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oESPELHO DE MORSE*
/1I1j!()r!II/lles neClIlil'OS, decollos IIl1il 'e nillírios, slIbsecrellÍrios e mI!
/l1eS/l1II !,resideJlle StlO lroídos !,lIr III/iii !,e/efil('iol/llil/lclf(fdo Oll ilZ,lI/wlo,
pelo cube/o (jllOSe iJ/lpercepf;relJlzenfe tingido , por llJl/U v;!{/lid{u/e 'Do
sCllle/lwllle li I'iu" '1"011111 II de li/li codúl'er /lwqlliliU/O,
RICHAHD !VIORSE, O Es/'e/l1O de Pri5sl'ero
Eles eSIÜO ('olll'ellcidlls de 'file /lI;S lelllos o segredo do I'ido (dito por uma
lotino -alllcric3nil sobre n fascinaç50 que ela exercia sobre os homens euro-
peus e nane-americanos) ,
Publicado em No\'{)s EWfl!OS Ctlim/" 22: 185-192, OUt. 1988 e como "O Gato de Cortcízar'
Celm//" 25: 191-20], ou!. 1989,
No!'o,l' ESfI"/os
I, Richard M, Morse, O Esl'e/lw de Puís/'ero, São Paulo, Cia, das Letms, [988,
1)0 MODERNIDADE E POS-MODERNID ADE
tran sce nd er sua falta de sent ido histórico, seu desprezo pelas questões elc
espírito e sua aridez_ Eles talvez se espantassem ao perceber que essc oulro
próspero encontra sua redcnção na contemplação do mundo latino ou , mais
precisamente, na busca quase heróica de sua essência perdida. É na tradição
ibérica, diz Morse, pela sua fidelidade à busca de uma visão abrange nte e
unificadora do mundo, pela crença profunda, mesmo que inconscientc, cm
uma realidade social que transcende o indivíduo e é mais que o so matório
dos interesses individuais e suas serviclõcs, que se poderia cncontrar uma rcs-
posta adcquada à crise moral e existencial do mundo anglo-saxônico e, por
rel'lexo, da América Latina. Não haveria, no entanto, razõcs para espanto,
porque disso se trata, afinal, no jogo de espelhos: de buscar constituir a pró-
pria imagem na contemplação do outro e dar ao outro, ao mesmo tempo, a
ilusão de que, porque se percebe no primciro, ele também existe.
É I'ácil deixar-se fascinar pela inteligênci a, erudição, elegilncia e agu-
dcza dcsse livro, fruto de um trabalho de scholoJ'ship dificilmente encontrável
fora dos circuitos acadêmicos elo Norte. É difícil também não se eleixar sedu-
zir pela mensagem que esse espelho nos transmite, que confirma aquilo que
sempre pensamos, ou por que ansiamos, no recôndito de nossas allllas: apesar
ele nossa pobreza, de nossas tragédias, de nossos horizonlcs truncaelos e da
riqueza e segurança de si que "eles" exibem todo o tempo, nós SOIllOS superio-
res, temos o segredo ela vida e do futuro. Agora, finalmente, elcs reconhecel11.
Não importa que toda a cvidência empírica, toda a vivência cio dia-a-dia sugi-
ram o contrário; o que é o empírico, afinal, senão o aspccto mais superl'icial da
rcalidade, "um mosquito" que pode até nos ser inacessível c nos importunar,
mas que é indigno do "rolo compressor" de nossa atenção (p. I IS)?
E, no entanto, é prcciso não cair na tentação dessc jogo dc cspelhos
traiçoeiro e dizer, com todas as letras, que se trata ele um livro profundamen-
te cquivocado e potencialmente danoso em suas implicações. Não é uma
tarefa fácil, para quem não dispõe da erudição e da facilidad e exp rcssiva de
Morse. Mas não é uma tarefa impossível, c ac redito que deve se r tcntada.
