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Assim como casas são feitas de pedras, a ciência é feita de fatos. /Vias
uma pilha de pedras não é uma casa e uma coleção de fatos não é,
necessariamente, ciência.
Jules Henri Poincaré
o resultado mais preciso e correto possível. Bem, para que isso se concreti-
ze, primeiro precisaremos de dinheiro - algo em torno de R$ 350 m i l só para
começar (toda pesquisa científica deve ter um orçamento).
O primeiro passo será descobrirmos, por meio de um levantamento de
mercado, os modelos e fabricantes disponíveis, para que possamos efetuar
comparações. Assim que soubermos quantos modelos vamos testar, podemos
planejar as fases seguintes da nossa pesquisa. Digamos que concluímos, após
um levantamento que durou 30 dias, que há 600 modelos diferentes de cal-
ças, incluindo aí todas as variações de lavagens, tecidos, modelagens e fabri-
cantes. O p r ó x i m o passo será adquirirmos, preferencialmente pelo menor
preço possível, um exemplar de cada modelo - não nos esquecendo de ano-
tar o preço e os dados básicos dos fornecedores em uma planilha, para aná-
lise futura.
Teremos, então, de submeter essas 600 calças a uma série de testes. Por
exemplo: o teste do "caimento". Vamos convidar cinco especialistas em moda -
três estilistas e dois jornalistas especializados - para que possam avaliar esse que-
sito, atribuindo-lhe uma nota de zero a dez, enquanto você desfila elegantemen-
te em uma passarela, com cada um dos 600 modelos, é claro. Com uma média
de 40 modelos por dia, essa etapa levará cerca de 15 dias para ser completada.
Depois, passamos ao segundo teste: montamos um laboratório com 60
máquinas de lavar e 60 secadoras de roupa. Lavamos e secamos continuamen-
te cada peça pelo menos 20 vezes. Analisamos dois itens nessa etapa: a taxa
de desbotamento da tintura (a cada lavagem) e a taxa de desagregação pro-
gressiva do tecido, quando analisado por meio de microscópios. Considerando
um tempo (estimado) de uma hora para lavar, 40 minutos para secar e uma
hora e 20 minutos para analisar cada peça entre cada operação de "lavagem-
secagem-análise", teremos 300 horas de trabalho por peça. Como são 60 má-
quinas realizando o serviço simultaneamente, podemos considerar um total
de três mil horas de trabalho. Uma vez que nosso laboratório conta com a co-
laboração de dezenas de diligentes assistentes de pesquisa, que trabalham 12
horas por dia, podemos estimar que essa fase levará uns 250 dias.
Para encurtar o processo (ou então gastaremos toda a nossa verba), con-
cluímos nossa pesquisa, comparando todas essas variáveis (preço, estilo, qua-
lidade do tecido) utilizando algumas técnicas especiais da estatística e, ao
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que vem do grego méthodos, que, por sua vez, deriva da composição das pala-
vras meta (através de) e hodós (caminho), ou seja, "através "de um caminho"
Raciocínio circular; tentativa de demonstração de uma tese, repetindo-a com palavras diferentes.
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primeira parte deste livro, vamos investigar em detalhes sua história e prin-
cipais conceitos. Mas, por ora, vejamos a etimologia da palavra: ciência vem
do latim scientia ( o u episteme, em grego), que, por sua vez, tem sua origem
no termo scire, cujo significado é "aprender, conhecer" (APPOLINÁRIO,
2004). Vejamos o que dizem alguns autores importantes sobre a ciência:
Newton
Ander-Egg M a r x & Hillíx Karl Popper
da Costa
"Conjunto de conhe- "Atividade pela "Um cientista, seja "A ciência consiste
cimentos racionais, qual os homens adqui- teórico ou experimen- essencialmente em sis-
certos ou prováveis, rem um conhecimento tal, formula enuncia- temas de conhecimen-
obtidos metodicamente, ordenado dos fenô- dos ou sistemas de . tos alcançados por
sistematizados e menos naturais, traba- enunciados e verifica- caminho racional. Seu
verificáveis, que fazem lhando com uma -os um a um. No propósito: o conheci-
referência a objetos metodologia particular campo das ciências mento científico, isto
de uma mesma (observação controla- empíricas, ele formula é, uma série de cren-
natureza" (ANDER- da e análise) e um hipóteses e submete- ças verdadeiras e justi-
EGG, 1978, p. 15). conjunto de atitudes -as a testes, confron- ficadas, dentro das
(ceticismo, objetivida- tando-as com a expe- fronteiras da racionali-
de etc.)" (MARX; riência, através de dade (...) poder-se-ia
HILLIX, 1978, p. 19). recursos de observa- dizer que a razão sozi-
ção e experimenta- nha conduz, em princí-
ção" (POPPER, 1974, pio, às ciências for-
P- 27). mais; razão mais expe-
riência, às reais"
(COSTA, 1999, p. 41).
