denominada sociologia — a ciência da vida humana
em sociedade, da atividade social humana.

Não podemos fazer, aqui, uma ligeira exposição sequer,


das diversas teorias, submetendo-as à critica marxista (houve
cientistas, até, que procuraram as leis da vida social e as leis
da natureza inorgânica nas teorias de Vico, por exemplo).

É evidente que, sendo a sociologia a mais nova de todas


as ciências (e nisso estão todos de acordo), as leis de caráter
mais geral predominantes nas ciências anteriores, devem
servir-lhe de base, mas as leis de caráter propriamente social,
essas devem ser encontradas no próprio seio da vida em
sociedade. Sem nos determos nas varias teorias da

18
sociologia, anteriormente formuladas, analisaremos contudo,
antes de passarmos a Marx, uma das mais importantes — a
teoria organicista, formulada por Kant, desenvolvida
por Spencer e levada ás suas últimas conseqüências por
Worms, Lilienfeld e outros.

Veremos como essa teoria procura e constrói as suas leis


da vida social; deter-nos-emos no seu nítido sentido de
classe.

Que nos ensina essa teoria? Ela examina a sociedade


como se esta fora um organismo animal, e atribui-lhe todas
as leis que presidem o desenvolvimento dos organismos
individuais. Analisa deste ponto de vista o organismo social,
estuda todas as suas partes componentes e respectivas
funções no seio do organismo e, partindo de vista biológica,
estabelece as leis estáticas do organismo social,
determinando as funções de cada uma de suas partes
separadamente. As relações harmônicas entre o organismo e
seus diversos órgãos, constituem nesta teoria, a base tanto
do organismo individual como do organismo social.

Segundo esta teoria o organismo social está dividido


numa serie de partes-grupos, ocupando-se cada um desses
grupos ou partes, de um trabalho especial. Uma se ocupa do
comercio, outra com o trabalho físico, uma terceira com o
estudo das ciências, etc. Cada uma dessas partes ou órgãos
da sociedade executa o seu trabalho próprio, sua função
determinada como organismos individuais.

Deste modo, sucede que existe uma perfeita


correspondência entre os diversos agrupamentos da
sociedade com as suas funções e os diversos órgãos do
organismo individual.

Assim, o Estado corresponde, por exemplo, ao sistema


nervoso; os sábios ao cérebro; a classe comercial á circulação
do sangue; os camponeses e operários industriais aos órgãos
da nutrição; exercito, policia e a justiça – aos órgãos de
proteção ou defesa.

19
Todos esses órgãos sociais estão integrados, unidos ao
organismo social, que não pode absolutamente existir em
qualquer deles.

Toda a atividade social se estancaria, se parasse a função


agrícola ou qualquer outra das funções mais importantes.

Os agrupamentos por si só, estão diferenciados entre si;


cada um tem a sua função determinada e não pode executar
outra.

Como em todo o organismo individual, cada órgão tem a


sua função, também cada agrupamento social com função
própria ocupa um lugar distinto na sociedade e não pode
confundir-se com outro.

A mudança de forma de cada agrupamento social se opera


pela multiplicação e morte de suas diferentes células-
individuos.

Velamos agora como se desenvolve o organismo social,


segundo essa teoria.

Na opinião dos organistas, dá-se o desenvolvimento da


sociedade – organismo social – da mesma forma que em
todos os organismos individuais: o desenvolvimento do
organismo social, medir-se-á pelo nível de integração do
organismo todo, acompanhado pela diferenciação de suas
diversas partes.

Quanto mais os organismos se desenvolvem, tanto mais


se tornam complexos. O fenômeno de integração consiste no
ajustamento de todas as partes distintas ligadas e unidas
num só organismo ativo. Mas ao mesmo tempo se torna mais
pronunciada a diferenciação entre os diversos órgãos, isto é,
cada órgão se adapta exclusivamente a determinada função.
E, segundo as mesmas leis de integração e diferenciação, se
opera a dinâmica do organismo social. Este se torna cada vez
mais complexo e integrado; por isso, modernamente, não
temos mais partes estranhas ao organismo social, mas,
membros internos ajustados de um só corpo – a sociedade
humana – e ao mesmo tempo muito diferenciados entre si.

20
São essas as leis básicas da estática e da dinâmica social
formuladas pela teoria organicista da sociologia.

Onde estão os erros científicos desta teoria?


Primeiramente apontaremos um grande erro metodológico:
ao construirmos a hierarquia das ciências, mostramos que
uma ciência nova só pode ser criada quando no campo da
observação surgem fenômenos novos e mais complexos, que
não podem ser explicados pelas leis das ciências anteriores.
Se se pudessem explicar, por exemplo, os fenômenos da
vida, pelas leis puramente químicas, a biologia não se teria
desenvolvido como ciência à parte e independente.
Permaneceria como parte da química, do mesmo modo que a
óptica e a acústica constituem partes da física. Isso quer dizer
que, se os fenômenos da vida social se realizam e explicam
pelas mesmas leis orgânicas, como os da vida de um
organismo simples (ser vivo), a sociologia não teria então
direito de pretender uma existência á parte e independente,
um lugar distinto na hierarquia das ciências.

Esse é o primeiro e fundamental erro da teoria organicista


em sociologia.

Observamos, porem, o conteúdo social dessa teoria que é,


de um lado, uma teoria do desenvolvimento em geral
(pois Spencer foi o fundador da teoria da “Evolução”) e, de
outro, uma formula justificativa das atuais formas de
“civilização” da vida social, tendo-as como normais,
determinadas e necessárias.

Com efeito, essa teoria traça um perfeito paralelo entre o


desenvolvimento do organismo social, tendo-as como
normais, determinadas e necessárias.

Com efeito, essa teoria traça um perfeito paralelo entre o


desenvolvimento do organismo social individual, desde o
estado embrionário ao mais aperfeiçoado e afirma que toda a
historia da humanidade representa um aperfeiçoamento
gradual da sociedade, uma sempre crescente integração e
estabilização de seus diversos agrupamentos ou órgãos ás
suas funções respectivas e ao organismo todo, e ao mesmo
tempo, uma sempre crescente diferenciação entre esses

21
diversos órgãos. Essa existência dos diversos órgãos ou
agrupamentos, ou melhor, das classes na sociedade, é,
segundo essa teoria, uma coisa natural e cada tentativa para
a modificação das formas sociais, não passará de uma loucura
e resultara improfícua.

O sentido social de classe, dessa teoria, ressalta á vista e


não carece de comentário algum5.

Spencer, como “evolucionista” que era, prediz também o


desenvolvimento futuro da sociedade. Mas segundo sua
opinião a sociedade se desenvolve no sentido de uma
especialização cada vez maior do trabalho, para uma
integração e estabilização cada vez maiores ás suas funções.
O conteúdo de classe nesta perspectiva é ainda mais
acentuado6.

Como deve então ser construída a ciência da sociedade?


De um lado não devem ser praticados erros de método na
investigação. A vida da sociedade se realiza segundo leis que
lhe são próprias, leis que se distinguem das biológicas, como
estas se distinguem das leis da química. Umas leis não
contradizem as outras; pelo contrario, estão entre si em
perfeita harmonia; mas as de caráter geral não podem
explicar a diversidade e complexidade da vida social e de seu
desenvolvimento. Por outro lado deve-se encontrar o caráter
especificamente social nos fenômenos que emanam da
atividade humana e, destarte, descobrir as leis sociais,
estáticas e dinâmicas.

Somente deste modo foi que se construiu a sociologia


marxista.

Quanto á dinâmica da sociedade, Spencer incide no mesmo erro metodológico do


5

que quanto á estática. A sociologia, oriunda da biologia, pode, talvez, ser aplicada
para investigação da vida e desenvolvimento dos seres inferiores. Entretanto a
sociedade humana tem outros aspectos inteiramente novos e peculiares que não
podem ser explicados pelas leis que regem as sociedades dos animais inferiores.
O publicista russo Mikailowsky, criticando esta teoria do “pregresso” de Spencer,
6

mostra, muito acertadamente, que ela não toma em consideração o homem


vivente, nem os seus sentimentos de felicidade, alegria, bem-estar, etc.

22
Lição IV: Os Conceitos Básicos do Idealismo e
Materialismo

Afirmamos, numa das nossas lições anteriores, que a


sociologia marxista é materialista, bem como a sua
correspondente filosofia da historia. E por isso toma ela o
nome de materialismo histórico. Em que consiste a parte
materialista do materialismo histórico? Materialismo histórico
e materialismo filosófico, não são a mesma coisa. É possível
ser-se materialista em filosofia e idealista em historia. Mas o
materialismo histórico está intimamente ligado ao
materialismo filosófico e dele extrai sua seiva histórica. Para
compreender o materialismo histórico deve-se, portanto, ter
ao menos uma compreensão geral do materialismo filosófico.

O materialismo, em geral, se contrapõe ao idealismo; não


se pode realmente compreender o materialismo sem conhecer
o seu oposto — o idealismo. Para se responder à pergunta,
sobre o que vêm a ser materialismo e idealismo, não
colocaremos a questão tão metafisicamente, do seguinte
modo: “qual é a primeira causa de tudo o que existe, a
matéria ou o espírito?”, se há principio e fim em tudo o que
existe. Formularemos a questão um tanto diferentemente. No
mundo em existência que concebemos, sentimos
primeiramente a nossa própria existência que se compõe em
certo sentido de duas partes: 1º) vemos a nós mesmos como
um corpo: — nosso corpo material; 2º) sentimos a nós
mesmos como elemento de manifestações internas: —
pensar, sentir, saber. São esses os dois momentos principais
que cada “eu” sente em sua própria existência. Por isso, ao
construirmos uma escola filosófica, temos diante de nós dois
caminhos a seguir: 1º, a escola materialista afirmando que
em todo o existente está a matéria, o corpo; que tudo na
natureza é objeto da percepção dos nossos sentidos e que o
pensamento humano é o resultado da matéria — o pensar é
atributo da matéria, como todos os outros, ou 2º), a escola
idealista que diz sentirmos primeiramente a existência das
nossas emoções, dos nossos pensamentos e que o corpo, — a
matéria existe tão somente porque o “eu”, o nosso
pensamento concebe. A pedra, por exemplo, que não se
concebe a si própria, não tem existência. Percebemos um
23
fenômeno com os nossos órgãos, vemo-lo com os nossos
olhos, mas o ato em si de ver, o fato como tal, não é
material, não pode ser visto nem tocado. Esta escola toma
por isto como base o espírito, o pensamento. A matéria é por
ela tomada como um acidente ou como corporificação do
espírito.

A que pode conduzir e a que nos levaram o materialismo e


o idealismo em seu desenvolvimento histórico?

Desde que verificamos ser o corpo, a matéria, o objetivo,


o que realmente existe, devemos estudá-lo antes de tudo,
conhecer suas prioridades e só assim é que poderemos
conhecer o mundo. O materialismo tornou-se assim um
propulsor do desenvolvimento das ciências, graças ao fato de
construir as suas concepções sobre a matéria7.

Os idealistas, ao contrario, diziam que se devia antes de


tudo investigar as manifestações internas, — o espírito, o
fator básico de tudo o que existe; que se pode apresentar até
sob a forma de matéria. Mas o espírito é algo que não se
pode apreender, que não se pode investigar. O espírito, como
tal, não pode estar sujeito a força alguma, e, pelo seu
conteúdo, só pode ser explicado espiritualmente ou
divinamente. O desenvolvimento histórico dessas duas
doutrinas deu-se de tal forma, que o materialismo cresceu e
se desenvolveu ao lado da ciência, ao passo que o idealismo
achava-se quase sempre ligado á religião, ou se entretinha
com a metafísica especulativa, divagando sempre nas esferas
da metafísica e da teologia.

O materialismo filosófico encontrou em seu percurso uma


série de dificuldades. Porque como escola teve muitos
defeitos. Enquanto, por exemplo, o materialismo afirmava
que a base de tudo o que existe é a matéria e procurava
estudá-la profundamente, foi ele um grande auxiliar do
desenvolvimento das ciências, mas desde que via na matéria
um elemento imutável, de formas definitivas e eternas,

Até mesmo os materialistas, que admitem ter sido a matéria criada


7

originariamente por uma força sobrenatural pensavam ter sido criada desde logo
com certas propriedades, as quais lhe deram durante seu desenvolvimento a força
de um fator criador independente.

24
tropeçava forçosamente, com o tal ponto de vista, num
entrave á verdadeira concepção da natureza.

Ao materialismo dessa época, era incompreensível o ponto


de vista da evolução, de desenvolvimento, ou, em outros
termos, o conceito de um processus. O idealismo, ao
contrario, tinha neste ponto uma vantagem sobre aquele.
Reconhecendo que tudo é espírito, isto é, algo que não
podemos ver, cujo conteúdo não podemos apreender, algo
que existe e não existe ao mesmo tempo, que cria sempre
novas formas, o idealismo, com esta concepção, não podia
ser estático, tinha, pois, tendências a chegar à idéia de
evolução. O idealismo tentava compreender não só o que
existe, mas também o que vem a existir, não só o que é, mas
também o que vem a ser. Segundo seu conteúdo o idealismo
tinha forçosamente de chegar à idéia de desenvolvimento, de
evolução e de processus; delas no percurso do
desenvolvimento da filosofia, devia-se forçosamente chegar a
uma síntese entre os elementos fortes do materialismo e dos
elementos sólidos do idealismo. O idealismo tinha seu defeito
peculiar, que era o de não se basear na matéria, — sobre o
que existe, e procurar apenas as leis gerais do pensamento
humano. Ele construía sobre si mesmo, estava longe da
experiência. O materialismo, ao contrario, estava
intimamente ligado ao que existe, — com a natureza e com
experiência. Mas a natureza e a experiência, ele as
compreendia estaticamente, como algo que existisse sempre
com a mesma forma, eternamente. As idéias de criação e de
influencia de um fenômeno sobre o outro, eram-lhe
estranhas. O materialismo não possuía asas que lhe
permitissem voar e não podia penetrar o intimo da natureza.
O idealismo, ao contrario, procurava encontrar e penetrar o
intimo da natureza, mas achava-se suspenso no ar, sem base
em que se apoiar.

No transcurso do seu desenvolvimento, essas duas


escolas se reuniram em certa medida e formaram uma nova
filosofia cientifica — o materialismo moderno, que encerra em
si um ponto de vista monista, unitário, visto que reúne numa
concepção única, — espírito e corpo.

25
Lição V: O Materialismo Francês e a Filosofia Crítica de
Kant

Caracterizamos a diferença entre o idealismo e o


materialismo em sua formação e desenvolvimento histórico.
Apontamos seus defeitos e virtudes; vimos aonde ambos
podiam levar e onde chegaram. Agora deter-nos-emos no
desenvolvimento do materialismo e idealismo nos últimos
tempos: — no materialismo do século XVIII e no idealismo da
filosofia critica de Kant.

Os materialistas do século XVIII, que já estavam mais


ligados à ciência progressista e já tinham atrás de si mais
experiências que os materialistas das gerações passadas, já
se detinham mais no estudo das leis da natureza, e a idéia de
que tudo obedece a leis começou a dominar na filosofia
materialista. As ciências naturais já tinham então alcançado
um certo grau no seu desenvolvimento, e o materialismo já
tinha alguma coisa em que se basear. Uma vez determinado
que todos os fenômenos naturais se realizam obedecendo a
certas leis, o materialismo chegou à conclusão de que o
homem e suas atividades devem também ser o resultado de
outras tantas leis naturais. Partindo desse principio, o
materialismo francês do século XVIII criticou asperamente a
concepção teológica do mundo, e provocou deste modo uma
seria revolução nas idéias das camadas mais intelectuais da
sociedade; tornou-se a filosofia da nova classe, — a
burguesia, que lutava para arrancar o poder das mãos da
classe feudal, sendo esta apoiada pelo clero, ambas as quais
perturbavam o desenvolvimento da ciência.

Firmada assim a idéia, ou principio do determinismo


(obediência as leis), o materialismo procurou estabelecer as
mesmas bases para a vida social, à semelhança do que
observará nos fenômenos naturais.

Para materialistas como Helvetius e Diderot, por exemplo,


a idéia de necessidade histórica já era evidente. Para eles
devia ser formulada uma outra questão: — seria possível
modificar as formas sociais existentes? Poderemos encontrar
os meios de melhorar a vida?