O primeiro movimento de O Espelho de Próspero é a pré-história elas
Américas, quando Morse trata, em grandes pinceladas , de construir um a
visão idealizada da "escolha" política espanhola na constituição do que elc
denomina "Grande Desígnio Ocidental", um [lrojeto milenar hege liano cujo
sentido profundo caberia ao historiador decifrar. Essc "grande desígnio" con-
sistiria na liberação das forças da "ciência" e da "consciência" - do conhc-
cim ento empírico e do conhecimento ético e filosófico - para a constituição
do mundo moderno . A virtude hispânica teria consistido, essencialmente, em
sua capacidade de manter-se fiel à noção medieval de um Estado vinculado à
Igreja e, por isso, dotado de conteúdo moral e ético e que serv~a como [lonto
ele referência ex tcrno e firme para os indivíduos. Traços que hoje seriam
usualm ente considerados totalitórios são recuperados com sinais positivos.
As universidades eram integradas aos propós itos gerais do Estado: o 11lIma-
o ESPELHO DE MORSE I) I
2. Trnduzido do inglês de "Bruno BJuer, 'Oie Judcnfmge"'. em Kllrl Morx: Ellrl)' IVrilings
(traduç50 e edição de T. B. BOllolllore). New York. McGraw Hill Co .. 1963. p. 17.
o ESPELHO DE MORSE 15,1
~, S, Schwartzlllan, Súo Pau!o e o fS/I/{!o Naciona!, São Paulo. Ditei. 19n. revisto e republi-
cado COlllO BlIses do Au/orilllris!IIo BI'IIsi!eiro. Rio ele Janeiro, Call1pus. 1982/1988.
15,) J\lODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE
4. NessG crítica gellcrali zGda ellll·a talHO O cmpiri smo mGis grosseiro quanro G trJdiç:io histori-
eista comparativa de illspiraç:lO weberiana. que. como sabemos. comparava a Índia, a Chin:1
e a PJ1lestinJ antig:1 corn o Ocidente. Para tllna visJo Ilwis eOlllplexa dos cuntrastes entre as
ciênci:ls sociais positivistas e historicislJS e da conlraposiçJ.o enlre elas e o irracionalismo,
ver Reinhard Bendis. Force. FOle & Fre edo ll/: O" Hi.<wriclIl Soci%gr. Berkeley.
University of Calilornin Press, 1984.
o ESPELHO DE WJRSE 1.\.\
5. Para lima visflo crílica do rcnsamcnlo irracion,ilist:l conlémporDnéo e seu illlr:1 C10 pcmicio-
so cm nosso Illeio. ve r os ensaios de Sérgio Pnul o Rouallet cm As R(/;/jes do lili/lilI/is}}/(),
São Paulo. Ci,l. (\;Js Le lras. 1987.
156 ,IODERNIDADE E PÓS·MODERNIDADE
6. Ver. sobre os paradoxos inerentes à busca do "contato com as massas" em regimes totalitá-
rios. a an<Íiise clüssica de Reinhard Bendix em Work (/1It1 AI/II}()ril\" iII IlIill/slr.\' (New York.
Wiiey. 1956). um exemplo de an,ílise histórica comparada entre a Inglmerra. a Rlíssia. os
Esrados Unidos e a Alemanha. em períodos históricos distintos. Vale lembrar ainda que. no
Brasil. o principal leitor e divulgador das idéias de Sorel tenha sido Francisco Campos.
oESPELHO DE MORSE 157
7. "A Miopia de Schwartzlllan". No!'()s EsILlr!OS Celmll', 22: 18.'1-192, oul. 1988.
8. Jú live o ensejo de discutir essa mesma postura. elll relação it questão do corporativismo, em
outra ocasião. Ver "As Diticuldades do A ntielnocentrislllo". Dorlos - ReviSllI ele Ciências
Sociais, Rio de Janeiro. 25 (2). 1982.