Como se pode observar por meio dessas definições, a ciência parece pos-
suir algumas características particulares especiais que a diferenciam de
outras formas de conhecimento, como a arte, a religião, a filosofia e, é claro,
o senso comum. Sim, caro leitor, existem mesmo diversas formas de conhe-
cimento. Vejamos cada uma delas c o m mais detalhes.
maioria de nós já se sentiu ligada, de alguma forma, a essa força divina que,
em cada religião em particular, assume uma manifestação específica, c o m o
Buda para os budistas, Jesus Cristo para os cristãos ou o deus Rá para os anti-
gos egípcios.
O conhecimento religioso, em seu sentido mais amplo, refere-se a qualquer
conhecimento que não possa ser questionado ou testado, adquirindo, portan-
to, um caráter dogmático. O dogma é uma afirmação que não pode ser con-
testada e, por isso, acaba se constituindo na base da maioria das religiões. Por
exemplo: se você for católico apostólico romano, deve, necessariamente, acre-
ditar no "dogma da infalibilidade papal", que afiança ser impossível que o papa
se engane sobre qualquer assunto, uma vez que ele seria, supostamente, o legí-
timo representante de Deus na Terra.
Outra característica interessante do conhecimento religioso refere-se ao seu
caráter pessoal: a fé de uma pessoa não pode ser comunicada totalmente às ou-
tras. Ou seja, a "experiência religiosa" é muito pessoal, e essa "reconexào" (a pala-
vra religião é derivada do termo latino religare - ligar novamente, ou seja, re-
conectar algo que já foi ligado em eras passadas: Deus e o homem) pode se
dar tanto em uma cerimônia religiosa como em outras situações inusitadas -
na observação de um lindo pôr do sol, por exemplo. Dessa forma, o "meu"
Deus não é e nunca será igual ao "seu" Deus.
O Conhecimento Artístico
O conhecimento artístico é embasado na emoção e na intuição. Quando entra-
mos em contato com uma obra de arte, seja ela uma pintura, uma escultura,
uma música ou uma poesia, por exemplo, muitas vezes não conseguimos "colo-
car em palavras" o que estamos experienciando. Isso ocorre porque a informa-
ção veiculada pela manifestação artística é preponderantemente de natureza
emocional. Observamos um quadro e ele nos "suscita" algo: uma irritação, uma
sensação de paz, uma alegria indefinível etc.
É uma forma de conhecimento essencialmente não racional e difícil de ser
capturada pela lógica. Aliás, o conhecimento artístico pode ou não assumir uma
lógica similar ao senso c o m u m e à ciência. A arte pode, na realidade, assumir
qualquer forma, uma vez que o que vale é a relação especial que se estabele-
ce entre o observador e o fenômeno observado. Por exemplo: podemos olhar
para uma equação escrita em um quadro-negro e pensá-la sob a ótica da mate-
mática (ciência) ou da estética (o equilíbrio dos termos, a cor do giz, a sono-
ridade de seus elementos etc.).
10 METODOLOGIA DA CIÊNCIA
O Conhecimento Filosófico
Pitágoras (século VI a.C.), por seus enormes conhecimentos, era freqüente-
mente chamado de "sábio" por seus discípulos. Q u a n d o isso acontecia, ele
retrucava: "Minha única sabedoria consiste em reconhecer minha própria igno-
rância. Assim, não devo ser chamado de sábio, mas antes de amante da sabe-
doria". E é exatamente isso o que significa a palavra filosofia, junção dos ter-
mos gregos philos (amor) e sófia (sabedoria).