26
O materialismo que, como vimos, chegou ao ponto de
vista do determinismo, era no entanto ainda um materialismo
naturista. Os materialistas franceses tomando a natureza e
seus fenômenos como necessidade, entendiam que as leis,
segundo as quais se operam os fenômenos, devem ser
eternas, como a própria natureza. Do mesmo modo, no que
concerne à sociedade humana, entendiam que a vida deve aí
realizar-se segundo leis internas e imutáveis, por suporem
imutáveis e eternas as relações entre os fenômenos aí
observados. Quais eram, porem, essas leis, é que não
sabiam.

A história nos mostra que na vida social sempre se


operam transformações. Mas onde está a causa dessas
transformações e mudanças? E ainda mais: as formas
existentes da vida social, não são por certo as que seriam de
desejar; a sociedade não pode sem deve ficar assim como
está; deve ser modificada! No entanto, foi a questão
formulada deste modo: — como se pode e se deve modificá-
la? Para isso foram dadas duas soluções: a primeira, diz: —
sendo o homem de natureza boa e aspirando sempre o bem,
o desvio do bem caminho, não é senão o resultado de ter-se
o homem afastado de seu estado natural (J.J. Rousseau),
tornando-se “civilizado”. Deve-se, portanto, fazer voltar o
homem aquele estado natural, para se eliminar essa má
organização. A segunda, afirma: a sociedade humana evolui;
portanto, este estado de coisas pode ser mudado. Mas como?
Pela educação. A sociedade humana é composta de indivíduos
e, querendo, pode-se mudar a sociedade toda. Deve-se, para
isso, educar os indivíduos. O materialismo colocou-se, em tais
condições, num ponto de vista puramente utopista. Ignorando
as leis do desenvolvimento da sociedade, teve que se
conservar nessa atitude. O historiador da Restauração fez um
certo progresso nesse sentido. Tendo atrás de si a
tempestuosa Revolução Francesa, chegou á questão da
atuação das condições externas, a questão do meio, da qual
depende a atividade humana. Mas estando no ponto de vista
de que as variações do meio dependem da natureza humana
ou das opiniões humanas, recaiu o historiador num circulo
vicioso. Chegando assim á questão do meio, não puderam,
todavia explicar as variações que se operam na sociedade.

27
***

Lancemos agora um rápido golpe de vista sobre a filosofia


dos últimos tempos e passemos em seguida a Kant. O
idealismo teve na historia da filosofia muitas formas: os
filósofos mais importantes até o século XIX, como
Decartes, Spinoza e Leibnitz são considerados idealistas; o
seu idealismo, porem, já está de certa forma libertado da
teologia. Na realidade, os três colaboraram muito na fundação
da ciência moderna. Decartes foi o primeiro, que na moderna
filosofia apontou o determinismo matematicamente exato na
natureza. O panteísmo de Spinoza está muito próximo do
materialismo cientifico da nossa época. A natureza e Deus são
para ele sinônimos; o pensamento e a matéria são para ele
atributos da mesma substancia — Deus ou a natureza. No
campo das matemáticas e da ciência do espírito humano
(psicologia), Leibnitz deu um grande passo para a frente.

Numa direção bem diversa seguiram os filósofos ingleses


do século XVII e XVIII. Eles tomaram por base do nosso
saber a experiência. A experiência é o resultado dos nossos
sentidos; estes são por conseguinte a base do nosso saber;
deste modo chegaram eles ao sensualismo, que está
naturalmente mais próximo ao materialismo. Mas, por outro
lado, sendo os sentidos a única base do nosso saber,
conhecemos então, somente aquilo que os nossos sentidos
nos fornecem. Assim chegamos ao fenomenalismo (isto é,
sabemos ou conhecemos somente os fenômenos, aquilo que
apreendemos com os nossos sentidos, mas não aquilo que é
em si e por si). Mas aí nasce a questão da relação entre a
apreensão das coisas, e as próprias coisas. Forma-se o
terreno para o ceptismo (duvidar do nosso próprio
conhecimento). Assim a filosofia inglesa no seu
desenvolvimento, chegou ao ceptismo de Hume, isto é, á
duvida na possibilidade e na certeza da ciência.

Aqui é que começa a filosofia critica de Kant. De um lado,


diz Kant, existe a natureza objetiva (externa), e, de outro,
existe o pensamento humano (o espírito), que investiga a
natureza. Pergunta ele: qual a relação existente entre a
natureza e aquele que a estuda; — como se manifesta essa
relação? Como se realiza a relação entre o “ser” da natureza
28
e o “consciente”: — o saber, o conhecer? E ele responde, — a
natureza nós a conhecemos: 1º, graças aos nossos sentidos,
com os quais percebemos os fenômenos, as coisas e os
objetos, os sentidos, no entanto, só nos fornecem matéria
prima; 2º, esta matéria prima que conseguimos, graças á
percepção dos nossos sentidos, é elaborada, construída e
organizada pelo espírito humano. Na verdade, continua ele,
percebemos a natureza porquanto a sentimos; mas, quando a
investigamos, fazemos aqui outro trabalho: o do espírito.
Para estudarmos uma coisa devemos observá-la, reunir
certas partes, destacar outras, abstrair, etc. Resumindo: o
nosso espírito deve aqui desenvolver uma atividade sem a
qual o fenômeno não pode ser estudado, isto é, conhecido. Se
assim é, apresenta-se-nos uma nova questão (independente
da hegemonia do espírito ou da matéria) sobre as relações
entre o “consciente” e o “ser”.

Essa questão deve, em certo sentido, ser explicada; não


podemos negar o fato de que a natureza, isto é, a totalidade
dos fenômenos, os objetos, são percebidos pelos nossos
sentidos, pelo nosso espírito. Temos por isso a natureza como
nos apresenta e é para nós, isto é, como a sentimos. Mas,
surge aqui uma pergunta: como é realmente a natureza em si
e por si mesma? Ou, em outros termos: o que percebemos da
natureza e o que a ela adicionamos ou levamos de nós pelos
sentidos? Kant chegou assim a investigar toda a atividade do
espírito humano no processo do conhecimento, do saber, da
apreensão dos fenômenos e das coisas, para determinar qual
o papel exercido pelo espírito no conhecimento.

Kant destaca, de um lado, as formas de nossa


imaginação, e de outro, as categorias do nosso espírito.

Há duas formas principais na percepção das coisas, em


nosso pensamento: 1º, o espaço, o lugar: tudo o que
percebemos deve forçosamente ocupar um lugar; 2º, o
tempo: — tudo tem de acontecer em determinado momento.
Essas duas formas aprioristicas (que existe no espírito antes
da sensação) do nosso espírito, são condições preexistentes a

29
cada experiência8. Diz ainda Kant: não podemos imaginar
qualquer coisa fora do espaço e do tempo. O espaço e o
tempo não são por nós tomados dos fenômenos das coisas;
são por nós introduzidos nos fenômenos e nas coisas. Eles
não existem fora do nosso espírito. Para imaginarmos uma
coisa deve o nosso espírito colocá-la nessas duas formas
gerais.

Não nos deteremos sobre as varias categorias do nosso


pensamento estabelecidas por Kant. Tomaremos apenas a
mais importante: — a categoria da causalidade. Sendo o
espaço e o tempo formas gerais aprioristicas de nossa
imaginação, assim também, é a causalidade uma categoria
geral, aprioristica, do nosso pensamento. Em nosso
pensamento, nada pode realizar-se sem uma causa. Para se
realizar um fenômeno, deve haver uma causa que determine.
Tomamos todos os fenômenos como um encadeia mento de
causas e efeitos, uma cadeia, cujo principio não podemos
encontrar.

Segundo Kant, a causalidade não é resultado de nossa


experiência; ela é uma categoria geral e necessária do nosso
pensamento; ela esta em nós, em nosso espírito, antes de
cada experiência – fomos nós que a introduzimos na
experiência. As relações entre o “saber” e o “ser”, são, desta
forma, as seguintes: — o “ser” é um caos, o “saber” é um
caos formado por nosso espírito. O “ser”, é a “coisa em si”, é
o numero, que, como tal, não podemos conhecer. O “saber”,
é a coisa como se nos apresenta: — o fenômeno. Devemos
por de lado a “coisa em si”, e ocupar-nos somente com a
coisa, como se nos apresenta.

O criticismo de Kant deu, não há duvida, um grande


impulso á ciência. Kant determinou as condições da
investigação cientifica, do “saber”, apontando o caminho certo
que a ciência deveria seguir. Por outro lado, deu uma nova
orientação á filosofia. No lugar da metafísica, colocou ele a
Devemos observar que o grande desenvolvimento da psicifisiologia nos deu a
8

possibilidade de analisar as duas formas principais (de Kant) e de encontrar os seus


elementos componentes. Também se podem tomá-los como resultado da
experiência, não obstante a sua generalização. No que concerne ao seu caráter
absoluto, dele não há mais vestígio após as novas descobertas determinadas pela
teoria de Einstein.

30
gnosiologia — o estudo das condições e limites do nosso
saber, e que representou então um grande passo.

Kant foi, no entanto, no fundo, um idealista. A natureza é


tal, porque assim a percebemos, diz ele. A natureza é para
nós o resultado do nosso saber, da nossa organização
espiritual, da nossa percepção. A natureza, que temos diante
de nós é, assim, a natureza do nosso espírito. Porque este a
apreendeu pela organização do caos, através das formas de
espaço e tempo e pela categoria da causalidade.

Lição VI: A Filosofia Após Kant-Fichte, Hegel e Feuerbach

Na presente lição, tocaremos ligeiramente no


desenvolvimento do idealismo alemão e na formação do
materialismo dialético.

O desenvolvimento das idéias na filosofia, após Kant,


tomou duas direções: por um lado, com Fichte, tomando o
caráter de um idealismo subjetivo, que foi levado à sua
conclusão lógica até o solipsismo (afirmação de que só existe
o “eu” e seu mundo interno) e, por outro, com Hegel,
transformando-se num idealismo objetivo, na filosofia da
idéia absoluta, de Hegel. Na verdade, a filosofia da “coisa em
si” de Kant, nada pode explicar. E assim como o próprio Kant,
em sua critica da razão pratica, tentou penetrar a “coisa em
si” e descobrir seu segredo, os filósofos seus continuadores
colocaram o dualismo de Kant de lado e voltaram-se para o
idealismo puro, filtrado pelo criticismo.

A filosofia de Hegel deu um grande passo com o fato de


estudar o espírito, de um modo geral: — a idéia absoluta, —
aproximando-se muito, por este meio, da idéia de evolução.
Em sua dialética desvendou Hegel certas leis da evolução,
que até então não haviam sido descobertas. Reconhecia-se
então, apenas o fato da mutabilidade dos fenômenos, mas
não se conheciam as leis de sua evolução. Não se
compreendia o papel das contradições na evolução da
natureza, do homem e da sociedade. Investigando a idéia
absoluta e sua evolução, descobriu Hegel, que ao analisarmos
31
bem um conceito notamos que este conceito guarda em si o
principio de sua negação — sua contradição —, e assim esse
conceito se desenvolve passando ao seu oposto. Este conceito
da contradição transportamo-lo ao fenômeno, quando
queremos estudá-lo e compreende-lo. Tomando, por
exemplo, o conceito de “ser” ou existência, para determiná-
lo, devemos contrapor-lhe o “não ser”. Em “ser” já deve
estar, portanto, contido também o “não ser”, por ele
compreendido. O oposto dos dois será porem o “vir a ser”,
que contem em si, dum lado, o ser, no sentido de que o “vir a
ser” indica que “será”, e por outro lado, o “não ser”,
porquanto ainda não o é. Assim entendia Hegel a marcha da
evolução, na forma de tese, antítese e síntese.

A que nos levou essa formula, o assim chamado método


dialético? Levou-nos ao seguinte: investigando-se cada
fenômeno como evolução da idéia, deve-se estudá-lo não só
em seu “ser”, mas também em seu “não ser”, em seu “vir a
ser”, em suas novas formas, isto quer dizer também que os
fenômenos na natureza evoluem, segundo as leis da dialética.
Os fenômenos sociais também devem ser observados
segundo esse critério. O próprio Hegel explica a queda da
Lacedemonia pelas suas contradições, isto é, sua lei da
transformação da quantidade em qualidade, deu um golpe de
morte no evolucionismo vulgar e criou uma base cientifica
para a teoria dos “saltos” na natureza e na sociedade. Sua
filosofia, porem, estava de cabeça para baixo. A realidade,
segundo ele, não é mais que a sombra da idéia; não é a
natureza, a vida, que se desenvolve, mas sim, as idéias. A
filosofia em tais condições deveria ser posta sobre os pés. E
isso foi o que fizeram os discípulos de Hegel.

Primeiramente com Feuerbach, o materialismo tentou


novamente ocupar o lugar saliente na filosofia. O
materialismo de Feuerbach é, entretanto, antropológico. A
matéria, segundo ele, é o organismo humano; a idéia — a
propriedade desse organismo, isto é, o pensamento, o
cérebro. O pensar é o reflexo da vida do homem, seus
sofrimentos, sua alegrias, seus receios e esperanças. A idéia
absoluta, de Hegel, transforma-se assim numa idéia humana.
De abstrata, ela se torna concreta. Entretanto,
para Feuerbach, o homem mesmo, era abstrato e
32
independente de espaço e de tempo. Quer a idéia, quer a
matéria foram para Feuerbach humanizadas. Entretanto, o
homem mesmo, não foi por ele concretizado nem
historicamente compreendido. Seu materialismo não sai dos
limites da filosofia naturista, não se estende pela historia da
humanidade. No materialismo de Feuerbach não se descobre
também a dialética de Hegel. A grande tarefa, de fazer
penetrar no materialismo, o espírito dialético de Hegel e
estendê-lo também á historia da humanidade e á vida social,
somente a puderam realizar Marx e Engels.

Devemos apontar outros merecimentos da filosofia


idealista alemã. Ela esclareceu a questão da contradição entre
a liberdade e a necessidade na vida social. Se a idéia de
determinismo (não há efeito sem causa), de necessidade
lógica, tomou aos poucos lugar nas ciências naturais, a
questão foi muito mais difícil nas ciências sociais. Aqui
tropeçou-se, por um lado, com a questão da liberdade e, por
outro, na de fatalidade.

Sabemos que a questão de necessidade e liberdade foi


formulada pelos materialistas franceses. Mas eles caiam em
um circulo vicioso. A atividade humana é, segundo eles, o
resultado do meio e o meio o resultado das opiniões. O meio
se transforma graças às modificações que se operam nas
opiniões. Tomando por base as opiniões, a atividade do
homem é livre; tomando, porem, por base o meio, essa
atividade deve, então, ser uma necessidade, isto é,
determinada pelo meio. Uma das tarefas mais difíceis era,
pois, a união de dois conceitos: — necessidade e liberdade. A
necessidade (a determinação por causas) e a liberdade
(atividade livre) não devem opor-se. Ao contrario, uma deve
ser complemento da outra. O socialismo, por exemplo, é
determinado, ele deve chegar; porem, somente virá, pela
atividade humana; contem, portanto a liberdade (atividade
humana).

33
A atividade humana — a liberdade, está necessariamente
contida na determinação histórica9.

Como, porem, se formou da tese e da antítese — do


materialismo francês e do idealismo de Hegel, a síntese – o
materialismo dialético?

Nos materialistas anteriores, o meio era a reunião de


todas as opiniões existentes na sociedade. E mesmo quando
deparavam com interesses materiais, consideravam
igualmente a luta entre esses interesses como o resultado das
opiniões. Ficaram sendo, portanto, idealistas, no sentido de
compreender e explicar a historia. Não descobriram a matéria
da vida social. Essa matéria, isto é, essa realidade, foi
descoberta pelo materialismo histórico. Foi este que deu ao
meio um sentido próprio.

Lição VII: Os Fundamentos do Materialismo Histórico

Vimos na ultima preleção como os materialistas e


historiadores franceses não puderam definir o que é o “meio”.

Tentemos analisar o meio.

Que vemos nele? — Vemos diante de nós homens que


mantém relações entre si, e perguntamos: — qual será a
causa principal dessas relações e em que consiste este
entrelaçamento de relações ente os homens? Devemos tomar
aqui o sentido mais elementar da vida social e talvez
encontremos aí a matéria de sua evolução.