158 ~IODEI~N IDADE E PÓS-~IODERN I DADE
por s ua busca contraditória. desigual, ccm vezes fmcassada mas CCIII vezes retomada, da moder-
nização e do moderni smo, lião mais apen as como fenômeno de intelectuais e tecn oc ratas, mas
como processo de Jl1;)ssas cujo imaginári o chegou a ~e expressar e a se esgOlar qunse que COlll-
pletamente nas figums fugazes de modern idade que vêm do Norte. Por isso pode-se dizer que a
América Latina é parte dessa cultura menos pel o scu passado, ainda que també m por causa dele,
do que pelo seu presente e se u futuro: como projeto . Existem os que discordam dessa forma de
:Iborclar as coisas latino-americanas. Para os qua is, com efeito, é mais importante a re li gião tra-
z.id a pelos espanh óis e portugueses a estas terras do que a utopia modernizadora, que teve muito
mais que ver, certamente, com a França, a Ingi<lterra e os E stados Unidos. Para os quais subsis-
te, ainda hoje, ullla América Latina profunda, real-m5gica, mestiça e ancestral: que se sacrifica e
cumpre seus ritos e que assume a mode rnidade como uma mentira sociológica, algo espúrio,
uma casca imposta, um produto fanta s magórico da razfio que percorre o contin e nte sacritlcando-
o ils ex igências ele s ua utopia. Octavio Pa z, a quem não fazemo s j ustiça com estas brevcs refe-
rê nc ias, o disse de man eira grMica: "O povo mexicJno, depois de mais de doi s séculos de expe-
rime ntos e fraca ssos, não crê senão na Virgem de GU:ldalupe e na Loteria Nacional ,,9
9. José Joaquin S runner, UII ESf'ejIJ Triwdo: EIISII)'OS soúre CIf/IU/'({ \' PO/ílic(lS CIf/flIru/es,
Samiago, Flacso, 1988, !l. j 98. A rel'erênci:l é Octavio Paz, EI Ogro Fi/lllllrríp ico , México,
Joaquin Mon iz, 1989 .
160 "IODERNIDADE EPÓS·~IODERNII)ADE
meter às diretrizes do partido, único intérprete aceito, aCinal, do quc "as mas-
sas" rcalmente qucriam ou prctendiam ser. Em relação ii "revolução cultu-
ral", creio que já existe bastante consenso sobre o que ela significou como
período de centrali zação política extrema, terrori smo e retroccsso político ,
econômico e cultural.
Chamar a atenção para a associação íntima e freqUente entre os apelos
ao "contato com as massas" e as formas mais abjetas de autoritarismo não é
o mesmo q ue ser contra as di feren tes forma s de organ iLação e ação popul ar,
que cxtravasam os marcos in stitucionais estabelecidos e trazem para nossas
sociedades novas fontes potenciais de dinamismo e renovação. Para quem
tem a pcrspectiva cio milênio, talvez não valha a pena perder tempo em sepa-
rar uma coisa da outra. Afinal, se o Terror fez parte da Revolução Francesa,
o Gulag da Revolução Soviética, se o militarismo japon ês precedeu sua
entrada triunfante no munclo elo capitalismo moderno e da alta tecnologia, se
o próprio nazismo, elialetieamente, purificou a Alemanha de seu nacionalis-
mo xenófobo e fez dela, depoi s da guerra, uma democracia exemplar, por
que se preocupar com as bombas dos Tupamaros , os assassinatos do Sendero
Luminoso ou o populi smo demagógico de um ou outro político mais inescru-
puloso') Pode ser que, em relação a essa atitude, o lugar onde moramos e
vivemos faça alguma diferença.
Penso que a atitud e de Morse em relação às ciên cias sociais, sua visão
elogmática c simplil'icada da América Latina e até mesmo a caricatura que
tenta fazer ele meus pontos de vista decorrem da função praticamente exclu-
siva que ele atribui ao trabalho intel ectual, que seria a da elaboração de uma
ideologia capaz ele sacudir c mobili zar o continente latino-americano, e daí,
quem sabc, o mundo. Exc mplo disso é a tese da superioridade dos novelistas
sobre os cientistas sociais, reforçada pelo uso abundante ele referências, ima-
gens e liccnças litenírias. Ningu ém negaria, evidentemente, a importância de
muitos novelistas latino-ameri ca nos na crítica e desvendam ento de aspectos
e dimcnsões insuspeitas ele nossa realidade ; poucos negariam , também, a
possível riqueza de uma exploração da rea lidade dentro das tradições da crí-
tica literária, tal como proposta por Clillord Geertz. No entanto, o que Morse
espera é que esses escritores possam "ajudar a rcnovar o discurso de uma
ideologia obsoleta", c ni sso residiria sua superioridadc sob rc os cientistas
soc iais. Além da obsessão com a ideologia (de minha parte, eu diria quc a
dcsmitificação das ideologias é ainda um dos grandes propósitos elas ciências
sociais, sem que para isso seja necessário retornar à ingenuidade da "ciência
neutra"), surpreende que haja quem acreditc que autores tão herm ét icos c
quase incomprcensíveis como Cort<Ízar, Borges ou Guimarães Rosa possam
ter algum papel na constituição de novas ideologias de alcance popular. A
fals,) polari zaç50 entre "novclistas" e "cientistas sociais" quc \lIorse introeluz
só pode produzir c\'eitos no mundo restrito dos círculos acad êm icos de elite,
para consumo dos quais, afinal, ela parece ter sido feita.