Tentar definir em termos absolutos essa grandiosa área do conhecimento
humano seria, no mínimo, um ato arrogante e destituído de propósito. Vamos
fazer diferente: ao explorarmos um pouco o conceito, pelo menos caminhare-
mos na direção de uma compreensão aproximada acerca das diferenças fun-
damentais entre essa forma de conhecimento e as outras. Para isso, pediremos
auxílio a um dos maiores pensadores do século XX, o filósofo britânico
Bertrand Russell (1872-1970):
• Deus deve ter dado outra chance àquela pessoa. Parece que o "recado"
foi bem compreendido, pois ela agradeceu, comovida, pela proteção con-
cedida pelos desígnios divinos [conhecimento religioso];
• é impressionante como as pessoas andam cada vez mais distraídas hoje
em dia: quem não sabe que se deve olhar para os dois lados da via an-
tes de atravessar? [conhecimento de senso comum];
• de fato, se os pneus não estivessem novos e calibrados e o automóvel
não contasse com freios ABS, não teria sido possível freá-lo à velocida-
de de 60 k m / h a uma distância de 20 m, como o motorista fez [conhe-
cimento científico];
• a vida é realmente um fenômeno efêmero. Se é verdade que todos pode-
mos morrer a qualquer hora, não convém perder tempo c o m futilidades
[conhecimento filosófico];
12 METODOLOGIA DA CIÊNCIA
• foi uma cena dantesca. O ruído do freio, o grito da mulher - aquela ima-
gem produziu em m i m uma emoção devastadora [conhecimento artísti-
co].
Está certo, concordamos plenamente que não é tão fácil assim isolar as for-
mas de conhecimento umas das outras. Nas frases citadas, nota-se claramente
a dificuldade em estabelecer a diferença entre o conhecimento filosófico e o de
senso comum, por exemplo. Mas observe com cuidado: no primeiro caso, exis-
te um raciocínio lógico ("se a vida é efêmera, todos vamos morrer um dia; por-
tanto não devemos gastar nosso tempo com bobagens"), enquanto, no segun-
do, há uma afirmação de 'caráter empírico e pessoal ("as pessoas andam cada
vez mais distraídas hoje em dia").
No universo do discurso', simultaneamente produzimos e consumimos co-
nhecimento em todas essas formas. De fato, dificilmente podemos isolar uma
forma de conhecimento da outra, uma vez que todas estão amalgamadas em
nossa atividade lingüística. Por exemplo: o cientista também tem sua dimensão
religiosa, espiritual. Além disso, ele não vai utilizar o raciocínio científico
durante as 24 horas do dia, pois, como qualquer ser humano comum, também
lida com problemas e situações cotidianas que lhe exigem decisões baseadas
no senso comum, na lógica filosófica, na estética etc.
De qualquer forma, como podemos observar no Quadro 1.3, o conheci-
mento científico difere das outras formas de conhecimento em alguns aspec-
tos, porém assemelha-se em o'utros. JVlas, para efeitos desta introdução, vamos
à sua essência: trata-se de um conhecimento concreto, real (vem dos fatos),
organizado e sistematizado, obtido por meio de um processo bem-definido
(método científico) e que pode ser replicado (outros pesquisadores, em qual-
quer parte do mundo, se repetirem as mesmas experiências e observações, de-
vem chegar às mesmas conclusões do estudo original). Possui, ainda, duas ca-
racterísticas fundamentais, que serão analisadas nos próximos capítulos: a
verificabilidade (para ser científico, o conhecimento deve ser passível de
comprovação) e a falseabilidade (não se trata de um conhecimento definiti-
vo: sempre pode vir a ser contestado no futuro, em função de novas pesqui-
sas e descobertas).
CIÊNCIA: UMA VISÃO GERAL 13
Formas de conhecimento
Características
Senso
Artístico Religioso Filosófico Científico
comum
Vinculação com
Valorativo Valorativo Valorativo Valorativo Factual
a realidade
Aproximada-
Precisão Inexato Não se aplica Exato Exato
mente exato
O objetivo deste capítulo foi apresentar ao leitor uma idéia geral introdu-
tória do campo científico. Nos próximos capítulos, veremos como se deu o de-
senvolvimento da concepção científica acerca do m u n d o e do universo e por
que ela é tão importante nos dias atuais.
Concaitos-Chave do Capítulo
Ciência Conhecimento filosófico Ciências naturais
Método Conhecimento religioso Ciências sociais
Método científico Conhecimento artístico
Senso comum Ciências formais
SAGAN, C. 0 mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997.
Nessa excelente obra, o astrônomo Carl Sagan faz uma defesa apaixonada da ciência, denunciando o vírus do
analfabetismo científico que assola a cabeça da maioria das pessoas e desfazendo mal-entendidos comuns acer-
ca do que seja cftj não ciência.
Evolução das
Idéias Científicas:
Dos Gregos
ao Positivismo