Para existir, deve o homem desempenhar uma certa


atividade em relação á natureza exterior. Ele deve adaptar-se
á natureza para poder viver e não ser por ela aniquilado. E
essa adaptação se realiza graças á atividade do homem. Mas
só na adaptação não poderemos encontrar o conteúdo, o
característico da vida social humana. Uma adaptação á

Tocamos aqui, somente de passagem, a questão da liberdade e determinismo na


9

vida social. Mais detalhadamente, examinaremos a questão numa das lições


seguintes.

34
natureza encontramos também nos seres inferiores. Na
simples adaptação há, portanto, pouco de humano, menos
ainda de social. Que é então o que distingue a adaptação
humana á natureza? Em primeiro lugar a forma social. Essa
adaptação se realiza não em forma individual; o homem se
adapta á natureza, socialmente. Duas formas de atividade
humana estão ligadas á sua adaptação à natureza: 1º, uma
atividade que serve diretamente à satisfação das
necessidades de sua existência (nutrição, reprodução). Para
satisfazer suas necessidades desta natureza precisa o homem
exercer certa atividade (por exemplo, comer, beber, respirar,
manter relações sexuais, etc.), mas essas atividades são
provocadas diretamente pelas proprias necessidades de
momento. 2º, há uma outra atividade que serve
indiretamente á satisfação das necessidades (cozinhar para
comer, puxar água para beber, colher frutas para comer,
etc.). A atividade do homem na primeira forma, serve-lhe
para satisfazer diretamente suas necessidades, só pode ser
útil ao individuo que exerce essa atividade (não se pode
comer por outros). A atividade da segunda forma (satisfazer
indiretamente suas necessidades) pode ser também útil a
outros (pode-se colher frutas para outros, pode-se trazer
água não só para si, como também para que outros bebam).
Essa atividade do homem, que serve diretamente a satisfazer
suas necessidades, tem uma característica especial, que
consiste na possibilidade de se tornar social. A essa atividade,
em geral, denominamos: trabalho.

Analisemos mais detidamente o que acabamos de referir.


Trabalho, isto é, não só atividade direta, mas também
indireta, notamos também em certa proporção, nos seres
inferiores. O que, pois, distingue o trabalho humano do
trabalho dos seres inferiores? Tentou-se definir o homem
como o animal racional (homo sapiens); mas, sendo a razão
no homem, o resultado de um desenvolvimento muito
adiantado, não pode ela servir de característica para a
definição do homem. Muito mais certo é a definição dada
por Franklin: “o homem é um ser que faz e usa
instrumentos”.

O trabalho de fazer e usar instrumentos é sempre uma


atividade indireta. Mais ainda, esse trabalho é uma condição
35
necessária ao desenvolvimento do próprio trabalho. Nos seres
inferiores, essa atividade não desempenha, por isso, grande
papel. Eles não têm as possibilidades de se desenvolver. No
homem, ao contrario, a atividade, o trabalho, começa a
desempenhar o papel mais importante em sua vida. O
instrumento é, portanto, o momento principal que distingue a
atividade do homem, seu trabalho, de todos os outros seres
vivos. A matéria, isto é, a base concreta da sociedade,
consistirá, portanto, no trabalho para satisfazer as
necessidades humanas, nas quais o instrumento, como meio
de adaptação á natureza, desempenhará o papel principal.

A totalidade dos instrumentos que o homem cria no


processo de sua adaptação à natureza é chamada técnica. A
técnica pode também ser chamada de meio artificial. O
homem se adapta ao meio natural criando um meio artificial.
No meio artificial esta corporificada a matéria da vida social.

Vejamos agora como se opera o desenvolvimento da


sociedade humana. Os seres inferiores que se adaptam à
natureza pelos seus órgãos naturais, estão em certo sentido,
limitados pela construção esses mesmos órgãos, pelo seu
estado fisiológico. O seu desenvolvimento opera lentamente
levando milhares de anos para apresentar pequenas
modificações, aumentando muito pouco suas qualidades de
adaptação.

Os instrumentos, que podem ser considerados como


órgãos artificiais, têm a grande virtude de terem um
desenvolvimento quase ilimitado. Em todo caso, os
instrumentos se tornam quase independentes do organismo
humano e são de possibilidades quase ilimitadas, como as
forças da natureza. A criação de instrumentos mais
aperfeiçoados depende da correspondente exploração da
natureza, cujas riquezas são inesgotáveis. Podemos ver,
portanto, qual o papel que deviam e podiam exercer os
instrumentos na historia da humanidade. Os instrumentos
tornam possível a exploração da natureza com menos
dispêndio de energias, conseguindo deste modo resultados
mais favoráveis e assim permitindo ao homem adaptar-se
cada vez mais ao meio.

36
A historia nos mostra que com o desenvolvimento do
homem, ele adquire cada vez mais necessidades e novas
qualidades. Surge então a questão: qual a origem dessas
novas necessidades e dessas novas qualidades? Onde devam
ser procuradas as causas do seu aparecimento? Bem
entendido, as causas do aparecimento dessas novas
necessidades cada vez mais diversas não podem ser
encontradas no próprio homem, mas sim fora dele, isto é, na
influencia exercida sobre ele pela natureza que o circunda,
pelo meio. A própria natureza, muda, porem, muito
lentamente. Se a evolução do homem dependesse somente
da mutação do meio natural, no qual ele se encontra, essa
evolução seria tão lenta que se tornaria quase imperceptível.
Nas primeiras etapas do desenvolvimento humano notamos
quão lentamente se opera essa evolução. O meio natural age
pouco sobre o desenvolvimento das necessidades do homem,
sobre o aperfeiçoamento de suas habilidades, sobre a
mudança de sua natureza.

A causa, por conseguinte, só pode ser encontrada no meio


artificial, que cresce vertiginosamente.

A causa do desenvolvimento humano, deve pois, estar na


adaptação do homem ao meio natural, na atividade indireta
do homem que é o trabalho, na criação de instrumentos que
é a técnica, no meio artificial que cresce e se expande sem
limites.

Estabelecemos, portanto, que o trabalho e a técnica


formam a base da vida social e da evolução humana.

Lição VIII: O Papel e a Influência da Técnica na Evolução


da Sociedade

Na lição anterior mostramos o meio artificial que o homem


cria no processo de sua adaptação à natureza. O conteúdo,
isto é, a definição do meio encontramo-lo na técnica (meio
artificial), que é a matéria ou base concreta da vida social.
Devemos ver agora qual o valor da técnica em relação à
sociedade. Qual o papel de seu desenvolvimento na vida da
37
sociedade e quais as relações entre os homens, no processo
da criação dos instrumentos. Mas antes, deter-nos-emos em
certos fenômenos ideológicos como a linguagem, por
exemplo, que é uma condição pre-estabelecida para o
aparecimento da ciência da qual depende a técnica e seu
desenvolvimento e que é um dos meios mais importantes e
condição preliminar de quaisquer relações entre os homens;
veremos então, se estes fenômenos importantes que exercem
um papel tão preponderante na evolução da sociedade, não
são como tais, o resultado da evolução da técnica, isto é, dos
instrumentos de trabalho.

Sabemos que a origem da linguagem está relacionada


com o trabalho (trabalho segundo a definição dada na lição
anterior); a linguagem segundo ensina a moderna ciência das
línguas (teoria de Noiré) surgiu no processo do trabalho —
das exclamações e vozes do trabalho, etc. O desenvolvimento
da linguagem pode dar-se devido ao processo de
generalização e abstração dos conceitos (são estes os
fundamentos da origem e formação dos idiomas). O processo,
porem, esta intimamente ligado com o trabalho de criar
instrumentos, porque este trabalho é um trabalho indireto, no
qual o homem não vê imediatamente o fruto de sua
atividade, mas como parte distinta, desempenha um papel
preponderante.

O homem, nos primeiros tempos, não destacava a


natureza circundante, de si próprio. Ele não via nela um
objeto e em si um sujeito destacado. Foi necessário, para
isso, um largo caminho de abstração e distinção entre si e o
mundo exterior; um processo de atividade multiforme, para
serem criados no homem esses dois conceitos abstratos de
sujeito e objeto. E nesse processo os instrumentos deviam ter
desempenhado um grande papel.

Os instrumentos, que servem ao homem para agir sobre a


natureza, são na realidade colocados entre esta e aquele. São
arrancados da natureza para sobre ela agirem. Os
instrumentos são assim, um elo entre o homem e a natureza.
E devido a isso pode o homem formar o conceito de “si” e do
mundo exterior.

38
Vemos, portanto que até a gênese, a raiz de conceito tão
elementar, somos também obrigados a procurar nos
instrumentos — na técnica. E quando o homem já pode ter
um conceito do “si” e do “não eu”, também pode formar o
conceito de outras coisas distintas e assim tornou-se possível
o continuo desenvolvimento da linguagem. A linguagem agiu
por sua vez sobre o processo do pensar. Ela quase obrigou o
homem a desenvolver o processo de generalizar e abstrair —
a formar conceitos gerais (seria impossível ao homem dar
nomes distintos a todos os fenômenos da natureza).

Aqui porem devemos deter-nos num outro ponto: a


linguagem, a grafia e a ciência, só podem desenvolver-se
vivendo o homem em sociedade. Se assim não sucedesse,
não precisaria o homem de expressar seus desejos. E não se
desenvolveriam então nem a linguagem, nem a grafia, nem a
ciência. Vemos portanto que os dois momentos — a técnica e
a vida em sociedade desempenham o papel principal na
evolução humana. Isoladamente, nenhum desses dois fatores
pode existir; a técnica se desenvolve pela divisão do trabalho
e paralelamente ao desenvolvimento da ciência. Porem, esses
dois momentos, quer a divisão do trabalho, quer a ciência,
somente podem existir e se desenvolver na sociedade; por
sua vez, uma vida social sem o desenvolvimento da técnica é
impossível.

Quando falarmos das formas da técnica como base da


sociedade, temos por um lado coisas puramente materiais
relacionadas com as leis físicas, químicas e outras leis da
matéria; por outro lado desde que essas formas estão
sujeitas á sociedade, elas dependem da própria sociedade,
das relações entabuladas pelos homens entre si, no processo
do trabalho.

Quando, na lição anterior, estabelecemos que um


fenômeno social deve conter em si algo novo, alem dos
caracteres físicos, químicos e biológicos anexos, não
apontamos então esse novo caráter de que se acha acrescido
dito fenômeno. Agora porem já podemos encontrar o
conteúdo desse novo aspecto ou caráter. Esse caráter
especifico, isto é, o conteúdo do fenômeno social consiste em
que, como tal, deve ser a conseqüência das relações entre os
39
homens que se formam no processo da atividade indireta,
para a satisfação das necessidades humanas, no trabalho
social.

O homem vivendo em sociedade, trabalha (atividade


indireta) para satisfazer suas múltiplas necessidades. No
processo desse trabalho, porquanto é realizado em sociedade,
os homens são levados a manter certas relações uns com os
outros. Essas relações entabuladas pelos homens, durante o
trabalho (atividade indireta, que por sua natureza pode
tornar-se social), formam o conteúdo ou característico dos
fenômenos sociais10.

Uma vez que desejamos conhecer as leis da sociedade


humana e de sua evolução (estética e dinâmica), devemos
estudar seu caráter próprio, — a técnica; não sua forma
geral-fisica e morta, — mecânica, etc., mas em sua forma
viva, em seu conteúdo e papel social.

Na base da técnica, nascem certas relações de produção,


que por sua vez provocam varias, multiformes e complexas
relações sociais. Todos os outros fenômenos sociais nascem
destas ultimas relações. Podemos expressar o mesmo
pensamento em outras palavras e formular por outro modo a
idéia principal do materialismo histórico.

Resumindo: — O homem, para viver, para existir, deve


adaptar-se á natureza; agir sobre ela e adaptá-la a si mesmo.
No processo de adaptação á natureza, forma o homem um
meio artificial. Esse meio artificial é que forma a base da
sociedade humana e de sua evolução. O meio artificial é por
si mesmo uma coisa material (é composto de elementos da
natureza material), mas está impregnado da atividade
humana e como tal se torna a base da vida social.

O fundamento sobre o qual se constrói toda a vida social é


portanto a atividade social do homem, isto é, o trabalho
humano e as relações entabuladas entre os homens no
processo dessa atividade. A essas relações chamamos

A atividade indireta foi no inicio, social. A primeira forma de relações sociais foi a
10

primeira colaboração, tornando-se mais tarde mais complexa. Surge, então, a


divisão do trabalho e a vida social.

40
relações econômicas e delas é que nascem todas as outras
relações. Tomando por exemplo uma sociedade desenvolvida
vemos que o trabalho aí é representado por um processo
largamente ramificado; e investigando sua evolução devemos
tomar o trabalho em sua totalidade e em suas variadas
formas. Compreende-se que, quando desejamos conhecer um
fenômeno social complexo, devemos tomar em consideração
todas as diferentes relações existentes na sociedade. Só
então poderemos compreender, por exemplo, uma revolução
que se opera no momento em que forças produtivas
ultrapassam as relações ou formas sociais existentes se
levarmos em conta a totalidade das diferentes relações
existentes na sociedade, e que se acham já desligadas do
processo da produção11.

Observamos agora e vejamos como nasce a sociedade


como tal, com todo as suas formas, isto é, procuremos
mostrar de um modo concreto como a evolução da técnica
determina todos esses fenômenos sociais e formas varias da
vida social e como as modifica.

Até aqui observamos as coisas de um modo geral.


Estabelecemos a ligação entre a técnica e as relações
econômicas. Agora devemos concretizar e mostrar como a
estrutura da sociedade, isto é, a sumula das relações que
nascem entre os homens no processo do trabalho (relações
de produção), depende do meio artificial; 1º, que as varias
partes da sociedade e as formas que adquire têm como sua

Os “críticos” de Marx ridicularizaram a teoria do materialismo histórico,


11

mostrando seu paradoxo, no sentido de que fenômenos tais como filosofia, moral,
arte e ciência, são explicados por simples interesses materiais. Um tal modo de
entender Marx, nada revela senão a ignorância e incapacidade em compreender o
marxismo. Marx não diz que os referidos fenômenos são explicados exclusivamente
pelos interesses econômicos; diz apenas que a base desses fenômenos, sua
origem, em ultima analise, e as causas de sua evolução, deve ser procurada na
evolução da técnica e das relações sociais que se criam no processo de trabalho.
Sua evolução não é determinada exclusivamente pelos interesses econômicos;
somente se diz que seu conteúdo e sua forma são causados pelos fatores acima
referidos. Querendo esclarecer e compreender o porque do aparecimento e da
realização de tal ou qual fenômeno, devemos antes de mais nada travar
conhecimento com os interesses materiais dos homens e com o estado da técnica
antes do aparecimento do fenômeno e analisando as relações econômicas e sociais
devidas a esses interesses e ao desenvolvimento da técnica e somente então é que
poderemos compreender porque surgiu ou se realizou este ou aquele fenômeno na
sociedade e na vida social.

41
causa básica a parte material da sociedade que é o meio
natural, (estática); 2º, que a dinâmica da sociedade, a
mudança de sua estrutura também depende da evolução e da
modificação do meio artificial. Numa palavra, devemos
encarar o estudo do materialismo histórico, como uma
sociologia12.

Tratemos de penetrar as formas da sociedade primitiva.


Qual a estrutura que vem de fato nessa sociedade? Como
está ela construída? Desde que não há nela uma técnica
desenvolvida e por isso sobra de produtos, não há aí lugar
para a formação de classes ou camadas sociais. A sociedade
de então abrange pequeno numero de indivíduos e se existe
uma certa divisão é baseada somente sobre motivos
fisiológicos. Existem por exemplo, crianças ou mulheres
grávidas, ou velhos que não trabalham, etc. Uma tal divisão
não nos pode dar senão uma estrutura social elementar,
como também elementar é a sua técnica.