162 "IODERNIDADE E PÓS·MODE RNIDADE
Morse se espanta por eu dizer que alguns países são mais atrasados
do que outros. E , no entanto, não é difícil definir o que seja um país ou uma
região "atrasada": é onde as pessoas passam fome e morrem prematuramen-
te, onde não existem sistemas educacionais minimamente satisfatórios, onde
os governos não funcionam com um mínimo de competência, onde os direi-
tos humanos não têm vigência. Exi stem países latino-americanos mais e
menos atrasados , e essas diferenças re fletem , em grande parte, a capacidade
que tiveram de incorporar não somente os malefícios e as deformações que
acompanham a modernidade ma s também algumas de s uas instituições e
valores mai s centrais , como as in stituições democráticas , os sistemas educa-
cionais de massa e de elite e as formas modernas de organização da ativida-
de econômica.
Não é preci so ser um evolucioni sta ingênuo para entender isso. Quem
viu Bye Bye Brasil sabe que o atra so no mundo de hoje não se caracteriza
pela permanência de valores e formas de comportamento ditos tradicionais,
mas pela incorporação distorcida c caótica dos produtos mais aparentes c
assimiláveis das modernas tecnologias: a televisão, os automóveis, os meios
de comunicação e de transporte, as estruturas de dominação e de poder e as
armas de fogo, não tão modernas assim. Reagir aos eJ'eitos devastadores
dessa modernidade pela volta ao primitivo, ao popular, à alma ela civilização
perdida, no entanto, é um caminho se m saída. Viajando anos atrás pelo inte-
rior da Guatemala, fiquei impress ionado pelas vestes dos indígenas, seus
panos coloridos, padrões diferentes para cada aldeia, c sua aparente capaci-
dade de preservar suas culturas e tradições. Depois aprendi que essas roupas,
e as cores diferentes, haviam sido impostas pelos espanhóis nos tempos colo-
niais, como forma ele separar os índios entre as diferentes encoJlliendas, que
os mantinham e m regime de servidão. Para quando. ou onde, essas popula-
ções deveriam voltar?
V. S. Naipaul, escrevendo sobre a Índia independente e suas perplexi-
dades ante o artificialismo d a modernização ocidental e a husca do passado
perdido, observava clez anos atrás:
A turbulência da índia des ta vcz não vem da invasão estmngeira ou da conquist~ > mas é
gerada de dentro. A índia n50 pode responuer da forma antiga pela volta ao ;lrClísmo. Suas insti-
tuiçücs cmpresta das funcionaram C0l110 instituições emprestadas: mas a índia arcaica não tcm
substitutos para a imprensa. o parlamento e as cortes. A crise da índia não é só política c ccon ô-
miC<1 . É uma crise maior de uma antig.,. civilização feriJa que linalmcntc está tomando consciên-
cia de suas inadequações. mas não e ncontra os meios intelectuais necess.írios para ir adiante t o.
E, ao final:
Nos textos antigos os homens olhavarn para o passad o e falavam d:\ atual Idade das
Tre vas ; hoje eles olham para os dias de Gandhi e da luta contra os ingl eses e vêem tud o o que
ocorreu depois como um desvio, antes que ullla evolução da história. Enquanto a índia tratar de
voltar a scu passado. ela não conquistará esse passado, nelll scd por ele enriquecida. O passado
só pode ser co nqui stado, agora, pel a pesqui sa e sci/ll/a rs/Jil', pela disciplina intelectual , e não
pel:] via espiritual. O passado deve ser visto corno morto; senão, o passado matará (p. 174).
Não existe volta ao passado, nem sequer um pas sado para voltar,
tanto na Índia como na América Lat ina. Corre ndo ele novo o risco de ser
acu sado ele "pos itivista pombalino do século XVII]" ou de idcalizar os
Ph.D.'s como os heróis do mundo mod e rno, eu reafirmaria que existc uma
agenela fundamental a ser cumprida na América Latina, em alguns paíscs de
forma mais dramática do que em out ros, quc recoloca as ques tões da educa-
ção e m todos os nívei s (popular, média , su perior, co ntinuada) e da ciência e
tecnologia co mo uma das preocupações fundamentais. Não é possível parti-
cipar dc forma adequada no mundo de hoje, e principalmente no dc amanhã,
sem uma população minimamente capa z de conviver de form a ativa e pro-
dutiva com as novas formas de comunicação, produç80 e interação social
que estão se generalizando. Essa agencia intelectual c cultural n80 substitui,
mas é homóloga ao estabel ec imento de novas formas de organi zaç8o e parti-
cipação social e in stituições políticas modernas, como os partidos, o parla-
m en to, o pod er judiciário e um servi ço público competente. A s tradições
autoritárias de aito a bai xo de nossas sociedades, o fracasso dos projetos
modernizaelores d o passado, o vazio e a burocrati zaç ão de nossa educação
bêls ica , o corporativismo e (1 baixa qualidade de nosso en s ino superior, o
provincianismo elos horizontes intelectuais ele nossas elites, lUdo isso torna
nosso s problema s extremamente eli l'íc e is, mas nã o permitem a postura
cÔllloda el e declarar que a agencia ela mod e rnidade já te ve seu tempo e que
agora é chegada a hora ele a bandoná-Ia como lixo inútil. E tampouco que se
diga , de quem sc p reocupa com essas questões, ser um "ardente defensor do
stalll qllO".
Por que e u disse que seu livro era "potencialmente da noso em suas
implicações", Morse me acusa de querer jogá-lo na fogueira. E, no entanto,
se idéias não tivesse m conseqüências qu e mereçam ser a valiada s , nem eu
nem ele poderíamos justificar nossos salários no fim do mês. O princípio da
liberdade de expressão, uma das grandes conquistas cla tradição liberal, não
su põe que as idéias sejam inconseqüentes. Ao contrário, a suposiç80 é que
elas são tão importantes que vale a pena garantir sua manifestação, mesmo
quc muitas vezes produzam resultad os que não ag radem a uns ou outros.
Acredito que essa liberelade, ela qual todos nos beneficiamos, d eve ter como
c ontrapartida que as idéias possam ser li vremente criticadas, inclusive em
suas co nseqüên c ias, e que não tratemos de escapar ela responsa bi Iidade pelas
implicações do que dizemos ou propomos .
16<1 MODERNIDADE E PÓS ·MODERNIDADE
É difícil dizer, no entanto, que poder é esse que as idéias têm. Como
bem lembra Morse, esta é uma queslão que se tornou clássica a partir do
tema espinhoso da responsabilidade dos intelectuais alemães pelo surgimen-
to do nazismo; a lembrança é tanto mais oportuna quanto os grandes lemas
do debate intelectual alemão na virada deste século, que se intensificou nos
anos da República de Weimar, têm muito em comum com aqueles levanta-
dos por Morse: a crítica da ciência J"ormal, em nome da intuição e da vida; a
busca de interpretações globais do sentido profundo da história e da natureza
das civilizações e das cultur<ls , mais além do que poderia ser captado pela
mera empiria; a valorização do popular e do comunitário, em detrimento das
construções artificiais da civilização, e a obsessão com a ideologia, que é
vista como a única razão de ser do trabalho intelectual e cullural.
Vale a pena descrever algo desse debale para desfazer de uma vez por
todas a idéia de que Morse está propondo algo de novo, ou que minhas críli-
cas tenham, por sua vez, muita originalidade. A batalha entre a vida e a esle-
rilidade, a inluição criativa e o empirismo obsessivo, a intuição profunda do
senticlo das coisas e o acúmulo gradual de pequenos cadáveres ele evidência
dissecados pela ra zão analítica, a ideologia e a ciência foi dispulada i.t exaus-
lão mais de meio século atrás, e hoje jL1 conhecemos bastanle bem tanto as
limitações do positivismo e academicismo ingênuos quanto aonde podem
chegar os delírios cio intuicionismo e do vitalismo . Fritz Ringer, autor ele um
estuelo clássico sobre o mandarinalo intelectual alemão do século XIX ao
período do nazismo, usa urna citação de Ernst Troeltsch, colega e contempo-
râneo de Max Weber, para caracterizar a força da crítica ao positivismo e ao
estab/ishl1lent universitário em seu tempo:
I I Ernst Troeltsch, HD ie geistigc Revolution". 1921. citado por F. Ringer. '[iiI' Decline IIr liIe
Gem/UI/ !v!unduril/.(, Harvard University Press. 1969, p. 346.