Tomando a técnica numa fase altamente desenvolvida da


evolução social, — a moderna sociedade de hoje, por
exemplo, notamos a estrutura bastante complexa da
sociedade. E não só no sentido de existirem muitas classes (a
sociedade feudal continha mais camadas ou grupos sociais),
mas na organização da própria sociedade — nas funções de
seus órgãos, nas suas relações e ramificações, notamos como
e até onde cresce a sociedade de hoje. A complexa e aguda
divisão do trabalho em milhares de partes, devendo manter
entre si certas relações, exige relações sociais fortes e
estáveis, com certos direitos, leis e regulamentações,
aparelhos administrativos e de defesa, etc.; a técnica
altamente desenvolvida faz surgir uma estrutura complexa da
sociedade e determina seu conteúdo.

Não obstante a escassez de literatura que tenha tratado dos fenômenos da vida
12

social, como filosofia, direito, arte e religião, do ponto de vista materialista,


podemos no entanto apontar o método certo e como proceder a sua investigação
(compreende-se que por falta de tempo somente poderemos traçar as linhas gerais
da evolução da sociedade detendo-nos sobre a atual sociedade mais desenvolvida,
analisaremos e explicaremos os fenômenos do nosso ponto de vista.

42
Lição IX: A Estrutura da Sociedade e a Divisão de Classes

No final da lição passada apontamos a influencia da


técnica na estrutura social da sociedade, e chegamos á
conclusão de que com o desenvolvimento da técnica modifica-
se a estrutura da sociedade.

Sabemos que o estado da técnica determina sempre a


divisão social do trabalho. Na sociedade primitiva a divisão
social do trabalho é muito rudimentar, — ela se expressa, na
divisão em duas espécies de funções: a organizadora ou
dirigente, e a executiva. Mais tarde forma-se uma divisão do
trabalho cada vez mais desmembrada e complexa, e no grau
mais alto do desenvolvimento da técnica, que vemos
moderna sociedade capitalista, a divisão do trabalho mais se
alastra, torna-se complexa, se desarticula e sua estrutura fica
também em todos os seus detalhes muito complexa. Temos
famílias, classes, grupos, camadas, agrupamentos nas
próprias classes, varias sociedades, partidos, etc. A sociedade
pode ser comparada a um edifício que tem alicerces, base,
com suas partes principais e sobre si a superestrutura, os
andares, com todo o edifício inteiro.

Se quisermos compreender e explicar a estrutura da


sociedade e também as suas partes principais, teremos antes
de mais nada de destacar a base da sociedade, seus
alicerces, e só então, depois de estudada esta, explicaremos
as outras partes do edifício social, toda a construção social.

Em que consiste o alicerce, isto é, a base da sociedade?


Analisando anteriormente essa questão, mostramos numa
concatenação de idéias que a base fundamental da vida social
é o trabalho social, que por sua vez se acha estreitamente
ligado à técnica. Falando aqui do trabalho como fator social,
— como base da vida social, não nos interessa a face física ou
técnica do trabalho, mas sua face social, isto é, as relações
que surgem entre os homens no trabalho durante a
elaboração de produtos e durante sua distribuição. A base da
vida social é, portanto a sua economia.

43
Vendo na sociedade certos agrupamentos ligados á família
que, como esta desempenham grande papel na visa social,
surge então a seguinte pergunta: como se entrelaçam as
varias relações de família com as relações econômicas? Não
dependerão uma das outras?

Ao estudarmos a família historicamente, veremos que as


relações de família não se mantém sempre estacionarias, no
mesmo lugar — elas evoluem; onde, pois se deve procurar as
causas dessas modificações? Sendo certo que as relações
sexuais das quais derivam todas as outras relações de família
não mudam, de uma maneira geral, claro está que não são
elas que determinam aquelas variações. Elas devem ser
procuradas noutra parte. Sabemos porem, que a família é ao
mesmo tempo um entrelaçamento de relações de caráter
econômico e fisiológico. Suas formas mudam, se desenvolvem
de acordo com o desenvolvimento da técnica e das relações
econômicas que por esse meio se elaboram13.

Tomemos por exemplo as relações de pais e filhos, de


homens e mulheres, irmãos e irmãs, etc. Nas sociedades de
seres inferiores, essas relações mantêm-se sempre as
mesmas e não se modificam. Como relações fisiológicas não
podem estas determinar a vida da família. Somente na
sociedade humana em seu desenvolvimento, essas relações
assumem variadas formas, perdendo seu caráter puramente

Que a família é mais que uma união fisiológica, prova-o o fato de encontrarmos
13

também entre os seres inferiores relações fisiológicas; não obstante não se nota aí
vida familiar definida como entre os homens em geral, e mudança das formas da
família em particular. É, portanto, um erro supor que a família é somente a
expressão de relações fisiológicas. Para ser possível uma vida social, deve
naturalmente existir o homem como tal. Dá-se por isso a união fisiológica dos dois
sexos para a procriação que ocupa assim um dos mais importantes papeis na
perpetuação da espécie humana. Porem a forma que se elabora como conseqüência
da união — a família, dependeu sempre da situação econômica da sociedade. Com
efeito, alem das relações sexuais e das relações que se formam como conseqüência
de vários trabalhos, não notamos nas épocas primitivas outras relações entre os
homens. O conteúdo e a forma das relações sexuais permanecem, porem, mais ou
menos os mesmos, ao mesmo tempo em que as formas de cooperação modificam-
se rapidamente e se desenvolvem juntamente com a técnica. É claro, portanto, que
essas modificações na técnica, na forma da cooperação social, provocam por si as
modificações correspondentes na família, porquanto é esta alguma coisa mais do
que um simples convívio sexual.

44
fisiológico, e tornam-se complexas devido às relações
econômicas existentes e integradas na sociedade14.

Nem relações sexuais nem as de parentesco, podem servir


de base para a anatomia da sociedade humana. Em que
consiste, pois a estrutura da sociedade? Consiste na sua
divisão em certos grupos econômicos, que se encontram não
só em simples relações de cooperação, mas também em
relações opostas de luta.

Sabemos que quanto mais as relações se tornam


complexas, passando de simples cooperação á complexa
divisão de trabalho, tanto mais evidentes começam a surgir
em cena certos grupos econômicos que mantém lutas entre
si. Essas relações de luta entre os vários grupos econômicos
em oposição dão à sociedade um caráter especial,
determinam a feição de sua estrutura; logo, a estrutura da
sociedade nasce, isto é, tem as suas raízes na base
econômica.

A divisão em classes, em camadas, que se forma no inicio


devido à divisão do trabalho, se desenvolve cada vez mais
como o próprio desenvolvimento da divisão do trabalho. E
essa estrutura econômica da sociedade, consistindo na
divisão em vários grupos, com diferentes interesses
econômicos, lutando oculta ou abertamente entre si,
desempenha o papel preponderante no desenvolvimento
continuo da sociedade.

Tomando a sociedade no inicio do seu desenvolvimento


devemos constatar que a força impulsora, era então
constituída pelas varias necessidades econômicas, que
obrigavam os homens a lutar contra a natureza. A
multiplicação que devido às formas primitivas de produção
levou à superpopulação obrigava freqüentemente os homens
As relações entre pais e filhos na sociedade humana, modificam-se
14

constantemente. Nos tempos em que os homens viviam da caça, freqüentemente


matavam-se os velhos porque não tinham utilidade alguma e porque havia falta de
viveres. Com a evolução posterior, porem, quando a sua experiência se tornou
necessária eles são mais respeitados e havendo maior abundancia de viveres eles
são alimentados, não obstante nada produzirem. Vemos, portanto, que essas
relações são diversas em diversas épocas. O mesmo se dá em relação a pais e
filhos. As relações entre eles dependem de varias causas que estão fora dos laços
de parentesco de sangue.

45
a alargarem a sua luta contra a natureza; o resultado disso
foi a evolução do trabalho. Começa aqui a esboçar-se um
novo fator que desempenha um grande papel na evolução da
sociedade. Esse novo fator foi a técnica: — o meio artificial,
que é formado pelo homem em sua luta implacável pela
existência, para a satisfação de suas necessidades vitais. Uma
das condições preliminares para o desenvolvimento da técnica
foi o desenvolvimento da sociedade; mas quando a sociedade
cresce, forma-se nela, devido à evolução da técnica, a divisão
em grupos e em diferentes camadas econômicas, com
interesses opostos, mantendo-se em constante relação de
luta. Nasce assim e se desenvolve mais esse novo fator
agindo por sua vez no desenvolvimento posterior da
sociedade, determinando a sua estrutura com as mutações
gradativas da mesma, — a luta de classes.

Devemos lembrar que na sociedade devido à luta geral


pela existência dá-se também a concorrência entre os
indivíduos isolados. Isso porem é um fenômeno geral da
natureza viva e falando-se de luta na sociedade,
subentendemos uma luta de caráter e sentido social. À qual,
só pode corresponder a luta de classes15.

Os “sociólogos” burgueses acham que, na historia, outras


duas formas de luta entre grupos, desempenharam o papel
preponderante: primeiro, as lutas de raças e segundo, as
lutas nacionais. Eles procuram demonstrar que a luta de
classes desempenha papel menos importante que as lutas
nacionais e que a marcha da historia é determinada não pelas
condições econômicas, mas por fatores muito diversos.

É bastante porem analisarmos as duas formas de lutas


acima referidas, para vermos que seu conteúdo não é
independente e que ele é determinado pelas condições
econômicas em que se encontram as raças ou nações em
luta. A base, sobre a qual nasce a luta nacional ou de raça é
também, sempre econômica. Historicamente surgiu a luta de

Que, na evolução social, desempenha essa luta papel importante, já o afirmavam


15

muitos sociólogos, especialmente Gumplovitch; adotando-se o ponto de vista


marxista, usamos outros métodos no desvendar o papel da luta social. Estudando-
o, veremos que também ele não se desenvolve, independentemente, mas em
combinação com o desenvolvimento da técnica.

46
raças, (mascarando a luta econômica), antes da luta de
classes, porque esta se origina nas sociedades diferenciadas,
ao passo que a luta de raças e até mesmo a luta nacional não
exigem uma divisão de trabalho social desenvolvida. E
quando no cenário histórico surge a luta de classes ela não
expele a luta de raças ou nacional, mas complica-as. A luta
de classes assume, as vezes, a forma de luta de raças ou luta
nacional, porque para a burguesia é necessário e útil encobrir
a aguda luta de classes com o véu da luta nacional ou de
raças.

Analisemos as lutas nacionais e de raças e veremos como


essas lutas não são senão manifestações ou variações veladas
da luta econômica ou de classes.

Tomemos primeiramente as lutas de raças. Aqui se pode e


se deve antes de mais nada constatar que na historia não se
verifica uma luta constante entre as raças.

Quais raças existentes em geral? Devido à diversidade do


meio geográfico, formaram-se três raças principais: — negra,
amarela e branca. Nos tempos primitivos não se observam
lutas entre essas raças16.

Agora observemos em certa medida uma luta entre


brancos e negros, nos Estados Unidos. Será porem uma luta
característica de raças? Ninguém o dirá. Todos deverão
reconhecer que essa luta tem um caráter econômico, em
conseqüência de terem sido os negros libertados da
escravidão há pouco e se tornarem por isso uma vitima
indefesa da exploração capitalista17.

Devemos notar que o anti-semitismo, que traz a cor da luta de raças (luta contra
16

a raça semita), é pelo seu conteúdo uma luta econômica mal disfarçada, entre os
diversos grupos de uma mesma classe, ou um meio de desviar a consciência de
classe do proletariado e das massas populares oprimidas, a fim de enfraquecer a
luta de classes. O anti-semitismo é sempre reacionário, até mesmo quando toma o
caráter de um movimento das camadas oprimidas, porque desvia da luta de
classes.
Fato digno de ser observado é o seguinte: negros capitalistas convivem muito
17

bem com brancos capitalistas e cultos. E ainda, que negros proletários vivem
pacificamente com proletários brancos; nem é isso de estranhar. Portanto, a idéia
de que o conteúdo da luta de raças é puramente econômico, não necessita de
comentários.

47
Analisaremos agora a luta nacional que é um fenômeno
muito mais freqüente e que em nossos dias observamos
ainda em grande escala e em variadas formas. Aqui devemos
notar: primeiro, se essa luta nacional, como tal, é uma força
propulsora na historia; segundo, em que consiste em geral o
conteúdo da luta nacional.

Façamos resumidamente uma excursão na historia e


detenhamo-nos no ponto de formação direta das nações.

Se tomarmos a sociedade primitiva na forma de


comunidades, clãs, tribos, notamos desde logo, que cada
tribo não é formada por muitos indivíduos, ligados entre si
por laços de sangue: e que as demais tribos são consideradas
como forças exteriores da natureza, com as quais é
necessário por vezes, lutar, como contra os animais. Mas,
pela união de varias tribos (freqüentemente consangüíneas),
devido ás necessidades econômicas de defesa é que se
formaram as nações. Como cresceu a nação? Antes de tudo
devido ao desenvolvimento da técnica da sociedade, até
quando a luta pela existência obriga certas tribos a se unirem
a outras. Em que consistia porem a luta entre as tribos?
Lutavam de fato somente porque representavam tribos
diferentes? Não. A luta era puramente econômica. Os
israelitas lutavam contra os filisteus não como duas tribos e
sim como dois organismos regionais, com interesses
econômicos antagônicos, onde cada qual procurava escravizar
o outro, ou conseguir dele certo tributo. As guerras entre as
nações tiveram fins puramente econômicos e representaram
tendência a expansão; o território tornara-se pequeno para a
nação e ela tinha necessidade de se expandir. Tal nação lutou
contra tal nação, porquanto uma via na outra melhor objeto
de exploração e mais fácil presa ás suas ambições.

Porquanto, as nações surgiram na evolução da historia


juntamente com a evolução do trabalho e da técnica. Surgem
primeiramente sobre a base de laços de sangue, as uniões de
família. Sobre a mesma base, formaram-se posteriormente o
clã, a tribo e a nação. Mas a causa dessas uniões e sua
evolução foi provocada somente por motivos econômicos, e o
conteúdo das lutas entre elas não é nacional, isto é, não
consiste em duas tribos, com língua e psicologia diversas,
48
lutarem somente por isso. Por conseguinte, seria
extremamente falso, se disséssemos que a luta nacional é
uma força propulsora na historia; é certo, que a luta nacional
é por vezes a expressão da luta de classes (luta econômica)
que é, a realidade, a força propulsora da historia.

Podemos assim determinar, que a estrutura da sociedade


é a divisão de classes, que surge durante o processo da
divisão do trabalho e se desenvolve com a evolução da
técnica. A luta econômica se dá sobre a base da divisão de
classes, — da divisão em grupos sociais distintos, com
interesses econômicos opostos.

Lição X: A Luta de Classes Como Força Propulsora da


História e a Formação da Psicologia de Classe

Na lição anterior vimos como estrutura da sociedade, — a


divisão em classes, é resultante da divisão social do trabalho
e conseqüência das relações de produção numa dada
sociedade. As relações em que assentam as classes em
oposição se expressam sob forma de luta, — em relação de
luta.

As outras formas de luta na sociedade como as lutas de


raças, a luta nacional, nascem da luta econômica entre as
classes. A diferença entre luta nacional e luta econômica
consiste somente no fato das lutas internacionais
representarem, a principio, uma luta contra forças externas;
somente com a evolução toma ela um nítido caráter de luta
de classes. Quando a burguesia de uma nação (já então
dividida em classes) não pode mais satisfazer-se com a
exploração do proletário nacional, procura então estender seu
domínio sobre outros povos atrasados ou concorrentes. O
caráter externo de luta entre nações depende do estado das
forças produtivas das mesmas.

Assim por exemplo a luta entre a Inglaterra e a China,


como luta entre um pais desenvolvido e outro atrasado (no
sentido econômico), traz mais abertamente o caráter de luta
feroz entre o mais forte e o mais fraco, as passo que a luta
49
entre a Alemanha e a França — luta entre países igualmente
desenvolvidos — é disfarçada, trazendo o caráter de luta
entre duas “civilizações” diferentes, onde uma é apresentada
como justa e “civilizada” e a outra como bárbara. As formas
de luta, de fato, são diversas, mas o seu conteúdo é sempre o
mesmo.

Na historia da evolução social, — na historia da luta de


classes, notamos que a classe oprimida evolui sempre
juntamente com a evolução das forças produtivas. Coube
sempre a ela o papel de força propulsora do progresso e de
todo o bem estar da humanidade.

Com efeito, vejamos em que consistem as forças


produtivas e como as classes estão ligadas a elas.

Falando das forças produtivas da sociedade devemos


tomar em consideração as três espécies seguintes: 1ª, as
forças da natureza, como a terra, os montes, os rios, os
minerais, etc.; 2ª, o meio artificial — a união do trabalho
humano com as forças da natureza em intima ligação
(instrumentos); 3ª, a força do trabalho, a totalidade do
trabalho humano na sociedade. Essas três espécies se acham
intimamente ligadas ente si. Elas são imprescindíveis à
existência e evolução da sociedade humana, que necessita
forçosamente do meio natural, do meio artificial e da força do
trabalho humano. Tentai aniquilar uma só dessas três forças
e a sociedade inteira perecerá.

Analisada separadamente cada uma dessas espécies de


forças, notamos que, quanto à natureza, é ela um fator
constante, que sem a intervenção do homem, por si só, muito
pouco se modifica. Certamente operam-se na natureza
acontecimentos como inundações, erupções vulcânicas,
erosões, terremotos, etc. Mas, de um modo geral, a natureza
permanece ou se apresenta sempre com o mesmo aspecto, e
sua ação sobre o homem, é por isso também mais ou menos
a mesma. As mutações na natureza (no clima, no mundo dos
seres inferiores, dos vegetais, na flora e fauna) se opera
muito lentamente em relação à historia da humanidade e por
isso não podem ser elas tomadas em consideração.

50
O meio artificial, — a técnica, ao contrario, se modifica,
evolui e passo a passo com ela desenvolve também a força do
trabalho que a ela está ligada, e é determinada pela técnica
em desenvolvimento. Quanto mais se desenvolve a técnica,
tanto mais diferenciado se torna o trabalho, dividido
socialmente, e ao mesmo tempo a sociedade é igualmente
dividida em classes e grupos com interesses econômicos
opostos.

A primeira forma de divisão do trabalho aparece no


terreno da distinção entre o trabalho dirigente e o de
execução. Essa divisão traz consigo, desde logo,
desigualdades entre os membros da sociedade.
Desigualdades que se acentuam ao ser criado o instituto da
propriedade privada e cria mais tarde o “domínio” dos
“dirigentes” e a opressão exercida sobre os executores.

Vamos agora observar a evolução das forças produtivas


em relação à divisão de classes. Estudando a historia do
desenvolvimento econômico notamos que a classe dirigente
desempenhou durante algum tempo um papel positivo na
vida social e em certo sentido uma função produtiva,
indispensável. Na fase posterior da evolução, deixa ela,
porem, de ter esse papel, para se converter em elemento
parasitário cuja existência deixa de ser útil à sociedade.
Quanto à classe executora, isto é, a classe produtora, se
estiola sob a pressão das classes dirigentes, sem poder
desenvolver-se, a sociedade toda degenera então, ou é
dominada por outra sociedade que explora, deixando assim
aquela de ser independente. Mas isso não se dá quando a
classe dirigente deixa de desempenhar o seu papel positivo.
Esse fato não acarreta a queda da sociedade toda, porque
devido ao desenvolvimento das forças produtivas nasce outra
força dirigente; os executores destacam a si próprios novo
grupo de dirigentes que assume papel organizador na
sociedade e dá assim oportunidade ás forças produtoras de
continuarem a se desenvolver.

Devido á evolução da sociedade, criam-se, às vezes,


condições tais, que são verdadeiros obstáculos ao
desenvolvimento das classes produtoras ou executoras e não
tendo estas possibilidades de continuar o seu
51
desenvolvimento, são condenadas a degenerar e a perecer. E
neste caso a sociedade inteira estará condenada a
desaparecer. Um, tal momento encontramos na historia das
sociedades construídas na base de escravidão. Os escravos
eram elementos produtores. Criou-se porem uma situação tal,
que a forma de produção escravocrata já não podia permitir o
desenvolvimento das forças produtoras e então essa
sociedade teve que desaparecer ou degenerar.

A sociedade feudal foi uma sociedade de organização


feudal da agricultura e os senhores feudais desempenharam
ate certo ponto o necessário papel da atividade social. Mais
tarde porem, quanto mais prossegue o desenvolvimento de
novas forças produtoras na própria sociedade feudal, não
agrícolas, mas industriais, tanto mais começam os elementos
dirigentes da nova indústria, — a burguesia, a lutar contra a
anterior organização feudal da produção agrícola. E vencem,
porquanto a evolução das forças produtivas e especialmente
da técnica e da indústria, já se acha bastante entravada, pela
regulamentação feudal e o pelo sistema senhorial da
administração tributaria.

O mesmo também se da com o sistema capitalista. As


condições burguesas na produção e nos transportes, as
relações de propriedade burguesas, numa palavra, a
sociedade burguesa moderna, que criou, como por um condão
mágico, tais meios de produção e transporte, assemelha-se
ao mágico que já não pode sozinho dominar as forças
provocadas com seus próprios passes. A historia da indústria
e do comercio dos últimos tempos pode resumidamente ser
considerada como abalo18, como uma revolução das
modernas forças produtivas contra as atuais relações de
produção, contra as atuais relações de propriedade, que são
ao mesmo tempo as condições devida da burguesia e de sua
dominação. E isso, porque as condições dominantes na
produção impedem o crescimento impetuoso das forças
produtivas que já ultrapassaram as formas ou relações
econômicas ainda existentes. A burguesia já não serve á
sociedade; ela não só deixou de organizar a produção e de

Crises mundiais no comercio e na indústria; guerras imperialistas e revoluções;


18

milhões de desocupados; queimas de produtos, etc.

52
dirigir o seu progresso, mas, ao contrario, tornou-se mesmo
um entrave a organização e desenvolvimento das forças
produtivas da sociedade. E desde o momento em que essas
forças produtivas tentam vencer e destruir esses entraves,
imediatamente a burguesia faz um grande alarme dentro da
sociedade burguesa, gritando que ameaçam a destruição da
própria sociedade, quando na verdade, só é ameaçada a
propriedade burguesa. Marx disse:

— “a arma com a qual a burguesia venceu o


feudalismo é agora também aplicada contra
ela própria; mas a burguesia não só forjou a
arma que agora lhe dara a morte, como
também criou os homens que contra ela
empunharão essas armas – ela criou a
moderna classe proletária – o operariado”.

***

Até aqui descrevemos a parte mecânica da luta de classes


que só pode ser concluída com o estudo da produção. Essa
luta parece ter um caráter puramente “mecânico”. Tratamos
da burguesia e do proletariado somente como dirigentes e
produtores e não como duas classes com interesses
econômicos opostos. Essa é a parte mecânica do processo da
luta de classes. Tomamos por base a evolução das forças
produtivas e vimos como a própria força do trabalho é que
provoca a divisão em classes, desempenha papel
preponderante no desenvolvimento da sociedade.
Primeiramente temos dirigentes e executores, sendo ambos
úteis á sociedade e por isso com iguais direitos. Mais tarde
surgem as primeiras lutas entre dirigentes que vivem já da
exploração dos produtores. Tornaram-se parasitas, não
correspondendo mais à marcha da evolução das forças
produtivas da sociedade, isto é, dos executores, os
explorados, que aspiram à sua libertação e que já podem
destacar de si novos organizadores da produção com novas
funções e novas tarefas. Estes novos dirigentes, por sua vez,
se tornarão mais tarde inúteis à sociedade, convertendo-se
em obstáculos à evolução das forças produtivas e começará
uma nova luta contra eles, e assim por diante.

53
A sociedade, porem, não é maquina que tem a tarefa de
desenvolver a técnica e a técnica tampouco não se
desenvolve por si só. A sociedade se compõe de homens que
têm certas necessidades materiais e espirituais, certas
aspirações humanas, que vivem e lutam; compõe-se de
homens com certa consciência que com a evolução da
sociedade se torna cada vez mais complexa. Devemos,
portanto, considerar o conteúdo humano e interno da luta de
classes; devemos compreender a luta de classes em toda a
sua complexidade e analisar as varias formas por ela
assumidas.

Quando analisamos a sociedade e a observamos


concretamente, constatamos então que ela é composta
primeiramente de indivíduos, e que cada individuo não é uma
parte mecânica da sociedade, sem vida própria, A sociedade
representa um complexo de indivíduos onde cada um tem
certa consciência, existindo, por isso, de si e por si, como
unidade na sociedade.

A produção e a técnica são criados pelos indivíduos. A vida


do individuo pode ser mais ou menos complexa pode ter um
conteúdo rico ou pobre; o individuo porem, permanece como
tal. Esse fato não deve por nós ser silenciado nem negado.
Claro é para todos que a produção somente pode ser criada
pela atividade humana, pelos atos dos indivíduos na
sociedade. O que nos interessa é saber qual o papel de cada
individuo na produção e como é determinada a atividade do
homem, dos indivíduos na sociedade.

Formulemos, porem, outra questão: — vimos que com o


desenvolvimento da técnica crescem as necessidades, quer
materiais, quer espirituais dos indivíduos. As formas que
essas necessidades assumem são sociais porquanto são
produzidas pela sociedade, sua satisfação, porem, esta ligada
ao individuo. Pergunta-se: — qual a relação existente entre a
atividade individual, a satisfação individual das necessidades
e a atividade social, que é o resultado da atividade individual?
Qual a expressão da sociedade, formada por um conjunto de
indivíduos?

54
A atividade individual tem sua primeira expressão no
trabalho (satisfação indireta das necessidades), o qual
assume o caráter de cooperação. E esse trabalho é a
expressão de uma forma simples de atividade. Mais tarde
essa atividade assume uma forma muito complexa por já se
achar ligada a consciência, ás idéias, etc. De que forma
aparece essa última, isto é a forma complexa da atividade
individual? Não podemos dizer que o espírito humano se
desenvolva independentemente (por si só). A evolução deve,
pois realizar-se como resultado de choques entre o homem e
a natureza externa, á qual ele está obrigado a se adaptar. A
causa do desenvolvimento humano não está nele próprio,
mas fora dele, na natureza á qual ele se deve adaptar. O
homem porem, só se adapta á natureza pelo meio artificial,
como já vimos, que ele cria com a técnica.

A forma de adaptação da sociedade primitiva era igual


para todos, porquanto todos os seus membros se
encontravam em igualdade de condições. Um individuo da
sociedade primitiva não se distinguia de outro porque a
diferenciação entre eles era quase nula; por isso não há aí
lugar para o individualismo. Nessa época o fenômeno
individual, embora exista, desempenha, todavia o menor
papel. Quando porem a sociedade evolui e surge a divisão do
trabalho, aparecem então as possibilidades de grupos e
indivíduos se destacarem. Já desde o inicio, os dirigentes e os
executores não se acham em igualdade de condições. Forma-
se certa desigualdade nas condições de vida, nasce a
propriedade e com ela a possibilidade de exploração. A forma
de adaptação já não é igual nos dois grupos principais que se
formam então na sociedade. Esses dois grupos têm interesses
diversos e opostos na maioria das vezes. São aspirações e
exigências diferentes, são psicologias de classes diversas.

Notamos, portanto, que a diferenciação de psicologia


nasce no terreno da diferenciação de classes e traz o caráter
destas. Com o posterior desenvolvimento da técnica e da
divisão do trabalho surgem alem dessas duas psicologias
coletivas também certas distinções na própria psicologia de
cada classe, formando-se assim terreno para a evolução da
individualidade; porque as distinções que nascem
naturalmente em cada individuo adquirem, devido as
55
múltiplas formas do trabalho a possibilidade de se
desenvolverem e desempenharem, deste modo, um certo
papel na sociedade.

Quanto mais atrasada é a sociedade em seu


desenvolvimento econômico, tanto menos são as
possibilidades dos indivíduos se destacarem e tanto mais se
assemelha essa sociedade a um rebanho. Ao contrario,
quanto mais se desenvolve a sociedade, tanto mais
oportunidade se oferece ao desenvolvimento do individuo,
tanto mais se sente ele intimamente livre. A causa principal
que desempenha aqui o papel preponderante, e isso devemos
acentuar, são as formas de adaptação á natureza, são as
varias condições da vida em que se encontra o homem. Daí
se originam antes de tudo as psicologias de classes
(interesses de classes, exigências e aspirações) e depois
nelas próprias varias diferenciações psicológicas (psicologias
de grupos e de indivíduos destacadamente). O fenômeno
principal que deixa sua marca sobre a psicologia geral é a
forma de adaptação á natureza e as condições em que vive
determinada classe ou grupo. Somente dessa forma e por
meio desses fatores é que se origina a psicologia de classe. O
fato de pertencer a esta ou aquela classe já deixa sua marca
sobre a psicologia deste ou daquele individuo. O fenômeno
das classes desempenha assim o principal papel na evolução
da psicologia.

Se as formas gerais do trabalho e da adaptação à vida


determinam em geral o conteúdo da psicologia, é claro então
que vários indivíduos que se acham em condições idênticas
de trabalho e de adaptação à vida, terão as mesmas
exigências e as mesmas necessidades e a generalidade destas
vencerá as exigências e necessidades de caráter individual,
que desempenham então um papel secundário. Não podemos
deixar de tomar em consideração a existência do individuo
como tal, sendo isso um fato que não podemos negar, mas
desde que esse individuo pertence a certa classe, isto é, a
determinado grupo, que vive nas mesmas condições de
adaptação à natureza, os interesses dos indivíduos estão sob
a hegemonia dos interesses do seu grupo ou classe, da
psicologia de classe que desempenha o papel preponderante
na sociedade.
56
A causa principal em certo período na evolução da vida da
sociedade será portanto a luta de classes como a luta dos
explorados contra os exploradores, como luta para o
aniquilamento da exploração. Sendo a exploração possível,
principalmente devido ao fato de se acharem os meios de
produção nas mãos de um pequeno grupo (a classe
capitalista) e não nas mãos dos produtores, a luta toma por
isso a forma de luta pela socialização dos meios de produção,
— pelo comunismo.

Aqui porem devemos deter-nos sobre mais um fenômeno,


para compreender o mecanismo da evolução social. O
individuo sente-se consciente e livre, — cada ato seu é a
revelação da sua vontade livre. Falando porem da sociedade
que se desenvolve segundo leis determinadas, cumpre-nos
negar a liberdade de cada individuo. Mais ainda, a vida da
sociedade como vimos antes, se compõe da atividade social,
isto é, da atividade de todos os indivíduos; mas, sendo a
atividade de cada individuo o resultado de sua livre vontade,
acontece que a vida da sociedade é baseada sobre a
liberdade.

Tropeçamos assim de novo, numa dificuldade à qual


contudo devemos vencer. Ou estabelecemos que a vida da
sociedade se dá segundo certas leis e então teremos que
negar a atividade livre; e negando a atividade livre cumpre
negar a consciente atividade, ou afirmando a atividade livre
do homem, teremos que perguntar: como pode um conjunto
de atos livres tornar-se uma necessidade (determinismo)?
Ora, já que vimos que a vida da sociedade está sujeita a leis
determinadas (determinismo), e deste modo, voltamos
novamente à questão de liberdade e necessidade
(determinismo) na vida social, que o materialismo anterior
a Marx não conseguia explicar.

Lição XI: Liberdade e Determinismo; Atividade Social e


Causalidade Social

Como se transforma a liberdade da atividade da atividade


individual em determinismo social? A bola rolando, se tivesse
57
noção do ato de rolar, pensaria que rola por sua própria
vontade. Liberdade e livre arbítrio. A barreira e a fresta pela
qual passa a corrente. Como imaginaria a correnteza o seu
atravessar se tivesse consciência de seu ato. O arbítrio e os
motivos. A luta entre os motivos. O motivo mais forte e a
escolha. O caráter, a educação, as condições são que
determinam a escolha. O determinismo dos atos humanos.
Como se podem prever os atos. Como se podem saber os
motivos? As causas principais da atividade humana. As
divisões em classes e grupos e seus distintos e as vezes
opostos interesses. Os interesses determinam os atos e os
motivos. A sociedade e os interesses dos camponeses e dos
senhores feudais. A sociedade burguesa, os interesses dos
operários e capitalistas. A generalidade dos interesses-
motivos e a semelhança com os atos dos indivíduos. A
psicologia do homem é determinada pelo trabalho em todas
as suas formas, as condições gerais de vida. Psicologia geral
dos camponeses. Nuanças psicológicas internas. As
psicologias internas. A psicologia da classe operaria e
distintos grupos internos. Conhecendo a psicologia os
interesses duma classe, podemos predizer os atos dos
indivíduos que formam essa classe. O determinismo e
resultado da atividade “livre”. Determinismo social e
fatalismo. O determinismo social é uma arma da atividade
humana; os atos livres são transformados em determinismo
social.

Detivemo-nos na ultima lição na questão da liberdade e


determinismo. O individuo, não obstante a dependência de
sua psicologia de classe ou grupo, sente-se como homem
livre, que tudo faz por sua própria vontade. E apesar disso, a
vida da sociedade que é a soma dos indivíduos se realiza
segundo certas leis determinadas. Surge portanto a seguinte
questão: como se podem harmonizar liberdade e
determinismo, segundo o qual se operam os fenômenos
sociais.

Tentaremos gradualmente responder á pergunta


formulada. Existe o homem com a sua atividade que brota de
sua vontade? Assim pelo menos, explica ele suas ações.
Donde vem esse sentimento de livre arbítrio, e como encaixá-
lo no determinismo e na causalidade social? Se formularmos
58
deste modo a questão poderemos achar a gênese da
causalidade e do determinismo social.

Tomemos por exemplo uma bola à qual se deu um


impulso e que começa a rolar. Imaginemos que a bola ficou
rolando, ficou consciente do seu ato de rolar, sem saber para
que foi impulsionada. Ela explicaria o seu rolar pela sua
vontade livre. O mesmo se dá com a vontade livre do
homem. O homem está consciente do ato que realiza, mas
desconhece as causas que provocaram ou determinaram o
ato. Assim responderam a questão, Hobes, Spinoza, Leibnitz.
A resposta porem não é completa: se a questão fosse
somente da consciência do ato, talvez fosse muito fácil de
solucionar. Mas se a questão da liberdade e determinismo, foi
tão palpitante para os gênios filosóficos do passado e ainda
até hoje não foi, para todos, solucionada, isto quer dizer que
existe algo mais, a espera de solução.

A bola rola e pode ela gritar bem alto que rola por sua
própria vontade mas, ela é obrigada a rolar sem poder parar.
Mas outra coisa se dá com o homem. Este ao praticar um ato
pode perguntar a si próprio: devo ou não praticar este ato? Já
aqui existe um momento de escolha. A atividade do individuo
é dessa forma, dependente de sua escolha. O homem ao
praticar um ato está às vezes diante de um dilema, pode
fazer ou de outro modo. Esse fato de escolher é fato que não
pode ser negado nem evitado. Devido a este momento de
escolha torna-se a questão da vontade livre mais fácil de
resolver.

Continuemos porem a analise. Quando surge a pergunta:


fazer ou não fazer, há naturalmente motivos para o sim ou
para o não. Esse conflito de motivos termina pela vitoria de
um deles, que determina a vontade do homem. Assim é que
esse fato se dá realmente, na vida.

Tomemos por exemplo uma corrente de água, contra a


qual se constrói uma barreira que detém a corrente. A água
tem por habito correr e faz pressão contra a barreira. Na
barreira, casualmente havia alguns pontos fracos, e
finalmente a água irrompe por uma fresta que se havia
aberto. Imaginemos que, de repente a corrente d’água se

59
torna consciente não só do trabalho (ação) de correr (como
aconteceu com a bola), mas também das aspirações de
vencer a barreira. Encontrando o obstáculo desta, e forçando
os pontos fracos, está a água diante do problema de
encontrar a saída (a satisfação de seu desejo ou aspiração)
que ela própria pode escolher. A corrente d’água, que fora
dotada de certa consciência, encontrará na barreira um
entrave, um obstáculo de um lado e por outro há uma
vontade, uma aspiração de vencer esse obstáculo. A corrente
de água quer continuar a sua obra de correr, não obstante o
obstáculo encontrado. Trava-se aqui uma luta entre a
corrente consciente com a vontade de correr e a barreira. A
fresta por ela feita na barreira deixou passar a água. A
corrente forçou a barreira toda, procurando saída em todos os
pontos fracos que quis arrombar, mas somente conseguiu
passar pela fresta que havia arrombado. Aqui tivemos o
momento da consciência e o livre arbítrio.

A atividade humana é determinada por vários motivos. A


força geral da inércia é a barreira. Os motivos da atividade
são quase representados pela corrente que impele o homem
à atividade. A fresta pela qual irrompe é este ou outros
motivos que vencem. Uma vez que a corrente forçou todos os
pontos e somente irrompeu pelo mais fraco ou no ponto onde
a corrente é mais impetuosa, temos aqui uma certa escolha
— livre arbítrio, quando todo o processo é iluminado pela
consciência. Na realidade a irrupção é determinada ou pela
fraqueza da barreira ou pela força da corrente em
determinado ponto.

O momento de vitoria de um motivo sobre outro depende


de uma serie de causas e a “vontade livre” desempenha aqui
papel de somenos importância. Por exemplo: se tomamos um
esfomeado, que passa diante de uma vitrine de comestíveis,
dar-se-á nele uma luta dos motivos da fome com os das
idéias de justiça: que não se deve desejar o alheio e do
simples medo de furtar, porque será preso e punido, etc. O
resultado dessa luta dependerá em certo sentido do caráter
do homem, de sua educação, das condições de momento, etc.
Nuns, os assim chamados conceitos morais serão mais fortes,
devido à sua educação, conceitos enraizados, etc., noutros o
medo do castigo é que determinará sua atividade, vencendo
60
portanto, os outros motivos. Se colocarmos esse homem
numa posição tal que seu ato possa passar despercebidos
para todos, o instinto da fome será mais forte que o do medo
e vencerá o primeiro motivo. Num terceiro pode sempre
vencer o motivo da fome e ele roubará sem conflito interior.
Vemos de fato que se dá aqui uma luta entre dois motivos.
Vencendo o mais forte. Ao homem, porem, ao realizar seu
ato, parece-lhe agir segundo sua livre vontade e escolha.

Esses exemplos nos esclarecem que todos os atos


individuais são determinados por certos motivos. A atividade
humana, os atos do homem social, são dessa forma
predeterminados, são provocados por motivos. A necessidade
histórica, isto é, a necessidade da atividade social humana é
por isso chamada determinismo.

Mas se todos os atos são determinados por certos


motivos, surge uma nova pergunta: podem ser previstos
todos esses motivos, suas causas podem ser descobertas e
explicadas?

Aqui teremos que voltar á questão da formação da


psicologia de cada individuo e de distintos grupos. Vimos que
na primeira fase da evolução econômica o homem não
representa um individuo independente, mas é como membro
de um rebanho, psicologicamente semelhante a todos os
outros indivíduos da sociedade inteira. Havia naturalmente
diferenças físicas; e se mais tarde puderam em certo grau
criar-se pequenas diferenciações psicológicas, essas só
puderam evoluir com a evolução da técnica e com o
aparecimento da divisão social do trabalho. Com o
desenvolvimento da técnica e com o aparecimento da divisão
social do trabalho surgiram distintos grupos econômicos, os
quais com o tempo formaram todas as diferenciações e
contrastes psicológicos que mais tarde notamos na sociedade.

Tomemos a sociedade humana. Que notamos aí? Vemos


homens com necessidades, aspirações e paixões e certas
obrigações. Certas necessidades, aspirações e paixões são
comuns a todos os homens, porque não se pode imaginar,
por exemplo, uma sociedade que não necessite de meios de
subsistência, de meios de procriação etc. Queremos prever a

61
atividade do homem com exatidão, podemos dizer sem receio
de errar que o homem, em geral, sempre aspirará a satisfazer
suas necessidades vitais e por isso desenvolverá seus meios
de luta contra a natureza — desenvolverá o trabalho e a
atividade social. Mas como e de que modo satisfazem os
homens suas necessidades? Aqui já não há mais
generalidade. Na sociedade feudal, por exemplo, a maioria da
sociedade é de camponeses; os camponeses como tais terão
em qualquer tempo o mesmo modo de adaptação á natureza,
por conseguinte, os mesmos modos de satisfazer suas
necessidades. Todos os camponeses terão mais ou menos os
mesmos interesses (pequenos traços característicos, não tem
aqui importância alguma). A classe camponesa inteira
representará um todo, uma unidade, com certos e
determinados interesses, pelos quais poderá ser
predeterminada a atividade de cada camponês (aspiração de
se libertar do jugo feudal, livre locomoção, conseguir uma
propriedade em terras, etc.). Tomando a classe feudal como
tal, poderemos segundo seus interesses mais ou menos
singulares também predizer a aspiração e atividade de cada
senhor feudal (aumentar o seu domínio sobre as terras,
ocupar um lugar superior na hierarquia do poder, limitar o
mais que for possível o poder do rei, escravizar na mesma
medida todos os camponeses, etc.). Tomando a sociedade
contemporânea, também poderemos fazer o mesmo.
Conhecendo os interesses de cada classe e até mesmo de
cada grupo, não é, portanto, difícil predizer e determinar suas
aspirações e suas atividades, bem como a dos indivíduos a
ela pertencentes. A classe operaria como um todo, porquanto
todos os operários se encontram em condições iguais, no
sentido de que todos são obrigados a vender o seu trabalho,
terá interesses gerais cuja expressão consiste na aspiração de
aumentar o salário e diminuir a exploração. A classe
capitalista, não obstante as divergências internas, também
apresentara uma aspiração geral, como em tudo,
determinada por interesses, que estarão diametralmente
opostos aos interesses da classe [operária] e terá sua
expressão na aspiração de diminuir o salário dos operários e
aumentar a exploração. Nessa direção determinada irá
também a atividade dessas classes na sociedade capitalista.

62
Vemos, portanto, que podemos predeterminar a direção
que tomará a atividade dos vários grupos sociais. Porque
conhecemos de antemão os motivos de sua atividade. Mais
ainda, conhecemos as causas pelas quais os motivos são
determinados — conhecemos os interesses.

Vemos, portanto, que a pergunta: o que determina a


psicologia? Deve ser respondida: o trabalho em todas as suas
formas, que cria finalmente as condições gerais da vida.
Estando a maioria dos camponeses nas mesmas condições de
trabalho terão por isso a mesma psicologia, embora entre os
camponeses possa haver uma certa diferenciação, isto é,
certa parte dos camponeses começarem a viver em outras
condições de trabalho — isso porem não passará de uma
nuança especial na psicologia dos camponeses. O modo geral
da psicologia camponesa será expressa, por exemplo, no
apego à terra, sentimento de dependência da natureza, amor
ao trabalho e à propriedade, conservantismo de seus
costumes e limitação em seu modo de viver. O camponês
diferenciado (o rico, o kulak) também estará debaixo da
psicologia geral, possuindo, a par disto, uma nuança
psicológica, como o desejo de aumentar suas terras,
aspiração a riqueza, à exploração, etc. O mesmo se dá com a
classe operaria. Também ele terá uma psicologia geral e
nuanças das camadas diferenciadas, como operários
aristocratas, funcionários, especialistas, etc. Quanto mais
constatamos, que a psicologia é determinada pelas condições
de vida (trabalho) de dado individuo e que a generalidade da
psicologia de diversos indivíduos que vivem em condições
econômicas idênticas, forma a psicologia de classe, tanto
mais podemos prever a atividade desta ou daquela classe e
na maioria dos casos a atividade individual de seus membros.

Assim, vemos como a questão da liberdade e


determinismo é resolvida graças a termos achado os motivos
da atividade humana, e a chave da previsão desses motivos.
E também, porque conhecemos as causas dos motivos, a
fonte de onde emanaram. Não falamos aqui, por isso da
atividade individual como tal, mas da necessidade, segundo a
qual a maioria duma classe deve manifestar sua atividade, e
somente por isso podemos prever e adaptar a atividade duma
classe ás suas necessidades.
63
Está claro que a necessidade histórica não exclui a “livre”
atividade humana, mas ao contrario é ela o resultado dessa
atividade “livre”. É nisso que consiste a grande diferença
entre o determinismo na natureza e o determinismo na vida
social e na historia. O determinismo na natureza consiste em
que vários fenômenos resultantes de leis naturais
(movimento dos planetas, as estações do ano, eclipses
solares, etc.) devem realizar-se na natureza. A ciência os
pode prever, indicar o tempo em que se darão, mas o homem
não tem no desenvolvimento deles nenhuma participação. Se
o que se passa na vida social fosse um determinismo do
mesmo caráter, o determinismo social se transformaria em
fatalismo. Entre o determinismo social e natural há pois, uma
grande diferença. Essa diferença consiste em que na natureza
tudo se realiza fora de nossa influencia e atividade, ao passo
que o determinismo social graças à nossa atividade.

As leis do determinismo social são, por isso, também as


leis da atividade humana. O determinismo social implica a
atividade humana como um de seus elementos necessários.
Excluindo esse elemento não haverá determinismo histórico.
Se excluirmos, por exemplo, o proletariado combativo da
sociedade capitalista, não haverá então determinismo
histórico do socialismo. Está claro que o proletariado não
surgiu do nada — é conseqüência determinada pelo
desenvolvimento da técnica — mas esta ultima também é
revelação da atividade humana.

Todo o determinismo social consiste na atividade humana;


seu material é um tecido de atividades humanas. A atividade,
porem, é determinada, porque, devido as condições
econômicas objetivas, os motivos da atividade são também
determinados; as próprias condições econômicas são também
o resultado do estado da técnica — da atividade humana
condensada. As leis da evolução social são expressões das
leis da atividade humana. Podendo prever os atos humanos,
isto é, a atividade social, podemos também estabelecer a
marcha da evolução social e agir no sentido em que ela se
deve realizar.

64
Lição XII: Direito e Arte do Ponto de Vista Materialista

Nas lições anteriores esclarecemos os fundamentos do


materialismo histórico. Agora, tentaremos apontar como se
devem explicar fenômenos sociais complexos, pelo método
materialista. Tomaremos por isso dois fenômenos sociais
diversos, pertencentes ambos à superestrutura da sociedade,
diferindo, porem, quanto ao seu conteúdo. Tomaremos o
direito por um lado, e a arte por outro, e tentaremos explicá-
los segundo o método materialista. As ligações existentes
entre o direito, que é uma relação social, e as relações de
produção dominantes na sociedade, são evidentes.
Estabelecemos, por isso, somente a dependência entre
aquelas e estas, para apontar como agem umas sobre as
outras. A arte parece estar completamente desligada das
relações de produção. Devemos, portanto, ver como pode a
arte ser explicada materialisticamente.

Sendo o Estado uma organização da classe dominante,


tendo por fim fortalecer e santificar seu poder está claro que
o direito de Estado (direito público) tem suas raízes nas
relações de classe, existentes na sociedade. Sua dependência
das relações de produção e por sua vez da evolução das
forças produtivas é manifesta. Um pouco mais complexa é a
ligação entre o direito civil e as relações de produção.
Explicaremos, portanto, a questão de um modo concreto.

Tomemos um exemplo concreto do direito: o direito de


sucessão, e analisemo-lo. Vejamos primeiramente se as
formas de sucessão foram sempre as mesmas e se o conceito
de sucessão é inato no homem, se brota espontaneamente de
seu ser, isto é, se o direito de sucessão nasce de um conceito
interno que o homem possui de que seu filho é a continuação
de sua existência, do seu “eu” (o ponto de vista de direito
natural). Neste caso, se o direito de sucessão tivesse crescido
sobre esta base, seria um fenômeno que sempre existiu e que
deve existir sempre. Ou então, se o conceito de sucessão é
um conceito histórico, isto é, aparecido em certa época e sem
ligação com a idéia de continuação da existência dos pais
pelos filhos. Neste caso, se o direito de sucessão é um

65
fenômeno histórico, naturalmente não existiu sempre e nem
existira.

Se admitirmos que o conceito de sucessão é inato, isto é,


que esta ligado á natureza do homem, como poderíamos
explicar a diferença entre o direito do primogênito e o dos
demais filhos, entre filhos e filhas, ou, entre herdar bens
moveis e imóveis? Explicar as variações do direito de
sucessão pelas leis internas do espírito humano (a principio
esse espírito julgava que só os filhos ou os primogênitos
podiam herdar; mais tarde chegou a admitir que também as
filhas podem herdar), seria uma pura fantasia. O espírito
humano deveria então ser tão multiforme como as próprias
formas do direito de sucessão, entre os vários povos e as
varias épocas de sua vida cultural, devendo mudar
constantemente sua forma de existência. Deve-se procurar
então uma solução, para se compreender o fenômeno do
direito de sucessão e suas modificações.

Em primeiro lugar é evidente que o direito de sucessão


está intimamente ligado ao direito de propriedade, porque o
conteúdo daquele nasce deste ultimo. O instituto da
propriedade aparece numa certa época da evolução da
técnica. Passo a passo com o desenvolvimento das formas de
propriedade se desenvolve também o direito de sucessão,
com todas as suas modalidades. Se havia, por exemplo,
pouca terra, foi-se obrigado a limitar o direito de sucessão de
todos os filhos, para não desperdiçar a terra. As mulheres que
desempenhavam papel de submissão, sem independência,
dependentes de seu marido, não gozavam por isso do direito
de sucessão. Na sociedade feudal, quando o senhor feudal era
uma espécie de rei em seus domínios, devia ser destacado o
primogênito como sucessor principal, e se formou assim todo
um sistema de sucessão e uma escala de sucessores.

Cada determinada forma de propriedade, tinha sua forma


estabelecida de sucessão. Na sociedade burguesa, podendo a
propriedade ser representada em dinheiro, em riqueza
fluente, sem ligação com a produção, já assume o direito de
sucessão outra forma diversa da sociedade feudal. Portanto:
o direito de sucessão é, antes de tudo, dependente do direito
de propriedade que é como já sabemos, por sua vez,
66
dependente da evolução da técnica e das relações de
produção, que se estabelecem na sociedade. É esse método
do materialismo histórico ao observar os múltiplos fenômenos
da sociedade. Deve-se ver primeiramente se o fenômeno é
constante, eterno, e ver então de que é que depende e o que
determina sua própria dependência.

O mesmo acontece quando ás outras formas de direito e a


todo o direito civil e criminal.

Mais difícil será explicar as relações entre a arte e a


evolução das forças produtivas. Deveremos aqui distinguir
primeiramente o lado material da arte e seu conteúdo. As
relações entre o lado material da arte e a técnica são
evidentes: tomando, por exemplo, a musica, notamos que
somente pode existir e se desenvolver sua riqueza e múltiplas
formas com a existência e evolução da técnica
(instrumentos), porque para a musica são necessários
instrumentos musicais; isto quer dizer, em outras palavras,
que a própria arte exige também certa técnica. Ela se constrói
também sobre o trabalho indireto e sobre a divisão social do
trabalho; a forma de trabalho que é aplicada na criação da
arte, não obstante ter por finalidade a satisfação das
necessidades estéticas do homem, não esta em contradição
com o trabalho da satisfação das necessidades vitais, porque
paralelamente com o desenvolvimento das necessidades
vitais também se desenvolvem as necessidades estéticas.

A questão, porem, é: em que consiste o conteúdo da arte


e de que depende?

A arte em geral é certa expressão dos sentimentos


humanos - manifestações, aspirações, expressão que deve
ser corporificada em certa forma harmônica (forma
estética)19. Esta expressão harmônica – pode tomar a forma
de sons, palavras, linhas ou cores – é a arte.

Aqui não nos deteremos na gênese da arte em sua relação com o trabalho.
19

Também não iremos falar do papel dos jogos na origem e desenvolvimento da arte.
Isso nos tomaria muito tempo. Queremos somente estabelecer aqui a ligação entre
a arte e as relações sociais e deste modo sua dependência da evolução das forças
produtivas e das relações de produção.

67
Qual a causa que determina essas expressões
harmônicas?

É claro que essas estão em primeiro lugar ligadas ás


manifestações e aspirações dos próprios homens. A arte está
deste modo intima e profundamente liga á vida, se assim não
fosse, ela não expressaria as manifestações e as aspirações
dos homens.

Numa sociedade mais desenvolvida terão lugar


sentimentos e aspirações diferentes dos de uma sociedade
atrasada. Os sentimentos e as aspirações duma classe
oprimida não são os de uma classe dominante; e desde que a
sociedade deve ser observada como um todo formado de
grupos e classes, com psicologias diversas e,
consequentemente, com aspirações e sentimentos diversos, o
artista somente transmite os sentimentos e aspirações dos
que lhe estão mais próximos, com os quais está ligado e
convive, ou, em outros termos: dos de seu grupo ou sua
classe, É pois, claro que, em diferentes épocas, o conteúdo da
arte se modifica de acordo com as mudanças e as alterações
das sensações e do papel de vários grupos sociais.

Há, porém, outro fenômeno importante que também deve


ser acentuado. A arte só pode ser criada numa sociedade que
se acha em certo grau de evolução do trabalho indireto e da
divisão social do trabalho. Os próprios artistas a principio não
poderão sair do meio daqueles que trabalham sempre para
satisfazer suas necessidades vitais; os artistas por isso são
recrutados nas camadas sociais que dispõe de mais tempo
sendo mais livres e mais despreocupados. Assim, expressarão
antes das manifestações, sentimentos e aspirações daqueles
entre os quais eles se encontram e com os quais eles
convivem e sentem, isto é, da sua camada social. A arte, por
esta razão, será naturalmente por seu conteúdo uma arte de
classe. Alem disso, a arte servirá não só como expressão
harmônica de sentimentos dados na evolução da
humanidade, como também poderá fortalecer certas formas
da vida social ou para sua modificação, ou ainda, para sua
substituição. O conteúdo e caráter da arte ainda mais se
ligará aos interesses e exigências da classe que mais se
destaca, servindo como meio de fortalecer as posições e as
68
condições sociais em que se encontra. Duma arte
inconsciente de classe, ou em outros termos, de arte de certa
classe, se transforma ela pela evolução posterior, em
consciente arte de classe, isto é, numa arte que serve aos
interesses de determinada classe.

Desde que a arte é uma forma de expressões harmônicas,


ela terá sempre essa feição, porque sem o elemento de
harmonia nunca haverá arte, mas o conteúdo da arte
corresponderá, de um lado, ao estado geral da sociedade
dada, e, de outro, será ditado pelas condições e aspirações da
classe que a destaca.

***

Na primeira fase da evolução humana, na sociedade em


que já se destacam chefes, mas onde ainda não há grupos
bem diferenciados nem luta, teremos aí uma arte que
apresenta ainda, em certo sentido, caráter popular (a Ilíada
de Homero e as lendas em geral). Essa arte, cantará os atos
heróicos dos chefes amados (dirigentes) e também da massa,
entre os quais ainda não existia o abismo entre ricos e pobres
(na Rússia foram as “biliné”, lendas que descrevem os atos
heróicos das massas). Numa fase posterior da divisão do
trabalho, já teremos uma arte de classes dirigentes, que
cantará sua vida, lutas e aspirações e que idealizará em certo
sentido a ordem existente em dada sociedade. Mas ao mesmo
tempo já se pode encontrar em estado embrionário um
começo de arte nas classes oprimidas. Essa arte não pode
comparar á arte dominante pelo seu conteúdo harmônico,
mas já é um reflexo da vida e luta das classes oprimidas
(sátiras sobre as classes dominantes, etc.).

Na evolução posterior da sociedade começa a classe


dirigente a degenerar, a esfacelar-se; torna-se um elemento
parasitário e a arte dos oprimidos começa a se evidenciar e
fortalecer-se com elementos novos. Nessa nova arte
encontramos sátiras ásperas sobre as formas já velhas e
manifestação de certa simpatia para com a nova ordem
(operamos aqui no campo literário da arte, por ser mais fácil
ilustrar com ela certos momentos).

69
Devemos notar que lentamente se dá certa evolução no
conteúdo dos próprios sentimentos harmônicos. Os
sentimentos harmônicos não são constantes, eternos. Nem
sempre e em toda parte são sentimentos harmônicos os
mesmos (gostos estéticos). Os sentimentos dependem do
estado geral da cultura da sociedade dada, com suas
imaginações. Mas a principio, é difícil encontrar o conteúdo
social da própria estética. Deve-se analisar, aqui, a arte por
épocas. Em época de decadência, degeneração e crepúsculo,
são os sentimentos harmônicos o reflexo de abatimento
moral, pessimismos, melancolias, ascetismo, etc. Em época
de renascimento, são contrários aos da época de decadência:
exprimem a aspiração de combates e lutas, de gritos de
conquista e entusiasmo, etc. Em época de declínio,
encontramos a decadência e o romantismo. No que concerne
ao conteúdo da arte, a própria descrição e não a sua forma
harmônica (estética), está mais intimamente ligada á época
dada da evolução social e á classe ou grupo que representa20.

Podemos, portanto, estabelecer que a arte, refletindo a


vida, as aspirações e as idéias de certa classe, tem sua
existência completamente lidada á técnica e em sua forma e
conteúdo depende do desenvolvimento das relações sociais e
deste modo também da evolução das forças produtivas. Entre
a arte e as forças produtivas é necessário passar por uma
gradação completa de varias fases: forças produtivas,
relações de produção, relações sociais, manifestações
psicológicas e sua expressão harmônica então, chegaremos à
arte.

Lição XIII: A Religião do Ponto de Vista Materialista

Em nossa lição não nos ocuparemos com as questões


sobre a história da religião e sobre as causa das diversas

Tchernichefski tentou explicar a estética em geral do ponto de vista materialista,


20

em certo sentido. Ele escreveu uma dissertação sobre estética na qual demonstrou
que o conceito do "belo" depende das condições de vida (o conceito de uma moça
bonita não é o mesmo na aldeia ou na cidade, na Rússia ou em Paris). O conteúdo
de beleza depende da sociedade em geral e da classe em particular. O mesmo se
dá em relação à música e à escultura.

70
formas de religiões existentes entre os povos primitivos.
Tentaremos somente explicar a gênese, o conteúdo social e o
papel que a religião desempenhou na história da humanidade.

A religião é, por um lado, o resultado da necessidade que


teve o homem de compreender e conhecer os fenômenos da
natureza, dos quais ele dependia inteiramente, por outro
lado, de sua inexperiência e incapacidade em compreendê-
los. A influência do homem primitivo, pouco desenvolvido e
inexperiente, sobre a natureza foi muito limitada — o homem
só conhecia a natureza externa pela sua influência sobre ele.
O homem primitivo sentia a cada passo sua submissão ao
mundo exterior, aos fenômenos do meio em que se achava. A
princípio procurou ele meios de dominá-los, submetê-los a si.
Nasceu então a necessidade de conhecer o mundo
circundante e compreendê-lo. E não fazendo distinção entre
ele próprio e os outros fenômenos da natureza, humaniza
então a natureza, como diz Feuerbach (animismo).

Sendo as relações sociais de então, muito estreitas,


limitadas aos ramos de parentesco de sangue, procurou o
homem por meio dessas relações, explicar os fenômenos da
natureza. As faces “más” da natureza, ele as apreciava como
más para ele e os mesmos meios que empregava para evitar
o lado mau nas relações com outros homens, empregava
também para com os “maus” elementos da natureza. E
quando na sociedade surgiu a diferenciação de seus
membros, quando a divisão social do trabalho tornou possível
a certos membros o se destacarem, ocuparem lugar saliente,
começarem a dominar — foi então, que o homem primitivo
começou a “divinizar” os fenômenos importantes da natureza,
submetendo-se a eles. Todos os fenômenos impressionantes
tornaram-se para ele como revelação de grandes forças
“dominadoras”, como “Deuses”. E cada fenômeno importante
que atrai sua atenção, ele o explica por uma força boa ou má,
segundo sua significação para ele. Desse modo agrupou ele
os fenômenos naturais em deuses grandes, bons e maus, etc.

Nessa tentativa de explicar a natureza e seus fenômenos


é que está a gênese da religião e da ciência. Dessas
explicações começa a nascer a concepção do mundo, do
homem primitivo. A princípio a religião abrange no círculo de
71
sua influência todos os fenômenos da natureza. Com a
evolução da sociedade começaram a destacar-se diversos
fenômenos, e alguns colocam-se até em oposição a ela,
tornando-se seus adversários e provocando sua destruição.
Este fenômeno é que deve ser analisado mais
profundamente.

Quando o homem começou a interessar-se por certo


fenômeno, começou ele desde então a observá-lo, atribuindo-
o a uma certa força que está acima do homem e que o
domina. Como o homem primitivo era muito fraco na luta
contra a natureza, considerava ele quase todos os fenômenos
como forças superiores, divinas, que agem sobre ele e sobre
as quais ele não sabe como agir. Nisso já há uma contradição
entre a religião e a ciência na primeira época do
desenvolvimento da religião. Com efeito, desde que
determinado fenômeno atrai a atenção do homem, ele tem de
investigá-lo, mas, por outro lado, atribuindo a causa desse
fenômeno a uma força divina superior, ele se opõe com isso
ao estudo do dado fenômeno, impedindo desse modo os
primeiros passos da ciência, porque a ciência exige a
investigação do fenômeno, isto é, achar a ligação do
fenômeno dado com outros fenômenos; mas, se a causa do
fenômeno é atribuída a uma força divina, desaparece com
isso a possibilidade de que esteja ligado a outros fenômenos
ou causas.

Temos, portanto, aqui dois momentos: 1º, o momento de


observar e estudar os fenômenos, 2º, o momento de explicá-
los, que impede a investigação. Na evolução posterior da
religião, sai por completo de sua competência o primeiro
momento, ficando somente nela, o segundo, isto é, o
momento de explicar os fenômenos, o que já não podia levar
a nenhum progresso, mas ao contrário, impedi-lo.

Esta contradição desenvolvia-se cada vez mais no decurso


do desenvolvimento da ideologia: a observação e o
conhecimento (na fase da experiência), — avançam em
direção à ciência, e a explicação — em direção a religião.
Temos aqui a marcha da evolução, segundo a tríade
de Hegel. A tese, isto é, a explicação dos fenômenos,
atribuindo-os a forças sobrenaturais, sobre as quais o homem
72
não pode agir; a antítese, isto é a observação, o
conhecimento, e na base da experiência, investigação dos
fenômenos, submetendo-os a si, ou aproveitando-os para os
interesses da humanidade; a síntese, isto é, uma nova
espécie de explicação dos fenômenos que não os atribui mais
a forças sobrenaturais, mas que se baseia na explicação
científica e na experiência. O elemento da fé existe na
síntese, porque, por isso mesmo que se baseia na ciência, crê
que esta deverá abranger com o tempo, no círculo de suas
explicações, todos os fenômenos do mundo, orgânicos e
inorgânicos, e dominá-los. Uma tal fé é um elemento positivo
no progresso da ciência.

Mas a ideologia não se desenvolvia de modo tão simples,


que a tríade se apresentasse tão facilmente. Uma coisa, como
uma ideologia acha-se, em seu desenvolvimento,
intimamente ligada às relações sociais e torna-se dependente
delas. Se assim não fosse, somente como no seu início, —
tentativa de acumular experiências e explicar os fenômenos,
e se ela evoluísse somente segundo essa lógica, haveria já
centenas de anos que a religião teria sido substituída pela
ciência. Assim, porem, não aconteceu e nem poderia ter
acontecido. A religião, em seu desenvolvimento, desligou-se
de seu conteúdo lógico, colocando-se a serviço desta ou
daquela classe, ou camadas, em suas lutas pelo poder e
domínio. Diferentes campos da religião começam a desligar-
se e destacar-se dela, desenvolvendo-se segundo sua própria
marcha. Mas a parte principal e mais influente, ligou-se a este
ou aquele domínio de classe.

Ao ser estudada a história da religião, nota-se, dum lado,


a formação de certos ramos que se desligam aos poucos da
religião e formam a base da ciência, e, por outro lado,
observa-se que a parte explicativa da religião permanece. A
“religião”, no sentido atual da palavra, se acha ligada á
correspondente organização social — a Igreja, colocando-se a
serviço das classes dominantes, servindo como meio de
escravização e de obscurantismo.

Vimos que a religião em seu inicio foi uma tentativa para


explicar o incompreensível que circundava o homem
primitivo. Essa explicação atribuía aos fenômenos naturais as
73
relações reinantes na convivência dos homens. Na sociedade,
o homem podia evitar certos atos prejudiciais a ele pelo
suborno do chefe supremo, por exemplo, o patriarca. Esse
fato o homem transportou aos fenômenos da natureza, no
sentido de poder evitar também as más ações da natureza,
subornando os deuses. A religião é, assim, não só uma
imagem, uma fé, um estado psicológico do homem, como
também se torna causa da atividade do homem, em se
subordinar à natureza. Cada religião devia ter, portanto, um
culto. A religião primitiva não era uma crença abstrata, ela
exigia atos e atividade. O culto em diferentes épocas podia
adotar formas diferentes, o seu conteúdo, porem, era sempre
a divinização de certas forças, que exigem, segundo a
imaginação humana, uma certa atividade humana que se
expressa em trazer sacrifícios, preces, ao Deus dominante,
para facilitar a vida do homem, e conseguir as coisas que lhe
eram necessárias. A finalidade do culto é submeter a si as
forças naturais que agem sobre o homem. É por isso que as
forças naturais não existiam para o homem primitivo como
unidade, mas como forças distintas; esforçou-se ele por
subornar cada fenômeno isoladamente, para adaptar-se a
eles e explorá-los. O conteúdo da religião, o culto, pode por
isso ser considerado, do ponto de vista biossociológico, como
uma suposta adaptação do homem à natureza, que
naturalmente nenhum resultado prático trazia.

É evidente que quanto mais experiências o homem


acumula, tanto mais deixa ele de explicar teologicamente os
fenômenos. Ele começa a interpretar cientificamente os
fenômenos, e aí é que começa o processo histórico de se
destacarem diversos campos, que saem do domínio da
religião.

Como se realiza este processo?

Sabemos pela historia da religião que ela esteve ligada à


feitiçaria.

O homem primitivo, por um lado, sofria por certos


fenômenos da natureza externa, os quais atribuía a certos
deuses, mas por outro lado, sentia também as vezes, dores
internas, cuja origem não compreendia, porque não via sua

74
causa na natureza, e enquanto procurava evitar os
sofrimentos exteriores, subornando a Deus, por meio de
sacrifícios ou preces, procurava ele evitar as dores interiores
por meio de ervas ou passes de mágicos feiticeiros. Deste
modo ficaram ligados os dois momentos. Os que acumularam
mais experiências puderam auxiliar outros homens, em suas
dores; tornam-se os intermediários entre o homem e as
forças da natureza externa, ou dos deuses, passando a ser
dirigentes e executores do culto. A atividade que está ligada
ao culto se destaca do trabalho comum. O culto pode
somente ser exercido por determinado grupo social. O mágico
liga-se ao sacerdote e se torna o intermediário entre Deus e o
homem.

A religião, em seu inicio e até mesmo em sua evolução


posterior, procura abranger todos os fenômenos da natureza.
Porquanto representa o culto, reflete as relações sociais,
torna-se por isso cada vez mais complexa e cresce
juntamente com a evolução social e seu desenvolvimento
assume uma forma especial: isso porque, os fenômenos
simples que podem ser observados e por isso mesmo
estudados, se destacam e são estudados cientificamente. A
religião deixa, por isso, de explicar certos fenômenos naturais
pela vontade de Deus. Se na sociedade patriarcal a religião
abrange a todos os fenômenos naturais e sociais e suas
explicações são demasiadamente simplistas, é porque a vida
é também simples. Ao considerarmos, porém, a atual religião,
notamos que, de um lado, paralelamente com a complexidade
das relações sociais, a religião também se torna cada vez
mais complexa, e, por outro, se destacam da religião os
fenômenos físicos, químicos e até biológicos, que se tornam
objeto de estudos científicos. Na religião só permanecem os
fenômenos que tem ligação com o espírito humano e os
fenômenos sociais, porque a sociedade burguesa tem
interesse na explicação religiosa (teológica) dos fenômenos
sociais21.

Esta é uma marcha geral do desenvolvimento da religião,


que depende, de um lado, do desenvolvimento da ciência, e,
Devemos observar que ultimamente se nota entre a burguesia uma tendência em
21

manter as massas na ignorância, rejeitando a explicação científica até mesmo de


fenômenos naturais mais conhecidos para ligá-los à religião...

75
de outro, das relações sociais. Os dois momentos se
entrelaçam intimamente, mas não se pode fundir, porque
seus conteúdos são opostos. O desenvolvimento da ciência
provoca a morte da religião, os interesses das classes
dominantes, exigem o fortalecimento da religião para que as
grandes massas continuem sob seu domínio. Mas apesar
disso, uma vez que a evolução das forças produtivas exige o
desenvolvimento da ciência, já a burguesia não pode impedir
seu desenvolvimento, pode apenas traçar-lhe certos limites,
sendo-lhe impossível detê-la. Desta forma sucede que,
juntamente com o desenvolvimento da ciência, desenvolve-se
a oposição á religião. A religião surgiu da necessidade de
explicar a compreender os fenômenos naturais; da busca de
explicação a esses fenômenos foi que se constituiu o inicio da
ciência. Mas com o decorrer do tempo, esta ultima abrange
cada vez mais fenômenos, e se torna por isso cada vez mais
largo seu campo e estreito o campo da religião, até que
chegara uma época em que não sobre mais lugar para esta.

Costuma-se até mesmo conscientemente confundir


religiosidade com certas manifestações humanas, como
êxtase e a admiração. Com esta confusão pretende-se
fortalecer a religião.

Do ponto de vista materialista, este fenômeno não tem


nenhuma ligação lógica. Quando o homem se coloca ante a
natureza, da qual ele representa uma partícula ínfima,
quando ele alcança e abrange a infinidade do universo
maravilhoso, forma-se no seu intimo certo êxtase e certa
admiração.

Este estado contemplativo é o resultado de que o homem


pode abranger com seu espírito a grandeza, sem saber de
onde ela vem nem para onde vai. Tal estado de êxtase
existirá, talvez, sempre; o homem sempre admirará a
natureza e essa admiração crescera mesmo, com o
desenvolvimento da ciência, porque esta mostra ao homem
cada vez mais grandezas e infinitos da natureza e lhe dá de
mais em mais possibilidades de submetê-la a si, aumentando
dessa forma seu domínio.

76
A religião, ao contrario, esta sempre ligada ao culto em
varias formas. Ela se acha ligada á submissão do homem a
uma força superior a ele e que por isso pode ser a ele
submetida. Uma tal crença tem por isso de provocar um
sentimento de impotência e submissão do homem, e levá-lo
rapidamente ao desprezo de si próprio e ao fatalismo.

A religião devera por isso morrer, juntamente com a


evolução da ciência e com o aniquilamento da sociedade de
classes. Os dominantes do céu serão destronados juntamente
com os dominantes da terra.

Lição XIV

Em nossa última lição analisaremos o papel das grandes


personalidades e das causalidades, na história, do ponto de
vista materialista.

O desenvolvimento da história está ligado a certos


acontecimentos históricos, nos quais certas personalidades,
de um lado, e certas casualidades, por outro, desempenham
geralmente papel importante. É esse papel que devemos
investigar.

Falando dos acontecimentos históricos que reúnem muitos


indivíduos (como revoluções, guerras, etc.), não trataremos
aí de indivíduos, mas de coletividades, e já sabemos que a
psicologia individual está comprometida na psicologia
coletiva. Não podemos deixar de lado o fato de grandes
personalidades desempenharem às vezes papel importante
nesses acontecimentos. Ainda mais: esta ou aquela
personalidade pode deixar de fato sinais de si, sobre a época
em que vive ou atua. Não podemos negar, por exemplo,
que Marx tem na história do movimento operário um dos
mais importantes papeis; que idêntica influência exerceram
em seu tempo, por exemplo, Napoleão , nos acontecimentos
da França e Lenine no desenvolvimento da Revolução Russa.
Surge então a pergunta: — em que consiste o papel dessas
personalidades e como se explica sua importância e, por
outro lado, se o fato, de desempenharem eles, papel
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importante não estará em contradição com os fundamentos
do materialismo histórico. Sabemos mais, que em certos
momentos sucedem, na vida da sociedade, casualmente,
devido ao encontro de diversas causas, grandes e
importantes acontecimentos. Este ou aquele invento pode, de
certa maneira, imprimir certa direção ao desenvolvimento
posterior da sociedade (estando alguns cientistas pesquisando
os meios de conseguir alimentos artificiais, imaginemos que
na Rússia, certo cientista consiga descobrir agora esses
meios; um tal acontecimento viria colocar a Revolução Russa
em caminhos bem diversos e abriria a ela perspectivas
completamente diferentes)22.

Essa questão do papel das personalidades e casualidades


na história deve ser explicada cientificamente, pois sendo
impossível prever quais as personalidades que irão nascer e
que causalidades irão acontecer, quer dizer isso que não se
poderia de forma alguma, prever a marcha da evolução.

Para responder com acerto essa questão, deve-se analisar


o fenômeno das personalidades e casualidades e ver de que
elementos são formados e em que consiste sua ação na
história.

Vejamos em que consistia a personalidade de Napoleão;


por que se destacou ele da média de todos os homens, e em
consistia sua superioridade.

Napoleão foi um grande estrategista e, graças à sua


vontade forte e à sua enorme energia, exerceu grande
influência sobre outros homens e pode dirigi-los. Com isso ele
se destacou da massa circulante. Exatamente na época em
que Napoleão aparecia no palco da história, a França
encontrava-se numa situação em que essa extraordinária
habilidade pôde ser aproveitada (se, por
exemplo, Napoleão tivesse existido cinqüenta anos antes,
suas habilidades estratégicas não seriam aproveitadas e ele
não seria “um Napoleão”). Para que seu talento estratégico
pudesse aparecer e ser devidamente
aproveitado, Napoleão teve que viver em certa época

Estas lições foram dadas em 1921 na época da fome na Rússia.


22

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correspondente. Mas a época da Revolução Francesa não foi
por ele criada, antes, ela o criou como tal, e Napoleão, como
personalidade, é por isso um produto de sua época. Portanto:
— para que as grandes personalidades possam ser
aproveitadas, devem elas antes de tudo ter nascido numa
época correspondente. Somente a Revolução Francesa que
colocou no poder a burguesia comercial e industrial, com suas
aspirações naturais e vitais de expansão, deu lugar a que se
manifestasse o talento de Napoleão. Se não houvesse uma
pessoa tão hábil como Napoleão, não haveria talvez tantas
vitórias, mas a França, com as suas aspirações expansoras de
então, seria tal, com ou sem Napoleão; por outro lado devido
à supremacia técnica da Inglaterra na situação econômica e
política internacional, a França, mesmo com Napoleão, teve,
finalmente, que perder a guerra. Alem disso, deve-se tomar
em consideração que Napoleão recebeu certa educação, teve
certas idéias, realizou certas aspirações. Tudo isso não foi
tomado fora da sociedade. Ao contrário, era o resultado do
estado geral da sociedade francesa daquela época. Dessa
forma, acontece que Napoleão se tornou “Napoleão” devido
às condições sociais da época em que vivia. A própria
personalidade é em sua maior parte o resultado das relações
sociais, do meio social, que são determinadas, em última
análise, pelas relações de produção.

O mesmo se pode dizer de Lenine, que é um dos maiores


estrategistas no campo da luta de classes e que possui uma
vontade férrea e uma energia inquebrantável, e cuja
influência sobre as massas é colossal23. O saber de Lenine e
sua estratégia deram-lhe a possibilidade de manobrar
magistralmente entre diversos grupos e classes sociais,
precisar o estado da luta e a combatividade de cada classe.
Sua vontade férrea e sua energia inquebrantável deram-lhe a
possibilidade de constituir um partido comunista tão forte e
conseqüente como o nosso.

Não foi Lenine quem criou a Revolução Russa, mas a


Revolução Russa o criou. Somente alguns aspectos da
revolução Russa é que trazem a marca de Lenine, e se tais
traços individuais emprestam à Revolução certa fisionomia,

No presente por ter sido escrito em 1921 e Lenine ter morrido em 1924. (N.P)
23

79
sua marcha geral, porem, é determinada pela atividade das
grandes massas operárias e camponesas. Somente os
camponeses descontentes, por um lado, e a forjada
combatividade do operariado por outro, e a guerra, a crise no
organismo capitalista, somente esses três fatores é que
puderam ter determinado a Revolução. Lenine sabia muito
bem auscultar o pulso da Revolução, sabia como manobrar.
Em geral, porem, sua marcha é determinada pela
coletividade, pelas grandes massas e seus interesses. O
mesmo podemos dizer do papel de Marx no movimento
operário mundial, sobre o qual em certo sentido deixou ele
sua marca individual.

Também podemos apreciar o papel das grandes


personalidades e outro ponto de vista. Sendo a história toda,
o resultado da atividade humana (“são os homens que fazem
a história”, disse muito bem Engels), acontece que cada
indivíduo desempenha um papel na história, pois que a
atividade coletiva nada mais é do que a soma de atos
individuais. Nesse sentido se diz que com certo ato ou com a
soma de certos atos, começa uma nova época na história. A
diferença entre a atividade (atos) de uma grande
personalidade e a da média dos membros da sociedade é
quantitativa e não qualitativa, mas a quantidade às vezes se
transforma em qualidade e os atos das grandes
personalidades podem se tornar inícios de grandes
modificações ou revoluções, que o trabalho anterior dos
homens médios havia preparado. Os grandes homens estão
como que impregnados da energia dos atos de milhares e
milhões de homens da massa que os preparam. Tirem-lhes,
porem, essa energia potencial e ficam eles (os atos dos
grande homens) sem força, e perdem sua significação.

Se em vez de épocas inteiras tomarmos diferentes


momentos em distintas épocas, veremos que cada momento
tem sua fisionomia. Essa fisionomia é em certa medida
determinada pela atividade de personalidades que se
destacam mais ou menos da média dos homens. A diferença
aqui está somente no âmbito, na grandeza da atividade desta
ou daquela personalidade e na proporção dos resultados. O
papel dos grandes homens no conjunto dos acontecimentos é,
por isso, limitado aos traços e cores individuais nos
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acontecimentos dados, e sendo que, na história, afinal não
são os traços e cores individuais que desempenham o papel
mais importante, mas sim o conteúdo e a própria forma dos
acontecimentos, claro está que o papel de um grande homem
é proporcionalmente pequeno, na história.

Desta forma podemos estabelecer que, segundo o ponto


de vista materialista, não é completamente afastado e
negado o papel de certas grandes e até pequenas
personalidades. O materialismo histórico somente esclarece
em que consiste essa atividade, o que a provoca e determina.
A diferença entre grandes e menores personalidades está
somente na quantidade, mas não na qualidade, porque as
grandes personalidades não criam as condições gerais, ao
contrário elas próprias (os grandes homens) são criadas
pelas condições e provocadas pelos acontecimentos.

O mesmo se deve dizer também dos importantes


acontecimentos casuais. Eles desempenham papel na história,
eles representem um acontecimento histórico somente
quando o terreno social está preparado para que possam
despertar as forças letárgicas e a energia potencial. Sem isso,
eles passam despercebidos na história. O descobrimento, por
exemplo, de certa lei natural, só se poderá dar quando a
ciência o preparou e só pode tornar-se um fator influente no
momento em que a sociedade pode e deve aproveitá-lo.

O materialismo histórico traz no conjunto de suas


explicações o papel e a influência de grandes personalidades
e de casualidades importantes. Os grandes acontecimentos
nos servem para destacar na história épocas distintas; as
grandes personalidades para compreender os traços
individuais contidos na história. O materialismo histórico tem
sua maior significação em chamar o homem à atividade.
Tendo encontrado as leis da evolução social, ele vê quais as
classes que podem progredir e lhes dá para al a consciência,
— o archote que iluminará o seu caminho histórico
revolucionário.

Até os últimos tempos os filósofos esforçavam-se por


compreender o mundo; agora, porem, apresenta-se diante da
filosofia o problema de reconstruir o mundo, disse Marx. No

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materialismo histórico sintetizou Marx a compreensão da
evolução da sociedade com a vontade modificá-la e nos deu o
instrumento para essa modificação. O materialismo histórico
tornou-se deste modo uma filosofia e um instrumento da
classe operária e revolucionária, em sua luta pela libertação e
na sua tentativa de formar um mundo novo.

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