oESPELHO DE ~IORSE 165
Em um sentido muito geral, a tllosofia da vida era a doutrina segundo a qual a vida, cm
sua forma mais imediata, é a realidade prill1nria do homcm. Esta ieléia podia ser interpret,lda de
muitas formas diferentes. Ela podia ser rratad,l como verdade mctafísica, cm cujo caso liberda-
de. criatividade. "totalidade" na experiência e coisas selllelllantes surgiam como as característi-
C<lS mais gerais ela realidade. Klages ,lparentemente defenelia algulllas dessas teorias. Ele tam-
bém se expanelia a respeito de temas como a vivência. a compreensão. Eillji'ihlllllg (cmpati,l) e
AlIscllllllllllg (percepção. intuição). para sugerir uma bateria de maneir,ls supcriores ao "mera-
mente conceituai" para chegar ii realidade imediata da vid,1. A "experiência imediata" de Dilthey
adquiria as características de um proccdimcnto místico na filosofia da viela. Na pedagogia.
"vivencial''' [e.\},erimcing] assumia as vezes o sentido de aprendizagem ativa. pela participação
direta [(/(:Iillg oUl1 em uma seqüência de eventos e reaçõcs. Em um sentido mais amplo. o ato de
vivencinr envolviu a illl<1ginaçüo e a emoção do sujeito, e não somente seu intelecto. Tanto
quanto "cmpati:l" e "percepçflo". o conceito de vivência (Erlehell) sugeria que as impressões
inclil'idielas da experiência ingénua são menos enganosas, de muit<ls maneiras. do que o material
que nos chcg~ pelo filtro da abstração <lnalítica e da classificação científica. Em algumas varie-
e1aeles da lIIosotla ela vid'l. todo conhecimento conceituai e o próprio Gei.H emm descritos como
obstúculos ou inimigos da vida (p. ]]7)12
12. É claro que a validade dessas concepçõcs neio poderia ser medida, simplesmente. por SU,b
conseqüências como munição ideológica par'l a b<ltalha do irracionalismo que ia ganhando
forJll<l. No entanto. também não seria o caso de ignomr esse aspecto. A esse respeito. diz
Ringer que "as doutrinas do movi111cnto [ela filosotla da I'ida] não pouem ser atribuídas com
segurança a ninguém em panicular. mas elas certamente til'emm ullla certa influência. Na
verd<lde, a filosofia da vida popular tinha muito em comum com boa parle da literatura
popul is!a [l'Iilkisll]. ant i-sellli ta e neoconsCl'l'adora da ant i modem ieLlde. A n1l1,ls su rgi ram n,l
periferin cio Illundo acadêmico ou fora dele: ambas exageraram as atitudes ql1~ existiarn
entre os próprios mandarins intclcctu~is: e ambas ame<tçal'alll sUJlerar os protessorcs cm SU<l
disputa pel;) atençfto cios senli-educados e dosjol'clls" F. Ringer. "I'.
cil .. p. ]]7.
166 MODERNIDADE E PÓS-MODERNID ADE
Weber não hesitou em desafiar a grita geral contra a especialização. Nas condições
modernas, dizia. era impossível fazer contribuições genuínas ao conhecimento sem pesquisas
detalhadas em um campo delimitado de estudo. A "inspirnçiío" (Eillgaue) não era menos nem
mais necessária no trabalho acadêmico do que em qualquer outra atividade; mas só poderia sur-
gir como resultado do trabalho persistente. Intui ções brilhantes eram de qualquer forma pratica-
mente inúteis, a não ser que alguém fosse cap;lz de explorá-Ias e substanciá-bs de form a melódi-
ca. I ... ] Ele se espantava com o ctlito da intuição e da "experiência" (Erlchel1) imediatas. Estava
cansado de ouvir falar que o seflolar tinha de ter person,lli ebdc Admitia que o altista poderia ter
a esperança de criar coisas de valor permanellle. Mas o pesquisador não poderia ter essa esperan-
ça: todas as suas contribuições estavam destinadas a ser superadas mais cedo ou mais tarde.
Pesquisar era simplesmente participar do processo de "intelectualização" que, por milhares de
anos, vinha abrindo caminho contra as interpretações mágicas da realidade. Esse processei pare-
cia não ter fim, e suas conseqiiências nem sempre eram agradáveis (Ringer, p. 352).
ao propor a separação entre Wisselisc!JO/i e juízos ele valor, Weber na realidade buscava
limpar o terreno para políticas públicas mais progressistas. Ele parecia limitar o iimbito de com-
petência do trabalho acadêmico, Illas lhe reserv ava três importantes fu nções : confrontar os
'-fatos", pesar suas co nseqiiências e ava liar a consistência interna das políticas públicas. Na prü-
tica, esse programa reduzia muito pouco o escopo do discurso acadêlllico e cientítlco, seja elll
política, em ética ou em qualquer outro campo. Tudo o que excluía era a busca de valores últi-
mos da filosofia cultural dos idealistas alemães. Weber tampouco era um positivista, propria-
mente falando. Na atln os fera da revolução espiritual, suas recomendações Illetodológicas pode-
riam parecer vagamente cautelosas e ultrapassadas . Na realidade, ele de fato incluía as explol-a-
ções mai s grosseiras da falcícia do sentido comulll entre as ilusões ele uma época já ultrapassada
(Ringer, p. 156).
sem estilo. Um ren~scimento religioso [lodcriu ser de alguma aiud~, Jl\~S não poderia dar-se nas
igrejas est~beleciclas, que se haviam tornado totalmente dec~dentes. Uma espiritualid~de esoté-
rica também scria inútil. porque não poderi~ produzir ~qucle espírito de solidariedade nacional
que er~ t50 urgentemcnte neeessürio. Só urna religião nacion~1 cotnum pocleri~ produzir ullla
nova sensaç:io de lInid~de moral e renov~ção de propósitos, elevando o Estado acima do nível
cle Ulll~ Illüqllin~ utilitária [ ... ].
Não havia lug~r p~r~ intelectuais desenraizados n~ nova sociedade de Krieck. Ele pro-
punha deslllantel~r todo o e.w!lJ/is!ulle1ll ac~dêlllico, a não ser que ele pudesse justiticar a exis-
tência contribuindo para a vida espiritual da nação. A pose da objetivid~de, a recusa a emit iriuí-
zos de v~lor p~reei~1ll p~ra ele fraquezas e vícios. A vida acadêmica alemã havia-se transforma-
do cm um mec~nisrno sem sentido, preocupado somente em se perpetuar a si mesmo.
Excessivamente especializada e esotérica, cm ulna espécie de sinecura para ullla clique cansad~
Em princípio. o.s m~ndarins tinham tanto desprezo pelos demagogos n~cionalistas quan-
to pelos parlamentaristas e líderes partidários do libemlismo democrático. Tudo que eles dizialn
sobre Ceis/ e sobre política, eles o dizi~1l1 como intelectu~is, como port~-vozes d~ minoria dos
homens cultos. e n~o como representantes dos interesses industriais ou agrários, e certamente não
como proragandistas das políticas de m~ssas do nacional socialismo. Não tomar isso em eonside-
raçJo é n:10 entender nada ela intenção e das tendencias das ieleologias dos nlDndarins.
E, no entanto. depois de levarmos em conta todas as slltis dilerenças ele intenção, todos
os diferentes níveis de vulg~ridade intelectual c todas as nuanças de opinião baseadas em dif<:-
renças de ebssc e S/ltlI/S, pertnnnece ainda uma similaridade residual entre os rontos de vista
elos professores c dos estudantes nas universidaues ~lem5s. O "ide~lismo" dos movimentos
chauvinistas e vo/kisiI acolllpanharam o idealismo dos Illand~rins como um eco ligeiramente dis-
168 olODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE